Filosofia Clássica PDF

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Mitologia e Pré-Socráticos

1. Mitologia devem receber a informação como ver-


dade inques onável. Desse modo, os
O mito narra como a par r da vontade mitos não dão espaço para ques ona-
dos Seres Sobrenaturais (deuses) uma mentos nem reflexão, admitem inco-
realidade passou a exis r, seja uma erências, contradições e são muito li-
realidade total, o Universo, ou apenas mitados deixando vários ques ona-
um fragmento: uma ilha, uma espécie mentos em aberto, perpetuando a
vegetal, um comportamento humano, forma de ver e entender tanto o mundo
uma ins tuição. Outra função do mito natural quanto o social.
consiste em revelar os modelos exem-
plares de todas as a vidades humanas O mito é também uma forma de jus fi-
significa vas: alimentação, casamento, cação da estrutura social da época. Dito
trabalho, educação, arte, como cozer de outro jeito, o mito é uma forma de
certo cereal ou caçar um animal com ver não só o mundo natural, como
auxílio do cajado, etc. Todas as culturas também de entender e aceitar a divisão
(povos, civilizações) têm os seus própri- e o funcionamento da sociedade. Per-
os mitos. Muitos mitos criaram rituais. ceba que os grandes reis são protegidos
Através da repe ção dos rituais, nasce- ou escolhidos pelos deuses e os grandes
ram as religiões. Mito e religião (po- guerreiros, como Aquiles, possuem vín-
liteístas e monoteístas), portanto, estão culos com eles. No entanto, as
in mamente relacionados. condições de vida social que eram fun-
damentadas pelos mitos, e que
Basicamente, existem dois pos de também os fundamentavam, mudaram
mitos. As narra vas que procuram muito e sucessivos acontecimentos aca-
explicar a origem do mundo são as cos- baram derrubando muitas dessas expli-
mogonias (cosmos = mundo ordenado cações fabulosas sobre a realidade
+ gonia = gerar), já as histórias que tanto natural quanto social, e uma nova
narram a origem dos deuses são as forma de ver o mundo (incluindo a
teogonias (theos = seres divinos + gonia sociedade) precisava ser criada. É aí que
= gerar). Os mitos se sustentam apenas entra em cena a Filosofia.
na autoridade de quem os conta. O po-
eta-rapsodo tem autoridade inques- Homero foi o poeta-rapsodo a quem
onável, seja porque recebeu a narra - costumeiramente se atribui a autoria de
va de uma tradição oral respeitada, seja dois poemas épicos (epopeias): Ilíada,
porque é considerado alguém escolhi- que trata da guerra de Tróia e Odisseia,
do pelos deuses para receber uma reve- que relata o retorno de Ulisses a Ítaca,
lação e passá-la aos outros. Esses após a guerra de Tróia. Por vários mo -
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Mitologia e Pré-Socráticos

vos, inclusive pelo es lo diferente dos os povos ditos primi vos, contestando
dois poemas, alguns intérpretes acham o racismo e a noção de primi vo. Ele
que são obras de diversos autores. comparou etnografias realizadas em
todos os con nentes. A sua grande con-
Uma das caracterís cas da consciência tribuição foi a de que os chamados sel-
mí ca é a aceitação do des no: os cos- vagens não são atrasados, menos
tumes dos ancestrais têm raízes no evoluídos e primi vos, apenas operam
sobrenatural; as ações humanas são com o pensamento mí co (magia). O
determinadas pelos deuses; em conse- mito e o rito não são simples lendas fa-
quência, não se pode falar propria- bulosas, mas uma organização da
mente em comportamento é co, uma realidade a par r da experiência
vez que falta a dimensão de subje vi- sensível enquanto tal.
dade que caracteriza o ato livre e
autônomo. O mito tem três funções principais:
função explica va, o presente é explica-
Ao analisarmos a passagem do mito à do por alguma ação que aconteceu no
razão há um período intermediário ca- passado, cujos efeitos não foram apaga-
racterizado pela consciência trágica dos pelo tempo, como por exemplo,
que representa o momento em que o uma constelação existe porque, há
mito não foi totalmente superado e muitos anos, crianças fugi vas e fa-
ainda não se firmou a consciência mintas morreram na floresta, mas uma
filosófica. A tragédia grega floresceu deusa levou-as para o céu e transfor-
por curto período e os autores mais mou-as em estrelas; função organiza -
famosos foram Ésquilo (525-456 a.C.), va, o mito organiza as relações sociais
Sófocles (496-c.406 a.C.) e Eurípedes (de parentesco, de alianças, de trocas,
(c.480-406 a.C.). O conteúdo das peças de sexo, de iden dade, de poder, etc.)
é re rado dos mitos, mas há algo de de modo a legi mar e garan r a per-
novo no tratamento que os autores - manência de um sistema complexo de
sobretudo Sófocles – dão ao relato das proibições e permissões. Ex.: o mito de
façanhas dos heróis. A tenta va de Édipo existe em várias sociedades e tem
reflexão retrata o logos nascente. Daí a função de garan r a proibição do
em diante a filosofia representará o incesto. O cas go des nado a quem
esforço da razão em compreender o não obedece às regras funciona como
mundo e orientar a ação. in midação; e, por fim, uma função
compensatória, o mito narra uma situ-
Lévi-Strauss, antropólogo do séc. XX, ação passada, que é a negação do pre-
criador do método estrutural, estudou sente e que serve tanto para compensar
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Mitologia e Pré-Socráticos
os humanos de alguma perda como agrupados e ordenados. Existe, portan-
para garan r-lhes que um erro passado to, uma lógica nos mitos. Antes mesmo
foi corrigido no presente, de modo a do advento da Filosofia, o homem já
oferecer uma visão estabilizada e regu- possuía a curiosidade de saber sobre a
larizada da natureza e da vida comu- origem das coisas. Com ela criaram
nitária. diversas histórias que foram passadas
de forma oral por várias gerações. A
O mito nos ajuda a se acomodar no palavra grega mythos significa contar,
meio em que vivemos. Segundo narrar, conversar. O mito é uma narra -
Lévi-Strauss, o “pensamento selvagem” va fantasiosa que visa dar uma expli-
não é o pensamento dos “selvagens” ou cação para a origem de determinada
dos “primi vos” (em oposição ao coisa, sejam ela o homem, o amor, a
“pensamento ocidental”), mas o pensa- doença, o mundo, os deuses, etc. Os
mento em estado selvagem, isto é, o primeiros modelos de construção do
pensamento humano em seu livre exer- real são de natureza sobrenatural, isto
cício, um exercício ainda não-domes - é, o homem recorre aos deuses para
cado em vista da obtenção de um rendi- apaziguar sua aflição.
mento. O pensamento selvagem não se
opõe ao pensamento cien fico como 2. Do Mito aos Logos
duas formas ou duas lógicas mutua-
mente exclusivas. Sua relação é, antes, A Filosofia, como uma ciência que
uma relação entre gênero (o pensa- estuda as inquietações humanas e visa
mento selvagem) e espécie (o pensa- explicá-las de maneira racional, surgiu
mento cien fico). O pensamento “sel- na Grécia an ga, no século VI a.C, época
vagem” não é menos lógico do que o em que basicamente tudo era explicado
pensamento do “civilizado”. O mito é e nha suas origens na mitologia.
frequentemente considerado como o Fenômenos como um raio, por exem-
espaço da fantasia e da arbitrariedade. plo, eram dos como uma manifestação
Esse pensamento está equivocado, pois da ira de Zeus, o comandante de todos
o mito ordena, classifica e dá sen do os outros deuses. Essa explanação “divi-
aos fenômenos. no-mitológica” para a realidade se
chamou, então, cosmogonia. Porém, os
Os mitos de diversas sociedades, geral- pensadores inquietos da época quise-
mente binários e oposi vos (herói e ram responder e explicar fenômenos e
ví ma, amigo e inimigo, pai e mãe, cru e perguntas como essas de maneira
cozido...) são aparentemente diversos e racional e lógica, o que foi iden ficada
sem vinculações, mas podem sim ser como cosmologia. Começa-se, então, a
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Mitologia e Pré-Socráticos
se dis nguir o mito da lógica, o que Os da Escola Jônica: Tales de Mileto,
antes era unido (mitologia ou lógica do Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de
mito) passa a ser separado, para se Mileto e Heráclito de Éfeso; 2. Os da
entender e se abordar a lógica do fato Escola Itálica: Pitágoras de Samos; 3. Os
e/ou fenômeno, o que a filosofia carac- da Escola Eleata: Parmênides de Eleia e
teriza como o período de transição “do Zenão de Eleia; 4. Os da Escola da Plu-
mito ao logos”, ou seja, da explicação ralidade: Empédocles de Agrigento,
por meio de histórias oralmente repas- Anaxágoras, Leucipo de Abdera e
sadas (mitos) para a explicação racional Demócrito de Abdera.
e lógica da coisas (logos).
Esses primeiros filósofos se preocu-
Os precursores da Filosofia foram os param em tentar explicar a physis (pala-
pré-socrá cos, filósofos que buscavam vra grega que pode ser traduzida por
a origem natural do universo e das natureza). Por isso, eles são conhecidos
coisas através de explicações lógicas e também como naturalistas, ou mesmo
fundamentadas na observação e estudo �sicos, pois estavam tentando entender
da realidade. Os pré-socrá cos, como o o mundo �sico de uma forma racional
próprio nome alude, antecederam a (cosmologia), dando uma explicação
Sócrates. Eles eram naturalistas, busca- diferente da dos mitos, que recorriam
vam a essência e o princípio das coisas, aos deuses. Diferentemente da expli-
o que chamavam de arché. Após o cação mí ca que dizia que o universo
período dos pré-socrá cos (séc. VI a.C.), havia sido criado do nada, para eles o
surgiu o período clássico (séc. V a.C.) universo havia sido gerado de um
com Sócrates, Platão e Aristóteles. princípio universal. E descobrir essa
arché seria a chave para entender todas
3. Pré-Socrá�cos as coisas.

Tendo Sócrates como a grande referên- Os Pré-Socrá cos acreditavam que a


cia na filosofia an ga, os historiadores physis, apesar de estar em constante
consen ram em chamar esse primeiro movimento (devir), possuía um ele-
período filosófico de pré-socrá co. É de mento de permanência e que este seria
se ressaltar que essa convenção tem o seu princípio originador, seu funda-
como critério não apenas uma ordem mento, e explicaria a causa da mu-
cronológica, mas a linha de inves gação dança. O “princípio” é, propriamente,
filosófica, pois ao tempo de Sócrates aquilo de que derivam e em que se
ainda haviam pré-socrá cos. Os princi- resolvem todas as coisas e aquilo que
pais filósofos pré-socrá cos foram: 1. permanece imutável mesmo nas várias
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Mitologia e Pré-Socráticos
formas que pouco a pouco assume. ápeiron (indeterminado). O princípio –
Dentre esses filósofos haviam os que que pela primeira vez Anaximandro
acreditavam que a arché era um único designa com o termo técnico de arché –
elemento, esses eram os monistas. é, portanto, o ápeiron. Dele as coisas
Mais tardiamente, outros pré-socrá - derivam por uma espécie de injus ça
cos começaram a defender que eram originária (o nascimento das coisas está
vários, e ficaram conhecidos como plu- ligado com o nascimento dos contrári-
ralistas. os, que tendem a subjugar um no
outro) e a ele retornar por uma espécie
Em primeiro lugar, vamos analisar o de expiação (a morte leva à dissolução
pensamento dos MONISTAS. e, portanto, à resolução dos contrários
um no outro). Para ele, o princípio
Tales de Mileto (640-546 a.C.) talvez criador, o ápeiron, não poderia ser co-
tenha sido o primeiro filósofo. Foi ele o nhecido pelos sen dos, mas somente
criador, do ponto de vista conceitual, do pelo intelecto.
problema concernente ao princípio
(arché). Tales iden ficou o princípio Anaxímenes (588-524 a.C.), discípulo
com a água, pois contatou que o ele- de Anaximandro, con nua a discussão
mento líquido está presente em todo sobre o princípio, mas cri ca a solução
lugar em que há vida. proposta pelo mestre: a arché é o ar
infinito, difuso por toda a parte, perene
Anaximandro de Mileto (610-547 a.C.) em movimento. O ar sustenta e governa
foi provavelmente discípulo de Tales e o universo e gera todas as coisas, trans-
con nuou a pesquisa sobre o princípio. formando-se mediante a condensação
Cri cou a solução do problema propos- em água e terra e em fogo pela rare-
ta pelo mestre, salientando sua incom- fação.
pletude pela falta de explicações das
razões e do modo pelo qual do princípio Pitágoras de Samos (570-490 a.C.) e os
derivam todas as coisas. Se o princípio pitagóricos deslocam a problemá ca
deve poder tornar-se todas as coisas do princípio a um novo e mais elevado
que são diversas tanto por quan dade plano. O princípio da realidade é para
quanto por qualidade, deve em si ser os pitagóricos não um elemento �sico,
privado de indeterminações qualita - mas o “número”. Segundo eles, todos
vas e quan ta vas, deve ser infinito os fenômenos mais significa vos acon-
espacialmente e indefinido qualita va- tecem segundo regularidade mensu-
mente: conceitos esses que se expres- rável e exprimível com números. O
sam em grego com o único termo, número, portanto, é a causa de cada
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Mitologia e Pré-Socráticos
coisa e determina a sua essência e a mesmo rio, porque na segunda vez o
recíproca relação com as outras. Para os rio e o homem não serão os mesmos”.
pitagóricos, não são os números Para ele, o devir é uma caracterís ca
enquanto tais o fundamento úl mo da estrutural de toda a realidade. E isso é
realidade, mas os elementos do assim porque todas as coisas possuem
número, ou seja, o “limite” (princípio os opostos em constante guerra. O real
determinado e determinante) e o “ili- é a mudança e a permanência é ilusória.
mitado” (princípio indeterminado). Se Não se trata de um devir caó co, mas
tudo é número, tudo é “ordem” e o uni- de passagem dinâmica ordenada de um
verso inteiro aparece como um kósmos contrário ao outro, é uma guerra de
(termo que significa justamente opostos que no conjunto se compõe em
“ordem”) que deriva dos números, e harmonia de contrários. O mundo é,
enquanto tal é perfeitamente cog- portanto, guerra nos par culares, mas
noscível também nas suas partes. Os paz e harmonia no conjunto. Nesse con-
pitagóricos derivam do Orfismo o con- texto, o princípio para Heráclito é o
ceito de vida como expiação/purifi- fogo, que é perfeita expressão do movi-
cação para poder retornar junto aos mento perene, e justamente na dinâmi-
deuses, mas atribuem a virtude catár - ca da guerra dos contrários, que tem
ca não a ritos e prá cas, como queriam esse elemento como sua causa. O fogo
os órficos, mas ao conhecimento e à está estreitamente ligado ao conceito
ciência, isto é, à “vida contempla va” de racionalidade (logos), razão de ser
em grau supremo, chamada “vida da harmonia do cosmo. Portanto, não
pitagórica”, a qual eleva o homem e o há ser está co, e o dinamismo pode
leva à contemplação da verdade. Credi- bem ser representado pela metáfora do
tava aos números a origem de tudo, fogo, forma visível da instabilidade, sím-
mas desde que entendidos como har- bolo da eterna agitação do devir, “o
monia e proporção. Ou seja, tudo na fogo eterno e vivo, que ora se acende e
natureza é proporcional e harmônico. ora se apaga”. Para Heráclito, o ser é o
múl plo. Não no sen do apenas de que
Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), um existe a mul plicidade das coisas, mas
dos filósofos mais importantes desse de que o ser é múl plo por estar cons -
período, dizia que o universo está em tuído de contrários, pois “a guerra é pai
constante mudança, tudo flui, tudo está de todos, rei de todos”. E é da luta que
em transformação constante. Ele é o nasce a harmonia, como síntese dos
autor da famosa frase que caracteriza contrários. Pode-se dizer que Heráclito
bem o seu pensamento: “Um homem teve a intuição da lógica dialé ca.
não pode se banhar duas vezes no
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Mitologia e Pré-Socráticos
Em segundo lugar, vamos analisar A primeira via afirma que “o Ser existe e
agora o SURGIMENTO DA ONTOLOGIA. não pode não exis r”, e que “o não-ser
não existe”, e disso ra toda uma série
Parmênides (510-470 a.C.) de Eleia de consequências. Primeiramente, fora
rompe com os filósofos que o precede- do ser não existe nada e, portanto,
ram na maneira de pensar o mundo. E também o pensamento é ser (não é
por isso não se adequa a classificação possível para Parmênides pensar o
de monista ou pluralista. Ele se apre- nada). Em segundo lugar, o ser é não
senta como inovador radical e, em certo gerado (porque de outro modo deveria
sen do, como pensador revolucionário. derivar do não-ser, mas o não-ser não
Efe vamente com ele a cosmologia existe). Em terceiro lugar, é incor-
recebe um profundo e benéfico abalo rup vel (porque de outro modo deveria
do ponto de vista conceitual, transfor- terminar no não-ser). Além disso não
mando-se em uma ontologia (teoria do tem passado nem futuro (de outro
ser). Segundo esse filósofo, o elemento modo, uma vez passado, não exis ria
de permanência, de origem, de funda- mais, ou na espera de ser no futuro,
mento, das coisas/mundo (physis) não ainda não exis ria), e, portanto, existe
pode ser encontrado na sua mutabili- em um eterno presente, é imóvel, é ho-
dade constante. mogêneo (todo igual a si, porque não
pode exis r mais ou menos ser), é per-
Melhor dizendo, não se pode encontrar feito, é limitado e uno. Portanto, aquilo
o princípio (arché) imutável do universo que os sen dos atestam em como em
na sua própria mudança, ainda mais devir e múl plo, e consequentemente
quando a inves gação é conduzida tudo aquilo que eles testemunham, é
pelos sen dos. Para ele a mudança falso.
seria apenas uma ilusão dos sen dos, e
o que é essencial nas coisas só pode ser A segunda via é a do erro, a qual, confi-
captado pelo pensamento. Por esse ando nos sen dos, admite que exis a o
mo vo, é que haviam tantas opiniões devir, e cai, por conseguinte, no erro de
contrárias sobre o Ser das coisas, admi r a existência do não-ser.
porque os filósofos estavam trilhando
um caminho errado que só os levava à A terceira via procura certa medição
ilusão. Parmênides no seu poema Sobre entre as duas primeiras, reconhecendo
a natureza descreve três vias de pesqui- que também os opostos, como a “luz” e
sa: 1) da verdade absoluta; 2) das opi- a “escuridão”, devam iden ficar-se no
niões falazes; 3) da opinião plausível. ser (a luz “é”, a noite “é”, e, portanto,
ambas são, ou seja coincidem no ser).
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Mitologia e Pré-Socráticos
Os testemunhos dos sen dos devem justamente com o mundo que percebe-
ser repensados em nível de razão. mos e no qual vivemos com as demais
coisas naturais. Ocupava-se com a
Em essência, para Parmênides, a mu- natureza como um cosmo ou ordem
dança (devir) não existe, é uma ilusão regular e constante de surgimento,
dos sen dos e Heráclito estava errado. transformação e desaparecimento das
“O Ser é e o não ser não é”. O Ser é o coisas. A cosmologia buscava a expli-
Logos (razão), a permanência, é cação para o devir, isto é, para a pas-
imutável e sem contradições. Foi Par- sagem de uma coisa a um outro modo
mênides o primeiro filósofo a afirmar de exis r, contrário ao que possuía. Par-
que o mundo percebido por nossos sen- mênides tornou a cosmologia impos-
dos — o cosmo estudado pela cosmo- sível ao afirmar que o pensamento ver-
logia — é um mundo ilusório, feito de dadeiro exige a iden dade, a não trans-
aparências, sobre as quais formulamos formação e a não contradição do Ser.
nossas opiniões. Foi ele também o pri- Considerando a mudança de uma coisa
meiro a contrapor a esse mundo em outra contrária como o Não-Ser,
mutável a ideia de um pensamento e de Parmênides também afirmava que o Ser
um discurso verdadeiros referidos não muda porque não tem como nem
àquilo que é realmente, ao Ser — tò on, por que mudar e não tem no que
on. O Ser é, diz Parmênides. Com isso, mudar, pois, se mudasse, deixaria de
pretendeu dizer que o Ser é sempre ser o Ser, tornando-se contrário a si
idên co a si mesmo, imutável, eterno, mesmo, o Não-Ser. Como consequên-
imperecível, invisível aos nossos sen - cia, mostrou que o pensamento verda-
dos e visível apenas para o pensamen- deiro não admite a mul plicidade ou
to. Foi Parmênides o primeiro a dizer pluralidade de seres e que o Ser é uno e
que a aparência sensível das coisas da único.
natureza não possui realidade, não
existe real e verdadeiramente, não é. Os argumentos da Escola Eleata eram
Contrapôs, assim, o Ser (on) ao Não-Ser rigorosos:
(me on), declarando: “o Não-Ser não é”. . admitamos que o Ser não seja uno,
A filosofia é chamada por Parmênides mas múl plo. Nesse caso, cada ser é ele
de “a Via da Verdade” (alétheia), que mesmo e não é os outros seres; portan-
nega realidade e conhecimento à “Via to, cada ser é e não é ao mesmo tempo,
de Opinião” (dóxa), pois essa se ocupa o que é impensável ou absurdo. O Ser é
com as aparências, com o Não-Ser. uno e não pode ser múl plo;
. admitamos que o Ser não seja eterno,
Ora, a cosmologia ou �sica ocupava-se mas teve um começo e terá um fim.
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Mitologia e Pré-Socráticos
Antes dele, o que havia? Outro Ser? Empédocles (490-430 a.C.), o primeiro
Não, pois o Ser é uno. O Não-Ser? Não, dos pluralistas, herda de Parmênides o
pois o Não-Ser é o nada. Portanto, o Ser conceito da impossibilidade do nascer
não pode ter do um começo. Terá um como um derivar do ser a par r do
fim? Se ver, o que virá depois dele? não-ser e do perecer como passagem
Outro Ser? Não, pois o Ser é uno. O do ser ao não-ser. Todavia, procura
Não-Ser? Não, pois o Não-Ser é o nada. superar a paradoxalidade desta tese,
Portanto, o Ser não pode acabar. Sem que vai contra aquilo que a experiência
começo e sem fim, o Ser é eterno; atesta, recorrendo a uma pluralidade
. admitamos que o Ser não seja imutá- de princípios, cada um dos quais
vel, mas mutável. No que o Ser mu- mantém as caracterís cas do ser de
daria? Noutro Ser? Não, pois o Ser é Parmênides. “Nascer” e “perecer”,
uno. No Não-Ser? Não, pois o Não-Ser é como desejava Parmênides, não con-
o nada. Portanto, se o Ser mudasse, tor- sistem do “vir do” ou em “ir no”
nar-se-ia Não-Ser e desapareceria. O não-ser, e sim no “agregar-se” e “com-
Ser é imutável e o devir é uma ilusão de por-se” e no “desagregar-se” e “decom-
nossos sen dos. por-se” dos quatro elementos originári-
os (raízes de todas as coisas), que são ar,
O que Parmênides afirmava era a dife- água, terra e fogo. Cada um desses ele-
rença entre pensar e perceber. Percebe- mentos é incorrup vel, homogêneo,
mos a natureza na mul plicidade e na eterno, inalterável, ou seja, tem as ca-
mutabilidade das coisas que se trans- racterís cas fundamentais do ser de
formam umas nas outras. Mas pensa- Parmênides. Com a recíproca agregação
mos o Ser, isto é, a iden dade, a uni- e desagregação, esses elementos dão
dade, a imutabilidade e a eternidade lugar a um mundo múl plo e em devir.
daquilo que é em si mesmo. Perceber é Água, terra, ar e fogo são movidos e
ver aparências. Pensar é contemplar a governados por duas forças cósmicas, o
realidade como idên ca a si mesma. Amor e o Ódio: uma agrega, a outra
Pensar é contemplar o tò on, o Ser. Mul- desagrega. Quando prevalece o Amor
plicidade, mudança, nascimento e temos perfeita unidade (o Esfero);
perecimento são aparências, ilusões quando prevalece o ódio em sen do
dos sen dos. Ao abandoná-las, a filoso- extremo, temos ao invés o máximo de
fia passou da cosmologia à ontologia. desagregação (o Caos). Nas fases de re-
la vo predomínio do Ódio, gera-se o
Por fim, em terceiro lugar, vamos ana- cosmo. Empédocles procurou explicar
lisar o pensamento dos PLURALISTAS. também o conhecimento, sustentando
que das coisas se desprendem eflúvios
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Mitologia e Pré-Socráticos
que a ngem os sen dos. Como nossos o impasse de Parmênides sobre a reali-
sen dos são feitos dos mesmos ele- dade, o Ser. Segundo eles, o ser que não
mentos de que é composto o mundo, o nasce, não morre e não entra em devir,
fogo que está em nós reconhece o fogo não se adapta à realidade sensível, isto
que está nas coisas, a terra reconhece a é, aos átomos (partes indivisíveis da
terra, e assim por diante. Consequente- physis). O átomo é uma realidade
mente, é válido o princípio geral que o captável apenas com o intelecto, não
semelhante conhece o semelhante. tem qualidade, mas apenas forma
geométrica, e é naturalmente dotado
Anaxágoras (499-428 a.C.), que foi de movimento. As coisas sensíveis
mestre de Péricles, defendia que o nascem, morrem e sofrem mutação,
princípio gerador de todas as coisas não apenas em virtude da agregação e
é único, que a physis era formada de desagregação dos átomos e, portanto,
várias par culas (sementes – esperma- toda a realidade pode ser explicada em
tas) que se agregam e desagregam sen do mecanicista a par r dos átomos
sendo ordenadas por uma inteligência e do vazio. Os atomistas explicaram o
universal. Com o agregar-se das conhecimento recorrendo à teoria dos
sementes, nascem todas as coisas que eflúvios, isto é, admi ndo a existência
existem. E em cada uma das coisas que de fluxos de átomos que, destacan-
assim se produzem estão presentes, em do-se das coisas, se imprimem sobre os
diversas proporções, todas as sen dos. Nesse contato, os átomos
sementes, sendo que as que prevale- semelhantes que estão fora de nós
cem determinam as diferenças específi- impressionam os átomos semelhantes
cas. Isso acontece de tal forma que em que estão em nós, fundando – de modo
todas as coisas estão presentes todas as não diferente de Empédocles – o
qualidades (“tudo está em tudo”) e, conhecimento.
deste modo, se explica a razão pela qual
as coisas podem se transformar uma na
outra.

Demócrito (460-370 a. C.) e Leucipo


(séc. V a. C) eram contemporâneos de
Sócrates, mas como o objeto de suas
inves gações ainda era a physis, eles
são considerados pré-socrá cos. São os
fundadores da Escola Atomista e
procuram dar também uma saída para
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Mitologia e Pré-Socráticos

Indicações de Leituras

1. O livro da mitologia, de Thomas Bulfinch


2. Os mitos gregos, de Robert Graves
3. Pré-socrá cos (coleção Os pensadores)
4. Filósofos Pré-socrá cos, de Jonathan Barnes
5. Os pré-socrá cos, de Giovanni Casertano
6. Os Pré-Socrá cos, de Jean Brun
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Sofistas, Sócrates e Platão

1. Sofistas Desde que os sofistas foram reabilita-


dos por Hegel no século XIX, o período
Os sofistas eram homens que viviam por eles iniciado passou a ser denomi-
viajando entre as póleis vendendo seu nado au lärung grega (imitando a
conhecimento, pois não eram ricos para expressão alemã que designa o ilumi-
se manter no ócio intelectual. A so�s - nismo europeu do século XVIII).
ca cons tui em uma radical inovação da
problemá ca filosófica, deslocando o São muitos os mo vos que levaram à
eixo das pesquisas do cosmo para o visão deturpada dos sofistas que a tra-
homem. Inaugurando o período “hu- dição nos oferece. Em primeiro lugar, há
manista” da filosofia grega que tem sua enorme diversidade teórica entre os
razão de ser na crise da aristocracia e a pensadores reunidos sob a designação
ascensão da nova classe social dos de sofista. Talvez o que possa iden ficá-
comerciantes. O século de Péricles (V a. -los é o fato de serem considerados
C.) cons tui o período áureo da cultura sábios e pedagogos. Vindos de todas as
grega, quando a democrá ca Atenas partes do mundo grego, desenvolvem
desenvolve intensa vida cultural e ar s- um ensino i nerante pelos locais em
ca. Os pensadores do período clássico, que passam, mas não se fixam em lugar
embora ainda discutam questões refe- algum. Deve-se a isso o gosto pela crí -
rentes à natureza, desenvolvem o enfo- ca, o exercício do pensar resultante da
que antropológico, abrangendo a moral circulação de ideias diferentes.
e a polí ca.
Segundo Jaeger, historiador da filosofia,
A palavra sofista, e mologicamente, os sofistas exercem influência muito
vem de sophos, que significa “sábio”, ou forte, vinculando-se à tradição educa -
melhor, “professor de sabedoria”. Pos- va dos poetas Homero e Hesíodo. Eles
teriormente adquiriu o sen do pejora - deram importante contribuição para a
vo de “homem que emprega sofismas”, sistema zação do ensino. Formaram
ou seja, alguém que usa de raciocínio um currículo de estudos: gramá ca (da
capcioso, de má-fé, com intenção de qual foram os iniciadores), retórica e
enganar. Os sofistas sempre foram mal dialé ca; por influência dos pitagóricos,
interpretados devido às crí cas que desenvolveram a aritmé ca, a geome-
sobre eles fizeram Sócrates e Platão. A tria, a astronomia e a música. Essa divi-
imagem, de certa forma caricatural da são será retomada no ensino medieval,
so�s ca, tem sido reelaborada no sen - cons tuindo o triviam (referente aos
do de procurar resgatar a verdadeira três primeiros) e o quadrivium (referen-
importância do seu pensamento. te aos quatro úl mos).
2
Sofistas, Sócrates e Platão

Para escândalo de seus contemporâne- Mas a exigência que os sofistas vêm


os, costumavam cobrar pelas aulas e sa sfazer não é apenas de ordem teóri-
por esse mo vo Sócrates os acusava de ca, era também de ordem essencial-
pros tuição. Cabe aqui um reparo: na mente prá ca, voltada para a vida. Eles
Grécia An ga, apenas os nobres se ocu- são os mestres da nova areté polí ca, e
pavam com o trabalho intelectual, pois o instrumento desse processo será a
gozavam do ócio, ou seja, da disponibili- retórica, ou seja, a arte de bem falar, de
dade de tempo decorrente do fato de u lizar a linguagem em um discurso
que o trabalho manual, de subsistência, persuasivo, instrumento indispensável
era ocupação de escravos. Ora, os sofis- para o brilhan smo da par cipação no
tas, geralmente homens saídos da debate público na assembleia democrá-
classe média, faziam das aulas seu ca. Isso era tão importante para as
o�cio, já que não eram suficientemente novas classes emergentes porque a
ricos para filosofarem descompromissa- capacidade de discursar e convencer,
damente. Se alguns sofistas de menor era considerada o melhor meio de
valor podiam ser chamados de merce- ascender social e poli camente. A virtu-
nários do saber, isso não poderia ser de (areté) de uma aristocracia guerreira
estendido a todos. opõe-se à virtude do cidadão: a maior
das virtudes é a jus ça, e todos, desde
Vimos que os primeiros filósofos pré- que cidadãos da pólis, devem ter direito
-socrá cos se preocupam sobretudo ao exercício do poder. Enquanto na aris-
com a natureza, e as explicações cos- tocracia predomina a areté é ca, para o
mológicas se desenvolvem em torno da cidadão ela é polí ca e mais obje va
procura da arché (princípio) de todas as que a anterior, pois o critério do justo e
coisas. Entre os primeiros filósofos não do injusto se acha na lei escrita.
há textos referentes à polí ca. São os
sofistas que irão proceder a passagem Através da Paidéia (conceito complexo
para a reflexão propriamente antropo- que só de forma inadequada pode ser
lógica, centrando suas atenções na traduzido como formação da cultura,
questão moral e polí ca. Elaboram teo- tradição e educação gregas), os gregos
ricamente e legi mam o ideal democrá- elaboram a nova educação capaz de
co da nova classe em ascensão, a dos sa sfazer os ideais do homem da pólis,
comerciantes enriquecidos. Os sofistas e não mais do aristocrata, superando,
elaboram o ideal teórico da democra- assim, os privilégios da an ga educa-
cia, valorizada pelos comerciantes em ção, para a qual a areté só era acessível
ascensão, cujos interesses se contra- aos que pertenciam a uma linhagem de
põem aos da aristocracia rural. origem divina. É bem verdade que esse
3
Sofistas, Sócrates e Platão

movimento não se dirige ao povo em na Sicília (485-380 a.C.); Híppias, de


geral, mas a uma elite, àqueles bons Élis, e ainda Trasímaco, Pródico, Hipó-
oradores que poderiam, nas assem- damos e outros. Vejamos agora alguns
bleias públicas, fazer uso da palavra dos principais sofistas.
livre e pronunciar discursos convincen-
tes e oportunos. Com o brilhan smo da Protágoras (480-410 a.C.) foi o primei-
par cipação no debate público, des- ro e mais ilustre dos sofistas. Nascido
lumbram os jovens do seu tempo. De- em Abdera, mudou-se para Atenas
senvolvem o espírito crí co e a facilida- onde se tornou muito famoso e requisi-
de de expressão. tado pelas famílias ricas. Defendia que
não havia um conhecimento e uma ver-
Com frequência os sofistas são acusa- dade absoluta sobre as coisas, e que o
dos de superficialidade e de pronunciar mundo era rela vo ao que os homens
um discurso vazio, um palavreado oco. percebiam dele. Daí sua famosa frase:
Talvez essa fama se deva a excessiva “o homem é a medida de todas as
atenção dada por alguns deles ao coisas”. Para cada tese é possível
aspecto formal da exposição e defesa termos argumentos contra e a favor,
das ideias, já que se achavam tão preo- sendo possível com técnica apropriada,
cupados com a persuasão, instrumento da qual ele se dizia mestre, tornar mais
por excelência do cidadão na cidade forte o argumento mais fraco. Essa era a
democrá ca. Os melhores deles, no virtude do homem, ou seja, sua habili-
entanto, buscaram aperfeiçoar os ins- dade primordial. Para seus crí cos, sua
trumentos da razão, ou seja, a coerên- doutrina é rela vista e impossibilita a
cia e o rigor da argumentação, porque construção de um saber obje vo no
não basta dizer o que se considera ver- qual se pudesse chegar a critérios que
dadeiro, é preciso demonstrá-lo pelo estabelecessem e diferenciassem o ver-
raciocínio. Pode-se dizer que aí se dadeiro do falso, o certo do errado.
encontra o embrião da lógica, mais Tudo dependia de quem ou que grupo
tarde desenvolvida por Aristóteles. estava falando. As regras sociais, bem
como a própria pólis são convenções, e
Tal como ocorreu com os pré-socrá - como tal, mudam de acordo com quem
cos, dos sofistas só nos restam fragmen- as convencionou, sendo, portanto, rela-
tos de suas obras, além das referências vas. Para outros, quando Protágoras,
– como vimos, tendenciosas – feitas por diz que “o homem é a medida de todas
filósofos posteriores. Os mais famosos as coisas”, esse fragmento deve ser
sofistas foram: Protágoras, de Abdera entendido não como expressão do rela-
(485-411 a.C.); Górgias, de Leôncio, vismo do conhecimento, mas
4
Sofistas, Sócrates e Platão

enquanto exaltação da capacidade de temos a retórica (oratória); se, ao invés,


construir a verdade: o logos não mais é tem propósito puramente esté co,
divino, mas decorre do exercício técnico temos a arte. O maior crédito que se
da razão humana. deve atribuir aos sofistas foi o de ter
voltado o debate filosófico da cosmolo-
Górgias de Leon�ne (485 a.C. a 380 a. gia, para a área do humano, da pólis, da
C.) herda de Parmênides a temá ca on- é ca, da polí ca. Pois foi por se contra-
tológica (o ser existe, e o não-ser não por a eles que Sócrates deu início ao
existe), mas inverte os termos (o ser conhecimento filosófico herdado pelo
não existe, e o não-ser existe). Os ocidente.
pontos chaves de seu pensamento se
exprimem nas três proposições seguin- 2. Sócrates
tes: 1) “O nada existe” – isto se deduz
do fato de que do ser (do princípio) os Sócrates (470-399 a.C.) foi um marco
filósofos precedentes deram definições na filosofia grega. Não deixou nada
diversas e opostas, demonstrando com escrito e o que sabemos de seu pensa-
isso, que ele não existe; 2) “Mesmo que mento é o relatado por seu discípulo
exis sse, não seria cognoscível” – o Platão. Ele nasceu em Atenas, foi con-
pensamento, com efeito não se refere temporâneo de Péricles, e crí co do
necessariamente ao ser – como queria regime democrá co. Viveu na época da
Parmênides –, mas existem coisas pen- Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.),
sadas que são não existentes (como, que foi mo vada pela forma autoritária
por exemplo, a quimera); 3) “Mesmo e abusiva com que Atenas tratava os
que fosse pensável, o ser não seria seus aliados. Um grupo de póleis cansa-
exprimível” – a palavra, sendo um som, da da rania ateniense, sob a liderança
significa quando muito um som, mas de Esparta, formaram a Liga do Pelopo-
não deriva dos outros sen dos, como neso, para enfrentá-la. Essa guerra foi o
por exemplo uma cor ou um odor. Esta grande mo vo da decadência das póleis
doutrina toma o nome de “niilismo”, gregas, pois elas foram se destruindo e
enquanto põe o nada como fundamen- abrindo espaço para que inimigos
to de tudo. A palavra, perdendo qual- externos pudessem conquistá-las.
quer relação com o ser, não é mais veí- Sócrates par cipou de algumas bata-
culo de verdade, mas torna-se portado- lhas, sendo condecorado por bravura.
ra de persuasão e sugestão: se esta
ação tem propósito prá co (por exem- Ele travou um grande embate com os
plo, convencer o público em uma sofistas ao dizer que eles não eram filó-
assembleia, os juízes em um processo), sofos, pois não nham amor pela sabe-
5
Sofistas, Sócrates e Platão

doria nem respeito pela verdade, oráculo que afirmou ser ele o mais
defendendo qualquer ideia, se isso sábio dos homens.
fosse vantajoso. Corrompiam o espírito
dos jovens, pois faziam o erro e a men - Como a essência não é dada pela per-
ra valerem tanto quanto a verdade. cepção sensorial, pelo que os sen dos
Dizia também que os sofistas estavam nos trazem, e sim pelo trabalho do pen-
errados, que poderíamos sim obter um samento, procurá-la é procurar o que o
conhecimento obje vo, um saber ver- pensamento conhece da realidade e da
dadeiro. Apesar disso, Sócrates concor- verdade de uma coisa, de uma ideia, de
dava com os sofistas em dois pontos: um valor. Isso que o pensamento
por um lado, a educação an ga do guer- conhece da essência chama-se concei-
reiro belo e bom já não atendia às exi- to. Assim, Sócrates parte em busca da
gências da sociedade grega e, por verdade das coisas através do conceito,
outro, os filósofos cosmologistas defen- ou seja, a definição verdadeira (univer-
diam ideias tão contrárias entre si que sal) do que sejam as coisas. Sócrates
também não eram fonte segura para o procurava o conceito, e não a mera opi-
conhecimento verdadeiro. nião (doxa em grego) que temos de nós
mesmos, das coisas, das ideias e dos
Discordando dos an gos poetas, dos valores. Qual a diferença entre uma opi-
an gos filósofos e dos sofistas, o que nião e um conceito?
propunha Sócrates? Propunha que,
antes de querer conhecer a natureza ou A opinião varia de pessoa para pessoa,
persuadir os outros, cada um deveria de lugar para lugar, de época para
conhecer-se a si mesmo. A sabedoria época. É instável, mutável, depende de
humana de que Sócrates se diz mestre cada um. O conceito, ao contrário, é
consiste na busca de jus ficação filosó- uma verdade intemporal, universal e
fica (isto é, de um fundamento) da vida necessária que o pensamento desco-
moral. Esse fundamento consiste na bre, pois mostra que é a essência uni-
própria natureza ou essência do versal, intemporal e necessária de
homem, entendida como consciência alguma coisa. Por isso, Sócrates não
de si, a personalidade intelectual e perguntava se uma coisa era bela – pois
moral. É isso que dis ngue o homem nossa opinião sobre ela pode variar –, e
dos outros animais. Não é à toa que ele sim “O que é a beleza?”, “Qual é a
ins gava seus discípulos a terem esse essência ou o conceito do belo, do
conhecimento, pois era isso que os tor- justo, do amor, da amizade?” Sócrates
navam humanos. “Conhece-te a perguntava: “Que razões rigorosas você
mesmo” estava escrito no pór co do possui para dizer o que diz e para
6
Sofistas, Sócrates e Platão

pensar o que pensa?”, “Qual é o funda- moral, Sócrates indaga não apenas qual
mento racional daquilo que você fala e o sen do dos costumes estabelecidos
pensa?” As questões que Sócrates privi- (os valores é cos ou morais da cole vi-
legia, portanto, são as referentes à dade, transmi dos de geração em gera-
moral, daí perguntar em que consiste a ção), mas também o que é a virtude, e
coragem, a covardia, a piedade, a jus - quais são as virtudes (disposições de
ça e assim por diante. caráter, caracterís cas pessoais, sen -
mentos, a tudes, condutas individuais)
Diante de diversas manifestações de que levam alguém a respeitar ou não os
coragem, quer saber o que é a “cora- valores da cidade, e por quê. Ao indagar
gem em si”, o universal que a represen- o que são a virtude e o bem, Sócrates
ta. Ora, enquanto a filosofia ainda é realiza, na verdade, duas interrogações.
nascente, precisa inventar palavras Por um lado, interroga a sociedade para
novas, ou usar as an gas dando-lhes saber se o que ela costuma considerar
sen do diferente. Por isso Sócrates u - virtuoso e bom corresponde efe va-
liza o termo logos, que na linguagem mente à virtude e ao bem; por outro,
comum significava “palavra”, “conver- interroga os indivíduos para saber se
sa”, e que no sen do filosófico passa a têm efe vamente consciência do signi-
significar “a razão que se dá de algo”, ou ficado e da finalidade de suas ações, se
mais propriamente, conceito. Para ele, seu caráter ou sua índole são virtuosos
se a essência do homem é a busca pela e bons realmente. A indagação é ca
consciência de si, esse olhar para socrá ca dirige-se, portanto, à socieda-
dentro de si através da a vidade reflexi- de e ao indivíduo.
va, descobrindo que na realidade ele é a
sua alma, a virtude primordial do As questões socrá cas inauguram a
homem atua como a “cura da alma”, é ca como parte da filosofia porque
fazendo com que ela se realize da definem o campo no qual valores e
melhor forma possível. E como a alma é obrigações morais podem ser estabele-
a vidade cognosci va, a virtude será cidos: a consciência do agente moral. É
essencialmente a potencialização dessa sujeito moral ou é co somente aquele
a vidade, ou seja, será a busca pelo que sabe o que faz, conhece as causas e
conhecimento. E dado que o corpo é os fins de sua ação, o significado de suas
instrumento da alma, também os valo- intenções e de suas a tudes e a essên-
res ligados ao corpo estão subordinados cia dos valores é cos. Sócrates afirma
a ela, estando a seu serviço. que apenas o ignorante é vicioso ou
incapaz de virtude, pois quem sabe o
Na sua busca pelos fundamentos da que é o bem não poderá deixar de agir
7
Sofistas, Sócrates e Platão

virtuosamente. Ninguém pode errar considerada “destru va”, chamada


voluntariamente, porque quem erra se ironia (em grego, “perguntar”). Nas dis-
engana sobre o valor daquilo que a pró- cussões afirma inicialmente nada saber,
pria ação tende; considera um bem diante do oponente que se diz conhece-
aquilo que é mal, aquilo que é bem dor de determinado assunto. Com
apenas na aparência. Bastaria mostrar a hábeis perguntas, desmonta as certezas
quem erra a verdade, e este corrigiria o até o outro reconhecer a ignorância.
próprio erro. Parte então para a segunda etapa do
método, a Maiêu ca (em grego,
Desse conceito de consciência deriva “parto”). Dá esse nome em homena-
também a descoberta socrá ca da gem a sua mãe, que era parteira, acres-
liberdade, entendida como liberdade centando que, se ela fazia parto de
interior e, em úl ma análise, como “au- corpos, ele “dava à luz” ideias novas.
todomínio”. Uma vez que a alma é
racional, ela alcança sua liberdade O que é a ironia socrá ca? O próprio
quando se livra de tudo que é irracional, Sócrates, nos diálogos platônicos, diz
ou seja, das paixões e dos ins ntos. que seu des no é inves gar, já que a
Dessa forma, o homem se liberta o única verdade que detém é a certeza de
máximo possível das coisas que perten- que nada sabe. Interrogava, portanto,
cem ao mundo externo e que alimen- para saber e, empenhado nessa tarefa,
tam suas paixões. Também a felicidade não raro surpreendia as pessoas em
assume valência espiritual e se realiza contradições, resultantes de crenças
quando na alma prevalece a ordem aceitas de modo dogmá co, de preten-
adquirida com a virtude. É por isso que sas verdades admi das sem crí ca.
Sócrates afirma que devemos buscar a Sócrates, por meio de perguntas, des-
virtude pelo valor que ela tem em si trói o saber cons tuído para reconstruí-
mesma. -lo na procura da definição do conceito.
Sócrates é aquele que chega de mansi-
Sócrates costumava conversar com nho e, sem que se espere, lança uma
todos, fossem velhos ou moços, nobres pergunta que faz o sujeito olhar para si
ou escravos, preocupado com o método e perguntar: afinal, o que faço aqui? É
do conhecimento. Sócrates parte do isso o que realmente procuro ou
pressuposto “só sei que nada sei”, que desejo?
consiste justamente na sabedoria de
reconhecer a própria ignorância, ponto Ele andava pelas ruas e praças de
de par da para a procura do saber. Por Atenas, pelo mercado e pela assembleia
isso, seu método começa pela parte indagando a cada um: “Você sabe o que
8
Sofistas, Sócrates e Platão

é isso que você está dizendo?”, “Você Numa situação de conflito e de incerte-
sabe o que é isso em que você acredi- zas, o ironista, depois de realizar o exer-
ta?”, “Você acha que conhece realmen- cício da desconstrução e da nega vida-
te aquilo em que acredita, aquilo em de, deve ajudar as pessoas a darem à
que está pensando, aquilo que está luz as verdades que, no entender de
dizendo?”. “Você diz”, falava Sócrates, Sócrates, traziam dentro de si. O exercí-
“que a coragem é importante, mas o cio do filosofar, a par r das verdades
que é a coragem?”, “Você acredita que encontradas, abria caminhos para múl-
a jus ça é importante, mas o que é a plas possibilidades de escolha e ação.
jus ça?”, “Você diz que ama as coisas e As perguntas de Sócrates não visavam
as pessoas belas, mas o que é a confundir as pessoas e ridicularizar seu
beleza?”, “Você crê que seus amigos conhecimento das coisas, mas, mo vá-
são a melhor coisa que você tem, mas o -las a alcançar um conhecimento mais
que é a amizade?”. profundo, não só de si próprias, mas
também dos outros, dos objetos e do
Sócrates fazia perguntas sobre as ideias, mundo que as rodeava, provocando
sobre os valores nos quais os gregos nelas novas ideias. Essa era a sua ma-
acreditavam e que julgavam conhecer. neira de filosofar, sua “arte de partejar”,
Ao suscitar dúvidas, Sócrates os fazia de ajudar as pessoas a parir, a dar à luz
pensar não só sobre si mesmos, mas as novas ideias, arte que dizia ter apren-
também sobre a pólis. Aquilo que pare- dido com sua mãe, que ajudava as mu-
cia evidente acabava sendo percebido lheres a dar à luz aos seus filhos. A inter-
como duvidoso e incerto. Suas pergun- rogação de Sócrates expunha os sabe-
tas deixavam os interlocutores embara- res dos sujeitos e, ao mesmo tempo,
çados, irritados, curiosos, pois, quando mostrava o quanto as pessoas não
tentavam responder ao célebre “o que nham consciência daquilo que real-
é?”, descobriam, surpresos, que não mente sabiam.
sabiam responder e que nunca nham
pensado em suas crenças, valores e Com a ironia, ao trazer à tona os limites
ideias. A ironia nha que ser acompa- dos argumentos comuns, ao mostrar as
nhada da maiêu ca, isto é, o método contradições ocultas na ordem comu-
socrá co cons tuía-se de duas partes: a mente aceita, ao revelar, ao abalar as
primeira mostrava os limites, as falhas, certezas que fundavam o co diano,
os preconceitos do pensamento Sócrates convida ao filosofar como um
comum e a segunda iniciava no proces- processo metódico de elaboração de
so de busca da verdadeira sabedoria. novos saberes. Ao afirmar que também
ele nada sabia, queria apenas dizer
9
Sofistas, Sócrates e Platão

que um novo caminho para chegar-se a mais bela e poderosa pólis que já exis -
uma nova verdade seria indispensável. ra; quando eles estavam maravilhados
Se ele soubesse esta nova verdade, ele com seu regime polí co, que eles pró-
não diria que nada sabia, pois apenas prios criaram; vem um sujeito (Sócra-
sabia o caminho, isto é, o começo do tes) e começa a botar na cabeça dos
conhecimento e ele queria saber mais. jovens perguntando: “Será mesmo que
Sócrates, por meio de sua a vidade, vivemos uma democracia, quando
mostra-nos que o exercício do filosofar temos um regime polí co que permite
é, essencialmente, o exercício do ques- a um bom orador ir à assembleia e fazer
onamento, da interrogação sobre o um discurso bonito e pomposo que leve
sen do do homem e do mundo. o povo a aprovar o que ele quer sem o
mínimo de reflexão?”, “será que é certo
Essa a tude, como dizem os historiado- tratarmos nossos aliados com toda essa
res, fez de Sócrates uma figura singular arrogância, e usando mais a força que a
e lhe angariou alguns amigos e muitos jus ça em nossas relações?”, “será
inimigos. Embora parecesse neutra e mesmo bom essa democracia onde
sem um obje vo preciso (Sócrates pare- qualquer um possa influir nos des nos
cia não ser par dário de nenhuma das da pólis, mesmo não tendo conheci-
tendências da época e não defendeu mento do que seja bom e justo?”.
explicitamente nenhum regime polí - Entendem agora porque Sócrates era
co), essa a tude ques onava poderes um perigo a ser exterminado o mais
ins tuídos, valores consolidados e, por rápido possível? Era um traidor, um cor-
isso, também pedia mudanças. A par r ruptor da juventude.
dessa a vidade, Sócrates enfrentou pro-
blemas, foi julgado e condenado à A Guerra do Peloponeso durou 27 anos
morte. Na história, a filosofia ques o- e terminou com a vitória de Esparta, no
nadora incomoda o poder ins tuído, entanto, acabou deixando as partes
porque põe em discussão relações e envolvidas enfraquecidas. Desde a der-
situações que são das como verdadei- rota de Atenas nessa guerra, o regime
ras. democrá co ficou desacreditado pelos
próprios atenienses, e muitos deles
No auge do imperialismo ateniense, começaram a cri cá-lo. Eles argumen-
quando eles eram tomados como mo- tavam que em momentos cruciais da
delos pelas outras pólis; quando eles guerra, foram tomadas muitas decisões
tratavam seus “aliados” da Liga de estúpidas por que foi colocado para a
Delos como bem entendiam, usando os maioria decidir, e isso levou à derrota
recursos da Liga para tornar Atenas a de Atenas. O regime democrá co
10
Sofistas, Sócrates e Platão

ateniense foi subs tuído por uma o que inves gamos;


oligarquia comandada por 30 ranos . Ao buscar a definição das virtudes
indicados por Esparta. Nesse tempo morais (do indivíduo) e das virtudes po-
ficou proibido o debate em público e o lí cas (do cidadão), a filosofia toma
ensino de retórica. Mas, alguns anos como objeto central de suas inves ga-
depois a democracia foi restaurada e ções a moral e a polí ca. Cabe a ela
Sócrates voltou a importunar. encontrar a definição, o conceito ou a
essência dessas virtudes, para além da
Ele foi acusado e, por mais forte que variedade das opiniões contrárias e
fossem seus argumentos de defesa, foi diferentes;
condenado, porque sua condenação já . É feita, pela primeira vez, uma separa-
era certa desde antes mesmo do julga- ção radical entre, de um lado, a opinião
mento começar. Demonstrando a liber- e as imagens das coisas, trazidas pelos
dade da alma que sempre ensinara a nossos órgãos dos sen dos, pelos hábi-
seus alunos, ele bebeu cicuta, mas não tos, pelas tradições, pelos interesses, e,
renunciou ao que disse. Podemos de outro lado, os conceitos ou as ideias.
encontrar algumas caracterís cas gerais As ideias se referem à essência invisível
do período socrá co: e verdadeira das coisas e só podem ser
alcançadas pelo pensamento puro, que
. A filosofia se volta para as questões afasta os dados sensoriais, os hábitos
humanas no plano da ação, dos com- recebidos, os preconceitos, as opiniões;
portamentos, das ideias, das crenças, . A reflexão e o trabalho do pensamento
dos valores e, portanto, se preocupa são tomados como uma purificação
com as questões morais e polí cas; intelectual que permite ao espírito
. A filosofia parte da confiança no pen- humano conhecer a verdade invisível,
samento ou no homem como um ser imutável, universal e necessária;
racional, capaz de conhecer-se a si . Sócrates e Platão se diferenciam dos
mesmo e, portanto, capaz de reflexão; sofistas porque não aceitam a validade
. Como se trata de conhecer a capacida- das opiniões e das percepções senso-
de de conhecimento do homem, os filó- riais, vistas como fonte de erro, men ra
sofos procuram estabelecer procedi- e falsidade, e repudiam que elas sejam
mentos que garantam que se encontre usadas para produzir argumentos de
a verdade. Isto é, considera-se que o persuasão. Só assim o pensamento
pensamento deve oferecer a si mesmo pode seguir seu caminho próprio rumo
caminhos próprios, critérios próprios e ao conhecimento verdadeiro.
meios próprios para saber o que é o
verdadeiro e como alcançá-lo em tudo São essas ideias que, de maneira alegó-
11
Sofistas, Sócrates e Platão

rica ou simbólica, encontramos na mos de suas capacidades, deve superar


exposição platônica do Mito da Caver- intui vamente tais limites, desfrutando
na. Nesse mito ou alegoria, Platão esta- as possibilidades que se lhe oferecem
belece uma dis nção decisiva para toda na dimensão da imagem e do mito. Na
a história da filosofia e das ciências: a busca de um conhecimento verdadeiro,
diferença entre o sensível e o inteligível. buscou um meio de contornar o beco
sem saída deixado por Heráclito e Par-
3. Platão mênides.

Platão (427-347 a.C.) foi o maior discí- Platão considerou que Parmênides
pulo de Sócrates, era um homem de nha razão no que se refere ao mundo
família aristocrá ca e influente na polí- material e sensível, mundo das imagens
ca. Como todo jovem ateniense, era e das opiniões. A matéria, diz Platão, é,
um entusiasta do regime democrá co por essência e por natureza, algo imper-
até conhecer seu mestre aos vinte anos feito, que não consegue manter a iden-
de idade. Sob influência de Sócrates dade das coisas, mudando sem cessar,
passou a ser também crí co do regime, passando de um estado a outro, contrá-
e depois de sua morte deixou de acredi- rio ou oposto. Assim, do mundo mate-
tar na possibilidade de uma vida justa e rial só nos chegam as aparências das
feliz. Deixou Atenas para fazer uma coisas e sobre ele só podemos ter opini-
longa viagem, quando voltou e fundou ões contrárias e contraditórias. Por esse
a Academia, onde pôde desenvolver mo vo, diz Platão, Parmênides está
suas teorias e repassá-las a seus vários certo ao exigir que a filosofia abandone
discípulos. Escrevendo, Platão reprodu- esse mundo sensível e ocupe-se com o
ziu o método dialógico socrá co, fun- mundo verdadeiro, invisível aos sen -
dando novo gênero literário: deste dos e visível apenas ao puro pensamen-
modo seu filosofar assume uma dinâmi- to. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável,
ca socrá ca, na qual o próprio leitor é idên co a si mesmo, eterno, imperecí-
envolvido na tarefa de extrair maieu - vel, puramente inteligível. Eis por que a
camente a solução dos problemas susci- ontologia platônica introduz uma divi-
tados e não explicitamente resolvidos. são, afirmando a existência de dois
Platão recupera, além disso, o valor mundos inteiramente diferentes e
cognosci vo do mito como comple- separados: o mundo sensível da mu-
mento do logos: a filosofia platônica se dança, da aparência, do devir dos con-
torna, na forma do mito, uma espécie trários, e o mundo inteligível (da ideia,
de fé raciocinada, no sen do de que, das formas) da iden dade, da perma-
quando a razão chega aos limites extre- nência, da verdade, conhecido pelo
12
Sofistas, Sócrates e Platão

intelecto puro, sem nenhuma interfe- Segundo Platão, apesar de exis rem
rência dos sen dos e das opiniões. diferentes pos de cavalo, a ideia de
cavalo é uma só. Quando pensamos em
Na tradição de Parmênides e Platão, a cavalo, pensamos a ideia e não determi-
filosofia grega estabelece a hierarquia nado cavalo. Um cavalo só é cavalo na
entre razão e sen dos, indicando que a medida em que par cipa da ideia de
razão a nge com dificuldade o verda- “cavalo em si”. As ideias platônicas não
deiro conhecimento por causa da defor- são simples conceitos mentais, mas são
mação que os sen dos inevitavelmente “en dades” ou “essências” que subsis-
provocam. Por isso, cabe à razão depu- tem em si e por si em um sistema hie-
rar os enganos que os sen dos nos rárquico bem organizado, e que cons -
levam a cometer, para que o espírito tuem o verdadeiro Ser. O mundo sensí-
possa a ngir a verdadeira contempla- vel é o mundo das coisas. O mundo das
ção das ideias. Para Platão, se o homem ideias é o mundo do Ser; o mundo sen-
permanecesse dominado pelos sen - sível das coisas é o mundo do Não-Ser.
dos, só poderia ter um conhecimento O mundo sensível é uma sombra, uma
imperfeito, restrito ao mundo dos fenô- cópia deformada ou imperfeita do
menos, das coisas que são meras apa- mundo das ideias. Mas como foi que
rências e que estão em constante fluxo. aconteceu essa cópia? Como explicar a
A esse conhecimento, Platão chama de gênese das coisas do mundo? Geral-
doxa (opinião). O verdadeiro conheci- mente os gregos consideram a matéria
mento, a episteme (ciência), é, ao con- eterna, não-criada. Também Platão atri-
trário, aquele pelo qual a razão ultra- bui a um Demiurgo, enquanto princípio
passa o mundo sensível e a nge o que organiza a matéria pré-existente, a
mundo das ideias, lugar das essências função de pôr ordem no Caos inicial.
imutáveis de todas as coisas, dos verda-
deiros modelos (arqué pos). Esse é o A teoria cosmológica de Platão se
único mundo verdadeiro, e o mundo encontra sobretudo no diálogo Timeu.
sensível só existe enquanto par cipa do Em algumas passagens, pode-se inter-
mundo das ideias, do qual é apenas pretar que esse princípio divino é
sombra ou cópia. também iden ficado à ideia do Bem e,
como tal, é o fim úl mo para onde
Tudo que existe nesse mundo material tendem todas as coisas, na busca da
tem sua ideia no mundo superior. perfeição. Mas existe uma diferença
Apesar da mul plicidade com que ela entre a ontologia de Parmênides e a de
possa aparecer no mundo sensível, a Platão. Para o primeiro, o mundo sensí-
ideia é uma só, indestru vel e eterna. vel das aparências é o Não-Ser em
13
Sofistas, Sócrates e Platão

sen do forte, isto é, não existe, não tem forte, em que é significa ‘existe’ e ser
realidade nenhuma, é o nada. Para quer dizer ‘existência’ (“O homem é”,
Platão, porém, o Não-Ser não é o puro isto é, “existe”); e 3 - o sen do verbal
nada. Ele é alguma coisa. O que ele é? mais fraco, predica vo, em que o verbo
Ele é o outro do Ser, o que é diferente ser é o verbo de ligação, isto é, o verbo
do Ser, o que é inferior ao Ser, o que nos que permite ligar um sujeito e seu pre-
engana e nos ilude, a causa dos erros. dicado (“O homem é mortal”). Em
Em lugar de ser um puro nada, o Não- segundo lugar, afirmou que, no sen do
-Ser é um falso ser, uma sombra do Ser forte de ser (isto é, como substan vo e
verdadeiro. Há ainda outra diferença como verbo existencial), existem múl -
importante entre a ontologia de Parmê- plos seres e não um só, mas cada um
nides e a de Platão. O primeiro afirmava deles possui os atributos do Ser de Par-
que o Ser, além de imutável, eterno e mênides (iden dade, unidade, eterni-
idên co a si mesmo, era único ou uno. dade, imutabilidade). Esses seres são as
Havia o Ser. Qual o problema dessa afir- ideias ou formas inteligíveis, totalmente
mação parmenideana? Se Parmênides imateriais, que cons tuem o mundo
não admi a a mul plicidade infinita de verdadeiro, o mundo inteligível. Em ter-
seres contrários uns aos outros e a si ceiro lugar, afirmou que, no sen do
mesmos do devir heracli ano, visto que mais fraco do verbo ser, isto é, como
o pensamento exige a iden dade do verbo de ligação, cada ideia é um ser
pensado, o que restava à filosofia ao se real, que possui um conjunto de predi-
admi r uma iden dade una-única? Só cados reais ou de propriedades essen-
lhe restava pensar e dizer três frases: “o ciais e que a fazem ser o que ela é em si
Ser é”, “o Não-Ser não é” e “o Ser é uno, mesma. Uma ideia é (existe) e uma
idên co, eterno e imutável”. Assim, Par- ideia é uma essência ou conjunto de
mênides paralisava a filosofia. qualidades essenciais que a fazem ser o
que ela é necessariamente. Por exem-
Se a filosofia quisesse prosseguir como plo, a jus ça é (há a ideia de jus ça) e
inves gação da verdade e se vesse há seres humanos que são justos (pos-
mais objetos a conhecer, era preciso suem o predicado da jus ça como parte
quebrar essa unidade-unicidade do Ser. de sua essência).
Foi o que fez Platão. O que disse ele?
Em primeiro lugar, seguindo Sócrates e Dessa maneira, cada ideia, em si
os sofistas, Platão dis nguiu três sen - mesma, é como o Ser de Parmênides:
dos para a palavra ser: 1 - o sen do de una, idên ca a si mesma, eterna e imu-
substan vo, isto é, de realidade existen- tável – uma ideia é. Ao mesmo tempo,
te (‘o ser’, ‘um ser’); 2 - o sen do verbal cada ideia difere de todas as outras pelo
14
Sofistas, Sócrates e Platão

conjunto de qualidades ou proprieda- Platão, com a alegoria da caverna, u li-


des internas e necessárias pelas quais zou a linguagem mí ca para mostrar o
ela é uma essência determinada, dife- quanto os cidadãos estavam presos a
rente das demais (a ideia de homem é certas crendices e supers ções. A histó-
diferente da ideia de planeta, que é ria narra a vida de alguns homens que
diferente da ideia de beleza, etc.). A nasceram e cresceram dentro de uma
tarefa da filosofia é dupla: 1. deve caverna e ficavam voltados para o
conhecer quais ideias existem, isto é, fundo dela. Ali contemplavam uma
quais ideias são; 2. deve conhecer quais rés a de luz que refle a sombras no
são as qualidades ou propriedades fundo da parede. Esse era o seu mundo.
essenciais de uma ideia, isto é, o que Certo dia, um dos habitantes resolveu
uma ideia é, sua essência. As ideias ou voltar-se para o lado de fora da caverna
formas inteligíveis (ou essências inteli- e logo ficou cego devido à claridade da
gíveis), diz Platão, são seres perfeitos e, luz. E, aos poucos, vislumbrou outro
por isso, tornam-se modelos inteligíveis mundo com natureza, cores, “imagens”
ou paradigmas inteligíveis perfeitos que diferentes do que estava acostumado a
as coisas sensíveis materiais tentam “ver”. Voltou para a caverna para narrar
imitar imperfeitamente. O sensível é, o fato aos seus amigos, mas eles não
pois, uma imitação imperfeita do inteli- acreditaram nele e revoltados com a
gível: as coisas sensíveis são imagens “men ra” o mataram. O mito da caver-
das ideias, são Não-Seres tentando inu- na é uma metáfora da condição
lmente imitar a perfeição dos seres humana perante o mundo, no que diz
inteligíveis. Cabe à filosofia passar das respeito à importância do conhecimen-
cópias imperfeitas aos modelos perfei- to e da educação como forma de supe-
tos, abandonando as imagens pelas ração da ignorância, isto é, a passagem
essências, as opiniões pelas ideias, as grada va do senso comum enquanto
aparências pelas essências. Mas como visão de mundo e explicação da realida-
fazer isso? Como conhecer esse mundo de para o conhecimento filosófico-cien-
ideal e verdadeiro para viver de acordo fico, que é racional, sistemá co e
com o que é bom e justo nesse mundo organizado, que busca as respostas não
de erros, se eu estou nesse segundo e no acaso, mas na causalidade. Segundo
tudo que percebo vem dele? O pensa- a metáfora de Platão, o processo para a
mento, empregando a dialé ca, deve obtenção da consciência, isto é, do
passar da instabilidade contraditória conhecimento abrange dois domínios:
das coisas sensíveis à iden dade racio- o domínio das coisas sensíveis (eikasia e
nal das coisas inteligíveis. ) e o domínio das ideias (diánoia e
nóesis). Para o filósofo, a realidade está
15
Sofistas, Sócrates e Platão

no mundo das ideias – um mundo real e garan ndo o conhecimento dos seres
verdadeiro – e a maioria da humanida- sensíveis. O inteligível é o reino da ma-
de vive na condição da ignorância, no temá ca e é o modo como apreende-
mundo das coisas sensíveis – este mos o mundo e construímos o saber
mundo, no grau da apreensão de ima- humano. A saída da caverna é a vonta-
gens (eikasia), as quais são mutáveis, de ou a obrigação moral que o homem
não são perfeitas como as coisas no esclarecido tem de ajudar os seus
mundo das ideias e, por isso, não são semelhantes a saírem do mundo da
objetos suficientemente bons para ignorância e do mal para construírem
gerar conhecimento perfeito. Assim, o um mundo (Estado) mais justo, com
ser humano deveria procurar o mundo sabedoria. O Sol representa a Ideia
da verdade. suprema de Bem – ente supremo que
governa o inteligível – que permite ao
Em nossos dias, muitas são as cavernas homem conhecer de onde deriva toda a
em que nos envolvemos e pensamos realidade (o cris anismo o confundiu
ser a realidade absoluta. Os prisioneiros com Deus).
somos nós que, segundo as nossas tra-
dições e hábitos, estamos acostumados Sócrates ensinava que sábio é aquele
com as noções sem que delas reflita- que sabe que não sabe. Mas, então,
mos para fazer juízos corretos, mas como é possível o conhecimento? Se as
apenas acreditamos e usamos como ideias não nascem das experiências
nos foi transmi do. A caverna é o sensíveis, de onde se originam? Platão
mundo ao nosso redor, �sico, sensível exclui a hipótese de que as ideias deri-
em que as imagens prevalecem sobre vam dos sen dos: elas são pura visão
os conceitos, formando em nós opini- intelectual, uma representação da tela
ões por vezes errôneas e equivocadas, da mente. Para resolver o problema da
(pré-conceitos, pré-juízos). Quando origem das ideias, o filósofo recorre à
começamos a descobrir a verdade, doutrina da reminiscência, segundo a
temos dificuldade para entender e apa- qual conhecer é, para a alma, lembrar o
nhar o real (ofuscamento da visão ao que já sabia antes de encarnar em um
sair da caverna) e, para isso, precisamos corpo. O que torna possível o conheci-
nos esforçar, estudar, aprender, querer mento? Como conseguimos empregar
saber. O mundo fora da caverna repre- os conceitos gerais, ou seja, classificar
senta o mundo real que, para Platão, é os objetos segundo a classe a que per-
o mundo inteligível por possuir Formas tencem? O processo que leva à forma-
ou Ideias que guardam consigo uma ção dos conceitos não nasce da experi-
iden dade indestru vel e imóvel, ência: de fato, não formamos a ideia de
16
Sofistas, Sócrates e Platão

cavalo observando muitos cavalos. ideia, das oposições do devir à unidade


Platão resolve o dilema propondo a da essência. A dialé ca platônica é um
teoria do ina smo: a alma conhece as procedimento intelectual e linguís co
coisas recuperando a lembrança ador- que parte de alguma coisa que deve ser
mecida daquilo que viu no mundo separada ou dividida em duas partes
extraterreno antes de reencarnar. O contrárias ou opostas, de modo que se
pensamento se estrutura a par r de conheça sua contradição e se possa
esquemas conceituais inatos, poten- determinar qual dos contrários é verda-
ciais quando do nascimento e desenvol- deiro e qual é falso. A cada divisão surge
vimento depois por meio da aprendiza- um par de contrários, que devem ser
gem sensorial. separados e novamente divididos, até
que se chegue a um termo indivisível,
Platão afirma que somente pela dialé - isto é, não formado por nenhuma opo-
ca é possível alcançar grada vamente o sição ou contradição: este será a ideia
que é verdadeiro, e passar das ilusões verdadeira ou a essência da coisa inves-
ao real, ou seja, da simples opinião (em gada. Par ndo de sensações, imagens,
grego doxa) para a ciência (em grego opiniões contraditórias sobre alguma
episteme). Importante deixar claro que coisa, a dialé ca vai separando os opos-
a dialé ca platônica é o que a e molo- tos em pares, mostrando que um dos
gia da palavra sugere, um diálogo crí o termos é ilusório e o outro, verdadeiro,
em busca da verdade que se passa do até chegar à essência da coisa.
senso comum ao conhecimento verda-
deiro. Como a própria palavra indica, Superar os contraditórios e chegar ao
dialé ca é um diálogo, um discurso que é sempre idên co a si mesmo é a
compar hado por dois interlocutores, tarefa da discussão dialé ca, que revela
ou uma conversa em que cada um o mundo sensível como heracli ano (a
possui opiniões opostas sobre alguma luta dos contrários, a mudança inces-
coisa e deve discu r ou argumentar sante) e o mundo inteligível como par-
com o outro de modo a superar essa menidiano (a perene iden dade de
oposição e chegar à unidade de uma cada ideia ou de cada essência). Caberá
ideia que é a mesma para ambos e para ao sábio, ao filósofo, empreender a
todos os que buscam a verdade. Deve- caminhada desde o mundo obscuro das
se passar de imagens contraditórias a sombras da realidade sensível até a pro-
conceitos idên cos para todos os pen- ximidade da luz representada pela ideia
santes. Em outras palavras, a dialé ca é do Bem. Ou seja, elevar o conhecimen-
um procedimento com o qual passamos to de simples opinião (que é o conheci-
das opiniões contrárias à iden dade da mento do vir-a-ser) a ciência (que é o
17
Sofistas, Sócrates e Platão

conhecimento do ser verdadeiro). Para filósofo poderá chegar ao conhecimen-


que esse processo do conhecimento to das essências. Ele ilustra essa passa-
seja possível, é necessário o estudo da gem do falso (opinião/doxa) ao real
matemá ca. Aliás, no pór co da Acade- (ciência/episteme) pela alegoria do
mia de Platão exis a um dís co com os mito da caverna. Aqueles sujeitos deita-
seguintes dizeres: “Não entre aqui dos no chão nasceram e cresceram ali, e
quem não souber geometria”. Isso a única coisa que eles viam eram aque-
porque a matemá ca descreve as reali- las sombras. Por nunca terem visto
dades não sensíveis e é capaz de se dis- outra coisa, eles julgavam que aquelas
sociar dos sen dos e da prá ca; na geo- sombras eram os objetos verdadeiros.
metria, a figura sobre a qual raciocina- Só que um dia, um deles consegue se
mos independe da figura sensível que soltar e sair da caverna. Lá fora, ele não
representa. consegue enxergar nada porque é
quase cegado pela luz do sol. Aos
Além disso, os gregos têm uma tradição poucos ele vai conseguindo ver as
de aplicação desinteressada da mate- coisas e se dá conta que aquilo que
má ca na astronomia e na música. viam na caverna eram apenas as som-
Desde Pitágoras eram estudadas as bras, que eles tomavam por verdadeiro
relações proporcionais entre os diferen- aquilo que era falso. Depois, ele volta
tes comprimentos da corda, bem como para alertar os outros de sua condição,
as alterações de tensão ou espessura mesmo sabendo que eles podem não
que mudam os sons emi dos pela lira. acreditar no que ele estava dizendo.
Portanto, a matemá ca e a geometria Alguns dizem que ele está louco e
são consideradas como prelúdio da outros decidem acompanhá-lo.
ciência que é a dialé ca, graças à qual o

Indicações de Leituras

1. A Obra Dos Sofistas - Uma Interpretação Filosófica, de Mário Untersteiner


2. 10 lições sobre Sócrates, de Paulo Ghiraldelli
3. Sócrates, de Donald R. Morrison (Org.)
4. Compreender Sócrates, de Louis-André Dorion
5. Diálogos de Platão que eu sugiro: Eu fron, Apologia, Críton, Fédon, Crá -
lo, Teeteto, Sofista, Polí co, Parmênides, Filebo, O Banquete, Fedro, Alcibía-
des I, Alcibíades II, Protágoras, Górgias, Mênon, Hípias menor, Hípias maior,
Íon, A República, Timeu, Crí as e Leis.
1
Aristóteles

Juntamente com Platão, Aristóteles vez do dialé co-dialógico. Aristóteles


(384 – 322 a. C.) é a grande referência foi um grande pensador sistemá co. Ele
da filosofia grega an ga que vai influen- dividiu os saberes da seguinte forma: a
ciar na construção do mundo ocidental. LÓGICA é a propedêu ca de todas as
Dante Alighieri dizia que ele foi o ciências. As CIÊNCIAS / SABERES se divi-
mestre dos mestres e São Tomás de dem em: 1) teoré ca; 2) prá ca; 3) poi-
Aquino se referia a ele como “o filóso- é ca. Ei-las:
fo”. Apesar de ter sido um dos maiores
pensadores que Atenas produziu, ele 1) CIÊNCIAS TEORÉTICAS OU CONTEM-
era um meteco (estrangeiro), e como PLATIVAS: são aquelas que estudam
tal, sem direitos polí cos. De Estagira, coisas que existem independentemente
na Macedônia, Aristóteles sai aos 18 dos seres humanos e de suas ações e
anos para estudar na Academia de que, não tendo sido feitas pelos seres
Platão em Atenas. Isso, provavelmente, humanos, podem apenas ser contem-
uns 10 anos antes do domínio macedô- pladas por eles;
nico sobre a Grécia. Com uma mente
notável, permanece por lá durante 20 2) CIÊNCIAS PRÁTICAS: são aquelas ci-
anos até a morte de Platão. Após a ências que estudam as prá cas huma-
morte do mestre, Aristóteles não vê nas que têm seu fim nelas mesmas. Em
mais mo vos de con nuar na academia outras palavras, aquelas em que a finali-
e sai de Atenas para viajar por um bom dade da ação é ela mesma, e não há dis-
tempo. Em 335 a. C., o rei Felipe II o nção entre o agente e o ato que ele
chama para morar em Pela, capital do realiza. São elas: É ca, em que a vonta-
Império Macedônico, e ser professor de de guiada pela razão leva à ação confor-
seu filho Alexandre, condição na qual me as virtudes morais (coragem, gene-
permaneceu até este assumir o poder. rosidade, fidelidade, lealdade, clemên-
Essa proximidade com a corte macedô- cia, prudência, amizade, ju ça, modés -
nica se dava pelo fato de Nicômaco, seu a, honradez, etc.), tendo como finali-
pai, ter sido o médico do rei Amintas, dade o bem do indivíduo; e Polí ca, em
pai de Felipe. que a ação racional voluntária tem
como fim o bem da comunidade ou o
Aristóteles se diferenciava de Platão em bem comum;
três aspectos gerais: 1) o abandono do
componente mí co; 2) o escasso inte- 3) CIÊNCIAS PRODUTIVAS OU POIÉTI-
resse pelas ciências matemá as e, ao CAS: ciências que estudam as prá cas
contrário, a viva atenção pelas ciências produ vas ou as técnicas, isto é, as
naturais; 3) o método sistemá co em ações humanas que visam à produção
2
Aristóteles

de um objeto, de uma obra. São elas: Aristóteles apresenta uma terceira via
arquitetura, economia, medicina, pintu- diferente da escolhida por Platão e radi-
ra, escultura, poesia, teatro, oratória, calmente nova. Aristóteles considera
arte da guerra, da caça, da navegação, que a dialé ca não é um procedimento
etc. seguro para o pensamento e a lingua-
gem da filosofia e da ciência, pois parte
1. Analí ca ou Lógica de opiniões contrárias dos debatedo-
res, e a escolha de uma opinião em vez
Aristóteles propôs a primeira classifica- de outra não garante que se possa
ção geral dos conhecimentos ou das chegar à essência da coisa inves gada.
ciências dividindo-as em três pos: teo- A dialé a, diz Aristóteles, é boa para as
ré cas (ou contempla vas), prá cas (ou disputas oratórias da polí ca e do
da ação humana) e produ vas (ou rela- teatro, para a retórica, para os assuntos
vas à fabricação e às técnicas). Todos sobre os quais só existem opiniões e
os saberes referentes a todos os seres, nos quais só cabe a persuasão. Não é o
todas as ações e produções humanas caso da filosofia e da ciência, porque a
encontravam-se distribuídos nessa clas- essas interessa a demonstração ou a
sificação que partia da ciência mais alta prova de uma verdade.
– a Filosofia Primeira, ou seja, a Meta�-
sica – até o conhecimento das técnicas Subs tuindo a dialé ca por um conjun-
criadas pelos homens para a fabricação to de procedimentos de demonstração
de objetos. e prova, Aristóteles criou a lógica pro-
priamente dita, que ele chamava de
Mas nessa classificação não encontra- analí ca. Qual a diferença entre a dialé-
mos a lógica. Isso por que a lógica não ca platônica e a lógica (ou analí ca)
era nem uma ciência teoré ca, nem aristotélica? Em primeiro lugar, a dialé-
prá ca, nem produ va, mas um instru- ca platônica é o exercício direto do
mento para as ciências. É a maneira pensamento e da linguagem, um modo
certa de raciocinarmos para podermos de pensar que opera com os conteúdos
produzir um conhecimento certo e do pensamento e do discurso. A lógica
seguro. Desse modo, depois de definir aristotélica é um instrumento para o
como pensar, ele se volta para as ques- exercício do pensamento e da lingua-
tões centrais da Filosofia de seu tempo. gem: ela oferece os meios para realizar
o conhecimento e o discurso. Para
Assim, à oposição entre contradição- Platão, a dialé ca é um modo de conhe-
-mudança (Heráclito) e iden dade-per- cer. Para Aristóteles, a lógica (ou analí -
manência (Parmênides) dos seres, ca) é um instrumento para o conhecer.
3
Aristóteles

Em segundo lugar, a dialé ca platônica coisas das quais possamos ter um


é uma a vidade intelectual des nada a conhecimento universal e necessário.
trabalhar contrários e contradições Seu ponto de par da não são opiniões
para superá-los, chegando à iden dade contrárias, mas princípios, regras e leis
da essência ou da ideia imutável. Depu- necessários e universais do pensamen-
rando e purificando as opiniões contrá- to.
rias, a dialé ca platônica chega ao que é
verdadeiro para todas as inteligências. Trataremos agora de alguns pontos fun-
Já a lógica aristotélica oferece procedi- damentais da lógica analí ca, como
mentos a serem empregados naqueles Verdade e Validade, Princípios Axiomá-
raciocínios que se referem a todas as cos e Quadrado Lógico.

1.1 VERDADE E VALIDADE

1. O que é Lógica? Sabemos que ela está ligada ao raciocínio, mas precisamos
de uma definição adequada. Para isso, consideremos o seguinte exemplo de
argumento:
Os insetos têm seis patas
As abelhas são insetos
Logo, as abelhas têm seis patas

2. O argumento é composto de duas partes principais: antecedente (composto


pelas premissas) e conclusão.
Os insetos têm seis patas (primeira premissa): antecedente
As abelhas são insetos (segunda premissa): antecedente
Logo, as abelhas têm seis patas: conclusão

3. Há também uma relação entre o antecedente e a conclusão, que se chama


inferência. A inferência é a relação que permite passar do antecedente para a
conclusão do argumento. Raciocinar, ou fazer inferências, significa manipular a
informação disponível e extrair consequências disso, obtendo novas informa-
ções.

4. Em lógica, dois conceitos são fundamentais: VALIDADE e VERDADE


- Os insetos têm seis patas: Premissa verdadeira
4
Aristóteles

- As abelhas são insetos: Premissa verdadeira


- Inferência válida
- Logo, as abelhas têm seis patas: Conclusão verdadeira

4.1 Validade diz respeito ao aspecto formal da inferência.


4.2 Verdade se refere ao conteúdo.

5. Comparemos agora os três silogismos (silogismo é um argumento formado


por duas premissas e uma conclusão) (obra: ):
Primeiro: Segundo: Terceiro:
Os insetos têm seis patas Todo inseto é humano Os vegetarianos não comem linguiça de porco
As abelhas são insetos Toda abelha é inseto Moby não come linguiça de porco
As abelhas têm seis patas Toda abelha é humana Portanto, Moby é vegetariano

Formalmente, a estrutura do primeiro e do segundo é: A estrutura do terceiro é:


Todo A é B Todo A é B
Todo C é A Todo C é B
Logo, todo C é B Logo, todo C é A

6. O terceiro argumento é inválido, pois Moby, mesmo não comendo linguiça


de porco, pode não ser vegetariano. Já sobre o primeiro e o segundo concluí-
mos que:
- A estrutura dos dois silogismos é a mesma;
- A inferência é válida nos dois casos, embora a conclusão seja verdadeira no 1º
silogismo e falsa, no 2º;
- Isto significa que, quando a estrutura é a mesma, a inferência expressa pelo
argumento pode ser válida ainda que o raciocínio chegue a uma conclusão
falsa;
- A validade não depende da verdade da conclusão do argumento;
- O argumento não é verdadeiro ou falso;
- A inferência que ele expressa é válida ou não-válida;
- A conclusão do argumento é verdadeira ou falsa.

7. Podemos agora elaborar uma definição de Lógica e de Ciência:


Lógica é a disciplina que estuda os princípios da inferência válida sem conside-
rar a verdade ou falsidade das sentenças (ou proposições) envolvidas nos argu-
mentos ou silogismos.
5
Aristóteles

Ciência é a disciplina que estuda o conteúdo das proposições verificando a sua


veracidade e falsidade.

8. Exercícios (o gabarito está no final do tópico sobre Lógica)

8.1 Considerando seus conhecimentos de lógica, analise os itens seguintes.


(I) Todos os médicos são mortais.
(II) Platão, autor da República, é mortal.
(III) Platão é um médico.
É correto afirmar que o item (II), no contexto acima, é
a) uma proposição verdadeira ou falsa.
b) um argumento silogís co.
c) um argumento válido.
d) uma proposição inválida.

8.2 Considerando seus conhecimentos de lógica, assinale a alterna va


correta:
a) Um argumento é válido quando o conteúdo que ele apresenta está de
acordo com a realidade, por exemplo, o argumento “todos os homens são
mortais” é válido porque os homens apresentam realmente o atributo da mor-
talidade.
b) A validade de uma proposição está diretamente relacionada com regras for-
mais de inferência.
c) Um argumento é verdadeiro quando a inferência é correta, segundo a lógica
formal.
d) Proposições são sempre verdadeiras ou falsas segundo a lógica binária.

8.3 Considerando conhecimentos de lógica, analise os itens seguintes.


(I) Todas as aves voam
(II) Os quero-queros são aves
(III) Os quero-queros voam
É correto afirmar que o argumento, no contexto acima, é
a) um argumento silogís co inválido.
b) um argumento válido.
c) uma proposição verdadeira ou falsa.
6
Aristóteles

d) uma proposição inválida.

9. Exemplos de proposições:
1. Existe vida em outras galáxias.
i. Proposição (embora não saibamos se é verdadeira ou falsa)
2. 2 + 2 = 5.
i. Proposição (com valor de verdade: falsa)
3. 2 + 2 = 4.
i. Proposição (com valor de verdade: verdadeira)
4. Silêncio!

valor de verdade)
5. Alguém pode me dizer as horas?

valor de verdade)
6. A China é um país distante.
i. Proposição (com valor de verdade contextual: é verdadeira ou
falsa dependendo do local de enunciação)
7. Lisboa não é a capital de Portugal.
i. Proposição (com valor de verdade: falsa)
8. Eu moro em Caxias do Sul.
i. Proposição (com valor de verdade contextual: é verdadeira ou
falsa dependendo do sujeito da enunciação)
9. Prometo que te devolvo o livro amanhã.
i. Sentença promissiva: não expressa nenhuma proposição (sem
valor de verdade)
10. Quem me dera passar em lógica!
i. Sentença exclama va: não expressa nenhuma proposição (sem
valor de verdade)

10. É possível que duas sentenças diferentes tenham o mesmo significado?


Sim, é possível, pois sentenças dis ntas podem expressar a mesma proposição
(possuindo o mesmo sen do). Ex: “A neve é branca”, “La neige est blanche”,
“É branca a neve”, etc.
7
Aristóteles

11. O que é uma sentença ambígua? Dê exemplos. Uma sentença ambígua é


aquela que expressa mais de uma proposição. Exemplo: “José está no banco”.

1.2 ARGUMENTAÇÃO DEDUTIVA (PRINCÍPIOS AXIOMÁTICOS ARISTOTÉLICOS)

A dedução é o raciocínio que consiste em inferir uma consequência a par r de


premissas, que se chamam antecedentes. Ao contrário da indução, a dedução
não fica na probabilidade, pois parte de princípios gerais evidentes por si. A
lógica visa às regras que possibilitam rar inferências válidas. O ponto de par -
da da lógica está baseado nos seguintes princípios:
IDENTIDADE: o que é, é. O princípio afirma a iden dade de uma coisa consigo
mesma, ou seja, afirma a propriedade pela qual uma coisa persiste, apesar das
alterações acidentais.
TRÍPLICE IDENTIDADE: duas coisas idên cas a uma terceira são idên cas entre
si, na medida e no aspecto, em que são idên cas a mesma terceira.
PRINCÍPIO DA NÃO-CONTRADIÇÃO: uma coisa não pode ser e não ser ao
mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
PRINCÍPIO DO 3° EXCLUÍDO: ou uma proposição é verdadeira ou é falsa, não
há terceira possibilidade.

1. De acordo com os princípios axiomá cos aristotélicos, assinale verdadeiro


ou falso (o gabarito está no final do tópico sobre Lógica):
1. (...) se “A = B” e “B = C”, então posso dizer que “A = C”, isso é possível graças
ao princípio do “terceiro excluído”;
2. (...) o princípio do “terceiro excluído” nos diz que todo o argumento é ou ver-
dadeiro ou falso, não há outra possibilidade, afinal uma “terceira” possibilida-
de está excluída;
3. (...) se duas coisas são iguais a uma quarta coisa e essa quarta coisa equivale
a outras semelhantes então uma terceira coisa equivalente é legí ma, desde
que a quinta coisa em questão não contradiga a segunda;
4. (...) se afirmo “esta porta está aberta e esta porta está fechada agora”, então
há uma contradição, pois algo não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e sob
o mesmo aspecto, é o que nos diz o princípio da “não-contradição”;
5. (...) se A = B e B = C, então posso dizer que A = C, isso é possível graças ao
princípio da tríplice iden dade que nos diz que duas coisas iguais a uma ter-
8
Aristóteles

ceira são iguais entre si;


6. (...) o princípio do “terceiro excluído” nos diz que toda a proposição é ou ver-
dadeira ou falsa, não há outra possibilidade, ao menos na lógica binária;
7. (...) o princípio da “não-contradição” faz parte dos princípios basilares de
todo o raciocínio e é por causa dele que sabemos que duas coisas iguais a uma
terceira são idên cas entre si;
8. (...) a proposição complexa “esta aula é agradável e esta aula não é agradá-
vel” quando referida ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, apresenta uma
contradição, conforme o princípio da tríplice iden dade;
9. (...) uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e sob o mesmo
aspecto, assim podemos concluir que uma pessoa não pode ter gostado de ler
um determinado livro e não gostado de ler esse livro no mesmo instante e sob
o mesmo enfoque. Alguém pode ter lido um livro e ter gostado e não gostado
dele ao mesmo tempo, mas sob aspectos diferentes, ou ainda, ter lido o livro e
gostado e não gostado sob o mesmo aspecto, mas em épocas da vida diferen-
tes, por exemplo;
10. (...) uma fruta qualquer é um po de alimento. Uma banana é uma fruta
qualquer, logo, uma banana é um po de alimento. Essa relação é possível de
ser estabelecida graças ao princípio da tríplice iden dade;
11. (...) a proposição “Todo mamífero é mortal” ou é verdadeira ou é falsa, no
caso, é verdadeira. Mas o que importa é que ela não pode ser verdadeira e
falsa ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, segundo o princípio da não-
-contradição, mas também ela tem que ter um valor definido: ou verdadeira ou
falsa, não há outra possibilidade, segundo o princípio do terceiro excluído.

1.3 QUADRADO LÓGICO

No sistema da lógica aristotélica, o quadrado das oposições, também conheci-


do como quadrado lógico ou tábua das oposições, é um diagrama represen-
tando as diferentes formas que cada uma das quatro proposições do sistema
está logicamente relacionado (isto é, do lado oposto) as outras três. Essa teoria
lógica surgiu com Aristóteles, mas foi Boécio que lhe deu a fórmula final.

A: Todo é; E: Todo não é (nenhum é); I: Algum é; O: Algum não é


9
Aristóteles

1. De acordo com a tábua de oposições do quadrado lógico, apresente (o


gabarito está no final do tópico sobre Lógica):
1) a contrária de “nenhum número é par”: ...
2) a contraditória de “alguns números são pares”: ...
3) a contraditória de “todo número é par”: ...
4) a subcontrária de “algum número não é par”: ...
5) a contraditória de “os matemá cos não são atrapalhados”: ...
6) a subcontrária de “alguns corpos graves não tendem para cima”: ...

2. Se “é verdade que alguns pássaros não cantam” então obtemos por infe-
rência imediata que:
a) “é verdade que tudo aquilo que canta é pássaro”
b) “é falso que todos os pássaros cantam”
c) “é verdade que nenhum pássaro canta”
d) “é verdade que alguns pássaros cantam”

3. Dizer que a afirmação “todos os economistas são médicos” é falsa, do


ponto de vista lógico equivale a dizer que a seguinte afirmação é verdadeira:
a) “pelo menos um economista não é médico”
b) “algum economista é médico”
c) “nenhum médico é economista”
d) “pelo menos um médico não é economista”
10
Aristóteles

4. De acordo com a tábua de oposições do quadrado lógico, marque V ou F:


1. (...) a contrária de “todo sistema é completo” é “algum sistema não é com-
pleto”.
2. (...) a contraditória de “alguns sistemas são consistentes” é “alguns sistemas
não são consistentes”.
3. (...) convencionando que “todo teorema é demonstrável” é uma proposição
falsa, a sua contraditória será necessariamente verdadeira.
4. (...) proposições contrárias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo,
mas podem ser falsas ao mesmo tempo, assim, se “todo hegeliano é sistemá -
co” for uma proposição verdadeira, sua contrária será necessariamente falsa.
5. (...) a contraditória de “toda geometria é inconsistente” é “nenhuma geome-
tria é inconsistente”.
6. (...) a contraditória de “alguns axiomas são demonstráveis” é “todos os axio-
mas não são demonstráveis”.
7. (...) convencionando que “todos os corpos graves tendem para cima” é uma
proposição falsa, então “nenhum corpo grave tende para cima” pode ser tanto
uma proposição verdadeira quanto falsa.

1.4 GABARITO

VERDADE E VALIDADE:
8.1) A; 8.2) D; 8.3) B

ARGUMENTAÇÃO DEDUTIVA (PRINCÍPIOS AXIOMÁTICOS ARISTOTÉLICOS)


1F, 2F, 3F, 4V, 5V, 6V, 7F, 8F, 9V, 10V, 11V

QUADRADO LÓGICO
1) 1 Todo número é par; 2 Nenhum número é par; 3 Algum número não é par;
4 Algum número é par; 5 Algum matemá co é atrapalhado; 6 Alguns corpos
graves tendem para cima.
2) B
3) A
4) 1 F; 2 F; 3 V; 4 V; 5 F; 6 V; 7 V
11
Aristóteles

2. Ciências Teoré cas ou Contem- isto é, aquilo que explica a forma que
pla vas um ser possui (por exemplo, o rio ou o
mar são formas da água; a mesa é a
A meta�sica é a principal ciência teoré- forma assumida pela matéria madeira
ca. Aristóteles dá quatro definições com a ação do carpinteiro). A forma é
dela: 1) e ologia: estudo das causas ou propriamente a essência de um ser,
princípios supremos; 2) ontologia: aquilo que ele é em si mesmo ou aquilo
estuda o ser enquanto ser; 3) ousiolo- que o define em sua iden dade e dife-
gia: estuda a substância; 4) teologia: rença com relação a todos os outros; 3.
estuda a substância supra-sensível causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo
(Deus). Após a apresentação das quatro que explica como uma matéria recebeu
definições, passaremos a análise da uma forma para cons tuir uma essên-
ciência teoré ca como um todo. cia (por exemplo, o ato sexual é a causa
eficiente que faz a matéria do óvulo, ao
2.1 Sobre a E ologia (Estudo das receber o esperma, adquirir a forma de
causas ou princípios supremos) um novo animal ou de uma criança; o
carpinteiro é a causa eficiente que faz a
. primeiros princípios: iden dade, não madeira receber a forma da mesa etc.);
contradição e terceiro excluído. Os prin- 4. a causa final, isto é, a causa que dá o
cípios lógicos são meta�sicos porque mo vo, a razão ou a finalidade para
definem as condições sem as quais um alguma coisa exis r e ser tal como ela é
ser não pode exis r nem ser pensado; (por exemplo, o bem comum é a causa
os primeiros princípios garantem, final da polí ca; a flor é a causa final da
simultaneamente, a realidade e a racio- transformação da semente em árvore;
nalidade das coisas; o Primeiro Motor Imóvel é a causa final
. causas primeiras: são aquelas que do movimento dos seres naturais, etc.).
explicam o que a essência é e também a
origem e o mo vo da sua existência. 2.2 Sobre a Ontologia (Estudo do ser
Causa (para os gregos) significa não só o enquanto ser)
porquê de alguma coisa, mas também o
quê e o como uma coisa é o que ela é. . o ser em si (segundo a substância e as
As causas primeiras nos dizem o que é, categorias): há 10 categorias. Ei-las:
como é, por que é e para que é uma substância, qualidade, quan dade,
coisa. São quatro as causas primeiras: 1. relação, ação, paixão, onde, quando ter,
causa material, isto é, aquilo de que um jazer. Elas cons tuem os gêneros supre-
ser é feito, sua matéria (por exemplo, mos do ser;
água, fogo, ar, terra); 2. causa formal, . o ser como ato e potência: ato é a
12
Aristóteles

atualização de uma matéria por uma essência primordial (animal, mortal,


forma e numa forma; o ato é a forma racional, voluntário), enquanto o aci-
que atualizou uma potência con da na dente é o que, exis ndo ou não, nunca
matéria. Por exemplo, a árvore é o ato afeta o ser da essência (magro, gordo,
da semente, o adulto é o ato da criança, alto, baixo, negro, branco). A essência é
a mesa é o ato da madeira, etc. Potência o universal; o acidente, o par cular.
é a virtualidade que está con da numa
matéria e pode vir a exis r, se for atuali- 2.3 Sobre a Ousiologia (Estudo da subs-
zada por alguma causa; por exemplo, a tância)
criança é um adulto em potência ou em
potencial; a semente é a árvore em po- . substância: é aquilo em que se encon-
tência ou em potencial. Potência e ma- tram a matéria-potência, a forma-ato,
téria são idên cas, assim como forma e onde estão os atributos essenciais e aci-
ato são idên cos. A matéria ou potência dentais, sobre o qual agem as quatro
é uma realidade passiva que precisa do causas; em suma, é o Ser propriamente
ato e da forma, isto é, da a vidade que dito;
cria os seres determinados. Graças aos . a substância considerada matéria: ma-
conceitos de potência e ato, a meta�si- téria é o elemento de que as coisas da
ca aristotélica pode explicar a causa e a natureza, os animais, os homens, os
racionalidade de todos os movimentos artefatos são feitos; sua principal carac-
naturais ou dos seres �sicos, isto é, de terís ca é possuir virtualidades ou
todos os seres dotados de matéria e conter em si mesma possibilidades de
forma. O devir não é aparência nem transformação, isto é, de mudança;
ilusão, ele é o movimento pelo qual a . a substância considerada forma: forma
potência se atualiza, a matéria recebe a é o que individualiza e determina uma
forma e muda de forma; matéria, fazendo exis r as coisas ou os
. o ser como acidente: o ser acidental é seres par culares; sua principal carac-
aquele que se apresenta de modo terís ca é ser aquilo que uma essência
casual e fortuito, e que, portanto, não é é;
nem sempre nem no mais das vezes, . essência: é a unidade interna e indis-
mas apenas às vezes. É uma proprieda- solúvel entre uma matéria e uma
de ou atributo que uma essência pode forma. Essa unidade lhe dá um conjunto
ter ou deixar de ter sem perder seu ser de propriedades ou atributos que a
próprio. Por exemplo, um ser humano fazem ser necessariamente aquilo que
mortal por essência, mas é baixo ou ela é. Assim, por exemplo, um ser
alto, gordo ou magro, negro ou branco, humano é por essência um animal
por acidente. A humanidade é a mortal racional dotado de vontade,
13
Aristóteles

gerado por outros semelhantes a ele e as espécies, por um conjunto de indiví-


capaz de gerar outros semelhantes a duos semelhantes. Os indivíduos ou
ele, etc; substâncias primeiras são seres real-
. dois sen dos de substância: Aristóte- mente existentes; os gêneros e as espé-
les usa o conceito de substância em cies ou substâncias segundas são uni-
dois sen dos: num primeiro sen do, versalidades que o pensamento conhe-
substância é o ser individual; num ce por meio dos indivíduos;
segundo sen do, é o gênero ou a espé- . predicados: são categorias lógicas e
cie a que um ser individual pertence. No também ontológicas, porque se refe-
primeiro sen do, a substância é um ser rem à estrutura e ao modo de ser da
individual existente; no segundo, é o substância ou da essência (quan dade,
conjunto das caracterís cas gerais que qualidade, relação, lugar, tempo, posse,
os indivíduos de um gênero e de uma ação, paixão). Na lógica, a substância é
espécie possuem; a primeira categoria. Aristóteles explica
. substância primeira e substância que, enquanto todas as categorias são
segunda: Aristóteles fala em substância predicados atribuídos a um sujeito, a
primeira para referir-se aos seres indivi- substância não é atribuída a ninguém
duais realmente existentes, com sua porque ela é, justamente, o sujeito que
essência e seus acidentes (por exemplo, recebe os predicados. Os predicados
Sócrates); e em substância segunda atribuídos a uma substância são cons -
para referir-se aos sujeitos universais, tu vos de sua essência, pois toda reali-
isto é, gêneros e espécies que não exis- dade pode ser conhecida porque:
tem em si e por si mesmos, mas só exis- possui qualidades (mortal, imortal,
tem encarnados nos indivíduos, poden- finito, infinito, bom, mau, etc.); quan -
do, porém, ser conhecidos pelo pensa- dades (um, muitos, alguns, pouco,
mento (por exemplo, ser humano); muito, grande, pequeno); relaciona-se
. gênero e espécie: o gênero é um uni- com outros (igual, diferente, semelhan-
versal formado por um conjunto de pro- te, maior, menor, superior, inferior);
priedades da matéria e da forma que está em algum lugar (aqui, ali, perto,
caracterizam o que há de comum nos longe, embaixo, atrás, etc.); está no
seres de uma mesma espécie. A espécie tempo (antes, depois, agora, ontem,
também é um universal, formado por hoje, amanhã, de dia, de noite, sempre,
um conjunto de propriedades da maté- nunca); realiza ações ou faz alguma
ria e da forma que caracterizam o que coisa (anda, pensa, dorme, corta, cai,
há de comum nos indivíduos semelhan- prende, cresce, floresce, etc.) e sofre
tes. Assim, o gênero é formado por um ações de outros seres (é cortado, é
conjunto de espécies semelhantes e preso, é puxado, é atraído, é curado,
14
Aristóteles

é envenenado, etc.). As categorias ou carvalho em estado de potência e que o


predicados podem ser essenciais ou aci- carvalho é a mesma semente em estado
dentais, isto é, podem ser necessários e de ato. O desenvolvimento de potência
indispensáveis à natureza própria de em ato é chamado de atualização.
um ser ou podem ser algo que um ser Entretanto, um carvalho não se atualiza
possui por acaso ou que lhe acontece sozinho, ele necessita de um carvalho
por acaso, sem afetar sua natureza. anterior a ele, que gera a semente a se
Tomemos um exemplo. Se eu disser desenvolver no processo de atualiza-
“Sócrates é homem”, necessariamente ção. Dessa forma, cada ser em potência
terei de lhe dar os seguintes predica- necessita de um ser em ato anterior a
dos: mortal, racional, finito, animal, ele para se atualizar. Cada carvalho
pensa, sente, anda, reproduz, fala, necessita de um carvalho mais an go
adoece, é menor que uma montanha e de modo a se recuar numa série de
maior que um gato, ama, odeia. Aciden- seres em potência e ato, cada ser em
talmente, ele poderá ter outros predi- ato gerando um novo ser em potência,
cados: é feio, é baixo, é diferente da que se atualiza e gera outro ser em po-
maioria dos atenienses, é casado, con- tência. Essa regressão não pode ser infi-
versou com Laques, esteve no banquete nita porque uma série de causas que se
de Agáton, foi forçado a envenenar-se estende infinitamente nunca vai produ-
pelo tribunal de Atenas. Se nosso exem- zir um efeito, é impossível atravessar
plo, porém, fosse uma substância gené- um tempo infinito entre a causa e o
rica ou específica, todos os predicados efeito.
teriam de ser essenciais, pois o acidente
acontece somente para o indivíduo Então, para que o Universo faça sen do,
existente, e o gênero e a espécie são deve haver um ser em estado de puro
universais que só existem no pensa- ato, aquele que não possui potência
mento e encarnados nas essências indi- alguma, logo não precisa se atualizar e
viduais. não depende de um ser preexistente.
Esse ser, a quem se pode chamar Deus,
2.4 Sobre a Teologia (Estudo da subs- sempre exis u porque nunca teve um
tância supra-sensível - Deus) estado de potência, não possui uma
origem e um processo de desenvolvi-
O argumento do ato puro é uma tenta - mento. Nessa condição, ele pode dar
va de provar a existência de Deus com o início a toda a cadeia de atualizações
uso da lógica. Seu proponente foi Aris- que culmina na semente proposta
tóteles e consiste no seguinte: supo- inicialmente. O argumento se funda-
nha-se que uma semente é um menta na causalidade e na finitude do
15
Aristóteles

tempo, as mesmas premissas do argu- do o que conhecemos como meta�sica


mento da causa primeira e, de fato, os ocidental. A meta�sica aristotélica inau-
dois argumentos estão in mamente gura, portanto, o estudo da estrutura
ligados. A meta�sica de Aristóteles foi geral de todos os seres ou as condições
apropriada por Santo Tomás de Aquino universais e necessárias que fazem com
para jus ficar as crenças cristãs de um que exista um ser e que ele possa ser
criador e de uma criação em certo conhecido pelo pensamento. Afirma
tempo passado. Não é necessariamente que a realidade no seu todo é inteligível
a prova de Deus como este é visto pelos ou conhecível e apresenta-se como
cristãos, nem se pode atribuir ao ato conhecimento teoré co da realidade
puro qualidades antropomórficas. Além em todos os seus aspectos gerais ou
disso, os obje vos de Aristóteles eram universais, devendo preceder as inves -
diferentes. É claro que o argumento não gações que cada ciência realiza sobre
se restringe a séries de árvores. A indus- um po determinado de ser.
trialização da madeira sob a forma de
papel é também uma passagem de po- Retomando as ciências teoré cas ou
tência para ato. O acender de uma lâm- contempla vas, ques onamos: o que
pada é uma passagem de potência para são as coisas que existem por si
ato. Aristóteles pensou na alma como o mesmas e em si mesmas, independen-
ente que atualiza o corpo. Nessa cadeia temente de nossa ação técnica e de
de seres em potência e ato, ele viu sub- nossa ação moral e polí ca? São as
sídio para pensar Deus como o primeiro coisas da natureza e as coisas divinas.
motor, aquele que move (atualiza) sem Aristóteles, aqui, classifica as ciências
ser movido. teoré cas por graus de superioridade,
indo da mais inferior à superior: 1. ciên-
2.5 Considerações gerais sobre as Ciên- cia das coisas naturais subme das à
cias Teoré cas ou Contempla vas mudança ou ao devir: �sica, biologia,
meteorologia, psicologia (a alma – em
Com esse conjunto de conceitos forma- grego, psyché – é um ser natural que
-se o quadro da ontologia ou meta�sica existe de formas variadas em todos os
aristotélica como explicação geral, uni- seres vivos, plantas, animais e seres hu-
versal e necessária do Ser, isto é, da rea- manos); 2. ciência das coisas naturais
lidade. Esse quadro conceitual será her- que não estão subme das à mudança
dado pelos filósofos posteriores, que ou ao devir: as matemá cas e a astro-
problema zarão alguns de seus aspec- nomia (os gregos julgavam que os
tos, estabelecerão novos conceitos, astros eram eternos e imutáveis); 3.
suprimirão alguns outros, desenvolven- ciência da realidade pura, que estuda o
16
Aristóteles

que Aristóteles chama de Ser ou subs- duradouras e permanentes? Com essa


tância de tudo o que existe. Ou seja, tra- pergunta, ele indicava a diferença entre
ta-se daquilo que deve haver em toda e o conhecimento que nossos sen dos
qualquer realidade – natural, matemá- os oferecem e o conhecimento que
ca, é ca, polí ca ou técnica – para ser nosso pensamento alcança: o primeiro
realidade. A ciência teoré ca que nos oferece a permanência ilusória,
estuda o puro Ser foi chamada Filosofia enquanto o segundo conhece a mudan-
Primeira por Aristóteles. Alguns séculos ça como verdadeira realidade. Parmêni-
depois, como os livros que a expunham des, porém, opunha-se a Heráclito, afir-
estavam localizados nas bibliotecas mando que só podemos pensar sobre
depois dos livros que expunham a �sica, aquilo que permanece sempre idên co
ela passou a ser chamada meta�sica a si mesmo. Para ele, se nada permane-
(em grego, meta significa “o que vem ce, então nada pode ser pensado. Co-
depois, o que está além”; ou seja, no nhecer é alcançar o idên co, o imutá-
caso, os livros que vinham depois da vel. Nossos sen dos nos oferecem a
�sica e que tratavam da realidade para imagem de um mundo em incessante
além da �sica); 4. ciência das coisas divi- mudança, no qual tudo se torna o con-
nas que são a causa e a finalidade de trário de si mesmo: o dia vira noite, o
tudo o que existe na natureza e no inverno vira primavera, o doce se torna
homem. amargo, o líquido se transforma em
vapor ou em sólido.
Vimos que Heráclito considerava a
natureza (o kosmos) um “fluxo perpé- Como pensar o que é e não é ao mesmo
tuo”, o escoamento con nuo dos seres tempo? Como pensar o instável? Não é
em mudança perpétua. Ele comparava possível, dizia Parmênides. Pensar é
o mundo à chama de uma vela que apreender um ser em sua iden dade
queima sem cessar e transforma a cera profunda e permanente. Com isso, afir-
em fogo, o fogo em fumaça e a fumaça mava o mesmo que Heráclito – perce-
em ar. O verão se torna outono, o novo ber e pensar são diferentes –, mas dizia
fica velho, o quente esfria, o úmido isso em sen do oposto: nossos sen dos
seca; cada ser é um movimento em percebem mudanças impensáveis, mas
direção ao seu contrário. A realidade, o pensamento conhece a realidade, isto
para Heráclito, é a harmonia dos contrá- é, a iden dade e a imutabilidade. A dis-
rios, que não cessam de se transformar nção entre perceber e pensar é man -
uns nos outros. Se assim for, como da também pela filosofia atomista ou o
explicar que nossa percepção nos ofere- atomismo proposto por Demócrito de
ça as coisas como se fossem estáveis, Abdera. Para ele, os seres surgem por
17
Aristóteles

composição dos átomos, transformam- cepção? O modo como os seres nos


-se por novos arranjos e desaparecem aparecem é o modo como eles real-
pela separação deles. Os átomos pos- mente são? O problema sobre o conhe-
suem formas e consistências diferentes, cimento estava posto e preocupações
de cuja combinação surge a variedade como essas levaram a duas a tudes
de seres, suas mudanças e desapari- filosóficas: a dos sofistas e a de Sócra-
ções. Por meio de nossos órgãos dos tes. Com eles, os problemas do conheci-
sen dos, percebemos o quente e o frio, mento tornaram-se centrais. Diante da
o grande e o pequeno, o duro e o mole, pluralidade das ontologias anteriores,
sabores, odores, texturas, o agradável e os sofistas concluíram que não pode-
o desagradável, sen mos prazer e dor, mos conhecer o ser, pois, se pudésse-
porque percebemos os efeitos das com- mos, pensaríamos da mesma maneira e
binações dos átomos que, em si haveria uma única filosofia. Consequen-
mesmos, não possuem tais qualidades. temente, só podemos ter opiniões sub-
Somente o pensamento pode conhecer je vas sobre a realidade. Por isso, os
os átomos, que são invisíveis para nossa homens devem valer-se de um instru-
percepção sensorial. Dessa maneira, mento – a linguagem – para persuadir
Demócrito concordava com Heráclito e os outros de suas próprias ideias e opi-
Parmênides que há uma diferença entre niões. A verdade é uma questão de opi-
o que conhecemos por meio de nossa nião e de persuasão, e a linguagem é
percepção e o que conhecemos apenas mais importante do que a percepção e
pelo pensamento. Porém, divergindo o pensamento. Opondo-se aos sofistas,
deles, Demócrito não considerava a Sócrates afirmava que a verdade pode
percepção ilusória, mas sim um efeito ser conhecida quando compreendemos
da realidade sobre nós. O conhecimen- que precisamos começar afastando as
to sensorial é verdadeiro, embora seja ilusões dos sen dos, as imposições das
de uma verdade diferente e menos pro- palavras e a mul plicidade das opini-
funda ou menos relevante do que ões.
aquela alcançada pelo puro pensamen-
to. Os órgãos dos sen dos, diz Sócrates,
dão-nos somente as aparências das
O pensamento parece seguir certas leis coisas, e as palavras, meras opiniões
para conhecer as coisas e há uma dife- sobre elas. A aparência e a opinião
rença entre perceber e pensar. Pensa- variam de pessoa para pessoa e em um
mos com base no que percebemos ou mesmo indivíduo. Mas não só variam:
negando o que percebemos? O pensa- também se contradizem. Conhecer é
mento con nua, nega ou corrige a per- começar a examinar as contradições
18
Aristóteles

das aparências e das opiniões para nos oferecem apenas a aparência das
poder abandoná-las e passar da apa- coisas ou suas imagens e correspondem
rência à essência, da opinião ao concei- à situação dos prisioneiros do Mito da
to. O exame das opiniões é aquele pro- Caverna. Por serem ilusórios, devem ser
cedimento que Sócrates chamava afastados por quem busca o conheci-
ironia, com o qual o filósofo conseguia mento verdadeiro; portanto, somente
que seus interlocutores reconhecessem os dois úl mos graus devem ser consi-
que não sabiam o que imaginavam derados válidos. O raciocínio exercita
saber. Sócrates fez a filosofia voltar-se nosso pensamento, purifica-o das sen-
para nossa capacidade de conhecer e sações e opiniões e o prepara para a
indagar as causas das ilusões, dos erros, intuição intelectual, que conhece a
do falso e da men ra. Platão e Aristóte- essência das coisas, o que Platão deno-
les herdaram de Sócrates o procedi- mina ideia. As ideias são a realidade
mento filosófico de começar a abordar verdadeira e conhecê-las é ter o conhe-
uma questão pela discussão e pelo cimento verdadeiro. A ironia e a maiêu-
debate das opiniões contrárias sobre ca socrá cas são transformadas por
ela a fim de superá-las em um saber Platão no procedimento da dialé ca. A
verdadeiro. Além disso, passaram a finalidade do percurso dialé co é
definir as formas de conhecer e as dife- chegar à intuição intelectual de uma
renças entre o conhecimento verdadei- essência ou ideia. Aqui precisamos
ro e a ilusão, introduzindo na filosofia a deixar claro que uma intuição é uma
ideia de que existem diferentes manei- compreensão completa e imediata de
ras de conhecer. Platão dis ngue quatro um objeto, de um fato. Nela, de uma só
formas ou graus de conhecimento, que vez, a razão capta todas as relações que
vão do grau inferior ao superior: crença, cons tuem a realidade e a verdade da
opinião, raciocínio e intuição intelectu- coisa intuída. É um ato intelectual de
al. Os dois primeiros formam o que ele discernimento e compreensão, sem
chama conhecimento sensível; os dois necessidade de provas ou demonstra-
úl mos, o conhecimento inteligível. ções para saber o que conhece.

A crença é nossa confiança no conheci- Ela pode depender de conhecimentos


mento sensorial: cremos que as coisas anteriores e ela ocorre quando esses
são tal como as percebemos. A opinião conhecimentos são percebidos de uma
é nossa aceitação do que nos ensina- só vez, numa síntese em que aparecem
ram sobre as coisas ou o que delas pen- ar culados e organizados num todo
samos conforme nossas sensações e (sua forma, seu conteúdo, suas causas,
lembranças. Esses dois primeiros graus suas propriedades, seus efeitos, suas
19
Aristóteles

relações com outros, seu sen do). Isso lembranças, imagens, sen mentos,
significa que a intuição pode ser o mo- desejos e percepções variam de pessoa
mento final de um processo de conheci- para pessoa e numa mesma pessoa em
mento. E justamente por ser o momen- decorrência de mudanças em seu
to de conclusão de um percurso, ela corpo, em sua mente ou nas circunstân-
pode ser o ponto inicial de um novo cias em que o conhecimento ocorre.
percurso de conhecimento em cujo Assim, a marca da intuição empírica é
ponto final haverá uma nova intuição. A sua singularidade; por um lado, está
intuição racional pode ser de dois pos: ligada à singularidade do objeto intuído
intuição sensível ou empírica e intuição (ao “isto” oferecido à sensação e à per-
intelectual. A primeira é o conhecimen- cepção) e, por outro, à singularidade do
to que temos a todo momento de nossa sujeito que intui (aos meus estados psí-
vida. Assim, com um só olhar ou num só quicos, às minhas experiências). A intui-
ato de visão percebemos uma casa, um ção empírica não capta o objeto em sua
homem, uma mulher, uma flor, uma universalidade e a experiência intui va
mesa. Num só ato, por exemplo, capto não é transferível para outro objeto. A
que isto é uma flor: vejo sua cor e suas intuição intelectual difere da sensível
pétalas, sinto a maciez de sua textura, justamente por sua universalidade e
aspiro seu perfume, tenho-a por inteiro necessidade. Quando penso: “Uma
e de uma só vez diante de mim. A intui- coisa não pode ser e não ser ao mesmo
ção empírica é o conhecimento direto e tempo”, sei, sem necessidade de
imediato das qualidades do objeto demonstrações, que isto é verdade e
externo denominadas qualidades sensí- que é necessário que seja sempre
veis: cor, sabor, odor, paladar, som, tex- assim, ou que é impossível que não seja
tura. É a percepção direta de formas, sempre assim. Em outras palavras,
dimensões, distâncias das coisas perce- tenho conhecimento intui vo do princí-
bidas. É também o conhecimento direto pio da contradição. Quando afirmo: “O
e imediato de nossos estados internos todo é maior do que as partes”, sei, sem
ou mentais que dependem ou depen- necessidade de provas e demonstra-
deram de nosso contato sensorial com ções, que isto é verdade porque intuo
as coisas: lembranças, desejos, sen - uma forma necessária de relação entre
mentos, imagens. as coisas.

A intuição sensível ou empírica é psico- Diante de todos esses posicionamentos


lógica, isto é, refere-se aos estados do sobre o conhecimento e a forma que
sujeito do conhecimento como ser cor- conhecemos, Aristóteles dis ngue sete
poral e psíquico individual. Sensações, formas ou graus de conhecimento:
20
Aristóteles

1 – sensação, 2 – percepção, 3 – imagi- realidade; na intuição intelectual,


nação, 4 – memória, 5 – linguagem, 6 – temos o conhecimento dos princípios
raciocínio, 7 – intuição. Enquanto Platão universais e necessários do pensamen-
concebia o conhecimento como aban- to (iden dade, não contradição, tercei-
dono de um grau inferior por um supe- ro excluído) e dos primeiros princípios e
rior, Aristóteles o considerava con nua- causas da realidade ou do ser. A diferen-
mente formado e enriquecido por acú- ça entre os seis primeiros graus e o
mulo das informações trazidas por úl mo decorre da diferença do objeto
todos os graus. Desse modo, em lugar do conhecimento: os seis primeiros
de uma ruptura entre o conhecimento graus conhecem objetos que se ofere-
sensível e o intelectual, há uma con - cem a nós na sensação, na imaginação,
nuidade entre eles. As informações tra- no raciocínio, enquanto o sé mo lida
zidas pelas sensações se organizam e com princípios e causas primeiras da
permitem a percepção. As percepções, realidade em si. Em outras palavras, nos
por sua vez, organizam-se e permitem a outros graus, o conhecimento é ob do
imaginação. Juntas, conduzem à memó- por indução ou por dedução, mas no
ria, à linguagem e ao raciocínio. Aristó- úl mo grau conhecemos o que é inde-
teles concebe, porém, uma separação monstrável (princípios e causas primei-
entre os seis primeiros graus e a intui- ras) porque é condição para todas as
ção intelectual, que é um ato do pensa- demonstrações e raciocínios.
mento puro e não depende dos graus
anteriores. A intuição intelectual é o 3. Ciências Prá cas
conhecimento direto e imediato dos
princípios da razão, os quais, por serem Sobre a é ca, Aristóteles faz a seguinte
princípios, não podem ser demonstra- pergunta: como viver essa boa vida,
dos (para demonstrá-los, precisaríamos que só era possível par cipando da
de outros princípios e, para demonstrar pólis? Aristóteles deixou essa resposta
estes outros princípios, precisaríamos em sua obra É ca a Nicômaco. Como já
de outros, num processo interminável). vimos, ele concebia que tudo tem um
fim, e não seria diferente com as ações
Essa separação não significa que os humanas, que devem ser realizadas ob-
outros graus ofereçam conhecimentos je vando a ngir o bem supremo que é
ilusórios ou falsos, e sim que oferecem a eudaimonia, comumente traduzida
pos de conhecimentos diferentes, que por felicidade. Não devemos entender
vão de um grau menor a um grau maior essa felicidade como uma emoção que
de verdade. Em cada um deles temos temos quando algo bom nos acontece.
acesso a um aspecto do ser ou da Ela está mais para um estado de pleni-
21
Aristóteles

tude, uma forma de viver plena, voltada do pelo uso e pelo usuário). Assim, a
para o bem, para o saber, para a jus ça, é ca e a técnica são dis nguidas como
no aperfeiçoamento constante do cará- prá cas que diferem pela relação do
ter. Precisamos ter em mente que a agente com a ação e com a finalidade
é ca e a polí ca são saberes prá cos. E da ação. Também devemos a Aristóte-
o saber prá co pode ser de dois pos: les a definição do campo das ações
práxis ou técnica. Na práxis, o agente, a é cas. Estas não só são definidas pela
ação e a finalidade do agir são insepará- virtude, pelo bem e pela obrigação, mas
veis, pois o agente, o que ele faz e a também pertencem àquela esfera da
finalidade de sua ação são o mesmo. realidade na qual cabem a deliberação
Assim, por exemplo, dizer a verdade é e a decisão ou escolha.
uma virtude do agente, inseparável de
sua fala verdadeira e de sua finalidade, Em outras palavras, quando o curso da
que é proferir uma verdade; não pode- realidade segue leis necessárias e uni-
mos dis nguir o falante, a fala e o con- versais, não há como nem por que deli-
teúdo falado. berar e escolher, pois as coisas aconte-
cerão necessariamente tais como as leis
Para Aristóteles, na práxis é ca somos que as regem determinam que devam
aquilo que fazemos e o que fazemos é a acontecer. Não deliberamos sobre as
finalidade boa ou virtuosa. Ao contrá- estações do ano, o movimento dos
rio, na técnica o agente, a ação e a fina- astros, a forma dos minerais ou dos
lidade da ação são diferentes e estão vegetais. Não deliberamos nem decidi-
separados, sendo independentes uns mos sobre aquilo que é regido pela
dos outros. Um carpinteiro, por exem- natureza, isto é, pela necessidade. Mas
plo, ao fazer uma mesa, realiza uma deliberamos e decidimos sobre tudo
ação técnica, mas ele próprio não é essa aquilo que, para ser e acontecer, depen-
ação nem é a mesa produzida por ele. A de de nossa vontade e de nossa ação.
técnica tem como finalidade a fabrica- Não deliberamos e não decidimos
ção de alguma coisa diferente do sobre o necessário, pois o necessário é
agente (a mesa não é o carpinteiro, o que é e será sempre tal como é, inde-
enquanto uma fala verdadeira é o ser pendentemente de nós. Deliberamos e
do próprio falante que a diz) e da ação decidimos sobre o possível, sobre
fabricadora (a ação técnica de fabricar a aquilo que pode ser ou deixar de ser,
mesa implica o trabalho sobre a madei- porque para ser e acontecer depende
ra com instrumentos apropriados, mas de nós, de nossa vontade e de nossa
isso nada tem a ver com a finalidade da ação. Com isso, Aristóteles acrescenta à
mesa, uma vez que o fim é determina- consciência moral, trazida por Sócrates,
22
Aristóteles

a vontade guiada pela razão como o rio, deficientes (covardia, insensibilida-


outro elemento fundamental da vida de, indiferença, etc.); uma virtude é um
é ca. Devemos a Aristóteles uma dis n- sen mento ou uma conduta modera-
ção central em todas as formulações dos (coragem, temperança, gen leza,
ocidentais da é ca: a diferença entre o etc.). As virtudes são as qualidades do
que é por natureza (ou conforme à caráter que nos permitem conseguir os
physis) e o que é por vontade (ou con- bens necessários (materiais e imate-
forme à liberdade). O necessário é por riais) para viver plenamente, ou seja,
natureza; o possível, por vontade. ter uma vida feliz.

A importância dada por Aristóteles à Sobre a jus ça, Aristóteles diz que ela é
vontade racional, à deliberação e à uma disposição da alma graças à qual as
escolha o levou a considerar uma virtu- pessoas se dispõem a fazer o que é
de como condição de todas as outras e justo, a agir justamente e a desejar o
presente em todas elas: a prudência ou que é justo. O mesmo deve ser dito da
sabedoria prá ca. Ela é a sabedoria, o injus ça, que nos faz cometer e querer
saber prá co necessário, a chave da atos injustos. A jus ça é considerada a
felicidade, para viver moderadamente. maior das virtudes. Ela é perfeita
É a prudência que nos permite viver porque as pessoas que possuem o sen-
sem exageros e nem deficiências, ou mento de jus ça podem pra cá-la não
seja, no meio-termo. É essa virtude que somente em relação a si mesmas como
nos permite saber como agir modera- também em relação ao próximo.
damente em cada situação par cular. Somente a jus ça é o bem do outro. A
Prudente é aquele que, em todas as única diferença entre a excelência
situações, julga e avalia qual a tude e moral e a jus ça está em suas essên-
qual ação melhor realizarão a finalidade cias: a jus ça, pra cada em relação ao
é ca, ou seja, garan rão que o agente próximo, quando é irrestrita é a exce-
seja virtuoso e realize o que é bom para lência moral. Porém, quando a jus ça é
si e para os outros. Na É ca a Nicôma- uma parte da excelência moral, deno-
co, encontramos a síntese das virtudes mina-se jus ça no sen do restrito.
que cons tuíam a excelência e a morali-
dade da Grécia clássica. Nessa obra dis- A jus ça pode ser tomada no sen do
nguem-se vícios e virtudes pelo crité- universal e no sen do par cular. Na sua
rio do excesso, da falta e da moderação: perspec va universal, ela é tanto uma
um vício é um sen mento ou uma con- manifestação de vontade geral da virtu-
duta excessivos (temeridade, liber na- de quanto uma apropriação do justo à
gem, irascibilidade, etc.), ou, ao contrá- lei que, no geral, é da por justa. Para
23
Aristóteles

Aristóteles, a lei, produzida na pólis a que a jus ça prévia iguala as prestações


par r de um princípio é co, é direta- recíprocas antes mesmo de uma even-
mente relacionada ao justo. Uma má lei tual transação; ii) repara va (involuntá-
não é lei. Na sua perspec va par cular, ria): visa reprimir a injus ça, a reparar
a regra de ouro é dar a cada um o que é ou indenizar o dano, estabelecendo, se
seu. Aristóteles divide a jus ça par cu- for o caso, a punição. Por fim, Aristóte-
lar em: distribu va, corre va e, como les trata da reciprocidade. A sua aplica-
um caso especial, a reciprocidade. ção mais importante se dá no caso da
produção. As trocas entre um sapateiro,
A jus ça distribu va trata da distribui- um pedreiro, um médico e um fazendei-
ção de riquezas, benefícios e honrarias. ro, para serem consideradas justas,
A distribuição compreende sempre dois devem alcançar uma certa reciprocida-
sujeitos em relação aos quais se avalia a de. Não se pode imaginar, por exemplo,
justa distribuição dos bens. A distribui- que a produção de um sapato valha o
ção compreende uma espécie de mesmo que a construção de uma casa.
função matemá ca tal qual uma regra Aristóteles aponta, para isso, que o
de três, uma proporção geométrica. O dinheiro faz o papel de uma equivalên-
critério é o mérito: dar a cada um de cia universal entre produtos e serviços.
acordo com seu mérito. Por exemplo, Ele possibilita a reciprocidade entre tais
um professor, quando aplica uma prova elementos.
será considerado justo em sua correção
quando distribuir notas de acordo com Aristóteles, que assumia o caráter dinâ-
uma proporção, tendo em vista o mico da natureza, reconhecia que o
mérito. De uma prova com cinco ques- direito natural também podia mudar. A
tões valendo cada qual dois pontos, o jus ça divide-se em natural e legal. A
aluno que acerta quatro merece nota natural tem a mesma força em qual-
oito e o aluno que acerta duas, merece quer parte, independentemente de a
nota quatro. A jus ça corre va é uma aceitarmos ou não ou desta ou daquela
proporção aritmé ca. Ela visa a corre- opinião. A legal (posi va) é aquela que
ção das transações entre os indivíduos. passa a viger depois de ser estabelecida
Nesta forma de jus ça surge a necessi- a lei, ou seja, é legal aquilo que o princí-
dade da intervenção de uma terceira pio pode ser determinado indiferente-
pessoa: o juiz. Ela se divide em: i) comu- mente de uma maneira ou de outra,
ta va (voluntária): preside os contratos mas depois de determinado já não é
em geral: compra e venda, locação, em- indiferente, mas obrigatório. É aquela
prés mo, etc. Esse po de jus ça é que se pra ca neste ou naquele país.
essencialmente preven va, uma vez
24
Aristóteles

A jus ça é um meio-termo e a injus ça virtude (cumprir bem o télos) e o cará-


relaciona-se com os extremos - o exces- ter. Jus ça é dar às pessoas o que elas
so ou a falta. A ação justa deve evitar os merecem, dando a cada um o que lhe é
extremos, tanto o excesso quanto a devido. Mas como saber qual é o mérito
falta, caracterizando-se assim pelo de cada um? Isso depende das “coisas”
equilíbrio. A sabedoria prá ca (phrone- e das “pessoas” em que as coisas são
sis) consiste na capacidade de discernir des nadas. Qual é o télos da polí ca? É
essa medida. Quais traços de caráter formar um bom cidadão; é cul var as
fazem de alguém uma pessoa boa? virtudes dos cidadãos; é viver bem. Mas
isso somente é possível na pólis, na po-
Vício por deficiência – Virtude – Vício por lí ca. O homem é um animal polí co
excesso (teoria naturalista, do Estado orgânico,
Covardia – Coragem – Temeridade
do impulso associa vo).
Indiferença – Gen leza – Irascibilidade
Insensibilidade – Temperança – Liber nagem
Avareza – Liberalidade – Esbanjamento A jus ça e a equidade são a mesma
Vileza – Magnificência – Vulgaridade coisa, embora a equidade seja melhor.
Modés a – Respeito Próprio – Vaidade O que cria este problema é o fato de o
Moleza – Prudência – Ambição equita vo ser justo, mas não o justo
Descrédito Próprio – Veracidade – Orgulho segundo a lei, e sim um corre vo da jus-
Rus cidade – Agudeza de Espírito – Zombaria
ça legal. A equidade corrige a lei. A
Enfado – Amizade – Condescendência
Desavergonhado – Modés a – Timidez
razão é que toda lei é de ordem geral,
Malevolência – Justa Indignação – Inveja mas não é possível fazer uma afirmação
universal que seja correta em relação a
Compreender o télos de uma prá ca certos casos par culares. Por isso, o
significa, pelo menos em parte, com- equita vo é justo e melhor que uma
preender ou discu r as virtudes que ela simples espécie de jus ça, pois o equi-
deve honrar e recompensar. As teorias ta vo é por natureza uma correção da
modernas de jus ça tentam separar as lei onde esta é omissa devido à sua
questões de equidade e direitos das dis- generalidade. Quem escolhe e pra ca
cussões sobre honra, virtude e mérito atos equita vos e não se atém aos seus
moral. Elas buscam princípios de jus ça direitos, mas se contenta com receber
que sejam neutros, para que as pessoas menos do que lhe caberia, embora a lei
possam escolher e buscar seus obje - esteja ao seu lado, é uma pessoa equi-
vos por conta própria. Aristóteles não ta va.
acha que a jus ça possa ser neutra, pois
as discussões sobre jus ça são, inevita- Sobre a polí ca, assim como o próprio
velmente, debates sobre a honra, a Platão percebeu mais tarde que seu
25
Aristóteles

projeto de funcionamento de uma pólis cons tuições diferentes, e definiu os


ideal governada por reis filósofos não pos possíveis de governo. Ei-los: BOM
era viável, Aristóteles também sabia - MONARQUIA (um), ARISTOCRACIA
que esse projeto nunca daria certo. (poucos), REPÚBLICA (muitos). RUIM -
Tendo isso em mente, ele elaborou um TIRANIA (um), OLIGARQUIA (poucos),
projeto polí co que fosse viável, e DEMOCRACIA (muitos). A corrupção de
desenvolveu uma polí ca para o um regime a outro, acontece quando
homem comum. Mas não entenda esse quem governa se desvia do obje vo de
homem como qualquer um. É o homem a ngir o bem comum, e passa a gover-
bem instruído, e de determinadas nar de acordo com seus interesses.
posses, que o permi sse ter ócio sufi- Quanto à melhor forma de governo,
ciente para se voltar aos estudos e à po- Aristóteles diz que vai depender do po
lí ca. Nessa linha de raciocínio, a pólis de povo. Segundo ele, existe uma dis-
que esse homem habitaria seria a posição natural em cada povo que o
melhor possível. Ela teria sua cons tui- torna propício a determinada forma de
ção como sendo um reflexo desse po governo. Par cularmente, ele prefere a
de homem, sendo, portanto, uma cons- monarquia, e argumenta que dentre as
trução natural já que é da essência do formas corrompidas de governo, a
homem viver em comunidade, ou seja, democracia é a melhor. A teoria polí ca
ser um animal polí co. Ele até nos com- grega está voltada para a busca dos
para com as abelhas que são gregárias parâmetros do bom governo. Platão e
por natureza. “A pólis é uma criação Aristóteles envolvem-se nas questões
natural, e o homem é, por natureza, um polí cas do seu tempo e cri cam os
animal social, e um homem que por maus governos. Se por um lado, Platão
natureza, e não por mero acidente, não tentou efe vamente implantar um
fizesse parte de pólis alguma, seria des- governo justo na Sicília, por outro esbo-
prezível ou estaria acima da humanida- çou a idealizada Cailipolis como modelo
de, e se poderia compará-lo a uma peça a ser alcançado. Aristóteles, mesmo
isolada do jogo de gamão. Agora é evi- recusando a utopia do seu mestre,
dente que o homem, muito mais que a aspira também a uma cidade justa e
abelha ou outro animal gregário, é um feliz. Isso significa que esses filósofos
animal social.” (Aristóteles. Polí ca, elaboram uma teoria polí ca de nature-
1253 a-b. Mario da Gama Kury (trad.). za descri va, já que a reflexão parte da
Brasília: Ed. UnB, 1997). análise da polí ca de fato, mas é
também de natureza norma va e pres-
E como seria essa pólis? Para dar essa cri va, porque pretende indicar quais
resposta, Aristóteles analisou 158 são as boas formas de governo.
26
Aristóteles

A ligação entre é ca e polí ca é eviden- templar todo po de argumentação. Há


te, na medida em que a questão do comentadores, como Luiz Xavier López
bom governo, do regime justo, da Farjeat, que sustentam que as teorias
cidade boa, depende da virtude do bom da argumentação, baseadas tanto na
governante. Veremos como essa ten- retórica como na poé ca merecem a
dência persiste na Idade Média, até ser inclusão na lógica de Aristóteles. De
cri cada no século XVI, a par r de Ma- fato, os comentadores árabes e la nos
quiavel. Outra caracterís ca pica das medievais de Aristóteles situaram o
teorias polí cas an gas é a concepção estudo da lógica de forma mais abran-
cíclica da história, segundo a qual os gente do que se entende por lógica aris-
governos se alternam passando de uma totélica contemporaneamente.
forma para outra (de desenvolvimento
ou de decadência), representando um O obje vo da retórica é descobrir quais
curso fatal dos acontecimentos huma- são os modos e meios para persuadir:
nos. Assim, por exemplo, quando a mo- ela é uma metodologia do persuadir.
narquia degenera em rania, acontece Sob o aspecto formal, ela apresenta
a reação aristocrá ca que, decaindo em analogias com a lógica, especialmente a
oligarquia, gera a democracia e assim parte da lógica que Aristóteles chama
por diante. de dialé ca. A dialé ca estuda as estru-
turas do pensar e do raciocinar que se
4. Ciências Produ vas ou Poié cas move não com base em elementos fun-
dados cien ficamente, mas sim na opi-
Arquitetura, economia, medicina, pin- nião. A dialé ca é o conhecimento do
tura, escultura, poesia, teatro, oratória, provável, ou seja, ela elabora regras do
arte da guerra, da caça, da navegação, pensamento dialogado, aprendendo a
etc. são objeto das ciências produ vas. refutar ou defender teses que se
Aristóteles disse que todas as a vida- baseiam em premissas prováveis, isto é,
des humanas técnicas e ar s cas que defendidas por um sen mento mais ou
resultam em um produto ou em uma menos unânime de pessoas reconheci-
obra dis ntos do produtor são ciências das. As argumentações que a retórica
produ vas. fornece não partem de premissas origi-
nárias, mas das convicções comumente
A obra Retórica é a arte de fazer discur- admi das das quais parte também a
sos persuasivos e a obra Poé ca, a arte dialé ca. A retórica não apresenta as
de compor enredos ou narra vas várias passagens, através das quais o
(drama, tragédia, comédia, poesia ouvinte comum se perderia, mas extrai
épica e lírica). Aristóteles tentou con- a conclusão rapidamente das premis-
27
Aristóteles

sas, deixando subjacente a mediação co” (purificador). Platão censurou a arte


lógica. Esse po de raciocínio retórico porque é mimese, imitação das coisas
denomina-se “en mema” (parte de fenomênicas. A arte, para Aristóteles, é
premissas prováveis, de convicções “mimese” da realidade, mas não imita-
comuns e não de princípios primeiros). ção passiva e mecânica, e sim imitação
Além disso, a en mema vale-se do cria va que reproduz as coisas segundo
exemplo, que não implica mediação a dimensão do possível e do universal.
lógica de qualquer gênero. O en mema Aristóteles cita a tragédia, que por meio
retórico corresponde ao silogismo da piedade e do terror, acaba por efetu-
dialé co. ar a purificação de tais paixões. Ele cita
que também a música tem esse papel.
Aristóteles, deferentemente de Platão, O aspecto catár co consiste no fato de
não condenou a arte pelo seu caráter que ela liberta das paixões, ou que a
ilusório, e até lhe atribuiu valor “catár - sublima pelo prazer esté co.

Indicações de Leituras

Obras de Aristóteles: 1. Órganon; 2. Meta sica; 3. É ca a Nicômaco;


4. Polí ca; 5. Retórica; 6. Poé ca.

Comentadores de Aristóteles: Jonathan Barnes, Enrico Ber , O�ried Höffe,


José Medina, Oswaldo Porchat Pereira, Luiz Rohden, Carlos Alexandre Terra
e Marco Zingano.
1
Período Helenístico

Enfraquecidos pela Guerra do Pelopo- mas também e, sobretudo, de revolu-


neso, os gregos não resis ram ao ção espiritual e cultural, a par r do mo-
ataque macedônico na batalha de Que- mento que na dimensão polí ca (isto é,
roneia (338 a.C.) e sucumbiram diante na vida dentro da pólis) se reconheciam
do rei Filipe II. O domínio macedônico todos os grandes filósofos gregos, os
não ficou só na Grécia. Com a morte do quais justamente sobre este fundamen-
rei Felipe II, seu filho Alexandre (336 – to construíram seus sistemas e sua
323 a.C.) de apenas 18 anos, assume o antropologia. Alexandre com sua
poder e conquista os grandes domínios expansão promove gradualmente a
do Império Persa, expandindo o pode- queda da pólis.
rio macedônico até a Índia. Alexandre
foi educado nos costumes gregos, teve Ele dá início ao primeiro projeto de glo-
Aristóteles como seu professor e espa- balização, com a convivência de povos
lhou a cultura grega por um vas ssimo de diferentes costumes vivendo sob um
território. mesmo território e domínio. O ideal da
pólis, portanto, é subs tuído pelo ideal
A expansão e mistura da cultura grega “cosmopolita” (o mundo inteiro é uma
com a dos povos orientais originou o pólis) e o homem-polí co é subs tuído
que foi conhecido de Helenismo. Seu pelo homem-indivíduo; a contraposição
império não resis u à sua morte. Foi grego-bárbaro em larga medida é supe-
dividido entre seus generais e foi con- rada pela concepção do homem em
quistado pelos romanos. No entanto, as uma dimensão de igualitarismo univer-
cidades fundadas por ele con nuaram sal. Esse novo mundo que Alexandre
transmi ndo a cultura grega para diver- estava criando requeria um novo
sos povos ao longo de séculos. Como homem, que deixaria de ser um cidadão
exemplo, podemos citar Alexandria no da pólis para ser um cidadão do mundo,
Egito, Pérgamo na Ásia Menor e a Ilha da cosmo-pólis, ou seja, um cosmopoli-
de Rodes no Mar Egeu. ta.

A grande expedição de Alexandre Dessa maneira, todo aquele corpo teó-


Magno para o oriente e as sucessivas rico sustentado pelos filósofos gregos,
conquistas territoriais, com a formação que concebia a pólis como sendo o
de um império vas ssimo e a teorização único lugar onde o homem poderia
de uma monarquia universal divina, exercitar suas virtudes e fazer florescer
veram como efeito imediato o de colo- suas potencialidades, foi perdendo sen-
car em gravíssima crise a pólis. Não se do, pois a pólis estava deixando de
tratou apenas de revolução polí ca, exis r em seu formato original. Com-
2
Período Helenístico

preendemos então por que as filosofias trou uma espécie de refundação com
até então elaboradas (com exceção da Diógenes de Sinope (400-325 a.C.),
socrá ca) arriscaram tornar-se desatua- mais conhecido como Diógenes o cão,
lizadas e superadas pelos tempos. que levou essa corrente filosófica a
Surgiu assim fortemente a exigência de grande sucesso. Ele imprimiu ao movi-
novas filosofias mais eficazes do ponto mento uma clara orientação an cultu-
de vista prá co, que ajudassem a ralista, no sen do de que declarou com-
enfrentar os novos acontecimentos e a pletamente inú l a pesquisa filosófica
inversão dos an gos valores aos quais abstrata e teórica para fins de alcançar a
estavam estreitamente ligadas. felicidade. Eram necessários, sobretu-
do, o exemplo e a ação.
De tal modo, a cultura helênica, difun-
diu-se em vários lugares, tornou-se cul- Por isso, o ensinamento de Diógenes se
tura helenís ca e o centro da cultura concentrou sobre uma vida vivida fora
passou de Atenas para Alexandria, de qualquer convenção social e redu-
cidade que mais se destacou ao possuir zindo as necessidades ao essencial. Ele
a maior biblioteca do mundo de sua viveu em Atenas de acordo com o que
época e por ter formado uma escola acreditava, morando em um barril e
com grandes pensadores. É nesse con- comendo apenas o os outros lhe
texto que surgem novas correntes de davam, já que o cinismo pregava que a
pensamento filosóficas, como respostas pessoa deveria viver da forma mais sim-
às novas questões postas por essas ples possível, como um animal, despre-
transformações. Como expressões das zando todas as convenções sociais.
novas exigências impuseram-se de
modo par cular a filosofia cínica, a epi- Tudo que era natural deveria ser feito
curista, a estoica e a cé ca, enquanto o aos olhos de todos e considerava coisas
platonismo e o aristotelismo caíram em tolas a riqueza, a fama, o poder e as
grande medida no esquecimento. Essas honras. O ideal foi o da autarquia, do
mudanças na forma de ver o mundo bastar-se a si mesmo, e do tornar-se
colocavam novas questões que não independente dos outros. Ou seja, a
podiam ser respondidas pelos escritos vida cínica se concre zava em conduta
filosóficos já existentes. inteiramente livre, sem regras. Para
alcançar tal obje vo era preciso ter
1. Cinismo total desprezo pelo prazer e libertar-se
dele, e até atuar uma revalorização da
Embora fundado por An stenes depois fadiga, capazes de temperar o espírito e
da morte de Sócrates, o cinismo encon- torná-lo independente das necessida-
3
Período Helenístico

des supérfluas. cimento se fundamenta sobre a sensa-


ção, sobre a prolepse e sobre os sen -
Em busca de uma pessoa que não fosse mentos de dor e de prazer. A sensação
corrupta, ele andava com uma lanterna nasce do impacto de fluxos de átomos,
interpelando a todos que encontrava. provenientes dos objetos (chamados de
Certa vez o imperador Alexandre foi ao “simulacros”) sobre nossos sen dos, os
seu encontro e disse-lhe que daria qual- quais, nesta relação, tem um papel pas-
quer coisa que pedisse, quando então, sivo e mecânico, de modo que a marca
Diógenes pediu apenas que ele saísse do mundo externo (ou pelo menos dos
da frente do sol, pois estava impedindo- eflúvios) registrada pelos sen dos e
-o de receber sua luz. perfeitamente correspondente ao origi-
nal, tanto que Epicuro pode afirmar que
2. Epicurismo a sensação é sempre verdadeira e obje-
va.
Epicuro de Samos (341 – 271 a.C), que
fundou sua Escola em Atenas em Tais sensações, por repe r-se inumerá-
307/306 a.C., retomou de Leucipo e De- veis vezes e mantendo-se na alma, dão
mócrito a teoria atomista, de Sócrates o lugar a imagens apagadas, que, por sua
conceito de filosofia como arte de viver menor ni dez, podem se adaptar a múl-
e estabeleceu uma estreita relação plos objetos do mesmo gênero e, por-
entre felicidade e prazer. Epicuro ensi- tanto, antecipar as caracterís cas das
nava que os homens devem se libertar coisas antes que estas se apresentem
dos medos e viver uma vida voltada (por isso as chamadas prolepses, isto é,
para os simples prazeres (hedonismo), antecipações), ou representá-las em
como beber quando se tem sede, sua ausência (do correspondente sen-
comer quando se tem fome, aproveitar sista do conceito). Os sen mentos de
a presença dos amigos e familiares. dor e de prazer nascem da ressonância
Tudo com moderação. Estes prazeres interna das sensações, ou seja, do
seriam entendidos como a superação efeito que elas produzem sobre nós, e
dos desejos es mulados em sociedade, servem de fundamento para a é ca,
como a busca por fama, riqueza e enquanto cons tuem os critérios para
poder. Epicuro dividiu sua filosofia (fina- discriminar o bem do mal.
lizando as primeiras duas partes com a
terceira), em: 1) Lógica (chamada O homem pode também construir, por
“cânon”); 2) �sica; 3) é ca. via de meditação, par ndo das pro-
lepses, dos julgamentos. Temos assim a
Sobre a Lógica, Epicuro diz que o conhe- opinião. Neste caso, porém, falta a ga-
4
Período Helenístico

ran a da evidência e, por isso, é preciso e vivem uma vida absolutamente feliz e
um critério de avaliação. Portanto, nem beata.
todas as opiniões resultam verdadeiras,
mas apenas as que são confirmadas Sobre a É�ca, para Epicuro, o verdadei-
pela sensação ou não desmen das por ro bem é o prazer; o máximo prazer é a
ela. ausência de dor, sendo os prazeres (e as
dores) da alma superiores aos do corpo.
Sobre a Física, Epicuro diz que para fun- Com efeito, a alma sofre também por
damentar uma “ontologia materialista” causa das experiências passadas e por
é necessário tomar dos atomistas o causa das futuras, enquanto o corpo
conceito de átomo e a ideia de que não sofre apenas por aquelas presentes. A
existe geração do nada nem aniquila- ausência da dor, tanto em relação a
mento. Mas o todo (a totalidade dos alma (ataraxia) como em relação ao
átomos, que para o materialista Epicuro corpo (aponia), é considerada como
esgota a totalidade do ser) se mantem sumo prazer, porque é o único que não
idên co. O cosmo, portanto, que é infi- pode crescer ulteriormente e, portanto,
nito, é composto de “corpos” e de vazio, não pode nos deixar insa sfeitos.
e os corpos são ou simples (justamente
os átomos) ou compostos (toda a reali- Para poder alcançar a ataraxia, Epicuro
dade). dis nguiu acuradamente os vários pos
de prazeres: os naturais e necessários
O mundo, que deriva do encontro dos (comer o suficiente para matar a fome,
átomos é infinito (os átomos, com beber o suficiente para matar a sede
efeito, são infinitos de número), tanto etc.), os naturais e não necessários
no espaço como no tempo (se regenera (comer alimentos refinados, beber
infinitas vezes). Também a alma (dis n- bebidas refinadas etc.) e, por fim, os
ta em racional e irracional) é um agrega- não naturais e não necessários (os pra-
do de átomos; trata-se, porém, de zeres ligados a riqueza, as honras, ao
átomos diferentes dos outros. E ainda poder). Portanto, apenas os primeiros
átomos de caráter especial são os que devem sempre ser buscados, porque
cons tuem os deuses, cuja existência são os únicos que encontram em si um
Epicuro se mostra absolutamente certo. limite preciso; os segundos, podemos
Os deuses de Epicuro tem numerosas nos conceder apenas de vez em
caracterís cas em comum com os quando; os úl mos, que nos tornam
deuses da religião tradicional, exceto insaciáveis, nunca.
por um detalhe: não se ocupam de
modo nenhum do mundo e dos homens E o que dizer do mal �sico, do moral e
5
Período Helenístico

da morte? Não são eles obstáculos insu- Aplicando estas regras, o homem pode
peráveis que se opõem à felicidade do assumir a a tude de absoluta impertur-
homem? A resposta de Epicuro é um babilidade que dis ngue o sábio e que
não categórico. Com efeito, o mal �sico lhe concede felicidade intangível, aná-
ou é facilmente suportável, ou, se é loga a divina: com exceção da eternida-
insuportável, dura pouco e leva a de – diz Epicuro –, Zeus não possui nada
morte. E a morte não é um mal: quando mais que o sábio. A felicidade seria,
exis mos, ela não existe, e quando ela portanto, essa libertação dos desejos e
existe, nós não exis mos. Com a morte prazeres, com o obje vo de se levar
vamos para o nada. No que se refere uma vida serena e simples, própria de
aos males da alma, a filosofia está em um sábio, com uma alma imperturbá-
grau de curá-los e de nos libertar com- vel, em serenidade, para eles, em ata-
pletamente deles. raxia (do grego a, que é um prefixo de
negação, e taraxia, que quer dizer agita-
Para realizar seu ideal de vida, o ção, perturbação).
homem deve fechar-se em si e perma-
necer distante da mul dão e dos encar- A moral epicurista é uma moral hedo-
gos polí cos, que só trazem perturba- nista. O fim supremo da vida é o prazer
ção e fas o. A única ligação com os sensível; o critério único de moralidade
outros a ser cul vada deve ser a amiza- é o sen mento. O único bem é o prazer,
de, que nasce certamente pela busca como o único mal é a dor; nenhum
do ú l ou para ter determinadas vanta- prazer deve ser recusado, a não ser por
gens, mas depois, uma vez nascida, tor- causa de consequências dolorosas, e
na-se ela própria fonte autônoma de nenhum sofrimento deve ser aceito, a
prazer. não ser em vista de um prazer, ou de
nenhum sofrimento menor. No epicu-
Epicuro forneceu uma síntese de sua rismo não se trata, portanto, do prazer
mensagem no assim chamado quadri- imediato, como é desejado pelo
fármaco, ou seja, no quadruplo remé- homem vulgar; trata-se do prazer me-
dio para os males do mundo: diato, refle do, avaliado pela razão,
1) são vãos os temores dos deuses e do escolhido prudentemente, sabiamente,
além; filosoficamente. É mister dominar os
2) é absurdo o medo da morte; prazeres e não se deixar por eles domi-
3) o prazer, quando for entendido de nar; ter a faculdade de gozar e não a
modo justo, está a disposição de todos; necessidade de gozar.
4) o mal ou é de breve duração ou é
facilmente suportável. A filosofia toda está nesta função prá-
6
Período Helenístico

ca. Verdade é que Epicuro mira os pra- epicurista de eidolon, termo grego.
zeres esté cos e intelectuais, como os Segundo Virgílio, Lucrécio afirma que o
mais altos prazeres. Não sofrer no medo da morte criou o mito da imorta-
corpo, sa sfazendo suas necessidades lidade da alma. Em Da natureza das
essenciais, para estar tranquilo; não ser coisas, Lucrécio apresenta a teoria de
perturbado no espírito, renunciando a que a luz visível seria composta de
todos os desejos possíveis, visto ser o pequenas par culas. Teoria incompleta,
desejo inimigo do sossego: eis as condi- apesar de bastante consistente, é uma
ções fundamentais da felicidade, que é espécie de visão an ga da atual teoria
precisamente liberdade e paz. A sereni- dos fótons. Também neste poema,
dade do sábio não é perturbada pelo Lucrécio sustenta a ideia da existência
medo da morte, pois todo mal e todo de criaturas vivas que, apesar de invisí-
bem se acham na sensação e a morte é veis, teriam a capacidade de causar do-
a ausência de sensibilidade, portanto, enças. Esta ideia representa na realida-
de sofrimento. Nunca nos encontrare- de a base da microbiologia. Além de
mos com a morte, porque quando nós fonte preciosa para o conhecimento do
somos, ela não é, quando ela é nós não epicurismo, o poema de Lucrécio tem
somos mais. Epicuro, porém, não grande importância literária e seus
defende o suicídio que poderia jus ficar versos consagram o autor como um dos
com maior razão do que os estoicos. maiores poetas la nos.

Tito Lucrécio Caro foi um poeta e filóso- 3. Estoicismo


fo romano que viveu no século I a.C.
Lucrécio foi um epicurista que enrique- A filosofia estoica formou-se, principal-
ceu a doutrina, mas também colocou mente, pela ação de três filósofos que,
nela o seu es lo. Ele apresenta uma sin- um depois do outro, deram cada um a
gular síntese de epicurismo e materia- própria contribuição às doutrinas da
lismo atomista. Sua obra antecede Escola, chamada Estoá (termo que sig-
muitos conceitos da �sica moderna, nifica “pór co”, lugar em que os filóso-
também da psicologia contemporânea, fos se encontravam). O primeiro deles
enfim, do pensamento cien fico hoje foi Zenão de Cí o (que chegou em
aceito. Para o autor, o mundo era Atenas em 312/311 a.C.), o segundo foi
guiado pela fortuna, não por propósitos Cleanto de Assos (que dirigiu a Escola
divinos. Para Lucrécio, a alma é mortal. entre 262 e 232 aproximadamente) e o
Após o decesso, resta um simulacro, os terceiro, ao qual se deve a sistema za-
fantasmas que assombram os vivos. ção defini va da doutrina, foi Crisipo de
Deste modo, ele resgata a ideia Sôli (que foi escolarca de 232 até quase
7
Período Helenístico

o fim do século). Os estudiosos dividem tos sobre os nossos órgãos sensoriais, a


a história da Estoá em três períodos: qual se transmite à alma e nela se impri-
. a an�ga Estoá de Zenão, Cleanto e Cri- me, gerando a representação.
sipo;
. a média Estoá de Panécio e Possidô- Porém, segundo os estoicos, a repre-
nio; sentação da verdade não implica só um
. a nova Estoá de Sêneca, Epicteto e “sen r”, mas postula ademais um “as-
Marco Aurélio. sen r”, um consen r ou aprovar prove-
niente do logos que está em nossa
3.1 An�ga Estoá alma. A impressão não depende de nós,
mas da ação que os objetos exercitam
Sobre a Lógica da an ga Estoá, tanto sobre nossos sen dos; nós não somos
Zenão quanto a Estoá aceitam a tripar - livres de acolher essa ação ou de nos
ção da filosofia estabelecida pela Aca- subtrair a ela, mas estamos livres para
demia (que fora substancialmente aco- tomar posição diante das impressões e
lhida por Epicuro, como já vimos), inclu- representações que se formulam em
sive acentuando-a e não se cansando nós, dando-lhes o assen mento de
de forjar novas imagens para ilustrar do nosso logos ou recusando dar-lhes
modo mais eficaz a relação existente nosso assen mento. Só quando existe o
entre as três partes. A filosofia em seu assen mento é que temos a “apreen-
conjunto é comparada por eles a um são”. E a representação que recebeu
pomar, no qual a lógica corresponde ao nosso assen mento é representação
muro circundante, que delimita o compreensiva ou catalép ca, cons -
âmbito do pomar e que cumpre ao tuindo o único critério ou garan a de
mesmo tempo o papel de baluarte de verdade.
defesa; as árvores representam a �sica,
porque são como que a estrutura fun- Para os estoicos, a verdade própria da
damental, ou seja, aquilo sem o que representação catalép ca deve-se ao
não exis ria o pomar; finalmente, os fato de que esta é uma ação e uma mo-
frutos, que são aquilo a que todo o dificação material e “corpórea” que as
plan o visa, representam a é ca. Assim coisas produzem sobre nossa alma, pro-
como os epicuristas, os estoicos atribuí- vocando resposta igualmente material
am primariamente à lógica a tarefa de e “corpórea” por parte da nossa alma. A
fornecer um critério de verdade. E, própria verdade, segundo os estoicos, é
como os epicuristas, indicavam a base algo de material, “é um corpo”. Contu-
do conhecimento na sensação, que é do, os estoicos admi ram que passa-
uma impressão provocada pelos obje- mos da representação catalép ca
8
Período Helenístico

à intelecção e ao conceito. Admi am, Aparece, portanto, evidente que para o


ademais, “noções ou prolepses inatas estoicos o cosmo é como um imenso
na natureza humana”. E, em consequ- organismo vivo em que tudo é vida.
ência, obrigaram-se a dar conta da Todavia, neste ponto surgem dois pro-
natureza dos universais. O ser, para os blemas: 1) Como é possível que o fogo
estoicos, é sempre e somente “corpo” (natureza-Deus), que, como sabemos é
e, ademais, individual; portanto, o uni- corpóreo e material, penetre o cosmos
versal não pode ser corpo, é um incor- que é também material? É possível que
póreo, não no sen do posi vo platôni- os corpos se penetrem mutuamente? 2)
co, mas no sen do nega vo de “realida- Como pode o fogo (logos), que é único,
de empobrecida de ser”, uma espécie produzir infinidades de forma?
de ser ligado somente à a vidade do
pensamento. Para resolver o primeiro problema, os
estoicos introduziram o princípio da
Sobre a Física da an ga Estoá, o ser, infinita divisibilidade dos corpos e, por-
dizem os estoicos, se iden ficava com o tanto, admi ram a possibilidade de que
“corpo”, razão pela qual tudo o que as partes de um corpo penetrem com-
existe (também os vícios, o bem e as pletamente entre as partes de outro
virtudes) são “corpos”. E todo corpo é (princípio da “mistura total dos
formado pela ação de uma causa a va corpos”). Para responder ao segundo
com uma causa passiva, isto é, pela problema, eles representaram o logos
ação da razão (logos) sobre a matéria, como “semente de todas as coisas”, ou
produzindo entes de caráter “hilemórfi- seja, como semente capaz de gerar
co”, isto é, feitos de matéria e forma. A muitas outras sementes (razões semi-
forma de cada objeto seria, portanto, o nais). Como a semente, que é única
resultado da ação de uma única força consegue produzir a infinita variedade
racional que dá forma (definição) a um das frondes, dos ramos, das flores e dos
substrato indefinido. frutos de uma árvore, do mesmo modo
o único logos produz a infinita varieda-
Esta força racional iden fica-se com a de das formas presentes no mundo.
natureza (physis) e, portanto, com o
princípio divino, e em sen do mais Se todas as formas derivam de uma
específico, com o fogo ou sopro (pneu- única semente, elas têm reciprocamen-
ma) afogueado que penetra toda a rea- te uma relação orgânica, isto é, “simpa-
lidade, aquece-a e (segundo as concep- zam” entre si, de modo que cada parte
ções cien ficas da época, que viam no do cosmo está em conexão com todas
calor o princípio vital) lhe dá vida. as outras (princípio da “simpa a cósmi-
9
Período Helenístico

ca”). Os estoicos, além disso, não hesi- dimentos, mas tem efeito seguro. A ver-
taram em chamar de Deus esta razão dadeira liberdade, portanto, estaria em
(logos) inerente ao mundo, pelo fato de uniformizar-se ao logos, querer o que o
que ela efe vamente atende as funções Des no quer. A ideia de que o mundo
de Deus. De um lado, dá forma às seja formado de fogo implica que nele
coisas; do outro, move-as e às dispõe se manifestem, embora em tempos
racionalmente. Deste modo, eles for- diversos, os dois aspectos picos da
mularam a primeira concepção explícita a vidade do fogo, isto é, o vivificante
e sistemá ca do panteísmo, isto é, da (lembremo-nos da relação fogo-calor-
doutrina que iden fica o cosmo com -vida, mais vezes salientado) e o destru-
Deus. vo. Assim, enquanto prevalece o pri-
meiro aspecto o cosmo vive, quando
A presença do Deus-logos na realidade prevalece o segundo ele se consuma
implica que tudo seja por ele dirigido de em total combustão.
modo infalível, isto é, que tudo seja
endereçado ao melhor fim (o logos não Todavia, desta conflagração o mundo
pode errar). Neste sen do, o finalismo renascerá, e renascerá igual, porque a
universal se traduz em Providência, lei que o dirige e sempre a mesma, jus-
uma forma de providência geral. Mas tamente a do logos, e também os even-
esta forma de “providência” coincide tos da história se repe rão idên cos até
com o des no inelutável, que não é a sucessiva conflagração; e assim por
mais do que aquilo que se segue a diante. O logos que penetra o universo
ordem necessária de todas as coisas se manifesta, em par cular medida, na
devida ao logos. Aqui, porém, surge um alma humana que é fogo ou pneuma
problema: se a razão imanente implica (uma parte do fogo ou pneuma cósmi-
necessidade imanente, então, também co) e é dividida em oito partes: os cinco
o homem con nua implicado nesta sen dos, uma parte des nada a fona-
necessidade. O que será, portanto, da ção, uma a reprodução, e a parte racio-
sua livre vontade? nal chamada de “hegemônico”, ou seja,
que domina as outras.
A vontade do homem (dizem os estoi-
cos) não é livre, ou seja, ela encontra Sobre a É�ca da an ga Estoá, todos os
obstáculos que impedem sua realiza- seres vivos são dotados de um princípio
ção, apenas quando se opõe ao des no de conservação (chamado oikéiosis),
(ao logos); ao contrário, quando o que ins n vamente os leva a evitar
atende e quer aquilo que o des no aquilo que os prejudica e a buscar
quer, então não só não encontra impe- aquilo que os beneficia, que acresce seu
10
Período Helenístico

ser: em uma palavra, o bem de um ser é porque sua vontade quer aquilo que o
aquilo que lhe é benéfico, e o mal é o logos quer.
que danifica. Por conseguinte, todo ser
vivo pode e deve viver segundo a natu- Os estoicos consideravam que a oikéio-
reza, segundo a sua natureza. Ora, a sis não era um fato apenas individual,
natureza do homem é racional e a sua mas devia estender-se a família e a toda
essência é a razão. Assim, para o a humanidade, de modo a definir o
homem atuar o princípio de conserva- homem “animal comunitário” (isto é,
ção deve buscar as coisas e apenas as par cipante da comunidade humana),
coisas que incrementam sua razão e e não mais, como queria Aristóteles,
fugir das que o prejudicam. As realida- “animal polí co” (isto é, inserido na
des que correspondem a essas caracte- pólis). Esta mudança de perspec va
rís cas são a virtude e o vício, portanto, favoreceu a difusão de ideais de iguali-
apenas a virtude é “bem” e só o vício é tarismo e de aversão a escravidão
“mal”. (todos os homens par cipam do logos
e, portanto, todos os homens são
Os estoicos elaboraram também um iguais, e ninguém é por natureza escra-
quadro das ações, dis nguindo as vo). Não se deve pensar que o sábio
“ações retas” (ou moralmente perfei- provê um “sen mento” de simpa a ou
tas) e as “ações convenientes” ou “de- solidariedade com os outros homens.
veres”. A diferença entre os dois pos Com efeito, os sen mentos de miseri-
depende não da natureza da ação (uma córdia, de par cipação humana, de
mesma ação pode ser tanto dever como amor são entendidos como “paixões” e,
ação correta), mas sobretudo da inten- portanto, como vícios da alma.
ção de quem a realiza. Se quem a realiza
está em sintonia com o logos e, portan- O ideal do sábio é a “impassibilidade”
to, é um sábio, suas ações serão sempre (apa a), pela qual não se trata apenas
ações corretas; se, ao contrário, age de moderar as paixões, mas de eliminá-
sem esta consciência, suas ações, -las inteiramente, nem mesmo sen -
embora formalmente conformes a -las. E isso se compreende bem, se con-
natureza, são deveres. Disso derivam siderarmos que as paixões são a fonte
duas consequências significa vas; de do mal e do vício e se configuram como
um lado, que quem não é sábio, faça o erros do logos. É claro, portanto, que os
que fizer, jamais realizará uma ação cor- erros não podem ser moderados ou
reta; do outro, que quem é sábio, qual- atenuados, mas devem ser cancelados.
quer coisa queira ou faça, realizará
sempre ações corretas, justamente
11
Período Helenístico

3.2 Média Estoá cos e não os puramente teoré cos, jun-


tamente com as caracterís cas par cu-
A média Estoá, desenvolvida nos séc. II-I lares do momento histórico, é que nos
a.C., teve como representantes Panécio permitem explicar com facilidade a cur-
de Rodes e Possidônio de Apaméia, vatura especial sofrida pela problemá -
que, embora deixando intacto os funda- ca da úl ma época do estoicismo:
mentos da doutrina, corrigiram alguns a) Em primeiro lugar, o interesse pela
pontos dela, em perspec va eclé ca. é ca, sem dúvida tornou-se predomi-
Panécio desenvolveu a doutrina dos nante na Estoá romana da época impe-
deveres; Possidônio empenhou-se em rial e, em alguns pensadores, quase
colocar a filosofia estoica a par do pro- exclusivo;
gresso cien fico de seus tempos. b) O interesse pelos problemas lógicos e
�sicos reduziu-se consideravelmente e
3.3 Nova Estoá a própria teologia, que era uma parte
da �sica, assumiu colorações que pode-
Por fim, analisaremos a Nova Estoá, o mos qualificar pelo menos de exigen-
chamado neo-estoicismo, o estoicismo cialmente espiritualistas;
romano. O úl mo grande florescimento c) Reduzidos consideravelmente os
da filosofia do Pór co deu-se em Roma, laços com o Estado e com a sociedade,
onde assumiu caracterís cas peculiares o indivíduo passou a buscar a própria
e específicas, tanto que os historiadores perfeição na interioridade da consciên-
da filosofia u lizam unanimemente o cia, criando assim um clima in mista,
termo “neo-estoicismo” para designá- nunca encontrado até então na filoso-
-lo. A propósito, deve-se observar que o fia, pelo menos nessa medida;
estoicismo foi a filosofia que, em Roma, d) Irrompeu forte sen mento religioso,
sempre teve maior número de seguido- transformando de modo bastante acen-
res e admiradores, tanto no período tuado a tempera espiritual da velha
republicano como no período imperial. Estoá. Mais ainda: nos escritos dos
Aliás, o desaparecimento da República, novos estoicos encontramos inclusive
com a consequente perda de liberdade uma série de preceitos que lembram
do cidadão, fortaleceu notavelmente preceitos evangélicos paralelos, como o
nos espíritos mais sensíveis o interesse parentesco comum de todos os homens
pelos estudos em geral e pela filosofia com Deus, a fraternidade universal, a
estoica em par cular. Ora, precisamen- necessidade do perdão, o amor ao pró-
te as caracterís cas gerais do espírito ximo e até o amor por aqueles que nos
romano, que se sen a como verdadei- fazem mal;
ramente essenciais os problemas prá - e) O platonismo, inspirou não poucas
12
Período Helenístico

páginas dos estoicos romanos, com e corpo com acentos que não raramen-
suas novas caracterís cas “médio-pla- te recordam de perto o Fédon platôni-
tônicas”. Em especial, merece relevo o co. O corpo é peso, vínculo, cadeia,
fato de que o conceito de filosofia e de prisão da alma; a alma é o verdadeiro
vida moral como “assimilação a Deus” e homem, que tende a libertar-se do
como “imitação de Deus” passou a corpo para alcançar sua pureza. É evi-
exercer influência inequívoca. dente que essas concepções a ngem as
afirmações estoicas de que a alma é
Um dos seus grandes representantes foi corpo, substância pneumá ca, afirma-
Lúcio Aneu Sêneca. Nasceu em Córdo- ções que Sêneca, no entanto, reafirma.
ba, na Espanha, entre o fim da era pagã
e o início da era crista. Em Roma, par - A verdade é que, em nível intui vo,
cipou a vamente e com sucesso da vida Sêneca vai além do materialismo estoi-
polí ca. Condenado por Nero ao suicí- co; depois, porém, faltando-lhe as cate-
dio em 65 d.C., Sêneca matou-se com gorias ontológicas para fundamentar e
estoica firmeza e admirável força de desenvolver tais intuições, as deixa sus-
espírito. Sêneca é um dos expoentes da pensas no ar. Ainda com base na análise
Estoá em que mais se evidenciam a psicológica, da qual é mestre, Sêneca
oscilação em relação ao pensamento de descobre a “consciência” (conscien a)
Deus, a tendência a sair do panteísmo e como força espiritual e moral funda-
as instâncias espiritualistas de que fala- mental do homem, colocando-a em pri-
mos, inspiradas em acentuado sopro meiro plano. A consciência é o conheci-
religioso. Na verdade, em muitas passa- mento do bem e do mal, originário e
gens, Sêneca parece perfeitamente ineliminável. Ninguém pode esconder-
alinhado com o dogma panteísta da -se dela, porque o homem não pode
Estoá que afirma ser Deus a Providencia esconder-se de si mesmo.
imanente, a Razão intrínseca que
plasma a matéria, é a Natureza. Como vimos, a Estoá insis a no fato de
que a “disposição de espírito” determi-
Entretanto, onde a reflexão de Sêneca é na a moralidade da ação. Entretanto,
mais original, ou seja, no captar e inter- em conformidade com a tendência fun-
pretar o sen mento do divino, seu Deus damentalmente intelectualista de toda
assume traços espirituais e até pesso- a é ca grega, essa disposição de espíri-
ais, que ultrapassam os marcos da onto- to deriva do “conhecimento”, que é pró-
logia estoica. Um fenômeno análogo prio do sábio e nele se resolve. Indo
descobre-se também na psicologia. além, Sêneca fala expressamente de
Sêneca destaca o dualismo entre alma “vontade”. E mais: pela primeira vez no
13
Período Helenístico

pensamento clássico, fala da vontade eram inteiramente iguais. A única no-


como de uma faculdade dis nta do breza que tem sen do é a que o
conhecimento. Nessa descoberta, homem constrói para si na dimensão do
Sêneca foi ajudado de modo determi- espírito. E eis a norma que Sêneca
nante pela língua la na: com efeito, o propõe para regular o modo como o
grego não tem um termo que corres- senhor deve se comportar em relação
ponda perfeitamente a voluntas. Entre- ao escravo e o superior em relação ao
tanto, não soube dar um adequado fun- inferior: “Comporta-te com os inferio-
damento teoré co a essa descoberta. res como gostarias que se comportas-
sem con go aqueles que te são supe-
Outro traço diferencia Sêneca da an ga riores.” Trata-se de máxima que se
Estoá, bem como da totalidade dos filó- aproxima bastante do espírito evangéli-
sofos gregos: o acentuado sen do de co.
pecado e de culpa de que cada homem
está maculado. O homem é estrutural- No que se refere as relações entre os
mente pecador. E, indubitavelmente, homens em geral, Sêneca põe como
essa é uma afirmação que se coloca em fundamento a fraternidade e o amor. A
clara an tese em relação à pretensão passagem seguinte expressa seu pensa-
de perfeição que, dogma camente, o mento de modo paradigmá co: “A
estoico an go atribuía ao seu sábio. natureza nos produz como irmãos,
Sêneca já pensava diferente: se alguém gerando-nos dos mesmos elementos e
nunca pecasse, não seria homem; o des nando-nos aos mesmos fins. Ela
próprio sábio, enquanto permanece inseriu em nós um sen mento de amor
homem, não pode deixar de pecar. No recíproco, com que nos fez sociáveis,
âmbito da Estoá, Sêneca talvez tenha deu a vida uma lei de equidade e jus ça
sido o pensador que mais acentuada- e estabeleceu, segundo os princípios
mente contrariou a ins tuição da escra- ideais de sua lei, que é coisa mais
vidão e as dis nções sociais: o verdadei- mísera ofender que ser ofendido. Ela
ro valor e a verdadeira nobreza são ordena que nossas mãos estejam
dados somente pela virtude, que está sempre prontas a fazer o bem. Conser-
indis ntamente a disposição de todos, vemos sempre no coração e nos lábios
pois exige unicamente o “homem nu”. aquele verso: 'Sou homem e não consi-
dero estranho a mim nada do que é
A nobreza e a escravidão social depen- humano. Tenhamos sempre presente
dem da sorte; todos incluem servos e esse conceito de que nascemos para
nobres entre seus mais an gos ante- viver em sociedade. E nossa sociedade
passados; na origem, todos os homens humana é precisamente semelhante a
14
Período Helenístico

um arco de pedras que não cai justa- vontade de ser sábio não basta. É preci-
mente porque as pedras, opondo-se so transformar este impulso entusiás -
umas às outras, sustentam-se recipro- co em estado constante. Para isso, é
camente e, assim, sustentam o arco”. preciso confrontar-se com dificuldades
reais. Por exemplo, mesmo quando
Sêneca é provavelmente um dos filóso- temos muito dinheiro, devemos exerci-
fos mais famosos do estoicismo. Exilado tar-nos em viver na pobreza.
por Calígola, por não ter desposado sua
irmã, é chamado de volta por Agripino Além de Sêneca, Epiteto também foi
que o encarrega da educação de Nero, um grande filósofo grego estoico que
do qual se tornará o conselheiro e, por viveu a maior parte de sua vida em
fim, ele recebe a ordem do próprio Roma, como escravo a serviço de Epa-
Nero de suicidar-se. Sua obra “Cartas a frodito, o cruel secretário de Nero que,
Lucílio” con nua ainda hoje nos ensi- segundo a tradição, uma vez lhe que-
nando como devemos viver e enfrentar brou uma perna. Apesar de sua condi-
os problemas da vida. Eis algumas lições ção, conseguiu assis r as preleções do
de Sêneca: famoso estoico Caio Musônio Rufo.
1) Um sábio deve saber desposar o Como viver uma vida plena, uma vida
evento, agindo ao mesmo tempo de tal feliz? Como ser uma pessoa com boas
forma que a fortuna não o pegue des- qualidades morais? Responder a essas
prevenido. Fortuna era a deusa romana duas perguntas fundamentais foi a
do acaso, da sorte (boa ou má), do des- única paixão de Epiteto. Embora suas
no e da esperança. obras sejam menos conhecidas hoje,
2) Ele deve apreciar seus bens sem ape- em função do declínio do ensino da cul-
gar-se a eles, cumprir suas funções, mas tura clássica, veram enorme influência
saber re rar-se se elas causam preocu- sobre as ideias dos principais pensado-
pações. res da arte de viver durante quase dois
3) Ele deve ser senhor de sua própria mil anos. Para Epiteto, uma vida feliz e
vida. Ele deve parar de aceitar que o uma vida virtuosa são sinônimos. Felici-
tempo lhe seja roubado. Deve aprovei- dade e realização pessoal são consequ-
tar cada dia como se fosse o úl mo e, ências naturais de a tudes corretas. Em
acima de tudo, ele não deve temer a Nietzsche, Epiteto é ligado ao individua-
morte. lismo, de modo que Nietzsche vê em
4) Por fim, ele deve buscar a companhia Epiteto portanto um contraste em rela-
de amigos verdadeiros. ção a moralidade atual ligada ao cole -
vo e ao social. Em seu Manual, ele nos
Mas, para alcançar isso tudo, apenas a ensina que:
15
Período Helenístico

1) Há coisas que dependem de nós e há dido e culto; dedicou-se à filosofia,


outras que não dependem de nós. Toda especialmente à corrente filosófica do
a infelicidade dos seres humanos deve- estoicismo, e escreveu uma obra que
-se ao fato de que eles confundem o até hoje é lida, Meditações.
que está em seu poder e o que não está
em seu poder. Por isso, desejam o que Em Marco Aurélio, a questão central da
não depende deles, tornando-se escra- filosofia é o problema de como se deve
vos dos acontecimentos. O obje vo de encarar a vida para que se possa viver
Epicteto é que nos tornamos senhor de bem. O problema é tratado com grande
nós mesmos, vivendo assim uma vida dedicação por esse homem religioso e
sem perturbações. pouco interessado na inves gação cien-
2) Não são as coisas que perturbam os fica. Em seus pensamentos, são bem
seres humanos, mas as avaliações que visíveis as tendências eclé cas. Ele
eles fazem das coisas. O que isso signifi- retoma ideias e exemplos de sabedoria
ca? Que os males não vêm da natureza, que vêm desde Epicuro. O estoicismo
mas de nossas próprias avaliações. de Marco Aurélio apresenta divergên-
3) Devemos desempenhar bem o nosso cias em relação às origens gregas. Para
papel. O ser humano é um ator numa compreender suas oscilações, é impor-
peça que ele não escolheu. Ou como diz tante levar em conta as circunstâncias
Shakespeare, “o mundo inteiro é um históricas em que viveu, mais que suas
palco e todos os homens e mulheres caracterís cas psicológicas.
não passam de meros atores. Eles
entram e saem de cena e cada um no Em suma, no pensamento dos estóicos,
seu tempo representa diversos papéis”. o fim supremo, o único bem do homem,
Uma vida bem-sucedida é aquela em não é o prazer, a felicidade, mas a virtu-
que se terá cumprido da melhor manei- de; não é concebida como necessária
ra seu papel. condição para alcançar a felicidade, e
sim como sendo ela própria um bem
Marco Aurélio foi o úl mo grande imediato. Com o desenvolvimento do
representante da escola estoica. Ele foi estoicismo, todavia, a virtude acaba por
imperador romano desde 161 até sua se tornar meio para a felicidade da tran-
morte. Seu reinado foi marcado por quilidade, da serenidade, que nasce da
guerras na parte oriental do Império virtude nega va da apa a, da indiferen-
Romano contra os partas, e na fronteira ça universal. A felicidade do homem
norte, contra os germanos. Foi o úl mo virtuoso é a libertação de toda pertur-
dos cinco bons imperadores, e é lem- bação, a tranquilidade da alma, a inde-
brado como um governante bem-suce- pendência interior, a autarquia. Como o
16
Período Helenístico

bem absoluto e único é a virtude, assim pessoa com “perfeição moral e intelec-
o mal único e absoluto é o vício. A tual” não sofreria dessas emoções. Eles
paixão, na filosofia estoica, é sempre e preocupavam-se com a relação entre o
substancialmente má; pois é movimen- determinismo cósmico e a liberdade
to irracional, morbo e vício da alma - humana e com a crença de que é virtuo-
quer se trate de ódio, quer se trate de so manter uma vontade que esteja de
piedade. De tal forma, a única a tude acordo com a natureza. O estoicismo
do sábio estoico deve ser o aniquila- ensina, também, o desenvolvimento do
mento da paixão, até a apa a. autocontrole e da firmeza como um
meio de superar emoções destru vas.
O ideal é co estoico não é o domínio “A virtude consiste em um desejo que
racional da paixão, mas a sua destruição está de acordo com a Natureza”.
total, para dar lugar unicamente à
razão: maravilhoso ideal de homem Este princípio também se aplica ao con-
sem paixão, que anda como um deus texto das relações interpessoais: “liber-
entre os homens. Daí a guerra jus fica- tar-se da raiva, da inveja e do ciúme” e
da do estoicismo contra o sen mento, a aceitar até mesmo os escravos como
emoção, a paixão, donde derivam o “iguais aos outros homens, porque
desejo, o vício, a dor, que devem ser todos os homens são igualmente pro-
aniquilados. O estoico pra ca esta indi- dutos da natureza”. Os dois grandes
ferença e renúncia para não ser pertur- males do mundão são: a nostalgia e a
bado, magoado pela possível e frequen- esperança, o apego ao passado e a pre-
te carência dos bens terrenos, e para ocupação com o futuro. Eles nos levam
não perder, de tal maneira, a serenida- a perder o instante presente e nos
de, a paz, o sossego, que são o verda- impedem de viver plenamente. A vida
deiro, supremo, único bem da alma. O boa é a vida sem esperanças e sem
sábio é beato, porque, inteiramente temores, a vida reconciliada com o que
fechado na sua torre de marfim, nada é, a existência que aceita o mundo tal
lhe acontece que não seja por ele queri- como é.
do, e se conforma com o demais, sem
saudades e sem esperanças; pois sabe 4. Ce�cismo
que tudo é efeito de um determinismo
universal. Pirro de Élida (360-270 a.C.) foi o maior
nome dessa corrente filosófica. Ele
Os estoicos ensinavam que as emoções rou suas conclusões depois de par ci-
destru vas resultavam de erros de par das expedições de Alexandre o
julgamento e que um sábio ou uma Grande, onde percebeu, ao ter contato
17
Período Helenístico

com diversas culturas, que não há como acontecimento, dado, justamente, que
se ter conhecimento do que seja verda- este é pura aparência. O sucesso de
deiro ou falso, e que a maior sabedoria Pirro foi notável e isso mostra como o
que o homem poderia alcançar é a acei- seu modo de ver estava em sintonia
tação desse fato. E negar isso é a causa com o de sua época.
de todos os males e infelicidades.
Segundo Pirro, as coisas são em si indi- Outros filósofos con nuaram o pensa-
ferenciadas, incomensuráveis e indiscri- mento cé co, embora alguns destes
mináveis, ou seja, não têm em si uma tenham considerado o ce cismo de
essência estável, e por isso seu ser se forma diferente, como os da chamada
reduz a puras aparências. Seu caráter terceira Academia, que teve como
de provisoriedade e de inconsistência representante inicial Carnéades de
emerge sobretudo quando as compara- Cirene no século II a.C. Houve ainda
mos com a natureza do divino, que é alguns pensadores viventes da era
absolutamente estável e sempre igual. cristã que retomaram o ce cismo mais
rigoroso, entre eles Sexto Empírico, do
Se as coisas assim se apresentam, os século II d.C. Definir o ce cismo como
sen dos e a razão não estão em grau de escola pode ser algo controverso, uma
discriminar a verdade e a falsidade. Por- vez que ele rejeita o dogma smo – o
tanto, o homem deve permanecer sem próprio Sexto Empírico comenta que o
opinião e abster-se de qualquer julga- ce cismo apenas teria uma escola
mento defini vo. Por conseguinte, não enquanto fosse conduta de vida, e não
tem sen do agitar-se por nenhum mera ins tuição enraizada em um
acontecimento, dado, justamente, que dogma.
este é pura aparência. A a tude que o
sábio deverá assumir é a da afasia, ou 5. Ecle�smo
seja, o calar e jamais expressar qual-
quer julgamento defini vo, e assim O ecle smo (do grego eklek kos,
a ngir a ataraxia ou imperturbabilida- eleger) foi uma abordagem da filosofia
de (não se deixará perturbar por nada). que, ao invés de ter suas próprias dou-
Pondo-se a parte de tudo aquilo que trinas rígidas, selecionava dentre as
pode perturbá-lo ou tocá-lo, o sábio convicções filosóficas existentes, aque-
poderá viver a vida “mais igual” e, por- las doutrinas que pareciam mais razoá-
tanto, viver feliz. Portanto, o homem veis para cada caso. Buscaram fazer um
deve permanecer sem opinião e abster- consenso entre as diversas outras esco-
-se de qualquer julgamento defini vo. las filosóficas. Alguns filósofos de outras
Não faz sen do agitar-se por nenhum escolas podem ser considerados eclé -
18
Período Helenístico

cos. Esse é o caso dos estoicos Panécio Elementos apresentou de modo siste-
(150 a.C.) e Posidônio (75 a.C.) e dos má co e rigoroso todas as descobertas
novos acadêmicos Carneades (155 a.C.) da geometria helênica, segundo a me-
e Filo de Larissa (75 a.C.). O sistema todologia fornecida por Aristóteles na
eclé co, caracterís co de culturas cos- sua lógica, ou seja, sobre a base de defi-
mopolitas como Roma, não se restrin- nições, postulados e axiomas (que são
giu a filosofia, avançando pelas artes, especificações do princípio de não-con-
ciências, religiões e polí ca. Marco Túlio tradição). No âmbito da geometria é
Cícero foi o representante do estoicis- necessário também mencionar o nome
mo em Roma. Ele foi um advogado, po- de Apolônio de Perga (séc. III a.C.) por
lí co, escritor, orador e filósofo da gens seus estudos fundamentais sobre as
Túlia da República Romana eleito cônsul secções cônicas.
em 63 a.C. com Caio Antônio Híbrida.
No que se refere a mecânica o nome de
6. A Ciência na Era Helenís�ca maior destaque é o de Arquimedes
(287-212 a.C.), que foi um gênio, pois
A grande expedição de Alexandre no ocupou-se de hidrostá ca, de está ca
Oriente teve, entre outras coisas, o (descobriu as leis da alavanca), de ma-
efeito de deslocar de Atenas o baricen- temá ca e de engenharia. Par cular
tro da cultura de língua grega. Sobretu- consideração merece o desenvolvimen-
do a cien fica encontrou sede ideal em to da astronomia, pelas relações que
Alexandria (fundada em 332 a.C.). Aqui, ela teve com a filosofia.
promovido pela dinas a dos Ptolo-
meus, nasceu o Museu (que significa A concepção astronômica dos gregos
Ins tuição consagrada as Musas), ao era geocêntrica e os astrônomos imagi-
qual estava anexa à Biblioteca: o primei- navam que os corpos celestes es ves-
ro con nha os laboratórios cien ficos, a sem colocados sobre uma esfera imagi-
segunda todos os livros que era possível nária. Já Platão percebera que a rotação
recolher (várias centenas de milhares). perfeitamente circular não bastava para
Como efeito dessas ins tuições houve o explicar coerentemente os movimentos
grande florescimento da ciência que, da dos planetas. Eudóxio, Calipo e Aristó-
filosofia, ampliou-se para a gramá ca, a teles procuraram introduzir estas ano-
geografia, a medicina, a geometria, a malias no modelo geral das esferas con-
mecânica e a astronomia. cêntricas, mul plicando-as. Todavia foi
Hiparco de Nicéia que forneceu uma
Na geometria sobressai o nome de explicação das anomalias das revolu-
Euclides (330-277 a.C.), que nos seus ções dos planetas, introduzindo a hipó-
19
Período Helenístico

tese de uma órbita excêntrica do sol. mais prá cas. Há, assim, a decadência
Além desses astrônomos é digno de da ciência, com exceção da astronomia
menção Aristarco de Samos (século II a. (com Ptolomeu) e da medicina (com
C.), que procurou superar a hipótese Galeno).
geocêntrica e desenhou um modelo do
cosmo em que todos os astros giram 7. Neo-Aristotelismo, Médio-Pla-
em torno do sol. tonismo e Neopitagorismo
Não sem implicações filosóficas foi A Escola peripaté ca ou Peripatoi (do
também o desenvolvimento da medici- grego, que caminha), fundada por Aris-
na (especialmente dos estudos anatô- tóteles, permaneceu exis ndo ao longo
micos-fisiológicos) e da geografia, que da época helenís ca. Aristóteles
alçou tal precisão de cálculo de modo a morreu um ano após Alexandre e a dire-
permi r que Erastótenes avaliasse com ção do Liceu ficou a cargo de Teofrasto.
boa aproximação as dimensões da O pensamento aristotélico se manteve
terra. como base fundamental, embora novas
tendências na noção de universalidade
Em uma avaliação da ciência helenís ca tenham se estabelecido. Chegando ao
salta aos olhos o caráter especializado século I a.C., Andrônico de Rodes gerou
que ela assumiu, bem como sua auto- uma nova tendência para a filosofia, de
nomia tanto em relação a religião como produzir comentários acerca das obras
em relação com a filosofia, autonomia do mestre, atendo-se destaque em par-
que lhe adveio sobretudo a par r da cular à figura de Aristóteles. Para os
sua origem aristotélico-peripaté ca. peripatos o modo de obter a felicidade
Mas a independência da filosofia vale estava em encontrar a moderação
apenas quanto ao objeto de pesquisa (média) entre dois extremos (ausência
(que no caso da ciência é parcial e espe- e excesso). Assim, para uma vida de
cífico, e no caso da filosofia é universal e virtudes era importante um equilíbrio
geral), e não quanto a intenção que per- entre razão, hábitos e natureza.
maneceu contempla va, isto é, teoré -
ca. O médio platonismo ou platonismo
eclé co, segundo alguns estudiosos do
Já a ciência na era imperial romana, séculos XIX e XX, refere-se à interpreta-
depois da destruição da Biblioteca de ção dada à filosofia de Platão durante
Alexandria, desloca o centro da pesqui- os primeiros séculos da era imperial (do
sa cultural e cien fica de Alexandria século I a.C. ao século II d.C.). O médio-
para Roma, assumindo caracterís cas -platonismo seria, assim, a forma de
20
Período Helenístico

platonismo surgida depois da morte de tases (substâncias): o Uno, a Inteligên-


An oco de Ascalão, filósofo acadêmico cia/Espírito e a Alma. Todo ser subsiste
eclé co do século I a.C., e cujos desen- é aquilo que é em virtude de sua “uni-
volvimentos seguem até o início do dade”, a qual é superior ao ser, porque é
século III d.C. sua causa. No vér ce da realidade uma
hipóstase, o Uno-bem, capaz de dar
O neopitagorismo surgiu no século I unidade a todas as coisas, de infinita
a.C., em que a doutrina pitagórica era potência.
revivida por alguns filósofos da época –
logo, estaria assim incluída dentre as Todavia, nosso raciocínio pode captar
escolas filosóficas helenís cas. Aparen- apenas entes finitos e conotações defi-
temente, não haveria muita originalida- nidas das coisas. Por conseguinte, deste
de nessa doutrina, sendo ela apenas Um supremo se pode falar prevalente-
uma retomada do pitagorismo anterior, mente em termos nega vos, ou seja,
com suas caracterís cas bem reconhe- pode-se dizer sobretudo o que não é.
cidas, dentre elas a valorização dos nú- Ou se pode falar dele em termos posi -
meros como elementos essenciais para vos, mas por via analógica: por exem-
a compreensão e a cons tuição do uni- plo, pode-se dizer que é pensamento,
verso e o mis cismo, caracterizado pela entendendo com isso que se “asseme-
crença na mudança da alma de um lha” ao pensamento, mas, na realidade,
corpo a outro. Considera-se também é “super-pensamento”; ou se pode
que, em seus textos, os representantes dizer que é “vida”, mas na realidade é
de tal doutrina teriam caracterís cas “super-vida”. Plo no também se põe o
que futuramente passaram a ser problema, totalmente novo no pensa-
comuns ao neoplatonismo, que surgiria mento grego, do por que o Uno existe, e
posteriormente. por que é o que é.

8. O Neoplatonismo de Plo�no A esta pergunta ele responde, introdu-


zindo o revolucionário conceito de “au-
Amônio Sacas fundou a Escola Neopla- tocriação”. O Uno existe porque se
tônica de Alexandria. Entre seus discí- auto-criou; e é aquilo que é, ou seja,
pulos sobressai Plo no (205-270 d.C.), o Bem absoluto, porque quis ser no
úl mo dos grandes pensadores gregos melhor modo possível. Outro problema
que, com um imponente sistema, se de grande importância meta�sica é
coloca, em certa medida, no mesmo “por que e como do Uno derivaram as
plano de Platão e Aristóteles. Para Plo - coisas”; com efeito, se o Uno gozava já
no a realidade se ar cula em três hipós- de absoluta perfeição, por qual mo vo
21
Período Helenístico

produziu algo diferente de si? Plo no deiro e próprio. O Uno devia produzir o
responde, notando primeiro que o Espírito se queria se atuar como pensa-
gerar do Uno não o empobrece (como a mento.
luz produzida por uma fonte não empo-
brece aquela fonte), e além disso que o Desse processo temos consequências
gerado é sempre de natureza inferior significa vas: 1) antes de tudo, o Nous,
em relação àquele que gera. Inteligência ou Espírito, se qualifica
como Ser (o cosmo inteligível das ideias
A geração dos entes a par r do Uno não que contem), como Pensamento (a
deve ser entendida como “emanação”, a vidade que desenvolve) e como Vida
mas como “processão”, fruto de uma (justamente enquanto vida de pensa-
a vidade par cular. Para sermos preci- mento); 2) em segundo lugar, com o
sos, o Uno (como qualquer outra hipós- pensamento nasce a mul plicidade sob
tase) tem duas a vidades: 1 - uma, cha- a forma de dualidade de “pensamento”
mada a vidade do Uno, que lhe permi- e “pensado”. Além disso, devemos
te subsis r; 2 - outra, chamada a vida- salientar que a produção de toda reali-
de a par r do Uno, que faz com que do dade, a “criação” em geral e em par cu-
Uno derivem todas as coisas. E se a pri- lar, ocorre por meio da “contemplação”,
meira é a vidade livre, a segunda é e os dois termos criação e contempla-
necessária, como é necessário que, ção em sen do filosófico se iden ficam.
uma vez acesa a chama, desta derive o
calor. De um ponto de vista meta�sico, Como o Uno para pensar deve tornar-se
poderemos dizer que o Uno deve gerar Espírito, também para criar deve tor-
as outras hipóstases para realizar toda a nar-se Alma. E o modo de produção da
sua potência infinita. Alma por parte do Espírito é idên co ao
do Espírito por parte do Uno: também
A par r do Uno, observa Plo no, deriva aqui é preciso dis nguir a a vidade do e
uma potência informe (que é como ma- a a vidade a par r de (desta vez do e a
téria inteligível), a qual, para subsis r, par r do Espírito), ou seja, o nascimen-
deve voltar-se para contemplar o princí- to de uma potência, a definição desta
pio do qual derivou, e depois deve auto- potência por via de contemplação
contemplar-se. Quando a matéria inteli- (desta vez do Espírito e, através do Espí-
gível contempla o Uno, ela “se fecun- rito, do Uno) e, por fim, a autocontem-
da”, ou seja, se enche das Ideias, enten- plação (da Alma).
didas no sen do platônico do verdadei-
ro ser; quando, ao contrário, se auto- Como, à medida que nos afastamos do
contempla, nasce o pensamento verda- Uno, a força unificante diminui, a Alma
22
Período Helenístico

como hipóstase perde em parte a forte entende como momento passivo, mas
unidade, que era própria do Espírito e como “pensamento oculto” da alma.
ainda mais do Uno. A Alma se ar cula
em três almas: 1) a Alma Suprema, que A condição ideal da alma é a liberdade;
contempla a hipóstase superior; 2) a mas esta se obtém apenas na tensão
Alma do Todo, que é a que cria o para o Bem, ou seja, mediante a separa-
mundo; 3) e, por fim, as almas par cu- ção do corpóreo e a reunião com o Uno.
lares, que dão vida aos corpos. Exata- Exatamente nisso está o vér ce da é ca
mente porque a tarefa da Alma é a de plo niana, na “unificação” (ou, como
criar o cosmo, dando-lhe vida, ela se também diz, no “êxtase”), ou seja, na
encontra, por assim dizer, dividida no capacidade de despojar-se de tudo, de
mundo material, sem, por isto, perder toda alteridade e de unir-se ao Uno. Tal
toda sua unidade, porque – diz Plo no i nerário é chamado também de via do
– ela se encontra toda em tudo. “retorno” ou da “conversão”, enquanto
devolve o homem às origens de seu ser.
Também a matéria, apesar da sua nega-
vidade, tem razão de ser no sistema 9. Fim da Filosofia Pagã
plo niano. Ela cons tui a etapa extre-
ma da processão a par r do Uno, em O fim da filosofia pagã an ga tem data
que a potência que deriva do Uno se oficial, ou seja, 529 d.C., ano em que
enfraqueceu, a ponto de não ter mais a Jus niano proibiu aos pagãos qualquer
força para contemplar. E, uma vez que a o�cio público e, portanto, também a
contemplação é a força que permite possibilidade de manter escolas e ensi-
criar, a matéria é um nega vo. Mas, nar. Eis um trecho significa vo do Códex
enquanto ela é vivificada e como que de Jus niano: “Nós proibimos que seja
resgatada pela Alma, de algum modo ensinada qualquer doutrina por parte
espelha as formas das hipóstases supe- daqueles que estão afetados pela lou-
riores e assume, à medida do possível, o cura dos ímpios pagãos. Por isso, que
posi vo. nenhum pagão simule estar instruindo
aqueles que, desventuradamente, fre-
O homem é fundamentalmente sua quentam sua casa enquanto, na realida-
alma, e a alma humana é um momento de, nada mais está fazendo do que cor-
da hipóstase Alma, da qual par cipa o romper as almas dos discípulos. Ade-
caráter de a vidade; portanto, também mais, que não receba subvenções públi-
quando está no corpo, a alma exercita cas, já que não tem nenhum direito
todas as a vidades cognosci vas, derivado de escrituras divinas ou de
incluindo a sensação, que Plo no não éditos estatais para obter licença para
23
Período Helenístico

coisas desse gênero. Se alguém, aqui manas e do próprio pensamento.


(em Constan nopla) ou nas províncias,
resultar culpado desse crime e não se Trata-se de uma ins tuição cultural pi-
apressar a retornar ao seio de nossa camente grega que, por razões históri-
santa Igreja, juntamente com sua famí- cas e polí cas, tornou-se o modo de
lia, ou seja, juntamente com a mulher e pensar e de se exprimir predominante
os filhos, recairá sob as referidas san- da chamada cultura europeia ocidental,
ções, suas propriedades serão confisca- da qual, devido à colonização europeia
das e ele próprio será enviado ao exí- das Américas, também fazemos parte –
lio”. ainda que de modo inferiorizado e colo-
nizado. Dizer que a filosofia é pica-
Esse édito é sem dúvida muito impor- mente grega não significa, evidente-
tante para o des no da filosofia greco- mente, que outros povos, como os chi-
-pagã, bem como a data em que foi pro- neses, os hindus, os japoneses, os
mulgado. Entretanto, devemos destacar árabes, os persas, os hebreus, as socie-
que o ano de 529 d.C., como todas as dades africanas ou as indígenas da
datas que abrem ou encerram uma América não possuam sabedoria, pois
época, nada mais faz do que sancionar possuíam e possuem.
com um acontecimento de repercussão
aquilo que já era realidade produzida Também não quer dizer que todos esses
por toda uma série de acontecimentos povos não vessem desenvolvido o
anteriores. O édito de 529 d.C., portan- pensamento e formas de conhecimento
to, nada mais fez do que acelerar e esta- da natureza e dos seres humanos, pois
belecer de direito aquele fim ao qual, desenvolveram e desenvolvem. Quan-
de fato e por si mesma, a filosofia pagã do se diz que a filosofia é grega, o que
an ga estava des nada inexoravelmen- se quer dizer é que ela apresenta certas
te. caracterís cas e certas formas de
pensar e de exprimir os pensamentos,
10. O Legado da Filosofia Grega estabelece certas concepções sobre o
que sejam a realidade, a razão, a lingua-
A filosofia pode ser entendida como gem, a ação, as técnicas, completamen-
aspiração ao conhecimento racional, te diferentes das formas de pensar de
lógico, demonstra vo e sistemá co: outras culturas.
a) da realidade natural e humana;
b) da origem e das causas da ordem do Quando nos acercamos da filosofia nas-
mundo e de suas transformações; cente, podemos perceber os principais
c) da origem e das causas das ações hu- traços que definem a a vidade filosófi-
24
Período Helenístico

ca na época de seu nascimento: Essa capacidade racional é a síntese.


I) Tendência à racionalidade, pois os Por exemplo, para meus olhos, meu
gregos foram os primeiros a definir o tato e meu olfato, o gelo é diferente da
ser humano como animal racional, ou neblina, que é diferente do vapor de
seja, foram os primeiros a considerar uma chaleira, que é diferente da chuva,
que o pensamento e a linguagem defi- que é diferente da correnteza de um
nem a razão, que o homem é um ser rio. No entanto, o pensamento mostra
dotado de razão e que a racionalidade é que se trata sempre de um mesmo ele-
seu traço dis n vo. Mesmo que a razão mento (a água), que passa por diferen-
humana não possa conhecer tudo, tudo tes estados e formas (líquido, sólido,
o que ela pode conhecer conhece plena gasoso) em decorrência de causas natu-
e verdadeiramente, e ela é a condição rais diferentes (condensação, liquefa-
de todo conhecimento verdadeiro. Por ção, ebulição). O pensamento generali-
isso mesmo, a própria razão ou o pró- za, isto é, encontra sob as diferenças a
prio pensamento deve conhecer as leis, iden dade ou a semelhança, reúne os
regras, princípios e normas de suas ope- traços semelhantes e faz uma síntese.
rações e de seu exercício correto. IV) Capacidade de diferenciação, isto é,
II) Recusa de explicações preestabeleci- de mostrar que fatos ou coisas que apa-
das e, por isso mesmo, exigência de que recem como iguais ou semelhantes são,
para cada fato seja encontrada uma na verdade, diferentes, quando exami-
explicação racional e que para cada pro- nados pelo pensamento ou pela razão.
blema ou dificuldade sejam inves ga- Essa capacidade racional é a análise.
das e encontradas as soluções que eles
exigem. Um exemplo nos ajudará a compreen-
III) Tendência à argumentação e ao der como procede a análise. Em 1992,
debate para oferecer respostas conclu- no Brasil, jovens estudantes pintaram a
sivas a questões, dificuldades e proble- cara com as cores da bandeira nacional
mas, de modo que nenhuma solução e saíram às ruas para exigir a des tui-
seja aceita se não houver sido demons- ção do presidente da República. Logo
trada conforme os princípios e as regras depois, candidatos a prefeituras munici-
do pensamento verdadeiro. Capacidade pais contrataram jovens para aparecer
de generalização, isto é, de mostrar que na televisão com a cara pintada, defen-
uma explicação é válida para muitas dendo tais candidaturas. A seguir, as
coisas diferentes ou para muitos fatos Forças Armadas brasileiras, para persu-
diversos, porque, sob a aparência da adir jovens a servi-las, contrataram
diversidade e da variação, o pensamen- jovens caras-pintadas para aparecer
to descobre semelhanças e iden dades. como soldados, marinheiros e aviado-
25
Período Helenístico

res. Ao mesmo tempo, várias empresas, mas das caracterís cas do que os
pretendendo vender seus produtos aos gregos chamaram filosofia.
jovens, contrataram ar stas jovens
para, de cara pintada, fazer a propagan- Do legado filosófico grego, podemos
da de tais produtos. destacar como principais contribuições
as seguintes ideias:
Aparentemente, teríamos sempre a 1 - O conhecimento verdadeiro deve
mesma coisa: jovens rebeldes e cons- encontrar as leis e os princípios univer-
cientes, de cara pintada, símbolo da sais e necessários do objeto conhecido
esperança do país. No entanto, o pensa- e deve demonstrar sua verdade por
mento pode mostrar que, sob a seme- meio de provas ou argumentos racio-
lhança percebida, há diferenças, pois os nais. Ou seja, em primeiro lugar, a ideia
primeiros caras-pintadas fizeram um de que um conhecimento não é algo
movimento polí co espontâneo; os que alguém impõe a outros e sim algo
segundos fizeram propaganda polí ca que deve ser compreendido por todos,
para um candidato (e receberam pois a razão ou a capacidade de pensar
dinheiro para isso); os terceiros tenta- e conhecer é a mesma em todos os
ram ajudar as Forças Armadas a apare- seres humanos. Em segundo lugar, a
cer como diver das e juvenis; e os úl - ideia de que um conhecimento só é ver-
mos, mediante remuneração, estavam dadeiro quando explica racionalmente
transferindo para produtos industriais o que é a coisa conhecida, como ela é e
(roupas, calçados, vídeos, margarinas, por que ela é. É assim, por exemplo, que
discos, iogurtes) um símbolo polí co a matemá ca deve ser considerada um
inteiramente despoli zado e sem conhecimento racional verdadeiro, pois
nenhuma relação com sua origem. define racionalmente seus objetos. Nin-
guém impõe aos outros que o círculo é
Separando as aparentes semelhanças, uma figura geométrica em que todos os
dis nguindo-as, o pensamento desco- pontos são equidistantes do centro,
briu diferenças e realizou uma análise. pois essa definição simplesmente
Argumentar e demonstrar por meio de ensina que qualquer figura desse po
princípios e regras necessários e univer- será necessariamente denominada
sais, apreender pelo pensamento a uni- círculo; da mesma maneira, ninguém
dade real sob a mul plicidade percebi- impõe aos outros que o triângulo é uma
da ou, ao contrário, apreender pelo figura geométrica em que a soma dos
pensamento a mul plicidade e diversi- ângulos internos é igual à soma de dois
dade reais de algo percebido como uma ângulos retos, pois essa definição sim-
unidade ou uma iden dade, eis aí algu- plesmente estabelece que uma figura
26
Período Helenístico

com tal propriedade será denominada Albert Einstein a estabelecer uma lei da
triângulo. Além de definir seus objetos, conservação de toda a matéria e ener-
a matemá ca os demonstra por meio gia do Universo, lei que se exprime na
de provas (os teoremas) fundadas em fórmula E = mc² (em que E é a energia,
princípios racionais verdadeiros (os m é a massa e c é a velocidade da luz),
axiomas e os postulados). segundo a qual toda massa tem uma
2 - A natureza segue uma ordem neces- energia associada, cujo valor se desco-
sária e não casual ou acidental. Ou seja, bre mul plicando a massa pelo quadra-
ela opera obedecendo a leis e princípios do da velocidade da luz.
necessários – não poderiam ser outros 3 - As leis necessárias e universais da
ou diferentes do que são – e universais natureza podem ser plenamente
– são os mesmos em toda parte e em conhecidas pelo nosso pensamento.
todos os tempos. Ou, em outras pala- Isto é, não são conhecimentos misterio-
vras, uma lei natural é necessária sos e secretos, que precisariam ser
porque nenhum ser natural escapa dela revelados por divindades, mas sim
nem pode operar de outra maneira que conhecimentos que o pensamento
não desta; e uma lei da natureza é uni- humano pode alcançar por sua própria
versal porque é válida para todos os força e capacidade.
seres naturais em todos os tempos e 4 - A razão também obedece a princí-
lugares. A ideia de ordem natural neces- pios, leis, regras e normas universais e
sária e universal é o fundamento da filo- necessários, com os quais podemos dis-
sofia em sua primeira expressão conhe- nguir o verdadeiro do falso. Em outras
cida, a cosmologia. É, pois, responsável palavras: por sermos racionais, nosso
pelo surgimento da chamada “filosofia pensamento é coerente e capaz de
da natureza” ou “ciência da natureza”, conhecer a realidade porque segue leis
ou o que os gregos chamaram �sica, lógicas de funcionamento. Nosso pen-
palavra derivada do vocábulo grego samento diferencia uma afirmação de
physis, “natureza”. Assim, por exemplo, uma negação porque, na afirmação,
a ideia de que a natureza é uma ordem atribuímos alguma coisa a outra coisa
que segue leis universais e necessárias (quando afirmamos que “Sócrates é um
levou, no século XVII, Galileu Galilei a ser humano”, atribuímos humanidade a
demonstrar as leis do movimento e as Sócrates); já na negação, re ramos
leis da queda dos corpos. Ou, naquele alguma coisa de outra (quando dizemos
mesmo século, levou Isaac Newton a “Este caderno não é verde”, estamos
estabelecer uma lei �sica válida para re rando do caderno a cor verde). Por
todos os corpos naturais, a lei da gravi- isso mesmo, nosso pensamento perce-
tação universal. E, no século XX, levou be o que é a iden dade, isto é, que
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Período Helenístico

devemos sempre e necessariamente homens são mortais”). As prá cas hu-


afirmar que uma coisa é idên ca a si manas dependem da vontade livre, da
mesma (“Sócrates é Sócrates”), pois, se deliberação e da discussão, de uma
negarmos sua iden dade, estaremos escolha emocional ou racional, de
re rando dela ela própria. Graças à afir- nossas preferências e opiniões. Estes
mação da iden dade, o pensamento fatores se realizam segundo certos valo-
pode dis nguir e diferenciar os seres res e padrões estabelecidos pela natu-
(“Sócrates é diferente de Platão e reza ou pelos próprios seres humanos, e
ambos são diferentes de uma pedra”). não por imposições misteriosas e
Nosso pensamento também percebe o incompreensíveis.
que é uma contradição, ou seja, que é 5 - O fato de os acontecimentos natu-
impossível afirmar e negar ao mesmo rais e humanos serem necessários
tempo algo de alguma coisa (“O infinito porque obedecem a leis (da natureza
é ilimitado e não é ilimitado”). Por isso, humana) não exclui a compreensão de
ele também percebe a diferença entre que eles também podem ser acidentais,
uma contradição e uma alterna va, seja porque um concurso de circunstân-
pois, nesta, ou a afirmação será verda- cias os faz ocorrer por acaso na nature-
deira e a negação será falsa, ou vice- za, seja porque as ações humanas
-versa (“Ou haverá guerra ou não dependem das escolhas e deliberações
haverá guerra”). Nosso pensamento dos homens. Uma pedra lançada ao ar
dis ngue quando uma afirmação é ver- cai necessariamente porque pela lei
dadeira ou falsa porque dis ngue o não natural da gravitação ela necessaria-
contraditório do contraditório e porque mente deve cair e não pode deixar de
reconhece o verdadeiro como a conclu- cair; um ser humano é capaz de loco-
são de uma demonstração, de uma moção e anda porque as leis anatômi-
prova ou de um argumento racional. Se cas e fisiológicas que regem seu corpo
alguém apresentar o seguinte raciocí- fazem com que tenha os meios neces-
nio: “Todos os homens são mortais. sários para isso. No entanto, se uma
Sócrates é homem. Logo, Sócrates é pedra, ao cair, a ngir a cabeça de um
mortal”, diremos que a afirmação “Só- passante, esse acontecimento é aciden-
crates é mortal” é verdadeira porque foi tal. Por quê? Porque se o passante não
concluída de outras afirmações que já es vesse andando por ali naquela hora,
foram demonstradas verdadeiras (“To- a pedra não o a ngiria. Assim, a queda
dos os seres que nascem e perecem da pedra é necessária e o andar de um
existem no tempo. Todos os seres que ser humano é necessário, mas, se uma
existem no tempo são mortais”; “Todos pedra cai sobre minha cabeça quando
os homens existem no tempo. Todos os ando, isto é inteiramente acidental. É o
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acaso. Contudo, o próprio acaso não é manos).


desprovido de uma lei natural. Como
explica Aristóteles, o acaso é o encontro Dessa maneira, temos a ideia de que
acidental de duas séries de aconteci- podemos diferenciar entre o necessá-
mentos necessárias (é por necessidade rio, o acaso e o possível em nossas
natural que a pedra cai e é por necessi- ações: o necessário é o que não está em
dade natural que o homem anda). A lei nosso poder escolher, pois acontece e
natural do acaso é, portanto, o encon- acontecerá sempre (não depende de
tro acidental de coisas que em si nós que o Sol brilhe, que haja dia e
mesmas são necessárias. noite); o acaso é o que também não
está em nosso poder escolher (não
Todavia, a situação das ações humanas escolho que aconteça uma tempestade
é bastante diversa dessa. É verdade que justamente quando estou fazendo uma
é por uma necessidade natural ou por viagem de navio ou de avião, nem esco-
uma lei da natureza que ando. Mas é lho estar num veículo que será a ngido
por deliberação voluntária que ando por outro, dirigido por um motorista
para ir à escola em vez de andar para ir embriagado); o possível, ao contrário
ao cinema, por exemplo. É verdade que do necessário e do acaso, é exatamente
é por uma lei necessária da natureza o que temos poder de escolher e fazer.
que os corpos pesados caem, mas é por Essas diferenciações legadas pela filoso-
uma deliberação humana e por uma fia grega nos permitem evitar tanto o
escolha voluntária que fabrico uma fatalismo – “Tudo é necessário, temos
bomba, a coloco num avião e a faço de nos conformar com o des no e nos
despencar sobre Hiroxima. Essa escolha resignar com nosso fado” – como a
faz com que a ação humana introduza o ilusão de que podemos tudo quanto
possível no mundo, pois o possível é o quisermos, pois a natureza segue leis
que pode acontecer ou deixar de acon- necessárias que podemos conhecer e
tecer, dependendo de uma escolha nem tudo é possível por mais que o
voluntária e livre. Um dos legados mais queiramos. Os seres humanos natural-
importantes da filosofia grega é, por- mente aspiram ao conhecimento verda-
tanto, a diferença entre o necessário (o deiro (porque são racionais), à jus ça
que não pode ser senão como é) e o (porque são dotados de vontade livre) e
con ngente (o que pode ser ou não à felicidade (porque são dotados de
ser), bem como a diferença entre o emoções e desejos). Isto é, os seres hu-
acaso (o que pode ou não acontecer na manos não vivem nem agem cegamen-
natureza) e o possível (o que pode ou te, nem são comandados por forças
não acontecer nos acontecimentos hu- extranaturais secretas e misteriosas,
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Período Helenístico

mas ins tuem por si mesmos valores suas ações.


pelos quais dão sen do à sua vida e às

Indicações de Leituras

1. Diógenes, o Cínico, de Luiz E. Navia


2. Carta sobre a felicidade (A Meneceu), de Epicuro
3. Da natureza das coisas, de Lucrécio
4. Ler os estoicos, de Jonathan Barnes
5. Cartas a Lucílio, de Sêneca
6. Manual, de Epicteto
7. Meditações, de Marco Aurélio
8. Esboços pirronianos, de Sexto Empírico
9. Enéadas, de Plo�no

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