Arquivototal
Arquivototal
Arquivototal
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
JOÃO PESSOA
2018
RAFAEL PARENTE FERREIRA DIAS
JOÃO PESSOA
2018
Para Deus, fonte de inspiração
À Professora Maria Lúcia Abaurre Gnerre, por ter acreditado na minha pesquisa,
pelo apoio na orientação e pela atenção pessoal; à UERR (Universidade Estadual de
Roraima), por ser a instituição que me acolheu como Professor Universitário e
possibilitou o meu acesso ao doutorado; aos colegas de turma e demais professores da
UFPB, pelo conhecimento e companheirismo; aos amigos e à família a quem devo
minha vida.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da sexualidade humana aplicada aos
ensinamentos do budismo tântrico. O tantrismo busca na transmutação dos desejos e
paixões um valioso suporte soteriológico, capaz de emancipar a consciência humana de
todos os condicionamentos psicológicos, libertando-a dos apegos sensoriais e da
instabilidade mental. O método tântrico inclui em seu bojo uma grande variedade de
exercícios: meditação, visualização e ritos. Porém, uma técnica em especial chama a
atenção por seu caráter secreto e iniciático: o sexo-yoga. Suas origens estão ligadas ao
próprio Siddharta Gautama, perpetuando-se nas comunidades budistas através das
tradições Mahāyāna e Vajrayāna. Objetivando aprofundar os ensinamentos dessas duas
linhagens, utilizamos alguns textos essenciais da ortodoxia tântrica budista, a saber:
Guhyasamāja-tantra, Cakraśaṁvara-tantra, Hevajra-tantra e o Kālacakra-tantra.
Além destes, também nos apoiamos nas obras de importantes mestres da tradição
Vajrayāna, tais como: Tilopa, Tsongkhapa e Yeshe Tsogyal. Ademais, o nosso trabalho
está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo realizamos um estudo
introdutório sobre o tantra; a partir do segundo capítulo ingressamos em uma
investigação histórica sobre o momento em que as práticas sexuais passaram a ser
utilizadas como ferramentas para a realização espiritual. No terceiro capítulo
aprofundamos os mistérios relacionados ao sexo-yoga e seus efeitos espirituais no corpo
do praticante. Posteriormente, no quarto e último capítulo, destacamos a centralidade da
energia feminina em todo esse cenário tântrico relacionado à transformação interior.
Portanto, tentamos demonstrar, ao longo do texto, que a prática sexual é um dos grandes
pilares da espiritualidade budista, e quando executada de acordo com os ensinamentos
tântricos é capaz de conferir a principal meta do budismo: a iluminação espiritual, a
libertação última do sofrimento e do julgo material.
This work aims to make an analysis of human sexuality applied to the teachings of
Tantric Buddhism. Tantrism seeks in the transmutation of desires and passions a
valuable soteriological support capable of emancipating the human consciousness from
all psychological conditioning, freeing it from sensory attachments and mental
instability. The Tantric method includes in its bulge a great variety of exercises:
meditation, visualization and rites. However, one particular technique draws attention to
its secret and initiatory character: sex-yoga. Its origins are linked to Siddharta Gautama
itself, perpetuating itself in Buddhist communities through the Mahāyāna and Vajrayāna
traditions. In order to deepen the teachings of these two lineages, we use some essential
texts of the Tantric Buddhist orthodoxy, namely: Guhyasamāja-tantra, Cakraśaṁvara-
tantra, Hevajra-tantra and Kālacakra-tantra. Besides these, we also rely on the works of
important masters of the Vajrayana tradition, such as: Tilopa, Tsongkhapa and Yeshe
Tsogyal. In addition, our work is divided into four chapters. In the first chapter we
conducted an introductory study on tantra; from the second chapter we enter into a
historical investigation into the moment when sexual practices began to be used as tools
for spiritual attainment. In the third chapter we delve into the mysteries related to sex-
yoga and its spiritual effects on the practitioner's body. Subsequently, in the fourth and
last chapter, we highlight the centrality of female energy throughout this tantric scenario
related to inner transformation. Therefore, we try to demonstrate, throughout the text,
that sexual practice is one of the great pillars of Buddhist spirituality, and when
performed according to the Tantric teachings it is able to confer the main goal of
Buddhism: spiritual enlightenment, ultimate liberation from suffering and of the
material judgment.
INTRODUÇÃO............................................................................................................12
PARTE 2
SEXO-YOGA E A RESSURGÊNCIA DO PODER FEMININO
REFERÊNCIAS .........................................................................................................220
APÊNDICE: GLOSSÁRIO DE TERMOS SÂNSCRITOS E TIBETANOS
.......................................................................................................................................229
INFORMAÇÃO SOBRE AS CITAÇÕES DAS OBRAS CANÔNICAS DO
BUDISMO
Os textos ortodoxos do budismo utilizados nesta tese serão citados, sempre que
possível, da seguinte forma: primeiramente, o título da obra, em seguida o capítulo
(algarismo romano) seguido pela indicação do verso (algarismo arábico),
posteriormente a referência ao autor da obra traduzida, conforme os moldes do sistema
AUTOR-DATA. Portanto, as citações ficarão ordenadas do seguinte modo:
(DHAMMAPADA, XX, 284; BUDDHARAKKHITA, 2013, p. 47).
13
1. INTRODUÇÃO
Vale destacar ainda, que nestes dois capítulos (segundo e terceiro) reforçamos a
premissa de que sem a retenção do sêmen masculino ou da libido feminina não há
possibilidade de auto-realização espiritual. Esta é, decerto, a hipótese mais forte contida
em nosso trabalho.
1
Sem dúvida, a prática do celibato é uma unanimidade dentro da tradição budista, nenhuma escola
ousaria questionar a sua legitimidade. O sexo-yoga, ao contrário, é motivo de polêmica e sua castração
por parte de algumas tradições é mais um motivo que nos impulsionou a colocá-lo como pano de fundo
teórico deste estudo.
17
disso, a Índia medieval foi palco de uma verdadeira constelação de mestres tântricos,
também conhecidos como mahāsiddhas, tradição sumamente importante para as
pretenções hermenêuticas deste trabalho, sendo, portanto, inevitável a sua inclusão e
aprofundamento teórico.
PARTE 1
2
Sobre a relação entre o tantra e o vedantismo, Cf. FIC, 2003.
22
Muito além da disputa entre budistas e hinduístas, Mircea Eliade (2012) lança-
nos no bojo de mais uma polêmica envolvendo a origem destes ensinamentos. Segundo
o autor, o tantrismo não só teria recebido influências dravidianas, como também
gnósticas:
3
Muitos autores defendem a teoria de que o tantra budista possuiria diferenças filosóficas muito evidentes
quando comparadas ao seu correlato hindu, não cabendo equiparações superficiais. Destacamos aqui uma
importante diferença entre os dois tantras: a relação entre Śiva e Śakti. Esta é uma abordagem tipicamente
hindu, a qual denota uma hierofania criacionista muito distante da visão cosmogônica budista, na qual
estaria excluída qualquer crença em algum deus criador. A deusa Śakti, no tantrismo hindu, representa a
“força criativa” que, unida ao aspecto masculino (Śiva), originaria todos os seres. O devoto hindu, ao
realizar as práticas tântricas, buscaria fundir-se com este poder criador. Diferentemente, no tantra budista,
Śakti é simbolizada por Prajñā (sabedoria), a qual não busca união com qualquer princípio criador, sua
meta real é conferir ao praticante liberação de todos os sofrimentos e apegos – incluindo poderes –, o qual
é prometido pelo tantra hindu –.
25
4
O termo Tantra foi introduzido pela primeira vez no idioma inglês no ano de 1799, e desde então
permanece em um campo aberto para diversas interpretações que, por vezes, soam demasiadamente
equivocadas. Cf. GUENTHER; TRUNGPA, 2003, p. 15.
5
Cf. FEUERSTEIN, 1998, p. 2.
26
A data exata em que o cânon tântrico foi redigido não é precisa6. Provavelmente,
foram sendo introduzidos na literatura budista indiana, de forma não-sistemática, a
partir do século II d.C, e posteriormente se espalharam para outros países do Oriente.
Gavin Flood (2006, p. 7) acredita que “os Tantras foram incorporados no vasto cânon
budista entre 400 e 750 d.C.” Cathleen Cummings (2003), ao contrário, argumenta que
o aparecimento literário dos tantras aconteceu mais cedo, por volta do século IV,
período em que a Dinastia Gupta dominava grande parte do subcontinente indiano:
6
Na página 53 apresentamos uma série de comentadores especulando sobre as datas prováveis de
composição da obra Guhyasamāja-tantra, um dos textos-fontes clássicos do tantra budista.
27
Ainda na Dinastia Gupta, outro fator decisivo para o impulso dos ensinamentos
tântricos é a ascenção progressiva de duas escolas do pensamento budista mahāyāna:
Mādhyamika e Yogācāra. “Segundo as tradições budistas, o tantrismo foi introduzido
por Asaṇga (cerca do ano 400), eminente mestre yogācāra e por Nāgārjuna (séc. II de
nossa era), ilustre representante dos Mādhyamika [...]”. (ELIADE, 2012, p. 171).
7
O termo “proto-tântrico” é uma clara indicação de que o budismo Vajrayāna ou tantrayāna é
influenciado/introduzido pela tradição Mahayāna. A literatura do budismo Mahayāna do século IV-VIII
d.C. está repleta de conceitos que mais tarde serão desenvolvidos e aprofundados pelas linhagens tântricas
do Tibete. Dentre eles, podemos destacar os ensinamentos sobre as maṇḍalas, mantras, mudrā etc. Cf.
CUMMINGS, 2003, p. 24.
8
Cf. DHARMAKIRTI, 2002, p. 5.
29
9
Cf. CUMMINGS, 2003, p. 25.
10
Na obra de Atīśa: A Lamp for the path and comentary, encontramos sete classificações do Tantra: [1]
Tantra da Ação, [2] Tantra da Prática, [3] Tantra da Habilidade, [4] Tantra da combinação, [5] Tantra da
União, [6] Tantra da Grande União e [7] Tantra da Suprema União. Cf. ATĪŚA, 1983, p. 167-168.
31
11
A escola tibetana Kagyü pertence à tradição Vajrayāna.
32
12
Nesse contexto, a palavra bodhichitta significa a “mente do despertar” ou “mente de iluminação”.
Trata-se da pré-disposição sincera em atingir a budeidade, a libertação do sofrimento, e
consequentemente ajudar a todos os seres nesse mesmo propósito.
13
Cf. MULLIN, 2006.
33
intimidadoras, nossos apegos mais enraigados são finalmente aguçados, o fogo erótico é
despertado com o intuito de transmutá-lo em passividade interior.
Existem muitas sutilezas neste nível do Tantra, práticas variadas para diferentes
casos particulares. A “yoga do calor místico” (tummo, em tibetano), por exemplo, é uma
técnica muito poderosa ensinada neste nível, está intimamente conectada com a energia
sexual. Monges celibatários ou praticantes casados podem realizá-la, os benefícios serão
os mesmos, a única diferença está na execução, enquanto o primeiro imagina a si
mesmo em união sexual com uma divindade, o segundo efetuará fisicamente com a sua
própria consorte, o conúbio sexual. Trata-se de um esforço contínuo da consciência em
redirecionar a líbido para a realização espiritual, impulsionando-o em direção ao
dharma, à aquisição da suprema bem-aventurança, ao êxtase místico proporcionado pela
transubstanciação da energia sexual:
14
Deve-se esclarecer que a cultura Bön teve grandes embates filosóficos com o budismo, sua aceitação
foi marcada por desencontros e controvérsias, sua incorporação à tradição budista se deu muito
tardiamente. Por isso colocá-la ao lado das quatro principais Escolas budistas pode parecer incomum, mas
não incorreto.
15
Zhang Zhoung, localidade em torno do Monte Kailash, no Tibete ocidental, altamente influenciada pela
tradição Bön. Nesta região consolidou-se uma rica cultura com escrita própria, por meio da qual se
preservaram os mitos relacionados ao Bön. Posteriormente, tais textos foram traduzidos para o tibetano,
reforçando ainda mais a sua influência sobre o budismo praticado no Tibete. Cf. DAKPA, 2005 e
SEVERINO, 2010.
35
16
“Dzogchen (tibetano: rdzogs Chen). A “grande perfeição” ou “grande completude”. O Dzogchen é
considerado a prática e o ensinamento mais elevados, tanto no Bön, como na escola Nyingma do Budismo
Tibetano. Seu princípio fundamental é que a realidade – inclusive o indivíduo – já é completa e perfeita,
que nada precisa ser transformado (como no tantra) ou renunciado (como no sutra), mas apenas
reconhecido pelo que realmente é. A prática essencial do Dzogchen é a “autoliberação”: permitir que tudo
que surge na experiência exista exatamente como é, sem nenhuma elaboração da mente conceitual, sem
apego nem aversão”. (RINPOCHE, 2010, p. 230).
17
De um modo geral, o budismo se desenvolveu conceitualmente e textualmente com base em três
tradições distintas: Theravāda, Mahāyanā e Vajrayāna. Todas elas aceitam as teorias sobre a
impermanência, a ausência de um “eu”, “as quatro nobres verdades” e o “caminho óctuplo”. A primeira
das Escolas citadas é considerada a mais conservadora, uma vez que se manteve fiel aos textos escritos
em páli, mesma língua falada na época do Buda, não acrescentado nenhum outro texto às escrituras
tradicionais. O Mahāyāna é considerado a maior corrente do budismo e aceita os textos sagrados da
escola Theravāda, porém agrega outros novos, em outras línguas, tais como: sânscrito, tibetano e chinês,
por exemplo. O Vajrayāna (veículo de diamante), também conhecido como tantrayāna, por vezes, é
compreendido como uma extensão do Mahāyāna, e aceita textos de outras línguas em seu cânone.
Destacam-se nessa tradição importantes Escolas Tibetanas, tais como: Nyingma, Kagyü, Sakya e Gelug
(Essa última tendo como principal representante o XIV Dalai Lama). (CONZE, 1973, p. 26-27).
36
com o budismo que vinha sendo trazido da Índia, e então nasceu uma
forma de budismo intitulada vajrayana, fruto do sincretismo entre
budismo e Bön. (BRENNAND, 2015, p. 73).
Por volta do século VII d.C, o Tantra chega ao Tibete, durante o governo do
imperador Songtsen Gampo (629-649)18. A consolidação do dharma em solo tibetano
alcança seu apogeu em 791, quando o budismo é proclamado religião do Estado por
Trisong Detsen (755-797). Desde então, o Tantra inicia sua marcha segura para a sua
consolidação, que por sua vez, atinge seu apogeu em meados do século VIII d.C, com a
chegada de Padmasambhava19, que finalmente consegue estabelecer as pesadas âncoras
do dharma sob o país das montanhas de gelo, como nos lembra o mestre tibetanto
Sakya Trizin, líder da tradição Sakya, o qual disse que:
18
John C. Huntington e Dina Bangdel (2003) sugerem o ano 629 e 649 como as datas mais prováveis
para o nascimento e morte do imperador tibetano Songtsen Gampo. Contudo, existem outros
pesquisadores que mencionam outras datas possíveis. Obviamente, a precisão cronológica é sempre um
desafio quando tratamos de períodos históricos tão remotos.
19
As crônicas budistas dizem que Padmasambhava, também conhecido como Guru Rinpoche, nasceu de
uma flor de Lótus, no reino indiano de Uddiyana, sem pai nem mãe, é retratado como a emanação da
mente do Buda Amitaba, também como a emanação da palavra de Avalokiteshvara e ainda como a
emanação do corpo do Buda Shakyamuni. Desde sua infância apresentava poderes sobrenaturais capazes
de subjugar não apenas forças humanas, mas também espíritos maléficos. Conta-se que teria vivido por
mil anos na Índia e em seguida passou cinquenta e cinco anos no Tibete, durante esse período disseminou
o budismo tântrico pelo país e recrutou vinte e cinco grandes discípulos, os quais dominavam
intelectualmente tanto os sutras quanto os tantras budistas; ademais, eram capazes de fazer proezas, assim
como seu mestre, tais como: atravessar materiais sólidos, voar, aparecer em várias partes diferentes etc.
Cf. TSOGYAL, 2006.
37
20
Śāntarakṣita foi um grande estudioso do mosteiro de Nālandā. Do ponto de vista doutrinal, realizou
uma síntese entre os ensinamentos mahāyāna da escola Mādhyamika com a Iogacara. Portanto, o budismo
que chega ao Tibete está longe de ser incipiente, pois já possuía um complexo desenvolvimento
hermenêutico, contribuindo assim decisivamente para a introdução e a perpetuação dos ensinamentos
tântricos. Cf. MUSASHI, 2006.
38
tradução de textos budistas de que se tem notícia. Muitos desses escritos atualmente só
são encontrados em versão tibetana.21
Fonte:http://www.chinabuddhismencyclopedia.com/en/index.php?title=Tukdrub_Barchey_Kunsel#/medi
a/File:Gods-p_a-b.JPG. Acessado em 21/09/2018.
21
Cf. NINA, 2006, p. 27.
22
Sobre a tradução dos textos tântricos para o tibetano, Cf. SILVA; HOMENKO, [s. d.], p. 190.
40
23
Sobre a divisão dos textos tântricos e suas especificidades, Cf. SNELLGROVE, 1959, p. 3.
41
vigor. As tensões políticas se chocavam com o declínio cada vez mais vertiginoso do
budismo.
WAYMAN, 2006.
42
Alex Wayman (2006, p. 251): “Atīśa deu destaque aos cultos tibetanos mais
característicos: o de Avalokiteśvara, da fórmula em seis sílabas OM MANI PADME
HUM, e o de Tārā, da fórmula em dez sílabas OM TĀRE TUTARE TURE SVĀHĀ.”
Finalmente, graças a essa segunda disseminação do dharma no Tibete, surgem três
importantes Escolas tântricas tibetanas: Kagyü, Gelugpa e Sakya, influenciadas pelos
contornos doutrinários realizados pelo sábio Atīśa 25.
25
Assim como Ana Cristina Lopez Nina, Sua Santidade, o atual Sakya Trizin (título honorífico delegado
aos líderes da tradição budista tibetana Sakya), defende que a linhagem Nyingma é fruto da primeira
disseminação do budismo no Tibete, por isso é considerada a mais antiga, efetuada por Padmasambhava
(séc. VIII); as demais são herdeiras da segunda incursão budista realizada por Atisha (séc. X-XI). Cf.
TRIZIN, 2016, p. 6.
26
Concluímos que o tantra já era ensinado desde o tempo do Buda Shakyamuni, porém disso não resulta
que somente ele ensinou o Tantra; de fato dentro da tradição Mahayāna e Vajrayāna encontramos
conceitos de outros mestres tântricos, cujos textos foram incorporados ao cânon oficial das Escolas
mencionadas. Em sentido contrário, outras escolas não aceitam este fato, como é o caso da Tradição
Theravāda, que não permitiu qualquer texto tântrico em suas sagradas escrituras.
43
próprio Siddharta, uma emanação perfeita oriunda de sua própria natureza pura e
iluminada:
27
A palavra páli bhikkhu refere-se aos monges que aderiram às regras monásticas. Cf. THE SEEKER´S
GLOSSARY OF BUDDHISM, 1998.
28
Por vinte anos, Ariyesako viveu como monge ordenado nos monastérios tailandeses da tradição
Theravāda, de modo que, no presente capítulo, tentamos nos basear na diciplina monástica desta tradição.
O autor admite que em certos países existem algumas diferenças nas regras monásticas, portanto devemos
compreender que as regulações existentes nos templos budistas não podem ser tomadas de forma
absoluta, elas variam de acordo com a autoridade e compreensão de cada Escola. Cf. ARIYESAKO,
2013, p. 6.
45
Por isso, a vida monástica exigia uma dura submissão às regras contidas no
Vināya-Piṭāka, o celibato era a pedra angular sobre a qual estava ancorada a moralidade
sexual dos monges e monjas. A castidade era um nobre ideal do qual a não observância
poderia acarretar sérias conseqüências espirituais e penalidades dentro da própria
comunidade. A preocupação com a sexualidade é tão evidente que um monge perde sua
ordenação caso falhe nesse quesito: “A falta de castidade era delito que
automaticamente levava à expulsão da ordem.” (CONZE, 1973, p. 55). Na verdade, um
monge perde automaticamente sua ordenação quando comete qualquer uma dessas
quatro ofensas: relação sexual, assassinato, roubo maior ou a afirmação falsa de possuir
habilidades supra-humanas29. Com estas infrações, o monge separa-se irrevogavelmente
da comunidade e passa a não ser mais considerado como parte da ordem.
O próprio Buda declarou que nos dias de lua cheia e lua nova, todos
os bhikkhus, em residência numa mesma comunidade devem se reunir
numa assembléia formal. Se houver um quórum de pelo menos quatro
bhikkhus, eles deverão escutar o Patimokkha inteiro. Um bhikkhu
competente, que o tenha memorizado, recitá-lo-á em Pali para a
Comunidade para que eles possam se lembrar da sua responsabilidade
de observar as 227 regras. A recitação completa pode levar entre trinta
e cinco minutos a uma hora, dependendo da habilidade do bhikkhu
que estiver recitando. (ARIYESAKO, 2013, p. 27).
O autor prossegue explicando que antes de começar a recitação cada monge deve
admitir as suas ofensas, formalmente, fazendo uma breve expiação de si mesmo,
relatando suas faltas para os demais. Após o “rito expiatório”, o monge é considerado
‘puro’ e pode ouvir a recitação das regras do Pātimokkha31.
29
Sobre as faltas que ocasionam a perda da ordenação, Cf. ARIYESAKO, 2013.
30
Patimokkha é o código básico de disciplina monástica, inserido no Vinaya-Pitaka, que consiste em 227
regras para monges (bhikkhus) e 310 regras para monjas (bhikkhunis).
31
Cf. ARIYESAKO, 2013.
46
Com base nos estudos dos sutras32, percebemos que a sexualidade encontrou
duras resistências para sua aceitação na ordem monástica. De fato, a abordagem dos
sutras, falando especificamente sobre a sexualidade, difere diametralmente da
perspectiva tântrica. O Dhammapada33, por exemplo, importante escritura ortodoxa
budista, não faz qualquer referência positiva à sexualidade, ela é sempre tomada como
algo a ser evitado: “Enquanto o mato do desejo de um homem por uma mulher, mesmo
o mais sutil, não for cortado, a sua mente está presa, como um bezerro de mama à sua
mãe”. (DHAMMAPADA, XX, 284; BUDDHARAKKHITA, 2013, p. 102).
As escrituras budistas ensinam que o homem, abrasado pelo fogo sexual, perde a
lucidez, e a inteligência é dissolvida no ardente lago do desejo, cuja saciedade nunca é
satisfeita, e desta insatisfação nasce à ira e posteriormente todas as demais vicissitudes
humanas. A concupiscência, o incontrolável desejo sexual transforma o indivíduo em
um escravo da luxúria, uma marionete nas mãos do desejo; de fato, o apego sexual pode
nos conduzir insensivelmente a caminhos contrários ao da razão, assim seduzido, o
homem se esquece da sabedoria, não a encontra em parte alguma e se desvincula de
todas as virtudes a ela ligadas.
32
Os sutras referem-se às escrituras canônicas onde se encontram os ensinamentos de Buda, conservados
por seus discípulos em língua sânscrita (sutra) e páli (sutta).
33
Antologia budista composta de 423 aforismos em versos conservados em língua páli. Possui uma forte
tendência moral e está inserido no Sutta-Pitaka, um dos três Pitakas, ou três cestos, que formam a
Tripitaka, principal literatura ortodoxa do budismo.
47
34
Diferentemente das outras fontes consultadas, o Guhatthaka Sutta, não segue o modelo de citação
tradicional, o qual foi explicitado no início da tese, mais exatamente na pág. 3. O texto está inserido em
uma Antologia Budista publicada pela Fonte Editorial em parceria com o PPG-CR da UFPB. A obra em
questão não apresenta o capítulo, tampouco o verso do texto fonte analisado, por esta razão não nos foi
possível apresentá-las ao leitor. No entanto, o peso acadêmico dos organizadores e tradutores, motivou-
nos a incluir esta tradução em nossas pesquisas.
35
Sobre a definição e o sentido da palavra upādāna no contexto budista, ver SASAKI, 2015, p. 55.
48
mundo sem se dar conta que está, na verdade, aliando-se ao seu grande opositor, aquele
que a mantém escrava de si mesma por inumeráveis renascimentos:
Para os mestres do Tantra, o apetite sexual não está fora dos limites dos
praticantes avançados. Tal direcionamento rompe com o estereotipado conceito de que o
homem iluminado é aquele que renunciou a vida material e seus prazeres efêmeros,
principalmente aqueles relacionados com o sexo oposto. Acenos de uma sexualidade
49
Uma vez que os tantras mais elevados promoviam atividades que não
podiam ser praticadas nos mosteiros porque as regras monásticas (skt.
Vinaya) proibiam-nos, quando mahasiddhas como Padmasambhava e
Vimalamitra levaram o budismo tântrico para o Tibete no século oito,
formou-se uma irmandade alternativa [...]. Seus ensinamentos
baseados nos tantras mais elevados usavam simbolismo sexual e
outras referências que não eram consideradas apropriadas – a
sociedade Tibetana não é nada pudica, mas mostrar imagens como as
usadas nos tantras elevados causavam ofensa [...]. Diz-se que durante
os ensinamentos de Buda sobre o Guhyasamaja Tantra, a assembléia
de monges desmaiou de horror pelo que eles ouviram. [...]. John
Myrdhin Reynolds apresenta uma comparação entre o impacto dos
tantras elevados em lugares como o Tibete medieval e a atmosfera que
levou a caça às bruxas na Europa e na América. (SEVERINO, 2010,
p.127).
Poderíamos citar, por exemplo, o grande mestre tântrico, Marpa, que mesmo
casado e livre dos votos monásticos, alcançou grande realização espiritual, a ponto de
ter o privilégio de ser o preceptor de Milarepa, um dos maiores yogīs do Tibete. Além
deste, poderíamos citar um exemplo mais atual, Sua Santidade Sakya Trizin, Ngawang
Künga, atual líder espiritual da escola tibetana Sakya, figura altamente representativa,
tanto do ponto de vista religioso quanto moral. Ele é casado e possui dois filhos,
50
disciplina com base nos preceitos tântricos. A não observância de tais ensinamentos
poderia acarretar grandes prejuízos ao casal, comprometendo drasticamente as chances
do êxito espiritual. Vemos, portanto, que o chefe de família disciplinado, seguidor dos
preceitos tântricos, não pode ser considerado um pobre errante – vítima sine qua non da
roda do samsāra, atrelar o desenvolvimento interior ao celibato é engessar as
possibilidades do caminho espiritual.
36
A conciliação hermenêutica entre os sutras e os tantras é um problema muito antigo, podemos
evidenciá-lo desde a segunda incursão budista ao Tibete, efetuada pelo mestre mahayanista Atiśa (982-
1054 d.C.), o qual tentou demonstrar que essas duas grandes vertentes do budismo, na verdade, são
complementares e não excludentes.
52
Desde suas origens, a filosofia tântrica sempre teve uma relação singular com as
paixões humanas, por isso o receio de Siddharta em transmiti-lo de forma
indiscriminada. O estudo do Tantra é particularmente trabalhoso devido a esse
hermetismo que o acompanha, o mistério parece ser o inseparável companheiro destes
ensinamentos. No tantrismo existe uma marcada tendência ao desvio, ao
questionamento das bases mais profundas do budismo, indicando um caminho ignorado
pelas duras regras monásticas que ainda hoje existem no interior da ordem. Jean
Bousselier, exaltando essas impactantes transformações dos textos tântricos dentro da
tradicional visão budista adverte:
37
Uma das mais antigas e principais obras tântricas do budismo, de acordo com Victor M. Fic (2003),
aproximadamente no ano 300 d.C, a Guhyasamāja Tantra recebeu seu formato final, após uma longa
trajetória, e já havia iniciado sua disseminação dentre as escolas budistas, ainda que de forma
propedêutica e hermética (a palavra sânscrita Guhya significa secreto). Francesca Fremantle (1983),
contudo, adverte que a data precisa da composição desta obra ainda é um problema insolúvel. Segundo a
autora, alguns sugerem o terceiro século da era cristã como data provável da formatação final da obra,
como é o caso de Bhattacharyya. Winternitz, ao contrário, acredita que sua composição aconteceu entre
os séculos VIII e X d.C. A Escola japonesa contemporânea, por sua vez, coloca-o no século VIII d.C. Por
fim, Alex Wayman, indica o século V como a data mais provável de sua composição. Portanto,
entendemos que qualquer afirmação cronológica, principalmente quando tratamos de escrituras que
remontam muitos séculos atrás, sempre será passível de especulações variadas, bem como da inevitável
margem de erro. Para uma descrição e tradução da Guhyasamāja Tantra, consultar FREMANTLE, 1983.
55
[...] Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo
de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas,
algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que
outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao
nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e
obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união
sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento
por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria
divinizaçao (apoteose) ou, mais uma vez se as forças se tiverem
mantido hostis a ele -, pelo roubo, por parte do herói, da bênção que
ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-
se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser
(iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do
retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua
proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga
e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar
de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói
38
O décimo primeiro trabalho de Hércules é representado na mitologia grega pela busca do cão Cérbero.
56
Vale ressaltar que nem todos os praticantes estariam preparados para utilizar o
vício como objeto de liberação. No exemplo acima, o texto faz menção à “compreensão
de discípulo”, numa clara alusão às limitações do mesmo, isto é, cada estudante da arte
tântrica possuiria um determinado nível iniciático, o qual lhe facultaria determinado
método de desenvolvimento, sempre adequado ao grau de instrução que possui. Na
verdade, somente o guru estaria em condições de determinar o momento exato em que o
discípulo teria condições de receber determinados ensinamentos e iniciações tântricas.
Referindo-se ao treinamento tântrico tibetano, Alexandra David-Néel, em seu livro
Iniciações Tibetanas, esclarece:
Ao contrário de outras tradições budistas que muitas vezes são vítimas de uma
“perigosa repressão das paixões”, o praticante do Tantra esforça-se em “transformá-las”.
Busca-se através de ritos complexos, iniciações místicas, técnicas meditativas que
incluem visualizações e mantralizações, o despertar de inúmeras faculdades latentes no
ser humano. Trata-se de uma rigorosa disciplina que deve ser mantida diligentemente
pelo praticante que aspira algum benefício espiritual, o intelectualismo é substituído por
práticas objetivas que visam, sobretudo, a aquisição da insuperável iluminação.
58
Supondo que um homem veja uma mulher bonita, o desejo faz com
que ele experimente logo uma sensação física e mental agradável. Ao
mesmo tempo, a cegueira provoca uma vontade de posse, da qual se
espera que consolide a experiência de felicidade. No contexto da
meditação que visa transformar as emoções, detém-se na sensação de
felicidade produzida pelo desejo, sem considerá-la como uma coisa
ruim, sem querer rejeitá-la. Fica-se consciente dessa felicidade,
lucidamente, e ela é experimentada sem que se deixe levar pela sede
que queira possuir o objeto. Assim, a alegria proveniente do desejo
não causa nenhum dano. (RINPOCHE, 1999, p. 164).
sua totalidade, apenas uma pequena parte de nós mesmos é aceita, a parte remanescente
é reprimida, bestial, bárbara, não-civilizada, e o seu infame destino é o exílio. Eis o
meio-homem da tradição!
39
Referimo-nos à “repressão” das paixões e da própria sexualidade acentuado pelo moralismo
conservador de certas correntes ortodoxas do pensamento oriental, destacando-se, sobretudo, algumas
ramificações do hinduísmo e do budismo theravāda.
40
Texto da linhagem Vajrayāna muito importante para a tradição japonesa Shingon. Comumente, os
pesquisadores do pensamento oriental utilizam a expressão “budismo esotérico” (em japonês, Mikkô) para
designar a Escola Tântrica fundada no início do século IX pelo monge, poeta e artista japonês Kûkai ou
Kôbô Daish (774-835), que teria viajado à China a fm de receber os ensinamentos esotéricos budistas,
incorporando-os, finalmente, à cultura japonesa. O ponto central da fé Shingon reside na figura do Buda
universal – Mahāvairocana –. Esta divindade representa o substrato ontológico da realidade, ela está, ao
mesmo tempo, dentro e fora de todas as coisas. A grande meta da doutrina Shingon é mostrar que a
natureza essencial de Mahāvairocana é idêntica, não-diferenciada, de qualquer ser humano. Porém, para
perceber conscientemente este aspecto transcendente dentro de nós, faz-se necessário uma rígida discplina
moral e uma elaborada ritualística, envolvendo gestos sagrados (mudrā), mandalas, visualizações e
mantralizações, resultando no completo domínio e purificação dos segredos do corpo, da palavra e da
mente; com tal metodologia, o budismo Shingon acredita proporcionar a iluminação espiritual aos seus
devotos. Vale ressaltar aqui, que não queremos desviar o foco da análise tântrica para o Japão, nosso
estudo continuará gravitando ao redor da tradição indiana e tibetana, contudo julgamos enriquecedor a
citação deste sutra, pois ele reafirma a pureza ontológica da realidade, sobretudo das paixões humanas,
colocando-se, portanto, neste contexto, em acordo com a proposta ‘não-discriminatória’ praticada pelo
tantra indiano e tibetano, o qual vem sendo analisado ao longo do presente capítulo. Para uma descrição
geral sobre a história e as práticas do budismo tântrico Shingon, Cf. YAMASAKI, 1988.
60
transformam-se em seus grandes aliados. Essa oposição opressora dos contrários deve
ser transmutada pela sabedoria da mente búdica:
41
Keith Dowman alerta sobre a existência de dois importantes Nāgārjunas, o primeiro, mais famoso,
nascido no segundo século da era cristã, filósofo budista da tradição mahāyāna, fundador da escola
Mādhyamika; o segundo teria vivido por volta do século IX, este seria discípulo de Saraha e um
importante comentador da Guhyasamāja-tantra. Cf. DOWMAN, 1985, p. 118. No livro de Glenn Mullin,
o segundo Nāgārjuna é colocado no século quinto, porém, para os tibetanos, eles são a mesma pessoa,
como um fio único que se estende ao longo do tempo. Cf. MULLIN, 2006. O Lama Anagarika Govinda
sugere que o segundo Nāgārjuna viveu durante o quinto século da era cristã. Cf. GOVINDA, 1995, p. 58.
Mesmo diante das inevitáveis controvérsias cronológicas, não podemos nos esquecer de que o próprio
Buda Shakyamuni profetizou, quatrocentos anos após o seu mahāparinirvāṇa, que haveria um monge, de
nome Nāga, que seria capaz de explicar o verdadeiro significado da Prajñāpāramitā, a Perfeição da
Sabedoria. Nāgārjuna, tal como profetizado por Buda, veio a este mundo e explicou a filosofia
Mādhyamika, ou o Caminho do Meio, consolidando de uma vez por todas as bases filosóficas do budismo
mahāyāna. Cf. TRIZIN, 2016, p. 9.
42
Mādhyamika significa caminho do meio, considerada por muitos como a mais influente escola do
budismo mahāyāna, fundada por Nāgārjuna (séc. II d. C.). Rivaliza em importância filosófica com a
Escola Yogācāra. A doutrina de Nāgārjuna entende o mundo – objetivamente e subjetivamente – como
essencialmente vazio, a existência seria um fenômeno produzido e dependente das limitações da própria
mente, e mesmo esta não possuiria realidade em si mesma, uma vez superada suas limitações, alcançamos
a visão interior da vacuidade de todos os fenômenos, incluindo a própria mente. Ou seja, a única
realidade, no sentido forte do termo, seria o próprio “vazio”, o restante da existência seria mera ilusão. A
Escola Yogācāra, ao contrário, acredita que a mente possui uma realidade em si mesma, ela é o único ser,
puro e acabado, todos os fenômenos externos derivam de suas próprias modificações subjetivas. Portanto,
resumidamente, para a Escola Yogācāra a realidade, no sentido literal, encontra-se apenas na “mente”,
por seu turno, para os Mādhyamika, não a mente, senão a vacuidade é o substrato de toda a realidade. Cf.
RIMPOCHÊ, 2006.
63
45
No budismo a palavra sânscrita Bodhisattva refere-se àqueles indivíduos que buscam, com grande
ímpeto espiritual, a suprema iluminação, o despertar da budeidade dentro de si mesmos e em todos os
seres sensientes. Em outras palavras, é “um ser a caminho do despertar”, sua missão é servir
indiscriminadamente à causa do dharma, incluindo, por compaixão, toda a humanidade. Para uma
descrição mais detalhada, consultar The Seeker´s Glossary of Buddhism, 1998.
65
são essencialmente vazios (em sânscrito, śūnya). Para alcançar a sabedoria Mādhyamika
deve-se seguir por degraus, no primeiro, compreende-se a realidade dos fenômenos
externos como produtos da própria mente, posteriormente descobre-se que também os
fenômenos internos são a mente, por último, alcança-se a visão sinótica de que ambos
emergem intrínsecamente, de um fio condutor comum: a vacuidade46. Corroborando
com Thrangu Rimpochê, apresentamos a contribuição de Herbert Guenther e Chögyam
Trungpa que exaltam as qualidades não discriminatórias dos textos tântricos:
46
Cf. RIMPOCHÊ, 2006, p. 38-39.
47
O “Tantra da mão esquerda” mencionado pelo autor será retomado e discutido no terceiro capítulo.
(nota nossa).
66
48
A alquímia será exaustivamente trabalhada no segundo capítulo. Por hora, ficaremos debruçados na
análise conceitual da não-dualidade budista como método propedêutico à ciência alquímica.
67
49
Mestre tântrico que teria vivido por volta do século VIII d.C.
50
Monastério localizado na região de Bengala, que engloba a Índia e Bangladesh.
51
Ser celestial feminino cuja importância é percebida pela reiterada aparição nas histórias de muitos
Mahāsiddhas, entregando-lhes iniciações e conhecimentos esotéricos. Mircea Eliade explica que estas
divindades são fadas magas, que desempenham papel importante em certas escolas tântricas; são
chamadas em mongol “aquelas que andam nos ares” e em tibetano “aquelas que vão ao céu”. Cf.
ELIADE, 2012, p. 271. Analogamente, Geshe Kelsang Gyatso afirma que estes seres são Budas tântricos
femininos e mulheres que alcançaram a realização da clara-luz-significativa. Dakas são os equivalentes
masculinos. Cf. GYATSO, 2016, p. 387. No quarto capítulo abordaremos a questão das ḍākinīs com
maior profundidade.
52
O significado do termo Mahāsiddha é exposto em nosso segundo capítulo, mais especificamente nas
páginas 64 e 65.
69
53
O budismo está dividido em três veículos (Theravāda, Mahāyāna e Vajrayāna); o vajrayāna, mais do
que qualquer outro, é, por excelência, o veículo do tantra, sem dúvida, o tantrismo constitui o pilar
místico-esotérico desta tradição, cujo desenvolvimento alcançou seu apogeu no Tibete.
70
David-Néel sustenta ainda que não era somente aos leigos que estes
ensinamentos estavam velados, senão para os próprios monges. Havia uma interessante
distinção entre o monge vulgar e o “iniciado”, o qual, muitas vezes, distinguia-se dos
monges ordenados no tocante ao grau de interesse pelos conhecimentos místicos, e pela
inquietude espiritual que emanavam:
O despertar pode, assim, ser atingido em uma única vida. Usando uma
comparação, quando se quer atravessar um país de um lado a outro,
pode-se fazê-lo a pé, o que seria muito demorado, ou então de carro, o
que já seria muito menos demorado, ou ainda de avião, o que seria
muito rápido. A viagem a pé corresponde ao pequeno veículo, a
viagem de carro, ao grande veículo, e a viagem de avião, ao vajrayana.
(RINPONCHE, 1999, p. 304).
54
Detalhes sobre a inicição no budismo Vajrayāna podem ser consultados em RINPOCHE, 1999.
55
Palavra sânscrita que, no contexto em que foi empregada, designa um longo período de tempo. Na
cosmologia budista encontramos variados tipos de kalpas, suas descrições podem ser encontradas no sutra
Visuddhimagga.
56
Sobre a especificidade de Gautama em comparação aos outros Budas anteriores e a missão específica
do tantra para esta era, Cf. RINPOCHE, 1999, p. 313-317.
73
adversidades e se tornar imunes a elas. Não se pode dizer o mesmo daqueles que
meditam no conforto do lar. Certamente, estes teriam sérias dificuldades para meditar
em cavernas. Ao contrário, o yogin não teria nenhum problema para meditar em um
ambiente protegido e confortável, pois os inconveninetes da vida ascética lhe
“forçaram” a ter um grande poder mental, uma resistência extraordinária. Veja que neste
caso as adversidades foram favoráveis, possibilitando ao yogin um avanço mais
consistente. Ou seja, o rigor de um ambiente hostil acelera a necessidade de superação
física. Se o yogin não transcende os inconvenientes físicos da caverna, rapidamente,
abandonará sua jornada de austeridades, mas se, ao contrário, ele as supera, então uma
poderosa força interior lhe é agregada. Vale destacar que não negamos a possibilidade
de se atingir elevados níveis de consciência nos confortos do lar, porém queremos
apenas enfatizar que as austeridades, realizadas de forma correta, podem acelerar o
processo espiritual.
75
57
Palavra sânscrita que significa relação sexual.
58
Cf. ELIADE, 1979, p. 108.
76
Serge Hutin (2010) segue a mesma interpretação histórica, também acredita que
o mundo Ocidental (europeu) recebeu os textos alquímicos pela mediação árabe.
Contudo, além da dominação mulçumana na Península Ibérica, a qual teve início a
partir do século VIII d. C.64 Hutin sugere ainda as Cruzadas (séc. XI-XIII d.C) como
outra zona de confluência histórica-cultural que possibilitou essa interconexão esotérica.
64
Para um breve resumo sobre a chegada da alquimia no mundo cristão europeu, Cf. HUTIN, 2010.
65
Cf. ELIADE, 2012, p. 232.
66
Jabir ibn Hayyan viveu provavelmente entre os séculos VIII e IX d.C, grande personagem da alquimia
islâmica. Ficou conhecido na Europa com o nome latino Geber. Durante a Idade Média, seus textos foram
traduzidos para o latim e tiveram grande aceitação tanto do ponto de vista esotérico quanto da química
moderna. Sem sombra de dúvidas é um dos nomes mais influentes da tradição alquímica medieval. Cf.
BALASCH; RUIZ, 2003, p. 203.
67
Cf. ELIADE, 2005, p. 234.
78
68
“DNA espiritual” é apenas uma expressão metafórica para designar à nossa natureza búdica inata, que
é, em essência, auto-iluminada e plena de sabedoria.
80
A Obra está relacionada com a “arte da transmutação”, que por sua vez está em
estreita conexão com os ritos metalúrgicos, os quais foram muito utilizados pela
literatura europeia medieval69. Também na Índia encontram-se os mesmos simbolismos
vinculados aos elementos. Ouro, prata, cobre, fogo, Sol, Lua, em síntese, todos esses
elementos naturais pertencem à Mãe-Terra. O alquimista, percebendo que seu corpo
possui as mesmas substâncias elementares da natureza, busca realizar dentro de si
mesmo uma passagem da matéria bruta (vícios e apegos) ao ouro puro (virtudes):
69
No quinto capítulo do livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade encontramos uma rica descrição
da história e dos ensinamentos ocultos da tradição alquímica vinculada às artes metalúrgicas.
Recomendamos a leitura completa desta obra a fim de extrair uma visão mais ampla sobre a influência e a
importância da alquimia em distintas tradições esotéricas.
81
uma riquíssima tradição hermética70, cuja consolidação se deu através de grandes nomes
do mundo antigo (Orfeu, Hermes Trismegisto, Zoroastro71).
70
Giovanni Reale explica que na Antiguidade tardia (sobretudo nos séculos II e III d.C) produziu-se uma
série de escritos pagãos (Corpus Hermeticum) atribuídos a Hermes Trismegisto, figura mítica
representada como o próprio deus Toth, dos antigos egípcios, considerado inventor das letras do alfabeto
e da escrtita. Os padres cristãos encontraram nesses escritos acenos da mensagem bíblica, remontariam à
época dos primeiros patriarcas, uma espécie de profecia pagã. Por esta razão, foram aceitos como
autênticos, tendo, por exemplo, Lactâncio (séc. III d.C) e, em parte, Agostinho (séc. IV d.C) como
defensores de sua autenticidade. Muitos séculos depois, Marcílio Ficino (séc. XV) marcou uma
reviravolta decisiva na história do pensamento humanista-renascentista (séc. XV-XVI) quando traduziu
para o latim o Corpus Hermeticum, que se tornou um texto basilar nesse período. Assim, por volta de fins
do século XV (1488), Hermes foi ilustremente acolhido na catedral de Siena, com uma efígie no
pavimento sobre a inscrição: “Hermes Mercurius Trismegistus, Contemporaneus Moysi”. Desta forma,
graças ao Corpus Hermeticum e outros escritos, como por exemplo, os Oráculos caldeus (texto marcado
fortemente pelas “artes mágicas”, bem como pela sabedoria egípcia e babilônica), atribuído a Zoroastro,
reformador religioso iraniano do século VII/VI a.C., os elementos paganizantes e híbridos das doutrinas
greco-pagãs conseguiram se perpetuar e intensificar no período renascentista, influenciando o pensamento
filosófico, religioso, artístico e até mesmo científico da época. Porém, desafortunadamente, já no século
XVII, vemos um rápido declínio desta tradição. Cf. REALE, 1990.
71
Giovanni Reale defende a tese de que muitos escritos atribuídos a esses lendários personagens, na
verdade, são produções póstumas de tradições religiosas e filosóficas a eles ligados. Cf. REALE, 1990, p.
34-41.
83
empírico72. A rigor, seria impossível conceber uma metafísica com base nos
pensamentos humanos, já que todos eles emergem da natureza profana e transitória
deste mundo sensível. Céu, inferno, Deus, todos esses conceitos transpessoais são
derivados de fontes auditivas e/ou visuais (figuras em livros, pinturas, etc.), recebidos
unicamente pela via sensorial e, por conseguinte, também racional, pois ambos estão
interligados. Entretanto, partir do pressuposto de que a única realidade possível é aquela
percebida pelos órgãos sensoriais é uma premissa perigosa, pois poderíamos cair em um
reducionismo epistemológico extremamente limitado, se assim procedermos estaríamos
engessando as múltiplas possibilidades hermenêuticas. Faz-se necessário uma “abertura
subjetiva para a manifestação do próprio fenômeno”, uma pré-disposição ao inusitado,
sem moldes conceituais ou regras epistemológicas fixas, sob pena de cairmos em
julgamentos descuidados, que mais refletem aspirações de um “observador
apologético”73, do que análises concisas de um pesquisador comprometido unicamente
com as evidências fornecidas por seu objeto de estudo.
72
Esta proposição é apresentada com detalhes por importantes filósofos da tradição empirista britânica,
destacando-se, sobretudo, John Locke (séc. XV-XVI) e David Hume (séc. XVIII).
73
“Observador apologético” é o pesquisador que interpreta o fenômeno religioso de forma tendenciosa,
isto é, tendo como única base “as verdades da sua própria religião”, comprometendo fortemente sua
neutralidade científica. Poderíamos citar como exemplo o próprio tantrismo oriental, o qual recebeu
interpretações muito equivocadas quando foram estudadas, no fim do séc. XVIII e início do séc. XIX, por
pesquisadores cristãos europeus.
84
O autor assevera que algumas escolas do Tantra, ainda nos dias atuais,
interpretam simbolicamente os ensinamentos relacionados às forças sexuais, mantendo-
se, por esta razão, fieis ao voto celibatário, entretanto outras escolas vão além da
mensagem alegórica, e compreendem o ato sexual como importante instrumento de
desenvolvimento interior, praticando-o fisicamente:
74
A diferença entre o tantra da mão direita e o tantra da mão esquerda será explicada com maior detalhe
no próximo capítulo, mais precisamente no iten 3.1.
75
Grandes adeptos do budismo tântrico. A vida dos siddhas e suas histórias serão aprofundadas no item
2.5.
86
76
A escola Sahajiyā ou Sahajayāna é considerada um ramo da tradição Vajrayāna. Muitos mahāsiddhas
(Luipā, Kānhu, Saraha, Tilopa etc.) que serão citados no íten 2.5, pertencem à escola Sahajiyā. Atribui-se
a eles a produção das “canções cifradas” – poesias budistas conhecidas como dohākośa. Para maiores
detalhes sobre as escolas tântricas de Bengala, incluindo a tradição Sahajayāna, consultar DASGUPTA,
1946.
88
A felicidade e a alegria, portanto, encontram-se nas forças sexuais, cada vez que
desperdiçamos estas energias, estaremos, ao mesmo tempo, perdendo grandes
oportunidades de avanço espiritual. O sêmen, entendido como fonte de energia sutil, é
uma compreensão doutrinal muito difundida no budismo; a perda desta substância seria
considerada falta grave, de modo que todos os benefícios advindos da prática sexual
seriam perdidos. Destarte, resulta em um tremendo divisor de águas o sexo ensinado
pelo Tantra daquele praticado pelo grande público.
77
Geshe Kelsang Gyatso define o termo “clara luz” do seguinte modo: “Clara luz é a natureza espontânea
da bem-aventurança, a qual realiza diretamente o vazio.” (GYATSO, 1994, p. 193).
89
78
No terceiro capítulo aprofundaremos a relação entre o sexo-yoga e a anatomia oculta do ser humano.
79
Cf. WHITE, 1996, p. 171.
80
Matsyendra e seu discípulo Gorakṣa são considerados os fundadores do Haṭha Yoga medieval.
90
81
“RA” refere-se à obra Rasārṇava.
82
Outros significados do termo rasa podem ser consultados em JUNIOR, 2015.
91
[...] Denota fluído que sustenta a vida, e como tal tem sido conhecido
desde tempos Védicos. Os fluidos corporais – notadamente o sêmen e
a secreção vaginal – começaram a ser vistos como substâncias
carregadas de energia que o aspirante no caminho da liberdade e da
imortalidade precisa aproveitar cuidadosamente. (FEUERSTEIN,
1998, p.232, tradução nossa).
Sendo assim, “fixar” e “purificar” o mercúrio são o mesmo que limpar as nossas
energias vitais: corpo, mente, fluídos sexuais, emoções etc. Sem essa “limpeza
mercurial” o projeto soteriológico alquímico torna-se imposssível, tal como nos mostra
Eliade: “A libertação da alma vital (jîva) encontra-se exposta no sistema mercurial.”
(RASASIDDHANTA apud ELIADE, 1979, p. 99).
94
inerente a toda realidade. Porém, para alcançarmos tal compreensão devemos, pouco a
pouco, sermos disciplinados com as práticas meditativas e outras técnicas budistas
ligadas à respiração, concentração, alquimia sexual, etc.
83
O termo jīvanmukta é tradicionalmente associado às escolas do hinduísmo. No contexto budista, não é
comum encontrar referências a esta palavra, contudo no último item deste capítulo, analisamos os
bodhisattvas que “alcançaram a outra margem”, ou seja, homens que também se tornaram liberados da
influência material, recebendo as mesmas características do jīvanmukta hindu. Desta forma, acreditamos
que este termo é perfeitamente aplicável em ambas as tradições (budista e hinduísta). Heinrich Zimmer e
Mircea Eliade também acreditam nessa aproximação conceitual e fazem referência a ela em suas obras.
Cf. ZIMMER, 2015 e ELIADE, 2012.
96
Entretanto, vale ressaltar que, além dos benefícios espirituais advindos pelo
reconhecimento da imortalidade da consciência, alguns alquimistas tântricos lançavam-
se em direção ao próprio corpo físico, com o intuito de imortalizá-lo, transformando-o
radicalmente, desde suas células mais elementares:
84
Esta tradição da alquimia conta ainda hoje com adeptos na Índia. Cf. C. S. Narayanaswami Aiyar,
Ancient Indian Chemistry and Alchemy of Chemico-philosophical Siddhānta-system of the Indian
Mystics. The Third Oriental Conference, Madras, 1925.
97
Em seu livro The alchemical body, David Gordon White (1996) apresenta alguns
relatos alquímicos relacionados à longevidade do corpo físico. No primeiro deles, cita
um monge alquimista da Birmânia, da tradição tântrica Zawgyis ou Weikzas cuja
tradição esotérica data do século V d.C, que teria pedido a seus discípulos para resgatar
o corpo de um alquimista que já havia falecido. Diz-se que o corpo do dito alquimista
reluzia como ouro e o consumo do mesmo garantiria a posse de poderes sobrenaturais.
Seus dois discípulos teriam consumido o corpo desenvolvendo poderes extraordinários,
a ponto de um deles conseguir levantar o próprio mosteiro, e colocá-lo de cabeça para
baixo.
85
Cf. WHITE, 1996, p. 48-51.
98
Este ideal do corpo de diamante teve seu auge no culto dos Sidhas,
que floresceu entre os séculos XVII e XVIII. O nome sidha significa
realizado ou perfeito, e refere-se ao adepto do tantra que alcançou a
iluminação. A partir deste culto ao corpo dos Sidhas, floresceu o
Hatha Yoga. As escolas mais importantes deste movimento foram a
dos Natas (ao norte do subcontinente indiano, perto de Bengala) e dos
Maheshavaras, do sul da Índia. O movimento dos Sidhas, no entanto,
transcendeu o hinduísmo, e há referências aos grandes mestres desta
tradição nos tantras budistas. Dentre os hindus, o grande mestre
tântrico desta tradição dos Sidhas foi Goraksha-Nāta e, entre os
budistas, o famoso Nagarjuna, que antecede Milarepa. (GNERRE,
2010, p. 121).
86
O “corpo de diamante” se refere à aquisição da própria imortalidade.
101
87
Ver BRIGGS, 1938.
88
Cf. ELIADE, 2012, p. 194.
89
A suposta aparição literária de Matsiendra Nāta e Goraksha Nāta na lista dos 84 mahasiddhas pode ser
consultada em DOWMAN, 1985. Não negamos que possa haver objeções, principalmente à Matsiendra,
pois ele aparece com outro nome, Minapa, na lista mencionada. Porém, Keith Dowman considera Minapa
o próprio Matsiendra, visto que existe uma enorme semelhança entre a história deste personagem e o
precursor do Haṭha-Yoga. Portanto, acreditamos, assim como Dowman, que Minapa e Matsiendra são as
mesmas pessoas.
102
Logo nos primeiros parágrafos desta obra já encontramos uma longa lista de
grandes mestres intitulados mahāsiddhas (confirmando nossa posição de que este termo
se alastra para além do contexto budista), cuja origem remonta ao próprio deus Śiva –
senhor do samādhi e dos poderes místicos –. Vejamos como o texto se refere a eles:
“Estes e outros dotados de grande perfeição [MAHĀSIDDHĀs], pelo poder do
HATHA-YOGA romperam o bastão do tempo e vagueiam pelo universo.” (HATHA-
YOGA-PRADĪPIKĀ, I, 9; MARTINS, 2014, p. 276).
por detrás da energia sexual. A própria palavra Haṭha expressa a importância das
polaridades, é interpretada por muitos autores como a união do Sol e da Lua, uma
amálgama cosmogônica: Śiva–Śakti (masculino-feminino), princípios fundamentais da
existência cuja fusão representaria em nível macrocósmico a harmonia universal e no
nível microcósmico, a própria iliminação90.
Vejamos outra descrição ainda mais detalhada sobre o sexo-yoga: “Pela prática,
ele deve recuperar para cima a gota [BINDU] que caiu na vagina [BHAGA] de uma
mulher [NĀRĪ]. E quando a sua gota [BINDU] começa a se mover, ele deve preservá-la
puxando-a para cima.” (HATHA-YOGA-PRADĪPIKĀ, III, 87; MARTINS, 2014, p. 410).
“Gota” ou Bindu é a própria energia sexual masculina – sêmen –, o qual tem papel
decisivo no sucesso das técnicas alquímicas, uma vez desperdiçado, os benefícios
espirituais estariam altamente comprometidos, a ideia é impulsionar essa energia
criadora até o topo da cabeça, despertando as faculdades ocultas dos cakras:
90
Aos leitores que quiserem aprofundar o conhecimento sobre a origem e os ensinamentos da Haṭha-
Yoga recomendamos a obra de MARTINS, Roberto Andrade. Uma luz sobre o Haṭha-Yoga. São Paulo:
Shri Yoga Devi, 2014.
104
Kuṇḍalinī91 – que por sua vez, está intimamente relacionado com as forças sexuais. Do
mesmo modo, Mircea Eliade enfatiza o poder salvacionista armazenado místicamente
no interior da serpente sagrada (Kuṇḍalinī):
Maria Lúcia Abaurre Gnerre (2010) esclarece que todas as linhas do pensamento
tântrico esotérico, incluindo o Haṭha yoga, partem dos sentidos físicos em direção às
realidades metafísicas, que estão além da esfera tridimensional:
91
No terceiro capítulo este tema foi abordado com mais profundidade.
105
92
Sobre a transmutação para solteiros ou celibatários, ver capítulo 3 (item 3.1).
106
David Gordon White (1996) sustenta que esta constelação de homens perfeitos
foi cultuada por inúmeras tradições esotéricas e até mesmo ortodoxas da Índia medieval:
“e assim foi que durante toda a Idade Média indiana, um crescente acervo dos Siddhas
veio a ser compartilhado, junto a um corpo crescente de lendas hindus, budistas e
jainistas.” (WHITE, 1996, p. 57, tradução nossa).
93
Vale ressaltar que outros autores preferem mencionar não cinco, mas seis classes de poderes místicos.
O próprio Eliade menciona, posteriormente, uma sexta e última perfeição (lokuttara), que corresponde à
extinção de todas as impurezas da mente. Cf. ELIADE, 2012, p. 154-156.
108
labirinto das teorias alimenta o intelecto com fórmulas incapazes de garantir a aquisição
do autodomínio, da mente pacificada; a individualidade e a intrepidez são suas marcas
indeléveis, como podemos observar na citação a seguir:
A fama não convencional dos siddhas se extendeu para além dos limites
indianos, alcançando a China, o Nepal e também o Tibete, como nos mostra David
Snellgrove:
Segundo David Gordon White (1996, p. 57, tradução nossa) “o termo Siddha é
ambíguo, uma vez que um grande número de escolas, seitas e tradições hindus e
budistas têm sido identificados por eles próprios ou por outros (retrospectivamente)
desde o período de Gupta.” O autor observa que a palavra tanto no contexto hindu
quanto budista, em seu sentido originário, referia-se aos semideuses, representavam
uma horda de seres divinos (ninfas, magos, protetores, músicos celestes etc.), ainda não
estavam dirigidas aos homens. Contudo, gradualmente, o termo ganhou elasticidade e
abarcou também aos seres humanos, cujas faculdades internas também poderiam ser
desenvolvidas do mesmo modo que os deuses.
Ainda sobre a etimologia do termo, Georg Feuerstein explica que da raiz sidh (“a
ser realizado”), derivam as palavra siddhi (“realização” ou “perfeição”) e siddha
(“aquele que é realizado” / “perfeito”)94. Portanto, a palavra sânscrita mahāsidha pode
ser traduzida como o “grande perfeito” ou o “grande realizado”, já que, como sabemos,
o termo mahā significa “grande”.
94
Cf. FEUERSTEIN, 1998, p. 112.
110
95
Sobre a origem literária da Guhyasamāja-tantra consultar a página 53.
96
Fontes chinesas atestam que o rei Indrabhūti viveu durante o século VII d.C. Porém, Keith Dowman
acredita que o monarca teria vivido em séculos posteriores. Cf. DOWMAN, 1985, p. 232. De todo modo,
mesmo com a inevitável margem de erro, acreditamos que sua existência se deu entre o século VII e XII
d.C.
97
Mestre e iniciador de uma importante linhagem da tradição siddha: Śavaripa, Lūipa, ḍeṅgipa,
Vajraghaṇṭa, Kambala, Jālandhara, Kṛṣṇācārya, Vijayapāda, Tilopa, etc.
111
Graças a tais preceitos tântricos, Indrabhūti foi capaz de realizar façanhas, uma
delas foi conferir liberação espiritual a todos os cidadãos de seu reino. Diz-se que todos
os habitantes da cidade alcançaram o “corpo de arco-íris”98 e deixaram este plano. Após
esse incidente a cidade ficou desértica e foi coberta por um lago. Porém no centro desse
lago construi-se misticamente uma ilha mágica cujo nome é “Gagan ganj”, que está sob
a proteção espiritual das Dakīnīs e guardariam os textos tântricos que o próprio rei
Indrabhūti teria utilizado99.
Impossível não citar a bela história de Milarepa (séc. XI-XII d.C), grande yogin,
santo e poeta tântrico do Tibete, intimamanente conectado à linhagem de Tilopa – o
mestre indiano. Quando Milarepa estava deixando o seu guru – Marpa – para sair em
retiro, este saiu de casa para saudá-lo com um singelo adeus e alterando sua aparência
ordinária, apareceu na forma de Cakraśaṁvara-tantra, alguns instantes se passaram e
Marpa tomou nova forma: Hevajra; em seguida transformou-se em Guhyasamāja. Após
o espetáculo fenomênico, chamou Milarepa e disse: "Meu filho, você viu?" Milarepa
respondeu: “Sim. Sim. Acredito que eu também possa realizar tais maravilhas”. Então,
ele foi para o retiro e, como é muito conhecido, alcançou a mesma iluminação que seu
Guru e foi capaz de realizar muitos feitos sobrenaturais, como voar no céu e outros
milagres100. Interessante observar que Marpa transfigurou-se nas principais divindades
do tantrismo, que como sabemos, possuem suas próprias expressões literárias e
iconográficas, indicando a clara influência dos mesmos sobre esta tradição.
100
Cf. DHARGYEY, 1994, p. 124-125.
113
O rei, olhando para o par que fugia, exigiu respostas para o que viu
diante dele. O monge simplesmente respondeu: "Estou levando um
jarro de licor, tenho meu filho debaixo da minha túnica, e esta é a
minha consorte. Quando o rei continuou repetindo as acusações do
que parecia ser culpa de Ghāntapa, este atirou seu filho e o jarro de
licor para o chão [...]. O solo se abriu e um gêiser de água começou a
inundar todo o espaço. A criança foi instantaneamente transformada
em um raio e o jarro em um sino. Então o yogui, carregado com raio e
sino, levitou com sua consorte para o céu, onde se tornaram as
divindades Samvara e Vajra Varahi unidos em união como pai-mãe.
[...] Ainda pairando acima da assembléia, Ghāntapa disse: "Conceitos
morais praticados sem compreensão podem ser o maior dos obstáculos
para cumprir o voto do Bodhisattva de firme compaixão. Não
cultivem a virtude e renunciem ao vício. Em vez disso, aprendam a
aceitar todas as coisas como surgem. Penetre na essência de cada
experiência até atingir o único sabor” [...]. Possuindo o poder e a
virtude de um Buda, o yogi subiu ao Paraíso das Dakinis juntamente
com sua consorte. (RINPOCHE, s/d, p. 25, tradução nossa).
102
Na página 39, apresentamos a história de Metripa, cujo teor alquímico é muito similar à história de
Ghāntapa.
103
Sobre a personificação do tantra Guhyasamāja, Cf. HUNTINGTON; BANGDEL, 2003, p. 444.
104
A história completa de Dombipa pode ser consultada em RINPOCHE, [s.d.], p. 43.
115
Outro relato nos ajudará a perceber como o ato sexual pode converter-se em
escada para a realização espiritual. De acordo com Keith Dowman (1985), Babhaha
(outro dos 84 mahāsiddhas) era um príncipe extremamente apegado ao prazer sexual,
porém tudo em sua vida mudou quando se deparou com um yogin mendicante que o
iniciou nos segredos tântricos, entregando-lhe as chaves alquímicas. Após doze anos de
intensas práticas, Babhaha alcançou a realização espiritual juntamente com os poderes
siddhis, que por sua vez possibilitou o domínio da sabedoria alquímica, como podemos
constatar em um de seus ensinamentos com teor altamente simbólico:
Quando a realização interior é atingida, regras e dogmas caem por terra dando
lugar à luz da consciência búdica. Um siddha é capaz de transgredir uma norma
religiosa sem perder sua virtude; no caso específico do ato sexual, a luxúria, por
exemplo, é transmutada em virtude, portanto utiliza-se o sexo como método de avanço
espiritual. Ao contrário, uma pessoa comum, geralmente utiliza o sexo unicamente
como desfrute dos sentidos, aumentando assim o apego da mente por questões
sensoriais, por isso, ao invés de libertar, o sexo escraviza e condiciona a mente
despreparada, lançando-a em estados emocionais inferiores quando seus desejos
concupiscentes não são atendidos.
105
Sobre a relação entre a energia sexual e a semente branca e vermelha, consultar página 86.
117
de nenhuma regra forânea, senão da própria visão interior do mestre, a qual dispensa
qualquer racionalidade. Provavelmente, se o mestre de Babhaha tivesse seguido o rigor
dos sutras, incitando-lhe a abandonar o prazer sensual, o que normalmente teria sido
feito por um guru ordinário, talvez Babhaba não se tornasse um siddha, ou na pior das
hipóteses poderia abandonar o caminho do dharma. Foi justamente com base nesses
preceitos alquímicos que o nível de “siddha” pôde ser atingido pelo antigo príncipe.
Ainda sobre este ponto, Roger R. Jackson traz interessantes aclarações sobre a
vida de três relevantes mahāsiddhas: Saraha, Kāṇkha e Tilopa. O autor acredita que
todos eles praticaram sexo-yoga, conheciam os profundos mistérios do maithuna,
estimulavam as energias do corpo sutil (a contraparte do sêmen) através do “fogo
sexual”. Trabalhando com as “gotas brancas” (sêmen ou energia sexual) acreditavam
estar acelerando o processo de transmutação das forças sutis com o intuito de
potencializar os cakras, despertendo-os e recebendo dos mesmos preciosos benefícios
espirituais. Vejamos a seguir uma importante citação que corrobora com o nosso
direcionamento teórico:
e nas mulheres a líbido106. Esta é uma das chaves essenciais da alquimia tântrica
budista. Seguindo a interpretação de Jackson, acreditamos que todos os mestres siddhas
citados acima, praticaram esta técnica sexual, eles conservavam o sêmen, não o
desperdiçavam, utilizando-o unicamente para fins espirituais.
Algo que deve ser compreendido e será detalhado no terceiro capítulo, é o poder
simbiótico do sexo-yoga. Em muitos casos, alguns mestres utilizam-se de tais práticas a
fim de liberar espiritualmente a discípula do sexo oposto. Ao contrário, também pode
acontecer o caso de a própria consorte estar em um nível superior e ajudar o seu
parceiro – as duas alternativas são válidas. A prática sexual possui um forte poder
regenerador, e se houver concentração e conhecimento dos meios hábeis (retenção e
transmutação do sêmen, juntamente com o empoderamento iniciático de um guru), pode
o praticante de menor nível se igualar ao parceiro de maior envergadura espiritual.
Portanto, esta pode ser uma das razões do porquê estas práticas estarem incluídas
no sādhana de alguns mestres tântricos. De todo modo, o fato é que a sexualidade está
presente nos relatos dos siddhas e acreditar que esses grandes mestres praticavam um
tipo de sexualidade profana é incompatível com as realizações místicas por eles
produzidas.
106
De forma mais clara, pode-se dizer que o tantra não estimula o espasmo, tanto do homem quanto da
mulher. O último grau de excitação fisiológico-sexual, também conhecido como orgasmo, deve ser
transmutado, sublimado, por meio das técnicas iniciáticas, ao invés de ser desperdiçado.
107
O texto que utilizamos é o trabalho de tradução realizado por Roberto de A. Martins, encontra-se
disponível na página http://www.shri-yoga-devi.org/textos/Tilopa-Mahamudra.pdf.
108
Tilopa (988-1069) é um mahāsiddha indiano cuja origem está intimamente conectada à escola
tibetana Kagyü, recebeu os ensinamentos tântricos diretamente do Buda Vajradhra, transmitindo-o,
posteriormente, ao seu mais exaltado discípulo – Naropa –, o qual perpetuou uma gloriosa linhagem do
Budismo Vajrayāna: Tilopa-Nāropa-Marpa-Milarepa-Gampopa-Karmapa etc. estendendo-se até os dias
atuais sob os auspícios do 17o Karmapa.
119
109
O karmamudrā está incluído nos seis dharmas de Nāropa, o qual é elencado por Tsongkhapa na
seguinte ordem: (1) calor interno (2) corpo ilusório (3) clara luz (4) transferência de consciência (5)
projeção forçada; 6 – bardo-yoga. Estes pontos correspondem à essência dos ensinamentos de Naropa
sintetizados em seis partes. Vale ressaltar que estes dharmas elencados podem ser estruturados a partir de
outras perspectivas, isto é, ao invés de seis, podem ser transmitidos com apenas quatro, três, ou até
mesmo dois dharmas, contendo diferentes enunciados, como é o caso de Marpa, mestre de Milarepa, que
parece ter se acostumado a transmitir apenas quatro principais dharmas (1 – fogo interior; 2 –
karmamudra ou sexo-yoga; 3 – corpo ilusório; 4 – clara luz). Outro exemplo é Gyalwa Wensapa (séc.
XVI), grande yogin da tradição Gelupa, que sintetizou os seis dharmas de Naropa em apenas dois
principais. Entretanto, devemos considerar estas alterações como ajustamentos didádicos, na verdade, em
essência, nada é retirado do ensinamento original, eles são apenas incorporados um no outro, conforme a
preferência metodológica de cada mestre. Cf. MULLIN, 2005, p. 29-33.
110
No terceiro capítulo aprofundaremos o estudo sobre a bodhichitta e a “questão sexual”.
111
Cf. DHARGYEY, 1994, p. 93-94.
112
Sobre a relação entre os Thigles e os cakras, Cf. DHARGYEY, 1994, p. 107-108.
120
novos vislumbres espirituais. Tilopa está ensinando o manuzeio consciente dessa força
sutil a fim de transformar a sexualidade em espiritualidade, instinto em inspiração,
luxúria em amor, pensamentos em vacuidade:
O êxtase místico proporcionado pelo sexo-yoga parece ser uma chave preciosa
utilizada por alguns mestres tântricos. Assim como Indrabhūti, Ghāntapa e Dombipa,
outros dois mahāsiddhas chamam a atenção por estarem associados a mulheres e à
sexualidade: Saraha e Virūpa. Em suas histórias são retratados sempre em companhia de
suas consortes e como apreciadores de bebida alcoólica.
No caso de Virūpa, por exemplo, é dito que num belo dia chegou a uma cidade e
pediu toda a cerveja disponível; garantiu que pagaria sua conta antes do pôr do sol,
porém quando o estalajadeiro pediu o dinheiro, Virūpa “apontou o sol com o dedo e,
graças a seus poderes, imobilizou seu curso no céu. Seis dias passaram-se sem que o sol
pudesse se pôr ou mesmo se deslocar.” (RINPOCHE, 1999, p. 454). Semelhante a uma
ingênua criança, Virūpa explicou que tinha prometido pagar a bebida antes do pôr-do-
sol, mas como não dispunha de dinheiro, não lhe restou outra alternativa a não ser
113
A tradução inglesa utiliza o termo “drop” ou “Gota” (em português) como correspondente da palavra
tibetana Thigle ou Bindu, em sânscrito, as quais estão intimamente relacionadas às energias sexuais. Estas
palavras possuem significados variados, tais como: “momento”, “ponto”, “gota”, “semente”. Cf.
DHARGYEY, 1994, p. 119-123 e GOVINDA, 1995, p. 125.
122
paralisar o astro rei. Sempre ao lado de Virūpa está sua consorte, que o acompanhava
em suas façanhas, bem como no rigor do seu sādhana.
Assim como Virūpa, Saraha também é retratado com uma consorte, indicando
claramente a importância do aspecto feminino no caminho espiritual114. Segundo Keith
Dowman (1985), a esposa de Saraha teria sido uma Dakīnī que o servia física e
espiritualmente; conta-se que o santo yogin atingiu a realização plena do mahāmudra
graças às instruções de sua divina esposa.
114
A introdução do eterno feminino nas práticas tântricas e sua grande relavância serão demonstradas no
terceiro capítulo.
123
Vemos a rebeldia típica de um siddha em muitos eventos de sua vida, como por
exemplo, certa vez em que estava se dirigindo para uma festividade anual da tradição
Nyingma, celebrada no monastério tibetano Samye, onde se reuniam muitos lamas,
monges, leigos e mestres espirituais. Conforme Keith Dowman (1983), muitos devotos
do Tibete se reuniam nessa festividade para reafirmar sua fé através de prostrações,
circunambulações, ritos de restauração de votos etc.
115
Esta hipótese será aprofundada no terceiro capítulo, mais especificamente no item 3.1.
Sobre a “divina loucura” de Drukpa Kunley e sua influência no budismo tântrico, ver: DOWMAN;
116
PALJOR, 1983.
124
Ao se deparar com esta cena, Drukpa Kunley fez a seguinte observação: “Não
tenho os materiais necessários para realizar um Rito Sacramental de Oferecimento aos
Budas e Protetores e sou muito preguiçoso para fazer prostração ou circunvalação, por
isso vou fazer uma restauração de votos espontânea.” (DOWMAN; PALJOR, 1983, p.
55, tradução nossa). Em seguida, o “santo louco” se pôs a recitar uma bela oração em
louvor aos budas protetores, demonstrando que mais vale um coração ensandecido pelo
divino do que convencionalismos religiosos permeados de regras e detalhes exteriores,
os quais são incapazes de despertar a autêntica espiritualidade de um buda.
117
Ramoche abriga a imagem de Sakyamuni dada como dote ao rei Songtsen Gampo pelo imperador da
China no século VII; também era o santuário de um oráculo poderoso do Tibete.
125
querem retirar da razão a sua primazia, mostrar que sua lógica, ainda que muito tenaz, é
incapaz de conferir os níveis mais profundos do samādhi. Somente no estado de “não
mente”, na ausência absoluta dos pensamentos, que se torna possível a comunhão com a
nossa natureza iluminada. Os monges, na história supracitada, estavam perdendo tempo
com discussões que não os conduziriam à verdade. Kunley tentou ensiná-los,
ironicamente, sobre a “realidade” que existe além dos signos, das palavras, dos
pensamentos. A experiência do real não advém com provas racionais, tampouco com
lógica argumentativa, os fenômenos mais belos da vida atuam sem linguagem, a
serenidade de um lago cristalino, por exemplo, é capaz de conferir muitos ensinamentos
que estão além da razão, basta uma mente treinada na arte da meditação para “sentir” a
beleza e a inspiração desta cena e com ela comungar, apredender silenciosamente, sem
necessidade de conceituações, rótulos, comparações, é um simples intuir, permitir que
os mistérios da existência se desvelem, de forma espontânea e natural.
melaço’”. “Este talvez seja doce demais. Seria preciso algo mais
forte”. “Então, se a chamássemos de ‘Tara-tigre-leopardo-serpente-
venenosa’”. “Não isso não; seria necessário algo mais amplo”.
“Compreendo muito bem: ‘Tara-céu-terra-espaço’”. “Seria melhor
algo que fosse mais adequado ao que sou”. Então, seria perfeito ‘Tara-
que-fez-os-votos-porque-ama-o-amor-mas-tem-medo-de-fazêlo’”.“Por
que não ficar apenas com a primeira parte – disse a freira. ‘Tara que
fez os votos’ seria muito bom”! (RINPOCHE, 1999, p. 288-289).
Kalu Rinpoche (1999, p. 336) também relata outra rebeldia de Drukpa Kunley,
que reforça nosso posicionamento: “Uma ocasião em que se encontrava na região de
Lhassa, um benfeitor disse-lhe que, nos próximos dias, um importante lama iria dar uma
iniciação e peguntou-lhe se gostaria de ir até lá.” Porém, ao saber que seria necessário o
cumprimento dos votos (samaya) para ser iniciado, Kunley acaba refutando o convite.
Ora, com este relato percebemos que a proposta do santo tibetano é livrar-nos de regras
e condutas estereotipadas cuja intenção, ainda que pareça nobre, torna-se sombria, pois
entorpece a razão humana, transforma-nos em sombras, não permitindo o acesso à
sabedoria. Não há mal algum em receber um nome iniciático, ou obedecer a certos
votos, o problema é se apegar a estes eventos, transformando um simples ato
convencional em “um grande acontecimento”, o qual ao invés de nos ajudar no caminho
do dharma, robustece o orgulho e a vaidade, alimentando ainda mais o nosso ego e
distanciando-nos da grande meta.
que por sete dias a bela jovem praticou seus ensinamentos e atigiu o completo
despertar118.
118
Para maiores detalhes Cf. DOWMAN, 2014.
119
Sobre o místico poder de transladar-se de um ponto a outro ver DOWMAN, 2014, p. 75.
129
aproximavam. Ou seja, de acordo com as crônicas orais e escritas, Kunley era sem
sombra de dúvida um jīvanmukta (liberto em vida), um homem que atingiu a “outra
margem”.
Keith Dowman em sua obra Masters of Mahāmudrā: Songs and Histories of the
Eighty-Four Buddhist Siddhas (1985), explica que o termo siddha só pode ser conferido
aos indivíduos que alcançaram o completo domínio do mahāmudrā 120. É interessante
notar a estreita relação entre esta técnica budista e o movimento mahāsiddha.
120
A palavra mahāmudrā, nesse contexto, refere-se à técnica de meditação budista – muito difundida na
tradição tântrica tibetana – cujo objetivo é a experiência do vazio iluminador. “O termo é frequentemente
usado no Yoginı-tantras e denota a meta final do caminho tântrico – o Buddhahood – que é a experiência
da bem-aventurança, da sabedoria do vazio.” (JACKSON, 2004, p.140, tradução nossa). Evitando
polêmicas conceituais, acreditamos que a perfeição do mahāmudrā budista está em sintonia com o
samādhi do yoga clássico hindu. A libertação (mokṣa) onto-epistemológica pretendida pelo yogi hindu
por meio do atingimento do samādhi não difere daquela perseguida pelo nirvāṇa, através do mahāmudrā
budista. Em ambos os casos busca-se a supressão do ego através da transcendência dos estados
psicomentais produzidos pelo contato com a matéria.
130
121
Na página 110 explicamos sobre a natureza do Buda Vajradhara.
131
A palavra “realização” deve ser muito bem compreendida, com ela queremos
dizer que o devoto alcançou o “completo domínio” da técnica meditativa, sua mente
está perfeitamente controlada e o ego foi superado pela luz da consciência búdica, a
qual confere, entre outras coisas, a conquista dos poderes miraculosos, os quais são
mencionados pelo mestre tântrico Nāgārjuna:
122
Lembremos que saṃyama indica as últimas etapas da técnica yóguica que são: concentração
(dhāraṇā), meditação (dhyāna) e samādhi.
136
encher o espaço etc.; atravessar paredes, andar nos ares, tocar com a
mão o Sol e a Lua) e, para terminar, menciona a transformação “da
pedra em ouro e vice-versa” [...]. (ELIADE, 2012, p. 232).
123
No terceiro capítulo aprofundaremos a relação entre o tantra e o seu caráter soteriológico.
137
Geshe Thubten Jinpa explica que Śāntideva, certa vez, foi colocado à prova
pelos seus superiores. O monge indolente deveria fazer uma preleção para toda a
comunidade com base nos ensinamentos budistas. Todos pensavam que Śāntideva não
conseguiria, porém, nesse mesmo dia, recitou sua famosa obra “O caminho para a
iluminação” (Bodhicharyavatara) ou “Guia para o modo de vida do Bodhisattva”
(Bodhisattvacharyavatara):
Este texto se tornou uma das obras budistas mais apreciadas pela tradição
Mahayāna, sendo lida e comentada, até mesmo nos dias atuais, pelas quatro grandes
escolas tibetanas. O XIV Dalai Lama utiliza frequentemente uma das estrofes do livro
de Śāntideva como fonte de inspiração: “Por tanto tempo que o espaço durar e por tanto
124
A obra de Śāntideva e os relatos de sua biografia foram consultados a partir do texto digital intitulado
O caminho para a iluminação: Guia para o modo de vida do Bodhisattva. Organizado pela equipe
dharmanet e cortejado com a edição SHANTIDEVA. O Caminho para a Iluminação —
Bodhicaryavatara. Lisboa: Livros e Leituras, 1998. E ainda: DOWMAN, Keith; BEER, Robert. Buddhist
Masters of Enchantment: The Lives and Legends of the Mahasiddhas. Inner Traditions: Rochester, 1998.
138
tempo que os seres vivos existirem, que eu possa até lá também esperar para dissipar a
miséria do mundo.” (DALAI LAMA XIV apud JINPA, 2017, p. 2).
O verdadeiro iluminado não tem dívidas com a existência, embora suas ações
possam parecer contraditórias, no seu mundo interior reina a estabilidade, o ego já foi
subjugado com o látego da consciência búdica, os galanteios psicológicos da mente não
os afetam mais, perderam força, cansaram de “pedir em vão”, o resultado é a perfeita
harmonia interior; estes seres conformam o ilustre círculo esotérico dos “budas
iluminados”, homens que “alcançaram a outra margem”. Utilizaram a grande barca
(doutrina) por um período, até o ponto em que suas mentes se transformaram na própria
Lei, libertando-os de qualquer condicionamento adventício.
Se o ser não existe no tempo do não-ser, quando será que existe? Pois
o não ser não desaparecerá enquanto o ser não tiver nascido, e este não
se pode produzir enquanto o não-ser não desaparecer. Do mesmo
modo, o ser não pode passar ao não ser, pois uma mesma coisa
possuiria então esta dupla natureza? Portanto, não há cessação nem
existência. O mundo não conhece nem nascimento nem destruição
[...]. Sendo as coisas vazias de existência, que haverá a ganhar ou a
perder? Quem nos há de honrar ou desprezar? Donde virá o prazer e a
dor? Que haverá de agradável ou odioso? [...]. Se examinarmos o
mundo dos vivos, quem morre, quem irá nascer, quem nasceu, o que é
um parente, um amigo? Compreendam, como eu, que tudo é
semelhante ao espaço! (SHANTIDEVA, 2017, p. 61).
125
Gampopa, o mais famoso discípulo de Milarepa, nasceu em 1079 d.C. em Nyal (área central do
Tibete). Seu nascimento foi anunciado por uma profecia feita pelo próprio Buda Shakyamuni. Herdou de
seu pai a vocação médica e o amor pelo budismo. Com apenas dezesseis anos de idade, além do
conhecimento médico, também já havia recebido muitos ensinamentos tântricos, de diferentes mestres da
linhagem Nyimgma. Casou-se aos vinte e dois anos e teve dois filhos, porém, desafortunadamente, poucos
anos mais tarde, uma grave epidemia assolou o país causando a morte de muitos tibetanos, incluindo sua
esposa e seus filhos. Após esse incidente, Gampopa decide tomar os votos completos de ordenação, e em
142
budeidade nasce no mundo sem esforço, de forma inata, espera pacientemente por sua
expressão. Gampopa menciona três motivos do porquê nascemos com essa herança
espiritual: “Porque o corpo absoluto, a vacuidade, está em todos os seres; porque, na
realidade, a natureza de Buda não tem distinções; porque todos os seres têm o potencial
do despertar.” (GAMPOPA, 2011, p. 29).
pouco tempo conseguiu reunir em torno de si 51.600 monges, e ainda 500 discípulos avançados (yogis) –,
ampliando consideravelmente o número de praticantes budistas. Dentre os seus principais seguidores,
destacamos o primeiro Karmapa (Düsum Khyenpa) e a renomada Phagrno Drupa – . Portanto, as escolas
Kagyupa são o resultado da expansão doutrinal e monástica realizada pelo mestre Gampopa, o qual, por
esse motivo, torna-se uma figura fundamental para o pensamento tântrico tibetano. Cf. STEWART, 1995.
126
“O mestre indiano Asanga (315-390 d.C) e seu irmão Vasubandhu (320-380 d.C) são considerados os
fundadores da escola Yogācāra, a qual constitui um dos pilares hermenêutico-filosóficos da tradição
budista Mahāyāna. Diz-se que Asanga praticou intensamente as técnicas budistas por 12 anos, ao fim dos
quais foi transportado ao Reino Tushita, ou deuses contentes, sendo presenteado pelo próprio Buda
Maitreya (regente do Buda Sakiamuni e o próximo Buda a se manifestar na terra) com cinco tratados: ‘O
Ornamento da clara Realização’ (Abhisamayalankara); ‘O Ornamento dos Sutras Mahayana’
(Mahayanasutralankara); ‘Distinguindo Dharma e Dharmata’ (Dharmadharmatavibhaga); ‘Distinguindo
o meio dos extremos’ (Madhyantavibhaga); e finalmente o Uttaratantra ou ‘natureza de Buda’.” Cf.
RIMPOCHÊ, 2006, p. 13.
127
A palavra páli tathāgata é traduzida literalmente como: “Assim chegaram” ou “Assim se foram”. É
um dos dez títulos utilizados pelo Buda para se referir a si mesmo ou a outros budas. De um modo geral,
o termo diz respeito aos indivíduos que alcaçaram a completa iluminação espiritual. Outro conceito, bem
próximo a este, mas com uma sutil diferença é Tathāgatagarbha. Literalmente, pode ser traduzido como
“o ventre do Tathagata”. Está diretamente relacionado com a “natureza de buda”, o potencial inato de
todo ser humano para atingir o completo despertar. Cf. THE SEEKERS GLOSSARY OF BUDDHISM,
1998, p. 746-747. Em outro dicionário budista consultado o termo tathāgata é traduzido literalmente
como “assim foi” ou “assim vem”. O conceito, todavia, está sempre relacionado com indivíduos que
alcaçaram a perfeição espiritual. Cf. NYANATILOKA, 1970. Finalmente, o glossário de Nissim Cohen
explica o termo tathāgata do seguinte modo: “é um epíteto frequentemente utilizado pelo Buda ao se
referir a si mesmo. O significado literal é ‘aquele que tenha assim (tathā) vindo ou chegado (āgata)’ ou
‘aquele que tenha lá (tathā) ido (gata)’; mas a razão para o uso deste termo ainda é incerta, havendo
muitas e diferentes explanações para tanto. É dito que o tathāgata não pode ser ‘descoberto’, isto é,
conhecido empiricamente, mesmo durante o tempo de vida, muito menos após a morte; e que nem os
cinco Agregados de Existência (Khandhā) devem ser tidos como sendo o tathāgata, e nem sequer o
tathāgata poderá ser achado fora destes fenômenos corpóreos e mentais”. (COHEN, 2008, p. 514).
143
este termo, porém o fato é que, em muitas de suas acepções, ele está diretamente ligado
ao “estado de Buda”, ao homem que alcançou a beatitude espiritual e é capaz de
“apontar” o caminho para os demais.
128
Palavra sânscrita que significa “o desperto”, “o iluminado”. Portanto não é um nome próprio, mas um
título conferido a qualquer indivíduo que tenha alcançado a iluminação espiritual. Trata-se da meta última
do budismo onde um determinado nível de consciência é atingido no qual a sabedoria e a bem-
aventurança se manifestam em máximo grau.
144
PARTE II
A PRÁTICA DO MAITHUNA E A RESSURGÊNCIA DO PODER
FEMININO
146
Deste modo, acreditamos que os Tantras não estão dirigidos apenas aos aspectos
simbólicos da sexualidade, como atesta o lama Govinda, falando especificamente do
maithuna (sexo-yoga), existe declaradamente a incitação a esta prática, de modo que
negá-la, do ponto de vista hermenêutico, seria altamente comprometedor, como destaca
David Snellgrove:
Edward Conze (1973) admite haver uma grande variedade de seitas tântricas,
porém destaca duas escolas como as mais importantes do ponto de vista histórico: a
tradição Vajrayāna (Tantra da esquerda) e a Escola chinesa Mitsung (Tantra da direita).
Ambas vieram da Índia, a primeira concentrou-se, sobretudo ao redor das escolas
tibetanas, já a segunda disseminou-se principalmente na China e no Japão, e teria como
suposto fundador um segundo Nagārjuna, o alquimista, que teria vivido por volta do
século VII d.C.
149
Ao que tudo indica algumas escolas tibetanas parecem ter realmente substituído
a consorte física durante o rito sagrado do maithuna, por uma forma feminina
imaginária, buscando, com este método, a preservação absoluta do voto celibatário.
Reforçando a hipótese de Severino, Houseman adverte sobre o desuso do maithuna
estimulado pelos monges tibetanos:
Ora, com toda esta querela envolvendo as práticas sexuais somos forçados a
fazer uma curiosa interrogação: Afinal, qual é o melhor caminho espiritual? Qual seria o
mais eficiente: o caminho do celibato ou o caminho do sexo-yoga? Essa parece ser uma
questão essencial.
Para corroborar com nossa premissa, poderíamos citar dois mestres tântricos –
Drukpa Kunley e Gampopa129. O primeiro utilizou o sexo como instrumento de
salvação, já o segundo não. Ambos são exaltados devido ao alto grau espiritual que
atingiram, suas vidas transformaram-se em fonte de inspiração para muitos praticantes
budistas. Estes dois mestres são considerados verdadeiros budas pela tradição tântrica,
129
Sobre a vida de Gampopa, consultar pág. 140. Os ensinamentos e algumas anedotas sobre Drukpa
Kunley estão relatados no segundo capítulo (item 2.6).
152
indivíduos com plena realização interior. Poderíamos citar inúmeros outros mestres que
seguiram pela via sexual e outros tantos que preferiram a via do celibato, indicando
assim que a libertação budista, a completa salvação do sofrimento (iluminação) pode ser
atingida pelos dois métodos.
Desta forma, acreditamos que o sexo-yoga não é apenas “uma” prática dentre
tantas outras que compõe o vasto cânon do Tantra, como afirmou Traleg Kyabgon em
parágrafos anteriores, senão que, em alguns casos, para certos indivíduos com
tendências kármicas específicas, ela se torna indispensável, tão importante quanto o
próprio celibato para aqueles buscadores com propensões ao isolamento monacal.
Portanto, esta tese se propõe a tarefa de ressignificar o valor do sexo-yoga, indicando
que este seria um caminho genuíno para a libertação, de modo que retirá-lo da ortodoxia
regular seria altamente comprometedor para as aspirações salvíficas do budismo. Ao
negar a via sexual, o budismo está fechando as portas da salvação interior para muitos
discípulos. Lembremos o caso do rei Indrabhūti 130, um grande adepto do Tantra, o qual
pediu às ḍākinīs um método de liberação que pudesse incluir os prazeres sensuais.
130
A história deste rei é relatada na página 109.
153
Nesse sentido, existe a vital distinção entre “sentir um estado interior e estudar
sobre um estado interior”. Podemos dar o exemplo de um homem que estudou a vida
inteira livros sobre meditação e os benefícios da mente pacificada, porém nunca atingiu
este estado, mesmo com toda a carga teórica nunca alcançou a paz profunda advindo da
mente meditativa; analogamente acontece com um indivíduo que sabe, intelectualmente,
todas as regras para dirigir um carro, porém a menos que entre num veículo e pratique
regularmente nunca será um bom condutor. Portanto, a prática, o treinamento diário é a
essência do método tântrico budista. A proposta é estimular o “experimentar”, o
“vivenciar”, em detrimento ao “conceituar”, portanto:
131
Cf. SUZUKI, 2002, p. 34.
156
132
Poesia escrita em sânscrito e outras línguas antigas da Índia. Emprega vários tipos de versos e
medidores. Os versos do Doha são organizados em apenas duas linhas, formando um “par” ou um “casal”
de ideias concisas, cada qual podendo conter uma forma de pensamento independente. Os dohākośa estão
inseridos na segunda parte do cânon tibetano, mais especificamente no Tanjur (bsTan-ḥgyur) “tradução
dos tratados”. Cf. JACKSON, 2004.
157
Esta “comunhão dos contrários” tão marcante na literatura tântrica é atestada por
outros pesquisadores, como é o caso do professor Shashi Bhusan Dasgupta, que
deposita na palavra “união”, um dos temas centrais de todos os Tantras budistas:
Em grande parte das aparições de prajñā (sabedoria) e upāya (meios) nos textos
tântricos, via de regra, eles estão dirigidos ao processo de realização espiritual. Um forte
cunho soteriológico está implícito na união destes dois conceitos, por meio deles, o
yogin supera as limitações grosseiras do devir e alcança o “grande êxtase”
(Mahāsukha), que nada mais é do que o próprio nirvāṇa. O professor Benoytosh
Bhattacharyya explica que os termos sânscritos Mahāsukha (êxtase supremo) e
162
133
Conforme o dicionário budista editado por Nyanatiloka, a palavra sânscrita nirvāṇa, significa
literalmente “extinção” (nir + va, cessar o sopro, se tornar extinto); é a libertação última e definitiva do
renascimento, velhice, doença e morte, de todo sofrimento/miséria/infelicidade/desventura. Cf.
NYANATILOKA, 1970.
163
Ora, somente a compaixão (Karuṇā) indivisa do vazio é capaz de amar por amar,
sem pedir nada em troca. Quando a vacuidade ou a grande compaixão se apodera dos
amantes, um belo fenômeno acontece: eles são lançados para fora do tempo, tornam-se
unos com a existência, o “poder da presença”, do “existir-na-momentaneidade” é
sentido desde as células mais elementares do corpo físico, nesses instantes de êxtase
místico, os amantes se apoderam do “grande segredo”, da “flor de ouro”, do seleto
espaço da atemporalidade, da “outra margem”, reduto dos yogins avançados.
A mulher, para ele, não é um simples objeto, senão uma ponte, um complemento
existencial que transcende os limites da matéria. Na verdade, busca-se, com as práticas
134
Ego, neste contexto, significa a falsa identidade, desejos e anseios que habitam a mente humana,
porém estes não refletem a nossa real natureza, que é pura e iluminada.
165
Portanto, está claro que a palavra rāga foi usada para significar a
intensa emoção do êxtase que é produzida através da metódica e bem
controlada união de prajñā e upāya; esta emoção, graças a sua elevada
intensidade, é capaz de absorver todas as demais funções constitutivas
da mente e por isso trazer a liberação para o yogin. (DASGUPTA,
1950, p. 137-138, grifo do autor, tradução nossa).
dito que kṛpā ou compaixão é entendida como rāga porque com ele
alcançamos a felicidade (rañjati) e salvamos (rakṣati) todos os seres
imergidos no oceano do sofrimento. No Jvālāvali-vajramālā-tantra
encontramos a palavra rāga utilizada como upāya. Mas gradualmente
a palavra passou a designar o êxtase intenso e transcendental
decorrente das práticas do sexo-yoga, que através dos meios (upāya)
atingie-se a Bodhicitta ou o Sahaja que são da mesma natureza da
grande bem-aventurança (māha-sukha). No Kriyā-saṁgraha é dito
que o nectar da bodhicitta é para ser meditado em fusão com
māharāga. No Hevajra-tantra também encontramos o senhor supremo
e sua Śaki em profunda união, no êxtase-sahaja, em intensa afecção
emocional [...]. (DASGUPTA, 1950, p. 135-136, grifo do autor,
tradução nossa).
PADME HUM”, recebe uma significação erótica, através de sua recitação fervorosa, o
devoto imagina a si mesmo unido sexualmente com Śakti (energia feminina), desta
conexão surge um poderoso círculo energético, envolvendo os praticantes em uma
atmosfera psíquica-sexual de grande intensidade, abrindo ou despertando os canais sutis
do praticante, a fim de que este atinja a suprema dita, o êxtase místico, a fusão
cosmogônica:
135
A obra The Tantra escrita por Victor M. Fic é citada de forma diferente das demais literaturas, porque
foi consultada por meio do leitor digital Kindle, o qual não utiliza a referência numérica a qual estamos
habituados (no leitor Kindle não aparece a página, mas a localização, esta não segue uma ordem
crescente). Portanto, a citação terá o ano da obra seguida de sua “localização”, conforme o leitor digital
mencionado.
170
levitação, conhecimento das vidas passadas, corpos sutis, experiência do samādhi etc. A
aquisição de todas essas faculdades mencionadas é a própria “criação” mencionada,
alegoricamente, pelos textos tântricos.
O sexo-yoga trabalha com as energias sutis que circulam pelo corpo humano,
forças transpessoais que normalmente não são percebidas pelas pessoas comuns. O
Tantra busca exercitar justamente este lado supra-sensível adormecido, inativo talvez
173
136
Sobre a definição da palavra tibetana thigle ou bindu em sânscrito, ver págs. 84-85, 100, 116-118.
137
Sobre a técnica do tummo, ver pág. 31.
175
Portanto, estas práticas tântricas que estimulam o fogo interior são fundamentais
para o desenvolvimento da anatomia oculta do praticante. Na verdade, com elas, o
176
138
Sobre os seis dharmas (ou yogas) de Naropa, consultar NAROPA, 1997.
177
Quando a energia foi estabilizada, ou seja, quando está totalmente sob o domínio
do yogin, então sobe, de cakra em cakra, até o topo da cabeça e o praticante
experimenta o prazer místico, que é da mesma natureza da iluminação. Cada cakra, ao
receber o fogo erótico, experimenta sensações sublimes produzidas pela sutilização da
consciência. Pouco a pouco o autodomínio e a disciplina mental se apoderam do
praticante até o momento em que ele transmuta o prazer mundano, transforma-o em
uma espécie de estética transcendental. Portanto, a bodhicitta possui dois aspectos bem
definidos: um “volátil” (que produz o prazer mundano) e outro “estável” (que produz
um prazer transcendental):
139
Uma explicação detalhada sobre as quatro alegrias e as iniciações correspondetes a elas podem ser
consultadas na obra Studies in the Kālacakra Tantra. Salienta-se neste texto a possiblidade de realizar tais
práticas com uma consorte física ou imaginária.
140
As palavras Kuṇḍalinī e bodhicita, nesse contexto, são sinônimos, representam a energia sexual
adormecida. A primeira é mais utilizada pelos tântricos do hinduísmo, já a segunda aparece com mais
freqüência nos textos do tantra budista.
178
energia sutil que flui em direção à liberdade incondicionada, que neste contexto,
encontra-se potencialmente armazenada no topo da cabeça:
Nādīs que aqui, ambas, unem-se e se separam [...] Ela, a mais sutil das
sutis, mantém em Si mesma o mistério da criação [...] Por Sua
radiância o universo é iluminado e pela consciência eterna é
despertado – ou seja, Ela está associada tanto como uma Criadora
(Avidyā Shakti) como também é o meio como Vidyā Shakti, pelo qual
a Liberação pode ser alcançada. Por esta razão diz-se que no
Hathayogapradīpikā é Ela que dá a liberação aos Yogīs e a escravidão
aos ignorantes. Pois quem a conhece, conhece o Yoga, e aqueles que
são ignorantes do Yoga são mantidos na escravidão de suas vidas
mundanas. (WOODROFFE, 1950, p. 123).
citados nos textos tântricos budistas. Em sua obra A commentary on the Kalacakra
tantra, Lharampa Ngawang Dhargyey observa que estes conduíntes interiores se
formam no ser humano ainda no útero, antes mesmo do nascimento:
prāṇāyāma, mudrā, āsana etc. No sistema tântrico budista os nādīs necessitam ser
estimulados a fim de que a energia sutil possa se desenvolver harmoniozamente. A
função deles é a mesma daquela encontrada nos textos do Tantra hindu, a diferença
básica está na terminologia, como sublinha o pesquisador Dasgupta:
As escolas tântricas ensinam que os “ventos sutis” (prāṇa) atuam como uma
espécie de veículo, um condutor da mente, uma força invisível que tornaria possível o
“movimento epistêmico” da consciência, isto é, sua capacidade de realizar induções,
deduções, analogias, em suma, todas essas potencialidades intelectivas seriam de
responsabilidade dos “ventos interiores”, como sugere Gyatso (2016, p. 277): “Eles são
também denominados ‘os cinco ventos das faculdades sensoriais’ porque possibilitam o
desenvolvimento das percepções sensoriais.” Portanto, a principal função dos “ventos” é
mover a mente em direção ao seu objeto, estabelecendo uma perfeita interconexão
epistemológica, a ponte entre o sujeito perceptivo e o objeto percebido é efetuada pelos
movimentos sutis dos ventos interiores:
141
A relação do prāṇa com as forças sutis do corpo é um tema muito amplo e complexo. Sugerimos como
introdução ao assunto a leitura da obra Fundamentos do Misticismo Tibetano, escrito pelo Lama
Anagarika Govinda.
185
As “gotas vermelhas” (mais fortes nas mulheres) e “brancas” (mais fortes nos
homens) são os próprios thigles, energias sutis disseminadas por todo o sistema
transpessoal humano. Na verdade, os “centros” (cakras), os “ventos” (prāṇa) e também
os thigles, referem-se à experiência yóguica de cosmificação do corpo (cf. Imagem 2),
uma sobreposição de qualidades místico-fisiológicas cuja efetivação acontece por meio
dos “estados superiores de consciência”, realizáveis por meio de uma aguda ampliação
da “estética corporal” (sensibilidade), atingida através da plena harmonia entre
meditação, respiração e sexo-yoga. Em outras palavras, o corpo, inebriado pelas práticas
do êxtase, responde, através das intuições e inspirações, aos variados estímulos
somáticos do cosmos, sendo capaz de captar vibrações sutis antes ignoradas, tornando-
se um dócil instrumento do grande mistério, passivo e receptivo, como nos demonstra
Eliade:
Mircea Eliade (2012) alerta sobre o perigo dos extremos: tanto a direita
(rasanā) quanto a esquerda (lalanā) fluem em direção ao perigo, à armadilha da ilusão,
ao devir incontrolável das forças naturais. A lua (canal direito) e o sol (canal esquerdo)
devem fusionar-se em Avadhūtī, dentro do canal central, nem na extrema-direita
tampouco na extrema-esquerda, rigorosamente no meio. A grande beatitude
(mahāsukha) surge quando os “ventos” e os “thigles” encontram a via da salvação, o
canal central ou Avadhūtī. “[...] A reunião dos ventos dentro desse canal faz com que a
atividade negativa associada com os ventos dos canais direito e esquerdo seja
abandonada. Ele é também conhecido como ‘o canal da mente’ e como ‘Rahu’.”
(GYATSO, 2016, p. 267).
142
A palavra Suṣumnā é utilizada no tantra hindu para se referir ao canal central; já no tantra budista
encontramos o termo Avadhūtī.
189
Portanto, o yogin deve esforçar-se em não permitir que sua energia interior flua
em direção aos canais da direita ou da esquerda. O mestre Gyatso explica que é possível
perceber o momento exato em que as energias sutis entraram no canal central, por meio
do ritmo respiratório:
Fonte: https://www.exoticindiaart.com/product/paintings/kundalini-chakras-in-human-body-TP88/.
Acessado em 21/09/2018
A cessão da respiração durante o ato sexual lança o yogin cada vez mais
profundamente dentro de si mesmo, a ponto de perceber que o seu corpo físico é
simplesmente um veículo dentre tantos outros de que ele próprio dispõe. Esta
constatação metafísica é possibilitada pela sutilização da consciência. Identificada
unicamente consigo mesma, a consciência se expande e experimenta sensações oriundas
de outros corpos, muito mais sutis do que o veículo físico. Sobre este ponto, o
pesquisador Evans-Wentz destaca os diferentes tipos de corpos sutis, os quais ele chama
de “bainha” ou “camada”:
O culto à Ísis, no Egito, bem como o misticismo dos primeiros gnósticos cristãos
e sua nelfrágica busca por Sophia, são outros exemplos destacados da ressurgência da
“grande mãe”, no coração das escolas místicas ao redor do mundo. O mapeamento de
todas essas tradições matrilineares não é uma tarefa fácil, tampouco é o nosso interesse
aprofundar em demasia este complexo tema, desejamos apenas que o leitor compreenda
que o Tantra budista e também hinduísta, de algum modo, participa, assim como as
culturas assinaladas acima, de uma intensa adoração ao aspecto feminino da existência.
budista, como “a via mais rápida para a realização integral do ser humano”,
particularmente adaptada às condições espirituais da nossa era, Kali-Yuga, cuja extrema
decadência se considera poder ser transmutada numa oportunidade superior de
libertação.
“Toda mulher nua encarna a prakṛti.” (ELIADE, 2012, p. 216). Com esta
afirmação, Eliade lança sobre os ombros delicados da mulher a honra de conservar
dentro de si mesma os segredos mais sublimes da existência. O corpo feminino é, por
esta razão, uma manifestação individual e temporária da natureza manifesta e
imanifesta, sua nudez é comparável aos princípios de prakṛti (natureza), que quando
199
[...] Pelo fato de não se tratar mais de um ato profano, e sim de um rito
em que os celebrantes já não são humanos, mas seres “desapegados”
como deuses, a união sexual não mais participa do nível kármico. Os
textos tântricos repetem muitas vezes o adágio: “Pelos mesmos atos
que fazem queimar certos homens no inferno durante milhões de anos,
o yogin obtém sua eterna salvação”. (ELIADE, 2012, p. 220).
200
O maithuna deve ser compreendido como um “projeto”, não apenas como uma
prática. O “projeto” a que nos referimos é o movimento em direção à deusa, isto é, a
mulher converte-se em divindade. Recebe o amor e a devoção do seu parceiro,
semelhante às deusas-consortes do budismo. O “eterno feminino”, como já destacamos,
é sentido no amor fraternal, em seu aspecto devocional, experimentado em máximo grau
pelo coração fervoroso do yogin, o qual finalmente é capaz de enxergar a sacralidade
inata contida no interior de cada rosto feminino.
Uma vez que o yogin tântrico tenha culminado com êxito o seu processo de
purificação, então se torna possível o encontro com a deusa, a grande musa do budismo,
a qual espera pacientemente por seus filhos exiliados no doloroso vale do samsāra.
Agora, com os olhos purificados pelo sādhana, a nāyikā (mulher devota) converte-se no
próprio mistério da criação, a sacerdotiza nupcial converte-se na resplandecente
divindade Tārā145.
143
Āropa desempenha um papel importante na tradição Sahajiyā; indica o primeiro movimento para a
transcendência que consiste em ver o ser humano não no sentido físico, biológico e psicológico, mas em
uma perspectiva ontológica; Cf. textos em S. Dasgupta, Obscure Religious Cults, p. 158.
144
“A mulher não deve ser tocada pelo prazer corporal, mas pelo aperfeiçoamento do espírito”, afirma o
Ānandabhairava (citado por Bose em Post-Caitanya Sahajiyā Cults, 1930, p. 77-78).
145
Esta é uma questão muito pessoal de cada iniciado tântrico, citamos aqui a deusa Tārā, porque o seu
culto é muito popular no Tibete e suas características fraternais estão totalmente alinhadas com os cultos
arcaicos mencionados nos parágrafos anteriores. Entretanto, outras divindades femininas poderiam ser
mencionadas, sobretudo da tradição vajrayāna, que estão em perfeita sintonia com as características
protetoras e amorosas da Grande Mãe.
146
Existem vinte e uma manifestações de Tārā, cada uma delas possui um ritual (pújá) e um mantra
específicos. A Tārā Branca, por exemplo, está vinculada com a cura, a Tārā Vermelha à prosperidade.
Inquestionavelmente, dentre todas as emanações, Tārā Verde ocupa a posição de maior destaque, está
diretamente relacionada à atividade da compaixão, uma das virtudes mais exaltadas do budismo, e por
este motivo a escolhemos como a principal representante do panteão feminino budista.
203
Bokar Rimpoche (2018) ensina que o divino amor de Tārā, pode ser percebido inclusive
em sua iconografia: a cor verde emanada de seu próprio corpo luminoso representa a
sua completa resignação ao dharma, isto é, atende prontamente ao chamado de um
“coração aflito”. A perna esquerda dobrada representa a renúncia de todas as emoções
conflituosas. A perna direita meio dobrada indica que, sob qualquer circunstância, ela
está sempre disposta a se levantar e se dirigir aos seres que necessitam da sua proteção.
Com a sua mão direita, ela faz o mudrā da doação, indicando com esse gesto a sua
especial vocação em conferir realizações comuns (poderes sobrenaturais) e as
realizações sublimes (realização da natureza da mente). Sua mão esquerda faz o mudrā
do refúgio, os dedos polegares e anelares estão juntos simbolizando a união dos “meios”
(upāya) e do “conhecimento” (prajñā), numa clara alusão à sua natureza tântrica. Os
seus outros dedos para cima representam as Três Jóias: Buda, Dharma, e Samgha. As
hastes do lótus que ela segura em suas mãos indicam que todas as qualidades de
realização desabrocharam totalmente nela. Sua beleza expressa a compaixão sem
limites, indica ainda que ela é a mãe de todos os Budas. Os ornamentos (sedas e jóias)
dão testemunho da maestria de suas qualidades e atividades. Suas costas eretas mostram
o seu perfeito estado de meditação, é similar ao diamante que nunca vacila. A lua atrás
dela, simboliza a plenitude da felicidade inexaurível.
148
Conforme alguns indólogos, as culturas que antecederam a chegada e a consequente influência do
vedantismo, aparentemente, possuíam uma atitude ritualística e espiritual que girava em torno das
divindades femininas. Esta premissa já foi trabalhada nos parágrafos anteriores. Para maior
aprofundamento, sugerimos a obra de SIMMER-BROWN, 2001.
207
fé. Importa salientar que antes de alcançar uma posição de destaque dentre as escolas
tântricas do Tibete, as ḍākinīs eram as servidoras da deusa Kālī, estavam relacionadas às
transgressões, à desmedida, à fúria dos deuses. Do ponto de vista social, estavam
vinculadas às castas inferiores, aos comedores de carne, assassinos, indivíduos fora da
lei.
149
Dentre os vários encontros entre Padmasambhava e as ḍākinīs, três deles merecem atenção especial.
No primeiro, a deusa Vajravārāhī (uma dakini), teria iniciado o siddha indiano nos mistérios tântricos,
sendo, por esta razão, considerada uma importante preceptora. Um segundo encontro capital aconteceu
através da forma corpórea de Yeshe Tsogyal, sua principal discípula e consorte. Por fim, outro momento
chave desta conexão, acontece quando Padmasambhava pede às ḍākinīs para que sejam as guardiãs dos
“tesouros escondidos”, também conhecidos como Terma (tib. gTer Ma). O mestre contemporâneo Tulku
Thondup Rinpoche (1997), em sua obra Hidden teachins of Tibet, explica que Padmasambhava ocultou
preciosos ensinamentos tântricos (terma), alguns deles são textos sagrados preservados em mosteiros e
ocultados, misticamente, por meio de cerimônias mágicas. O poderoso yogin também ocultou alguns
termas na contraparte espiritual de certos lagos, montanhas e vales espalhados pela terra, transformando-
os, com o seu poder místico, em regiões encantadas. Além destes locais sagrados, o grande siddha indiano
também teria escondido conhecimentos secretos (terma) nas mentes de alguns seletos discípulos, estes
seriam conhecidos como Terton, os quais tomariam corpo físico, no tempo propício, e encontrariam os
tesouros ocultos perdidos, revelando-os às gerações futuras, no momento em que a humanindade já
estivesse suficientemente preparada para recebê-los. Atribui-se a Padmasambhava a criação da tradição
dos Tertons, porém coube a sua poderosa consorte, Yeshe Tsogyal, a nobre tarefa de divulgar e ensinar os
detalhes desta mística transmissão. A tradição tibetana Nyingma é especialmente conectada com a
tradição do Terma, muitos dos seus textos, incluindo importantes sutras do mahayāna, como o
prajñapāramitā, e outras relevantes obras tântricas, como é o caso do kalacakra tantra e o Bardo Thodöl
(livro Tibetano dos mortos), seriam exemplos destacados de Terma, isto é, escrituras escondidas
fisicamente e/ou em outras dimensões paralelas, acessíveis apenas aos seres predestinados (tertum). Cf.
RINPOCHE, 1997.
150
As ḍākinīs também são retratadas como discípulas, não somente como mestras, este é o caso de
Milarepa, que teve algumas ḍākinīs encarnadas como suas discípulas.
210
mencionado nas biografias dos mahāsiddhas, muitos deles, após penosas austeridades,
alcançaram esta inefável morada celestial. Perecebe-se, portanto, uma ressignificação
considerável das suas funções. De simples assistentes da deusa Kālī (do período pré-
ariano), passaram a representar a própria sabedoria refulgente dos seres iluminados, as
ḍākinīs, de fato, elevaram em máximo grau a sua relevância cultual nas escolas tântricas
do Tibete:
O pesquisador John Ryan Haule em seu livro Tantra & Erotic Transe (2012),
explica que as ḍākinīs são capazes de “impulsionar” o discípulo em direção ao dharma.
Com seu poder magnético, coloca os seus devotos em uma espécie de transe místico,
ativando os seus cakras, bem como a própria energia sexual. A força erótica entra em
ebulição, o discípulo sente em seu corpo o calor e o instinto vivo da “serpente sagrada”
(kunḍalinī), despertando-a e impulsionando-a avidamente para o caminho da
iluminação, que neste caso, consiste em sua subida e consequente passagem pelos
centros magnéticos do corpo:
Yassine Ernest (2014) explica que todas as consortes dos herukas (divindades
iradas), são na verdade, as próprias ḍākinīs. Segundo o autor, os deuses furiosos são
mais poderosos do que os pacíficos, pois sua função é limpar, através de uma completa
transmutação, todos os resíduos impuros do medo e pavor humano. Trata-se de uma
poderosa expurgação espiritual cuja eficiência reside justamente na total emancipação
psicológica e espiritual do discípulo.
A biografia da ḍākinī Yeshe Tsogyal mostra que uma das principais técnicas
recebidas por ela, através de Padmasambhava, foram justamente as práticas sexuais,
reforçando a aproximação do budismo com o aspecto sensual da natureza humana.
Vejamos abaixo uma citação da própria Tsogyal, que ilustra o nosso posicionamento:
O mestre tântrico Ter dag Ling pa (1646-1714) também recebeu das ḍākinīs
conhecimentos espirituais, sobretudo àqueles vinculados ao erotismo místico, isto é,
técnicas sexuais para o cultivo da própria iluminação interior:
Em todo esse cenário, torna-se evidente a companhia das ḍākinīs na vida dos
grandes santos; enquanto divindade tutelar manifestam-se com ferocidade contra
qualquer um que tente prejudicar o seu devoto, enquanto amante, manifesta-se, ora
como bela esposa carnal, ora como emanação espiritual.
Heinrich Zimmer (2015) assegura que estamos vivenciando uma época em que a
Grande Deusa ressurgiu, retomou, ainda que tardiamente, o seu protagonismo no âmbito
das religiões, e o Tantra teria uma participação especial em todo esse processo.
Concordamos que o tantrismo contribuiu para o retorno da adoração ao aspecto
feminino da existência, porém, mesmo nos dias atuais, o culto à Grande Mãe parece
ainda balbuciar. Não podemos simplesmente contemplar as divindades femininas sem
compreender, profundamente, todo arcabouço doutrinal que elas carregam. A adoração
ao eterno feminino, tal como foi expressso ao longo deste trabalho, inclui, em seu
aspecto mais esotérico, e, portanto, mais profundo, as técnicas do sexo-yoga. Resulta
superficial ensinar apenas um tipo específico de prece, um mantra, e com eles achar que
o culto à Grande Deusa já foi restabelecido.
151
Na página 2014 explicamos, sumariamente, na nota de roda pé, no que consiste a tradição do terma.
217
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
152
A primeira hipótese encontra-se desenvolvida no segundo capítulo.
153
A segunda hipótese encontra-se desenvolvida no segundo capítulo e também no terceiro capítulo.
154
A terceira hipótese encontra-se desenvolvida no terceiro capítulo.
218
mão esquerda (defensores do sexo-yoga) são mais completas do que as escolas da mão
direita (detratores do sexo-yoga).
Considerar o sexo-yoga simplesmente como “mais uma prática budista”, não nos
parece adequado tendo em vista o poder regenerador contido em nossas gônodas
sexuais. Desta forma, consideramos mais prudente realocar o maithuna em uma
categoria de excelência quando comparada com outras práticas do panteão budista,
evitando o amargo desprezo deste tema por parte de muitos pesquisadores, tal como já
foi mencionado na introdução deste trabalho.
155
Referimo-nos aqui a onda “New Age”, muito popular na década de 70. Além de um agudo sincretismo
religioso, o movimento também pregava a liberdade sexual.
220
que em outras palavras, contitui-se na própria libertação da roda do samsāra. Esta, por
sua vez, depende não apenas da transmutação sexual, mas também da experiência
meditativa do vazio iluminador.
REFERÊNCIAS
ASANGA, Arya. Buddha Nature: The Mahayana Uttaratantra Shastra. Ithaca: Snow
Lions, 2000.
ATĪŚA. A Lamp for the Path and Commentary. London: George allen & Unwin, 1983.
COHEN, Nissim. Ensinamentos do Buda: uma Antologia do Cânone Páli. São Paulo:
Devir Livraria, 2008.
MARTINS, Roberto Andrade (trad.). Uma luz sobre o Haṭha-Yoga. São Paulo: Shri
Yoga Devi, 2014.
SNELLGROVE, David. L. (trad.) The Hevajra Tantra a critical study. London: Oxford
University Press, 1959.
Dicionários
Obras consultadas:
ATĪŚA. Atisha: sus Enseñanzas. Trad. Upasaka Losang Gyatso. Compiladas por
Chegom Sherab Dorje. Clássicos da Índia, [s.d].
BEYER, Stephen. Magic & Ritual in Tibet: The Cult of Tara. Dheli: Motilal
Banarsidass, 2001.
CHANGCHUB, Gyalwa; NYINGPO, Namkhai. Lady of the lotus-born: the life and
enlightenment of Yeshe Tsogyal. Boston & London: Shambhala, 2002.
COUDERT, Allison. Alchemy: hellenistic and medieval alchemy. In: JONES, Lindsay.
Encyclopedia of religion. USA: Thomson Gale, 2005.
DALAI LAMA XIII. A Brief Guide to the Buddhist Tantras. In: MULLIN, Glenn H.
The Dalai Lamas on tantra. Translated, edited, and introduced by Glenn H. Mullin.
Ithaca: Snow Lion, 2006.
DALAI LAMA XIV. A Survey of the Paths of Tibetan Buddhism. Disponível em:
http://www.lamayeshe.com/article/survey-paths-tibetan-buddhism. Acessado em:
20/02/2017.
DOWMAN, Keith; PALJOR, Sonam. The divine madman: The Sublime Life and Songs
of Drukpa Kunley. California: The Dawn Horse Press, 1983.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 1977.
225
ELIADE, Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. São Paulo: Palas Athena, 2012.
ERNEST, Yassine Bendriss. Breve Historia del Budismo. Madrid: Ediciones Nowtilus,
2014.
FEUERSTEIN, Georg. Tantra: The path of ecstasy. Boston & London: Shambhala,
1998.
_______. Sacred sexuality: the erotic spirit in the world´s great religions. Rochester,
Vermont: Inner Traditions, 2004.
FLOOD, Gavin. The Tantric Body: The Secret Tradition of Hindu Religion. New York,
USA: I.B. Tauris & Co. Ltd., 2006.
HAULE, John Ryan. Tantra & Erotic Trance. Vol. II. Carmel, USA: Fisher King Press,
2012.
226
HOUSEMAN, J. T. Great Bliss, Tantric Sex and the Path To Inner Awakening. USA:
IAP, 2014.
JUNIOR, José Abílio Perez. Estados Emocionais (bhāva) e Experiência Estética (rasa):
Os conceitos centrais da filosofia da arte indiana e alguns de seus desdobramentos.
354f. 2015. Tese (Doutorado em Ciência da Religião), Universidade Federal de Juíz de
Fora, Juiz de Fora, 2015.
KONGTRUL, Jamgön. The treasury of knowledge: book six, part four: Systems of
Buddhist. Ithaca: Snow Lion, 2005.
LYSEBETH, André Van. Tantra: The Cult of the Feminine. Delhi: Motilal Banarsidass,
2002.
MULLIN, Glenn H. The Dalai Lamas on tantra. Ithaca: Snow Lion, 2006.
MULL, Allison. Tara and Tibetan Buddhism: The Emergence of the Feminine Divine.
India: Emory-IBD Tibetan Studies Program, 2004.
227
NAROPA. Readings on the six yogas of Naropa. New York: Snow Lions, 1997.
RIBUSH, Nicholas. Teachings from Tibet. Boston: Lama Yeshe Wisdom Archive,
2005.
SEVERINO, Roque Enrique. Manual de Budismo. São Paulo: Edição do autor, 2010.
STEWART, Jampa Mackenzie. The life of Gampopa. The incomparable Dharma Lord
of Tibet. Ithaca: Snow Lions, 1995.
URBAN, Hugh B. Tantra: sex, secrecy, politics, and power in the study of religion.
California & London: University of California Press, 2003.
WHITE, David Gordon. Alchemy: indian alchemy. In: JONES, Lindsay. Encyclopedia
of religion. USA: Thomson Gale, 2005.
WOODROFFE, Sir John. O Poder da Serpente. Madras: Ganesh & CO, 1950.
YESHE, Lama Thubten. Make Your Mind an Ocean. Lama Yeshe Wisdom Archive,
1999.
Avaduthī (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.
ḍākinī (Sânscrito): “Aquela que voa através do céu”. São divindades femininas do
budismo tântrico.
Karma (Sânscrito): Significa literalmente ação. Refere-se ainda à lei de causa e efeito.
Lalanā (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.
Nāḍīs (Sanscrito): Canais metafísicos que servem como condutores das forças sutis que
habitam o corpo humano.
Nyingma (Tibetano): A mais antiga das quatro escolas do budismo tibetano vajrayāna.
Rasanā (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.
Tathāgata (Sânscrito): Um dos dez títulos utilizados pelo Buda para se referir a si
mesmo ou a outros budas.
Yoga (Sânscrito): União. Termo utilizado para várias práticas espirituais do tantrismo.