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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

RAFAEL PARENTE FERREIRA DIAS

BUDISMO TÂNTRICO: SEXUALIDADE E ESPIRITUALIDADE

JOÃO PESSOA
2018
RAFAEL PARENTE FERREIRA DIAS

BUDISMO TÂNTRICO: SEXUALIDADE E ESPIRITUALIDADE

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências das Religiões, da
Universidade Federal da Paraíba, na linha de
pesquisa abordagens filosóficas, históricas e
fenomenológicas das religiões como
exigência para obtenção do título de Doutor
em Ciências das Religiões.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Lúcia Abaurre


Gnerre

JOÃO PESSOA
2018
Para Deus, fonte de inspiração

Para minha família, amor da minha vida

Para meus amigos, que sempre me apoiaram

Para Maria Lúcia Abaurre Gnerre, pela ajuda e confiança


AGRADECIMENTOS

À Professora Maria Lúcia Abaurre Gnerre, por ter acreditado na minha pesquisa,
pelo apoio na orientação e pela atenção pessoal; à UERR (Universidade Estadual de
Roraima), por ser a instituição que me acolheu como Professor Universitário e
possibilitou o meu acesso ao doutorado; aos colegas de turma e demais professores da
UFPB, pelo conhecimento e companheirismo; aos amigos e à família a quem devo
minha vida.
RESUMO

Este trabalho tem como objetivo fazer uma análise da sexualidade humana aplicada aos
ensinamentos do budismo tântrico. O tantrismo busca na transmutação dos desejos e
paixões um valioso suporte soteriológico, capaz de emancipar a consciência humana de
todos os condicionamentos psicológicos, libertando-a dos apegos sensoriais e da
instabilidade mental. O método tântrico inclui em seu bojo uma grande variedade de
exercícios: meditação, visualização e ritos. Porém, uma técnica em especial chama a
atenção por seu caráter secreto e iniciático: o sexo-yoga. Suas origens estão ligadas ao
próprio Siddharta Gautama, perpetuando-se nas comunidades budistas através das
tradições Mahāyāna e Vajrayāna. Objetivando aprofundar os ensinamentos dessas duas
linhagens, utilizamos alguns textos essenciais da ortodoxia tântrica budista, a saber:
Guhyasamāja-tantra, Cakraśaṁvara-tantra, Hevajra-tantra e o Kālacakra-tantra.
Além destes, também nos apoiamos nas obras de importantes mestres da tradição
Vajrayāna, tais como: Tilopa, Tsongkhapa e Yeshe Tsogyal. Ademais, o nosso trabalho
está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo realizamos um estudo
introdutório sobre o tantra; a partir do segundo capítulo ingressamos em uma
investigação histórica sobre o momento em que as práticas sexuais passaram a ser
utilizadas como ferramentas para a realização espiritual. No terceiro capítulo
aprofundamos os mistérios relacionados ao sexo-yoga e seus efeitos espirituais no corpo
do praticante. Posteriormente, no quarto e último capítulo, destacamos a centralidade da
energia feminina em todo esse cenário tântrico relacionado à transformação interior.
Portanto, tentamos demonstrar, ao longo do texto, que a prática sexual é um dos grandes
pilares da espiritualidade budista, e quando executada de acordo com os ensinamentos
tântricos é capaz de conferir a principal meta do budismo: a iluminação espiritual, a
libertação última do sofrimento e do julgo material.

Palavras-chaves: Tantra. Sexo-yoga. Budismo. Transmutação.


ABSTRACT

This work aims to make an analysis of human sexuality applied to the teachings of
Tantric Buddhism. Tantrism seeks in the transmutation of desires and passions a
valuable soteriological support capable of emancipating the human consciousness from
all psychological conditioning, freeing it from sensory attachments and mental
instability. The Tantric method includes in its bulge a great variety of exercises:
meditation, visualization and rites. However, one particular technique draws attention to
its secret and initiatory character: sex-yoga. Its origins are linked to Siddharta Gautama
itself, perpetuating itself in Buddhist communities through the Mahāyāna and Vajrayāna
traditions. In order to deepen the teachings of these two lineages, we use some essential
texts of the Tantric Buddhist orthodoxy, namely: Guhyasamāja-tantra, Cakraśaṁvara-
tantra, Hevajra-tantra and Kālacakra-tantra. Besides these, we also rely on the works of
important masters of the Vajrayana tradition, such as: Tilopa, Tsongkhapa and Yeshe
Tsogyal. In addition, our work is divided into four chapters. In the first chapter we
conducted an introductory study on tantra; from the second chapter we enter into a
historical investigation into the moment when sexual practices began to be used as tools
for spiritual attainment. In the third chapter we delve into the mysteries related to sex-
yoga and its spiritual effects on the practitioner's body. Subsequently, in the fourth and
last chapter, we highlight the centrality of female energy throughout this tantric scenario
related to inner transformation. Therefore, we try to demonstrate, throughout the text,
that sexual practice is one of the great pillars of Buddhist spirituality, and when
performed according to the Tantric teachings it is able to confer the main goal of
Buddhism: spiritual enlightenment, ultimate liberation from suffering and of the
material judgment.

Keywords: Tantra. Sex-yoga. Buddhism. Transmutation.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – Estátua do mestre guru rinpoche Padmasambhava .................................38

Imagem 2 – Pintura tibetana retratando a cosmificação do corpo ..............................187

Imagem 3 – Representação do kunḍalinī e os cakras .................................................190

Imagem 4 – Deusa Tārā verde .....................................................................................204

Imagem 5 – Representação de uma ḍākinī ..................................................................207


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................12

PARTE 1: DOS PRIMÓRDIOS DO TANTRA AO ESPLENDOR MEDIEVAL

CAPÍTULO 1 – TANTRA: DEFINIÇÃO E CONTROVÉRSIAS DE ORIGEM


1.1 Tantra hindu x Tantra budista...................................................................................19
1.2 Análise das fontes e as quatro classes do Tantra......................................................24
1.3 A chegada do Tantra ao Tibete.................................................................................33
1.4 Ressignificando a vida conjugal...............................................................................43
1.5 A transmutação da paixão e dos vícios.....................................................................50
1.6 A Sabedoria dos opostos...........................................................................................60
1.7 Transmissões iniciáticas e aceleração espiritual.......................................................67

CAPÍTULO 2 – A ALQUIMIA DOS SIDDHAS E SEUS PODERES


MIRACULOSOS
2.1 O que é Alquimia?....................................................................................................74
2.2 Alquimia oriental e o poder do sêmen......................................................................83
2.3 Imortalização do corpo: um produto alquímico.......................................................94
2.4 O Haṭha-Yoga e o maithuna.....................................................................................99
2.5 A relação entre os 84 mahāsiddhas e o sexo-yoga..................................................105
2.6 Drukpa Kunley: da ironia à santidade erótica .......................................................122
2.7 A importância do mahāmudrā.................................................................................128
2.8 Śāntideva e o último grande salto: a outra margem ................................................135

PARTE 2
SEXO-YOGA E A RESSURGÊNCIA DO PODER FEMININO

CAPÍTULO 3 – O SEXO-YOGA E A ANATOMIA SUTIL


3.1 Sexo-yoga e celibato: dois caminhos, duas possiblidades.......................................145
3.2 Prajñā e Upāya: simbolismo sexual nos textos tântricos........................................151
3.3 O êxtase e a salvação através do maithuna..............................................................160
3.4 A construção da anatomia oculta e o fenômeno das 4 alegrias...............................169
3.5 O Despertar da bodhicita (kunḍalinī) e a ativação dos canais sutis.......................176

CAPÍTULO 4 – O PODER FEMININO NAS PRÁTICAS TÂNTRICAS


4.1 Os cultos matrilineares e a ressurgência da sexualidade sagrada............................193
4.2 A divinização da mulher e o erotismo da deusa Tārā..............................................197
4.3 O hibridismo das Dakinis........................................................................................205
4.4 A iniciação sexual através das Dakinis...................................................................210

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................216

REFERÊNCIAS .........................................................................................................220
APÊNDICE: GLOSSÁRIO DE TERMOS SÂNSCRITOS E TIBETANOS
.......................................................................................................................................229
INFORMAÇÃO SOBRE AS CITAÇÕES DAS OBRAS CANÔNICAS DO
BUDISMO

Os textos ortodoxos do budismo utilizados nesta tese serão citados, sempre que
possível, da seguinte forma: primeiramente, o título da obra, em seguida o capítulo
(algarismo romano) seguido pela indicação do verso (algarismo arábico),
posteriormente a referência ao autor da obra traduzida, conforme os moldes do sistema
AUTOR-DATA. Portanto, as citações ficarão ordenadas do seguinte modo:
(DHAMMAPADA, XX, 284; BUDDHARAKKHITA, 2013, p. 47).
13

1. INTRODUÇÃO

Ao longo da história, diversas religiões têm relegado à humanidade, por meio de


suas sagradas escrituras, ou através de tradições orais, ensinamentos que servem como
base moral e espiritual para seus seguidores. Contudo, algumas formas religiosas, dentre
elas o Budismo, dispõe de um conjunto de conhecimentos iniciáticos, secretos,
transmitidos apenas aos praticantes mais avançados, restringindo-se, por esta razão, a
pequenos grupos, os quais teriam acesso a aspectos místicos, esotéricos, transferidos
somente de lábios a ouvidos, de mestre para discípulo.

No âmbito budista, o Tantra configura-se como um desses singulares


conhecimentos cuja profundidade moral, epistêmica e soteriológica ganha contornos
próprios. A grande meta do tantrismo é a “iluminação espiritual”, uma espécie de
“salvação interior”. Em outras palavras, é o reconhecimento de uma sabedoria oculta
habitando o interior do próprio homem, uma natureza auto-iluminada, capaz de
emancipá-lo por completo do sofrimento psicológico – apegos, desejos, vícios, medos –
que normalmente perturbam a mente humana.

A fim de atingir este estado, os ensinamentos tântricos dispõem de um vasto


conjunto prático-ritualístico, cujo objetivo é o desenvolvimento interior, o
aperfeiçoamento de si. Entretanto, uma técnica tântrica em especial, o sexo-yoga, chama
atenção por seu caráter polêmico, o “ar de mistério” e o “anticonvencionalismo”, típico
de suas práticas, é a mola propulsora que nos motivou a colocá-lo como o eixo central
do nosso trabalho.

É impressionante o número de mestres budistas que se utilizaram do sexo-yoga


como meio de realização espiritual. Padmasambhava, Yeshe Tsogyal, Indrabhūti,
Saraha, Virūpa, Kāṇkha, Milarepa, Drukpa Kunley, são apenas alguns exemplos
destacados de preceptores tântricos que ensinaram e praticaram os misteriosos segredos
do sexo-yoga.

Existe uma faceta pouco conhecida, historicamente silenciada, por muitos


simpatizantes e estudiosos budistas. Os manuais de budismo, comumente, não
enfatizam a relevância do sexo, preferem eximir-se de tal função, restringindo-se apenas
14

à transmissão de conceitos elemantares da tradição budista, tais como: meditação,


compaixão, renascimento, não-violência etc.

Se quisermos compreender o sexo, enquanto “via de salvação”, dentro da


perspectiva budista, necessitaremos de um grande aprofundamento literário, sair dos
manuais introdutórios e adentrar na leitura das obras tântricas. Dificilmente
encontraremos uma obra budista, sobretudo com tradução em língua portuguesa, que
trate especificamente, ou mesmo que aprofunde de forma significativa sobre os
mistérios do sexo-yoga e a sua característica salvacionista. O assunto é sempre tratado
de forma abreviada e inconsistente. Alguns bons comentários sobre o tema podem ser
consultados na obra Yoga: Libertação e Imortalidade, de Mircea Eliade.

Em língua inglesa o panorama é outro, importantes comentadores abordam a


temática sexual, possibilitando o acesso, em certa medida, aos mistérios salvíficos do
maithuna. Poderíamos citar as obras de Sir John Woodroffe, Georg Feuerstein, David
Gordon White, Shashi bhusan Dasgupta, David Snellgrove etc. Embora o sexo-yoga
seja aceito e suas práticas relatadas por importantes pesquisadores acadêmicos, não
podemos considerá-lo uma unanimidade, visto que, mesmo nos dias atuais, a tradição
Theravāda, por exemplo, não lhe cede espaço, questiona a legitimidade dos seus
ensinamentos; mesmo dentro do Lamaísmo tibetano, cujo Tantra é aceito, existe
resistência quanto à existência das práticas relacionadas ao sexo-yoga.

Por esta razão, consideramos justificável e relevante a elaboração desta pesquisa,


que buscou, sobretudo, retirar a sexualidade budista de uma incômoda “sonolência
literária”, dando-lhe dinamismo, organicidade, apresentando ao leitor uma budologia
inovadora, ressignificada pelo protagonismo do sexo-yoga. Nesse sentido, uma simples
pergunta poderia sintetizar o problema central do nosso trabalho: É possível utilizar o
sexo como meio de atingir a iluminação espiritual, a salvação do sofrimento e da roda
do saṁsāra?

Ora, uma vez formulado o problema, impõe-se, como corolário, a necessidade da


validação científica, isto é, a elaboração sistemática de uma hipótese válida. Para tanto,
estruturamos a pesquisa em quatro capítulos; no primeiro, realizamos uma introdução
ao Tantra; consideramos importante transmitir ao leitor alguns pontos básicos do
15

tantrismo antes de ingressar diretamente em questões mais complexas, como é o caso


dos temas envolvendo a sexualidade.

Deste modo, o primeiro capítulo se inicia com a história do Tantra na Índia e


suas origens controversas. Em seguida adentramos no universo tibetano, mostrando
como o tantrismo penetrou e se consolidou neste país. Posteriormente, começamos a
tocar, ainda que de forma propedêutica, na proposta central do trabalho – a importância
do sexo-yoga no processo de iluminação espiritual –, apresentando as tensões morais
entre a vida celibatária, tipicamente monástica, e a intromissão da vida conjugal na
ordem budista. A polêmica deste tema reverberou em outra questão essencialmente
filosófica – a relação entre paixão e virtude. Diferentemente de outras tradições
religiosas, sobretudo as de caráter monoteísta, o Tantra acredita que as paixões e os
desejos humanos podem ser utilizados sabiamente no caminho espiritual, sem a
necessidade de reprimi-los.

Para embasar o nosso posicionamento teórico, utilizamos a doutrina de


Nāgārjuna, objetivando realizar uma análise concisa sobre a pureza ontológica da
realidade sensível. O capítulo se encerra com uma conclusão tipicamente nāgārjuniana,
que está em perfeita sintonia com a perspectiva tântrica: toda a existência material,
incluíndo os mais ardentes desejos, é essencialmente vazia, os fenômenos são, na
realidade, puros, imaculados, imunes aos efeitos do tempo e às transformações do devir.

O segundo capítulo nos lança diretamente ao encontro da sexualidade. A relação


tantra-alquimia é aprofundada através de um estudo histórico. A proposta é mapear os
momentos chaves onde estas duas tradições dialogam. Talvez o ápice deste
confrontamento místico encontra-se na idade medieval indiana, mais especificamente
entre o século VIII e XII d.C. Neste período iniciou-se um movimento espiritual sem
precedentes para a história do Tantra budista, grandes mestres, também conhecidos
como mahāsiddhas, alguns com características mitológicas, começam a lançar as bases
de uma espiritualidade excêntrica, cuja rebeldia aos convencionalismos religiosos
causava espanto dentro da própria comunidade budista.

A utilização da alquimia sexual como meio de elevação espiritual é um nítido


exemplo desta rebeldia, alguns mahāsiddhas se utilizaram destas práticas sexuais tendo
por base doutrinal a mensagem não-ortodoxa dos textos tântricos, que estimulavam o
16

uso das paixões, opondo-se frontalmente ao antigo modelo monástico da tradição


theravāda, cuja repressão ao sexo era reforçada pelo estímulo à vida celibatária. Por
fim, encerramos o capítulo defendendo a hipótese de que o sexo-yoga, através da
preservação e transmutação da energia sexual, constitui-se como uma prática budista
fundamental, capaz de conduzir o ser humano para o mais alto nível de iluminação
interior.

No terceiro capítulo, investigaremos a prática sexual em si mesma, seu modus


operandi e seus efeitos espirituais no corpo sutil do praticante, bem como em sua
própria consciência; sairemos de uma esfera meramente física, caracterizada por um
simples intercâmbio corporal, passando aos sinuosos movimentos dos nāḍīs,
despertados através do magnetismo energético proporcionado pelo maithuna (união
sexual). Além dos nāḍīs, outros conceitos basilares integram a complexa engenharia
supra-sensível descrita pelos textos tântricos budistas: cakra, bodhicita (kuṇḍalinī),
avaduthī, lalanā, rasanā etc. O caráter transpessoal e metafísico do sexo-yoga será
analisado acuradamente.

Ainda neste capítulo, reflitiremos de forma filosófica, sobre dois caminhos


tântricos bem definidos: o caminho do celibato1 e o caminho do sexo-yoga. O primeiro
é praticado pelos adeptos tântricos da “mão direita” e também da “mão esquerda”, já o
segundo é professado unicamente pelos adeptos da “mão esquerda”. Todo estudante que
busque com firmeza e dedicação a iluminação budista, a salvação interior do
sofrimento, deverá, em algum momento da sua jornada, optar por uma dessas duas vias.
Em ambos existe um pré-requisito: a “retenção do sêmen”. Seja com uma parceira
conjugal (praticando o sexo-yoga) ou na vida monástica (celibato), a energia sexual
(sêmen no homem e libido na mulher) deve ser preservada, jamais desperdiçada.

Vale destacar ainda, que nestes dois capítulos (segundo e terceiro) reforçamos a
premissa de que sem a retenção do sêmen masculino ou da libido feminina não há
possibilidade de auto-realização espiritual. Esta é, decerto, a hipótese mais forte contida
em nosso trabalho.

1
Sem dúvida, a prática do celibato é uma unanimidade dentro da tradição budista, nenhuma escola
ousaria questionar a sua legitimidade. O sexo-yoga, ao contrário, é motivo de polêmica e sua castração
por parte de algumas tradições é mais um motivo que nos impulsionou a colocá-lo como pano de fundo
teórico deste estudo.
17

No quarto e último capítulo buscaremos refletir sobre a centralidade do aspecto


feminino na doutrina tântrica. O professor Benoytosh Bhattacharyya (1989), por
exemplo, acredita que a introdução do culto à śakti, seja um dos momentos mais
importantes para a evolução do Tantra budista, visto que após a sua aparição, os tantras
foram divididos em dois grandes grupos: “os adoradores de śakti” e os “não-
adoradores”. É notória a influência da força feminina nos mais diversos aspectos do
Tantra: na iconografia, na literatura, nas divindades tutelares ou mesmo na figura de
mulheres exercendo o papel de mestras iluminadas. Percebe-se que o tantrismo se
impõe como grande representante do culto matrilinear, mais do que um componente
cultual, a divindade feminia é um guia, nela está depositada todos os atributos de um
genuíno guru. Portanto, neste último capítulo investigamos as diversas manifestações de
śakti no Tantra budista, e de que maneira essa nova cosmovisão contribuiu para reforçar
os aspectos ligados ao sexo-yoga.

Gostaríamos também de aproveitar esta parte introdutória do trabalho para


justificar as razões que nos motivaram a escolher e aprofundar os estudos tântricos de
duas tradições budistas em especial: a indiana e a tibetana. Como sabemos, o budismo
tântrico vem sendo praticado durante séculos em alguns países orientais, tais como:
Butão, Nepal, Japão, China etc. Não negamos que seria altamente produtivo analisar a
especificidade de cada Tantra, confrontando-os dialeticamente, porém acreditamos que,
se ampliássemos em demasia a nossa investigação em diferentes contextos etnográficos,
cairíamos no perigo da superficialidade, pois cada cultura, ao seu modo, incorporou às
práticas tântricas certas indiossincrasias que necessitariam de prévias explicações e
justificativas conceituais, estendendo excessivamente o nosso debate, desviando-se em
grande escala da proposta filosófica do trabalho, a qual está circunscrita, como já foi
expresso anteriormente, em uma dimensão específica do Tantra – a relação entre o sexo-
yoga e a iluminação espiritual –. Portanto, as poucas citações que aparecem ao longo do
texto – de outras tradições tântricas – servem apenas como aporte metodológico para
corroborar as nossas reflexões filosóficas que estão essencialmente ancoradas dentro da
perspectiva indiana e tibetana.

Seria difícil negligenciar o ancestral potencial da Índia, quando tratamos de


questões ligadas ao âmbito religioso. A cultura indiana é considerada a progenitora do
Tantra budista, espalhando-se, posteriormente, para as demais partes da Ásia. Além
18

disso, a Índia medieval foi palco de uma verdadeira constelação de mestres tântricos,
também conhecidos como mahāsiddhas, tradição sumamente importante para as
pretenções hermenêuticas deste trabalho, sendo, portanto, inevitável a sua inclusão e
aprofundamento teórico.

Quanto ao Tantra Tibetano, sua alta popularidade no ocidente, iniciada em


grande escala em meados do século XX, sobretudo no continente americano e europeu,
proporcinou o meu encontro pessoal com esta forma de budismo, facilitando assim o
acesso, in loco, aos ensinamentos específicos desta tradição. Mesmo não professando a
fé budista, freqüentei por algumas vezes a escola tibetana Kagyü, e deste encontro
emergiu o desejo pelo aprofundameto teórico não apenas desta linhagem, senão de todo
o universo tântrico tibetano. Portanto, pelas razões já expostas, as principais conclusões
e reflexões teóricas desta tese estarão alicerçadas nas tradições tântricas da Índia e do
Tibete.

Com relação à metodologia aplicada, a ênfase será descritivo-interpretativa –


com caráter exploratório –; o modelo de investigação insere-se numa perspectiva
histórico-filosófica, essencialmente bibliográfica, já que nos preocuparemos com
leituras reflexivas, análises críticas e interpretações textuais. A fim de justificar o nosso
posicionamento teórico, utilizaremos, primordialmente, as contribuições intelectuais de
pesquisadores acadêmicos renomados e mestres da tradição tântrica budista,
dialongando também, em momentos pontuais do texto, com mestres de outras tradições
religiosas do oriente, de modo que, alicerçados com esta base, buscaremos criar
hipóteses plausíveis, indicar chaves de leitura que possam abrir novas interpretações
sobre o Tantra e sua vital relação com a sexualidade.
19

PARTE 1

DOS PRIMÓRDIOS DO TANTRA AO ESPLENDOR MEDIEVAL


20

CAPÍTULO 1: DEFINIÇÃO E CONTROVÉRSIAS DE ORIGEM

1.1. Tantra hindu x tantra budista

O surgimento literário do Tantra é posterior às suas origens históricas, muito


antes de sua redação, já era transmitido de lábios a ouvidos. Ao que tudo indica, as
práticas tântricas parecem ser muito anterior ao budismo e também ao hinduísmo; trata-
se de uma filosofia extremamente complexa, cuja estruturação conceitual não foi fruto
de uma só etnia, senão de uma emaranhada teia de confluências culturais, como destaca
Boisselier: “As origens do movimento tântrico são bastante remotas no tempo e
parecem ligadas a antigas crenças mágicas e religiosas que se mantiveram vivas na
Índia assim como em outras partes.” (BOISSELIER, 2002, p. 170).

As dificuldades não terminam nesse ponto. Além da imprecisão cronológica, o


universo tântrico é alvo de uma salutar disputa filosófica, pois hinduístas e budistas
rivalizam pela primazia do Tantra, qual destas duas tradições teriam assimilado primeiro
este milenar conhecimento, e até que ponto existiria a influência de um sobre o outro?

O pesquisador Georg Feuerstein acredita que os hinduístas antecedem os


budistas no tocante ao conhecimento do Tantra. Embora não reconhecida pelos
brâmanes ortodoxos, o Tantra representaria uma antiga herança espiritual cujo
desenvolvimento teria ocorrido desde os tempos védicos: “Com excessão dos pânditas
mais ortodoxos, que consideram o Tantra uma abominação, hindus tradicionais e
esclarecidos há muito tempo veem o Tantra como um paralelo e em estreita relação (em
vez de oposição) à herança védica.” (FEUERSTEIN, 1998, p. 12, tradução nossa).

Como sabemos, os vedas antecedem a religião budista, reportar o tantrismo ao


período védico é atestar a primazia do Tantra hindu em face aos seus conterrâneos
budistas, esta é a conclusão de Georg Feuerstein, a qual pode ser confirmada na citação
que se segue:

O Tantra, embora altamente inovador, é considerado desde o início


uma continuação dos ensinamentos mais antigos. Assim, enquanto o
tantra budista é compreendido como uma tradição esotérica que nos
21

remete ao próprio Gautama, o Buda, o Tantra Hindu, em geral,


considera os ensinamentos reveladores dos vedas como seu ponto de
partida. (FEUERSTEIN, 1998, p. 10, tradução nossa)

Reafirmando a primazia hindu, Victor M. Fic (2003) sustenta que o tantrismo já


era praticado pela civilização autóctone instalada às margens do vale do rio Indo, de
modo que suas práticas de adoração e culto foram incorporadas pelos arianos e teriam
influenciado sua visão sobre os vedas a ponto de muitos deles abandonarem os ritos
sacrificiais, tipicamente védicos, para trilharem a senda esotérica do Tantra. Ademais, o
autor defende a tese de que na época de Siddharta Gautama, poder-se-ia dizer que já
havia preponderantemente duas poderosas compreensões acerca da cultura religiosa
indiana – o Tantra e o vedantismo –, de modo que muitos santos e renunciantes,
inclusive Sanjaya, praticante tântrico que teria iniciado o próprio Siddharta Gautama
nestes ensinamentos, teriam escolhido a via do Tantra2.

Edward Conze também acredita que os hinduístas absorveram o Tantra muito


antes do que os budistas, inclusive exercendo forte influência sobre os mesmos; embora
seja cauteloso em estabelecer o momento exato do seu surgimento, o autor admite a
remota ancestralidade destes ensinamentos:

Ainda é impossível indicar exatamente em que época tiveram início as


práticas tântricas. Os tantristas inclinam-se, geralmente, ao segredo
[...] como sistema de pensamento mais ou menos público, o Tantra
apareceu a partir de 500 ou 600 d. C. Começou, contudo, com a
história da humanidade, na época em que a sociedade agrícola era
dada à bruxaria, ao sacrifício humano e ao culto da deusa-mãe, aos
ritos de fertilidade e divindades ctônicas [...]. O Shaktismo hindu está
associado ao Shivaísmo. As doutrinas shivaístas influenciaram muito
o Shaktismo budista. (CONZE, 1973, p. 181).

Seguindo a direção teórica de Victor M. Fic e Edward Conze, André Van


Lysebeth (2002) também acredita nas origens milenares do Tantra, o autor sustenta que
esses conhecimentos já eram praticados por volta do ano 3000 a.C, pelos povos pré-
arianos que habitavam a região do vale do rio Indo e desde então exerceria ampla
influência sobre a religiosidade indiana.

2
Sobre a relação entre o tantra e o vedantismo, Cf. FIC, 2003.
22

De fato, os autores mencionados acima acreditam que o movimento tântrico é


anterior ao aparecimento histórico da tradição budista, portanto seria impensável aceitar
a hipótese de que o Tantra budista teria influenciado o surgimento do Tantra hindu, pois
a própria cronologia impediria tal ação. Por isso, existe uma tendência natural em
aceitar a tradição hinduísta (por ser mais antiga) e suas várias ramificações como a
grande herdeira destes conhecimentos, de modo que, a partir deste núcleo hindu, o
Tantra passaria a influenciar outras tradições religiosas do Oriente, sobretudo o
budismo.

Posição diametralmente oposta assume outros estudiosos do budismo tântrico. A


favor da primazia budista sobre a hindu, temos a contribuição de Kyabje:

Embora algumas Escolas sustentem que o Tantra budista derive do


Hinduísmo, isto não é correto [...]. Ainda que certas práticas, como a
repetição de mantras, são comuns entre ambas as tradições tântricas –
budistas e hinduístas –, suas interpretações, seu profundo significado,
é totalmente diferente. (TRIJANG, 2005, p. 221).

Posicionamento semelhante é adotado pelo Lama Anagarika Govinda, o qual


não admite a suposta origem hindu do Tantra, tampouco qualquer influência sobre o
budismo:

Declarar o Budismo Tântrico como lançamento do Shivaísmo só é


possível para os que não têm conhecimento em primeira mão da
literatura Tântrica. Uma comparação dos Tantras Hindus com os do
Budismo (que estão principalmente preservados em Tibetano e que
por isto ficaram desconhecidos pelos Indologistas) mostra não
somente uma assombrosa divergência de métodos e objetivos, apesar
das suas semelhanças externas, mas também provam a prioridade
histórica e espiritual e a originalidade dos Tantras Budistas.
(GOVINDA, 1995, p. 101).

Posição mais moderada assume o pesquisador Benoytosh Bhattacharyya (1989),


que admite a ancestralidade do conhecimento tântrico, sendo quase impossível detectar,
precisamente, o momento exato do seu aparecimento. Porém é com a doutrina budista
que ele emerge como um campo filosófico e iconográfico delineado, influenciando
assim o Hinduísmo. O autor adverte ainda que os budistas foram os primeiros a
23

introduzir o Tantra dentro da literatura religiosa ortodoxa, incluindo seus preceitos em


um formato canônico; posteriormente, segundo o autor, o mesmo caminho foi seguido
pelos hindus.

Acreditamos que o posicionamento teórico de Benoytosh Bhattacharyya é mais


plausível e ponderado, embora o autor admita a influência budista sobre o Tantra hindu
(de fato, os budistas parecem ter organizado melhor e mais cedo a sua coleção de
textos), é prematuro e leviano concluir que o budismo possuiria a primazia dos
ensinamentos tântricos, provavelmente o Tantra já era praticado por pequenos grupos
hinduístas e também de outras tradições ancestrais na Índia, porém de forma espassada,
não-sistematizada e oculta, dificultando assim o mapeamento destes conhecimentos. Por
esta razão, não temos interesse em fazer conclusões apressadas sobre a patente histórica
do Tantra, visto que poderíamos cometer graves equívocos. Assim, nosso interesse
limita-se apenas em apresentar aos leitores as controvésias inevitáveis que permeiam o
pensamento oriental.

Muito além da disputa entre budistas e hinduístas, Mircea Eliade (2012) lança-
nos no bojo de mais uma polêmica envolvendo a origem destes ensinamentos. Segundo
o autor, o tantrismo não só teria recebido influências dravidianas, como também
gnósticas:

É interessante notar que o tantrismo se desenvolveu nas duas regiões


fronteiriças da Índia: no Noroeste, nas fronteiras com o Afeganistão e
na parte oriental de Bengala, especialmente no Assam. De acordo com
a tradição tibetana, Nāgārjuna era originário do país de Andhra, no sul
da Índia, isto é, no próprio coração da índia dravídica. Daí se pode
concluir que o tantrismo se desenvolveu, sobretudo no começo, nas
províncias mediocremente hinduizadas, onde a contra-ofensiva
espiritual das raízes aborígenes era mais forte [...]. Nesse sentido, o
tantrismo prolonga e intensifica o processo de hinduização começado
desde os tempos pós-védicos. Mas desta vez não se trata só de
assimilação dos elementos da Índia aborígene e sim, também, de
elementos exteriores à Índia [...]. É necessário contar também com
eventuais influências gnósticas que, através do Irã, teriam penetrado
na Índia pela fronteira noroeste. Constata-se, de fato, mais de uma
simetria perturbadora entre o tantrismo e a grande corrente
“misteriosófica” ocidental na qual confluíram, no começo da era
cristã, a Gnose, o hermetismo, a alquimia greco-egípcia e as tradições
dos Mistérios. (ELIADE, 2012, p. 172).
24

Estamos convencidos de que semelhante disputa não será exaurida tão


facilmente, acreditamos ser precoce fazer qualquer afirmativa conclusiva a esse
respeito, de modo que preferimos orientar nossos esforços para questões filosóficas e
epistemológicas entendendo como secundária a exatidão histórica do Tantra.

Embora o nosso trabalho esteja centrado essencialmente em questões filosóficas,


acreditamos ser importante esta introdução histórica antes de adentrarmos em problemas
mais complexos, envolvendo os ensinamentos do Tantra. A proposta é clarear os seus
conceitos basilares, tonando-os bem definidos para o público. Para tanto, torna-se
fundamental não confundir os tantras, seja na religião budista, jainista ou hindu, o
tantrismo possui especificidades próprias, recebe diferentes interpretações filosóficas de
acordo com a tradição que o transmite3, como observa Gavin Flood ao dizer que “as
tradições tântricas surgiram durante os primeiros séculos da era comum,
desenvolveram-se a partir do contexto budista, hindu e jainista. O vasto conjunto de
textos tântricos são inseparáveis das tradições que lhes deram origem.” (FLOOD, 2006,
p. 7, tradução nossa).

Ao longo desta tese tentamos sempre fundamentar o nosso posicionamento


teórico com base na literatura ortodoxa e nos comentadores do Tantra budista, sempre
com o cuidado de não confundir seus ensinamentos com os de outras tradições do
pensamento oriental. Uma vez estabelecida e respeitada estas distinções hermenêuticas,
estamos em condições mais favoráveis para compreender fidedignamente, o budismo
tântrico, evitando assim desencontros conceituais desnecessários, o que tornaria estes
estudos ainda mais complexos.

3
Muitos autores defendem a teoria de que o tantra budista possuiria diferenças filosóficas muito evidentes
quando comparadas ao seu correlato hindu, não cabendo equiparações superficiais. Destacamos aqui uma
importante diferença entre os dois tantras: a relação entre Śiva e Śakti. Esta é uma abordagem tipicamente
hindu, a qual denota uma hierofania criacionista muito distante da visão cosmogônica budista, na qual
estaria excluída qualquer crença em algum deus criador. A deusa Śakti, no tantrismo hindu, representa a
“força criativa” que, unida ao aspecto masculino (Śiva), originaria todos os seres. O devoto hindu, ao
realizar as práticas tântricas, buscaria fundir-se com este poder criador. Diferentemente, no tantra budista,
Śakti é simbolizada por Prajñā (sabedoria), a qual não busca união com qualquer princípio criador, sua
meta real é conferir ao praticante liberação de todos os sofrimentos e apegos – incluindo poderes –, o qual
é prometido pelo tantra hindu –.
25

1.2 Análise das fontes e as quatro classes do Tantra

A palavra sânscrita Tantra4 é polissêmica, pode ser traduzida como “continuar”,


“esticar”, “multiplicar”, indica algo sem interrupção. O XIV Dalai Lama (2017) sugere
que essa não-interrupção oriunda do termo Tantra, estaria ligada à essência última da
mente, dotada de potencialidade ilimitada. Segundo Mircea Eliade (2012, p. 171), “o
Tantra seria ‘aquele que estende o conhecimento’”. Seguindo a mesma interpretação,
Victor M. Fic (2003) ao invés de utilizar o verbo “estender” prefere o termo
“propagação”. Gavin Flood (2006) afirma que a palavra Tantra designaria um “tear”,
onde a raiz tan, além de significar “estender” ou “esticar”, estaria relacionada com
Tanu, “o corpo”. Analogamente, Georg Feuerstein afirma que a raiz sânscrita tan
poderia ser traduzida por “teia”, “tecido”, “trama”, por outro lado, também estaria
relacionada com o termo tantu (fio ou cabo). O autor admite também a tradução do
termo como “continuidade”, designando o conjunto harmonioso entre transcendência e
imanência5.

Quanto à definição filosófica, Victor M. Fic (2003) compreende o Tantra como


um corpo de teorias, técnicas e rituais desenvolvidos na Índia Antiga que mais tarde se
espalharam para outras partes da Ásia. De modo análogo, David Snellgrove define o
tantra da seguinte forma: “Eles contêm fórmulas mágicas, descrições de seres divinos e
um conjunto de divindades organizadas para o uso ritualístico e meditativo”.
(SNELLGROVE, 1957, p. 55, tradução nossa). O Lama Choedak Yuthok
resumidamente afirma que a mensagem contida no Tantra se refere “a nossa natureza
básica fundamental” (YUTHOK, 1997, p. 126, tradução nossa). Geshe Kelsang Gyatso
declara que “o Tantra propriamente dito é, necessariamente, uma realização interior que
protege os seres vivos das aparências e concepções comuns, que são a raiz dos
sofrimentos do saṁsāra [...]”. (GYATSO, 2016, p. 154).

4
O termo Tantra foi introduzido pela primeira vez no idioma inglês no ano de 1799, e desde então
permanece em um campo aberto para diversas interpretações que, por vezes, soam demasiadamente
equivocadas. Cf. GUENTHER; TRUNGPA, 2003, p. 15.
5
Cf. FEUERSTEIN, 1998, p. 2.
26

Cathleen Cummings (2003) sugere que os ensinamentos tântricos podem ser


identificados por meio de certas características essenciais, tais como: o som sagrado
(mantra), diagramas sagrados (maṇḍala), gestos sagrados (mudrā), o uso de técnicas
yóguicas e ritualísticas, grande ênfase no aspecto feminino, compreenção do corpo
físico como o próprio templo da divindade, valorização da relação entre mestre e
discípulo, utilização do erotismo iconográfico, e compreensão não-dual da existência.
Estas características formariam, de um modo geral, o arcabouço teórico da filosofia
tântrica. Com base no exposto, definimos o Tantra como um conjunto de textos e
práticas místico-esotéricas comportando ritos e ensinamentos secretos de certas
tradições do pensamento oriental, sobretudo, o budismo e o hinduísmo, com vistas à
experimentação da realidade última da natureza.

Apresentanda essas definições, passemos à análise das fontes. Yassine B. Ernest


destaca que a filosofia tântrica está distribuída principalmente em 64 textos, os quais
teriam sido redigidos por volta do século VII d.C.

Os Tantras reagruparam sessenta e quatro textos fundamentais. Foram


elaborados pela ordem mahayanista entre os séculos VII e XIII,
introduzindo no culto budista crenças populares. Estes tratados de
práticas rituais e yóguicas ou esotéricas estão reunidos em quatro
grandes categorias: o Kriya Tantra, que descreve os rituais das
cerimônias; Charya Tantra, que segue a prática diária da vida
religiosa; o Yoga Tantra, que trata das práticas mágicas e místicas e o
Anuttarayoga tantra, que expõe os segredos do culto de Shakti ou
energia feminina. (ERNEST, 2014, p. 293, tradução nossa).

A data exata em que o cânon tântrico foi redigido não é precisa6. Provavelmente,
foram sendo introduzidos na literatura budista indiana, de forma não-sistemática, a
partir do século II d.C, e posteriormente se espalharam para outros países do Oriente.
Gavin Flood (2006, p. 7) acredita que “os Tantras foram incorporados no vasto cânon
budista entre 400 e 750 d.C.” Cathleen Cummings (2003), ao contrário, argumenta que
o aparecimento literário dos tantras aconteceu mais cedo, por volta do século IV,
período em que a Dinastia Gupta dominava grande parte do subcontinente indiano:

6
Na página 53 apresentamos uma série de comentadores especulando sobre as datas prováveis de
composição da obra Guhyasamāja-tantra, um dos textos-fontes clássicos do tantra budista.
27

Na Índia Central, no Período Gupta (320-500 d.C.) acentuou-se a


importância dos textos escritos, este foi um momento de grande
criatividade tanto para a tradição hindu quanto budista. No mesmo
período sentiu-se a necessidade de uma maior organização do sistema
tântrico, o qual poderia ser facilitado pela produção de textos escritos.
A Guhyasamaja tantra, o primeiro tantra revelado, parece ter sido
compilado durante a última parte deste período, ou seja, no século V
ou VI. Outros tantras revelados foram sendo desenvolvidos por volta
do século VIII, incluindo o Chakrasamvara tantra. O Hevajra tantra e
o Kalacakra tantra e outros textos da classe Anuttara Yoga parecem
ter sido escritos um pouco depois entre o século VIII e XI.
(CUMMINGS, 2003, p. 25, tradução nossa).

A Dinastia Gupta é retratada pelos pesquisadores como um período áureo da


história indiana: expansão territoral e econômica, sistema de castas consolidado,
estímulo à cultura local, estabilidade política, em suma, paz e prosperidade marcaram o
desenvolvimento sócio-religioso deste período. Não apenas a literatura, mas as ciências
e, sobretudo a arte sacra, ganharam novo impulso, com novas formas pictórias,
abrilhantou ainda mais a estética milenar dos templos indianos: “Predominantemente
budista nos seus primeiros momentos, a arte indiana, sobretudo a partir do período
Gupta, coexiste com o hinduísmo redivivo e vigoroso, terminando por lhe ceder a
posição central.” (ALMEIDA, 1995, p. 48).

Conforme Almeida (1995), outro elemento importante a se destacar é a


sensualidade emanada da iconografia do período Gupta. Masculino e feminino, homem
e mulher, eram representados nas esculturas erotizadas dos templos, mesclavam-se
sinfonicamente com uma aguda espiritualidade, a qual incorporava na arte sacra um dos
elementos fundantes de sua expressão. Com todas essas características favoráveis,
aproveitando-se dessa nova cosmovisão, acreditamos ser realmente possível o
aparecimento dos primeiros fragmentos tântricos justamente nesse período.

Ainda na Dinastia Gupta, outro fator decisivo para o impulso dos ensinamentos
tântricos é a ascenção progressiva de duas escolas do pensamento budista mahāyāna:
Mādhyamika e Yogācāra. “Segundo as tradições budistas, o tantrismo foi introduzido
por Asaṇga (cerca do ano 400), eminente mestre yogācāra e por Nāgārjuna (séc. II de
nossa era), ilustre representante dos Mādhyamika [...]”. (ELIADE, 2012, p. 171).

A tradição Mahāyāna é sem dúvida a base filosófica do proto-tantrismo


nascente. Cathleen Cummings (2003) sustenta a tese de que muitos sutras da Escola
28

Mādhyamika, sobretudo o Prajñāpāramitā, e os escritos yogācāras devem ser


classificados como “proto-tântrico”7, uma salutar abertura epistemológica à efusiva
emergência deste novo fenômeno espiritual que estava prestes a despertar.

Após o impulso do Período Gupta, a transmissão oral é, portanto, fortalecida


pela expressão textual, agora, ainda que de forma propedêutica, a literatura tântrica
passa a integrar a vida religiosa indiana do século IV, adentrando o século VI com a
força de uma genuína tradição, com uma filosofia própria e um complexo sistema
prático-ritualístico:

[...] Um grandioso movimento filosófico e religioso que se anuncia


desde o século IV de nossa era e se torna “moda” pan-indiana a partir
do século VI [...] o tantrismo ganha subitamente imensa popularidade
não só entre filósofos e teólogos como entre praticantes (ascetas, yogīs
etc.) e seu prestígio atinge igualmente as camadas mais simples da
sociedade. Em pouco tempo, a filosofia, a mística, o ritual, a moral, a
iconografia e a própria literatura são influenciados pelo tantrismo. É
um movimento pan-indiano, porque foi assimilado por todas as
grandes religiões da Índia e por todas as escolas “sectárias”.
(ELIADE, 2012, p. 171).

Shiri Dharmakirti (2002), corroborando com as análises de Eliade, também


acredita que o século VI da era cristã configura-se como fundamental para a
disseminação e consolidação do budismo tântrico nascente: “No século VI d.C., a
tradição Tântrica Mahāyāna havia alcançado seu apogeu na Índia. Muitos dos principais
círculos tântricos apareceram e se espalharam largamente desde a Ásia central até a
Indonésia”. (DHARMAKIRTI, 2002, p. 5, tradução nossa). O autor sustenta ainda que
nesse mesmo período, os Tantras já eram classificados em duas categorias principais: o
“tantra-pai” (Guhyasamāja-tantra, Vajrabhairava e Yamāri) e o “tantra-mãe” (Heruka
Cakraśamvara, Hevraja e Vajra yoginī)8.

7
O termo “proto-tântrico” é uma clara indicação de que o budismo Vajrayāna ou tantrayāna é
influenciado/introduzido pela tradição Mahayāna. A literatura do budismo Mahayāna do século IV-VIII
d.C. está repleta de conceitos que mais tarde serão desenvolvidos e aprofundados pelas linhagens tântricas
do Tibete. Dentre eles, podemos destacar os ensinamentos sobre as maṇḍalas, mantras, mudrā etc. Cf.
CUMMINGS, 2003, p. 24.
8
Cf. DHARMAKIRTI, 2002, p. 5.
29

Importante destacar que o impulso tântrico do século VI proporcionou, a partir


do século VII, o aparecimento das primeiras universidades monásticas da Índia. As
práticas e o pensamento tântrico agora poderiam ser formalmente recebidos em centros
budistas especializados. Segundo Cathleen Cummings (2003), as universidades de
maior destaque nesse período foram Nālandā, Vikramaśīla e Uddandapura, nelas
poderiam ser encontrados os primeiros comentários sobre o Tantra, em língua sânscrita.
A relevância espiritual destes centros transcende as limitações geográficas, pois é a
partir deles que o Tibete receberá as bases doutrinais e filosóficas de sua espiritualidade:

O desenvolvimento do pensamento e das práticas tântricas budistas


teve, claramente, um grande momento no século VII d.C. Durante este
período os textos tântricos foram sendo escritos, compilados e
amplamente disseminados. Nesse mesmo tempo, as grandes
Universidades da Índia oriental – Nalanda, Vikramashila e
Uddandapura – foram se tornando grandes centros de estudos e
práticas tântricas. Monges chineses e viajantes do século VII, tal como
Yi-Jing, relatam que as práticas tântricas estavam sendo praticadas na
Universidade de Nalanda durante esse período. Por volta do século
VIII em diante, o budismo tântrico, na Índia, ingressou em uma nova
fase com a emergência de especialistas do tantra e professores, os
Mahasiddhas, ou grandes adeptos. Os adeptos e estudiosos das
universidades monásticas devenvolveram um vasto corpo literário,
com comentários, para explicar aspectos obscuros e difíceis dos
ensinamentos esotéricos. Deste modo, os textos que formam o cânon
tibetano são divididos em duas coleções: os textos revelados no
Kanjur e a exegética literatura no Tanjur. Dos mais de 4.500 textos
que compõe este cânon, aproximadamente 4.000, são de origem
indiana, muitos compostos por estudiosos monásticos, em sânscrito,
os quais foram posteriormente traduzidos para o tibetano. A literatura
comentada continuou a ser composta dentro dos muros de Nalanda e
Vikramashila até o século XII d.C., período em que estes monastérios
foram destruídos. (CUMMINGS, 2003, p. 25, tradução nossa).

Corroborando com Cummings, o professor Dasgupta (1946) destaca ainda a


importância da Dinastia Pāla, a qual teria influenciado decisivamente o avanço e a
perfeita manutenção das universidades monásticas. Convertidos ao budismo, os reis da
Dinastia Pāla governaram a região de Bengala (que se extende pelo leste da Índia até
Bangladesh) durante quase quatro séculos (VIII-XI d.C), por esta razão os mosteiros e
universidades budistas recebiam generosos fomentos e o constante patrocínio real.
Deste modo, muitos centros de estudos tântricos se espalharam rapidamente por toda a
30

região de Bengala, destacando-se duas das mais relevantes universidades budistas do


período medieval indiano: Nālandā e Vikramaśīla.

Embora o Tantra tenha ganhado impulso no século VI e VII, consideramos o


período que compreende o século VIII e XII, como os mais promissores. Durante estes
séculos, influentes mestres (Mahāsiddhas) transmitiram publicamante os seus
ensinamentos, marcando definitivamente a história do budismo na Índia.
Padmasambhava, Tilopa, Naropa, Shantideva, mestres natistas da tradição do Haṭha-
Yoga, são apenas alguns exemplos da emergência espiritual que se anuncia entre esses
séculos.

Do século XIII ao XIV9, impulsionado pela “onda Mahāsiddha”, o Tantra, já em


solo tibetano, recebe uma importante herança: sua coleção de textos é organizada em
quatro partes principais. Kalu Rinpoche (1999) confirma que a classificação quádrupla
dos tantras se realizou no Tibete, a partir de dois sistemas: Nyingma (antigo) e Sarma
(novo). O primeiro classifica o Tantra em quatro divisões (Kriyā-tantra, Cārya-tantra,
Yoga-tantra e Anuttarayoga-tantra), já o segundo em seis (Kriyā-tantra, Uppa-tantra
Yoga-tantra, Mahayoga-tantra, Anuyoga-tantra, Atiyoga-tantra). Embora existam
diferentes classificações (algumas escolas tântricas dividem os seus textos sagrados em
até sete partes10), devemos asseverar que a divisão em quatro partes é a mais utilizada
dentre as escolas tântricas budistas.

Quando analisamos as quatro classes do Tantra, começamos a perceber o


cuidado com que os mestres budistas tratavam dos temas relacionados com a energia
sexual. Nos três primeiros níveis do Tantra (Kriyā-tantra, Cārya-tantra e Yoga-tantra),
as práticas sexuais não aparecem como instrumentos de realização espiritual. Contudo,
na última classe do Tantra, Anuttarayoga-tantra, é finalmente ensinado para os
discípulos que não optaram pela vida celibatária, os segredos do sexo-yoga. Vejamos a
seguir, de forma resumida, como é o desenvolvimento do discípulo em cada nível do
Tantra.

9
Cf. CUMMINGS, 2003, p. 25.
10
Na obra de Atīśa: A Lamp for the path and comentary, encontramos sete classificações do Tantra: [1]
Tantra da Ação, [2] Tantra da Prática, [3] Tantra da Habilidade, [4] Tantra da combinação, [5] Tantra da
União, [6] Tantra da Grande União e [7] Tantra da Suprema União. Cf. ATĪŚA, 1983, p. 167-168.
31

No primeiro capítulo da obra The Dalai Lamas on tantra (2006), intitulado “A


Brief Guide to the Buddhist Tantras” é apresentado pelo décimo terceiro Dalai Lama,
uma breve introdução do conteúdo das quatro classes do Tantra. O autor esclarece que
cada um deles possui um tipo de iniciação específica, incluindo visualizações e mantras
secretos. Além da especificidade de cada Tantra, Traleg Kyabgon, mestre da tradição
Kagyü11, adverte sobre a necessidade de praticá-los de forma ordenada e sistemática,
pois eles estão distribuídos hierarquicamente, desde o mais simples processo de
realização (Kriyā-tantra) até o mais complexo e exigente (Anuttarayoga-tantra):

As práticas do Vajrayana, ou ensinamentos tântricos, foram


sistematizados em quatro categorias, e os praticantes são encorajados
a segui-los de forma sistemática e gradual. A relação existente entre as
divindades visualizadas e o praticante passará por diferentes
transições, dependendo do nível de Tantra com que a pessoa se
envolve. Mesmo a natureza das divindades visualizadas, são
diferentes; elas podem ser coléricas ou pacíficas, por exemplo.
(KYABGON, 2002, p. 187-188).

Trialeg Kyabgon (2002) esclarece que no primeiro nível – Kriyā-tantra – os


rituais devem ser executados com muito escrutínio; a limpeza e a precisão cerimonial
são ressaltadas e bastante exigidas neste primeiro estágio. Ao que tudo indica, neste
primeiro contato com o Tantra, exige-se do discípulo comprometimento e obediência,
qualidades essenciais para o triunfo do método. Pouco a pouco, o iniciado tântrico vai
libertando-se das impurezas mentais e comportamentais, uma espécie de purgação
interior e exterior:

Praticantes de Kriya Tantra devem tomar o banho ritual e lavar o


corpo cinco ou seis vezes por dia. Além disso devem se ater a uma
rígida dieta vegetariana. As divindades visualizadas são, na maior
parte, pacíficas, e na relação entre divindade e praticante, este
desempenha um papel subserviente. O praticante vê a divindade como
o senhor e a si mesmo como o servo. (KYABGON, 2002, p. 188).

No próximo estágio – Cārya-tantra – os rituais e as meditações visualisadas são


mantidas, porém a relação entre o discípulo e as divindades meditacionais é modificada.

11
A escola tibetana Kagyü pertence à tradição Vajrayāna.
32

Ao invés de submissão, semelhante ao modelo cristão, neste segundo nível “as


divindades são vistas mais como amigos do que como seres elevados a serem
venerados”. (KYABGON, 2002, p. 190).

A partir do terceiro nível – yoga-tantra –, também conhecido como Anuyoga


tantra, as práticas e ensinamentos estão mais direcionados à aquisição da verdade
absoluta, por isso possuem um grau maior de profundidade conceitual. Importante
destacar que nesta etapa “é preciso ter desenvolvido bodhichitta12 e ter feito o voto do
bodhisatva, condições necessárias para continuar a prática”, (KYABGON, 2002, p. 191,
grifo do autor).

Cada estágio tântrico cumpre com um papel importante dentro da trajetória


iniciática do discípulo, contudo a última classe, o nível mais exaltado de todos os tantras
é especialmente relevante para a proposta teórica deste trabalho, visto que a partir dele a
energia sexual é trabalhada com maior profundidade, encontramos aqui a inclusão do
sexo-yoga por parte de algumas escolas, não todas.

O Annutarayoga-tantra, a quarta classe do Tantra, está dirigida aos aspectos


mais sublimes e também mais polêmicos da doutrina budista, nele estão contidos
importantes textos, tais como: Guhyasamāja-tantra, Heruka-tantra, Cakraśaṁvara-
tantra e Kālacakra tantra13. Um estudo sério e diligente sobre os aspectos sensuais da
doutrina budista deve, necessariamente, passar por estes textos-fontes, pois são citados
com muita freqüência por inúmeros pesquisadores, bem como por mestres da tradição
tântrica. A polêmica que envolve tais textos, sobretudo a Guhyasamāja-tantra, refere-se
ao estímulo à sensualidade, ao consumo de vinho, bem como às supostas transgressões
morais.

Trialeg Kyabgon (2002) explica que na quarta classe do Tantra – Annutarayoga-


tantra – a sexualidade recebe uma atenção mais apropriada. A visualização das
divindades coléricas e em união sexual, permite ao iniciado entrar em contato com
certos quadrantes da consciência que foram escassamente explorados, regiões

12
Nesse contexto, a palavra bodhichitta significa a “mente do despertar” ou “mente de iluminação”.
Trata-se da pré-disposição sincera em atingir a budeidade, a libertação do sofrimento, e
consequentemente ajudar a todos os seres nesse mesmo propósito.
13
Cf. MULLIN, 2006.
33

intimidadoras, nossos apegos mais enraigados são finalmente aguçados, o fogo erótico é
despertado com o intuito de transmutá-lo em passividade interior.

Existem muitas sutilezas neste nível do Tantra, práticas variadas para diferentes
casos particulares. A “yoga do calor místico” (tummo, em tibetano), por exemplo, é uma
técnica muito poderosa ensinada neste nível, está intimamente conectada com a energia
sexual. Monges celibatários ou praticantes casados podem realizá-la, os benefícios serão
os mesmos, a única diferença está na execução, enquanto o primeiro imagina a si
mesmo em união sexual com uma divindade, o segundo efetuará fisicamente com a sua
própria consorte, o conúbio sexual. Trata-se de um esforço contínuo da consciência em
redirecionar a líbido para a realização espiritual, impulsionando-o em direção ao
dharma, à aquisição da suprema bem-aventurança, ao êxtase místico proporcionado pela
transubstanciação da energia sexual:

O principal objetivo é transformar a energia sexual mediante essas


práticas. A forma de consegui-lo depende do praticante, se ele é um
monge ou uma monja, se é celibatário ou não. De qualquer modo, o
objetivo básico é alcançar grande bem-aventurança pela
transformação das energias sexuais. Na prática do calor místico, por
exemplo, mesmo se praticada por celibatários, faz-se com que o calor
místico suba do centro do umbigo pelo canal central até se transformar
na denominada bodhichitta ou “essência da vida”, e desça de volta. À
medida que a essência da vida desce pelo canal central,
experimentam-se diferentes tipos de bem-aventurança em diferentes
níveis. Quando praticada com um parceiro, denomina-se ioga do
carma, e quando praticada por pessoas celibatárias, é chamada de
ioga, de jnana, ou de sabedoria. Em ambas as abordagens o mesmo
objetivo é alcançado. (KYABGON, 2002, p. 197).

No terceiro capítulo aprofundaremos a relação entre a subida da bodhicitta


(kunḍalinī) e o sexo-yoga. Por hora, nossa preocupação é apenas alertar ao leitor sobre
essa propensão da quarta classe do Tantra em utilizar o sexo-yoga e a própria energia
sexual como método de ascenção mística.
34

1.3 A chegada do Tantra ao Tibete

Ao se referir às tradições do budismo tântrico tibetano, o atual Dalai Lama


nomeia principalmente cinco Escolas: Nyingma, Kagyü, Sakya, Gelug e Bön14. “Do
ponto de vista de Sua Santidade, Bön tem um lugar igual com as quatro linhagens do
budismo tibetano.” (BENZIN apud SEVERINO, 2010, p. 115). Com esta afirmação,
torna-se inegável a importância da tradição Bön para a cultura tibetana, bem como para
o estudo comparativo do budismo com outras formas religiosas.

Inquestionavelmente, a tradição Bön apresenta-se como depositária de uma rica


herança cultural autóctone, com características xamânicas, animistas, altamente
inclinados à magia e ao culto, exerciam o predomínio mítico-ritualístico sobre o povo
da região, muito antes da chegada do budismo ao Tibete, como atesta Giuseppe Tucci:

A religião Bon é a religião indígena do Tibete que apesar de todas as


influências budistas ainda se conserva até os dias atuais [...] possui
seus próprios adeptos, locais de culto e monastérios. Conserva-se no
meio do lamaísmo, que por sua vez, tem emprestado muitos de seus
conceitos e ensinamentos [...]. Se desconsiderarmos alguns pequenos
textos encontrados na Ásia central, podemos deduzir que a religião do
Tibete pré-budista tem sofrido um vasto processo de evolução com o
objetivo de se tornar capaz de competir com a incoparávelmente mais
sólida estrutura doutrinal budista. (TUCCI, 2009, p. 213, tradução
nossa).

Yassine B. Ernest analisando a absorção cultural realizada pelos tibetanos,


sustenta que as influências xamânicas e animistas, bem como elementos astrológicos e
adivinhatórios já eram praticados pela tradição Bön de Zhang Zhoung15:

14
Deve-se esclarecer que a cultura Bön teve grandes embates filosóficos com o budismo, sua aceitação
foi marcada por desencontros e controvérsias, sua incorporação à tradição budista se deu muito
tardiamente. Por isso colocá-la ao lado das quatro principais Escolas budistas pode parecer incomum, mas
não incorreto.
15
Zhang Zhoung, localidade em torno do Monte Kailash, no Tibete ocidental, altamente influenciada pela
tradição Bön. Nesta região consolidou-se uma rica cultura com escrita própria, por meio da qual se
preservaram os mitos relacionados ao Bön. Posteriormente, tais textos foram traduzidos para o tibetano,
reforçando ainda mais a sua influência sobre o budismo praticado no Tibete. Cf. DAKPA, 2005 e
SEVERINO, 2010.
35

O Bön tal como se manifesta a partir do século XI é a convergência de


crenças e práticas autóctones antigas, de uma religião chamada "Bon
Zhang Zhoung”, original de regiões oeste, e de um conjunto coerente
das doutrinas budistas que lhe servem de matriz conceitual e
organizadora para integrar essa diversidade. O resultado disso foi uma
sucessão graduada e metódica de nove vias; as quatro primeiras
reuniam o que poderíamos chamar de crenças xamânicas ou animistas
(astrologia, adivinhação, tratamento das enfermidades e dos
obstáculos vinculados aos espíritos, a benção dos lugares, as
cerimônias funerárias.) e as cinco últimas que seriam resolutamente
budistas (votos dos laicos, votos monásticos, tantras externos, tantras
internos e dzogchen16). (ERNEST, 2014, p. 283. tradução nossa, nota
nossa).

O estudo acerca das tradições autóctones é de vital importância para evidenciar o


caráter singular e até mesmo regionalista do tantrismo praticado no Tibete. Sem dúvida,
quando falamos em budismo tibetano irremediavelmente somos jogados ao universo
tântrico, ambos são absolutamente inseparáveis. Ora, a tradição vajrayāna ou
tantrayāna17 que emergiu em solo tibetano é uma amálgama entre elementos do Bön e
do budismo mahāyāna indiano. O Tantra tipicamente tibetano ganharia assim contornos
próprios, recebendo uma valorosa contribuição desta tradição milenar nativa do Tibete:

O Bön é a tradição religiosa nativa do Tibete, tendo sido introduzida


por seu fundador Tempa Sherab Miwoche em tempos míticos, de
forma que se expandiu por todo território tibetano, e durante vários
séculos prosperou, até que por volta do século VII a.C. teve contato

16
“Dzogchen (tibetano: rdzogs Chen). A “grande perfeição” ou “grande completude”. O Dzogchen é
considerado a prática e o ensinamento mais elevados, tanto no Bön, como na escola Nyingma do Budismo
Tibetano. Seu princípio fundamental é que a realidade – inclusive o indivíduo – já é completa e perfeita,
que nada precisa ser transformado (como no tantra) ou renunciado (como no sutra), mas apenas
reconhecido pelo que realmente é. A prática essencial do Dzogchen é a “autoliberação”: permitir que tudo
que surge na experiência exista exatamente como é, sem nenhuma elaboração da mente conceitual, sem
apego nem aversão”. (RINPOCHE, 2010, p. 230).
17
De um modo geral, o budismo se desenvolveu conceitualmente e textualmente com base em três
tradições distintas: Theravāda, Mahāyanā e Vajrayāna. Todas elas aceitam as teorias sobre a
impermanência, a ausência de um “eu”, “as quatro nobres verdades” e o “caminho óctuplo”. A primeira
das Escolas citadas é considerada a mais conservadora, uma vez que se manteve fiel aos textos escritos
em páli, mesma língua falada na época do Buda, não acrescentado nenhum outro texto às escrituras
tradicionais. O Mahāyāna é considerado a maior corrente do budismo e aceita os textos sagrados da
escola Theravāda, porém agrega outros novos, em outras línguas, tais como: sânscrito, tibetano e chinês,
por exemplo. O Vajrayāna (veículo de diamante), também conhecido como tantrayāna, por vezes, é
compreendido como uma extensão do Mahāyāna, e aceita textos de outras línguas em seu cânone.
Destacam-se nessa tradição importantes Escolas Tibetanas, tais como: Nyingma, Kagyü, Sakya e Gelug
(Essa última tendo como principal representante o XIV Dalai Lama). (CONZE, 1973, p. 26-27).
36

com o budismo que vinha sendo trazido da Índia, e então nasceu uma
forma de budismo intitulada vajrayana, fruto do sincretismo entre
budismo e Bön. (BRENNAND, 2015, p. 73).

O breve panorama acerca da relação entre o budismo e a tradição Bön lança-nos


num desenvolvimento histórico cujas interfaces culturais, demonstram as inúmeras
ressignificações sofridas pela religião budista através de suas constantes migrações ao
redor do continente asiático. Nesse sentido, quando analisamos o budismo enquanto
perspectiva historiográfica, jamais poderíamos deixar de assinalar seu caráter
polivalente, a complexidade da doutrina budista não se encontra apenas em seus
conceitos rarefeitos, senão pelas amálgamas culturais herdadas de diferentes tradições
orientais (chineses, tibetanos, japoneses, nepaleses etc.) que foram sendo absorvidas e
reinterpretadas pelas inúmeras escolas do budismo Mahāyāna e Vajrayāna.

Por volta do século VII d.C, o Tantra chega ao Tibete, durante o governo do
imperador Songtsen Gampo (629-649)18. A consolidação do dharma em solo tibetano
alcança seu apogeu em 791, quando o budismo é proclamado religião do Estado por
Trisong Detsen (755-797). Desde então, o Tantra inicia sua marcha segura para a sua
consolidação, que por sua vez, atinge seu apogeu em meados do século VIII d.C, com a
chegada de Padmasambhava19, que finalmente consegue estabelecer as pesadas âncoras
do dharma sob o país das montanhas de gelo, como nos lembra o mestre tibetanto
Sakya Trizin, líder da tradição Sakya, o qual disse que:

O budismo veio da Índia para o Tibete em dois períodos diferentes. O


primeiro foi durante o séc. VIII, na época do grande abade
Śāntarakṣita, do grande Guru Padmasambhava e dos reis do Dharma

18
John C. Huntington e Dina Bangdel (2003) sugerem o ano 629 e 649 como as datas mais prováveis
para o nascimento e morte do imperador tibetano Songtsen Gampo. Contudo, existem outros
pesquisadores que mencionam outras datas possíveis. Obviamente, a precisão cronológica é sempre um
desafio quando tratamos de períodos históricos tão remotos.
19
As crônicas budistas dizem que Padmasambhava, também conhecido como Guru Rinpoche, nasceu de
uma flor de Lótus, no reino indiano de Uddiyana, sem pai nem mãe, é retratado como a emanação da
mente do Buda Amitaba, também como a emanação da palavra de Avalokiteshvara e ainda como a
emanação do corpo do Buda Shakyamuni. Desde sua infância apresentava poderes sobrenaturais capazes
de subjugar não apenas forças humanas, mas também espíritos maléficos. Conta-se que teria vivido por
mil anos na Índia e em seguida passou cinquenta e cinco anos no Tibete, durante esse período disseminou
o budismo tântrico pelo país e recrutou vinte e cinco grandes discípulos, os quais dominavam
intelectualmente tanto os sutras quanto os tantras budistas; ademais, eram capazes de fazer proezas, assim
como seu mestre, tais como: atravessar materiais sólidos, voar, aparecer em várias partes diferentes etc.
Cf. TSOGYAL, 2006.
37

tibetanos. Pois, ainda que tenham sido introduzidos alguns


ensinamentos e práticas durante a época de Songtsen Gampo, no séc.
VII, não havia no Tibete a integralidade dos ensinamentos budistas.
Foi só no tempo de Śāntarakṣita, de Guru Padmasambhava e do Rei
Trisong Detsen que o verdadeiro budismo se formou no Tibete e foi
nesta época que foram estabelecidas as tradições monásticas.
(TRIZIN, 2016, p. 4).

Śāntarakṣita20, abade hindu, teria aconselhado ao rei Trisong Detsen a trazer


Padmasambhava da Índia, pois este seria o único capaz de vencer a magia poderosa e ao
mesmo tempo opressora produzida pela tradição Bön, a qual impedia a construção dos
templos budistas bem como sua disseminação doutrinária. O budismo se viu em apuros
quando se deparou com esta poderosa religião local, como vimos em parágrafos
anteriores, os budistas sempre rivalizaram a primazia religiosa tibetana com a tradição
Bön, a qual mantinha forte resistência aos novos ensinamentos forâneos.

As crônicas budistas narram a extasiante chegada de Padmasambhava ao Tibete


e todas as dificuldades encontradas por ele. As histórias enveredam pelo fantasmagórico
mundo dos seres demoníacos; à revelia de alguns praticantes budistas, a figura de
Padmasambhava está indissociavelmente ligada aos espectros, figuras pitorescas ligadas
ao imagético mundo das crenças populares, harmonizando a historicidade cultural
tibetana com a beleza da plasticidade mítica. A seguir, apresentamos mais detalhes
sobre a história desse grande mestre e sua aventura em terras tibetanas:

Quando Śāntarakṣita tentava estabelecer a tradição monástica e


construir templos, ocorreram muitas perturbações causadas pelos
guardiões, ou espíritos locais tibetanos. Śāntarakṣita construía templos
durante o dia e, no decorrer da noite, o seu trabalho era destruído.
Assim, o abade Śāntarakṣita sugeriu que fosse convidado Guru
Padmasambhava. Padmasambhava veio, subjugou os espíritos
malévolos e transformou aqueles que permaneceram em protectores
budistas. Feito isto, os problemas terminaram e o trabalho de
estabelecer o Dharma prosseguiu pacificamente. Estas foram as
grandes bênçãos de Guru Padmasambhava que, desde o início,
estiveram presentes. Neste período, a compilação dos ensinamentos
do Buda conhecida como Kangyur e a compilação dos grandes

20
Śāntarakṣita foi um grande estudioso do mosteiro de Nālandā. Do ponto de vista doutrinal, realizou
uma síntese entre os ensinamentos mahāyāna da escola Mādhyamika com a Iogacara. Portanto, o budismo
que chega ao Tibete está longe de ser incipiente, pois já possuía um complexo desenvolvimento
hermenêutico, contribuindo assim decisivamente para a introdução e a perpetuação dos ensinamentos
tântricos. Cf. MUSASHI, 2006.
38

comentários conhecida como Tengyur foram traduzidas para tibetano;


e assim foi estabelecido o budismo autêntico. (TRIZIN, 2016, p. 4).

Desde sua saída da Índia, até as fronteiras tibetanas, Padmasambhava precisou


domesticar demônios, subjugar forças sinistras, transformando-os, com a adaga da
sabedoria, em guardiões do dharma, potencializando seu caráter heroico e ao mesmo
tempo sacro. Através da profunda absorção meditativa, o grande yogī colocou sob seu
julgo todas as forças maléficas enviadas pelos feiticeiros Bön; malogradas suas infames
tentativas, os demônios não viram outra alternativa, senão a fuga e a consequente
entrega do bastão do dharma ao novo patrono do Tibete, Padmasambhava.

As circunstâncias envolvidas na viajem de Padmasambhava ao Tibete


indica-nos pelo menos dois fatores cruciais que marcaram a
introdução do budismo no país. De um lado, demonstram que existiu
um processo de “indigenização” da religião indiana por meio,
principalmente, do aliciamento de forças espirituais locais, mas
também da assimilação de práticas xamânicas tibetanas. E de outro
revelam a proximidade entre o budismo e o poder do Estado que
definiu desde o início a propagação dessa religião no Tibete. A
maleabilidade com que era assimilada a nova tradição, aliada ao
entusiasmado patrocínio de reis –, e também dos próprios Dalai
Lamas, que mais tarde assumiriam o poder do Estado –, deu origem a
uma incrível disseminação do budismo em terras tibetanas. (NINA,
2006, p. 27).

Com Padmasambhava (cf. Imagem 1), o Tibete herdou um heroi mítico,


divinizado por seus feitos miraculosos, crucial à consolidação da fé budista dentre o
povo tibetano, pois além de trazer os fundamentos da nova religião emergente, ao
destruir as forças antagônicas, demonstra objetivamente a eficiência do dharma, não
permitindo qualquer desconfiança por parte do povo local.

Evidentemente, outras situações históricas permitiram o amplo sucesso do


budismo tântrico no Tibete. Como foi mencionado na citação acima, o apoio da realeza
conferido ao alto clero budista permitiu o financiamento generoso de inúmeras
travessias do Tibete à Índia, a fim de lograr um aprofundamento cada vez maior das
práticas e ensinamentos budistas; monges corajosos empreenderam a perigosa travessia,
obstinados pela pureza doutrinal, deram ensejo a um poderoso intercâmbio espiritual, o
que resultou, ao longo de mais de cinco séculos, no maior trabalho de compilação e
39

tradução de textos budistas de que se tem notícia. Muitos desses escritos atualmente só
são encontrados em versão tibetana.21

Imagem 1 – Estátua do mestre guru rinpoche Padmasambhava

Fonte:http://www.chinabuddhismencyclopedia.com/en/index.php?title=Tukdrub_Barchey_Kunsel#/medi
a/File:Gods-p_a-b.JPG. Acessado em 21/09/2018.

Padmasambhava, Upadhaya e Śāntarakṣita, além de outros grandes sábios,


traduziram para o tibetano a Tripitaka (principal cânon ortodoxo budista) e outros textos
tântricos, além de terem escrito os dezoito volumes da Mahasiddhi, obra denominada
"Grande Realização"22. Assim, notamos o desprendimento vagaroso do Tantra, agora
redigido em tibetano, inserindo-se definitivamente na vida monástica dos monges
budistas da região.

21
Cf. NINA, 2006, p. 27.
22
Sobre a tradução dos textos tântricos para o tibetano, Cf. SILVA; HOMENKO, [s. d.], p. 190.
40

Hodiernamente, a literatura budista tibetana mantém-se conservada e traduzida


por duas coletâneas de textos, a saber: o Kanjur (bKaḥ-ḥgyur) “tradução da palavra” e o
Tanjur (bsTan-ḥgyur) “tradução dos tratados”. Além dos tantras, encontramos nestes
tratados as bases doutrinais da religião budista. O primeiro apresenta 13 volumes sobre
a disciplina monástica (vinaya); 21 volumes sobre a “perfeição da sabedoria”
(prajñāparāmitā); 44 volumes sobre os sutras mahāyānas, que exaltam os infinitos
méritos dos budas e bodhisattvas; finalmente, 22 volumes sobre o tantra, incluindo
rituais de meditação e práticas especiais para a descoberta de nossa real natureza. Já a
segunda parte do cânon (Tanjur), compreende a análise individual dos mestres indianos,
os quais estão agrupados em duas grandes seções, a saber: os comentários aos sutras
(mDo-ḥgrel), este contendo 137 volumes e os comentários aos tantras (rGyud-ḥgrel),
com 86 volumes. A primeira seção inclui todos os trabalhos, não necessariamente
comentários, sobre o prajñāparāmitā (sutra mahāyāna), bem como o de outras tradições
antigas23.

O cânon tibetano foi o resultado de uma longa trajetória de interpretações e


traduções, como nos mostra as pesquisas de Yassine Bendriss Ernest:

É entre os séculos VII e X que o cânon sânscrito foi traduzido,


estabelecendo assim uma importante liturgia religiosa. No século XVI,
o cânon tibetano encontrou seu formato final através de duas
enciclopédias: Kangyur ("Tradução da doutrina sagrada") e Tengyur
("Transferência de palavras"), comentários de todos os textos
Kangyur. Estas duas enciclopédias, apesar de seu volume (Kangyur
possui mais de cem mil páginas e pesa mais de quinhentos quilos),
foram completadas por numerosos textos posteriores, de essência
filosófica ou histórica [...], dos quais o mais conhecido é o Bardo
Thodol, o livro tibetano dos mortos. (ERNEST, 2014, p. 268, 269,
tradução nossa).

Embora o budismo tântrico e a sua coletânia de textos tenham sido introduzidos


no Tibete por Padmasambhava e Śāntarakṣita, desafortunadamente sua prática foi
amplamente destruída durante a limpeza anti-budista realizada pelo rei tibetano, Lang
Darma (838-841), um seguidor da tradição Bön. Novamente, a velha querela, que
parecia superada pela primeira incursão budista ao Tibete, ressurge com aumentado

23
Sobre a divisão dos textos tântricos e suas especificidades, Cf. SNELLGROVE, 1959, p. 3.
41

vigor. As tensões políticas se chocavam com o declínio cada vez mais vertiginoso do
budismo.

Nesse período o Tibete estava imerso em grande confusão doutrinária, os


tibetanos viam-se em apuros diante da paradoxal diferença filosófica e metodológica
entre os ensinamentos do Tantra e do Sutra. Até que finalmente em 1042, o mestre
indiano Atīśa é convidado por um governador do oeste tibetano, a reintroduzir a
essência do dharma no Tibete. E ele o fez escrevendo importantes obras que buscavam,
sobretudo, a harmonia perfeita entre o caminho do Tantra e o do Sutra. Sobre a
relevância de Atīśa para a disseminação e consolidação do dharma, Nina escreve:

“Por volta do século X o budismo, depois de um século de


decadência, passaria por um período de “renascença”, estabelecendo-
se, a partir de então, solidamente em terras tibetanas. A principal
figura dessa fase de disseminação foi o grande mestre indiano Atisha.”
(NINA, 2006, p. 73).

Ana Cristina Lopez Nina (2006) prossegue afirmando que a importância de


Atīśa pode ser evidenciada não apenas na reintrodução do budismo no Tibete, senão por
escrever uma síntese didática, com precisas indicações, acerca da harmonia existente
entre o caminho Mahāyāna e Vajrayāna; tal questão gerava diversas polêmicas e
incompreensões na época motivando as explanações doutrinárias feitas por Atīśa.
Ademais, estabeleceu a preponderância do mentor em face das escrituras, reforçando os
laços espirituais necessários entre mestre e discípulo.

Jean Boisselier (2002) considera Atīśa o verdadeiro reformador do Tibete, pois


além da consolidação doutrinal entre os sutras e os tantras, restabeleceu as exigências da
vida monástica, mais ainda, atribui-se a ele a elaboração de obras do tipo sumário, como
a célebre Luz sobre o caminho para a Iluminação, bem como traduções de importantes
tratados da Escola Mādhyamika, do corpus lógico e também do Tantra24. Ademais, é a
ele creditada a profícua difusão do culto a Avalokiteśvara, considerado desde então o
protetor titular do Tibete; seu mantra (om mani padme huṃ) continua sendo, mesmo nos
dias atuais, um dos mais reverenciados dentro da tradição tibetana, como nos mostra

Sobre a importância de Atīśa para o desenvolvimento e consolidação do budismo tibetano, Cf.


24

WAYMAN, 2006.
42

Alex Wayman (2006, p. 251): “Atīśa deu destaque aos cultos tibetanos mais
característicos: o de Avalokiteśvara, da fórmula em seis sílabas OM MANI PADME
HUM, e o de Tārā, da fórmula em dez sílabas OM TĀRE TUTARE TURE SVĀHĀ.”
Finalmente, graças a essa segunda disseminação do dharma no Tibete, surgem três
importantes Escolas tântricas tibetanas: Kagyü, Gelugpa e Sakya, influenciadas pelos
contornos doutrinários realizados pelo sábio Atīśa 25.

Importante salientar que as escolas budistas do Tibete acreditam que os


ensinamentos tântricos transmitidos desde o século VIII representam os mesmos ideais
espirituais defendidos por Siddhārta Gautama, como nos lembra o Lama Yeche: “Os
tantras foram ensinados pelo próprio Buda” (LAMA YECHE, 2005, p. 222, tradução
nossa). Sobre este ponto, o XIV Dalai Lama declara: “No fundamental Kalachakra
tantra, o próprio Buda diz que quando entregou o segundo giro da roda do dharma, no
pico Vulture, também entregou diferentes classes de ensinamentos tântricos.” (DALAI
LAMA, 2017, tradução nossa). Opinião semelhante sustenta Benoytosh Bhattacharyya
ao dizer que “o fundador do budismo tântrico foi o próprio Buda.”
(BHATTACHARYYA apud FIC, 2003, localização 691, tradução nossa). Gavin Flood,
seguindo a posição de Bhattacharyya, declara que “os tantras budistas acreditavam ser
as palavras do próprio Buda.” (FLOOD, 2006, p. 7, tradução nossa). Portanto, muitos
comentadores acadêmicos e mestres do budismo, principalmente da tradição Vajrayāna,
admitem o próprio Siddhārta Gautama como o fundador do tantra budista26.

Kalu Rinpoche, em sua obra Ensinamentos fundamentais do Budismo Tibetano:


budismo vivo, budismo profundo, budismo esotérico, aceita a tese de que teria sido o
próprio Siddharta a introduzir a essência do tantrismo na tradição budista. Todavia,
agrega um teor místico ao evento, uma origem transcendental dos tantras, os quais
teriam sido transmitidos por Vajradhara, o Buda primordial, a forma tântrica/divina do

25
Assim como Ana Cristina Lopez Nina, Sua Santidade, o atual Sakya Trizin (título honorífico delegado
aos líderes da tradição budista tibetana Sakya), defende que a linhagem Nyingma é fruto da primeira
disseminação do budismo no Tibete, por isso é considerada a mais antiga, efetuada por Padmasambhava
(séc. VIII); as demais são herdeiras da segunda incursão budista realizada por Atisha (séc. X-XI). Cf.
TRIZIN, 2016, p. 6.
26
Concluímos que o tantra já era ensinado desde o tempo do Buda Shakyamuni, porém disso não resulta
que somente ele ensinou o Tantra; de fato dentro da tradição Mahayāna e Vajrayāna encontramos
conceitos de outros mestres tântricos, cujos textos foram incorporados ao cânon oficial das Escolas
mencionadas. Em sentido contrário, outras escolas não aceitam este fato, como é o caso da Tradição
Theravāda, que não permitiu qualquer texto tântrico em suas sagradas escrituras.
43

próprio Siddharta, uma emanação perfeita oriunda de sua própria natureza pura e
iluminada:

Os sutras – textos que registram o ensinamento do hinayana e do


mahayana – têm sua origem no Buddha Shakyamuni, o Buddha
histórico, enquanto que os tantras – os textos que englobam os
ensinamentos do vajrayana – foram revelados pelo Buddha
Vajradhara, expressão do dharmakaya. Apesar disso não se deve
pensar que Shakyamuni e Vajradhara seriam duas pessoas diferentes.
Eles são duas manifestações de uma mesma essência única, uma
expondo os sutras, a outra, aparecendo sob a forma de múltiplas
divindades tântricas (Hevajra, Chakrasamvara e muitas outras),
oferecendo os tantras que se referem a eles. (RINPOCHE, 1999, p.
431).

Acreditar que, em essência, o Buda Shakyamuni e a divindade Vajradhara são


indiferenciados é mais uma possibilidade hermenêutica para compreender a origem dos
ensinamentos tântricos no seio da comunidade budista. No fundo, esta tese busca
legitimar ortodoxamente os ensinamentos tântricos, atrelando-os à figura exponencial de
Siddhārta Gautama.

A relação entre o Buda Shakyamuni e o tantrismo é também atestada por Victor


M. Fic (2013). Segundo o autor, aproximadamente, no ano 550 a.C, Sidharta Gautama
teria feito uma assembleia restrita para devotos, a fim de entregar o ensinamento
tântrico, com suas práticas secretas; explicou ainda que este conhecimento não fora
entregue mais cedo porque as pessoas não estavam suficientemente preparadas para tal.
Importa salientar que a privação dos ensinamentos tântricos estava direcionada
especialmente aos leigos, homens e mulheres que seguiam a doutrina budista, porém
que não aderiram às duras regras da comunidade monástica. Diante do exposto,
percebemos que desde suas origens o Tantra budista sempre se caracterizou pelo
segredo de suas práticas e a conseqüente responsabilidade espiritual para entregá-los
somente aos praticantes avançados.
44

1.4 Ressignificando a vida conjugal

No segundo capítulo de sua obra Budismo, sua essência e desenvolvimento,


Edward Conze (1973) explica que os monges são a elite do pensamento e filosofia
budista. Sendo assim, a fraternidade total de monges e ascetas chama-se Saṅgha, a qual
é sempre minoria quando comparada aos demais praticantes, que mesmo não abraçando
a vida monástica ou ascética, seguem os ensinamentos de Buda. Conze (1973) explica
que a visão monástica do budismo primitivo era incompatível com a vida de um chefe
de família, o qual seria incapaz de lograr os graus mais elevados da vida espiritual. Seria
quase impensável um indivíduo alcançar o despertar, a clara lucidez da mente, nos
confortos do lar. Para isso se requer um grau elevado de disciplina, regras e exigências,
que só poderiam ser encontradas nos mosteiros e eremitérios budistas.

A seguir, reproduzimos uma declaração (contida nas antigas escritas budistas, de


língua páli) que todo homem deve fazer quando decide receber os votos e tornar-se um
bhikkhu27: “A vida em família é confinada, um caminho empoeirado; a vida santa é
como o ar livre. Não é fácil viver em casa e praticar a vida santa completamente
perfeita, totalmente pura, como uma concha polida [...]”. (ARIYESAKO, 2013, p. 23).

A referida citação é apresentada pelo monge Ariyesako, em sua obra Código de


disciplina Monástica dos bhikkhus28; uma vez mais, percebemos o repúdio à vida
familiar, ela é identificada como um lugar repleto de apegos e “confinamentos
materiais” (esposa, filhos, responsabilidades profissionais etc.), os quais podem
distanciar o indivíduo do caminho em direção ao completo desprendimento, à
insuperável iluminação, visto que o excesso de atividades sociais ou mundanas gastaria
um tempo precioso, que ao invés disso, poderia estar sendo empregado com práticas
espirituais.

27
A palavra páli bhikkhu refere-se aos monges que aderiram às regras monásticas. Cf. THE SEEKER´S
GLOSSARY OF BUDDHISM, 1998.
28
Por vinte anos, Ariyesako viveu como monge ordenado nos monastérios tailandeses da tradição
Theravāda, de modo que, no presente capítulo, tentamos nos basear na diciplina monástica desta tradição.
O autor admite que em certos países existem algumas diferenças nas regras monásticas, portanto devemos
compreender que as regulações existentes nos templos budistas não podem ser tomadas de forma
absoluta, elas variam de acordo com a autoridade e compreensão de cada Escola. Cf. ARIYESAKO,
2013, p. 6.
45

Por isso, a vida monástica exigia uma dura submissão às regras contidas no
Vināya-Piṭāka, o celibato era a pedra angular sobre a qual estava ancorada a moralidade
sexual dos monges e monjas. A castidade era um nobre ideal do qual a não observância
poderia acarretar sérias conseqüências espirituais e penalidades dentro da própria
comunidade. A preocupação com a sexualidade é tão evidente que um monge perde sua
ordenação caso falhe nesse quesito: “A falta de castidade era delito que
automaticamente levava à expulsão da ordem.” (CONZE, 1973, p. 55). Na verdade, um
monge perde automaticamente sua ordenação quando comete qualquer uma dessas
quatro ofensas: relação sexual, assassinato, roubo maior ou a afirmação falsa de possuir
habilidades supra-humanas29. Com estas infrações, o monge separa-se irrevogavelmente
da comunidade e passa a não ser mais considerado como parte da ordem.

Os monges budistas (bhikkhus) devem seguir diligentemente as 227 regras


contidas no Pātimokkha30. Na obra Código de disciplina Monástica dos bhikkhus, o
monge Ariyesako, explica que:

O próprio Buda declarou que nos dias de lua cheia e lua nova, todos
os bhikkhus, em residência numa mesma comunidade devem se reunir
numa assembléia formal. Se houver um quórum de pelo menos quatro
bhikkhus, eles deverão escutar o Patimokkha inteiro. Um bhikkhu
competente, que o tenha memorizado, recitá-lo-á em Pali para a
Comunidade para que eles possam se lembrar da sua responsabilidade
de observar as 227 regras. A recitação completa pode levar entre trinta
e cinco minutos a uma hora, dependendo da habilidade do bhikkhu
que estiver recitando. (ARIYESAKO, 2013, p. 27).

O autor prossegue explicando que antes de começar a recitação cada monge deve
admitir as suas ofensas, formalmente, fazendo uma breve expiação de si mesmo,
relatando suas faltas para os demais. Após o “rito expiatório”, o monge é considerado
‘puro’ e pode ouvir a recitação das regras do Pātimokkha31.

29
Sobre as faltas que ocasionam a perda da ordenação, Cf. ARIYESAKO, 2013.
30
Patimokkha é o código básico de disciplina monástica, inserido no Vinaya-Pitaka, que consiste em 227
regras para monges (bhikkhus) e 310 regras para monjas (bhikkhunis).
31
Cf. ARIYESAKO, 2013.
46

Com base nos estudos dos sutras32, percebemos que a sexualidade encontrou
duras resistências para sua aceitação na ordem monástica. De fato, a abordagem dos
sutras, falando especificamente sobre a sexualidade, difere diametralmente da
perspectiva tântrica. O Dhammapada33, por exemplo, importante escritura ortodoxa
budista, não faz qualquer referência positiva à sexualidade, ela é sempre tomada como
algo a ser evitado: “Enquanto o mato do desejo de um homem por uma mulher, mesmo
o mais sutil, não for cortado, a sua mente está presa, como um bezerro de mama à sua
mãe”. (DHAMMAPADA, XX, 284; BUDDHARAKKHITA, 2013, p. 102).

A Tripitaka, por exemplo, como já foi demonstrado acima, inclui-se na


perspectiva dos sutras, com regulamentos, normas e considerações sobre o cuidado com
o sexo oposto. Percebe-se que o desejo sexual, a luta contra as paixões, é um entrave ao
indivíduo que busca um equilíbrio interior, sua força é tamanha que não permiti um
estado de pacificação mental, qualidade indispensável à aquisição da iluminação
budista. Ainda que a vida social traga outros tipos de prazeres efêmeros, cujo resistente
laço do apego envolve ferozmente, o sexo, ou a luxúria, ainda é considerado o grande
inimigo do caminho espiritual: “As ervas daninhas são a ruína dos campos, a luxúria é a
ruína da humanidade. Portanto, tudo quanto é oferecido aos que são livres de luxúria,
produz frutos abundantes”. (DHAMMAPADA, XXIV, 356; BUDDHARAKKHITA,
2013, p. 124).

As escrituras budistas ensinam que o homem, abrasado pelo fogo sexual, perde a
lucidez, e a inteligência é dissolvida no ardente lago do desejo, cuja saciedade nunca é
satisfeita, e desta insatisfação nasce à ira e posteriormente todas as demais vicissitudes
humanas. A concupiscência, o incontrolável desejo sexual transforma o indivíduo em
um escravo da luxúria, uma marionete nas mãos do desejo; de fato, o apego sexual pode
nos conduzir insensivelmente a caminhos contrários ao da razão, assim seduzido, o
homem se esquece da sabedoria, não a encontra em parte alguma e se desvincula de
todas as virtudes a ela ligadas.

32
Os sutras referem-se às escrituras canônicas onde se encontram os ensinamentos de Buda, conservados
por seus discípulos em língua sânscrita (sutra) e páli (sutta).
33
Antologia budista composta de 423 aforismos em versos conservados em língua páli. Possui uma forte
tendência moral e está inserido no Sutta-Pitaka, um dos três Pitakas, ou três cestos, que formam a
Tripitaka, principal literatura ortodoxa do budismo.
47

Os sábios dizem que correntes de ferro, madeira ou corda, não são


fortes. Mas a paixão e o anseio por jóias e ornamentos, crianças e
mulheres - isso, dizem, é uma corrente bem mais forte e que, embora
aparentemente solta, é difícil de tirar. Esta também os sábios cortam.
Sem saudade alguma, abandonando o prazer sensual, renunciam ao
mundo. (DHAMMAPADA, XXIV, 345-346;
BUDDHARAKKHITA, 2013, p.122 – grifo nosso).

Libertar-se dos prazeres sensuais torna-se a condição de possibilidade para um


aspirante sincero alcançar a meta última do budismo – a insuperável iluminação. Desta
maneira, o valor da vida monástica é garantido pelos méritos da abstenção sexual, longe
dos apegos surgidos pelo contato com mundo, exilado em sua solidão, o monge teria
todas as condições favoráveis para manter seu voto de castidade e, juntamente com
outros renunciantes da comunidade, cujo objetivo se somaria às suas nobres aspirações,
direcionar esforços em prol da auto-realização. “Demasiadamente preso à caverna, o
homem afunda-se na ilusão e está distante da verdadeira solitude. Os prazeres sensoriais
no mundo não são fáceis de serem abandonados”, (GUHATTHAKA SUTTA34, 2015, p.
53).

Em língua páli upādāna35 significa apego. Refere-se ao excessivo


condicionamento à mente, ao corpo, aos objetos sensoriais. O homem aferra-se à vida
materialista sem perceber que nela não há qualquer realização. No Guhatthaka Sutta, o
Buda, alegoricamente, compara os seres deste mundo a homens que dialogam com a
própria morte, incapazes de perceber a situação desconfortável em que se encontram,
buscam satisfazer ainda mais seus desejos insatisfeitos, entram assim num perigoso
ciclo vicioso onde a execução de cada desejo gera em nossa mente uma semente – a
“semente do apego”. Absolutamente insaciável, o apego torna-se tão poderoso que
escraviza a consciência humana, fazendo-a desejar cada vez mais como forma de fugir
do próprio vazio existencial. Confundindo felicidade com desejo, a mente abraça o

34
Diferentemente das outras fontes consultadas, o Guhatthaka Sutta, não segue o modelo de citação
tradicional, o qual foi explicitado no início da tese, mais exatamente na pág. 3. O texto está inserido em
uma Antologia Budista publicada pela Fonte Editorial em parceria com o PPG-CR da UFPB. A obra em
questão não apresenta o capítulo, tampouco o verso do texto fonte analisado, por esta razão não nos foi
possível apresentá-las ao leitor. No entanto, o peso acadêmico dos organizadores e tradutores, motivou-
nos a incluir esta tradução em nossas pesquisas.
35
Sobre a definição e o sentido da palavra upādāna no contexto budista, ver SASAKI, 2015, p. 55.
48

mundo sem se dar conta que está, na verdade, aliando-se ao seu grande opositor, aquele
que a mantém escrava de si mesma por inumeráveis renascimentos:

Quando condicionados pelo desejo, presas aos deleites do vir-a-ser, as


pessoas são difíceis de serem libertadas. E ninguém pode libertá-las.
Anseiam pelo passado e pelo futuro, ávidas pelos prazeres sensoriais
do presente e do passado [...]. Dessa forma, uma pessoa deveria se
treinar no imediato presente. O que quer que ela saiba que é
desarmônico neste mundo, essa desarmonia ela não deveria seguir. A
vida é curta, diz o sábio. Eu observo estes que se debatem no mundo,
seres dados ao desejo pelos estados do vir-a-ser. São homens
pequenos que gemem na boca da morte, não libertos do desejo por
este ou aquele estado do vir-a-ser. (GUHATTHAKA SUTTA, 2015,
p. 53).

Ora, se o sexo em si mesmo é um entrave à vida espiritual, se a família e os bens


matérias são incompatíveis com as aspirações mais elevadas do budismo, então o ato
sacramental do casamento é um erro? A sociedade inteira estaria condenada a vagar ao
lado do vício; e a iluminação – principal meta do budismo – jamais seria alcançada por
chefes de família?

Para responder a estes questionamentos, passaram-se muitos séculos até a


mudança de direcionamento por parte do alto clero budista. Diferentemente das duras
regras monásticas da tripitaka, que incluíam abstenção sexual e celibato absoluto, o
Tantra sancionou o casamento dentro da comunidade budista, como atesta Conzé (1973,
p. 56):

Por mais de mil anos estas opiniões prevaleceram na Ordem. Depois,


uma parte da Comunidade, influenciada por outras considerações,
concluiu que a vida sexual não era incompatível com o monaquismo
[...]. A partir de 800 d.C, o Tantra sancionou o casamento dos monges
nos distritos sob sua influência.

Para os mestres do Tantra, o apetite sexual não está fora dos limites dos
praticantes avançados. Tal direcionamento rompe com o estereotipado conceito de que o
homem iluminado é aquele que renunciou a vida material e seus prazeres efêmeros,
principalmente aqueles relacionados com o sexo oposto. Acenos de uma sexualidade
49

espiritualizada começam a ganhar vigor quando mestres do quilate de Padmasambhava


utilizavam-na como instrumento de salvação:

Uma vez que os tantras mais elevados promoviam atividades que não
podiam ser praticadas nos mosteiros porque as regras monásticas (skt.
Vinaya) proibiam-nos, quando mahasiddhas como Padmasambhava e
Vimalamitra levaram o budismo tântrico para o Tibete no século oito,
formou-se uma irmandade alternativa [...]. Seus ensinamentos
baseados nos tantras mais elevados usavam simbolismo sexual e
outras referências que não eram consideradas apropriadas – a
sociedade Tibetana não é nada pudica, mas mostrar imagens como as
usadas nos tantras elevados causavam ofensa [...]. Diz-se que durante
os ensinamentos de Buda sobre o Guhyasamaja Tantra, a assembléia
de monges desmaiou de horror pelo que eles ouviram. [...]. John
Myrdhin Reynolds apresenta uma comparação entre o impacto dos
tantras elevados em lugares como o Tibete medieval e a atmosfera que
levou a caça às bruxas na Europa e na América. (SEVERINO, 2010,
p.127).

Roque Severino (2010) sustenta que muitos lamas adeptos do tantrismo


assumiram sua fé religiosa vivendo comumente no seio familiar, casados com legítimas
esposas, alguns contraindo filhos, inclusive; “Lama” é um título delegado somente a
certos indivíduos do budismo tibetano (outras escolas budistas não utilizam este termo)
que alcançaram alguma realização espiritual, ou seja, que já possuem certa experiência
no caminho do dharma. O mesmo não ocorre com os monges ordenados, pois muitos
deles ingressam na vida clerical sem qualquer experiência espiritual. Um "monge" é
aquele que recebeu uma ordenação completa, isto é, aceitou o conjunto de mais de
duzentos votos. Ao respeitar esses votos o monge se torna digno de respeito e
admiração uma vez que a obediência estrita às regras monásticas indica, no mínimo,
uma pré-disposição à senda mística. Diferentemente do monge, o Lama não é obrigado
a realizar os votos completos, trata-se de uma condição opcional.

Poderíamos citar, por exemplo, o grande mestre tântrico, Marpa, que mesmo
casado e livre dos votos monásticos, alcançou grande realização espiritual, a ponto de
ter o privilégio de ser o preceptor de Milarepa, um dos maiores yogīs do Tibete. Além
deste, poderíamos citar um exemplo mais atual, Sua Santidade Sakya Trizin, Ngawang
Künga, atual líder espiritual da escola tibetana Sakya, figura altamente representativa,
tanto do ponto de vista religioso quanto moral. Ele é casado e possui dois filhos,
50

demonstrando claramente a abertura matrimonial existente, ainda nos dias atuais, no


budismo tibetano.

Ao admitir a possibilidade de realizar um caminho espiritual livre das regras


monásticas, o Tantra aproximou-se das tendências ocidentais. Conciliar vida conjugal e
espiritualidade – é uma forma de quebrar paradigmas engessados pelo dogma religioso.
Exemplo disso é a tradição tântrica ngakphang; não é muito conhecida no Ocidente,
mas possui uma forte ideologia heterodoxa, que muito contribui em nosso trabalho:

A tradição ngakphang é colorida, individual e altamente heterodoxa.


Os ngakpas e ngakmas que vestem túnicas são membros ordenados
dessa tradição. Não são nem "leigos", nem "monges", nem "meio a
meio" e desafiam toda tentativa de serem classificados nas categorias
organizadas e limpas das instituições autoritárias. Formam uma
modalidade de prática paralela àquela mais difundida pelos monges e
pela sangha monástica, e para os ocidentais representam a
oportunidade de estabelecer o altíssimo compromisso com o caminho
budista sem ter de ser celibatário. (SEVERINO, 2010, p. 124).

Os “Ngakpas (sngags-pa, aqueles que usam o mantra) são praticantes


comprometidos e não monásticos da tradição tântrica budista.” (SEVERINO, 2010, p.
127). Evidentemente, nem todos estariam aptos a trilhar a senda mística com uma
parceira sexual, o casamento não é visto pelo tantrismo como condição essencial à
iluminação, mais justo seria encará-la como uma opção conforme a pré-disposição
kármica do praticante. Segundo Severino (2010), a tradição tântrica ngakpa, do homem
de família ou itinerante solitário, continuou a florescer quando o budismo indiano se
tornou dominado pelo Tantra. Muitos monges tibetanos ao chegar à Índia para
aprofundar os seus estudos, se deparavam com o estilo de vida nada convencional dos
mestres indianos, então retornavam ao seu país para testemunhar que a liberalidade
moral dos tantras não se opunha aos ensinamentos de Buda, ao contrário, era uma forma
legítima de transmissão do dharma.

Devemos destacar uma questão muito importante: a vida conjugal, na


perspectiva tântrica, não pode ser encarada como um canal propício ao desfrute dos
sentidos, sobretudo àqueles relacionados ao apetite sexual. Com semelhante conduta,
todas as possibilidades para o avanço místico são perdidas. Homem e mulher podem se
beneficiar mutuamente por meio do matrimônio, entretanto devem seguir uma rígida
51

disciplina com base nos preceitos tântricos. A não observância de tais ensinamentos
poderia acarretar grandes prejuízos ao casal, comprometendo drasticamente as chances
do êxito espiritual. Vemos, portanto, que o chefe de família disciplinado, seguidor dos
preceitos tântricos, não pode ser considerado um pobre errante – vítima sine qua non da
roda do samsāra, atrelar o desenvolvimento interior ao celibato é engessar as
possibilidades do caminho espiritual.

1.5 A transmutação da paixão e dos vícios

Infelizmente, a leniência do Tantra com as paixões sensuais ocasionou inúmeros


desvios hermenêuticos, incompreensões infantis. Geshe Kelsang Gyatso explica que o
Tantra, além da recusa por parte de algumas escolas budistas, também sofre
interpretações equivocadas por parte do grande público, desviando fortemente as
verdadeiras metas do ensinamento:

Embora o Tantra seja muito popular, poucas pessoas compreendem


seu verdadeiro significado. Algumas negam os ensinamentos tântricos
de Buda, ao passo que outras fazem mau uso desses ensinamentos,
com o objetivo de conquistas mundanas; e muitas pessoas estão
confusas sobre a união das práticas de Sutra e de Tantra, acreditando
equivocadamente que o Sutra e o Tantra são contraditórios.
(GYATSO, 2016, p.152).36

Quando nos deparamos com teologias ortodoxas cristãs, a incompreensão é


ainda mais evidente. Segundo Herbert V. Guenther e Chögyam Trungpa (2003), desde o
fim do século XVIII, o Tantra recebeu interpretações equivocadas, exclusivistas, fruto
de um preconceito moralizante motivado pela tendência colonizadora cristã. Religião e
sensualidade, espiritualidade e paixão são combinações salutares e até mesmo
necessárias para trilhar o caminho tântrico, entretanto, para os conservadores cristãos,
tais combinações são auto-excludentes, incompatíveis com a puritana exegese bíblica.

36
A conciliação hermenêutica entre os sutras e os tantras é um problema muito antigo, podemos
evidenciá-lo desde a segunda incursão budista ao Tibete, efetuada pelo mestre mahayanista Atiśa (982-
1054 d.C.), o qual tentou demonstrar que essas duas grandes vertentes do budismo, na verdade, são
complementares e não excludentes.
52

Edward Said (1990) adverte que o termo “orientalismo” é uma construção


cultural e política do Ocidente. Conforme o autor, o conceito “Oriente” transcende a
circunferência geográfica, inserindo-se numa perspectiva imaginativa,
construída/representada pelo Ocidente, mais precisamente por franceses, ingleses e
norte americanos. Caracteriza-se por representar o mundo oriental como o exótico, o
inferior, o misterioso, que mesmo contendo um brilho próprio, necessitaria de
“reparos”. De fato, as lentes colonizadoras e preconceituosas, dos intérpretes cristãos do
século XVIII, deturparam as verdadeiras aspirações da literatura tântrica,
transformando-a em despudor e licenciosidade.

Seguindo a interpretação de Said, Edward Conze também denuncia a


interpretação eurocêntrica sofrida pelo Tantra:

Os europeus que escreveram sobre o Tantra muitas vezes tomam


partidos movidos pela emoção [...]. Além disso, o Tantra se presta a
provocar-lhes uma indignação moral. Pensam que na história do
budismo, uma metafísica abstrata da maior grandeza foi aos poucos
dando lugar a uma preocupação com divindades pessoais e com
bruxarias, com rituais mágicos sem sentido e toda a espécie de
supertições. Uma imoralidade deliberada parece agora substituir a alta
austeriade do passado [...]. (CONZE, 1973, p. 180)

O olhar apressado, a leitura descomprometida ou mesmo o preconceito religioso


fizeram dos textos tântricos um labirinto espinhoso de fórmulas e ensinamentos de
difícil adesão por parte de outras tradições religiosas. Sem o respaldo teórico dos
mestres budistas, corre-se o risco de não captar o essencial da complexa e alegórica
mensagem contida nos textos tântricos. O tantrismo possui a sua própria lógica interna,
seus trajes teóricos não admitem remendos, foram feitos sob medida, por especialistas
na arte da intuição mística, qualquer intervenção causaria um descompasso indesejado,
a proposta originária sofreria um abalo irreparável, colocando em risco os efeitos
benéficos de suas milenares práticas espirituais.

O eurocentrismo lançou-nos em uma verdadeira “nostalgia filosófica”, a qual


parece ter-se constituído num isolamento, quando não num injusto repúdio aos métodos
singulares do Tantra e da riquíssima herança espiritual e cultural que o acompanha e
naturalmente lhe pertence. O Tantrismo recebeu uma injustificável repulsa, talvez
53

motivada pela iconoclastia ou pelo despudor de certos ensinamentos, o qual alimentava


o olhar suspeito e por vezes amedrontado dos teóricos ocidentais, reforçando o
exclusivismo cristão. Uma vez mais deparamo-nos com o motivo do característico
hermetismo das práticas tântricas. Ao olhar curioso e descuidado, a linguagem alegórica
do Tantra pode fomentar conclusões precipitadas e bem longe de suas verdadeiras
aspirações.

Desde suas origens, a filosofia tântrica sempre teve uma relação singular com as
paixões humanas, por isso o receio de Siddharta em transmiti-lo de forma
indiscriminada. O estudo do Tantra é particularmente trabalhoso devido a esse
hermetismo que o acompanha, o mistério parece ser o inseparável companheiro destes
ensinamentos. No tantrismo existe uma marcada tendência ao desvio, ao
questionamento das bases mais profundas do budismo, indicando um caminho ignorado
pelas duras regras monásticas que ainda hoje existem no interior da ordem. Jean
Bousselier, exaltando essas impactantes transformações dos textos tântricos dentro da
tradicional visão budista adverte:

Desde o início do século VIII, há um ponto a respeito do qual a


maioria das escolas tântricas, deliberadamente, tomava a direção
oposta aos ensinamentos do budismo anterior: é a introdução de um
dualismo erótico que logo deveria assumir uma grande importância.
Desde a origem, todos os grandes mestres budistas haviam denunciado
a paixão erótica, quase sempre com veemência, como sendo o laço
mais poderoso que prende o ser ao ciclo das transmigrações e
combatido a sexualidade. (BOUSSELIER, 2002, p. 170).

Filhos da recusa dos valores tradicionais e da cisão entre paixão e pecado, os


mestres tântricos persistiram com métodos singulares de desenvolvimento espiritual,
esforçaram-se em ressignificar a visão tradicional das paixões:

[...] buscou-se conciliar gozo e desprendimento, consumo e libertação:


bhukti e mukti [...] em vez de percorrer durante milhares e milhares de
vidas o caminho que conduz ao Despertar, trata-se, para “o homem
necessitado” que somos, de tomar o caminho direto. Esse consiste em
descobrir na própria servidão das paixões a energia cósmica, o
dinamismo positivo que as anima e que pode, eventualmente,
suspender a consciência de ser “eu-fulano” e nos libertar da dualidade
54

[...]. Há ouro escondido na lama das paixões. (GUY BUGAULT;


LAKSHMI KAPANI, 2007, p. 175-176).

Ao longo de toda a jornada espiritual, o praticante tântrico deve estar consciente


e pré-disposto a realizar uma transformação interior – superar vícios, maus costumes,
defeitos, manias etc. O método tântrico nos coloca frente a frente com nossos piores
inimigos psicológicos, a fim de extrairmos a sabedoria que ali existe de forma latente.

A Guhyasamāja-Tantra37 nos ensina, através da interpretação e comentários de


Tsongkhapa, que antes de alcançarmos a beatitude mística necessitamos conhecer e
experimentar os nossos apegos a fim de transmutá-los em sabedoria espiritual: “A
paixão nos leva ao inferno, mas o experiente na arte do caminho, pelo poder da
sabedoria, a transforma em liberação e beatitude.” (TSONGKHAPA, 2010, VI, 282b,
tradução nossa). “A paixão nos leva ao inferno!” Com esta afirmação de Tsongkhapa,
faremos uma breve e interessante digressão cultural em nossos estudos.

Na mitologia grega vemos todo o esplendor semiótico da clássica descida ao


Hades. Célebres personagens – Hércules, Ulisses, Orfeu – desceram às gélidas
profundezas subterrâneas, para “retornarem” purificados pela “sabedoria infernal”.

O cão do Hades representa o terror da morte; simboliza os próprios


infernos e o inferno interior de cada um. É de se observar que
Hércules o levou de vencida, usando tão-somente a força de seus
braços e que Orfeu, “por uma ação espiritual”, com os sons
irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por instantes [...]. O
monstruoso guardião do Hades só pode ser dominado sobre a terra,
quer dizer, por uma violenta mudança de nível e pelas forças pessoais
de natureza espiritual. (BRANDÃO, 2004, p. 243).

37
Uma das mais antigas e principais obras tântricas do budismo, de acordo com Victor M. Fic (2003),
aproximadamente no ano 300 d.C, a Guhyasamāja Tantra recebeu seu formato final, após uma longa
trajetória, e já havia iniciado sua disseminação dentre as escolas budistas, ainda que de forma
propedêutica e hermética (a palavra sânscrita Guhya significa secreto). Francesca Fremantle (1983),
contudo, adverte que a data precisa da composição desta obra ainda é um problema insolúvel. Segundo a
autora, alguns sugerem o terceiro século da era cristã como data provável da formatação final da obra,
como é o caso de Bhattacharyya. Winternitz, ao contrário, acredita que sua composição aconteceu entre
os séculos VIII e X d.C. A Escola japonesa contemporânea, por sua vez, coloca-o no século VIII d.C. Por
fim, Alex Wayman, indica o século V como a data mais provável de sua composição. Portanto,
entendemos que qualquer afirmação cronológica, principalmente quando tratamos de escrituras que
remontam muitos séculos atrás, sempre será passível de especulações variadas, bem como da inevitável
margem de erro. Para uma descrição e tradução da Guhyasamāja Tantra, consultar FREMANTLE, 1983.
55

O décimo primeiro trabalho de Hércules38, por exemplo, simboliza a (catábases),


termo grego que significa “descida” ou “ir para baixo”. Conforme Junito Brandão
(2004), este termo grego representa o supremo rito iniciático, é a “descida” alegórica ao
interior da própria psiquê, condição sine qua non para a transformação espiritual. Essa
descida iniciática está estreitamente relacionada com as Escolas de Mistérios da Grécia
Antiga, destacando-se, sobretudo, os ritos de Elêusis e os mistérios órficos. “A viagem
subterrânea, durante a qual os encontros com os monstros míticos configuram as
provações de um processo iniciático, era, na realidade, um reconhecimento de si
mesmo, uma rejeição dos resíduos psíquicos inibidores [...]”. (BENOIST apud
BRANDÃO, 2004, p. 114).

A toda “descida” expiatória sucede uma exaltada “subida”, uma “ascenção”


vertical em direção à pureza elementar, ao domínio interior das forças sutis; a essa
“subida” iniciática os gregos chamaram (anábasis). O mito de Hércules expressa
fidedignamente a mística “descida” dos herois, com todos os seus perigos, e a sua
“subida” triunfal, que pode ser simbolizado por todo indivíduo que busca uma
transformação místico-espiritual. O heroi mitológico grego configura-se como o
arquétipo do “homem purificado”, aquele que triunfou sobre suas próprias provas
iniciáticas, recebendo a meritória coroa da virtude. Joseph Campbell resume a aventura
do heroi no seguinte diagrama:

[...] Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo
de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas,
algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que
outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao
nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e
obtém sua recompensa. Seu triunfo pode ser representado pela união
sexual com a deusa-mãe (casamento sagrado), pelo reconhecimento
por parte do pai-criador (sintonia com o pai), pela sua própria
divinizaçao (apoteose) ou, mais uma vez se as forças se tiverem
mantido hostis a ele -, pelo roubo, por parte do herói, da bênção que
ele foi buscar (rapto da noiva, roubo do fogo); intrinsecamente, trata-
se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser
(iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do
retorno. Se as forças abençoaram o herói, ele agora retorna sob sua
proteção (emissário); se não for esse o caso, ele empreende uma fuga
e é perseguido (fuga de transformação, fuga de obstáculos). No limiar
de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói

38
O décimo primeiro trabalho de Hércules é representado na mitologia grega pela busca do cão Cérbero.
56

reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que ele


traz consigo restaura o mundo (elixir). (CAMPBELL, 1997, p. 137).

Após nossa salutar digressão, voltemos ao Oriente. Analisando o mito do heroi


grego a partir da perspectiva tântrica, percebemos contrastes inevitáveis. Os mestres do
Tantra parecem compreender bem a simbólica passagem pelos “infernos interiores”, que
todo iniciado deve passar, antes de alcançar a beatitude mística. Seu método poderia ser
traduzido do seguinte modo: experimente as paixões, entre nas camadas mais recônditas
da própria subjetividade, encontre seus piores ‘inimigos’ – desejos e apegos – torna-se
uma testemunha deles, não os reprima, compreenda-os intimamente, perceba a
vacuidade dos mesmos e retorne purificado, transformado pela mesma energia que
outrora lhe havia condenado. O antes demoníaco desejo converte-se, por meio de um
acurado treinamento tântrico, em suprema liberação, como ensina Tsongkhapa:

Para aqueles que ainda possuem uma compreensão de discípulo, as


energias do vício servem como condicionamento do próprio vício,
uma vez que eles não entendem a realidade dos vícios. Se eles
conhecessem a realidade, essas energias transformar-se-iam na causa
da iluminação. (TSONGKHAPA, 2010, VI, 280a, tradução nossa).

Vale ressaltar que nem todos os praticantes estariam preparados para utilizar o
vício como objeto de liberação. No exemplo acima, o texto faz menção à “compreensão
de discípulo”, numa clara alusão às limitações do mesmo, isto é, cada estudante da arte
tântrica possuiria um determinado nível iniciático, o qual lhe facultaria determinado
método de desenvolvimento, sempre adequado ao grau de instrução que possui. Na
verdade, somente o guru estaria em condições de determinar o momento exato em que o
discípulo teria condições de receber determinados ensinamentos e iniciações tântricas.
Referindo-se ao treinamento tântrico tibetano, Alexandra David-Néel, em seu livro
Iniciações Tibetanas, esclarece:

O que é julgado necessário é uma espécie de transmutação da


substância de que é feito o discípulo. As forças nele existentes não
devem ser destruídas, mas metodicamente dirigidas para os canais
convenientes. O principiante nadjorpa deve aprender a regular e
combinar as tendências antagônicas que descobre em si mesmo, para
obter os resultados desejados. Essa “combinação” de forças contrárias,
o adepto inteligente dessas teorias pratica-a, mesmo deixando-se levar
por suas paixões, seja com uma finalidade experimental, ou
57

simplesmente porque proporciona a si mesmo um prazer de ordem


inferior: vingança, luxúria ou outro qualquer. A finalidade desejada,
neste último caso, é evitar, em parte ou totalmente, os resultados
espirituais nefastos destas ações. (NÉEL, [s. d], p. 146-147).

Ao experimentar as paixões, o discípulo pode analisar com maior clareza e


exatidão a sua verdadeira natureza. Sentindo em sua própria mente as oscilações dos
vícios, pode o praticante tântrico aperfeiçoar sua compreensão sobre o mesmo,
extraindo informações relevantes de sua própria experiência, tais como: em que
momento o vício se manifesta? Quando é mais forte? Quanto tempo persiste seus
efeitos? De fato, com tenacidade e prática constante o praticante tântrico percebe que o
desejo tem um “pico de ebulição”, é um desafio momentâneo, jamais permanente,
absolutamente temporário, passado o momento crítico o desejo perde força e o
simulacro do apego é descoberto pela consciência. Com tais evidências empíricas, o
método tântrico é capaz de fornecer respostas satisfatórias referentes à superação dos
desejos e prazeres – sem reprimi-los – por meio de uma mente treinada, vigilante e
aberta à compreensão. Vejamos uma importante passagem de um dos maiores clássicos
da literatura tântrica budista:

Entregando-se à alegria dos desejos prazerosos, por esta prática você


logo alcançará a natureza de Buda [...], o sucesso não é obtido através
de votos ascéticos e práticas extremadas, mas pode ser atingido
brevemente pelo gozo de todos os prazeres. Não implore por comida
nem se apegue à mendicância, ao invés, recite o mantra por inteiro e
satisfaça todos os desejos. (GUHYASAMĀJA-TANTRA, VII, 1;
FREMANTLE, 1971, p. 48-49, tradução nossa).

Ao contrário de outras tradições budistas que muitas vezes são vítimas de uma
“perigosa repressão das paixões”, o praticante do Tantra esforça-se em “transformá-las”.
Busca-se através de ritos complexos, iniciações místicas, técnicas meditativas que
incluem visualizações e mantralizações, o despertar de inúmeras faculdades latentes no
ser humano. Trata-se de uma rigorosa disciplina que deve ser mantida diligentemente
pelo praticante que aspira algum benefício espiritual, o intelectualismo é substituído por
práticas objetivas que visam, sobretudo, a aquisição da insuperável iluminação.
58

Kalu Rinponche ensina um método meditativo simples e objetivo, capaz de


neutralizar os efeitos nocivos do desejo. Trata-se da plena discriminação dos distintos
pensamentos e suas sensações físicas e mentais, compreendendo-os como fenômenos
temporários que visam unicamente a posse dos seus desejos, estes, por sua vez,
precisam ser superados através da consciência discriminatória:

Supondo que um homem veja uma mulher bonita, o desejo faz com
que ele experimente logo uma sensação física e mental agradável. Ao
mesmo tempo, a cegueira provoca uma vontade de posse, da qual se
espera que consolide a experiência de felicidade. No contexto da
meditação que visa transformar as emoções, detém-se na sensação de
felicidade produzida pelo desejo, sem considerá-la como uma coisa
ruim, sem querer rejeitá-la. Fica-se consciente dessa felicidade,
lucidamente, e ela é experimentada sem que se deixe levar pela sede
que queira possuir o objeto. Assim, a alegria proveniente do desejo
não causa nenhum dano. (RINPOCHE, 1999, p. 164).

A proposta é transformar o homem em um ser mais estético e menos instintivo.


Quando o desejo não consegue nos arrastar, quando nos contentamos com a simples
sensação visual, criamos um terreno fecundo para a tranqüilidade interior, para o cultivo
de estados superiores, o apego perde consistência e a consciência é redirecionada para o
autodomínio. Pouco a pouco, o praticante percebe que na austeridade mental, no
domínio do pensamento e emoções, esconde-se um prazer antes ignorado, porém
poderoso. A luxúria transformada em autodomínio confere ao iniciado budista um
contentamento insólito, não menos prazeroso, e até mesmo superior ao daquele oriundo
dos sentidos externos.

O Tantra ama a completude, a unidade, interessa-se pelo homem integral e não


por seus fragmentos, por isso o estimula a ser livre, sem dogmas ou excesso de pudor
moral. Por que condenar os desejos, as paixões ou os instintos? Elas apontam apenas
para a condição humana atual. A ética cristã, por exemplo, diz que não se deve olhar
luxuriosamente para uma mulher, evite-a para não cair em pecado. Ódio,
concupiscência, desejo, todos os vícios devem ser negados. Ao reprimir os vícios
criamos uma quimera interior, um estranho, um inimigo. A tradição conservadora cristã
não admite a totalidade, não sabe viver com ela, a sociedade conformou-se com a
periferia, com o “fragmento controlado”. O homem não tem permissão de expressar a
59

sua totalidade, apenas uma pequena parte de nós mesmos é aceita, a parte remanescente
é reprimida, bestial, bárbara, não-civilizada, e o seu infame destino é o exílio. Eis o
meio-homem da tradição!

Nessa perspectiva, o indivíduo vive reprimido, com duas naturezas distintas


agindo simultaneamente em seu interior – uma “moralizada”39 e outra “imoral” (o
instinto passional). Transcendendo esse dualismo subjetivo, a doutrina tântrica buscou
superar tais limitações discriminatórias. Moralidade ou imoralidade devem fundir-se na
“compreensão sintética|” dos opostos. O homem deve ser aceito com todos os seus
defeitos, não pode haver condenação, tampouco repressão. Ao aceitar-nos tal como
somos nos sentimos mais leves, relaxados, sem o fardo da culpa, deixamos de ser uma
ameaça a nós mesmos e adentramos definitivamente no caminho do Tantra, o caminho
da entrega, da aceitação, da afirmação e transformação de si.

A seguir, apresentaremos uma passagem do Sutra do Caminho da Verdadeira


Sabedoria40 o qual exalta as qualidades do desejo amoroso entre homem e mulher, não
atribuindo qualquer condenação aos mesmos:

O êxtase supremo da união entre o homem e a mulher é um puro


estado de Bodhisattva. A excitação dos sentidos, comparável ao
rápido voo de uma flecha, é um puro estado de Bodhisattva. As
carícias trocadas entre homem e mulher são um puro estado de
Bodhisattva. Os laços firmes do amplexo amoroso são um puro estado

39
Referimo-nos à “repressão” das paixões e da própria sexualidade acentuado pelo moralismo
conservador de certas correntes ortodoxas do pensamento oriental, destacando-se, sobretudo, algumas
ramificações do hinduísmo e do budismo theravāda.
40
Texto da linhagem Vajrayāna muito importante para a tradição japonesa Shingon. Comumente, os
pesquisadores do pensamento oriental utilizam a expressão “budismo esotérico” (em japonês, Mikkô) para
designar a Escola Tântrica fundada no início do século IX pelo monge, poeta e artista japonês Kûkai ou
Kôbô Daish (774-835), que teria viajado à China a fm de receber os ensinamentos esotéricos budistas,
incorporando-os, finalmente, à cultura japonesa. O ponto central da fé Shingon reside na figura do Buda
universal – Mahāvairocana –. Esta divindade representa o substrato ontológico da realidade, ela está, ao
mesmo tempo, dentro e fora de todas as coisas. A grande meta da doutrina Shingon é mostrar que a
natureza essencial de Mahāvairocana é idêntica, não-diferenciada, de qualquer ser humano. Porém, para
perceber conscientemente este aspecto transcendente dentro de nós, faz-se necessário uma rígida discplina
moral e uma elaborada ritualística, envolvendo gestos sagrados (mudrā), mandalas, visualizações e
mantralizações, resultando no completo domínio e purificação dos segredos do corpo, da palavra e da
mente; com tal metodologia, o budismo Shingon acredita proporcionar a iluminação espiritual aos seus
devotos. Vale ressaltar aqui, que não queremos desviar o foco da análise tântrica para o Japão, nosso
estudo continuará gravitando ao redor da tradição indiana e tibetana, contudo julgamos enriquecedor a
citação deste sutra, pois ele reafirma a pureza ontológica da realidade, sobretudo das paixões humanas,
colocando-se, portanto, neste contexto, em acordo com a proposta ‘não-discriminatória’ praticada pelo
tantra indiano e tibetano, o qual vem sendo analisado ao longo do presente capítulo. Para uma descrição
geral sobre a história e as práticas do budismo tântrico Shingon, Cf. YAMASAKI, 1988.
60

de Bodhisattva. O pleno gozo experimentado pelo homem e pela


mulher, que lhes dá a sensação de serem senhores de tudo, dotados
com a liberdade total, é um puro estado de bodhisattva. Contemplar o
sexo oposto com olhar de desejo é um puro estado de bodhisattva. A
sensação de prazer que o homem e a mulher experimentam quando
unidos, é um puro estado de Bodhisattva [...]. (GONÇALVES, 2015,
p. 246).

A naturalidade precisa ser reconquistada pelo indivíduo, os olhos da inocência


podem ser novamente despertados com técnicas apropriadas de cultivo da estabilidade
mental e autodomínio. O professor Ricardo Mario Gonçalves faz interessantes
observações sobre o sutra acima citado:

A leitura deste Sutra há de provocar um choque naqueles leitores para


quem a religião é sinônimo de puritanismo e de repressão da dimensão
sexual do ser humano. Isso porque o Sutra proclama a pureza de todas
as coisas, quando contempladas em sua vacuidade, sem apego,
inclusive do ato sexual cujas etapas são descritas numa linguagem
bem realista. Não se trata, evidentemente, de entronizar o sexo no
centro de nossas vidas como faz certa sexolatria muito em voga no
mundo ocidental nos dias de hoje, mas simplesmente de constatar que
o sexo, quando praticado espontaneamente e naturalmente, sem
maiores apegos, é tão puro quanto outros aspectos da existência
humana. (GONÇALVES, 2015, p. 257).

Se quisermos compreender a essência do Tantra necessitamos abrir o nosso


leque hermenêutico e romper com o puritanismo exegético cristão que, por vezes,
inconscientemente, habita nossos “melhores” julgamentos. Evidentemente, não estamos
defendendo aqui qualquer tipo de hedonismo, senão uma visão tântrica acerca da vida.
De fato, qualquer ação humana pode converter-se em prisão psicológica, o problema
não está no fenômeno externo, mas na disposição da mente para desfrutar das ações sem
se apegar a elas, por isso a proposta é converter o peso da culpa em “mente desperta”. A
excelência da ação está rigorosamente dentro do próprio homem, com mente lúcida,
atenta e vigilante, o indivíduo pode agir sem se apegar aos frutos da ação, isto é, pode
comer sem o peso da gula, relacionar-se com o sexo oposto sem o fardo da luxúria,
apresentar aos amigos alguma conquista material, isento de qualquer orgulho etc. Em
suma, a proposta tântrica é abrir horizontes! É mostrar ao homem que, com mente
estável e vigilante, o prazer e o desejo deixam de ser entraves à iluminação e
61

transformam-se em seus grandes aliados. Essa oposição opressora dos contrários deve
ser transmutada pela sabedoria da mente búdica:

Assim como o estrume das cidades enriquece os canaviais, o estrume


do vício contido nos bodhisattvas os fortalece em direção à
iluminação. E assim como o veneno combinado com o remédio e o
mantra não podem matar, analogamente o vício combinado com a arte
e a sabedoria é incapaz de causar qualquer dano. (THE JEWEL HEAP
SUTRA apud TSONGKHAPA, 2010, VI, 280b, tradução nossa).

Nada precisa ser negado ou reprimido, o método tântrico é a transformação! Ou


seja, aceita e compreende o homem tal como se apresenta: imperfeito, desejoso,
ambicioso, luxurioso. O problema não são os vícios em si mesmos, mas exigir do
homem algo que ele não possui – a perfeição. Portanto, o Tantra não reprime as paixões
humanas, compreende-as como manifestações da mente, as quais devem ser utilizadas
como fio condutor, como primeiro degrau para a beatitude, transformando-as em
virtudes seletas da consciência. Ora, transformar vícios em virtudes não seria possível
sem o cultivo da ‘sabedoria não-dual’, a qual é essencial nesses estudos; transcender o
dualismo significa harmoniza-se com a existência.

1.6 A Sabedoria dos opostos

Heráclito, o obscuro filósofo de Éfeso, já na Grécia Antiga, demonstrou em seus


fragmentos a profundidade da “sabedoria dos opostos”, do saber “não-dual”. Para ele, a
realidade é um fluxo contínuo, ser e não-ser mesclam-se sinfonicamente na orquestra da
vida. O movimento é a essência! A matéria encontra identidade no próprio
metamorfosear-se, o determinado choca-se com o indeterminado e deles nasce a mais
bela harmonia. Depois de Heráclito, o mundo não pode ser mais visto como estável e
imóvel, ao contrário, converte-se no devir, num “processo”, não é mais um destino fixo,
senão uma “passagem” transitória de forças complementares – o visível e invisível, ódio
e amor, noite e dia, alto e baixo etc.

A sabedoria dos opostos de Heráclito nos ensina, por exemplo, que o


conhecimento do fenômeno noite não seria possível sem o contato empírico com o
62

fenômeno dia. Analogamente, o homem reconhece-se como gênero masculino, porque


existe a mulher, que é naturalmente do gênero feminino, possuidora de características
anatômicas distintas. Sem ela, não haveria distinção, tampouco reconhecimento do
próprio homem de sua verdadeira natureza. De igual maneira, o homem gordo julga-se
como tal porque os magros assim o permitem. O próprio conceito de bondade, não seria
possível estabelecê-lo sem que houvesse atos impiedosos no mundo, graças aos ímpios
reconhecemo-nos como misericordiosos – “bendito sejam eles!” – Graças aos opostos
estabelecemos analogias, distinções, compreensões, em suma, produzimos
conhecimento.

O budismo mahāyāna, mais especificamente Nāgārjuna41 e sua escola


Mādhyamika42, elaborou um profundo conhecimento acerca da realidade não-dual, por
isso não condena tampouco exalta qualquer polaridade. Positivo ou negativo, ambos
possuem relevância, condenar o “negativo” é condenar o “positivo”, pois um está
irremediavelmente atrelado ao outro. São forças complementares, jamais excludentes,
estão inexoravelmente unidas. Analisemos abaixo o Sutra Acintyastava, atribuído a
Nāgārjuna, que expressa a unidade existencial:

41
Keith Dowman alerta sobre a existência de dois importantes Nāgārjunas, o primeiro, mais famoso,
nascido no segundo século da era cristã, filósofo budista da tradição mahāyāna, fundador da escola
Mādhyamika; o segundo teria vivido por volta do século IX, este seria discípulo de Saraha e um
importante comentador da Guhyasamāja-tantra. Cf. DOWMAN, 1985, p. 118. No livro de Glenn Mullin,
o segundo Nāgārjuna é colocado no século quinto, porém, para os tibetanos, eles são a mesma pessoa,
como um fio único que se estende ao longo do tempo. Cf. MULLIN, 2006. O Lama Anagarika Govinda
sugere que o segundo Nāgārjuna viveu durante o quinto século da era cristã. Cf. GOVINDA, 1995, p. 58.
Mesmo diante das inevitáveis controvérsias cronológicas, não podemos nos esquecer de que o próprio
Buda Shakyamuni profetizou, quatrocentos anos após o seu mahāparinirvāṇa, que haveria um monge, de
nome Nāga, que seria capaz de explicar o verdadeiro significado da Prajñāpāramitā, a Perfeição da
Sabedoria. Nāgārjuna, tal como profetizado por Buda, veio a este mundo e explicou a filosofia
Mādhyamika, ou o Caminho do Meio, consolidando de uma vez por todas as bases filosóficas do budismo
mahāyāna. Cf. TRIZIN, 2016, p. 9.
42
Mādhyamika significa caminho do meio, considerada por muitos como a mais influente escola do
budismo mahāyāna, fundada por Nāgārjuna (séc. II d. C.). Rivaliza em importância filosófica com a
Escola Yogācāra. A doutrina de Nāgārjuna entende o mundo – objetivamente e subjetivamente – como
essencialmente vazio, a existência seria um fenômeno produzido e dependente das limitações da própria
mente, e mesmo esta não possuiria realidade em si mesma, uma vez superada suas limitações, alcançamos
a visão interior da vacuidade de todos os fenômenos, incluindo a própria mente. Ou seja, a única
realidade, no sentido forte do termo, seria o próprio “vazio”, o restante da existência seria mera ilusão. A
Escola Yogācāra, ao contrário, acredita que a mente possui uma realidade em si mesma, ela é o único ser,
puro e acabado, todos os fenômenos externos derivam de suas próprias modificações subjetivas. Portanto,
resumidamente, para a Escola Yogācāra a realidade, no sentido literal, encontra-se apenas na “mente”,
por seu turno, para os Mādhyamika, não a mente, senão a vacuidade é o substrato de toda a realidade. Cf.
RIMPOCHÊ, 2006.
63

Unidade e multiplicidade; passado e futuro. Impureza e purificação,


verdade e mentira etc: Como poderiam existir em si mesmo? [...]. Por
isso você afirmou que assim como o sofrimento surge de um conjunto
de obstáculos, como paixão etc. Tanto ele (o sofrimento) como o
acúmulo de méritos – a própria libertação – não passa de um sonho.
Nascido, não nascido; presente, ausente; livre, aprisionado; quem vê
assim vê dualmente: este não conhece a realidade... Assim é o
Tathagata, [assim] é a originação interdependente, assim é a
vacuidade, a doutrina verdadeira; é assim que [a natureza d]as coisas
deve ser compreendida. Aquela é a verdadeira natureza da realidade, o
sempre assim, a visão crítica, a dimensão mais profunda, a
confluência final: quem desperta para aquilo é chamado Desperto
(Buddha). (ANDRADE, 2015, p. 114-117).

A filosofia de Nāgārjuna vai além daquela apresentada por Heráclito, mais do


que o reconhecimento da suprema unidade da existência, o yogī budista sustenta a
vacuidade inerente de todas as coisas e a realidade da originação interdependente43, isto
é, os fenômenos duais não possuiriam realidade em si mesmo, são kleśas – ilusões
nascidas da própria ignorância – originadas através do contato com o saṃsāra:

Mais do que isso, segundo Nāgārjuna, a originação interdependente,


além de um importante fator de relativização ontológica e
epistemológica, é a chave para se compreender uma importante
condição do real: se todo e qualquer ser é interdependente, vale dizer,
se não possui uma natureza autônoma, independente das dos demais
seres, ou independentes das condições que o determinam, como se
pode falar em um limite (“Koṭi”) ou de origem (utpanna/utpāda) ou
destruição (bhāṅga) de qualquer ser?44. (ANDRADE, 2012, p. 190).

Os textos budistas são acordes em direcionar a compreensão última da realidade


para a vacuidade (em sânscrito, śūnyatā). O substrato ontológico de toda originação
interdependente é o próprio vazio. O erudito mestre Atīśa (982-1054 d.C.) ao ser
perguntado qual seria o mais elevado de todos os ensinamentos, respondeu ao seu
discípulo: “O mais elevado dos ensinamentos é a vacuidade que está dotada com a
essência da compaixão [...]”. (ATISHA, [s.d], p. 3, tradução nossa).
43
Originação interdependente é o fluxo ilusório que mantém os seres enredados na roda do samsāra. Em
síntese, constitui-se pelos doze elos de conexões causais (ignorância, disposições cármicas, consciência,
nome e forma, bases sensoriais, contato, sensação/sentimento, sede/anelo, apego, vir-a-ser, nascimento,
envelhecimento e morte), formando um círculo vicioso e contínuo, o qual impede a liberação espiritual do
indivíduo e o faz transmigrar repetidamente por sucessivas vidas.
44
Desenha-se aqui o grande “nó” etiológico budista, que aponta mais uma vez para a interdependência e a
vacuidade de todos os fenômenos: se os seres são, na realidade não nascidos, como segmentar ou
identificar com clareza o limite entre causas e efeitos?
64

No budismo, sobretudo a partir da influência mahayanista, a compaixão (em


sânscrito, karuṇā) ganhou importância decisiva no processo de auto-realização.
Intimamente conectada ao nobre ideal do Bodhisattva45, a compaixão aproxomima-se da
verdade absoluta, uma vez que esse “puro sentimento”, diferentemente da razão, recebe,
por meio da força mística emanada do próprio vazio, um poderoso impulso espiritual,
possibilitando-nos a viver como santos, com o mínimo possível, sem conforto ou bens
materiais, entregando-se por completo ao bem comum e colocando a si mesmo em
segundo plano – de fato, sem um “puro sentimento compassivo”, baseando-se
unicamente em conceitos racionais, torna-se quase impossível a realização deste nobre
ideal. Portanto, o impulso que move o Bodhisattva é a compaixão e essa é movida pelo
misterioso movimento do vazio iluminador (śūnyatā). Heinrich Zimmer nos mostra
algumas interessantes abordagens sobre essa conexão fudamental entre a compaixão e o
vazio:

Esta compaixão pura é da essência do Bodhisattva e é idêntica à sua


percepção correta do vazio; melhor ainda, é o reflexo primário do
vazio. Devido à compaixão (karuṇā), o Bodhisattva assume diferentes
formas nas quais aparece para salvar as criaturas do reino fenomênico.
Assume, por exemplo, as formas divinas de Viṣṇu para aqueles que
adoram Viṣṇu, e as formas de Śiva para aqueles que adoram Śiva.
Também é em virtude da compaixão do Bodhisattva que os Buddha
vêm ao mundo [...]. No coração de todas as criaturas, a compaixão
está presente como o sinal de seu estado potencial de Bodhisattva;
porque todas as coisas são śūnyatā, o vazio, e o puro reflexo deste
vazio (que é seu ser essencial) é a compaixão. A compaixão (karuṇā),
na realidade, é a força que mantém os seres em sua manifestação e,
ainda, é aquilo que faz com que o Bodhisattva renuncie ao nirvaṇā.
Portanto, todo o universo é karuṇā, compaixão, também conhecida
como śūnyatā, o vazio. (ZIMMER, 2015, p. 386, 387).

Na verdade, não apenas a compaixão, senão toda a realidade é permeada pelo


silêncio da vacuidade. Khenchen Thrangu Rimpochê, nos comentários ao
Dharmadharmatavibhaga (texto mahayanista que trata da distinção entre as aparências
fenomênicas e o ser puro) esclarece que todos os fenômenos – subjetivos ou objetivos –

45
No budismo a palavra sânscrita Bodhisattva refere-se àqueles indivíduos que buscam, com grande
ímpeto espiritual, a suprema iluminação, o despertar da budeidade dentro de si mesmos e em todos os
seres sensientes. Em outras palavras, é “um ser a caminho do despertar”, sua missão é servir
indiscriminadamente à causa do dharma, incluindo, por compaixão, toda a humanidade. Para uma
descrição mais detalhada, consultar The Seeker´s Glossary of Buddhism, 1998.
65

são essencialmente vazios (em sânscrito, śūnya). Para alcançar a sabedoria Mādhyamika
deve-se seguir por degraus, no primeiro, compreende-se a realidade dos fenômenos
externos como produtos da própria mente, posteriormente descobre-se que também os
fenômenos internos são a mente, por último, alcança-se a visão sinótica de que ambos
emergem intrínsecamente, de um fio condutor comum: a vacuidade46. Corroborando
com Thrangu Rimpochê, apresentamos a contribuição de Herbert Guenther e Chögyam
Trungpa que exaltam as qualidades não discriminatórias dos textos tântricos:

União não é mais que a experiência rutilante da compreensão, uma


suspeita súbita de dois aspectos de toda experiência que se unem
repentinamente em uma relação caótica desde o ponto de vista do
ambiente experimentado em direção ao ego. O amor e o ódio, por
exemplo, se unem. A integridade do ódio, que depende do ambiente
do ego, encontra a qualidade egoísta do amor. Subitamente, ódio e
amor são uma e mesma coisa, e repentinamente nenhum deles existe
[...]. No momento da união se produz um choque que não é mais que o
descobrimento da verdade. (GUENTHER; TRUNGPA, 2003, p. 25,
tradução nossa).

A abordagem tântrica busca a visão não-discriminatória da realidade, por isso


estimula o praticante a experimentar os prazeres mundanos (condenados por muitas
religiões) como método para superá-los, enxergando-os como não-diferenciados das
virtudes. As privações e austeridades sensuais, tipicamente ascéticas, possuem seu
valor, o qual não é negado pelo tantrismo, contudo o objetivo dos tantras é propor uma
“via alternativa”, onde a repressão dos prazeres é substituída pela compreensão de sua
fugacidade:

O Tantra Guhyasamaja, um dos mais antigos, e também uma das mais


sagradas Escrituras do Tantra da Esquerda47, parece ensinar
exatamente o oposto do que propôs o ascetismo budista. Diz-nos que é
certo alcançarmos facilmente o budato se “cultivarmos todos os
prazeres sensuais, como desejarmos”. Privações e austeridades falham
onde a “satisfação dos desejos” consegue êxito. Justamente as ações
mais imorais, mais tabus, parecem atrair com maior fascínio os
seguidores desta doutrina. São incentivados a desafiar as proibições
que restringem o alimento permitido aos ascetas. Deve-se comer carne

46
Cf. RIMPOCHÊ, 2006, p. 38-39.
47
O “Tantra da mão esquerda” mencionado pelo autor será retomado e discutido no terceiro capítulo.
(nota nossa).
66

de elefantes, de cavalos, de cães, e toda a comida e toda a bebida deve


ser misturada com imundícies, urina ou carne [...]. O que se quer aqui
é estabelecer um contato proposital entre os sentidos e os objetos que
os estimulam, quer por meio de forte atração, quer por repugnância.
Por um lado, pode-se chegar à verificação total e à compreensão da
futilidade e da relatividade dos prazeres dos sentidos pelo simples fato
de experimentá-los. (CONZE, 1973, p. 201, nota nossa).

O Budismo Tântrico Vajrayāna, por exemplo, utiliza-se dessas mesmas


“energias destrutivas” para fins altruísticos. Todo o processo filosófico está alicerçado
no reconhecimento da natureza impermanente e vazia dos vícios e prazeres. O
reconhecimento da vacuidade de todos os fenômenos (negativos ou positivos) garante
ao praticante um caminho seguro para consolidar a compreensão tântrica da realidade:

No centro da doutrina e prática vajrayana está a noção de não-


dualidade entre o nirvana e o samsara desenvolvidas pelas correntes
filosóficas mahayanas. Nas práticas tântricas, o conceito de não-
dualidade é habitualmente expresso pela união sexual das divindades,
representando polaridades como a sabedoria e o método, a vacuidade
e a compaixão. A realização da ideia de não-dualidade também
permite a inversão do processo “lógico” da iluminação. “Os
praticantes tântricos assumem o resultado futuro de sua evolução
espiritual como ponto de partida em seu caminho.” (Yeshe, 1987,
p.15). Isso quer dizer que falam e agem como budas perfeitamente
iluminados. As práticas tântricas invocam a descoberta de uma
natureza pura, uma mente iluminada, ou natureza búdica, que acredita-
se, que cada de um nós já possua em nosso interior, no nível mais
sutil. (NINA, 2006, p. 25).

Na citação acima, vemos a não discriminação entre iluminação e ignorância,


possibilitando que cada indivíduo enxergue a si mesmo como um autêntico iluminado.
Assumir os resultados futuros como ponto de partida da jornada espiritual, é no mínimo
desafiador. Por isso, o caminho do Tantra é considerado “a via alquímica48”, o
praticante deve condicionar a si mesmo a não se identificar com os hábitos grosseiros de
sua personalidade mundana. Esta nova tomada de consciência é fundamental para o
discípulo que almeja o despertar. Vejamos o aprofundamento de Heinrich Zimmer sobre
este ponto:

48
A alquímia será exaustivamente trabalhada no segundo capítulo. Por hora, ficaremos debruçados na
análise conceitual da não-dualidade budista como método propedêutico à ciência alquímica.
67

A noção do “despertar”, no que diz respeito ao Iluminado, é, no fundo,


tão destituída de significado quanto a noção de que há um estado
onírico que o precede (o estado da vida comum, nossas próprias
atitudes e ambiente). É irreal, não existe; é a vela de uma canoa
inexistente. Por meio de disciplinas se instrui o iogue budista a
conceber interiormente aquela paz que se percebe ao observar o vasto
reino etéreo com suas formas passageiras [...]. Completamente
imbuído de um total desinteresse, comparável ao da atmosfera
celestial em relação aos vários fenômenos de luz e escuridão que nela
acontecem, ele compreende o verdadeiro significado da sabedoria
transcendental budista, a natureza da visão desde a margem longínqua.
Toma conhecimento de que fundamentalmente nada, seja o que for,
está acontecendo à verdadeira essência de sua natureza, nada que
possa ser causa de regozijo. (ZIMMER, 2015, p. 350).

Despertar do sono onírico e evidenciar a ilusão na qual estamos inseridos,


perceber que, na realidade mais profunda de nós mesmos, jamais fomos afetados por
coisa alguma, que todo sofrimento é transitório e irreal – tais considerações só são
possíveis ao homem iluminado –. Por isso, o mistério central está ancorado na sua
figura. A rigor, nenhum outro indivíduo teria condições de conceituar sobre a realidade
metafísica, suas limitadas possibilidades o traem, lançando-o no terrível labirinto das
teorias; somente um indivíduo “desperto” poderia falar daquilo que experimentou. Só
ele teria condições de “perceber empiricamente” a verdade búdica e sentir a profunda
vacuidade de si mesmo, não diferenciado de qualquer outro fenômeno. Seguramente, o
intelecto não poderia nos fornecer tal evidência, poderia conceituar sobre o assunto, mas
sem tirar qualquer proveito real de suas conjecturas.

Não obstante, o enfoque principal do budismo é o próprio homem e sua prática


espiritual, somente ele pode tirar a si mesmo do estado de ignorância no qual se
encontra, a menos que se empenhe duramente no exercício das práticas budistas,
dificilmente terá êxito e suas conclusões acerca da realidade serão sempre pouco
elucidativas e inclinadas a um perigoso subjetivismo, que poderia mais afastá-lo do que
aproximá-lo da “experiência mística do vazio iluminador” (śūnyatā). Em suma, a
verdade contida nos textos tântricos só pode ser evidenciada pelo exercício rigoroso da
meditação profunda, a sabedoria no budismo é alcançada através de uma realização
interna e intuitiva.
68

1.7 Transmissões iniciáticas e aceleração espiritual

Os mestres do Tantra buscam preservar o ensinamento concedendo iniciações


apenas aos praticantes avançados. Antes mesmo de chegar ao Tibete, nos centros
tântricos indianos, certas práticas eram transmitidas de forma seleta, numa íntima
transmissão/conexão entre mestre e discípulo, confirmando o acentuado hermetismo
desses ensinamentos:

A relação professor-aluno é a pedra angular dos ensinamentos e


práticas tântricas. Tantra é um sistema secreto que requer um tipo
especial de iniciação, a qual é conferida ao discípulo por seu/sua
guru [...]. Os Tantras e seus praticantes budistas sempre mativeram
seu caráter esotérico e secreto, não estava direcionado ao
conhecimento em geral. Havia certamente um longo estágio de
desenvolvimento e transmissão oral das sādhanas antes de sua
perpetuação na forma escrita. (CUMMINGS, 2003, p. 23-24, tradução
nossa, grifo nosso)

Vejamos, por exemplo, a história de Virūpa49, antes de se tornar um yogin e


transmitir sua sabedoria, praticou secretamente, por doze anos, no monastério de
Somapurī50, práticas iniciáticas das ḍākinīs51, as quais lhe conferiram grande força
espiritual, contudo não entregava tais ensinamentos de forma indiscrimanada, esperou
pacientemente o encontro com discípulos preparados, os quais puderam receber
elevados ensinamentos esotéricos, juntamente com toda a potência mística do sábio
Mahāsiddha52.

49
Mestre tântrico que teria vivido por volta do século VIII d.C.
50
Monastério localizado na região de Bengala, que engloba a Índia e Bangladesh.
51
Ser celestial feminino cuja importância é percebida pela reiterada aparição nas histórias de muitos
Mahāsiddhas, entregando-lhes iniciações e conhecimentos esotéricos. Mircea Eliade explica que estas
divindades são fadas magas, que desempenham papel importante em certas escolas tântricas; são
chamadas em mongol “aquelas que andam nos ares” e em tibetano “aquelas que vão ao céu”. Cf.
ELIADE, 2012, p. 271. Analogamente, Geshe Kelsang Gyatso afirma que estes seres são Budas tântricos
femininos e mulheres que alcançaram a realização da clara-luz-significativa. Dakas são os equivalentes
masculinos. Cf. GYATSO, 2016, p. 387. No quarto capítulo abordaremos a questão das ḍākinīs com
maior profundidade.
52
O significado do termo Mahāsiddha é exposto em nosso segundo capítulo, mais especificamente nas
páginas 64 e 65.
69

Além de Virūpa, o mestre indiano Tilopa, outro expoente da tradição tântrica,


também necessitou passar por várias provações antes de receber os ensinamentos e as
iniciações secretas de seu guru:

Para a transmissão espiritual budista, a relação entre guru e discípulo,


é sumamente importante. A relação não é, meramente, uma questão de
interesse histórico senão que se perpetua como fator fundamental até
os dias atuais. Esta relação se baseia na confiança. Mas antes que essa
confiança se desenvolva existe um período durante o qual o guru
coloca à prova o discípulo. Percebe-se este processo de provas e
dificuldades no exemplo de Naropa, o qual foi provado por seu mestre
Tilopa. Passou-se muito tempo até que Tilopa se predispôs a
compartir seus ensinamentos com seu discípulo. (GUENTHER;
TRUNGPA, 2003, p. 75-76, tradução nossa).

Na tradição tântrica budista, a relação “mestre-discípulo” transcende a simples


formalização institucional, por meio dela, o conhecimento é preservado e entregue
apenas para pessoas designadas, escolhidas conforme suas aptidões espirituais, e não
por qualquer convencionalismo religioso, proporcionando assim maior proteção contra
profanações forâneas.

O XIII Dalai Lama, ao explicar as características do budismo Vajrayāna53 ou


tantrayāna, salienta que seu caráter místico-esotérico é um dos motivos da sua eficácia
em conferir “rápido desenvolvimento espiritual” aos seus praticantes:

O Vajrayana é para ser praticado em segredo e não deve ser


transmitido para pessoas espiritualmente imaturas. Por isso, é
conhecido como o caminho secreto [...]. Considera a si mesmo e todos
os seres como possuidores das quatro qualidades puras realizadas pelo
Buda: corpo perfeito, fala perfeita, mente perfeita e atividade perfeita.
Por isso é conhecido como o “veículo do resultado” [...]. Aplica-se
neste caminho o método da yoga não-dual e da sabedoria a fim de
atingir resultados transcendentais do mantra secreto. Portanto, é
conhecido como o “caminho do mantra secreto”. Esta é a natureza
esotérica do vajrayana, o veículo de diamante que proporciona rápida
e fácil iluminação. (DALAI LAMA XIII, 2006, p. 29, tradução nossa)

53
O budismo está dividido em três veículos (Theravāda, Mahāyāna e Vajrayāna); o vajrayāna, mais do
que qualquer outro, é, por excelência, o veículo do tantra, sem dúvida, o tantrismo constitui o pilar
místico-esotérico desta tradição, cujo desenvolvimento alcançou seu apogeu no Tibete.
70

Realmente o cuidado em transmitir esses ensinamentos é relatado por muitos


pesquisadores; o discípulo deveria possuir um elevado potencial espiritual para ser
merecedor de certas iniciações tântricas. Por isso, os mestres antes de iniciarem
qualquer devoto averiguavam acuradamente suas reais aspirações e disciplina. Uma vez
admitido, o discípulo rebebe a transmissão “secreta-iniciática” do guru, como nos
mostra Alex Wayman:

O guru é reverenciado como se fosse o Buda – suas virtudes são


ampliadas, suas faltas, minimizadas. É ele que dá “permissão” para a
invocação da divindade. É ele que leva o discípulo à iniciação,
apresentando-o à divindade e ao clan (isto é, o mandala), após ter-se
identificado ritualmente com a divindade [...]. Após a iniciação, eles
estão qualificados para receber, mais uma vez do guru, os
ensinamentos desse ciclo da divindade em particular. Entre seus votos
está o de não divulgar os segredos tântricos aos não-iniciados.
(WAYMAN, 2006, p. 244, grifo nosso).

O discípulo qualificado é tão necessário quanto o guru. A transmissão do


conhecimento tântrico depende de uma mente preparada, um devoto que consiga
reconhecer a profundidade e relevância desta doutrina. David-Néel, sobre esse ponto,
reforça a importância decisiva do discípulo nessa relação espiritual: “Embora
reconhecendo que a orientação de um perito em matéria espiritual é muito preciosa e
útil, muitos dentre eles inclinam-se a atribuir ao próprio discípulo a maior parte da
responsabilidade no sucesso ou no revés de seu treino espiritual.” (DAVID-NÉEL,
[s.d.], p. 18).

David-Néel sustenta ainda que não era somente aos leigos que estes
ensinamentos estavam velados, senão para os próprios monges. Havia uma interessante
distinção entre o monge vulgar e o “iniciado”, o qual, muitas vezes, distinguia-se dos
monges ordenados no tocante ao grau de interesse pelos conhecimentos místicos, e pela
inquietude espiritual que emanavam:

Grande é a diferença entre ele e o monge vulgar privado de iniciativa,


como existem aos milhares no Lamaísmo. Enquanto que aquele que,
levado ao mosteiro ainda na infância, só avança na direção traçada
pelo seu tutor, seguindo sem entusiasmo o curso de um colégio
monástico ou vegetando em uma ignorância beata, o futuro iniciado,
71

ao contrário, dá provas de uma vontade própria [...]. (DAVID-NÉEL,


[s.d.], p. 19-20)

Os mestres budistas ensinam que as iniciações concedidas pela tradição


tibetana Vajrayāna são essenciais para acelerar o desenvolvimento espiritual, por isso o
Vajrayāna é também conhecido como a “via rápida”, pois guarda os fundamentos
essenciais dos dois outros veículos, possibilitando assim grandes avanços místicos. Kalu
Rinponche esclarece que o método tântrico praticado pela tradição vajrayāna, resulta
tão poderoso, que possibilita ao praticante alcançar a iluminação espiritual em apenas
uma única vida:

O despertar pode, assim, ser atingido em uma única vida. Usando uma
comparação, quando se quer atravessar um país de um lado a outro,
pode-se fazê-lo a pé, o que seria muito demorado, ou então de carro, o
que já seria muito menos demorado, ou ainda de avião, o que seria
muito rápido. A viagem a pé corresponde ao pequeno veículo, a
viagem de carro, ao grande veículo, e a viagem de avião, ao vajrayana.
(RINPONCHE, 1999, p. 304).

Alex Wayman explica que “a aceleração do processo rumo à iluminação


interior”, na qual se apoia a tradição vajrayāna, baseia-se, fundamentalmente, em três
relações essenciais estabelecidas entre a natureza humana do discípulo e os aspectos
divinos oriundos das iniciações por ele recebidas:

O budismo não-tântrico se concentrava no cultivo da mente: o iogue


se sentava com as pernas cruzadas (assim dominando o corpo), em
silêncio (assim dominando a fala), e buscava chegar à concentração da
mente num único ponto (samādhi). A doutrina tântrica diz que, aqui, a
ligação com o divino ocorre apenas com o samādhi, enquanto, no
processo tântrico, a pessoa compartilha dos três mistérios do Buda:
seu corpo pelo mudrā, sua fala pelos encatamentos ou mantras e sua
mente pelo samādhi na divindade ou no mandala. (WAYMAN, 2006,
p. 244).

Os três mistérios do Buda mencionados por Wayman, são igualmente analisados


por Kalu Rinponche. Segundo o autor, a eficácia do veículo vajrayāna reside
justamente na sua especial propensão em purificar e transformar completamente a
consciência do discípulo por meio do seu elaborado sistema prático-ritualístico:
72

Considerando que não é possível atingir o Despertar, mantendo os


componentes impuros de nossa personalidade, o vajrayāna propõe um
sistema que permite transformar o impuro em puro: o corpo torna-se o
corpo puro do yidam, manifestação e vacuidade indissociadas; a
palavra torna-se o mantra, a palavra pura, som e vacuidade
indissociadas; a mente torna-se as cinco sabedorias, a mente pura,
intelecção e vacuidade indissociadas. (RINPOCHE, 1999, p. 307).

Na verdade, a inicição é uma cerimônia de empoderamento, uma transmissão


oculta, implica a ideia de outorgar um poder, uma autoridade baseada em uma linhagem
initerrupta que transfere, de mestre para discípulo, não apenas um saber esotérico, senão
uma profunda purificação no sentido psíquico e energético54. Portanto, o grande
objetivo da inciação é acelerar o despertar espiritual de um indivíduo.

A importância do esoterismo tântrico é ressaltada pelos mestres budistas


justamente por se tratar de um conhecimento prático-ritualístico adaptado à nossa era.
Kalu Rinpoche (1999) enfatiza que o Kalpa55 no qual vivemos, presenciará o
aparecimento de mil budas. Os três primeiros foram Krakukandra, Kanaka Muni e
Kashyapa, cujos ensinamentos são fundamentalmente os mesmos, porém
lamentavelmente, foram esquecidos e abandonados. A diferença básica entre esses três
budas citados e o quarto – Sidharta Gautama – é o ensinamento tântrico, o qual foi
entregue unicamente pelo Buda Shakyamuni. Por se tratar de um ensinamento esotérico
adaptado a este Kalpa, o Tantra conseguiu preservar seus ensinamentos mantendo-os
vivos até os dias atuais, conferindo benefícios espirituais a todos os seus membros.56

Mircea Eliade, seguindo os rastros teóricos de Rinpoche, também considera o


tantrismo como uma nova revelação espiritual adaptada às exigências altamente
materialistas deste kalpa:

Para os budistas, o Vajrayāna também constitui uma nova revelação


da doutrina do Buda, adaptada às possibilidades muito reduzidas do
homem moderno. No Kālackra-tantra conta-se como o rei Sucandra,

54
Detalhes sobre a inicição no budismo Vajrayāna podem ser consultados em RINPOCHE, 1999.
55
Palavra sânscrita que, no contexto em que foi empregada, designa um longo período de tempo. Na
cosmologia budista encontramos variados tipos de kalpas, suas descrições podem ser encontradas no sutra
Visuddhimagga.
56
Sobre a especificidade de Gautama em comparação aos outros Budas anteriores e a missão específica
do tantra para esta era, Cf. RINPOCHE, 1999, p. 313-317.
73

aproximando-se do Buda, pede-lhe um yoga capaz de salvar os


homens do Kali-yuga. O Buda revela-lhe então que o cosmos se acha
no próprio corpo do homem, explica-lhe a importância da sexualidade
e lhe ensina a controlar os ritmos temporais mediante a disciplina da
respiração, a fim de escapar ao domínio do tempo [...]. (ELIADE,
2012, p. 174).

Com relação à Kali-Yuga, Mircea Eliade (2012) explica que muitos


pesquisadores apresentam a doutrina tântrica como uma nova revelação da verdade
atemporal destinada ao homem desta “idade sombria”, quando o espírito é
profundamente envolvido pela carne.

Não apenas no budismo, mas também no hinduísmo encontramos as mesmas


críticas ásperas ao período materialista no qual vivemos. O indólogo alemão Heinrich
Zimmer destaca a relevância do Tantra hindu para a espiritualidade contemporânea, tal
como ocorre com o budismo, os tântricos do hinduísmo também acreditam que a sua
mensagem está adaptada para a nossa era:

Os tântricos chamam seus textos de “o quinto Veda”, “O Veda para


esta idade de Ferro”. Para a primeira das quatro idades do mundo, foi
dada a Sruti [O Veda]; para a segunda, a Smṛti [os ensinamentos dos
sábios, o Dharma-Śāstra, etc.]; para a terceira, os Purāṇas [as
epopéias] e a quarta, os Āgamas [textos tântricos]. (ZIMMER, 2015,
p. 405).

Novamente, budistas e hinduístas, no tocante aos aspectos tântricos, possuem


posições doutrinais similares, consideram que o homem moderno de Kali-Yuga,
excessivamente materialista, e com reduzida possibilidade espiritual, necessitaria por
esta razão, de um ensinamento profundo que possa despertar a sua oculta identidade
espiritual, suas raízes mais profundas. As práticas tântricas, sobretudo àquelas ligadas à
meditação e ao sexo-yoga, atuariam como um poderoso antídoto contra os efeitos
perniciosos de Kali-Yuga e seu forte apelo ao materialismo.

Para podermos compreender melhor como as adversidades de Kali-Yuga podem


nos favorecer, faremos uma pequena ilustração: O yogin avançado, que medita nas
cavernas, com todos os animais e desconfortos naturais atrapalhando a sua prática,
precisa encarnar o autodomínio físico e mental a fim de conseguir superar tais
74

adversidades e se tornar imunes a elas. Não se pode dizer o mesmo daqueles que
meditam no conforto do lar. Certamente, estes teriam sérias dificuldades para meditar
em cavernas. Ao contrário, o yogin não teria nenhum problema para meditar em um
ambiente protegido e confortável, pois os inconveninetes da vida ascética lhe
“forçaram” a ter um grande poder mental, uma resistência extraordinária. Veja que neste
caso as adversidades foram favoráveis, possibilitando ao yogin um avanço mais
consistente. Ou seja, o rigor de um ambiente hostil acelera a necessidade de superação
física. Se o yogin não transcende os inconvenientes físicos da caverna, rapidamente,
abandonará sua jornada de austeridades, mas se, ao contrário, ele as supera, então uma
poderosa força interior lhe é agregada. Vale destacar que não negamos a possibilidade
de se atingir elevados níveis de consciência nos confortos do lar, porém queremos
apenas enfatizar que as austeridades, realizadas de forma correta, podem acelerar o
processo espiritual.
75

CAPÍTULO 2: A ALQUIMIA DOS SIDDHAS E SEUS PODERES


MIRACULOSOS

2.1 O que é alquimia?

No capítulo anterior realizamos uma introdução à doutrina tântrica, que nos


permitiu conhecer um pouco da história e das características do tantrismo. O que é
importante porque a partir desta tradição, o sexo-yoga (foco central da nossa tese)
encontrará vívida expressão e propogação. De fato, é com o Tantra que o sexo se
transformará em instrumento de salvação. Por isso, a partir deste segundo capítulo,
começaremos a investigação, passo a passo, sobre os mistérios relacionados ao
maithuna57, buscando compreender a sua relevância para o desenvolvimento espiritual
do praticante budista.

Os ensinamentos sensuais transmitidos pelos mestres do Tantra estão


intimamente ligados à alquimia, a “arte da transmutação”, dos conhecimentos
simbólicos, das iniciações esotéricas etc.; objetivando ampliar e enriquecer o nosso
debate, optamos por fazer uma breve introdução sobre a tradição alquímica e sua
errática aparição em contextos culturais multiformes, demonstrando que existe certa
simetria no tocante aos conhecimentos alquímicos transmitidos por diferentes escolas
iniciáticas ao redor do mundo, incluindo, nessa perspectiva, o próprio Tantra budista.

Alguns autores clássicos concebem a alquimia como uma etapa embrionária da


química, como é o caso de Marcelin Bethelot, Edmund Von Lippmann, F. Sherwood
Taylor, A.J. Hopkins etc58. Do ponto de vista científico, não consideramos equivocado
considerar a química moderna como uma extensão da antiga tradição alquímica,
contudo não devemos perder de vista a função soteriológica, bem como o caráter
místico-esotérico enraizado nos alquimistas antigos e medievais.

Difícil é precisar o momento exato em que o conhecimento alquímico apareceu


no mundo. Por razões desconhecidas, do oriente ao ocidente, os extratos ocultos dessa

57
Palavra sânscrita que significa relação sexual.
58
Cf. ELIADE, 1979, p. 108.
76

tradição emergiram nas culturas mais proeminentes: egípcios, gregos, chineses,


indianos, tibetanos, cristãos, mulçumanos etc.59 Segundo Titus Burckhardt, a alquimia
existe desde, pelo menos, metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente
desde os tempos pré-históricos60; os desenhos alquímicos mais antigos que chegaram
até nós, foram conservados em papiros egípcios61. Serge Hutin (2010) também indica o
Egito como uma das principais e primeiras culturas a disseminar textualmente a
sabedoria alquímica. O autor sugere ainda que o aparecimento histórico da alquimia
tradicional, tal como a conhecemos, e a revelação de sua existência, situam-se, mais ou
menos, no início do século III da era cristã estendendo-se até o começo do século IV, e,
precisamente, nessa época, em Alexandria, no Egito, seria o local de maior
desenvolvimento desta tradição. Datam desse período os primeiros manuscritos egípcios
conhecidos, escritos, não em hieróglifos, mas em grego ou em copta62.

Na esteira da historiografia alquímica, não poderíamos deixar de citar Zózimo,


que nas palavras de Jung, é representado como “um gnóstico influenciado por Hermes.”
(JUNG, 1991, p. 309). Figura extremamente importante para a consolidação da tradição
esotérica antiga, considerado o primeiro autor de textos propriamente alquímicos63,
nasceu na cidade egípcia de Panópolis, viveu por volta do século IV d.C. “Zózimo
revela-nos com suas explanações quase toda a teologia da alquimia, secreta e bem
peculiar, ao traçar um paralelo entre o sentido oculto do ‘opus’ e o mistério gnóstico da
redenção.” (JUNG, 1991, p. 387).

Além do Egito, a cultura árabe também teve participação relevante no processo


de assimilação e propagação dos ensinamentos alquímicos. Ao que tudo indica, é
através do mundo islâmico que a alquimia penetra na enraigada cristandade medieval:
59
O aparecimento da alquimia em diversas culturas é uma tese defendida, principalmente, por Mircea
Eliade. Poderíamos citar como exemplo os cristãos gnósticos do século II. Ao que tudo indica, eles
praticavam certas técnicas alquímicas relacionadas aos mistérios sexuais, algo muito parecido com o
sexo-yoga budista. Nesse sentido, tanto o gnosticismo quanto o budismo possuem elementos alquímicos
em seus ensinamentos. Entretanto, é uma premissa perigosa entender que essas duas culturas possuiriam
uma compreensão unívoca sobre o termo alquimia, talvez, mais prudente e sensato, seria admitir que cada
cultura, ao seu modo, interpretou e absorveu a tradição alquímica conforme as suas próprias
idiossincrasias.
60
Assim como acontece com a história do tantrismo, a sabedoria alquimíca é anterior ao aparecimento
dos seus primeiros escritos. A transmissão oral do saber, o hermetismo, o ocultismo, a simbologia,
sempre fizeram parte da tradição alquímica, dando a ela um peculiar caráter esotérico, misterioso,
buscava transmitir seus conhecimentos da forma mais velada possível.
61
Cf. BURCKHARDT, [s. d.], p. 9-13.
62
Sobre os primeiros manuscritos alquímicos, Cf. HUTIN, 2010.
63
Sobre a importância de Zózimo para a alquimia, Cf. ELIADE, 1979, p. 114.
77

Em um primeiro momento, a alquimia entrou na civilização cristã


ocidental através de Bizâncio, e depois, e em maior medida, através da
Espanha árabe. Foi no mundo islâmico que a alquimia alcançou a
plenitude de seu florescimento [...]. Quando, com o Renascimento,
ocorreu a grande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de
alquimia bizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII vários
trabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiam apenas
manuscritos que haviam circulado mais ou menos secretamente.
Como resultado disso, o estudo do hermetismo alcançou um novo
patamar; foi em breve, contudo, que entrou em decadência.
(BURCKHARTD, [s.d], p. 16).

Serge Hutin (2010) segue a mesma interpretação histórica, também acredita que
o mundo Ocidental (europeu) recebeu os textos alquímicos pela mediação árabe.
Contudo, além da dominação mulçumana na Península Ibérica, a qual teve início a
partir do século VIII d. C.64 Hutin sugere ainda as Cruzadas (séc. XI-XIII d.C) como
outra zona de confluência histórica-cultural que possibilitou essa interconexão esotérica.

A importância da cultura árabe na história da alquimia vai mais adiante. Autores


como Muller, Lippmann e Reinh, por exemplo, sustentam que o conhecimento
alquímico foi introduzido na Índia pelos árabes, porém esta tese é contestada por Eliade,
que afirma a existência de textos budistas relacionado à alquimia muito tempo antes da
influência da cultura árabe.65 De todo modo, tendo ou não influência sobre a Índia, os
árabes demonstraram um acentuado vigor nos estudos alquímicos, sobretudo com as
obras de Jabir ibn Hayyan66.

Passemos ao estudo semântico do termo alquimia. Conforme Eliade, seja em


textos chineses, indianos ou gregos, os ensinamentos alquímicos estão sempre
vinculados com "a Arte", indicando mudança radical e benéfica, também vinculada à
transmutação67. No entato, o pesquisador romeno considera prematuro fazer qualquer
afirmação conclusiva sobre a etimologia do termo. Outros pesquisadores, ao contrário,
sugerem que:

64
Para um breve resumo sobre a chegada da alquimia no mundo cristão europeu, Cf. HUTIN, 2010.
65
Cf. ELIADE, 2012, p. 232.
66
Jabir ibn Hayyan viveu provavelmente entre os séculos VIII e IX d.C, grande personagem da alquimia
islâmica. Ficou conhecido na Europa com o nome latino Geber. Durante a Idade Média, seus textos foram
traduzidos para o latim e tiveram grande aceitação tanto do ponto de vista esotérico quanto da química
moderna. Sem sombra de dúvidas é um dos nomes mais influentes da tradição alquímica medieval. Cf.
BALASCH; RUIZ, 2003, p. 203.
67
Cf. ELIADE, 2005, p. 234.
78

Alquimia, consoante Corominas, procede do artigo árabe al + kīmiâ


“pedra filosofal” e, quanto à origem da palavra árabe, há duas
hipóteses: a base seria o grego χνμεία (khymeía), “mistura de diversos
líquidos”, derivada de χνμός (khymós), “suco, sumo”, ou o copta
chame, “negro”, nome aplicado aos egípcios as artes que se lhes
atribuem. (BRANDÃO, 2003, p. 199).

Burckhartdt acredita que a palavra alquimia possui influências árabes, gregas e


egípcias. Assim como Brandão e Eliade, o autor também atribui à palavra características
“transmutatórias”, ao dizer que:

A expressão alchemia deriva do árabe al-kimiya, que parece derivar


do antigo egípcio kême – a referência à 'terra negra', que era uma
designação do Egito, e que poderia ter sido também o símbolo da
matéria-prima dos alquimistas. Outra possibilidade é que a expressão
deriva do grego chyma ('fusão' ou 'fundição'). (BURCKHARDT, [s.
d.], p. 13).

Decerto, esta é mais uma das muitas querelas conceituais distantes de um


desfecho satisfatório, razão pela qual não aprofundaremos em tais estudos etimológicos.
O importante é ter em mente a característica transmutatória da alquimia, a qual sempre
acompanhou seus ensinamentos ocultos em diversas tradições religiosas. A origem
milenar da alquimia e sua aparição em contextos culturais multiformes é atestada por
Eliade:

Em todas as culturas onde a alquimia floresceu, ela sempre esteve


intimamente relacionada com uma tradição esotérica ou "mística": na
China ao Taoísmo, na Índia ao Yoga e ao Tantrismo, no Egito
helenístico à gnósis, nos países islâmicos Escolas místicas e
esotéricas, na Idade Média ocidental e renascimento ao hermetismo,
misticismo sectário cristão e à Qabbalah [...]. Por esta razão, o
alquimista enfatiza o sigilo [...]. No prólogo de um dos tratados
alquímicos clássicos indianos, rasārṇava, a Deusa pede a Śiva o
segredo de se tornar um jīvanmuleta, ou seja, um "liberto em vida".
Śiva lhe diz que esse segredo é raramente conhecido, mesmo entre os
deuses[...]. (ELIADE, 2005, p. 235).

Longe das arbitrariedades sociais e das sacras normatizações, os ensinamentos


alquímicos, e seu peculiar processo de hibridização, parece possuir todos os elementos
doutrinais, embora não sistemáticos, de uma “tradição genuína”, orgânica, a qual seria
79

capaz de conferir aos seus adeptos, através de secretos ensinamentos, elevadas


conquistas espirituais:

Em poucas palavras, o alquimista ocidental, no seu laboratório, tal


como o seu colega indiano ou chinês, operava sobre si próprio, sobre a
sua vida psicofisiológica tanto quanto sobre a sua experiência moral e
espiritual. Os textos são acordes em insistir nas virtudes e qualidades
do alquimista: este deve ser sadio, humilde, paciente, casto; deve ter o
espírito livre e harmonizado com a obra; deve ser inteligente e sábio, e
deve, ao mesmo tempo, obrar, meditar, rezar etc. Dessa maneira, vê-se
que não se trata apenas de operações de laboratório. O alquimista
entrega-se por completo à sua obra. (ELIADE, 1979, p. 123).

A Obra, mencionada acima por Eliade, constitui-se em um dos mais completos


simbolismos resultantes da união entre Deus e o Homem, indicando a clássica fusão, em
termos eliadianos, entre o sagrado e o profano. Em outras palavras, o homem alquímico,
aquele que forjou sua própria obra, seria o espelho da contemplação divina,
representaria a interseção entre a terra e o céu. O alquimista é simplesmente um
indivíduo que reconheceu em seu “DNA espiritual”68 um plano maior, que descobriu
que dentro de si mesmo, existe um projeto audacioso de “reconstrução”, um protótipo
do Ser regenerado, cuja forma e proporção estão em perfeita sintonia com a existência
incondicionada.

Ao iniciar seu “processo de construção” o alquimista adquire um caráter


obstétrico, pois sua “arte régia” encontra-se em estágio embrionário, adormecido talvez
por milhares de vidas; o crescimento e o aperfeiçoamento de sua própria obra é agora
iniciado, a “embriologia espiritual” impulsiona-o a superar todos os seus limites, a ir
além da natureza e realizar o seu destino: “o nascimento de um novo ser, de um homem-
deus”. O grande segredo consiste em “trabalhar mais depressa do que a natureza”; se o
homem simplesmente acompanhar o desenvolvimento natural seu destino seria como o
de todos os outros seres humanos; os cinco sentidos e a razão que recebemos
gratuitamente da natureza é simplesmente um empréstimo temporário, uma herança
recebida sem esforço. Até esse ponto, a natureza fez o seu papel, agora, somente o
próprio indivíduo, com um choque adicional, poderá prover a si mesmo com novas

68
“DNA espiritual” é apenas uma expressão metafórica para designar à nossa natureza búdica inata, que
é, em essência, auto-iluminada e plena de sabedoria.
80

faculdades. Clarividência, intuição, samādhi, conhecimento das vidas passadas, todas


essas e muitas outras virtudes espirituais não se desenvolveriam espontaneamente, como
acontece com os cinco sentidos. Ou o indivíduo trabalha duramente, entregando-se por
completo à sua obra, ou vagará como o restante da humanidade trabalhando com uma
máquina precária (corpo-mente), muito longe das aspirações alquímicas, por isso
devemos:

Colaborar com a Natureza, ajudá-la a produzir num tempo cada vez


mais rápido, modificar as modalidades da matéria – cremos ter
descoberto aí uma das fontes da ideologia alquímica [...] o que existe
de comum entre o fundidor, o ferreiro e o alquimista é que todos três
reivindicam uma experiência mágico-religiosa particular nas suas
relações com a substância; essa experiência constitui um monopólio
deles e o seu segredo se transmite através dos ritos iniciatórios dos
ofícios; todos três trabalham com uma matéria que reputam ao mesmo
tempo viva e sagrada, e, com seus esforços, procuram transformar a
Matéria, “aperfeiçoá-la, “transformá-la”. (ELIADE, 1979, p. 10).

A Obra está relacionada com a “arte da transmutação”, que por sua vez está em
estreita conexão com os ritos metalúrgicos, os quais foram muito utilizados pela
literatura europeia medieval69. Também na Índia encontram-se os mesmos simbolismos
vinculados aos elementos. Ouro, prata, cobre, fogo, Sol, Lua, em síntese, todos esses
elementos naturais pertencem à Mãe-Terra. O alquimista, percebendo que seu corpo
possui as mesmas substâncias elementares da natureza, busca realizar dentro de si
mesmo uma passagem da matéria bruta (vícios e apegos) ao ouro puro (virtudes):

Enquanto os Gregos, e posteriormente os Árabes e alquimistas


medievais da Europa (a quem esta ciência foi transmitida pelos
Árabes), basearam sua teoria da transmutação dos metais e de outros
elementos nesta ideia e tentaram confirmá-la experimentalmente,
existia na Índia um grupo de místicos que aplicavam este princípio ao
próprio desenvolvimento espiritual e declaravam que aquele que
penetrasse na origem e princípio último da unidade no seu próprio
interior poderia não somente transformar os elementos do mundo
exterior, como também aqueles do seu próprio ser. E alcançando isto,
conquistariam este misterioso poder mágico que as escrituras Budistas

69
No quinto capítulo do livro Ferreiros e Alquimistas de Mircea Eliade encontramos uma rica descrição
da história e dos ensinamentos ocultos da tradição alquímica vinculada às artes metalúrgicas.
Recomendamos a leitura completa desta obra a fim de extrair uma visão mais ampla sobre a influência e a
importância da alquimia em distintas tradições esotéricas.
81

designaram de siddhi (Pali: iddhi; Tibetano: grub-pa), um poder que é


igualmente efetivo no mundo espiritual e no material. Nestas bases, se
diz que certos iogues adiantados testavam seus logramentos,
exercitando seus poderes de transmutação sobre elementos materiais.
(GOVINDA, 1995, p. 56-57)

A arte da trasmutação está vinculada, alegoricamente, à mudança


comportamental, ou seja, o alquimista busca “transformar” em virtudes, em excelência
moral, seus defeitos psicológicos mais nefastos, na ânsia de alcançar o completo
domínio de sua natureza interior.

Uma das grandes tarefas do alquimista é desvendar e integrar na consciência as


perfeições e virtudes que a “razão”, desafortunadamente, se recusa a oferecer. O
autêntico alquimista, dominador do elemento interno (corpo e mente) e externo
(natureza), é aquele que percebeu a limitação do pensamento discursivo, recusou-se a
guiar-se unicamente por suas indicações, optou por outro caminho: a “intuição”.

Analogamente, no inicío da era cristã, o mundo religioso europeu também sentiu


as mesmas necessidades de superação das limitações racionais, começou a duvidar da
sua capacidade em conduzir-nos aos cumes da compreensão espiritual:

No início da era cristã, uma mudança nas atitudes seculares e


religiosas pode ser discernida. O racionalismo que havia guiado o
pensamento da elite em épocas anteriores desvaneceu-se, a ascensão
do ceticismo e a perda de direção levou a um vácuo filosófico que
estimulou o recurso à intuição mística e aos mistérios divinos. A área
do Império Romano em que este processo se tornou manifesto foi
principalmente o Egito, onde, após a conquista de Alexandre, o
Grande (332 a.C), centrou-se a cultura do helenismo e a simbiose de
características gregas e orientais. As crenças de mistério que estavam
em voga chamavam-se Gnosticismo e Hermetismo e exerceram uma
forte atração para os praticantes das ciências ocultas (astrologia, magia
e medicina), bem como a alquimia, a arte de fazer ouro [...].
(COUDERT, 2005, p. 244).

Os primeiros séculos da era cristã e o período renascentista marcam


decisivamente a importância espiritual contida nos ideais pagãos, o anseio por
renovação religiosa resultou na abertura de possibilidades antes ignoradas, ou até
mesmo temidas. O mundo ocidental encontrou na contemplação da natureza, no
silêncio, nas práticas mágicas e teúrgicas, o suporte soteriológico para a consolidação de
82

uma riquíssima tradição hermética70, cuja consolidação se deu através de grandes nomes
do mundo antigo (Orfeu, Hermes Trismegisto, Zoroastro71).

O “recurso à intuição mística” e o natural declínio da razão não é um capricho


dos mestres acima citados, o budismo participa da mesma opinião na medida em que
reconheceu a incapacidade racional para adentrar nos mistérios superiores da existência:

Só se vê o nirvāna com o “olho dos santos” (ariya cakku), isto é, com


um órgão transcendente que não participa do mundo perecível. O
problema para o budismo, como para qualquer outra iniciação, era
mostrar o caminho e criar meios para obter esse “órgão” transcendente
que revela o incondicionado. (ELIADE, 2012, p. 144, grifo do autor).

Dissertar sobre os benefícios da mente pacificada é uma tautologia comum


encontrada em muitos textos budistas. Este seria o único caminho que conduz à
obtenção desse “órgão transcendente”. O Budismo tântrico acredita na superação do
homem, no despertar da nossa oculta natureza a qual se encontra além de toda
transitoriedade material, além do mundo das formas, somente assim encontraremos a
suprema sabedoria e a ausência completa do sofrimento.

O limite da razão é a própria realidade objetiva. Todo conteúdo subjetivo são


apenas resíduos sutis recebidos pelos sentidos através do contato com o mundo

70
Giovanni Reale explica que na Antiguidade tardia (sobretudo nos séculos II e III d.C) produziu-se uma
série de escritos pagãos (Corpus Hermeticum) atribuídos a Hermes Trismegisto, figura mítica
representada como o próprio deus Toth, dos antigos egípcios, considerado inventor das letras do alfabeto
e da escrtita. Os padres cristãos encontraram nesses escritos acenos da mensagem bíblica, remontariam à
época dos primeiros patriarcas, uma espécie de profecia pagã. Por esta razão, foram aceitos como
autênticos, tendo, por exemplo, Lactâncio (séc. III d.C) e, em parte, Agostinho (séc. IV d.C) como
defensores de sua autenticidade. Muitos séculos depois, Marcílio Ficino (séc. XV) marcou uma
reviravolta decisiva na história do pensamento humanista-renascentista (séc. XV-XVI) quando traduziu
para o latim o Corpus Hermeticum, que se tornou um texto basilar nesse período. Assim, por volta de fins
do século XV (1488), Hermes foi ilustremente acolhido na catedral de Siena, com uma efígie no
pavimento sobre a inscrição: “Hermes Mercurius Trismegistus, Contemporaneus Moysi”. Desta forma,
graças ao Corpus Hermeticum e outros escritos, como por exemplo, os Oráculos caldeus (texto marcado
fortemente pelas “artes mágicas”, bem como pela sabedoria egípcia e babilônica), atribuído a Zoroastro,
reformador religioso iraniano do século VII/VI a.C., os elementos paganizantes e híbridos das doutrinas
greco-pagãs conseguiram se perpetuar e intensificar no período renascentista, influenciando o pensamento
filosófico, religioso, artístico e até mesmo científico da época. Porém, desafortunadamente, já no século
XVII, vemos um rápido declínio desta tradição. Cf. REALE, 1990.
71
Giovanni Reale defende a tese de que muitos escritos atribuídos a esses lendários personagens, na
verdade, são produções póstumas de tradições religiosas e filosóficas a eles ligados. Cf. REALE, 1990, p.
34-41.
83

empírico72. A rigor, seria impossível conceber uma metafísica com base nos
pensamentos humanos, já que todos eles emergem da natureza profana e transitória
deste mundo sensível. Céu, inferno, Deus, todos esses conceitos transpessoais são
derivados de fontes auditivas e/ou visuais (figuras em livros, pinturas, etc.), recebidos
unicamente pela via sensorial e, por conseguinte, também racional, pois ambos estão
interligados. Entretanto, partir do pressuposto de que a única realidade possível é aquela
percebida pelos órgãos sensoriais é uma premissa perigosa, pois poderíamos cair em um
reducionismo epistemológico extremamente limitado, se assim procedermos estaríamos
engessando as múltiplas possibilidades hermenêuticas. Faz-se necessário uma “abertura
subjetiva para a manifestação do próprio fenômeno”, uma pré-disposição ao inusitado,
sem moldes conceituais ou regras epistemológicas fixas, sob pena de cairmos em
julgamentos descuidados, que mais refletem aspirações de um “observador
apologético”73, do que análises concisas de um pesquisador comprometido unicamente
com as evidências fornecidas por seu objeto de estudo.

Enquanto a razão permanecer como guia central do pensamento humano,


enquanto não conseguirmos o domínio dos pensamentos e a conseqüente quietude da
mente, os falsetes intelectuais permanecerão – analogias, induções, deduções etc. –. Até
certo ponto são muito úteis, porém são absolutamente dispensáveis para atingir o
nirvāna. De fato, o budismo não tem interesse na perpetuação do homem vulgar,
vicioso, temeroso, com mente instável e vacilante, um pensador ambulante, que ignora
por completo outras realidades que estão além da razão, além dos sentidos e da própria
realidade empírica, esse não é o protótipo escolhido pelo dharma; a meta budista é
ampliar o horizonte da consciência, libertando-a dos conflitos interiores, da eterna luta
dos opostos. A libertação da dualidade subjetiva advém com o satori, que “pode ser
definido como um olhar intuitivo no âmago das coisas, em contraposição à sua
compreensão intelectual ou lógica.” (SUZUKI, 2002, p. 113).

72
Esta proposição é apresentada com detalhes por importantes filósofos da tradição empirista britânica,
destacando-se, sobretudo, John Locke (séc. XV-XVI) e David Hume (séc. XVIII).
73
“Observador apologético” é o pesquisador que interpreta o fenômeno religioso de forma tendenciosa,
isto é, tendo como única base “as verdades da sua própria religião”, comprometendo fortemente sua
neutralidade científica. Poderíamos citar como exemplo o próprio tantrismo oriental, o qual recebeu
interpretações muito equivocadas quando foram estudadas, no fim do séc. XVIII e início do séc. XIX, por
pesquisadores cristãos europeus.
84

Com base nos ensinamentos budistas, percebemos que a verdade atemporal é


seleta, apresenta-se ao homem intuitivo, ao atleta da meditação profunda, capaz de
“sentir” o sublime, comunga com a realidade sem lhe pedir juros, e como recompensa
recebe torrentes de alegria, sublimes inspirações. Basta viver o “presente”, sem
abstrações, sem pensamentos, e naturalmente surge uma paz silenciosa, fruto da mais
absoluta conexão existencial – homem e natureza alinham-se em um único fenômeno,
sentem-se como entes não-separados –. Com tal disciplina, vamos pouco a pouco,
conforme os textos budistas, sutilizando as grosserias da mente, tornando-a mais
receptiva às impressões estéticas, as quais não podem ser “sentidas” pelos ardilosos
cálculos da razão.

Após esse breve prelúdio acerca da história da alquimia e suas características


transmutatórias, estamos em condições mais favoráveis para iniciar nossas reflexões
sobre o conhecimento alquímico budista e sua conexão com o Tantra. Acreditamos que
a alquimia Oriental possui aproximações esotéricas com o misticismo Ocidental. Se
compararmos o fenômeno alquímico da Europa medieval, como vimos acima, com o
tantrismo budista, que será analisado a seguir, perceberemos simetrias auto-evidentes
aproximando, idealisticamente, dois continentes separados pelas limitações geográficas,
porém unidos pela sede do conhecimento místico.

2.2 Alquimia oriental e o poder do sêmen

Tanto no ocidente quanto no oriente existem ténicas transmutatórias associadas à


alquimia, indicando claramente que esta seria, provavelmente, uma das principais
características desta tradição. A transmutação, como vimos, está relacionada à mudança
de padrões morais, ou seja, busca-se erradicar os vícios e abraçar a santidade das ações.
Até o presente momento tratamos apenas dos aspectos da alquimia ligados à mudança
comportamental, sem aprofundar outra questão essencial: a sexualidade.

Ao ingressarmos no universo alquímico budista, gostaríamos de tocar com maior


ênfase no plano central do nosso trabalho: o sexo-yoga. As práticas sexuais se
constituem como uma espécie de “segunda etapa” ensinada pelos alquimistas
85

avançados. Após a lapidação da personalidade (relacionado ao comportamento), o


praticante já teria condições de ingressar nos mistérios da “transmutação sexual”,
exigindo do indivíduo maior dedicação, bem como uma disciplina esotérica-sexual.

Iniciaremos os estudos sobre a alquimia oriental elegendo o Tantra hindu como o


primeiro ponto de apoio. O pesquisador Georg Feuerstein acredita que a utilização das
forças sexuais é o fio comum que une os ensinamentos tântricos e a alquimia:

Os paralelos entre Tantra, Ayurveda e alquimia têm origem em uma


filosofia que conceitua o universo em termos sexuais ou eróticos,
como a criação de Shiva e Shakti. Na Alquimia medieval, o fluido
sexual da Deusa era equiparado à mica, ao seu sangue menstrual com
enxofre. (FEUERSTEIN, 1998, p. 233, tradução nossa).

O autor assevera que algumas escolas do Tantra, ainda nos dias atuais,
interpretam simbolicamente os ensinamentos relacionados às forças sexuais, mantendo-
se, por esta razão, fieis ao voto celibatário, entretanto outras escolas vão além da
mensagem alegórica, e compreendem o ato sexual como importante instrumento de
desenvolvimento interior, praticando-o fisicamente:

Enquanto algumas escolas (da mão esquerda) do Tantra encorajavam


a mistura literal de menstruações e sêmen, a maioria dos mestres
entendia isso de forma completamente metafórica (como a união de
energias femininas e masculinas) ou como forças sutis emanadas pelo
praticante feminino e masculino, respectivamente. (FEUERSTEIN,
1998, p. 233, tradução nossa).

O pesquisador indiano Shashibhusan Dasgupta (1946), em sua obra Obscure


religious cults, esclarece que os conhecimentos alquímicos da mão esquerda74 (aqueles
que praticam o sexo-yoga) estão indissociavelmente ligados aos siddhas75, alguns deles
faziam uso das práticas sexuais para o avanço espiritual, para a transmutação interior,
bem como para curas terapêuticas.

74
A diferença entre o tantra da mão direita e o tantra da mão esquerda será explicada com maior detalhe
no próximo capítulo, mais precisamente no iten 3.1.
75
Grandes adeptos do budismo tântrico. A vida dos siddhas e suas histórias serão aprofundadas no item
2.5.
86

No sistema alquímico budista, encontramos nas ideias de Nāgārjuna as mesmas


tendências transmutatórias, as quais eram professadas por meio de alegorias:

[...] Nāgārjuna, o famoso filósofo Mādhyamika, é tido como autor de


numerosos tratados alquímicos; entre os siddhi obtidos pelos iogues
figura a transmutação dos metais em ouro; os mais célebres siddha
tântricos (Capari, Kamari, Vyali etc.) são ao mesmo tempo renomados
alquimistas [...]. (ELIADE, 1979, p. 98, grifo do autor).

Ao invés de utilizar termos vulgares, a simbiose tantrismo-alquimia buscava


operar sobre a “matéria” por meio de uma linguagem estética, simbólica. Conforme os
textos tântricos budistas, haveria dentro da mente humana um mundo de vícios,
defeitos, emoções conflituosas, as quais são identificadas, alegoricamente, como
“metais vulgares”. Estas deveriam ser transformadas em “ouro puro”, ou seja, em
virtudes, disciplina, autocontrole, estabilização mental, compaixão, tal como ensina o
lama Govina:

A relação entre o mais alto estado de consciência e o comum foi


comparado por certas escolas de alquimia àquela existente entre o
diamante e um pedaço comum de carvão. Não se pode imaginar um
contraste maior, e apesar disso, ambos são constituídos da mesma
substância química, a saber, o carbono. Isto ensina simbolicamente a
unidade fundamental de todas as substâncias e suas faculdades
inerentes de transformação. (GOVINDA, 1995, p. 68).

A pureza ontológica da realidade fenomênica ensinada acima pelo lama


Govinda, já havia sido amplamente aprofundada por Nāgārjuna, no segundo século da
era cristã. Esses ideais encontraram na alquimia budista um campo promissor para
colocar em atividade o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da consciência não-
discriminatória. A passagem da consciência dualista (que discrimina o puro do impuro)
para a consciência universalista (que não faz qualquer distinção, todos os fenômenos
são essencialmente puros) é um exemplo claro da “transformação alquímica” que ocorre
na mente do praticante. Portanto, transmutar a mente equivale, simbolicamente, à
“transmutação dos metais”, em outras palavras, é quando o iniciado extrai de sua vida
psicomental todos os resíduos vulgares (desejos, apegos, vícios etc.) permitindo assim o
87

acesso à liberdade incondicionada, à suprema dita interior, à salvação espiritual, ao ouro


puro do espírito.

Acreditamos que a lapidação da personalidade e a trasmutação dos metais se


referem, entre outras coisas, à prática do maithuna, o alquimista tântrico se transforma
radicalmente através do sexo-yoga. Ao tratarmos da alquimia sexual, invariavelmente,
estaremos nos referindo aos mistérios da transmutação. “Transmutar”, no sentido
alquímico-sexual é o mesmo que reter a energia seminal, utilizando-a como meio de
atingir a suprema beatitude mística. Mircea Eliade cita a reconhecida escola tântrica
Sahajiyā76, muito difundida em Bengala, na Índia, como detentora destes ocultos
ensinamentos sexuais:

[...] A profunda corrente mística conhecida como sahajiya, que


prolonga o tantrismo, e que é tanto budista quanto hinduísta, conserva,
todavia sua primazia pelas técnicas eróticas. Mas, assim como no
tantrismo e no hatayoga a união sexual é compreendida como um
meio para a obtenção da “suprema beatitude” (mahasukha), que, por
sua vez, é atingida pela retenção da emissão seminal. (ELIADE, 2002,
p. 19, grifo do autor).

No budismo tântrico existe a compreensão de que a suprema dita espiritual


encontra-se, potencialmente, armazenada no sêmen masculino e no óvulo feminino. O
mestre contemporâneo Kalu Rinpoche, emprega o termo tibetano thigle (concentrações
da energia sutil) para se referir à energia sexual. De fato, este conceito merece uma
atenção especial, visto que a má utilização dos mesmos produziria uma desordem
interior, resultando em doenças físicas, emoções perturbadoras, uma mente pouco
inclinada à inspiração e aos sentimentos estéticos mais elevados:

[...] Os tigles estão intimamente misturados às substâncias sexuais,


seja o líquido do esperma (“tigle branco”) do homem, ou o óvulo
(“tigle vermelho”) da mulher. No vajrayana diz-se que se pudéssemos
preservar esses tigles vermelhos e brancos, isto é, permenecer castos,
nasceria em nossa mente uma experiência cada vez mais forte de

76
A escola Sahajiyā ou Sahajayāna é considerada um ramo da tradição Vajrayāna. Muitos mahāsiddhas
(Luipā, Kānhu, Saraha, Tilopa etc.) que serão citados no íten 2.5, pertencem à escola Sahajiyā. Atribui-se
a eles a produção das “canções cifradas” – poesias budistas conhecidas como dohākośa. Para maiores
detalhes sobre as escolas tântricas de Bengala, incluindo a tradição Sahajayāna, consultar DASGUPTA,
1946.
88

felicidade e de alegria. [...] não se deve “danificar” os tigles, perder


substâncias sexuais. (RINPOCHE, 1999, p. 211, grifo do autor).

A felicidade e a alegria, portanto, encontram-se nas forças sexuais, cada vez que
desperdiçamos estas energias, estaremos, ao mesmo tempo, perdendo grandes
oportunidades de avanço espiritual. O sêmen, entendido como fonte de energia sutil, é
uma compreensão doutrinal muito difundida no budismo; a perda desta substância seria
considerada falta grave, de modo que todos os benefícios advindos da prática sexual
seriam perdidos. Destarte, resulta em um tremendo divisor de águas o sexo ensinado
pelo Tantra daquele praticado pelo grande público.

Em seu livro Iniciações Tibetanas, Alexandra David-Néel explica que estas


técnicas sexuais são conhecidas e praticadas pelos místicos e sábios do Tibete:

Certas classes de ocultistas tibetanos ensinam um método de


aprendizagem semifísica, semipsíquica, incluindo práticas singulares
tais como fazer remontar o líquido seminal prestes a escapar durante
as relações sexuais, ou aspirá-lo e reabsorvê-lo quando ejaculado.
(DAVID-NÉEL [s/d], p. 116).

No sexo tântrico, o indivíduo permanece casto, tendo em vista sua “não


ejaculação” durante a prática sexual. Com tais ensinamentos percebemos que o celibato
não pode ser visto como mero convencionalismo, senão como pré-requisito
indispensável à manutenção das forças sutis ligadas às energias sexuais, bem como ao
acesso a elevados níveis de consciência. Sem a conservação do sêmen, as correntes de
energias sutis associdas à energia sexual seriam perdidas, comprometendo
drasticamente o avanço “bioenergético” do praticante.

Na verdade, os estados mais sublimes da consciência estão depositados,


potencialmente, no sêmen. A “clara luz”77, por exemplo, pode ser despertada através do
sexo-yoga, com a condição de que o praticante tântrico preserve a sua “gota sagrada”,
isto é, conservar o sêmen, não desperdiçá-lo. Sobre a relação entre o sêmen e a “clara
luz”, o XIV Dalai Lama, baseado no antigo texto Sacred Words of Manjushri, explica
que:

77
Geshe Kelsang Gyatso define o termo “clara luz” do seguinte modo: “Clara luz é a natureza espontânea
da bem-aventurança, a qual realiza diretamente o vazio.” (GYATSO, 1994, p. 193).
89

[...] existem certos momentos que podemos sentir naturalmente, em


um pequeno nível, a clara luz. Isto pode ocorrer durante o sono,
desmaiado, bocejando ou no clímax sexual [...]. Dentre estes quatro
estados, o mais propício para sentir o nosso verdadeiro potencial é no
intercurso sexual [...]. Embora eu esteja usando um termo ordinário,
isto em nada se assemelha ao ato sexual comum. Refere-se a uma
íntima experiência com a consorte do sexo oposto, por meio da qual as
substâncias mais elevadas são misturadas e pelo poder da meditação o
processo é invertido. Um pré-requisito para tal prática é o cuidado em
não perder o sêmen. De acordo com a explicação do Kalachakra
Tantra, tal emissão é dita como muito perigosa para o praticante.
(DALAI LAMA XIV, 2017, p. 18, tradução nossa).

Desde que o sêmen seja preservado e a mente livre de instintos passionais,


sublimes estados de consciência podem ser atingidos através do sexo-yoga. A absorção
do líquido seminal teria a finalidade de inundar a consciência por meio de forças sutis
extraídas das substâncias sexuais. A citação do Dalai Lama reforça o aspecto
transpessoal da energia sexual, bem como seu caráter emancipador. Portanto, a retenção
do sêmen transcende o formalismo religioso e se insere como condição sine qua non ao
desenvolvimento da anatomia oculta do praticante78.

Não somente o budismo, mas também os tântricos do hinduísmo perceberam a


importância da energia sexual no processo de realização íntima. David Gordon White
(1996), analisando o tantrismo hindu, sustenta que em matéria alquímica, nenhum livro
se compara ao Rasārṇava, mais do que qualquer outra literatura, esta fonte atesta a
natureza altamente cosmopolita da tradição alquímica rasāyana, cujo ponto de apoio
teórico estava baseado justamente nos ensinamentos sexuais do Rasārṇava.

Provavelmente o Rasārṇava foi escrito na Índia ocidental, parece ser, como


muitos dos clássicos alquímicos, a produção de uma tradição bastante homogênea, ainda
que geograficamente difundida; os autores eram, provavelmente, brāhmaṇas cujos
ensinamentos eram transmitidos, indistintamente, para budistas, mulçumanos, jainitas
etc79. White sustenta ainda que o conteúdo deste livro se assemelha muito aos
ensinamentos do grande mahāsiddha Matsyendra80.

78
No terceiro capítulo aprofundaremos a relação entre o sexo-yoga e a anatomia oculta do ser humano.
79
Cf. WHITE, 1996, p. 171.
80
Matsyendra e seu discípulo Gorakṣa são considerados os fundadores do Haṭha Yoga medieval.
90

A seguir, apresentamos uma passagem traduzida por White do Rasārṇava, a qual


demonstra o deus Śiva exortando a qualidade mítico-sexual de rāsa. "Tu, Ó Deusa, és a
mãe de todos os seres, e eu sou o eterno pai, e o que foi gerado da grande união sexual
de nós dois, isto é rasa.” Acreditamos que esta citação do Rasārṇava está diretamente
relacionada aos mistérios do sexo-yoga. Sobre este ponto, David Gordon White explica:

O autor da RA81 considera que a escola alquímica constitui uma


linhagem, uma linha de transmissão (kula) com um ensino próprio. O
néctar da linhagem alquímica (sampradāya) é, como o de outras seitas
tântricas, transmitido através das emissões sexuais femininas
(chamado siddhadravya na RA), ele também prescreve relações
sexuais e mitos erótico-místicos como meio de transformação
alquímica (Com exceção feita para yogins, que são admoestados a
permanecer celibatários na sua preparação do mercúrio). (WHITE,
1996, p. 172, tradução nossa, nota nossa, grifo do autor).

O termo rasa, no contexto alquímico hindu, constitui-se como um pináculo


conceitual da escola rasāyana, porém devemos asseverar que este termo possui
interpretações variadas82. Mircea Eliade (1979) explica que o vocábulo rasa significa
literalmente “sumo” ou “suco”, e não “ouro” como foi exposto por alguns autores; na
verdade, este termo acaba por designar o próprio mercúrio, um fluído vital
extremamente importante para o desenvolvimento espiritual, como nos demonstra
David Gordon White:

O termo polivalente rasa é central para uma compreensão da alquimia


hindu. Desde o tempo dos Vedas, rasa significou "fluido, suco, seiva"
(é um cognato da "resina" inglesa). Com o surgimento da tradição
alquímica, o termo assumiu uma série de usos especializados,
incluindo "elemento essencial" e "mercúrio". (WHITE, 2005, p. 242,
tradução nossa, grifo do autor).

Portanto, a partir do contexto alquímico, o termo sânscrito rasāyana pode ser


traduzido literalmente como a “via ou veículo do mercúrio”, é o equivalente hindu da
palavra alquimia. Georg Feuerstein traz uma explicação aprofundada sobre o conceito
rasa a qual julgamos muito esclarecedora:

81
“RA” refere-se à obra Rasārṇava.
82
Outros significados do termo rasa podem ser consultados em JUNIOR, 2015.
91

[...] Denota fluído que sustenta a vida, e como tal tem sido conhecido
desde tempos Védicos. Os fluidos corporais – notadamente o sêmen e
a secreção vaginal – começaram a ser vistos como substâncias
carregadas de energia que o aspirante no caminho da liberdade e da
imortalidade precisa aproveitar cuidadosamente. (FEUERSTEIN,
1998, p.232, tradução nossa).

A citação acima demonstra claramente que o sêmen masculino e a secreção


feminina representam, simbolicamente, o próprio “mercúrio” ou rasa. Ressaltamos que
a força mercurial está diretamente ligada à “energia sexual”, sem ela não é possível
atingir a libertação da matéria, ou a iluminação espiritual. Em outras palavras, um
indivíduo que perde o sêmen (ou que atinge o espasmo sexual, e nesse caso a mulher
também está incluída) jamais poderia ingressar nos mistérios de rasa. As substâncias
sexuais, no contexto alquímico, representam o próprio “mercúrio”, este teria
participação decisiva no processo de estabilização das energias corporais, pois ele é a
própria “matéria prima”, a força erótica com a qual os grandes mestres trabalharam.

Na prática, consideramos que um indivíduo começou seu “trabalho mercurial


(alquímico) quando deixa de perder substâncias sexuais (sêmen)”, utilizando-as como
força motriz a fim de transformá-las em virtudes da consciência. Um bom trabalho
alquímico é o resultado de uma “transformação psicológica” associada à “transmutação
da energia sexual”; esta integração entre sexo e psiquismo é fundamental, ambos devem
caminhar juntos. A mente dificilmente encontrará passividade com uma energia sexual
em ebulição, um homem abrasado pelo fogo da paixão é incapaz de adquirir
estabilização mental, harmonia interior – esta advém com o pleno domínio do sêmen em
conúbio com a mente.

A tradição alquímica não ignora o poder da energia sexual (tanto masculina


quanto feminina), a qual está disseminada por toda a natureza. De fato, a força sexual é
“o fluído que sustenta a vida”, isto é, uma energia transpessoal, imanente, que, de algum
modo, permeia a existência, dando a ela sustentação e equilíbrio. O tantrismo
transformou a força erótica (mercúrio) em “substâncias de poder”, por meio das quais o
praticante alcançaria um rápido desenvolvimento espiritual:
92

Todos os fluidos, incluindo fluidos vitais em seres humanos, resinas


de plantas, chuva, águas e oblação de sacrifício, todas são
manifestações de rasa. Da mesma forma, desde o início da era
comum, os indianos conheciam o milagre da concepção que ocorre
através da união de fluidos vitais masculinos e femininos, sêmen e
sangue uterino. Com o tantrismo nascente, esses fluidos procriativos
vieram a ser conhecidos como "substâncias de poder" para a adoração
e, finalmente, foram identificados com deuses e deusas, cuja energia
ilimitada era frequentemente retratada como de natureza sexual.
(WHITE, 1996, p. 4, tradução nossa, grifo do autor)

Sendo assim, a força sexual, enquanto fluído vital, converte-se em gerador e


mantenedor da própria existência. David Gordon White, além de ressaltar o poder
criador da energia sexual, agrega ainda características terapêuticas às funções
alquímicas de rasa:

Dentro da ciência médica indiana Āyurveda, o termo empregado para


o prestigioso corpo de técnicas dedicadas à terapia de
rejuvenescimento é rasāyana, o "caminho de rasa", que consiste num
componente importante na aplicação de remédios herbal, herdados em
parte do Atharva Veda. Este mesmo termo, rasāyana, também é usado
pelos Rasa Siddhas para designar o seu "trabalho alquímico em duas
partes", com sua dupla ênfase na transmutação e transubstanciação
corporal. Neste contexto alquímico, rasa é um termo para o fluido do
mercúrio metálico, uma Hierofania mineral da semente vital do deus
fálico Śiva. (WHITE, 1996, p. 13-14, tradução nossa, grifo do autor).

O termo alquimia, na língua sânscrita, equivale, portanto, à palavra Rasāyāna.


Ressaltamos que as práticas alquímicas da escola rasāyana estavam disseminadas por
muitas escolas esotéricas da Índia medieval, grande parte delas atreladas,
principalmente, ao tantrismo hindu e budista. Os antigos siddhas trabalharam
intensamente com o sistema alquímico, alguns pesquisadores chegam a afirmar que o
conhecimento deles tem sua origem no “caminho de rasa”, isto é, na escola rasāyāna,
ou no “veículo do mercúrio”.

O professor indiano Dasgupta, também sustenta que a espiritualidade dos


siddhas tântricos está intimamente atrelada à escola alquímica rasāyāna. “Esta escola
dos siddhas parece estar intimamente associada com a escola indiana Rasāyāna,
sustenta-se ainda que a escola dos siddhas foi originariamente baseada nas teorias e
93

práticas da escola Rasāyāna.” (DASGUPTA, 1950, p. 221, tradução nossa, grifo do


autor).

Ao conectar a linhagem dos siddhas à escola rasāyāna, torna-se inegável o valor


da alquimia para as pretensões hermenêuticas desta tese, pois como veremos no item
2.5, os siddhas são referências espirituais incontestáveis no sistema tântrico budista e
também no hindu; conectá-los à alquimia sexual é maximizar a relevância do sexo-
yoga, inserindo-o numa perspectiva salvacionista extremamante audaciosa quando
comparada à antiga mensagem de negação do sexo defendida pela escola Theravāda.

Ademais, no sistema rasāyāna encontramos outro interessante simbolismo


relacionado ao mercúrio, o qual vale a pena mencionar com vistas ao aprofundamento
teórico desta linhagem. Como já foi exposto acima, o mercúrio é a própria energia
sexual, no entanto, em outros contextos, ele pode representar a “consciência
emancipada”, isto é, uma mente livre dos desejos viciosos do ego. Vejamos a explicação
do Lama Govinda sobre este ponto:

Na linguagem mística da alquimia, o mercúrio era identificado com a


matéria prima [...], que era a essência ou alma do mercúrio, libertada
dos quatro elementos aristotélicos, terra, água, fogo e ar, ou melhor,
das qualidades que estes representam e nos quais o mundo material
aparece para nós [...]. Aquele que realizou isto [consciência
iluminada], realmente teria descoberto a Pedra Filosofal, a joia
preciosa (mani), a matéria prima da mente humana, e mais ainda da
própria faculdade de consciência em qualquer que seja a forma de
vida que ela possa aparecer. Este foi o objetivo real de todos os
grandes alquimistas, eles sabiam que o “mercúrio” representava as
forças criativas da consciência mais elevada, que tinha de ser liberta
dos elementos grosseiros da matéria de maneira a alcançar o estado de
perfeita pureza e radiância, o estado de Iluminação. (GOVINDA,
1995, p. 61-63, grifo do autor, interpolação nossa).

Sendo assim, “fixar” e “purificar” o mercúrio são o mesmo que limpar as nossas
energias vitais: corpo, mente, fluídos sexuais, emoções etc. Sem essa “limpeza
mercurial” o projeto soteriológico alquímico torna-se imposssível, tal como nos mostra
Eliade: “A libertação da alma vital (jîva) encontra-se exposta no sistema mercurial.”
(RASASIDDHANTA apud ELIADE, 1979, p. 99).
94

Reduzir a fluidez mercurial equivale à “imobilidade da consciência”, esta deve


tornar-se “imóvel”, “estável”, uma “consciência-testemunha”, sem qualquer identifição
com a matéria e suas modificações. Trata-se da total negação do pensamento, superando
as oscilações da mente e não se prendendo a elas, sabendo que as mesmas não refletem
a nossa real natureza, são meras distrações conceituais produzidas pelo contato com o
mundo físico.

Portanto, até o presente momento, estudamos dois importantes simbolismos


relacionados ao mercúrio: o primeiro é o seu vínculo com as substâncias sexuais e o
segundo é a sua identificação com a consciência emancipada. Como terceira e última
alegoria do mercúrio, apresentamos a citação de Burckhardt, a qual, de algum modo,
está em sintonia com os dois simbolismos precedentes:

De acordo com o mestre chinês Ko Ch´ang-Kêng, que incorporou a


alquimia ao Budismo Dhyâna (Zen), a ação do mercúrio pode ser
concebida de três modos: de acordo com a primeira concepção, o
mercúrio é o coração, que se faz líquido pela meditação (dhyâna) e
ígneo pelas faíscas do Espírito, enquanto o chumbo, que ele pode
transmutar, corresponde ao corpo. De acordo com a segunda
concepção, o mercúrio é a alma, e o chumbo é a respiração; e segundo
a terceira, o mercúrio é o sangue e o chumbo é o sêmen. Em cada caso
o mercúrio tem o papel de elemento dissolvente e vivificador. Em
última análise, é a substância que “flui” em todas as formas psíquicas
e mentais. Os alquimistas hindus chamam o mercúrio de “sêmen de
Shiva”. Shiva é deus como autor de toda transmutação.
(BURCKHARDT [s.d.], p. 130).

O mercúrio, de acordo com Burckhardt, é o elemento vivificante, não podemos


encará-lo como uma substância rígida encontrada em algum ponto fixo do corpo. Mais
prudente seria compreendê-lo enquanto “elemento virtual”, fluídico, que pode ser
encontrado em diferentes partes do organismo, seja no sangue, sêmen ou no coração. É
uma energia que está na própria psiquê humana, quase sempre está associado a
operações transmutatórias; o “despertar do mercúrio” equivaleria ao início das
transformações psicológicas.

Interessante observar que o mercúrio é o resultado de uma “obra”, ou de um


processo de construção interior. Nesse sentido, liberar o mercúrio é o mesmo que liberar
a consciência. A chave ou o segredo do mercúrio é o reconhecimento da vacuidade
95

inerente a toda realidade. Porém, para alcançarmos tal compreensão devemos, pouco a
pouco, sermos disciplinados com as práticas meditativas e outras técnicas budistas
ligadas à respiração, concentração, alquimia sexual, etc.

2.3 Imortalização do corpo: um produto alquímico

Quando o yogin-tântrico, ou alquimista, após muitos anos de prática, atinge um


grande nível de pureza mental, livrando-se por completo das limitações do ego,
converte-se em um jīvanmukta83, um liberto em vida, “um homem que alcançou a outra
margem”, contemplou a sua eterna liberdade interior e por conseqüência é capaz de
desfrutá-la, tornando-se imune aos efeitos nocivos da ilusão material, tais como: fome,
tempo, velhice, amarguras, riquezas etc.

A escola rasayana está fundamentalmente baseada no ideal do jīvan-


mukta cujo método é a transubstanciação através da ajuda de Rasa ou
elemento químico (geralmente o mercúrio), que por sua vez imortaliza
o corpo [...]. Acredita-se que muitos deuses, demônios, santos e
homens alcançaram o divino corpo imutável com a ajuda de Rasa,
transformaram-se, portanto, em jīvan-mukta. (DASGUPTA, 1946, p.
290, tradução nossa, grifo do autor).

Segundo Mircea Eliade (2012), a liberação (mokṣa) pretendida pela alquimia


confere ao yogin a total desvinculação da dor, do sofrimento material; o jīvanmukta
converte-se em uma “consciência-testemunha”, recolhendo-se e absorvendo-se por
completo na própria substância atemporal, tornando-se, em termos conscientivos, em
um habitante da eternidade incondicionada, onde conceitos bipolares como “vida” e
“morte” são, para ele, essencialmente equânimes, as distinções fenomênicas são meras
aparências que já foram superadas por seus olhos espirituais, os quais lhe garantem a
transcendência da própria transitoriedade e dualidade material. Ainda que o corpo físico

83
O termo jīvanmukta é tradicionalmente associado às escolas do hinduísmo. No contexto budista, não é
comum encontrar referências a esta palavra, contudo no último item deste capítulo, analisamos os
bodhisattvas que “alcançaram a outra margem”, ou seja, homens que também se tornaram liberados da
influência material, recebendo as mesmas características do jīvanmukta hindu. Desta forma, acreditamos
que este termo é perfeitamente aplicável em ambas as tradições (budista e hinduísta). Heinrich Zimmer e
Mircea Eliade também acreditam nessa aproximação conceitual e fazem referência a ela em suas obras.
Cf. ZIMMER, 2015 e ELIADE, 2012.
96

esteja sujeito ao devir e as inevitáveis ações do tempo, a consciência situa-se na


dimensão da eternidade, alcançando, portanto, desde esse ponto de vista, a almejada
imortalidade.

Entretanto, vale ressaltar que, além dos benefícios espirituais advindos pelo
reconhecimento da imortalidade da consciência, alguns alquimistas tântricos lançavam-
se em direção ao próprio corpo físico, com o intuito de imortalizá-lo, transformando-o
radicalmente, desde suas células mais elementares:

Resumindo, podemos dizer que os processos físico-químicos do


rasāyana servem de “veículo” a operações psíquicas e espirituais84. O
“elixir” obtido pela alquimia corresponde à “imortalidade” buscada
pelo Yoga tântrico; do mesmo modo que o discípulo trabalha
diretamente no corpo e na vida psicomental para transformar a carne
em “corpo divino” e libertar o espírito, o alquimista opera na matéria
para convertê-la em “ouro”, isto é, para acelerar seu processo de
maturação, para “consumá-la”. (ELIADE, 2012, p. 235, grifo do
autor).

Os siddhas buscavam a superação do próprio corpo corruptível, no afã de


também conduzi-lo às mesmas regiões incondicionadas da consciência iluminada. O
“corpo divino” ou “corpo de diamante” é um grau extraído de práticas esotéricas
extremamente avançadas, o alquimista deve estar em um nível espiritual
suficientemente elevado para receber esta grande dádiva. Novamente, o poder do
mercúrio torna-se um fator determinate:

Liberação [surge] da gnose (jñána), gnose [surge] a partir da


manutenção das respirações vitais. Portanto, quando há estabilidade, o
mercúrio é absorvido e o corpo é estabilizado. Através do uso do
mercúrio, obtém-se rapidamente um corpo imortal e a concentração da
mente. Quem come mercúrio calcinado (mṛtasūtaka) realmente obtém
conhecimento transcendente e mundano, e seus mantras são eficazes.
(RASĀRṇAVA apud WHITE, 1996, p. 174, tradução nossa, grifo do
autor).

84
Esta tradição da alquimia conta ainda hoje com adeptos na Índia. Cf. C. S. Narayanaswami Aiyar,
Ancient Indian Chemistry and Alchemy of Chemico-philosophical Siddhānta-system of the Indian
Mystics. The Third Oriental Conference, Madras, 1925.
97

A preocupação destes grandes seres deixou de ser apenas a liberação da


“consciência” do ciclo de nascimentos – saṁsāra –, esta deixou de ser a meta suprema,
tornou-se, precisamente, mais “um” obstáculo a ser superado. Agora, o “próprio corpo
deve ser preservado”, mesmo ele deve se tornar divino e imortal, livre das garras do
tempo.

Em seu livro The alchemical body, David Gordon White (1996) apresenta alguns
relatos alquímicos relacionados à longevidade do corpo físico. No primeiro deles, cita
um monge alquimista da Birmânia, da tradição tântrica Zawgyis ou Weikzas cuja
tradição esotérica data do século V d.C, que teria pedido a seus discípulos para resgatar
o corpo de um alquimista que já havia falecido. Diz-se que o corpo do dito alquimista
reluzia como ouro e o consumo do mesmo garantiria a posse de poderes sobrenaturais.
Seus dois discípulos teriam consumido o corpo desenvolvendo poderes extraordinários,
a ponto de um deles conseguir levantar o próprio mosteiro, e colocá-lo de cabeça para
baixo.

No quarto relato, menciona as observações de Marco Polo, no século XIII, que


relata seu encontro com yogins cujo tempo de vida ultrapassaria os duzentos anos de
idade, e a razão para tal longevidade seria a bebida misteriosa que consumiam que
incluía mercúrio, enxofre e água. No quinto relato, semelhante ao de Marco Polo, White
menciona Francois Bernier, um francês católico, que teria se encontrado com yogīs
indianos que consumiam a mesma bebida produzida com mercúrio e que garantiria
saúde e longevidade85.

Decerto existem literaturas medievais que atestam a existência de certas


substâncias físicas produizidas por alquimistas com poderes mágicos, curativos,
terapêuticos etc. – este é o caso do mahāsiddha Vyáli e outros. Contudo, defendemos a
tese de que a energia mais poderosa está contida no sexo. Este é o mercúrio primordial,
a matéria prima que possibilita a posse dos poderes ocultos, das curas milagrosas, bem
como da própria produção de poções mágicas etc.

Com base em nossos estudos, concluímos que sem o trabalho de transmutação


da energial sexual, torna-se impossível a libertação espiritual e o completo domínio das
faculdades ocultas. Mircea Eliade (2012) corrobora com os apontamentos de White

85
Cf. WHITE, 1996, p. 48-51.
98

apresentando em sua obra Yoga: Imortalidade e Liberdade o caso do mestre tântrico


Vāgīśvarakirti; este grande adepto teria conseguido o elixir da longa vida, e com o seu
imenso poder conseguiu rejuvenecer a muitos indivíduos com idade avançada. Talvez,
esta seria a última grande ambição do sistema alquímico: “transformar o homem,
fisicamente falando, em um ser imortal”!

Encontramos no budismo, no hinduísmo e também no taoísmo referências a


mestres realizados, que conseguiram imortalizar o corpo físico e viver indefinidamente,
sem envelhecer, permanecendo com um aspecto eternamente jovial; essas façanhas
extrapolam a lógica e desafiam qualquer tentativa de uma compreensão racional. Não se
trata aqui de uma pré-química ou de uma proto-ciência experimental, estamos falando
de técnicas arcaicas, pan-indianas, operando decisivamente sobre a consciência dos seus
praticantes, cuja meta principal seria a libertação do julgo material; o verdadeiro
alquimista é amo da vida, senhor dos processos fisiológicos, da natureza material e de
sua própria consciência.

De todo modo, o que realmente importa na prática alquímica é a disciplina no


sādhana. Sem a depuração interior (superação do ego), e a “preservação do sêmen” não
existe possibilidade de desenvolvimento alquímico. Por isso, somente o “homem
iluminado”, aquele que se exercitou exemplarmente nas duras práticas espirituais, teria
condições de alcançar a excelência da alquimia e o meritório corpo divino ou corpo de
diamante, como sugere Maria Lúcia Abaurre Gnerre:

Este ideal do corpo de diamante teve seu auge no culto dos Sidhas,
que floresceu entre os séculos XVII e XVIII. O nome sidha significa
realizado ou perfeito, e refere-se ao adepto do tantra que alcançou a
iluminação. A partir deste culto ao corpo dos Sidhas, floresceu o
Hatha Yoga. As escolas mais importantes deste movimento foram a
dos Natas (ao norte do subcontinente indiano, perto de Bengala) e dos
Maheshavaras, do sul da Índia. O movimento dos Sidhas, no entanto,
transcendeu o hinduísmo, e há referências aos grandes mestres desta
tradição nos tantras budistas. Dentre os hindus, o grande mestre
tântrico desta tradição dos Sidhas foi Goraksha-Nāta e, entre os
budistas, o famoso Nagarjuna, que antecede Milarepa. (GNERRE,
2010, p. 121).

O “corpo de diamante” é a própria imortalidade! Sua aquisição envolve o


imbricamento habilidoso de uma grande variedade de técnicas yóguicas. Sobre a posse
99

da imortalidade, Mircea Eliade menciona a obra Sarva-darśana-saṃgraha: “O ‘corpo


glorioso’ foi obtido por grande número de jīvan-mukta, entre os quais o texto cita
Carvati, Kapila, Guru Vyāli, Kāpālan e Kandalāyana.” (ELIADE, 2012, p. 234, grifo do
autor).

O nascimento de um imortal é uma construção híbrida, vetores variados são


utilizados – desde a mais rústica e penosa técnica corporal até o sutil e volátil domínio
dos pensamentos –. O sábio uso da respiração, a transmutação sexual, a disciplina
psicológica e corporal, todos esses elementos compõe o surgimento de um siddha
imortalizado.

O “ouro”, tão comentado pelos textos alquímicos, sempre esteve vinculado a


essa ambição, simbolicamente falando, transformar o corpo em ouro é o mesmo que
divinizá-lo, ou imortalizá-lo, o simbolismo do ouro também está ligado ao “espírito
puro”, livre de qualquer condicionamento material, incluindo as ações do devir:

[...] Pois na Índia, como em muitos lugares, “o ouro é a imortalidade”,


[...] é o único metal perfeito, solar; em conseqüência, seu simbolismo
une-se ao simbolismo do Espírito, da Liberdade e da autonomia
espiritual. Esperava-se prolongar indefinidamente a vida absorvendo-
se ouro. Entretanto, segundo o tratado alquímico
Rasaratnāsamuccaya, antes de poder absorvê-lo era necessário
purificá-lo e “fixá-lo” com mercúrio. (ELIADE, 2012, p. 234, grifo do
autor).

Portanto, o Tantra transforma o corpo no campo principal à manifestação do


sagrado; a transpessoalidade da consciência sofre uma dilatadora degradação – integra-
se na dimensão profana da existência – aloja-se no ambiente fluídico do devir, as
propriedades eternas da “consciência iluminada” iniciam sua “marcha santa”, fluem em
direção à substância corporal, reverberam desde as células mais elementares do corpo
físico, nutrindo-as com o sabor da eternidade, redimensionam as faculdades do corpo,
imergindo-as no seleto espaço da atemporalidade – em outras palavras: o corpo
divinizou-se, a liberação foi atingida, surge um imortal.
100

2.4 O Haṭha-Yoga e o maithuna

A mescla entre sexualidade e espiritualidade não é uma exclusividade dos


siddhas tântricos budistas, também encontramos as mesmas aspirações no Haṭha-Yoga
medieval. Por este motivo esta escola se torna particularmente relevante para o nosso
trabalho. Mais do que simples exercícios corporais, através de sua literatura, o Haṭha-
Yoga também demonstra uma preocupação com o sêmen, o qual estaria diretamente
relacionado à aquisição do “corpo de diamante”86. Acreditamos que esta tradição incluiu
o rito sagrado do maithuna em suas práticas regulares, utilizando-o com vistas ao
aperfeiçoamento espiritual, bem como para a aquisição da própria imortalidade do corpo
físico.

O yoga pós-clássico (séc. VII-XII d.C.) impõe-se como uma “mística-


terapêutica”: prometendo aos seus adeptos, saúde física, beleza, cura de doenças
degenerativas, facilidade de concentração e por fim a tão almejada iluminação. Com tais
características, torna-se inegável a influência do tantrismo nas práticas do Haṭha-Yoga.

A pesquisadora Maria Lúcia Abaurre Gnerre adverte que durante o período do


yoga pós-clássico surgiram muitas escolas hinduístas, destacando-se, todavia, mais do
que qualquer outra, a tradição do Haṭha-Yoga. Desde suas origens, esta escola sempre
esteve atrelada aos ensinamentos tântricos, talvez por este motivo tenha se tornado a
linhagem mais proeminente deste período:

[...] A mais importante das escolas do Yoga pós-clássico, que abarca


um período compreendido entre os séculos VII e XVII d.C., é o
Hatha-Yoga. Trata-se de uma linha que representa as escolas ligadas à
tradição do tantrismo que criam o “cultivo do corpo adamantino”, e
uma variedade de posturas que tanto fascinam os praticantes da
atualidade. (GNERRE, 2010, p. 114).

Com o Haṭha-Yoga, o hinduísmo medieval vê o ressurgimento do “milagroso”,


do “êxtase místico”, do trabalho com as energias sutis, incluindo as sexuais. Alguns
pesquisadores sustetam a possível influência do budismo tântrico no pensamento de
Goraksha, considerado o fundador do Haṭha-Yoga:

86
O “corpo de diamante” se refere à aquisição da própria imortalidade.
101

É possível que Goraksha tenha sido inicialmente um religioso budista


da tradição Vajrayana87, conectado com o shivaísmo por meio de
Matsyendranath, seu mestre. Goraksha foi um asceta que estabeleceu
uma síntese entre o shivaísmo Pashupata, o tantrismo e a tradição
Vajrayana budista (tântrica). Além disso, a ele é atribuída a autoria de
importantes tratados do Haṭha-Yoga, ponto de partida de toda essa
tradição. Fundou numerosos monastérios em todo o subcontinente
indiano. (SOUTO, 2009, p. 22, grifo do autor).

Mircea Eliade também acredita nessa aproximação doutrinal entre o Haṭha-Yoga


e o budismo tântrico, o autor alerta que muitos conceitos da Escola budista Mādhyamika
podem ser encontrados na obra Haṭha-Yoga-pradīpikā88. De fato, o tantrismo (seja ele
budista ou hindu) insere-se como o substrato teórico da tradição do Haṭha-Yoga, haja
vista a inclusão de dois dos seus principais representantes na lista budista dos 84
mahāsiddhas89: Goraksha Nāta (suposto fundador), e seu guru, Matsiendra Nāta,
mestres que teriam vivido por volta da primeira metade do século X d..C. Além destes,
encontramos outros dois representantes da tradição nātha (como também são
conhecidos os seguidores desta linhagem) na seleta lista dos 84 mahāsiddhas:

Os nātha – e em primeiro lugar Matsyendranāth, Gorakhnāth, Carpati,


Kāpāla – figuram igualmenente nas listas dos 84 siddha. Podemos,
portanto, constatar que o tantrismo Sahajiyā – seja hinduísta ou
budista –, a alquimia (Nāgārjuna, Carpati), o Haṭha-Yoga (Goranath) e
os Kāpālika são interdependentes; seus representantes encontram-se
tanto nas listas dos nove nata como nas dos 84 siddha. (ELIADE,
2012, p. 252, grifo do autor).

O conteúdo do Haṭha-Yoga está perfeitamente exposto, principalemente, em 4


textos, a saber: Haṭha-Yoga-pradīpikā, Gheraṇḍa-saṃhitā, Gorakṣa Śataka e Śiva-
saṃhitā. Vamos nos deter apenas no primeiro da lista – Haṭha-Yoga-pradīpikā – o qual
julgamos essencial para as pretensões deste capítulo.

87
Ver BRIGGS, 1938.
88
Cf. ELIADE, 2012, p. 194.
89
A suposta aparição literária de Matsiendra Nāta e Goraksha Nāta na lista dos 84 mahasiddhas pode ser
consultada em DOWMAN, 1985. Não negamos que possa haver objeções, principalmente à Matsiendra,
pois ele aparece com outro nome, Minapa, na lista mencionada. Porém, Keith Dowman considera Minapa
o próprio Matsiendra, visto que existe uma enorme semelhança entre a história deste personagem e o
precursor do Haṭha-Yoga. Portanto, acreditamos, assim como Dowman, que Minapa e Matsiendra são as
mesmas pessoas.
102

Logo nos primeiros parágrafos desta obra já encontramos uma longa lista de
grandes mestres intitulados mahāsiddhas (confirmando nossa posição de que este termo
se alastra para além do contexto budista), cuja origem remonta ao próprio deus Śiva –
senhor do samādhi e dos poderes místicos –. Vejamos como o texto se refere a eles:
“Estes e outros dotados de grande perfeição [MAHĀSIDDHĀs], pelo poder do
HATHA-YOGA romperam o bastão do tempo e vagueiam pelo universo.” (HATHA-
YOGA-PRADĪPIKĀ, I, 9; MARTINS, 2014, p. 276).

Agora, passemos ao exame das características alquímicas (relacionadas ao sexo-


yoga), fator determinante que torna esta tradição particularmente inclinada ao tantrismo:
“Se, na relação sexual [MEHANA], praticar puxar para cima [ŪRDHVĀKUÑCANA],
de forma interrompida ou completa, um homem [puruṣa] ou mesmo uma mulher
[NĀRĪ] pode atingir a perfeição em VAJROLĪ.” (HATHA-YOGA-PRADĪPIKĀ, III, 85;
MARTINS, 2014, p. 408-409). Deve-se salientar que o VAJROLĪ é uma das muitas
posturas yóguicas ensinadas na obra Haṭha-Yoga-pradīpikā, possui íntima relação com
o sexo-yoga. De acordo com a citação, a perfeição do sādhana está diretamente
relacionada ao controle da energia sexual durante o coito alquímico. Mais do que a
simples retenção seminal, o yogin necessita vencer as baixas paixões, superar a lascívia,
transcender a mente carnal e perceber o sexo enquanto ato sacramental, místico, muito
além dos apegos luxuriosos dos sentidos.

A seguir, apresentaremos o cuidadoso comentário do pesquisador Roberto de


Andrade Martins que traz esclarecementos sobre a prática da postura VAJROLĪ:

A descrição de VAJROLĪ-MUDRĀ indica que se trata de uma prática


sexual; mas há interpretações segundo as quais a descrição seria
apenas simbólica, e que ela não utiliza relações sexuais. O nome
VAJROLĪ vem de VAJRA, que significa uma coisa poderosa, como
um raio, ou uma arma. Pode também indicar diamante, uma coluna ou
pilar, e representa simbolicamente o pênis. (MARTINS, 2014, p. 407-
408).

Deve-se salientar que o vajra é um símbolo muito significativo para a tradição


budista tibetana e sua inclusão nos textos do yoga hindu somente reforçam as inúmeras
simetrias iconográficas e imagéticas entre essas duas tradições orientais. Interpretar o
vajra como símbolo fálico é muito oportuno, pois demonstra claramente a força oculta
103

por detrás da energia sexual. A própria palavra Haṭha expressa a importância das
polaridades, é interpretada por muitos autores como a união do Sol e da Lua, uma
amálgama cosmogônica: Śiva–Śakti (masculino-feminino), princípios fundamentais da
existência cuja fusão representaria em nível macrocósmico a harmonia universal e no
nível microcósmico, a própria iliminação90.

Vejamos outra descrição ainda mais detalhada sobre o sexo-yoga: “Pela prática,
ele deve recuperar para cima a gota [BINDU] que caiu na vagina [BHAGA] de uma
mulher [NĀRĪ]. E quando a sua gota [BINDU] começa a se mover, ele deve preservá-la
puxando-a para cima.” (HATHA-YOGA-PRADĪPIKĀ, III, 87; MARTINS, 2014, p. 410).
“Gota” ou Bindu é a própria energia sexual masculina – sêmen –, o qual tem papel
decisivo no sucesso das técnicas alquímicas, uma vez desperdiçado, os benefícios
espirituais estariam altamente comprometidos, a ideia é impulsionar essa energia
criadora até o topo da cabeça, despertando as faculdades ocultas dos cakras:

KHECARĪ MUDRĀ pode ser utilizado em práticas sexuais, evitando


a ejaculação, e através de YONI-MUDRĀ (que vai ser descrito mais
adiante) é possível reabsorver o sêmen. Mas essas práticas têm
também outro significado. BINDU pode significar o sêmen físico
(ŚUKRA ou BĪJA), mas tamém pode significar a energia criadora que
existe no CAKRA superior. Pelo desejo sexual, essa energia superior
desce para o CAKRA da base (MŪLĀDHĀRA), produzindo
manifestações mais grosseiras; mas ela pode ser levada novamente
para cima. A palavra YONI, por sua vez, pode representar tanto o
órgão sexual feminino (vagina, útero, vulva) como a parte do corpo
que inclui o ânus e os órgãos genitais do homem ou da mulher,
indifentemente. (MARTINS, 2014, p. 386)

Ora, quando falamos em alquimia, o sêmen é especialmente citado. Em


parágrafos anteriores já mencionamos, a força sutil que ele carrega e novamente nos
deparamos com técnicas yóguicas que estimulam o movimento dessa energia sexual
pelo corpo humano. Torna-se evidente a relevância do sêmen no caminho espiritual,
Georg Feuerstein (1998) reforça a nossa tese afirmando que algumas das posturas
ensinadas no hatha-yoga-pradīpikā servem para despertar o fogo serpentino –

90
Aos leitores que quiserem aprofundar o conhecimento sobre a origem e os ensinamentos da Haṭha-
Yoga recomendamos a obra de MARTINS, Roberto Andrade. Uma luz sobre o Haṭha-Yoga. São Paulo:
Shri Yoga Devi, 2014.
104

Kuṇḍalinī91 – que por sua vez, está intimamente relacionado com as forças sexuais. Do
mesmo modo, Mircea Eliade enfatiza o poder salvacionista armazenado místicamente
no interior da serpente sagrada (Kuṇḍalinī):

O hatha-yoga-pradīpikā, III, 9, apresenta-a como “Kuṭilāngī (a do


corpo retorcido), Kuṇḍalinī, Bhujangī (serpente fêmea), Śakti, Īśvarī,
Kuṇḍalī, Arundhatī, termos todos equivalentes. Da mesma forma que
se abre uma porta com uma chave, o yogin abre a porta da libertação
(mukti) libertando a Kuṇḍalinī mediante o Haṭha-Yoga.” (ELIADE,
2012, p. 205, grifo do autor).

Conforme Martins (2014), além do despertar do fogo serpentino – Kuṇḍalinī – a


imortalidade também é prometida na obra hatha-yoga-pradīpikā, que através de uma
inusitada posição yóguica chamada khecarī mudrā, seria capaz de conferir alguns
poderes siddhis, tais como: imunidade a doenças, mulheres perfeitas, controle do sêmen,
e finalmente a “imortalidade” do corpo.

Com relação à posse da imortalidade, devemos ressaltar que o sêmen está


diretamente relacionado com esta ambição. A seguir, apresentaremos outra passagem do
hatha-yoga-pradīpikā a qual reforça esta ligação entre a aquisição do corpo imortal e a
preservação do sêmen: “Aquele que conhece o YOGA [YOGAVIT] preserva sua gota
[BINDU] e atinge a vitória. A saída da gota dá a morte, a retenção dá a vida.” (HATHA-
YOGA-PRADĪPIKĀ, III, 88; MARTINS, 2014, p. 411).

Portanto, concluímos que a energia sexual permeia muitos vetores da


espiritualidade indiana, não pode ser encarada apenas como uma espécie de moralismo
ortodoxo, como vimos, transcende isso, sua relevância é decisivamente confirmada por
sua utilização no processo de imortalização do corpo físico. Na verdade, o trabalho com
as forças sexuais busca sutilizar o corpo material grosseiro, introduzindo-o em
dimensões suprasensíveis.

Maria Lúcia Abaurre Gnerre (2010) esclarece que todas as linhas do pensamento
tântrico esotérico, incluindo o Haṭha yoga, partem dos sentidos físicos em direção às
realidades metafísicas, que estão além da esfera tridimensional:

91
No terceiro capítulo este tema foi abordado com mais profundidade.
105

Todas as escolas do pensamento tântrico esotérico partem de uma


premissa comum: os sentidos corpóreos percebem uma fatia
minúscula de um mundo muito maior. Existem outros planos de
existência mais sutis, que são compostos de outras ondas ou
frequências vibracionais. São diferentes aspectos de um mesmo
cosmos que vibra em diferentes frequências. A partir desta
constatação, o tantra começa um trabalho com os corpos sutis que é o
fundamento da Hatha-yoga. (GNERRE, 2010, p. 116).

Tal como foi mencionado pela autora, o fundamento do Haṭha-yoga reside na


própria transcendência da matéria sensível. Trata-se de um método complexo, porém
muito eficiente no tocante ao despertar das faculdades internas do ser humano. Contudo,
não podemos nos esquecer de que o aperfeiçoamento do yogin, depende em grande
medida, da sua disciplina sexual e mental. Todo esse conjunto é necessário para o
avanço interior do praticante.

Ao concluirmos esta pequena introdução sobre a tradição do Haṭha-yoga,


percebemos que, assim como outras escolas do Tantra, esta linhagem reforça a nossa
hipótese de que a iluminação espiritual, o completo despertar e todas as suas faculdades
inerentes, incluindo a imortalidade, não são possíveis de serem atingidos sem a prática
da transmutação sexual. “Transmutar” não é uma exclusividade destinada apenas aos
praticantes do sexo-yoga. Os celibatários tântricos também transmutam, porém ao invés
de utilizarem uma consorte física, restringem-se ao âmbito da imaginação, vizualizando
a si mesmos ou divindades específicas em conexão sexual, ao mesmo tempo em que
realizam mantralizações e respirações rítmicas92.

De acordo com nossos estudos, notamos que o desenvolvimento interior é


possível, “até certo ponto”, sem a retenção do sêmen, isto é, qualquer buscador pode
obter grandes méritos com a prática da caridade, do altruísmo, da meditação etc. Com
esses princípios morais, torna-se totalmente possível, dentro de certo nível, o
florescimento da espiritualidade. Entretanto, se um praticante busca a total libertação do
ego, a suprema realização, isto é, alcançar “a outra margem”, então, inevitavelmente
deverá transmutar suas energias sexuais, não poderá mais utilizá-las com finalidades
licenciosas, senão unicamente para fins esotéricos, de modo que a “preservação do
sêmen”, nesse contexto, torna-se condição sine qua non para o triunfo do praticante.

92
Sobre a transmutação para solteiros ou celibatários, ver capítulo 3 (item 3.1).
106

De fato, em determinado momento da jornada, o buscador deverá escolher entre


dois caminhos bem definidos: o celibato ou o sexo-yoga. Em ambos os casos a energia
sexual é transmutada e, portanto, abre-se a possibilidade de um rico florescimento
interior.

2.5 A relação entre os 84 mahāsiddhas e o sexo-yoga

Inicia-se a partir do século VIII d.C, um vigoroso movimento espiritual que


marcará definitivamente a história da Índia e do próprio budismo. Neste período,
grandes yogīs – mais conhecidos como mahāsiddhas – começam a realizar façanhas e
seus prodígios passam a ser conhecidos e admirados não apenas por praticantes
budistas, senão por seguidores de outras religiões, leigos, reis, ricos comerciantes etc.

O motivo da inclusão dos mahāsiddhas neste capítulo é fortalecer a hipótese de


que o sexo-yoga ou maithuna configura-se como uma técnica altamente relevante à
proposta salvífica do Tantra. Ora, ao indicarmos que alguns mahāsiddhas praticaram
alquimia sexual estaremos ao mesmo tempo demonstrando a força sutil contida no sexo,
pois por meio desta técnica, grandes seres, verdadeiros homens-deuses, atingiram os
mais altos cumes da espiritualidade budista.

Keith Dowman, referindo-se à linhagem dos siddhas, comenta: “todos eles


alcançaram a realização da budeidade. Esses mestres eram chamados mahāsiddhas –
grandes adeptos – viveram na índia entre os séculos VIII e XII.” (DOWMAN, 1985,
p.11, tradução nossa).

Acreditando em seu potencial ilimitado, os siddhas cultivaram através das


técnicas yóguicas, amplo domínio sobre a mente, o corpo e os elementos; o céu e a
terra, conforme seus desejos, eram igualmente tocados por seus corpos, os cumes das
montanhas e as regiões atmosféricas eram visitados sem impedimentos físicos, pois
transferiam-se de um lugar a outro como num passe de mágica. “A conclusão
esmagadora destas avaliações contraditórias e confusas é que os siddhas budistas eram
santos indeterminados que ocupavam algum espaço indefinido em algum tempo vago.”
(DAVIDSON, 2002, p. 170, tradução nossa).
107

David Gordon White (1996) sustenta que esta constelação de homens perfeitos
foi cultuada por inúmeras tradições esotéricas e até mesmo ortodoxas da Índia medieval:
“e assim foi que durante toda a Idade Média indiana, um crescente acervo dos Siddhas
veio a ser compartilhado, junto a um corpo crescente de lendas hindus, budistas e
jainistas.” (WHITE, 1996, p. 57, tradução nossa).

Os poderes miraculosos atribuídos aos mahāsiddhas são o resultado das técnicas


meditativas yóguicas, estudadas desde a época de Siddharta Gautama, integravam “as
cinco classes de Alta Ciência (Abhijñā)”, mencionadas nos antigos sutras budistas, cuja
classificação segue a seguinte ordem: 1 – poderes (siddhi); 2 – olho divino
(divyacakśus); 3 – audição divina (divyaśrotra); 4 – conhecimento do pensamento
alheio (paracittajñāna); 5 – lembrança de existências anteriores
(pūrvanirvāsānusmṛti).93 A seguir apresentamos, de acordo com os sutras, como o Buda
Shakyamuni falava sobre tais ensimentos:

Com seu coração sereno, tornado puro, translúcido, destituído de mal,


pronto para agir, firme e imperturbável, ele (o bhikku) aplica e inclina
seu espírito sobre as diferentes formas do poder maravilhoso. Ele
usufrui desse poder sob suas variadas formas; sendo um, torna-se
muitos; sendo muitos, torna-se um; faz-se visível ou invisível,
atravessa sem dificuldade uma parede, uma muralha, uma colina,
como se fossem de ar; penetra de alto a baixo a terra sólida, como
através de água; caminha sobre as águas, sem afundar, como sobre a
terra firme; viaja, as pernas cruzadas e dobradas, pelos céus, como os
pássaros com asas [...]. Com uma clara e celestial audição, que
sobrepuja a audição humana, ele ouve os sons humanos e celestiais,
estejam perto ou longe. [...]. Penetra com seu próprio coração nos
corações dos outros seres, dos outros homens, ele os conhece. [...]
Dirige e inclina sua inteligência em direção ao conhecimento da
memória de suas existências precedentes. (Sāmañña Phala Sutta, 87 e
ss.; Dīgha Nikāya, I, 78 e ss. apud ELIADE, 2012, p. 154).

O movimento mahāsiddha configura-se como opositor às disputas conceituais,


muito comuns na escolástica budista medieval, não atribuindo qualquer relevância a tais
estudos. Simpáticos ao moralismo ascético, porém mordazes com as ciladas teóricas da
tradição monástica, buscam uma “via direta” à autêntica realização interior. Para eles, o

93
Vale ressaltar que outros autores preferem mencionar não cinco, mas seis classes de poderes místicos.
O próprio Eliade menciona, posteriormente, uma sexta e última perfeição (lokuttara), que corresponde à
extinção de todas as impurezas da mente. Cf. ELIADE, 2012, p. 154-156.
108

labirinto das teorias alimenta o intelecto com fórmulas incapazes de garantir a aquisição
do autodomínio, da mente pacificada; a individualidade e a intrepidez são suas marcas
indeléveis, como podemos observar na citação a seguir:

Os siddhas, se pode supor, não se preocupavam com a lealdade de


qualquer espécie, preferindo a existência desembaraçada de um
mundo psíquico em que os sistemas rituais, as regras sociais, as
preocupações de linhagem, a continuidade das escrituras e a outra
parafernália do budismo institucional foram simplesmente descartados
pela libertação pessoal. Desnudos ao longo de seus próprios caminhos,
dedicados unicamente a suas próprias experiências subjetivas, os
siddhas - nesse argumento - representavam uma pureza de expressão
religiosa desprovida de disputas eruditas escolares ou legalistas, que
era a obsessão dos grandes mosteiros do período medieval.
(DAVIDSON, 2002, p. 169, tradução nossa).

Impulsionados pelas “coraçonadas do dharma”, agiam enigmaticamente, a


inspiração espiritual era o guia de suas ações, por isso a tradição religiosa (aqui se insere
principalmente a escola budista Theravāda e certas seitas ortodoxas do hinduísmo)
excessivamente exegéticas e apegadas ao moralismo conservador, dificilmente
compreenderão a incomum dinâmica desses mestres.

A fama não convencional dos siddhas se extendeu para além dos limites
indianos, alcançando a China, o Nepal e também o Tibete, como nos mostra David
Snellgrove:

Para os tibetanos, eles representam a primeira transmissão oculta [...],


possuem muitas linhas de sucessão e seus ensinamentos eram
secretamente transmitidos, somente de mestre para discípulo [...].
Alguns deles foram monges, até mesmo abades e nos últimos
momentos do budismo na Índia, concederam a relação entre monges e
yoginis [...]. (SNELLGROVE, 1957, p. 86, tradução nossa).

Corroborando com os apontamentos de Snellgrove, Roger R. Jackson, em seu


livro Tantric Treasures: Three Collections of Mystical Verse from Buddhist India,
afirma que a tradição dos mahāsiddhas ganhou mais proeminência na Índia, no Nepal e
no Tibete, entretanto muitos outros países da Ásia, também foram influenciados por
seus ensinamentos:
109

Esses homens e mulheres extraordinários são conhecidos


coletivamente como mahāsiddhas (grandes adeptos ou grandes
perfeitos, "siddhas" para abreviar). Através de suas canções
compostas, das instruções que deixaram e das histórias a eles
atribuídas, influenciaram profundamente as formas religiosas e a
cultura literária em vários países asiáticos, especialmente a Índia, o
Nepal e o Tibete. (JACKSON, 2004, p. 4, tradução nossa).

Segundo David Gordon White (1996, p. 57, tradução nossa) “o termo Siddha é
ambíguo, uma vez que um grande número de escolas, seitas e tradições hindus e
budistas têm sido identificados por eles próprios ou por outros (retrospectivamente)
desde o período de Gupta.” O autor observa que a palavra tanto no contexto hindu
quanto budista, em seu sentido originário, referia-se aos semideuses, representavam
uma horda de seres divinos (ninfas, magos, protetores, músicos celestes etc.), ainda não
estavam dirigidas aos homens. Contudo, gradualmente, o termo ganhou elasticidade e
abarcou também aos seres humanos, cujas faculdades internas também poderiam ser
desenvolvidas do mesmo modo que os deuses.

Ainda sobre a etimologia do termo, Georg Feuerstein explica que da raiz sidh (“a
ser realizado”), derivam as palavra siddhi (“realização” ou “perfeição”) e siddha
(“aquele que é realizado” / “perfeito”)94. Portanto, a palavra sânscrita mahāsidha pode
ser traduzida como o “grande perfeito” ou o “grande realizado”, já que, como sabemos,
o termo mahā significa “grande”.

Mircea Eliade nos lembra que o número 84, atribuído ao movimento


mahāsiddha, possui uma conotação simbólica, jamais deveria ser interpretado de um
modo literal. Vejamos suas observações sobre este ponto:

Lembremos apenas que todos os yogīs que atingiram a “perfeição”


podiam receber o nome de siddha, mas o fato de este termo estar
associado ao do “poder miraculoso” (siddhi) indica que se tratava,
antes de mais nada, de uma “perfeição mágica” [...]. O número 84 não
responde a nenhuma realidade histórica; é um número místico,
presente em todas as tradições indianas, tanto hinduístas como
budistas, jainistas [...] expressa provavelmente a plenitude, a
totalidade. (ELIADE, 2012, p. 252).

94
Cf. FEUERSTEIN, 1998, p. 112.
110

Portanto, siddha é um termo aplicável a qualquer indivíduo que alcançou a


completa iluminação ou perfeição. A “perfeição” budista é o resultado das práticas
espirituais, que no caso específico de algumas linhas tântricas, inclui o próprio
maithuna, e uma aguda disciplina física e mental.

A história dos mahāsidhas está intimamente conectada com a tradição tântrica-


alquímica. Em sua obra Masters of Mahāmudrā: Songs and Histories of the Eighty-Four
Buddhist Siddhas (1985), Keith Dowman relata a lendária história sobre a origem da
Guhyasamāja-tantra95 – obra considerada o rei de todos os tantras – e sua íntima
relação com o famoso Rei Indrabhūti96, um dos oitenta e quatro mahāsidhas:

É relatado que a partir do décimo terceiro andar do seu palácio, o Rei


Indrabhūti observou um estranho vôo de radiantes criaturas voando
pelo céu e informou que esses seres eram arhats, convidou quinhentos
santos a desfrutar. Ele lhes pediu instruções, mas ficou desapontado
quando foi incitado a abandonar o prazer sensual. Ele queria uma
maneira de obter a Budeidade sem renunciar aos sentidos e as
mulheres. Os arhats finalmente lhe entregaram as instruções sobre a
Guhyasamaja-tantra, o primeiro tantra a ser revelado, um pai-tantra,
oriundo de uma manifestação divina, ou do próprio Buda.
(DOWMAN, 1985, p. 232, tradução nossa).

Keith Dowman prossegue em suas análises exaltando a relevância do rei


Indrabhūti, que, segundo a tradição, seria o guru de importantes adeptos tântricos, como
é o caso de Viśukalpa, mestre que teria ensinado a Saraha97, as fórmulas secretas da
Guhyasamāja-tantra; também teria sido o preceptor do mestre de Padmasambhava –
Dhanarakiṣta. Com tais informações, torna-se inegável a contribuição de Indrabhūti para
a disseminação da tradição tântrica.

Shri Dharmakirti (2002) reforça o posicionamento de Dowman afirmando em


seu livro Mahayana Tantra: An Introduction, que Indrabhūti é considerado o protetor da
linhagem tântrica, pois o próprio Buda, na forma de Vajradhara, teria exposto a ele, pela

95
Sobre a origem literária da Guhyasamāja-tantra consultar a página 53.
96
Fontes chinesas atestam que o rei Indrabhūti viveu durante o século VII d.C. Porém, Keith Dowman
acredita que o monarca teria vivido em séculos posteriores. Cf. DOWMAN, 1985, p. 232. De todo modo,
mesmo com a inevitável margem de erro, acreditamos que sua existência se deu entre o século VII e XII
d.C.
97
Mestre e iniciador de uma importante linhagem da tradição siddha: Śavaripa, Lūipa, ḍeṅgipa,
Vajraghaṇṭa, Kambala, Jālandhara, Kṛṣṇācārya, Vijayapāda, Tilopa, etc.
111

primeria vez, os ensinamentos da Guhyasamāja-tantra. Analogamente, Kalu Rinpoche


também acredita na transmissão mística dos tantras através da divindade Vajradhara:

Para revelar os tantras, o Buddha tomou a forma de Vajradhara (tib.


Dorje Chang), cujo nome significa “Aquele que segura o vajra”.
Vajra, que comporta a ideia de estabilidade e indestrutibilidade,
refere-se à realização da vacuidade, indestrutível por natureza Dhara
(“Aquele que segura”) significa que o Buddha possui completamente
essa realização. Vajra-dhara é representado, tendo nas mãos um sino,
símbolo do conhecimento realizando a vacuidade, e um vajra, símbolo
dos meios hábeis, utilizados para ajudar os próprios seres a realizarem
a vacuidade. Por isso ele é também chamado “União do conhecimento
e dos meios”. (RINPOCHE, 1999, p. 312).

Graças a tais preceitos tântricos, Indrabhūti foi capaz de realizar façanhas, uma
delas foi conferir liberação espiritual a todos os cidadãos de seu reino. Diz-se que todos
os habitantes da cidade alcançaram o “corpo de arco-íris”98 e deixaram este plano. Após
esse incidente a cidade ficou desértica e foi coberta por um lago. Porém no centro desse
lago construi-se misticamente uma ilha mágica cujo nome é “Gagan ganj”, que está sob
a proteção espiritual das Dakīnīs e guardariam os textos tântricos que o próprio rei
Indrabhūti teria utilizado99.

Em Gagan ganj estariam guardados textos esotéricos de altíssimo valor


espiritual, contudo somente seres iluminados seriam capazes de acessá-los. Shri
Dharmakirti (2002) sustenta que muitos mestres tântricos da linhagem siddha, outros da
linhagem nāga, em sonhos ou visões meditativas, receberam o privilégio de entrar nessa
biblioteca sagrada e beber dessa fonte inesgotável de conhecimento tântrico.

A relação dos Mahāsiddhas com os textos tântricos abarca importantes tratados,


tais como: Cakraśaṁvara-tantra, Hevajra-tantra e kālachakra-tantra. Em nossas
pesquisas constatamos que em grande parte das narrativas sobre os oitenta e quatro
mahāsiddhas, os sutras quase nunca aparecem enquanto argumentos de autoridade, mas,
ao contrário, a Guhyasamāja e o Hevajra-tantra, por exemplo, são citados
98
O “corpo de arco-íris” refere-se ao fato de que certos seres realizados se dissolvem em um místico
arco-íris no momento de abandonar o seu veículo físico, atingindo a bem-aventurança. Também está
relacionada à conservação perene do corpo físico, imortalizado por meio da grande realização espiritual
de certos mestres avançados. Ou seja, os casos de corpo de arco-íris são bem variados. Cf. RINPOCHE,
1999, p. 450.
99
Cf. DHARMAKIRTI, 2002, p. 4.
112

frequentemente e integram o corpo doutrinal desses seres. Tais textos conformavam o


arcabouço religioso dos siddhas, como podemos observar na citação a seguir:

O tantra-pai inclui a Guhyasamaja-tantra, Vajrabhairava e Yamari, e


o tantra-mãe inclui o Heruka Chakrasamvara, Hevajra e Vajra yogini.
Cada tantra contém um texto raiz que inclui técnicas com um tipo
particular de treinamento capazes de conferir a iluminação. Os adeptos
Mahasiddhas secretamente propagaram esses conjuntos de tantras em
eremitérios geração após geração. Grandes mestres como Jālandhara,
Kṛṣṇācārya, Dombi Heruka, Lūipa, Vajraghaṇṭa emergiram dessa
linhagem. (DHARMAKIRTI, 2002, p. 5, tradução nossa, grifo do
autor).

Impossível não citar a bela história de Milarepa (séc. XI-XII d.C), grande yogin,
santo e poeta tântrico do Tibete, intimamanente conectado à linhagem de Tilopa – o
mestre indiano. Quando Milarepa estava deixando o seu guru – Marpa – para sair em
retiro, este saiu de casa para saudá-lo com um singelo adeus e alterando sua aparência
ordinária, apareceu na forma de Cakraśaṁvara-tantra, alguns instantes se passaram e
Marpa tomou nova forma: Hevajra; em seguida transformou-se em Guhyasamāja. Após
o espetáculo fenomênico, chamou Milarepa e disse: "Meu filho, você viu?" Milarepa
respondeu: “Sim. Sim. Acredito que eu também possa realizar tais maravilhas”. Então,
ele foi para o retiro e, como é muito conhecido, alcançou a mesma iluminação que seu
Guru e foi capaz de realizar muitos feitos sobrenaturais, como voar no céu e outros
milagres100. Interessante observar que Marpa transfigurou-se nas principais divindades
do tantrismo, que como sabemos, possuem suas próprias expressões literárias e
iconográficas, indicando a clara influência dos mesmos sobre esta tradição.

Associados às praticas tântricas, a lendária trajetória dos famosos 84


mahāsiddhas revela-nos um conjunto literário repleto de narrativas performáticas e bem
distantes de um cego dogmatismo. Diferentemente de outros mestres ortodoxos, os
siddhas adotaram estilos de vida muito variados, oriundos de distintas camadas sociais,
os rótulos definitivamente perdem consistência quando nos referimos a estes seres que,
por vezes, são representados como yogīs itinerantes, alquimistas avançados, e até
mesmo magos-exorcistas.

100
Cf. DHARGYEY, 1994, p. 124-125.
113

Após esse breve prelúdio, voltemos nossas atenções ao sexo-yoga. A lenda do


mahāsiddha Ghāntapa101 é especialmente significativa para a nossa tese, pois vemos a
estreita relação entre as práticas sexuais, os mestres budistas e o tantrismo. A história
relata que Ghāntapa, em suas andanças, chega até o reino de Pataliputra, aonde vivia um
rei muito piedoso, Devapala. O bondoso rei, a pedido de sua esposa, convida Ghāntapa
para ser seu sumosacerdote, porém, recebe uma inesperada resposta negativa. No dia
seguinte, o rei foi pessoalmente ao encontro do santo yogin, prosternando-se aos seus
pés, pediu-lhe humildemente que aceitasse sua proposta, mas novamente foi rechaçado.
Por quarenta dias ininterruptos o rei visitou Ghāntapa, esperançoso de que em algum
momento ele aceitasse a sua proposta, mas nem mesmo isso surtiu efeito. Malogrado
seus esforços, o ódio consumiu a mente do rei, que imediatamente ofereceu metade de
seu reinado àquele que conseguisse destruir a castidade e a virtude santa de Ghāntapa. A
gananciosa Darima aceitou o desafio. Durante nove dias ela se dirigia ao encontro do
homem santo, oferecendo-lhe sua devoção. No décimo dia, ela pediu a Ghāntapa que se
tornasse seu patrono durante seu retiro de monção de verão. A resposta foi negativa,
mas Darima foi persistente, voltando repetidas vezes por um mês. Finalmente, não
vendo nenhum dano, Ghāntapa concordou. Quando a chuva chegou, o yogin acomodou-
se em uma pequena cabana que Darima havia construído para ele na extremidade da sua
propriedade. Para o espanto de Ghāntapa, no décimo quinto dia de retiro, Darima envia
à sua cabana sua bela filha, de apenas doze anos, ainda intocada pelos desejos da carne.
Nesse mesmo dia, uma tempestade se extendeu até o pôr do sol, forçando Ghāntapa a
dormir na cabana junto com a filha de Darima – o inveitável aconteceu: eles praticaram
sexo-yoga e em pouco tempo, haviam passado pelos 4 níveis de alegria, alcançando o
caminho da liberação até seu cumprimento final.

Após esse incidente Ghāntapa toma a menina como sua consorte-yoguinī, e um


ano depois nasce o filho do casal. Durante seis vidas passadas essa mesma menina foi a
causa de suas quedas, porém, agora, ela é a própria liberação. Ao saber de todo o
ocorrido, o rei ficou feliz pois pensou que o santo siddha havia abandonado o caminho
da virtude e imediatamenete foi ao seu encontro. O santo casal tentou fugir com seu
pequeno filho, mas o encontro foi inevitável:
101
De um modo geral, todos os mahāsiddhas que iremos citar ao longo deste capítulo situam-se
cronologicamente entre o século VIII e XII d.C. Suas histórias podem ser consultadas, com maiores
detalhes, principalmente nas obras de DOWMAN, 1985 e RINPOCHE, [s/d].
114

O rei, olhando para o par que fugia, exigiu respostas para o que viu
diante dele. O monge simplesmente respondeu: "Estou levando um
jarro de licor, tenho meu filho debaixo da minha túnica, e esta é a
minha consorte. Quando o rei continuou repetindo as acusações do
que parecia ser culpa de Ghāntapa, este atirou seu filho e o jarro de
licor para o chão [...]. O solo se abriu e um gêiser de água começou a
inundar todo o espaço. A criança foi instantaneamente transformada
em um raio e o jarro em um sino. Então o yogui, carregado com raio e
sino, levitou com sua consorte para o céu, onde se tornaram as
divindades Samvara e Vajra Varahi unidos em união como pai-mãe.
[...] Ainda pairando acima da assembléia, Ghāntapa disse: "Conceitos
morais praticados sem compreensão podem ser o maior dos obstáculos
para cumprir o voto do Bodhisattva de firme compaixão. Não
cultivem a virtude e renunciem ao vício. Em vez disso, aprendam a
aceitar todas as coisas como surgem. Penetre na essência de cada
experiência até atingir o único sabor” [...]. Possuindo o poder e a
virtude de um Buda, o yogi subiu ao Paraíso das Dakinis juntamente
com sua consorte. (RINPOCHE, s/d, p. 25, tradução nossa).

O relato acima é altamente alquímico, o jarro transformado em sino e o menino


transformado em raio102, expressam em sentido ontológico, o aspecto positivo e
negativo da existência. Como vimos na página 51, o próprio Buda, ao entregar os
ensinamentos tântricos, manifestou-se na forma de Vajradhara, o qual portava em seus
braços um vajra e um sino, simbolizando a máxima expressão da “não dualidade”. De
forma análoga, o Tantra Guhyasamāja é representado iconograficamente como a
personificação da divindade Guhyasamāja Akṣobyavajra em conexão sexual com sua
consorte Sparshavajri; sustentam em seus braços um raio e um sino, simbolizando o
masculino e o feminino, compaixão e sabedoria, meios hábeis e vacuidade103. Ademais,
o Vajra e o sino são importantes instrumentos nas pujas budistas, normalmente são de
uso pessoal dos Lamas, que ao portá-los representam a indestrutibilidade do veículo
tântrico-adamantino.

Mencionaremos agora outro relato vinculado ao sexo-yoga: o caso de


Dombipa104, rei de Magadha, grande mahāsiddha que fora iniciado por Virūpa nos
mistérios do Hevajra-tantra, o qual lhe conferiu grande poder interior e o atingimento
do estado de Buda – a própria iluminação espiritual.

102
Na página 39, apresentamos a história de Metripa, cujo teor alquímico é muito similar à história de
Ghāntapa.
103
Sobre a personificação do tantra Guhyasamāja, Cf. HUNTINGTON; BANGDEL, 2003, p. 444.
104
A história completa de Dombipa pode ser consultada em RINPOCHE, [s.d.], p. 43.
115

A história começa com um grupo de menestréis errantes que chegam à cidade


para cantar e dançar para o rei. Um dos menestréis tinha uma filha de doze anos, uma
virgem inocente, cuja beleza entorpecia os sentidos. Dombipa apaixonou-se pela jovem
e casou-se com ela. Doze anos se passaram e finalmente o povo descobriu o insólito
casamento de um rei com uma jovem de casta inferior. O casal resolve fugir de
Magadha e o reino entra em colapso, enquanto isso, Dombipa praticava os
ensinamentos tântricos com sua consorte na solidão de seu santo eremitério, no meio da
selva. Seu filho ficou responsável pelo reino, mas percebeu que as coisas estavam
descontroladas e a cidade estava cada vez com mais problemas. Então decidiu-se pela
reintegração do rei. A volta de Dombipa à Magadha é triunfal, ele juntamente com sua
consorte, sai do meio da floresta montado nas costas de uma tigresa grávida e,
brandindo uma cobra mortal como um chicote, inicia seu retorno às origens. Assustados,
o povo caiu de joelhos e pediu-lhe para governar seu país mais uma vez. No entanto, o
rei respondeu: “Como posso fazer o que vocês me pedem? Vocês me expulsaram
porque eu tinha perdido meu status de casta por contrair uma mulher de baixo
nascimento, portanto, eu não posso governar.” O povo começou a lamentar, mas o rei
tendo piedade deles ordenou-lhes construir uma pira funerária, onde ele e sua consorte
seriam queimados a fim de obterem a purificação de suas más ações, o renascimento
traria a absolvição kármica dos amantes. Não tendo outra alternativa, o povo acatou o
pedido do rei santo. O casal sagrado foi queimado, por sete dias o ar ficou perfumado, a
leve brisa foi agraciada pela fragrância dos imortais, o ar emanava um delicioso néctar;
nesses mesmos sete dias a noite não apareceu, pois os dias permaneciam iluminados, o
céu estava tão brilhante quanto o sol, foram sete dias ininterruptos de iluminação
transcendental sobre o reino. No oitavo dia, a luz encandecente desapareceu do céu, em
seu lugar apareceu uma núvem em forma de lótus onde o rei, sob o disfarce da
divindade de Buda Hevajra em união extática com sua consorte, estava sentado altivo.
O rei disse: “Se, assim como eu, vocês forem capazes de encontrá-lo (o buda hevraja)
em seus corações, então poderei governá-los.” No entanto, sua sentença foi recebida
com protestos. Desapontado, o rei suspirou profundamente e sua forma começou a ser
cada vez mais transparente, perdendo-se na imensidão do céu. Suas últimas palavras
foram: “Meu único reino é o reino da verdade.” Então ele e sua amada se dissolveram
em perfeita consciência e puro deleite, para habitar para sempre no Paraíso dos Dakīnīs.
116

Outro relato nos ajudará a perceber como o ato sexual pode converter-se em
escada para a realização espiritual. De acordo com Keith Dowman (1985), Babhaha
(outro dos 84 mahāsiddhas) era um príncipe extremamente apegado ao prazer sexual,
porém tudo em sua vida mudou quando se deparou com um yogin mendicante que o
iniciou nos segredos tântricos, entregando-lhe as chaves alquímicas. Após doze anos de
intensas práticas, Babhaha alcançou a realização espiritual juntamente com os poderes
siddhis, que por sua vez possibilitou o domínio da sabedoria alquímica, como podemos
constatar em um de seus ensinamentos com teor altamente simbólico:

No Lótus-mandala de sua parceira, superior e habilidosa consorte,


misture a sua semente branca com o oceano de semente vermelho
dela, depois de absorvido, eleve e espalhe o elixir e seu êxtase jamais
terá fim, então amplie o prazer para além do prazer, visualize-o
inseparavelmente do vazio. (DOWMAN, 1985, p. 216, tradução
nossa).

A mistura da semente branca (energia masculina) e vermelha (feminina) é uma


clara referência ao maithuna105. O ensinamento acima está diretamente relacionado ao
modo pelo qual pode um praticante utilizar as suas forças sexuais para atingir os cumes
mais elevados da espiritualidade.

Quando a realização interior é atingida, regras e dogmas caem por terra dando
lugar à luz da consciência búdica. Um siddha é capaz de transgredir uma norma
religiosa sem perder sua virtude; no caso específico do ato sexual, a luxúria, por
exemplo, é transmutada em virtude, portanto utiliza-se o sexo como método de avanço
espiritual. Ao contrário, uma pessoa comum, geralmente utiliza o sexo unicamente
como desfrute dos sentidos, aumentando assim o apego da mente por questões
sensoriais, por isso, ao invés de libertar, o sexo escraviza e condiciona a mente
despreparada, lançando-a em estados emocionais inferiores quando seus desejos
concupiscentes não são atendidos.

Percebemos que a sabedoria dos mestres tântricos não se restringe apenas às


fórmulas ortodoxas das escrituras, a cada discípulo é entregue um determinado
conhecimento conforme suas tendências kámicas. A seleção do ensinamento não advém

105
Sobre a relação entre a energia sexual e a semente branca e vermelha, consultar página 86.
117

de nenhuma regra forânea, senão da própria visão interior do mestre, a qual dispensa
qualquer racionalidade. Provavelmente, se o mestre de Babhaha tivesse seguido o rigor
dos sutras, incitando-lhe a abandonar o prazer sensual, o que normalmente teria sido
feito por um guru ordinário, talvez Babhaba não se tornasse um siddha, ou na pior das
hipóteses poderia abandonar o caminho do dharma. Foi justamente com base nesses
preceitos alquímicos que o nível de “siddha” pôde ser atingido pelo antigo príncipe.

Ainda sobre este ponto, Roger R. Jackson traz interessantes aclarações sobre a
vida de três relevantes mahāsiddhas: Saraha, Kāṇkha e Tilopa. O autor acredita que
todos eles praticaram sexo-yoga, conheciam os profundos mistérios do maithuna,
estimulavam as energias do corpo sutil (a contraparte do sêmen) através do “fogo
sexual”. Trabalhando com as “gotas brancas” (sêmen ou energia sexual) acreditavam
estar acelerando o processo de transmutação das forças sutis com o intuito de
potencializar os cakras, despertendo-os e recebendo dos mesmos preciosos benefícios
espirituais. Vejamos a seguir uma importante citação que corrobora com o nosso
direcionamento teórico:

Saraha, Kāṇkha e Tilopa fazem referência a parceiras femininas com


quem parecem ter tido relações sexuais. Essas referências devem ser
compreendidas dentro do contexto das práticas do corpo sutil [...],
incomparáveis yoguinis, a quem as canções dos siddhas
acompanhavam, eram suas parceiras em práticas altamente
especializadas e difíceis, cujo principal objetivo era “forçar” as
energias para dentro ou dentro do corpo sutil, para que pudessem ali
trabalhar no propósito de acelerar a iluminação. Uma das razões pelas
quais a sexualidade pode ser utilizada yoguicamente é que, acima de
qualquer outra atividade humana, a relação sexual, mesmo em um
contexto "comum", tem o efeito de colocar o pensamento e a energia
dentro do canal central, acalmando a conceitualidade, induzindo o
prazer, e espalhando a gota branca no cakra da coroa [...]. Em geral,
contudo, o êxtase do tantra é somente possível se, em vez de ser
emitida, a gota branca for preservada, assim a bem-aventurança,
combinada com a realização da natureza vazia dos fenômenos, pode
transformar-nos em uma divindade iluminada. (JACKSON, 2004, p.
35, tradução nossa).

O ponto fulcral da passagem acima é a “ênfase na preservação da gota branca”,


em outras palavras, deve-se reter energia sexual, no caso dos homens, preservar o sêmen
118

e nas mulheres a líbido106. Esta é uma das chaves essenciais da alquimia tântrica
budista. Seguindo a interpretação de Jackson, acreditamos que todos os mestres siddhas
citados acima, praticaram esta técnica sexual, eles conservavam o sêmen, não o
desperdiçavam, utilizando-o unicamente para fins espirituais.

Algo que deve ser compreendido e será detalhado no terceiro capítulo, é o poder
simbiótico do sexo-yoga. Em muitos casos, alguns mestres utilizam-se de tais práticas a
fim de liberar espiritualmente a discípula do sexo oposto. Ao contrário, também pode
acontecer o caso de a própria consorte estar em um nível superior e ajudar o seu
parceiro – as duas alternativas são válidas. A prática sexual possui um forte poder
regenerador, e se houver concentração e conhecimento dos meios hábeis (retenção e
transmutação do sêmen, juntamente com o empoderamento iniciático de um guru), pode
o praticante de menor nível se igualar ao parceiro de maior envergadura espiritual.

Portanto, esta pode ser uma das razões do porquê estas práticas estarem incluídas
no sādhana de alguns mestres tântricos. De todo modo, o fato é que a sexualidade está
presente nos relatos dos siddhas e acreditar que esses grandes mestres praticavam um
tipo de sexualidade profana é incompatível com as realizações místicas por eles
produzidas.

Na obra A Instrução de Tilopa sobre o Grande Símbolo (Mahamudra), para


Naropa, em Vinte e Oito Versos107, percebe-se nas palavras do mahāsiddha Tilopa108
que os ensinamentos sobre o sexo-yoga são transmitidos de forma alegórica, evitando
assim os perigos da profanação:

Aquele que se dedica a uma parceira (karmamudra), se eleva até o


conhecimento do êxtase e do vazio. Entre na união da sabedoria
(prajña) e dos meios (upaya). Docemente, envie a bodhichitta devagar
para baixo, retenha-a, retraia para cima, e conduzindo-a a sua fonte,

106
De forma mais clara, pode-se dizer que o tantra não estimula o espasmo, tanto do homem quanto da
mulher. O último grau de excitação fisiológico-sexual, também conhecido como orgasmo, deve ser
transmutado, sublimado, por meio das técnicas iniciáticas, ao invés de ser desperdiçado.
107
O texto que utilizamos é o trabalho de tradução realizado por Roberto de A. Martins, encontra-se
disponível na página http://www.shri-yoga-devi.org/textos/Tilopa-Mahamudra.pdf.
108
Tilopa (988-1069) é um mahāsiddha indiano cuja origem está intimamente conectada à escola
tibetana Kagyü, recebeu os ensinamentos tântricos diretamente do Buda Vajradhra, transmitindo-o,
posteriormente, ao seu mais exaltado discípulo – Naropa –, o qual perpetuou uma gloriosa linhagem do
Budismo Vajrayāna: Tilopa-Nāropa-Marpa-Milarepa-Gampopa-Karmapa etc. estendendo-se até os dias
atuais sob os auspícios do 17o Karmapa.
119

sature o corpo inteiro. Se não houver apego, ele se elevará ao


conhecimento primordial do êxtase e do vazio. (TILOPA, 2017, p. 5).

Defendemos aqui que Tilopa está ensinando a prática secreta do sexo-yoga,


utilizando a energia sexual como método de desenvolvimento espiritual, sem
desperdiçá-la, a fim de elevar a consciência para esferas mais elevadas. Ademais, outro
ponto importante a se destacar é a utilização da palavra karmamudrā 109, a qual possui
uma significação ritualística encontrada nos textos tântricos.

Tsongkhapa explica que a técnica do karmamudrā “refere-se à tradição tântrica


da prática sexual com uma consorte [...].” (TSONGKHAPA, 2005, p. 69). Segundo
David Snellgrove, este conceito encerra um rito purificatório ou consagratório
(abhiṣeka), muito comum da tradição tântrica e está dividido em quatro fases; o
karmamudrā estaria inserido na segunda, terceira e quarta etapa desses ritos iniciatórios,
porém, Snellgrove enfatiza, sobretudo, a segunda e a terceira etapas: “o karmamudrā
refere-se à parceira feminina, normalmente conhecida como Prajñā (Sabedoria) que
cumpre um papel essencial na segunda e terceira consagração.” (SNELLGROVE, 1959,
p. 136, tradução nossa).

Outro ponto relevante a se destacar na passagem de Tilopa é o novo sentido


atribuído ao termo bodhichitta110, que nesse contexto, ganha outra conotação, refere-se
aos próprios thigles, ao “fogo erótico”, que se movimenta energeticamente pelo
corpo111. Deve-se salientar que uma parte desses thigles está condensada em cada centro
magnético do corpo – cakra –112. Ao iniciar o movimento dessas substâncias, sentimos
estados interiores diferenciados, o corpo se carrega magneticamente possibilitando

109
O karmamudrā está incluído nos seis dharmas de Nāropa, o qual é elencado por Tsongkhapa na
seguinte ordem: (1) calor interno (2) corpo ilusório (3) clara luz (4) transferência de consciência (5)
projeção forçada; 6 – bardo-yoga. Estes pontos correspondem à essência dos ensinamentos de Naropa
sintetizados em seis partes. Vale ressaltar que estes dharmas elencados podem ser estruturados a partir de
outras perspectivas, isto é, ao invés de seis, podem ser transmitidos com apenas quatro, três, ou até
mesmo dois dharmas, contendo diferentes enunciados, como é o caso de Marpa, mestre de Milarepa, que
parece ter se acostumado a transmitir apenas quatro principais dharmas (1 – fogo interior; 2 –
karmamudra ou sexo-yoga; 3 – corpo ilusório; 4 – clara luz). Outro exemplo é Gyalwa Wensapa (séc.
XVI), grande yogin da tradição Gelupa, que sintetizou os seis dharmas de Naropa em apenas dois
principais. Entretanto, devemos considerar estas alterações como ajustamentos didádicos, na verdade, em
essência, nada é retirado do ensinamento original, eles são apenas incorporados um no outro, conforme a
preferência metodológica de cada mestre. Cf. MULLIN, 2005, p. 29-33.
110
No terceiro capítulo aprofundaremos o estudo sobre a bodhichitta e a “questão sexual”.
111
Cf. DHARGYEY, 1994, p. 93-94.
112
Sobre a relação entre os Thigles e os cakras, Cf. DHARGYEY, 1994, p. 107-108.
120

novos vislumbres espirituais. Tilopa está ensinando o manuzeio consciente dessa força
sutil a fim de transformar a sexualidade em espiritualidade, instinto em inspiração,
luxúria em amor, pensamentos em vacuidade:

Quando você conhecer exatamente o que é o máximo êxtase. Neste


momento você despertará para o inato. Coloque e foque na jóia
inestimável no topo da cabeça! Faça isso através do abraço
apaixonado de uma mulher. Quando você conhecer exatamente os
momentos e os êxtases, será proclamado um yogin nessa mesma vida.
(TILOPA, 2004, p. 138, tradução nossa).

Outros escritos atribuídos a Tilopa também demonstram a influência alquímica


em seu pensamento, como sugere o pesquisador Roger R. Jackson, que traduziu e
publicou uma importante obra intitulada Tilopa’s Treasury, a qual expressa,
poeticamente, dentre outras coisas, a inclinação natural do mahāsiddha indiano aos
ensinamentos relativos à sexualidade:

Firme na união da sabedoria e dos meios, certamente você


aperfeiçoará o insuperável, como um especialista em veneno, tome-o
para si, desfrute a existência, mas não se apegue a ela. Yogin! Não
menospreze a mulher física, através dela você conhecerá os momentos
e os êxtases. (TILOPA, 2004, p. 137, tradução nossa).

Roger R. Jackson faz interessantes comentários sobre esta passagem do texto,


principalmente no tocante a duas expressões significativas: “A união da sabedoria e dos
meios” e a “mulher física”. O autor esclarece que em ambos os casos estamos diante de
expressões relacionadas ao maithuna, e por conseqüência ao karmamudrā, à união
sexual entre um homem e uma mulher de carne e osso. Vejamos com detalhes suas
explanações sobre o tema em questão:

A união da sabedoria e dos meios é um dos conceitos primordiais do


Mahāyāna e do budismo tântrico, referem-se às combinações das
características possuídas pelo Buda. No âmbito mahāyāna, refere-se,
primariamente, ao conjunto de insight unido à vacuidade e ao método
compassivo para a liberação dos seres. No contexto do Yoginī Tantra,
refere-se, entre outras coisas, a inseparabilidade da realização do vazio
com a experiência da bem-aventurança e da sabedoria inata, a qual
constitui a própria natureza originária da mente. Também pode se
121

referir aos dois parceiros em práticas do sexo-yoga [...]. Mulher


física: literalmente “o selo da ação” (Skt. karmamudrā), é uma
consorte de carne e sangue que já possui um certo avanço nas práticas
de sexo-yoga [...] que é tão importante para o sucesso nos Yoginīs
Tantras. (JACKSON, 2004, p. 137, tradução nossa, grifo do autor).

Encontramos na obra A commentary on the kālacakra tantra de Geshe Lharampa


Ngawang Dhargyey, uma descrição detalhada sobre os variados tipos de energia que
possuem relação com o desenvolvimento espiritual. De acordo com o sistema
kālacakra, o corpo humano possuiria quatro “gotas” ou energias, estas seriam forças
dinâmicas, que quando despertadas possibilitariam experiências espirituais113. Todavia,
a quarta e última “gota” é especialmente significativa:

O termo "a gota da quarta ocasião" refere-se à ocasião da felicidade


que é experimentada durante a relação sexual entre um homem e uma
mulher. Durante esse tempo, as energias da parte superior do corpo
convergem à coroa e as energias da parte inferior do corpo convergem
aos genitais. A bem-aventurança é experimentada com a descida da
bodhicitta. (DHARGYEY, 1994, p. 121-122).

O êxtase místico proporcionado pelo sexo-yoga parece ser uma chave preciosa
utilizada por alguns mestres tântricos. Assim como Indrabhūti, Ghāntapa e Dombipa,
outros dois mahāsiddhas chamam a atenção por estarem associados a mulheres e à
sexualidade: Saraha e Virūpa. Em suas histórias são retratados sempre em companhia de
suas consortes e como apreciadores de bebida alcoólica.

No caso de Virūpa, por exemplo, é dito que num belo dia chegou a uma cidade e
pediu toda a cerveja disponível; garantiu que pagaria sua conta antes do pôr do sol,
porém quando o estalajadeiro pediu o dinheiro, Virūpa “apontou o sol com o dedo e,
graças a seus poderes, imobilizou seu curso no céu. Seis dias passaram-se sem que o sol
pudesse se pôr ou mesmo se deslocar.” (RINPOCHE, 1999, p. 454). Semelhante a uma
ingênua criança, Virūpa explicou que tinha prometido pagar a bebida antes do pôr-do-
sol, mas como não dispunha de dinheiro, não lhe restou outra alternativa a não ser

113
A tradução inglesa utiliza o termo “drop” ou “Gota” (em português) como correspondente da palavra
tibetana Thigle ou Bindu, em sânscrito, as quais estão intimamente relacionadas às energias sexuais. Estas
palavras possuem significados variados, tais como: “momento”, “ponto”, “gota”, “semente”. Cf.
DHARGYEY, 1994, p. 119-123 e GOVINDA, 1995, p. 125.
122

paralisar o astro rei. Sempre ao lado de Virūpa está sua consorte, que o acompanhava
em suas façanhas, bem como no rigor do seu sādhana.

Assim como Virūpa, Saraha também é retratado com uma consorte, indicando
claramente a importância do aspecto feminino no caminho espiritual114. Segundo Keith
Dowman (1985), a esposa de Saraha teria sido uma Dakīnī que o servia física e
espiritualmente; conta-se que o santo yogin atingiu a realização plena do mahāmudra
graças às instruções de sua divina esposa.

Além destes importantes yogins citados acima, Milarepa, outro expoente do


Tantra budista, um santo retratado como superior e imune a qualquer vício sensual,
parece ter ensinado as técnicas iniciáticas do karmamudrā para algumas discípulas
avançadas. Embora alguns Lamas mais ortodoxos possam questionar o envolvimento de
Milarepa em práticas vinculadas ao sexo-yoga, torna-se inegável a circulação do seu
nome em alguns relatos tântricos-sexuais.

A pesquisadora Judith Simmer-Brown, em seu livro Dakini’s warn breath: The


feminine principle in tibetan buddhism (2001), destaca uma interessante história em que
o yogin tibetano teria recomendado para um grupo de discípulas, no qual estava incluida
a ḍākinī Tsenringma, a utilização de técnicas sexuais a fim de aperfeiçoar o
desenvolvimento espiritual de suas seguidoras:

Um dia Tsenringma e o seu grupo de quatro ḍākinīs chegaram até a


caverna de Milarepa, lindamente adornadas, portando as clássicas
oferendas: incenso, comida e bebida, instrumentos musicais, roupas
suaves, e flores. Após a realização das oferendas, servindo, dançando
e cantando para ele, Tsenringma e seu séquito ofereceram a si mesmas
como a “suprema bem-aventurança da sabedoria das quatro alegrias”.
Isso se refere à tradição de que de todos os oferecimentos ao guru, o
melhor é o oferecimento do karmamudrā [...]. Milarepa então aceitou
as oferendas delas, reconhecendo-as como as quatro consortes
perfeitas, isto é, foram aceitas como praticantes preparadas para os
quatro estágios da prática do karmamudrā, conforme a tradição das
instruções de Tilopa para Naropa. (SIMMER-BROWN, 2001, p. 231-
232, tradução nossa).

114
A introdução do eterno feminino nas práticas tântricas e sua grande relavância serão demonstradas no
terceiro capítulo.
123

Acreditamos que muitos mestres (não todos) utilizaram o sexo-yoga como


método de aceleração espiritual. A energia sexual ganha status salvíficos quando
utilizada para ingressar em regiões sutis da consciência. Seguimos com a hipótese de
que a iluminação budista – grande meta dos yogīs – só é possível mediante o domínio e
a consequente retenção do sêmen, ou seja, refere-se à própria transmutação das forças
sexuais (alquimia), a qual é aperfeiçoada em máximo grau quando associada às técnicas
de meditação, concentração, respiração etc115.

2.6 Drukpa Kunley: da ironia à santidade erótica

Na esteira dos ensinamentos sexuais não poderíamos deixar de mencionar a


intrigante história do mestre tibetano Drukpa Kunley (séc. XV-XVI). No Butão, por
exemplo, mais do que uma figura histórica, Kunley tornou-se um heroi da cultura local,
seu caráter exêntrico e laicista, ilumina a sabedoria folclórica butanesa com um brilho
incomum, integrando ao imagético popular o rótulo da “divina loucura”.

O homem inebriado pelo dharma, insandecido pela própria verdade, é o


arquétipo forjado por Drukpa Kunley e aclamado pelos budistas tântricos116. Keith
Dowman, em seu livro The divine madman, traduziu para o inglês juntamente com
Sonam Paljor, uma antologia de anedotas e canções provenientes de fontes literárias e
orais, tibetanas e butanesas. O valioso trabalho proporcionou maior vizibilidade à vida
deste grande santo, o qual poderia ser classificado como um autêntico mahāsiddha.

Vemos a rebeldia típica de um siddha em muitos eventos de sua vida, como por
exemplo, certa vez em que estava se dirigindo para uma festividade anual da tradição
Nyingma, celebrada no monastério tibetano Samye, onde se reuniam muitos lamas,
monges, leigos e mestres espirituais. Conforme Keith Dowman (1983), muitos devotos
do Tibete se reuniam nessa festividade para reafirmar sua fé através de prostrações,
circunambulações, ritos de restauração de votos etc.

115
Esta hipótese será aprofundada no terceiro capítulo, mais especificamente no item 3.1.
Sobre a “divina loucura” de Drukpa Kunley e sua influência no budismo tântrico, ver: DOWMAN;
116

PALJOR, 1983.
124

Ao se deparar com esta cena, Drukpa Kunley fez a seguinte observação: “Não
tenho os materiais necessários para realizar um Rito Sacramental de Oferecimento aos
Budas e Protetores e sou muito preguiçoso para fazer prostração ou circunvalação, por
isso vou fazer uma restauração de votos espontânea.” (DOWMAN; PALJOR, 1983, p.
55, tradução nossa). Em seguida, o “santo louco” se pôs a recitar uma bela oração em
louvor aos budas protetores, demonstrando que mais vale um coração ensandecido pelo
divino do que convencionalismos religiosos permeados de regras e detalhes exteriores,
os quais são incapazes de despertar a autêntica espiritualidade de um buda.

Kunley, com seu exemplo, também ensinou o poder do inusitado, da


espontaneidade, de saber adaptar-se a qualquer situação, a nunca depender dos códigos
de conduta para tomar decisões, mas pautar-se exclusivamente em si mesmo, na própria
mente iluminada, como única guia de nossas ações. Antes de nos tornarmos um buda e
compreender seus mistérios, necessitamos, primeiramente, entender a vida, sua fluidez e
inconsistência. Drukpa Kunley brincava com a existência, não a levava muito a sério,
pois todos os nossos planos, por mais belos que possam parecer, estão fadados à
transitoriedade do devir, ou seja, em algum momento deixarão de existir, então por que
apegar-se aos fenômenos pueris da vida?

A ironia e o despudor exêntrico do santo tibetano pode ser observado numa


passagem muito bem humorada, que ilustra a singularidade e o caráter incomum de seus
ensinamentos:

No templo de Ramoche117, ele encontrou os monges envolvidos em


uma discussão metafísica, pensou que não deveria perder a
oportunidade de ensiná-los a rir, então perguntou. "O que vocês estão
fazendo, ó monges?" Estamos limpando nossa compreensão espiritual
das dúvidas e desarmonias", disseram-lhe. "Conheço um pouco de
metafísica", disse Kunley, pegando um punhado de sua própria
flatulência e empurrando-o sob seus narizes. "O que veio primeiro, o
ar ou o cheiro?" Ele perguntou. Os monges ficaram bravos e o
perseguiram. (DOWMAN; PALJOR, 1983, p. 64, tradução nossa).

Os mestres do budismo zen também utilizam métodos incomuns para transmitir


o essencial da mensagem do Buda. Na verdade, tanto os mestres zen quanto Kunley

117
Ramoche abriga a imagem de Sakyamuni dada como dote ao rei Songtsen Gampo pelo imperador da
China no século VII; também era o santuário de um oráculo poderoso do Tibete.
125

querem retirar da razão a sua primazia, mostrar que sua lógica, ainda que muito tenaz, é
incapaz de conferir os níveis mais profundos do samādhi. Somente no estado de “não
mente”, na ausência absoluta dos pensamentos, que se torna possível a comunhão com a
nossa natureza iluminada. Os monges, na história supracitada, estavam perdendo tempo
com discussões que não os conduziriam à verdade. Kunley tentou ensiná-los,
ironicamente, sobre a “realidade” que existe além dos signos, das palavras, dos
pensamentos. A experiência do real não advém com provas racionais, tampouco com
lógica argumentativa, os fenômenos mais belos da vida atuam sem linguagem, a
serenidade de um lago cristalino, por exemplo, é capaz de conferir muitos ensinamentos
que estão além da razão, basta uma mente treinada na arte da meditação para “sentir” a
beleza e a inspiração desta cena e com ela comungar, apredender silenciosamente, sem
necessidade de conceituações, rótulos, comparações, é um simples intuir, permitir que
os mistérios da existência se desvelem, de forma espontânea e natural.

Para desembaraçar a vontade do que a corrompe, propõe-se uma “via direta”,


sem inclinações, isenta de desvios, com único foco e única meta – a vida feliz. O
“atalho para a virtude” a que se propõe a filosofia de Drukpa Kunley, opõe-se ao
caminho dos esforços intelectuais inúteis, prescindindo o doutrinamento e a
sistematização do saber, joga-nos diretamente ao encontro da “experiência”, não perde
tempo com conceitos, porque conhece o limite e a fugacidade dos mesmos, compreende
a superioridade do “viver” em detrimento ao “conceituar”, percebe a fluidez e sabedoria
da vida natural, e unindo-se a ela, toma-a como guia de suas ações, pede-lhe auxílio e
como moeda de troca outorga-lhe sua obediência. Eis o budismo prático de Drukpa
Kunley. Sua filosofia configura-se como o caminho da vida simples, da via natural,
como podemos perceber na descrição de Kalu Rinpoche:

Drukpa Kunley adorava brincadeiras, gracejos e boas farsas. Era sua


maneira de realizar o bem dos seres. Um dia, uma freira perguntou-lhe
por que ele estava sempre feliz e por que ria e se divertia com tudo.
“O sofrimento desapareceu inteiramente na grande felicidade,
respondeu ele. Não há mais nenhum sofrimento para mim”! “Eu acabo
de tomar meus votos, replicou a freira. O senhor não aceitaria me dar
um nome de ordenação”? “Ah, sim! Que tipo de nome”? “Oh! Um
nome bonito, é claro”! “Vejamos. O que você diria de ‘Tara branca-
amarela-vermelha-e-verde’”? “Receio que esse nome não me seja
muito adequado, retorquiu a freira espantada. Preciso de um nome
mais suave”. “Vejo que lhe seria conveniente: ‘Tara açúcar-mel-
126

melaço’”. “Este talvez seja doce demais. Seria preciso algo mais
forte”. “Então, se a chamássemos de ‘Tara-tigre-leopardo-serpente-
venenosa’”. “Não isso não; seria necessário algo mais amplo”.
“Compreendo muito bem: ‘Tara-céu-terra-espaço’”. “Seria melhor
algo que fosse mais adequado ao que sou”. Então, seria perfeito ‘Tara-
que-fez-os-votos-porque-ama-o-amor-mas-tem-medo-de-fazêlo’”.“Por
que não ficar apenas com a primeira parte – disse a freira. ‘Tara que
fez os votos’ seria muito bom”! (RINPOCHE, 1999, p. 288-289).

O desconcertante ensinamento dado pelo “santo louco” revela, primeiramente,


sua atitude não-convencional com os costumes sacramentais. Receber um nome de
ordenação é uma prática comum a muitas tradições religiosas, inclusive no budismo. Ao
romper com certas regras religiosas, Kunley tentava transmitir a essência do
conhecimento budista, isto é, pouco importa o nome ou a forma, a verdade está além
disso tudo, estes são apegos que impendem a contemplação da sabedoria búdica. Ao se
apegar a tais sutilezas, os devotos da senda mística esquecem-se da própria naturalidade
da vida, da felicidade que está além de todos os fenômenos sensíveis.

Kalu Rinpoche (1999, p. 336) também relata outra rebeldia de Drukpa Kunley,
que reforça nosso posicionamento: “Uma ocasião em que se encontrava na região de
Lhassa, um benfeitor disse-lhe que, nos próximos dias, um importante lama iria dar uma
iniciação e peguntou-lhe se gostaria de ir até lá.” Porém, ao saber que seria necessário o
cumprimento dos votos (samaya) para ser iniciado, Kunley acaba refutando o convite.
Ora, com este relato percebemos que a proposta do santo tibetano é livrar-nos de regras
e condutas estereotipadas cuja intenção, ainda que pareça nobre, torna-se sombria, pois
entorpece a razão humana, transforma-nos em sombras, não permitindo o acesso à
sabedoria. Não há mal algum em receber um nome iniciático, ou obedecer a certos
votos, o problema é se apegar a estes eventos, transformando um simples ato
convencional em “um grande acontecimento”, o qual ao invés de nos ajudar no caminho
do dharma, robustece o orgulho e a vaidade, alimentando ainda mais o nosso ego e
distanciando-nos da grande meta.

Vexatória situação a que os homens se entregam, prescindindo de sua sabedoria


inata, transformam-se em seres disciplinados, apegados aos formalismos convencionais,
prisioneiros da regra que escolheram como pai de suas ações – o resultado é o
enfraquecimento da mente búdica. O apego à forma religiosa conduz ao vício da
127

preguiça, pois ao invés de buscarmos na meditação profunda as respostas para nossas


inquietudes, contentamo-nos com as escrituras e os mestres, no infeliz afã de alcançar,
através deles e sem sacrifícios pessoais, os mais belos tesouros espirituais, embotando e
despedaçando a consciência com a mórbida chama da esperança, que longe de trazer
soluções, afunda-nos no lodo do não-ser, do “dar-ao-outro” o direito de minhas
decisões.

Ao contrário desse infeliz panorama, a proposta de Drukpa Kunley é a


emancipação absoluta do gênero humano. Liberdade às decisões, aos costumes, à forma
de pensar e atuar; não estamos defendendo aqui um puro anarquismo, ao contrário, as
regras religiosas podem ser seguidas, porém a consciência deve estar ciente de que o
essencial da espiritualidade encontra-se além de qualquer convencionalismo
sacramental, a verdade última do budismo jamais pode ser alcançada no exterior, isto é,
em leis ou regulamentos, mas apenas no interior, com a profunda meditação. Com
semelhante compreensão, pode-se seguir qualquer norma religiosa sem prejuízo próprio.

Além da irreverência, talvez a grande característica de Kunley seja sua relação


aberta e espontânea com a sexualidade, aproximando-o definitivamente das aspirações
tântricas. No exemplo da freira, percebemos que existia naquela beata uma ligeira fuga
de sua própria natureza sexual, talvez uma não aceitação do prazer. Kunley jamais
condenou o prazer sensual, ao contrário, sempre foi representado como libertino. Keith
Dowman e Sonam Paljor (1983), explicam que o santo louco costumava se deitar com
as mulheres, a fim de outorgar-lhes algum tipo de benefício espiritual, este é o caso da
jovem Sumchok, a qual foi iniciada nos mistérios tântricos.

A seguir, apresentamos a citação em que Kunley e a jovem Sumchok são


descritos em união sexual: “Colocando seu órgão contra o mandala de lótus branco [...]
e tendo visto que sua conexão estava bem feita, ele consumou sua união. Assim, ele lhe
deu mais prazer e satisfação do que nunca experimentou.” (DOWMAN; PALJOR,
1983, p. 51, tradução nossa). Após esse incidente a jovem decide se tornar sua discípula
e lhe promete total devoção, como retribuição o santo tibetano lhe dá instruções
espirituais e indica uma caverna como local apropriado às práticas esotéricas, de modo
128

que por sete dias a bela jovem praticou seus ensinamentos e atigiu o completo
despertar118.

Alexandra David-Néel (1988) relata outra anedota muito interessante sobre o


“santo louco” que vale a pena reproduzir: segundo seu próprio costume, Kunley estava
andarilhando por seu país como uma criança sem destino, até se deparar com um
córrego no qual havia uma moça retirando água. Sem qualquer razão, atirou-se sobre a
menina a fim de violentá-la sexualmente, porém não obteve sucesso, pertimitindo a fuga
desvairada da bela moça. Ao chegar em casa, a menina violentada, relata para sua mãe o
ocorrido, descrevendo as características do violador. Então, sua mãe percebendo de
quem se tratava, adverte a sua filha sobre a santidade daquele homem e que suas ações
estavam além da compreensão dos seres vulgares, de modo que seria altamente
recomendável que a jovem voltasse até o córrego colocando-se à disposição do santo.
Quando chegou ao local do ocorrido, a menina se deparou com Kunley sentado sobre
uma pedra, numa atitude contemplativa. Prosternando-se aos seus pés, a jovem colocou-
se como sua serva. Então, Drukpa Kunley, encolhendo seus ombros respondeu:

Filha minha, lhe disse, as mulheres não me inspiram o menor desejo.


Mas o grande Lama do monastério vizinho morreu como um
ignorante, depois de uma vida indigna, desperdiçando todas as
ocasições para instruir-se. Eu vi seu espírito errante no bardo,
arrastado em direção ao mau renascimento e, por caridade, tentei
proporcioná-lo um corpo humano. Mas as forças de suas más obras
não tem permitido. Enquanto você estava no povoado, aquele casal de
burros no pasto acasalaram. O grande Lama em breve aparecerá em
forma animal. (NEEL, 1988, p. 43-44, tradução nossa).

Decerto, Kunley não é um adepto budista ordinário. Na história acima


percebemos o poder de sua clarividência. Como sabemos, o bardo, para o budismo
tibetano, representa o estágio intermediário entre a morte e um próximo renascimento.
Nessa dimensão a consciência aguarda, de acordo com o karma, o momento de sua
próxima existência. Drukpa Kunley era capaz de acessar tais regiões metafísicas. Mais
do que isso, transportava-se de uma cidade a outra do Tibete utilizando seus poderes
místicos de teletransporte119, conhecia os pensamentos e emoções daqueles que dele se

118
Para maiores detalhes Cf. DOWMAN, 2014.
119
Sobre o místico poder de transladar-se de um ponto a outro ver DOWMAN, 2014, p. 75.
129

aproximavam. Ou seja, de acordo com as crônicas orais e escritas, Kunley era sem
sombra de dúvida um jīvanmukta (liberto em vida), um homem que atingiu a “outra
margem”.

2.7 A importância do mahāmudrā

Nos parágrafos anteriores estudamos o estilo de vida excêntrico de Drukpa


Kunley, bem como a tradição dos 84 mahāsiddhas e sua relação com o maithuna. O
sexo-yoga, como vimos, constitui uma das técnicas utilizadas por alguns desses grandes
seres. Contudo, acreditamos que, conectado ao maithuna, outra técnica budista
constitui-se como a pedra angular para as aspirações salvíficas do praticante tântrico.
Referimo-nos à prática da meditação.

Keith Dowman em sua obra Masters of Mahāmudrā: Songs and Histories of the
Eighty-Four Buddhist Siddhas (1985), explica que o termo siddha só pode ser conferido
aos indivíduos que alcançaram o completo domínio do mahāmudrā 120. É interessante
notar a estreita relação entre esta técnica budista e o movimento mahāsiddha.

Thrangu Rinpoche, em sua obra intitulada An introduction to Mahamudra


meditation declara que estes mestres alcançaram a mais alta realização espiritual através
do mahāmudrā:

Durante o florescimento dos ensinamentos do Mahamudra na Índia


(entre os séculos VIII e XII d.C), havia inúmeros praticantes que,
através dele, alcançaram a realização. Destes, 84 indivíduos tornaram-
se muito famosos e foram chamados de 84 mahasiddhas. Se
estudarmos suas vidas, veremos que eles tinham uma grande
variedade de estilos de vida, ocupações e posições sociais. Alguns
eram extremamente ricos, influentes e ocupados. Mas, mesmo no

120
A palavra mahāmudrā, nesse contexto, refere-se à técnica de meditação budista – muito difundida na
tradição tântrica tibetana – cujo objetivo é a experiência do vazio iluminador. “O termo é frequentemente
usado no Yoginı-tantras e denota a meta final do caminho tântrico – o Buddhahood – que é a experiência
da bem-aventurança, da sabedoria do vazio.” (JACKSON, 2004, p.140, tradução nossa). Evitando
polêmicas conceituais, acreditamos que a perfeição do mahāmudrā budista está em sintonia com o
samādhi do yoga clássico hindu. A libertação (mokṣa) onto-epistemológica pretendida pelo yogi hindu
por meio do atingimento do samādhi não difere daquela perseguida pelo nirvāṇa, através do mahāmudrā
budista. Em ambos os casos busca-se a supressão do ego através da transcendência dos estados
psicomentais produzidos pelo contato com a matéria.
130

meio desse estilo de vida, eram capazes de praticar o Mahamudra


beneficiando a si mesmos e aos outros. (RINPOCHE, 2010, p. 1,
tradução nossa).

Indubitavelmente, esta técnica de meditação constitui um dos pináculos


metodológicos da tradição tântrica, sobretudo da linhagem tibetana Kagyü, a qual
sustenta que a origem dos ensinamentos sobre o mahāmudrā remonta ao próprio
Buddha Vajradhara121, que a transmitiu ao māhasiddha indiano Tilopa. Sobre esse
ponto, Kalu Rinpoche, referindo-se à origem da sua própria tradição Kagyü, alerta que:

A origem da linhagem remonta ao Buddha Vajradhara. Ele revelou


seus ensinamentos ao iogue indiano Tilopa, que os transmitiu a
Naropa e este os confiou a Marpa. Esta trasmissão, que compreende
os seis dharmas de Naropa e o mahamudra, é chamada “linhagem
próxima”. Entretanto, consideramos uma outra transmissão, chamada
“linhagem distante”, que inclui mestres humanos dos quais Tilopa
recebeu instruções [...]. Essa “linhagem distante” compreende, entre
outros, Saraha, Shawaripa, Lawapa e Sukkhasiddhi. (RINPOCHE,
1999, p. 434).

A conexão entre o mahāmudrā e os siddhas também é atestada por Roger R.


Jackson (2004), que, em sua obra Tantric Treasures: Three Collections of Mystical
Verse from Buddhist India, publicou três canções de três grandes mahāsiddhas: Saraha,
Kāṇha, e Tilopa. No livro em questão, todos esses mestres são representados como fiéis
praticantes da técnica mahāmudrā, a qual possiblitou, mediante severas austeridades, o
atingimento da própria iluminação interior.

Muitos autores traduzem literalmente a palavra sânscrita mahāmudrā como


“grande selo”, porém seu significado é mais profundo, expressa um tipo de
arroubamento interior, uma exaltação mística, como observa Geshe Kelsang Gyatso:

‘Maha’ significa ‘grande’ e se refere ao grande êxtase, e ‘mudra’,


neste contexto, significa ‘não enganoso’ e se refere à vacuidade.
Mahamudra é a união de grande êxtase e vacuidade. O Mahamudra-
Tantra é definido como uma mente de clara-luz plenamente
qualificada que experiencia grande êxtase e que realiza diretamente a
vacuidade. (GYATSO, 2016, p. 183).

121
Na página 110 explicamos sobre a natureza do Buda Vajradhara.
131

Henrich Zimmer (2015), em sua obra Filosofias da Índia, explica que a


vacuidade (śūnyatā) é um nível de percepção da realidade que se encontra além dos
pensamentos, além dos juízos racionais. A vacuidade, assim como o átomo, está em
toda parte, é o substrato metafísico e ao mesmo tempo invisível de toda a realidade.
Segundo Geshe Kelsang Gyatso (2016), a vacuidade é a verdadeira natureza de todas as
coisas. Os sentidos não conseguem captá-la, os objetos que vemos ao nosso redor –
como mesas, cadeiras e casas – são verdadeiramente existentes porque acreditamos que
eles existem exatamente do modo como aparecem. No entanto, o modo como as coisas
aparecem aos nossos sentidos é enganoso e completamente contraditório ao modo como
elas realmente existem. Gyatso defende a insubstancialidade e a impermanência de
todos os fenômenos, em essência, tudo é vazio, incluindo o próprio “eu”. Porém, para
perceber a essência irreal e fluida da realidade necessitamos de um agudo treinamento
na prática da meditação.

Após um longo período de práticas meditativas, torna-se possível concentrar a


mente em torno de si mesma, não permitindo nenhuma identificação com pensamentos,
ideias, conceitos, imagens ou afetos. Com o aprofundamento da concentração, a
consciência experimenta uma sensação inebriante de grande êxtase e felicidade,
juntamente com sentimentos de força interior e estabilidade. O pensar compulsivo cessa
por completo, a mente torna-se absolutamente quieta e unificada. Ao atingir este
estágio, o ego sai de cena, não somos mais os controladores da experiência, a meditação
segue o seu curso natural, ela mesma nos guia, pois nesse nível meditação e meditador,
tornam-se um único fenômeno, mente e śūnyatā (vacuidade) são finalmente unificados e
experimentados pela consciência do praticante.

Além da vacuidade, Kelsang Gyatso, também menciona a “clara luz” – conceito


que se repete em muitos textos da tradição budista tibetana –. De fato, o objetivo da
técnica mahāmudrā é a descoberta dessa natureza auto-iluminada ou “clara luz”, a qual
seria capaz de livrar-nos da ignorância e da própria roda do saṃsāra. Vejamos o
posicionamento do mahāsiddha Tilopa, a esse respeito:

A clara luz do Mahamudra não pode ser revelada pelas escrituras


canônicas ou pelos tratados metafísicos dos que estudam os Tantras,
132

da Prajnaparamita, do vinaya [escrituras do Hinayana], dos sutras e


das outras doutrinas. A clara luz é encoberta pelos conceitos e idéias.
As proibições e votos prejudicam o verdadeiro samaya [caminho
tântrico] [...]. (TILOPA, 2017, p. 3).

Uma vez mais, percebemos a insuficiência do conhecimento especulativo


racional. Conceitualizações e teorizações desviam o praticante da verdadeira meta, a
natureza clara e luminosa da mente não pode ser descoberta através de métodos
intelectuais. O mestre Kalu Rinpoche explica que, além de realizar a vacuidade
luminosa da mente, através do mahāmudrā, são realizados todos os ensinamentos do
Buda:

A palavra tibetana para mahamudra é cha-gya-chenpo, cujo sentido


profundo aparece na explicação dada a cada uma das partes: – cha,
que quer dizer gesto ou símbolo, designa aqui a consciência
primordial vazia e significa que o modo de ser da mente, tanto quanto
o aspecto manifestado que procede da faculdade criadora, são ambos
vazios em essência; – gya, que significa vasto, indica que nada existe
além dessa consciência primordial vazia; quando se realizou o que é a
vacuidade, compreende-se que não há nenhum fenômeno do ciclo das
existências ou do nirvana (o estado de liberação) que escape a essa
vacuidade, nada que esteja além desta consciência vazia; – chenpo,
que quer dizer grande, refere-se ao fato dessa realização ser a mais
elevada possível; no Mahamudra são realizados todos os ensinamentos
do Buddha, é por isso que o chamamos também de Dzogchen, o que
significa grande realização. (RINPOCHE, 1999, p. 261).

De um modo geral, o mahāmudrā é entendido como uma técnica poderosa de


meditação, muito utilizada pelo budismo Vajrayāna. Consiste em manter a mente em
seu estado natural, sem dualismos e distrações, livre de qualquer objeto ou objetivo,
sem o auxílio de mantras, visualizações ou qualquer outro método, a perfeição é
alcançada quando a mente repousa sobre si mesma.

Assim como ninguém pode se segurar no espaço, no Mahamudra não


existe ponto de apoio. Fique parado no estado natural, sem qualquer
artifício. Assim, sem dúvida, os nós se soltarão. Contemplando o meio
do céu vazio, a visão cessa; Do mesmo modo, quando a mente olha
para a própria mente, termina o fluxo do pensamento discursivo e
conceitual e é obtido o despertar supremo. Assim como a neblina da
manhã se dissolve no ar, sem ir a qualquer lugar, mas cessando de ser,
133

as ondas da conceitualização se dissolvem quando você contempla a


verdadeira natureza de sua mente. (TILOPA, 2017, p. 2).

A canção de Tilopa nos exorta à aquisição do “estado natural”. Ser natural


significa que o agente (ego) é dispensável, seu trabalho é inútil, o desejo egocêntrico
não encontra apoio, se desvanece, pois não há terreno fértil. Os apegos humanos
presisam de uma mente que os receba e obedeça às suas vontades, contudo, quando a
mente não reconhece o ego como seu guia, sua função torna-se hostil, grosseira, mais do
que isso, a própria causa do seu existir é questionada, pois a mente se divorciou do
egotismo, emancipando-se de suas “rédeas curtas”, sem um amo invisível, que age
como um implacável ditador.

Ora, se partirmos do pressuposto budista de que a essência última da mente é


clara, luminosa e plena de sabedoria, não será difícil compreender os ensinamentos de
Tilopa. O incessante fluxo de pensamentos é um repositório sutil de sonhos
insatisfeitos, desejos paralisados, ansiedades pueris. A mente transita
indiscriminadamente entre o passado e o futuro, com ânsias, preocupações, desejos,
emoções perturbadoras etc. A grande questão é: “eu sou isso” que aparece em minha
tela mental? Minha existência resume-se a um corpo físico transitório e a uma mente
sutil instável e vacilante?

Com a prática do mahāmudrā, o devoto permanece como uma “testemunha”. Ele


percebe que a sua existência subjetiva está muito além dos afetos, pensamentos,
instintos e imagens. O corpo se move, o coração bate, o ar entra e sai pelas narinas, os
impulsos instintivos e suas forças elementares não cessam de trabalhar, bem como o
próprio pensar, porém, todo esse movimento é incapaz de abalar a consciência do
praticante, ela permanece apenas como um observador inabável dos processos
fisiológicos e cognitivos, “existindo enquanto substância separada”, totalmente alheia
aos fenômenos do devir.

O corpo é essencialmente vazio, como um canudo de junco, e a mente


é como o centro do espaço, além dos objetos do pensamento; fique
nessa esfera, parado, sem rejeitar nem aceitar nada; a mente sem
qualquer objetivo é o Mahamudra. Com a prática aperfeiçoada, é
obtida a iluminação suprema [...]. Livre de toda intenção, não
aceitando nenhuma conclusão, são revelados todos os dharmas e
134

ensinamentos. Praticar neste estado liberta da prisão do samsara;


Meditar nesse estado consome todos os véus e a negatividade; Isso é o
que se chama ser a tocha do conhecimento. (TILOPA, 2017, p. 3)

Atingindo a total “imobilidade da consciência”, não permitindo qualquer


movimento, distração, desejo, identificação, radicado no centro de si mesmo, com
absoluta indiferença frente aos movimentos do corpo, dos pensamentos e emoções,
naturalmente, de súbito, surge uma nova compreensão: sentimo-nos como vacuidade,
“um existir sem apoio”, como pura percepção, a própria ideia de um “eu” torna-se
obsoleta, antiquada, desnecessária, a existência converte-se em poesia cujo autor é o
próprio silêncio, pouco importa sua origem, somos meros espectadores de uma
experiência enigmática, nesse estado de ser, conforme a canção de Tilopa,
reconquistamos a naturalidade perdida, alcançamos o desprendimento de todos os
condicionamentos do ego e o supremo despertar torna-se uma realidade tangível.

Na transcendência das dualidades da mente, está a visão suprema; Em


uma mente em repouso e silenciosa, está a meditação suprema; Na
não-ação, está a atividade suprema; E quando todas as esperanças e
medos morrem, a meta é alcançada. Além de todo ponto de referência,
está a natureza luminosa da mente: Não siga nenhum caminho, para
seguir o caminho dos Buddhas, Não aplique técnica alguma, para
obter a iluminação suprema. (TILOPA, 2017, p. 4).

Tilopa propõe a total desvinculação dos processos cognitivos. A mente acumula


na memória informações demasiadas, resultado de esforços conceituais e experiências
passadas. É a capacidade de planejar, deduzir, induzir, raciocinar, estabelecer relações.
No conhecimento acumulado, na memória, a mente egocêntrica busca segurança,
explora as informações do passado na ânsia sorrateira de encontrar soluções futuras. A
proposta de Tilopa é excluir todo o repositório mimético, o acúmulo de conhecimento
deve ser ignorado, incluindo os mais luminosos ensinamentos do Buda. Ora, tudo isso
veio de fora, do mundo externo, o qual é transitório e inconstante. Como encontrar a
estabilidade, a imobilidade, a verdade atemporal, em um mundo temporal,
impermanente, dual? A verdade búdica não nasce da natureza material, de qualquer
conhecimento forâneo, tampouco da memória humana que dela é herdeira. A “clara luz”
simplesmente “acontece”, emerge em um ambiente preparado, silencioso, isento de
135

qualquer conceito, sem necessidade de métodos ou técnicas. Permanecer no estado de


“não-mente”, sem pensamentos, é a essência do mahāmudrā. Somente nesse ambiente
não castrador é possível a experiência do vazio iluminador, da mente pura e luminosa.

Portanto, um dos grandes objetivos do mahāmudrā é atingir o samādhi, a


completa absorção da consciência em torno de si mesma, é o reconhecimento de sua
natureza sábia e iluminada. Nesse sentido, siddhas e yogīs possuem íntima relação. Os
poderes ocultos manisfetados através do samādhi é condição sine qua non para o triunfo
místico:

Os únicos resultados que podem interessar ao yogin são,


evidentemente, os de ordem prática: a penetração nas regiões
inacessíveis à experiência normal e a posse das zonas da consciência e
dos setores da realidade que, até então, tinham permanecido
invulneráveis. É quando chega a esse estágio preciso de sua disciplina
meditativa que o praticante adquire os “poderes miraculosos” (siddhi)
aos quais é dedicado o terceiro livro dos Yoga-sūtra, a partir do sutra
16. Concentrando-se, meditando e realizando o samādhi em relação a
um certo objeto ou a uma classe de objetos, em outras palavras, ao
praticar o saṃyama122, o yogin adquire certos poderes ocultos relativos
ao ou aos objetos experimentados. (ELIADE, 2012, p. 82-83).

Obviamente, o êxtase místico e o consequente domínio dos pensamentos e


emoções são façanhas encontradas não apenas entre os mahāsiddhas, mas também na
tradição taoísta, hinduísta, jainista etc. Embora possuam conceitos distintos, o
importante é saber que, na prática, o samādhi é uma experiência eminentemente prática,
basta aplicar as técnicas corretas e sua manifestação pode ser evidenciada.

A palavra “realização” deve ser muito bem compreendida, com ela queremos
dizer que o devoto alcançou o “completo domínio” da técnica meditativa, sua mente
está perfeitamente controlada e o ego foi superado pela luz da consciência búdica, a
qual confere, entre outras coisas, a conquista dos poderes miraculosos, os quais são
mencionados pelo mestre tântrico Nāgārjuna:

Entre as “metamorfoses” (nirmana) Nāgārjuna cita uma longa lista


das siddhi (reduzir à dimensão de um átomo, aumentar a ponto de

122
Lembremos que saṃyama indica as últimas etapas da técnica yóguica que são: concentração
(dhāraṇā), meditação (dhyāna) e samādhi.
136

encher o espaço etc.; atravessar paredes, andar nos ares, tocar com a
mão o Sol e a Lua) e, para terminar, menciona a transformação “da
pedra em ouro e vice-versa” [...]. (ELIADE, 2012, p. 232).

Os poderes ocultos inserem-se como perfeições oriundas da consciência


iluminada; as “metamorfoses” são simplesmente o reconhecimento das verdadeiras
possibilidades subjetivas, é a mais sublime constatação da liberdade. Ao contemplar a
natureza e sua vacuidade ontológica, a mente depara-se consigo mesma, evidenciando
sua constituição multiforme, livre de qualquer condicionamento. Em outras palavras, a
crença no “eu” e todos os seus conceitos limitantes é descartada desde as raízes mais
profundas do entendimento. Finalmente, o homem percebe que a única barreira para a
transcendência era ele mesmo, cativo na selva indomável dos sentidos, alimentava a
falsa crença numa “identidade real”, construída com remendos conceituais, cujas
aspirações materiais (frutos do egocentrismo), distanciavam-se a galapodas dos ideais
inerentes de sua mente iluminada.

O desabrochar de um Buda é absolutamente impossível enquanto a mente


permanecer escrava das sensações físicas; o apego, com seus fortes laços, jamais
permitirá a expanção da consciência para além das fronteiras sensíveis. Somente
abrindo o “olho interior”, com profundos estados meditativos, é que poderemos fazer
emergir os ocultos poderes e a promessa tântrica pela insuperável iluminação123.

2.8 Śāntideva e o último grande salto: a outra margem

Se analisarmos detidamente a vida dos mahāsiddhas concluiremos que existe


uma diferença abismal entre eles e os homens comuns. Padmasambhava, Nāropa,
Virūpa, Śāntideva, Kunley, todos esses mestres estão além dos códigos de conduta,
abandonaram os votos monásticos porque suas consciências emanavam um brilho
desconcertante, ao invés de iluminar, queimava, devido ao excesso de luz, a mente
inflexível e ortodoxa dos monges ordenados, que carecia de proteção contra o despudor

123
No terceiro capítulo aprofundaremos a relação entre o tantra e o seu caráter soteriológico.
137

dos hábitos tântricos; ironicamente, a imatura compreensão monástica transformou em


aberração àqueles que um dia se tornariam a fonte de suas inpirações.

A história de Śāntideva124, um dos 84 mahāsiddhas, que viveu entre o século VII


e VIII d.C, ilustra perfeitamente a infame tentativa da mente vulgar em tentar
compreender as ações excêntricas dos budas iluminados. As crônicas budistas retratam-
no como um monge indolente, preguiçoso, glutão, displicente, ordenado na
universidade indiana de Nalanda, porém seus hábitos não-ortodoxos causavam certo
desconforto aos outros residentes do templo.

Geshe Thubten Jinpa explica que Śāntideva, certa vez, foi colocado à prova
pelos seus superiores. O monge indolente deveria fazer uma preleção para toda a
comunidade com base nos ensinamentos budistas. Todos pensavam que Śāntideva não
conseguiria, porém, nesse mesmo dia, recitou sua famosa obra “O caminho para a
iluminação” (Bodhicharyavatara) ou “Guia para o modo de vida do Bodhisattva”
(Bodhisattvacharyavatara):

Diz a lenda que Shantideva recitou o texto inteiro de forma


extemporânea, quando foi convidado a fazer uma preleção para uma
congregação de monges na famosa universidade monástica indiana de
Nalanda. O pedido para oferecer seus ensinamentos teria derivado de
um desejo de humilhar Shantideva, já que os outros monges achavam
que ele não fazia nada a não ser “comer, dormir e defecar”. Os
monges não imaginavam que apesar de Shantideva dar a impressão de
que levava uma vida de indolência, tinha na verdade uma rica vida de
experiência interior e aprendizado profundo. Os relatos tibetanos da
história alegam que, ao chegar ao capítulo nove, o capítulo sobre a
sabedoria, Shantideva começou a subir pelo ar e a desaparecer,
embora sua voz ainda pudesse ser ouvida. (JINPA, 2017, p. 1).

Este texto se tornou uma das obras budistas mais apreciadas pela tradição
Mahayāna, sendo lida e comentada, até mesmo nos dias atuais, pelas quatro grandes
escolas tibetanas. O XIV Dalai Lama utiliza frequentemente uma das estrofes do livro
de Śāntideva como fonte de inspiração: “Por tanto tempo que o espaço durar e por tanto

124
A obra de Śāntideva e os relatos de sua biografia foram consultados a partir do texto digital intitulado
O caminho para a iluminação: Guia para o modo de vida do Bodhisattva. Organizado pela equipe
dharmanet e cortejado com a edição SHANTIDEVA. O Caminho para a Iluminação —
Bodhicaryavatara. Lisboa: Livros e Leituras, 1998. E ainda: DOWMAN, Keith; BEER, Robert. Buddhist
Masters of Enchantment: The Lives and Legends of the Mahasiddhas. Inner Traditions: Rochester, 1998.
138

tempo que os seres vivos existirem, que eu possa até lá também esperar para dissipar a
miséria do mundo.” (DALAI LAMA XIV apud JINPA, 2017, p. 2).

A incompreensão da irmandade budista é plausível, uma vez que, para eles, as


regras e códigos monásticos servem como caminhos doutrinais que conduzem ao
sucesso religioso. Entretanto, para os siddhas realizados, a religião deixou de ser um
“caminho”, não há mais caminho, pois este já foi percorrido, a “outra margem já foi
alcançada”, as opiniões e incertezas foram substituídas pela sabedoria da mente
primordial; para os segundos (indivíduos não-iluminados ou monges vulgares), a
religião é o “caminho”, pois este ainda está sendo percorrido, de modo que as práticas
espirituais – meditação, visualização, ritos, conduta ética etc. – possuem importância
decisiva, pois sem elas não há possibilidade de alcançar a grande meta: o estado de
buda. Corroborando com nosso posicionamento, Heinrich Zimmer explica a diferença
entre um mestre realizado e um praticante ordinário:

As regras da doutrina destinam-se aos principiantes e aos discípulos


avançados, mas se tornam insignificantes para os perfeitos. Carecem
de utilidade para o verdadeiro iluminado, exceto quando, em seu papel
de mestre, faz uso delas como meio de sugerir a verdade que alcançou
[...]. Tornando-se acessível à ignorância relativa ou total, a doutrina
pode atingir a mente ainda imperfeita, embora ardente; contudo não
tem mais nada a dizer para aquele cuja mente se liberou da escuridão.
Como a canoa, a doutrina precisa ser deixada para trás tão logo o
objetivo tenha sido alcançado, pois a partir daí nada mais será que
uma carga inútil. (ZIMMER, 2015, p. 342-343).

O verdadeiro iluminado não tem dívidas com a existência, embora suas ações
possam parecer contraditórias, no seu mundo interior reina a estabilidade, o ego já foi
subjugado com o látego da consciência búdica, os galanteios psicológicos da mente não
os afetam mais, perderam força, cansaram de “pedir em vão”, o resultado é a perfeita
harmonia interior; estes seres conformam o ilustre círculo esotérico dos “budas
iluminados”, homens que “alcançaram a outra margem”. Utilizaram a grande barca
(doutrina) por um período, até o ponto em que suas mentes se transformaram na própria
Lei, libertando-os de qualquer condicionamento adventício.

A tradição budista (principalmente Mahayāna e Vajrayāna) não tem dúvida


quanto à realização interior desses indivíduos, suas biografias retratam curas milagrosas,
139

levitações fantásticas, austeridades supra-humanas, e façanhas místicas inenarráveis,


como podemos evidenciar no relato a seguir:

Um dia, um caçador real chegou à corte com um jogo raro para


presentear ao rei e deixou dito que, com seus próprios olhos, ele havia
visto Shantideva caçando e matando gazelas e comendo sua carne
assada no espeto. O rei imediatamente seguiu para as montanhas com
um vasto séqüito para investigar essas sérias acusações. Eles
chegaram à Shantideva sentado em uma pele meditando em frente ao
que parecia ser um simples muro de pedras. O rei contou ao yogi o
que havia ouvido, adicionando, "Tu que ensinastes o rei de Nalanda a
engolir o próprio orgulho e que restaurou minha visão e a de minha
corte, por que com tal poder a seu dispor tu machucas os seres vivos?"
"Eu não mato," disse Shantideva, "Eu curo." Ao que gesticulou com a
mão no ar, e a parede de pedra atrás dele abriu-se, revelando a entrada
de sua caverna. Dali sairam todos os tipos de animais imagináveis.
Enquanto pulavam em direção à floresta, pareciam se multiplicar
perante os olhos perplexos do rei e do séqüito até que as criaturas
cobriram cada colina e encheram cada vale. E então elas
desapareceram como se nunca tivessem existido. "Todos os elementos
da experiência são apenas sonhos e ilusões," explicou Shantideva.
"Compreenda que todas as coisas são apenas produtos insubstanciais
da imaginação, projeções da mente. Entra no caminho da liberação." E
então recitou esse verso: As gazelas de que me alimentei nunca
existiram nessa terra; Ainda assim, nunca deixaram de existir. Se não
há o que definimos como substância, então não pode haver caçador,
nem caçado. Não sou eu o preguiçoso por aqui. Ao que Shantideva
converteu o rei de Dhokiri, e colocou todo o seu povo no caminho da
verdade. Ele serviu-os fielmente por cem anos antes de ascender ao
Paraíso das Dakinis. (ABHAIADATTASHRI, 2017, p. 11, grifo do
autor).

Para os homens “da outra margem”, o mundo converteu-se em prestidigitação,


ilusão dos sentidos, não é mais sólido e real como antes, agora possui pálidos contornos,
é inconsistente, transitório. Para Śāntideva, o mundo não conhece nascimento tampouco
cessação, todos os fenômenos apóiam-se em causas impermanentes, portanto se não há
uma única causa permanente sobre a qual possamos nos sustentar como dizer que este
mundo tem alguma realidade? Como dizer que o “Ser” é real, verdadeiro, absoluto,
incriado, imutável? Como o não-nascido pode nascer em uma existência profana,
temporária e perecível? Como o atemporal submete-se às garras implacáveis do tempo?
Śāntideva queria superar estas contradições duais, eliminar as bipolaridades conceituais,
que escravisam a mente, não permitindo o desabrochar da visão sinótica, não-
140

discriminada, que ao invés de bipolarizar a realidade entre ser e não-ser encontra na


vacuidade o âmago subjacente e unificador de todas as manifestações sensíveis:

Se o ser não existe no tempo do não-ser, quando será que existe? Pois
o não ser não desaparecerá enquanto o ser não tiver nascido, e este não
se pode produzir enquanto o não-ser não desaparecer. Do mesmo
modo, o ser não pode passar ao não ser, pois uma mesma coisa
possuiria então esta dupla natureza? Portanto, não há cessação nem
existência. O mundo não conhece nem nascimento nem destruição
[...]. Sendo as coisas vazias de existência, que haverá a ganhar ou a
perder? Quem nos há de honrar ou desprezar? Donde virá o prazer e a
dor? Que haverá de agradável ou odioso? [...]. Se examinarmos o
mundo dos vivos, quem morre, quem irá nascer, quem nasceu, o que é
um parente, um amigo? Compreendam, como eu, que tudo é
semelhante ao espaço! (SHANTIDEVA, 2017, p. 61).

A citação acima expressa toda a profundidade epistemológica encontrada nos


ensinamentos dos mahāsiddhas. O conhecimento transmitido por Śāntideva,
metaforicamente falando, encontra-se na “outra margem”, provém de uma mente
desperta, cuja visão interna possibilitou realizar tais afirmações paradoxais. Atingir
semelhante sabedoria não é fácil, por isso que as escrituras budistas exaltam os seres
que lograram este tipo de perfeição. Para exemplificar nosso posicionamento,
apresentamos uma passagem do Dhammapada que exalta o nível alcançado pelos
homens que conquistaram a “outra margem”: “Aquele que, depois de ter atravessado
este pântano, esta roda da existência perigosa e ilusória, que atravessou e chegou à
outra margem; que medita, calmo, livre de dúvidas, que não se apegando a nada,
alcança o Nibbāna – a esse chamo um homem santo.” (DHAMMAPADA, XXVI, 414;
BUDDHARAKKHITA, 2013, p. 137 – grifo nosso).

O cultivo da sabedoria búdica e o domínio absoluto da mente são características


indispensáveis para atingir a “outra margem”, no entanto essas qualidades são muito
difíceis de alcançar, por isso o número de indivíduos que atingem a “outra margem” é
muito escasso, como podemos evidenciar na citação a seguir:

Poucos entre os homens são aqueles que atravessam para a outra


margem. O resto, a maior parte, apenas corre para cima e para baixo
na margem de cá. Mas aqueles que agem de acordo com o Dhamma
perfeitamente instruídos, atravessarão o reino da morte, tão difícil de
141

atravessar. (DHAMMAPADA, VI, 85-86; BUDDHARAKKHITA,


2013, p. 38).

A “outra margem” representa, em sentido alegórico, um plano de existência


intocado pela impermanência, incluindo a própria morte. Conforme os textos budistas, o
indivíduo que alcança esta dimensão é um ser iluminado, abençoado pela graça da
sabedoria.

Grande é diferença entre os seres iluminados (aqueles que alcançaram a outra


margem) e os não-iluminados, os primeiros têm domínio, controle de suas faculdades
subjetivas, deleitam-se nos bosques do desapego, aprenderam a ciência mística do
autodomínio. Um Śāntideva, por exemplo, é capaz de levitar a qualquer hora, basta
surgir a necessidade e o fenômeno é produzido. Por outro lado, um monge comum não
tem domínio completo de suas faculdades, eventualmente pode vivenciar algum
fenômeno sobrenatural, mas nada lhe garante a repetição do mesmo, é absolutamente
contingente; pode ser que num dado momento, por alguma razão desconhecida, ele
consiga levitar, alcançar visões místicas ou curas milagrosas, porém todas essas
faculdades simplesmente chegam até ele, são contingentes, não há controle algum sobre
as mesmas.

“A outra margem” representa a natureza fundamental da mente, límpida e


transparente, é a realização do nosso potencial espiritual inato, não maculada por
nenhum egocentrismo, vícios, desejos ou paixões. “Todos os seres têm a mesma
natureza de Buda, aquele que a tem purificada se chama Buda.”
(ORNAMENTO DOS SUTRAS apud GAMPOPA, 2011, p. 29). Ou seja, aqueles que
logram descobri-la e colocá-la em atividade tornam-se seres iluminados, despertos,
auto-realizados.

No primeiro capítulo da obra O Precioso Ornamento da Liberação, Gampopa125


explica que a causa primeira do despertar é a “natureza de Buda.” A beleza da

125
Gampopa, o mais famoso discípulo de Milarepa, nasceu em 1079 d.C. em Nyal (área central do
Tibete). Seu nascimento foi anunciado por uma profecia feita pelo próprio Buda Shakyamuni. Herdou de
seu pai a vocação médica e o amor pelo budismo. Com apenas dezesseis anos de idade, além do
conhecimento médico, também já havia recebido muitos ensinamentos tântricos, de diferentes mestres da
linhagem Nyimgma. Casou-se aos vinte e dois anos e teve dois filhos, porém, desafortunadamente, poucos
anos mais tarde, uma grave epidemia assolou o país causando a morte de muitos tibetanos, incluindo sua
esposa e seus filhos. Após esse incidente, Gampopa decide tomar os votos completos de ordenação, e em
142

budeidade nasce no mundo sem esforço, de forma inata, espera pacientemente por sua
expressão. Gampopa menciona três motivos do porquê nascemos com essa herança
espiritual: “Porque o corpo absoluto, a vacuidade, está em todos os seres; porque, na
realidade, a natureza de Buda não tem distinções; porque todos os seres têm o potencial
do despertar.” (GAMPOPA, 2011, p. 29).

No Mahayana Uttaratantra Shastra escrito pelo Mahapândita indiano Arya


Asanga126 é explicado que a natureza fundamental da mente é dotada de completa
realização espiritual e está relacionada com o tathāgata127 – um conceito aberto a
diferentes interpretações, porém intimanente conectado com a nossa natureza auto-
iluminada: “A liberação se distingue pela indivisibilidade das qualidades presentes em
todos os seus aspectos: inumerável, inconcebível e não poluída. Essa libertação é
[também chamada] tathagata.” (ASANGA, 2000, p. 31).

Siddharta Gautama, em muitos sutras, chama a si mesmo por este epíteto:


tathāgata. Grande parte dos comentadores budistas admite a complexidade de definir

pouco tempo conseguiu reunir em torno de si 51.600 monges, e ainda 500 discípulos avançados (yogis) –,
ampliando consideravelmente o número de praticantes budistas. Dentre os seus principais seguidores,
destacamos o primeiro Karmapa (Düsum Khyenpa) e a renomada Phagrno Drupa – . Portanto, as escolas
Kagyupa são o resultado da expansão doutrinal e monástica realizada pelo mestre Gampopa, o qual, por
esse motivo, torna-se uma figura fundamental para o pensamento tântrico tibetano. Cf. STEWART, 1995.
126
“O mestre indiano Asanga (315-390 d.C) e seu irmão Vasubandhu (320-380 d.C) são considerados os
fundadores da escola Yogācāra, a qual constitui um dos pilares hermenêutico-filosóficos da tradição
budista Mahāyāna. Diz-se que Asanga praticou intensamente as técnicas budistas por 12 anos, ao fim dos
quais foi transportado ao Reino Tushita, ou deuses contentes, sendo presenteado pelo próprio Buda
Maitreya (regente do Buda Sakiamuni e o próximo Buda a se manifestar na terra) com cinco tratados: ‘O
Ornamento da clara Realização’ (Abhisamayalankara); ‘O Ornamento dos Sutras Mahayana’
(Mahayanasutralankara); ‘Distinguindo Dharma e Dharmata’ (Dharmadharmatavibhaga); ‘Distinguindo
o meio dos extremos’ (Madhyantavibhaga); e finalmente o Uttaratantra ou ‘natureza de Buda’.” Cf.
RIMPOCHÊ, 2006, p. 13.
127
A palavra páli tathāgata é traduzida literalmente como: “Assim chegaram” ou “Assim se foram”. É
um dos dez títulos utilizados pelo Buda para se referir a si mesmo ou a outros budas. De um modo geral,
o termo diz respeito aos indivíduos que alcaçaram a completa iluminação espiritual. Outro conceito, bem
próximo a este, mas com uma sutil diferença é Tathāgatagarbha. Literalmente, pode ser traduzido como
“o ventre do Tathagata”. Está diretamente relacionado com a “natureza de buda”, o potencial inato de
todo ser humano para atingir o completo despertar. Cf. THE SEEKERS GLOSSARY OF BUDDHISM,
1998, p. 746-747. Em outro dicionário budista consultado o termo tathāgata é traduzido literalmente
como “assim foi” ou “assim vem”. O conceito, todavia, está sempre relacionado com indivíduos que
alcaçaram a perfeição espiritual. Cf. NYANATILOKA, 1970. Finalmente, o glossário de Nissim Cohen
explica o termo tathāgata do seguinte modo: “é um epíteto frequentemente utilizado pelo Buda ao se
referir a si mesmo. O significado literal é ‘aquele que tenha assim (tathā) vindo ou chegado (āgata)’ ou
‘aquele que tenha lá (tathā) ido (gata)’; mas a razão para o uso deste termo ainda é incerta, havendo
muitas e diferentes explanações para tanto. É dito que o tathāgata não pode ser ‘descoberto’, isto é,
conhecido empiricamente, mesmo durante o tempo de vida, muito menos após a morte; e que nem os
cinco Agregados de Existência (Khandhā) devem ser tidos como sendo o tathāgata, e nem sequer o
tathāgata poderá ser achado fora destes fenômenos corpóreos e mentais”. (COHEN, 2008, p. 514).
143

este termo, porém o fato é que, em muitas de suas acepções, ele está diretamente ligado
ao “estado de Buda”, ao homem que alcançou a beatitude espiritual e é capaz de
“apontar” o caminho para os demais.

Poderíamos dizer que o apogeu da fé budista se encontra radicada na figura do


homem iluminado. Os princípios da religiosidade brotam de sua inspiração mística, ele
é o princípio e o fim de toda espiritualidade, a razão de ser da doutrina, tudo gravita ao
seu redor. Como homem liberto, sua missão é alertar a humanidade sobre a importância
de “cruzar o rio” e “alcançar a outra margem”:

Entrar no veículo budista – a barca da disciplina – significa começar a


cruzar o rio da vida, desde a margem da experiência comum de não-
iluminação, da ignorância espiritual (avidyā), do desejo (Kamā) e da
morte (marā), até a longínqua margem da sabedoria transcendental
(vidyā), que é a liberação (mokṣa) desta escravidão geral. (ZIMMER,
2015, p. 342-343).

A barca que nos ajuda a fazer a travessia de um lado a outro da “margem” é a


doutrina budista, seus mantras, ritos, moralidade, textos, técnicas meditativas etc.
Enquanto a iluminação não é alcançada o discípulo deve contentar-se com as
ferramentas da barca, fazendo dela uma verdade provisória, algo que num dado
momento deve ser abandonado. Siddharta Gautama também precisou das ferramentas
da barca, ao longo de sua jornada espiritual recebeu ensinamentos de mestres variados,
cada qual lhe entregando determinado método de desenvolvimento. Sem esse aporte
talvez Gautama se convertesse em um profeta, num visionário, ou em um respeitado
faquir, mas jamais seria um buda128. Um Buda é aquele que alcançou a estabilidade
interior, está totalmente liberto do sofrimento, deleita-se na própria virtude, a paz e a
tranqüilidade são marcas indeléveis de sua imponente personalidade. Abaixo
apresentamos uma citação do Dhammapa que reforça as qualidades espirituias do
estado búdico:

128
Palavra sânscrita que significa “o desperto”, “o iluminado”. Portanto não é um nome próprio, mas um
título conferido a qualquer indivíduo que tenha alcançado a iluminação espiritual. Trata-se da meta última
do budismo onde um determinado nível de consciência é atingido no qual a sabedoria e a bem-
aventurança se manifestam em máximo grau.
144

Não há nenhum traço no céu, e nenhum renunciante(s) fora (do


ensinamento do Buddha). A humanidade deleita-se na mundanidade,
mas os Buddhas estão livres. Não há nenhum traço no céu, e nenhum
renunciante fora (do ensinamento do Buddha). Não há coisas
condicionadas que sejam eternas, e não há instabilidade nos Buddhas.
(DHAMMAPADA, XVIII, 254-255; BUDDHARAKKHITA, 2013 p.
91).

Despertar do sono onírico e evidenciar a ilusão na qual estamos inseridos,


perceber que, na realidade mais profunda de nós mesmos, jamais fomos afetados por
coisa alguma, que todo sofrimento é transitório e irreal – tais considerações, in loco, só
são possíveis ao homem iluminado. Por isso, o mistério central está ancorado na sua
figura. Nenhum rito sagrado se compara à beleza do homem liberado, os efeitos do seu
verbo tocam regiões ignoradas pelo mantra, sua mente tornou-se um manancial de
silêncio e seus desejos perderam-se na imensidão do nada.

A rigor, nenhum outro indivíduo teria condições de conceituar sobre a realidade


metafísica, suas limitadas possibilidades o traem, lançando-o no terrível labirinto das
teorias; somente um indivíduo desperto poderia falar daquilo que experimentou. Só ele
teria condições de “perceber empiricamente” a verdade búdica e sentir a profunda
vacuidade de si mesmo, não diferenciado de qualquer outro fenômeno.

Seguramente, o intelecto não poderia nos fornecer tal evidência, poderia


conceituar sobre o assunto, mas sem tirar qualquer proveito real de suas conjecturas.
Não obstante, o enfoque principal do budismo é o próprio homem e sua prática
espiritual, somente ele pode tirar a si mesmo do estado de ignorância no qual se
encontra, a menos que se empenhe duramente no exercício das práticas budistas,
dificilmente terá êxito e suas conclusões acerca da realidade serão sempre pouco
elucidativas e inclinadas a um perigoso subjetivismo, que poderia mais afastá-lo do que
aproximá-lo da experiência mística do vazio iluminador.

Concluímos este capítulo buscando, sobretudo, demonstrar a estreita relação


existente entre a alquimia e o Tantra budista. Ao analisarmos a vida dos 84
mahāsiddhas, pudemos perceber uma clara influência da tradição alquímica incluída no
sādhana de alguns desses mestres da Índia medieval. Com base nesses relatos históricos
e com o apoio intelectual dos mestres e pesquisadores contemporâneos, tentamos
estabelecer uma proposital conexão entre espiritualidade e sexualidade, reforçando o
145

caráter místico-esotérico do sexo-yoga. Tendo em vista a abrangência e a complexidade


do assunto, iremos retomá-lo e aprofundá-lo no próximo capítulo, incluindo diferentes
abordagens filosóficas e metafísicas.

PARTE II
A PRÁTICA DO MAITHUNA E A RESSURGÊNCIA DO PODER
FEMININO
146

CAPÍTULO 3: O SEXO-YOGA E A ANATOMIA SUTIL

3.1 Sexo-yoga e celibato: dois caminhos, duas possiblidades

No capítulo anterior começamos, ainda que sumariamente, a indicar os variados


momentos em que o sexo-yoga é mencionado pela literatura budista, destacamos os 84
mahāsiddhas, que incluíam o ato sexual em suas práticas regulares. No mesmo período
– medievo indiano – surge a tradição do haṭha-yoga, a qual também incluiu em sua lista
de necessidades as práticas sexuais. A sensação deixada por esses relatos históricos é a
significativa relevância do maithuna no contexto tântrico indiano.

Embora o sexo-yoga seja aceito e suas práticas defendidas por importantes


pesquisadores acadêmicos, tal como os mencionados nos capítulos anteriores, não
podemos considerá-lo como uma unanimidade, além da tradição Theravāda, o Lama
tibetano Anagarika Govinda, um adepto do Tantra, também não aceita a intromissão do
sexo-yoga dentro da doutrina budista. Ele explica que a iconografia sensual e todo
conteúdo erótico dos tantras, deve ser compreendida simbolicamente, jamais de um
modo literal:

Embora a polaridade dos princípios masculinos e femininos seja


reconhecida nos Tantras do Vajrayána, e seja uma característica
importante do seu simbolismo, ela é elevada a um plano que está tão
longe da esfera da mera sexualidade [...]. Em outras palavras, em vez
de procurar a união com uma mulher fora de nós, temos que procurá-
la no nosso interior [...]. (GOVINDA, 1995, p. 107-110, grifo do
autor).

Alexandra David-Néel, assim como Govinda, também recusa a validade


doutrinal do maithuna. Contudo, a autora admite haver intrigantes histórias sobre o
assunto dentro da tradição budista; cita o caso do sexto Dalai Lama (Tsang Yang
Gyatso), o qual é retratado como um libertino, porém, ao que tudo indica, o ilustre líder
147

tibetano demonstrava possuir habilidades desconhecidas pelo grande público,


possibilitando-o executar certas técnicas ocultas relativas ao sexo-yoga:

Tsang Yan Gyatso encontrava-se no terraço superior de seu palácio do


Potala, acompanhado de pessoas que se escandalizavam com sua vida
licensiosa [...]. Aproximando-se, então, da beira do terraço, ele urinou
por cima da balaustrada. O jato líquido desceu até a base do Potala e
depois “subiu” ao terraço superior e penetrou no Grande-Lama pelo
mesmo lugar de onde havia saído. Então, ele se dirigiu aos que o
cercavam. – Fazei o mesmo – disse-lhes – e se não o conseguirdes,
compreendei que meu passatempo com as mulheres é diferente do
vosso. (DAVID-NÉEL, [s. d.], p. 116).

No budismo existem muitos relatos fascinantes, entretanto David-Néel, explica


que as práticas ligadas ao sexo-yoga não integram, pelo menos publicamente, a
ortodoxia do lamaísmo tibetano, não há um estímulo aos métodos sensuais dessa
natureza, como podemos perceber na citação da própria autora: “[...] O budismo não
admite nenhuma prática desse tipo e, no Tibete, não lhes é dado nenhum lugar no
Lamaísmo oficial.” (DAVID-NÉEL, [s. d.], p. 122).

Acreditamos que as controvérsias sobre a existência do sexo-yoga na doutrina


budista permanecerão constantemente retornando ao campo especulativo acadêmico,
visto que não estamos tratando de um conhecimento qualquer, senão de uma técnica
secreta, cuja discrição impõe-se como um pré-requisito à eficácia do método.

Deste modo, acreditamos que os Tantras não estão dirigidos apenas aos aspectos
simbólicos da sexualidade, como atesta o lama Govinda, falando especificamente do
maithuna (sexo-yoga), existe declaradamente a incitação a esta prática, de modo que
negá-la, do ponto de vista hermenêutico, seria altamente comprometedor, como destaca
David Snellgrove:

Em todo esse cenário, o rito de maithuna deixa de ser motivo de


preocupação, e seria absurdo defendê-lo fingindo que a intenção era
unicamente simbólica. Seja ou não executado, é a ideia que conta, e
esta ideia é certamente central em toda a concepção desta nova
reintegração. Isto representa, necessariamente, uma tendência muito
poderosa em todos os seres vivos. É, portanto, o principal elemento a
ser simbolizado, e simboliza, é preciso lembrar, o próprio ato de
transmutar. Portanto, não é uma degradação da religião, mas apenas o
contrário, um enobrecimento da condição natural, ou melhor, a
148

realização da pureza essencial (viśuddhi) da condição natural.


(SNELLGROVE, 1959, p. 42-43, tradução nossa).

Assim como Snellgrove, importantes comentadores e tradutores do pensamento


oriental, tais como: Mircea Eliade (2012), Shashibhusan Dasgupta (1946), Roger R.
Jackson (2004), Victor M. Fic (2003), entre outros, defendem a tese de que o sexo-yoga
é uma prática ancestral realizada por certas escolas do budismo tântrico e constitui um
importante método de desenvolvimento espiritual.

Para receber o maithuna, do ponto de vista iniciático, e utilizá-lo como


instrumento de salvação, faz-se necessário pertencer à linha tântrica da esquerda. Nem
todas as escolas que professam os ensinamentos tântricos são adeptos do sexo-yoga.
Comumente, os autores orientalistas, sobretudo do hinduísmo, dividem a tradição
tântrica em duas vertentes principais, a saber: o Tantra da mão direita e o Tantra da mão
esquerda; no budismo, eles se distinguem justamente pelo modo como lidam com a
questão sexual. O tantrismo da direita se caracteriza por não incluir o ato sexual em suas
práticas regulares, ao contrário, o Tantra da esquerda utiliza o poder sexual para o
desenvolvimento interior, tal como nos indica Edward Conze:

A exemplo dos hindus, os budistas distinguem o Tantra da direita e o


Tantra da esquerda. No hinduísmo os dois grupos se distinguem pelo
fato de que os da “direita” (dakshinacaras) darem maior importância
ao princípio masculino universal, e os da “esquerda” (vamacaras) ao
princípio feminino. No budismo a diferença entre ambos reside
principalmente na atitude de cada um para com o sexo. (CONZE,
1973, p. 181).

Edward Conze (1973) admite haver uma grande variedade de seitas tântricas,
porém destaca duas escolas como as mais importantes do ponto de vista histórico: a
tradição Vajrayāna (Tantra da esquerda) e a Escola chinesa Mitsung (Tantra da direita).
Ambas vieram da Índia, a primeira concentrou-se, sobretudo ao redor das escolas
tibetanas, já a segunda disseminou-se principalmente na China e no Japão, e teria como
suposto fundador um segundo Nagārjuna, o alquimista, que teria vivido por volta do
século VII d.C.
149

Embora o Tantra da esquerda, advindo da Índia, tenha se estabelecido


principalmente no Tibete, é difícil saber com precisão quais as linhagens tibetanas que
permaneceram fiéis, mesmo nos dias atuais, às práticas do maithuna, e qual delas, ao
contrário, já poderiam até mesmo ser consideradas do ramo da direita. De acordo com
Severino, determinadas escolas tibetanas, a partir do século XI, ressignificaram o sexo-
yoga, retirando do seu conjunto prático-ritualistico a presença de uma mulher física:

Os tantras elevados que exigiam compartilhar a carne, o vinho e atos


sexuais reais e imaginários nunca poderiam ser uma prática para a
congregação, porque isso faria com que um monge quebrasse seus
votos. Assim, no século onze, muitos dos altos tantras, alguns recém
traduzidos para o tibetano, começaram a ser praticados de uma forma
modificada, “no estilo dos Yoga Tantras mais baixos”. Como a
presença de uma mulher é essencial para uma puja de Gunachakra, na
versão modificada a pessoa ou “dakini” é substituída por uma consorte
imaginária (Tib.: yid kyi rig-ma). (SEVERINO, 2010, p. 128).

Ao que tudo indica algumas escolas tibetanas parecem ter realmente substituído
a consorte física durante o rito sagrado do maithuna, por uma forma feminina
imaginária, buscando, com este método, a preservação absoluta do voto celibatário.
Reforçando a hipótese de Severino, Houseman adverte sobre o desuso do maithuna
estimulado pelos monges tibetanos:

Os mestres indianos que fundaram as grandes linhagens do budismo


tântrico tibetano, Padmasambhava (700 d. C.), Virūpa (800 d.C.),
Tilopa (988-1069 d.C.), e Atīśa (980-1054 d.C.), entenderam o sexo-
yoga como fundamental para a liberação, embora muitos tibetanos
tivessem retirado o sexo-yoga como prática central. Além disso,
muitos deles rejeitaram a vida filosófica vivida pelos mestres siddhas,
e retornaram para a antiga mensagem de negação da vida contida nos
sutras, a qual pregava o perigo da vida sobre a terra e alertavam que o
prazer sensual deveria ser evitado. (HOUSEMAN, 2014, p. 6).

Houseman adverte que os grandes mestres do budismo tântrico indiano sempre


privilegiaram as práticas sexuais, jamais restringiram o seu uso. As razões que levaram
algumas linhagens tibetanas, desde o período medieval até os dias atuais, a excluir, pelo
menos publicamente, o maithuna do seu cânon é uma questão demasiadamente
complexa. Embora algumas escolas tenham “aparentemente” excluído esses
150

ensinamentos secretos do seu corpo doutrinal, defendemos a premissa de que,


hodiernamente, de acordo com as nossas fontes bibliográficas, o maithuna ou sexo-yoga
ainda é praticado, hermeticamente, por certo número de adeptos tântricos avançados.

Para corroborar com a nossa afirmação, citaremos o posicionamento de Traleg


Kyabgon, mestre contemporâneo da tradição Kagyü (Vajrayāna), que explica em sua
obra A Essência do Budismo, que o sexo não foi retirado completamente do cânon
tântrico, contudo, segundo o autor, não devemos superestimar os efeitos salvíficos do
maithuna, esta é tão somente “mais uma” dentre as muitas práticas budistas que visam o
supremo despertar. Kyabgon alerta para o cuidado com os “métodos caricatos”,
“soluções fantásticas”, uma espécie de “salvação sem esforço” que alguns entusiastas
insistem em atribuir às práticas sexuais, toda essa sexolatria muito em voga hoje no
Ocidente, está muito distante das verdadeiras propensões do Tantra budista. Sobre esse
ponto, vejamos a contribuição de Kyabgon:

Em um contexto tântrico, às vezes até mesmo o sexo tem sido usado.


Mas há muita confusão em torno disso. Quem procura purificar o
tantrismo nega que ele se utiliza do sexo, enquanto outros dão a
impressão de que Tantra é puro sexo! Como de hábito a verdade está
em algum ponto intermediário. Mesmo estudiosos recentes como
Lobsang Lhalungpa, tradutor de Raios de luar de Mahamudra e de
outros textos, afirma que não há lugar para o sexo no Tantra. Por outro
lado, Jeffrey Hopkins, um seguidor da tradição Geluk, que
normalmente não discute esse aspecto do Tantra, menciona que o sexo
não foi totalmente descartado nem mesmo dentro dessa tradição.
(KYABGON, 2002, p. 186-187).

O próprio Traleg Kyabgon admite que o sexo-yoga possui relevância no sistema


prático-ritualistico do budismo tântrico. Tais práticas visam, a rigor, a experiência da
bem-aventurança mística, uma sensação transpessoal que está além de todos os
dualismos da mente:

Para compreendermos o papel do sexo no tantrismo, precisamos


considerar o contexto dos três mudras: Karmamudra, Jnanamudra e
Mahamudra. Karmamudra é a prática do sexo no contexto iogue para
gerar bem-aventurança. A ideia é a de que métodos sexuais permitem
superar a sensação de dualidade e, portanto, experimentar bem-
aventurança, transformando o desejo sexual na denominada
151

mahasukha, ou “grande bem aventurança”. (KYABGON, 2002, p.


187).

Geshe Lharampa Ngawang Dhargyey (1994), em sua obra A commentary on the


Kalacakra Tantra, explica que o sexo-yoga, no sistema kalacakra, corresponde à última
etapa de um processo iniciático longo e exigente. Tanto um discípulo casado quanto o
solteiro podem alcançar esta etapa, contudo cada qual deverá praticar o ensinamento
conforme as suas escolhas, ou seja, o praticante casado deverá praticar o maithuna, o
sexo sagrado, com a sua consorte física, já o discípulo celibatário fará a mesma prática
sexual, porém com uma consorte imaginária.

Ora, com toda esta querela envolvendo as práticas sexuais somos forçados a
fazer uma curiosa interrogação: Afinal, qual é o melhor caminho espiritual? Qual seria o
mais eficiente: o caminho do celibato ou o caminho do sexo-yoga? Essa parece ser uma
questão essencial.

Defendemos a hipótese de que tanto a via do celibato quanto a do maithuna são


avalizadas pelas escrituras budistas, de modo que negar uma em detrimento da outra
seria o mesmo que negar a própria tradição do budismo tântrico. Na verdade, o que
determina o caminho a ser seguido é a pré-disposição do discípulo, suas inclinações
kármicas, suas tendências psicológicas, em suma, cada indivíduo é livre para buscar a
escola que mais se afine com as suas características, entretanto, é sumamente importante
relembrar que em ambos os casos (celibato ou sexo-yoga), a energial sexual deve ser
preservada, esta é, portanto, a pedra angular sobre a qual se apoia qualquer salvação
mística prometida pelo Tantra. Nesse sentido, tanto o caminho tântrico sexual quanto a
via celibatária compreendem a grande relevância da força sexual, pois em ambos os
casos o sêmen é preservado, jamais desperdiçado.

Para corroborar com nossa premissa, poderíamos citar dois mestres tântricos –
Drukpa Kunley e Gampopa129. O primeiro utilizou o sexo como instrumento de
salvação, já o segundo não. Ambos são exaltados devido ao alto grau espiritual que
atingiram, suas vidas transformaram-se em fonte de inspiração para muitos praticantes
budistas. Estes dois mestres são considerados verdadeiros budas pela tradição tântrica,

129
Sobre a vida de Gampopa, consultar pág. 140. Os ensinamentos e algumas anedotas sobre Drukpa
Kunley estão relatados no segundo capítulo (item 2.6).
152

indivíduos com plena realização interior. Poderíamos citar inúmeros outros mestres que
seguiram pela via sexual e outros tantos que preferiram a via do celibato, indicando
assim que a libertação budista, a completa salvação do sofrimento (iluminação) pode ser
atingida pelos dois métodos.

Vale ressaltar que, embora aceitemos a via do celibato, consideramos limitado o


projeto soteriólogico das escolas que professam unicamente este caminho (Tantra da
mão direita). Ou seja, defendemos a hipótese de que as escolas tântricas da mão
esquerda são mais completas, uma vez que proporcionam aos seus afiliados a
possibilidade de não apenas um, senão dois caminhos para a salvação mística-espiritual.
Em outras palavras, o Tantra da esquerda (ou as escolas remanescentes que ainda
ensinam a prática sexual como instrumento salvífico) possibilita uma escolha para o
discípulo, este pode optar pela via sexual, a qual é negada por outras escolas, ou
permanecer solitário, no caminho do celibato. Esta possibilidade de escolha impõe-se
como fundamental para privilegiarmos as escolas da mão esquerda.

Desta forma, acreditamos que o sexo-yoga não é apenas “uma” prática dentre
tantas outras que compõe o vasto cânon do Tantra, como afirmou Traleg Kyabgon em
parágrafos anteriores, senão que, em alguns casos, para certos indivíduos com
tendências kármicas específicas, ela se torna indispensável, tão importante quanto o
próprio celibato para aqueles buscadores com propensões ao isolamento monacal.
Portanto, esta tese se propõe a tarefa de ressignificar o valor do sexo-yoga, indicando
que este seria um caminho genuíno para a libertação, de modo que retirá-lo da ortodoxia
regular seria altamente comprometedor para as aspirações salvíficas do budismo. Ao
negar a via sexual, o budismo está fechando as portas da salvação interior para muitos
discípulos. Lembremos o caso do rei Indrabhūti 130, um grande adepto do Tantra, o qual
pediu às ḍākinīs um método de liberação que pudesse incluir os prazeres sensuais.

3.2 Prajñā e Upāya: simbolismo sexual nos textos tântricos

130
A história deste rei é relatada na página 109.
153

A fim de reforçar o caráter soteriológico do sexo-yoga e sua decisiva


importância no sendeiro espiritual, queremos aprofundar neste terceiro capítulo o
simbolismo encontrado nos textos tântricos que descrevem os efeitos do sexo-yoga no
corpo sutil do praticante. A proposta é evidenciar, com base nos textos-fontes, a
transformação que o Tantra proporciona na estrutura interna do praticante, a qual
possibilita alcançar os níveis mais elevados da espiritualidade budista.

Ao realizar as técnicas do sexo-yoga, o discípulo inicia um processo de


“construção interior”, começa a trabalhar com forças sutis emanadas de sua própria
natureza espiritual, são energias que estão além do plano físico. Uma das preocupações
fundamentais dos Tantras é conscientizar-nos de que o corpo físico é apenas uma
pequena parte, insipiente, da nossa verdadeira natureza oculta. Além desta forma física,
possuímos outros corpos suprasensíveis, incluindo em seu bojo uma complexa estrutura
interna, comportando canais sutis, veias, plexos, centros magnéticos etc. Existe uma
estreita ligação entre o Tantra, as práticas do sexo-yoga e o desenvolvimento dessa
anatomia oculta.

Muitas vezes, ao se referir a estas estruturas supra-sensíveis, os textos assim o


fazem através de um complexo simbolismo. Queremos que o leitor se sinta mais
confortável ao se deparar com os ensinamentos codificados dos Tantras; para tanto se
faz necessário conhecer o significado de algumas palavras que, com freqüência, se
repetem, e que, se não há uma compreensão do seu sentido oculto, a leitura do texto
torna-se enfadonha e até mesmo sem qualquer sentido.

Ao adentrarmos no universo dos textos tântricos, um dos primeiros pontos a se


destacar é o seu caráter eminentemente prático, isto é, busca-se introduzir o leitor
(iniciado) nas técnicas ritualísticas e yóguicas. Logo nos primeiros parágrafos da obra
Śrī-Cakraśaṁvara-Tantra percebemos que o conteúdo do livro não se destina ao estudo
intelectual, senão à prática ritualística, ao sadhāna que todo iniciado deve realizar a fim
de atingir os benefícios espirituais prometidos pelo budismo tântrico:

Esta é uma clara exposição do ritual do Mandala de Srī Chakra, o


Grande Prazer. Reverência ao Guru e a Srī Heruka. Curvando-se
reverentemente para o Guru, a essência de todos os Buddhas e para Srī
Heruka eu agora exponho este Sadhāna de Srī Chakra Mahāsukha.”
154

(ŚRĪ-CAKRAŚAMVARA-TANTRA, I, 1; DAWA-SAMDUP, 1987,


p. 73, tradução nossa).

Por se tratar de obras ritualísticas e alegóricas, os textos tântricos transformam-


se em verdadeiros enigmas para os não-iniciados. No entanto, a obscuridade e a
linguagem metafórica dos textos são propositais, como nos mostra Alex Wayman:

Os livros ocidentais sobre a religião inidiana muito frequentemente


associam o tantra budista com condutas obscenas. Isso resulta da
interpretação literal de certas passagens em obras como o Tantra
Guhyasamāja. Quando se tenta interpretar toda a obra dessa forma
literal, verifica-se que é impossível fazê-lo. Essas obras são relatos
sobre rituais, pois o tantra budista é primordialmente uma prática,
apesar de empregar doutrinas da escola Mahāyāna. Esses textos
empregam palavras com significados especiais e arbitrários e
deliberadamente introduzem obscuridades, para que não se saiba por
meio dos próprios textos o que está sendo feito. Alguns estudiosos
ocidentais acreditam que o conhecimento da língua (esses textos
foram quase todos compostos em sânscrito) é suficiente para a leitura
e compreensão, mas a tradição tântrica contradiz isso, atrubuindo ao
guru o papel de explicar o procedimento. (WAYMAN, 2006, p. 244)

No livro Fundamentos do misticismo Tibetano, o Lama Anagarika Govinda


esclarece que nos textos tântricos existe um mundo literário repleto de simbolismos,
linguagens ocultas, mantras secretos e certos ensinamentos que, para a razão
convencional, não faz qualquer sentido, mas que é necessário para a perpetuação deste
seleto conhecimento:

Esta linguagem simbólica não é apenas uma proteção contra a


profanação das coisas sagradas pela curiosidade intelectual e o mau
uso dos métodos de yoga e das forças psíquicas por ignorantes ou não-
iniciados, mas tem sua principal origem no fato de que a linguagem
usual é incapaz de expressar as mais altas experiências do espírito. O
indescritível, que só pode ser compreendido pelo iniciado ou
experimentador, somente pode ser sugerido sob forma alusiva, através
de parábolas e de paradoxos. (GOVINDA, 95, p. 57).

A mensagem codificada é na verdade uma proteção contra a profanação dos


ensinamentos, porém o Lama Govinda agrega a “ineficácia da linguagem” como outro
componente importante para a compreensão do simbolismo tântrico.
155

O budismo, de um modo geral, acredita que os ensinamentos verbais possuem


um limite, uma circunferência restrita ao âmbito racional. O próprio Buda, certa
ocasião, alertando os que procuravam vê-lo somente através de sua forma, ou da
“palavra”, afirmou que tal iniciativa era impossível131. O papel hermenêutico-textual no
budismo tem caráter propedêutico, é um primeiro degrau, necessário, porém longe de
ser a preocupação central.

Nesse sentido, existe a vital distinção entre “sentir um estado interior e estudar
sobre um estado interior”. Podemos dar o exemplo de um homem que estudou a vida
inteira livros sobre meditação e os benefícios da mente pacificada, porém nunca atingiu
este estado, mesmo com toda a carga teórica nunca alcançou a paz profunda advindo da
mente meditativa; analogamente acontece com um indivíduo que sabe, intelectualmente,
todas as regras para dirigir um carro, porém a menos que entre num veículo e pratique
regularmente nunca será um bom condutor. Portanto, a prática, o treinamento diário é a
essência do método tântrico budista. A proposta é estimular o “experimentar”, o
“vivenciar”, em detrimento ao “conceituar”, portanto:

Não importa quantas religiões mundiais consideremos, sua


interpretação de Deus, Buda, etc. é simplesmente palavras e mente;
Estes dois sozinhos. Por isso, as palavras não importam tanto. O que
você tem que perceber é que tudo – bom e mau, toda filosofia e
doutrina – vem da mente [...]. Desta forma, você pode dirigir sua
poderosa energia mental para beneficiar sua vida em vez de deixá-la
correr de forma incontrolável como um elefante louco, destruindo-se e
a outros. (YESHE, 1999, p. 11, tradução nossa).

Corroborando com os ensinamentos do Lama Yeshe, continuamos nossas


análises utilizando como exemplo a “experiência do samādhi”, a qual é incapaz de
transferir, através das palavras, o êxtase experimentado pelo yogin. A ausência de
pensamentos proporcionada pela experiência do samādhi é um “estado de consciência”,
alcançado pelo praticante tântrico avançado, contudo, somente ele (o experimentador),
pode sentir os benefícios da técnica, as palavras restringem-se a uma tradução grosseira
e limitada da experiência, são incapazes de reproduzir a totalidade das emoções
superiores vividas pelo yogin.

131
Cf. SUZUKI, 2002, p. 34.
156

Muitos mestres tântricos, conscientes da limitação das palavras, transmitiam


seus ensinamentos de um modo totalmente enigmático. Reproduziam no texto a
“vivência” mística, que muitas vezes foi redigida de forma poética. Portanto, ao
descrever suas vivências, alguns mestres do Tantra não se preocupavam com
sistematizações ou com qualquer lógica racional, escreviam suas experiências no
“estado de não-mente”, desarticulando todas as ferramentas do pensamento discursivo,
criavam, ao seu modo, novas formas de expressão advindas desse estado superior de
consciência. Como descrever com palavras a nudeza crepuscular da realidade? Como
reproduzir isso, senão pelos inspirados pedaços da poesia?

Mircea Eliade (2012) explica que o processo de construção e desconstrução da


linguagem é um método muito comum dentre os poetas tântricos, sobretudo os
siddhācāryas (também conhecidos como mahāsiddhas) – autores de canções “cifradas”.
Seus ensinamentos foram reproduzidos textualmente na forma literária conhecida como
dohākośa132. Eliade apresenta uma dessas canções ou dohākośa do poeta tântrico
Kukkurīpāda:

Quando se ordenham “as duas” [mamas, ou “quando se ordenha a


tartaruga”] não se pode guardar [o leite] no pote; o tamarindo da
árvore é comido pelo crocodilo. A fronte está perto da casa [...], o
brinco é roubado no meio da noite. O sogro adormece, a nora acorda –
o ladrão roubou o brinco, onde se pode buscar? Mesmo durante o dia a
nora grita de medo diante da gralha – onde vai ela durante a noite?
(KUKKURĪPĀDA apud ELIADE, 2012, p. 198).

Qualquer leitor ao se deparar com um texto semelhante a este, decerto ficaria


espantado com tamanha incoerência. Entretanto, esta é uma mensagem criptografada,
muito comum nos textos-fontes do Tantra budista. Ela é o resultado da “experimentação
mística”; para compreendê-la exige-se “nível de consciência”, experiência com as
práticas yóguicas, e mais do que isso, o empoderamento do guru e suas explicações
baseadas numa tradição milenar. Sem esses pré-requisitos, torna-se muito difícil a

132
Poesia escrita em sânscrito e outras línguas antigas da Índia. Emprega vários tipos de versos e
medidores. Os versos do Doha são organizados em apenas duas linhas, formando um “par” ou um “casal”
de ideias concisas, cada qual podendo conter uma forma de pensamento independente. Os dohākośa estão
inseridos na segunda parte do cânon tibetano, mais especificamente no Tanjur (bsTan-ḥgyur) “tradução
dos tratados”. Cf. JACKSON, 2004.
157

correta compreensão do texto. A seguir, apresentamos a desvelação de Eliade acerca


desta passagem citada acima:

Segundo os comentários, o sentido parece ser o seguinte: “as duas”,


são os dois canais ida e pingala; o líquido que se “ordenha” ou extrai é
o bodhicitta (o que pode ser entendido em muitos sentidos) e o “pote”
é o manipura (o cakra da região umbilical). A “árvore” significa o
corpo e o “tamarindo” o sêmen viril em sua forma de boddhicitta; o
“crocodilo” que o “come” é a cessação yóguica da respiração
(kumbhaka). A “casa” é a sede da beatitude; o “brinco” representa o
princípio da sujeira e o “ladrão” simboliza sahajānanda [...], “meia-
noite” é o estado de completa absorção na felicidade suprema. O
“sogro” é a respiração; o “dia”, o estado ativo do pensamento, e a
“noite” seu estado de repouso. (ELIADE, 2012, p. 210).

Muitas palavras da tradição Mahāyāna recebem um tom erótico quando


incorporadas nos textos tântricos. “A palavra padma (lótus) é interpretada como bhaga
(matriz); vajra (raio) significa liṅga (membro viril).” (ELIADE, 2012, p. 211). O vajra
é frequentemente mencionado nos textos, ele representa a potência espiritual contida no
falo masculino. A palavra padma se refere ao órgão sexual feminino, é o próprio
complemento existencial do vajra (órgão masculino), que possibilita a libertação do
sofrimento, como destaca o pesquisador Georg Feuerstein:

A união do vajra com o “lótus” (padma) é o meio pelo qual se atinge


a liberação. Novamente, em um nível, o lótus é a vagina; em outro
nível, o lótus é o coração, o assento da intuição espiritual; e no último
nível simbólico, representa o princípio cósmico feminino.
(FEUERSTEIN, 2004, p. 136).

Além de vajra e padma existem muitos outros termos que expressam o


simbolismo erótico sexual, porém ficaremos debruçados em duas outras palavras
sânscritas fundamentais, que se repetem com freqüência nos textos tântricos budistas,
são elas: upāya (os meios) e prajñā (sabedoria).

O processo de iluminação espiritual é representado iconograficamente pelas


divindades budistas em pleno coito carnal: a união entre macho e fêmea no êxtase do
amor representa, em termos alegóricos, a união cosmogônica entre o elemento ativo,
masculino (upāya) e seu complemento existencial (prajñā) que está vinculada ao
158

aspecto feminino e passivo. Trata-se de um “retorno” ao estado primordial de não-


diferenciação, como observa Eliade:

Reconhece-se nesta dialética dos contrários o tema favorito da escola


mādhyamika e, em geral, dos filósofos adeptos do mahāyāna. Porém,
o tantrismo se interessa pelo sādhana: quer “realizar” o paradoxo
expresso por todas as fórmulas e imagens que se referem à união dos
contrários; quer chegar experimentalmente ao estado de não-
dualidade. Os textos budistas popularizaram sobretudo dois “pares de
contrários”: prajñā, a sabedoria, e upāya, o meio de atingi-la; śūnyatā,
a vacuidade, e karuna, a compaixão. Unificá-los ou transcendê-los
equivaleria a chegar à situação pardoxal de um bodhisattva: em sua
sabedoria ele já não vê pessoas (porque metafisicamente a “pessoa”
não existe; existe apenas um agregado de cinco skandha); não
obstante, em sua compaixão, o bodhisattva se esforça por salvar as
pessoas. O tantrismo multiplica os pares de contrários: Sol e Lua, Śiva
e Śakti, iḍā e piṅgalā etc. e, como vimos, esforça-se por “unificá-los”
mediante técnicas de fisiologia sutil e meditação. (ELIADE, 2012, p.
224-225, grifo nosso).

Esta “comunhão dos contrários” tão marcante na literatura tântrica é atestada por
outros pesquisadores, como é o caso do professor Shashi Bhusan Dasgupta, que
deposita na palavra “união”, um dos temas centrais de todos os Tantras budistas:

Um estudo especulativo sobre a natureza da bodhichitta nos mostrará


que o ponto central de todos os sadhanas dos budistas tântricos foi um
princípio de união. A síntesi, ou melhor, a unificação de toda a
dualidade em uma unidade absoluta é o princípio real da união [...].
(DASGUPTA, 1950, p. 125, grifo do autor, tradução nossa).

A linguagem alegórica dos Tantras, sobretudo quando mencionam os termos


prajñā e upāya, na verdade, em muitos casos, estão se referindo à união sexual entre um
homem (upāya) e uma mulher (prajñā). Entretanto, alertamos aos leitores que tais
conceitos, assim como acontece com outras palavras sânscritas, podem receber
diferentes significados dependendo do contexto em que estão sendo utilizadas.

As divindades tântricas, quando pintadas ou esculpidas em união sexual,


possuem diferentes significados: expressam a harmonia existencial, isto é, positivo e
negativo, bem e mal, em essência, são fenômenos não-diferenciados, a natureza de
159

ambos é a vacuidade. Outro importante significado emanado dessas iconografias


sensuais está relacionado ao sexo-yoga e sua relevância espiritual no contexto tântrico.

Nesse sentido, homem (upāya) e mulher (prajñā) integram o espaço sagrado,


expressam, primeiramente, a harmonia universal das forças bipolares da existência,
encontrando vívida expressão num estado de consciência superior, atingido através do
êxtase sexual. A seguir, apresentamos uma citação de Tsongkhapa que corrobora com o
nosso posicionamento teórico:

Usualmente nos tantras e nos tratados o praticante é masculino e um


dos quatro tipos de mulheres mencionados com frequencia pelos
textos é a sua própria consorte. Neste contexto, não apenas o homem,
mas também sua consorte devem ser praticantes do caminho; porque é
dito repetidamente que os meios dependem da sabedoria para a
liberação, e a sabedoria, igualmente, também depende dos meios para
sua libertação. (TSONGKHAPA, 2010, I, 10b, tradução nossa, grifo
do autor).

A passagem de Tsongkhapa é relevante porque em muitas traduções inglesas os


termos sânscritos prajñā e upāya são traduzidos por “sabedoria” e “meios”. Ou seja, em
alguns textos encontraremos estes termos transliterados diretamente do sânscrito e em
outros já os encontraremos traduzidos para a língua do tradutor. De todo modo, o que
realmente nos interessa é que prajñā (sabedoria) e upāya (meios) estão intrinsecamente
ligados à sexualidade, à união entre o homem e a mulher.

Tsongkhapa menciona a necessidade da consorte está trilhando um caminho


espiritual. De fato, para o praticante tântrico, que depende do poder feminino para o seu
desenvolvimento, a possibilidade de relacionar-se com uma praticante avançada seria
uma grande ajuda para o seu sādhana. O sétimo Dalai Lama também deposita no poder
feminino uma grande responsabilidade:

O yogi depende de condições internas (isto é, de controle de energia) e


externas (isto é, uma consorte sexual) para manifestar a clara luz, que
no Vajrayana representa o último nível de verdade e é o remédio que
elimina imediatamente os nove círculos de obscurecimentos do
conhecimento. (DALAI LAMA XIII, 2006, p. 49, tradução nossa).
160

Para se referir ao “controle da energia sexual”, a literatura tântrica, de forma


simbólica, utiliza as seguintes expressões: “reter a bodhicitta”, “dissolver a energia vital
no canal central (Avadhūtī)”, “controle dos ventos sutis”, “fusão ou mistura da semente
branca e da semente vermelha” etc.; todas essas expressões, de um modo geral, estão
relacionadas com a “energia vital”, ou os “ventos sutis”, que na realidade, nada mais são
do que a própria bodhicitta, que neste contexto, é a própria energia sexual. “Misturar as
sementes brancas e vermelhas” é a descrição da união sexual, onde a energia masculina
(branca), funde-se com a feminina (vermelha), por meio desta condensação, a energia
inicia o seu movimento ascendente, passando pelos canais sutis dos praticantes. Ou seja,
a energia seminal não é desperdiçada, o homem sublima o sêmen, não o deixa escapar.
Portanto, as condições externas (consorte) e internas (domínio da energia sexual)
precisam estar presentes para a ativação destas forças sutis.

O controle energético-sexual refere-se à sublimação da energia, ao poder latente


que está depositado no sêmen masculino, bem como na líbido feminina. O Tantra utiliza
o sexo-yoga a fim liberar esta força espiritual poderosa que se encontra no sêmen,
possibilitando ao praticante o acesso à realidade última da natureza, tal como é expresso
por Tsongkhapa:

Através das condições internas, do método meditativo de controle da


energia vital é possível realizar isso, e por meio das condições
externas, isto é, apoiando-se na união com uma consorte, as energias
sutis e o espírito da iluminação ambos são comprimidos no centro do
coração desde a parte superior e inferior do corpo. Tal como é
expresso por [Āryadeva] no Práticas Integradas: ‘Junto com sua
consorte, pelo processo holístico da fixação ou pela dissolução em
série, adentramos na realidade última. (TSONGKHAPA, 2010, VI,
199a, tradução nossa).

Tsongkhapa (2010) em outra passagem do seu livro Brillant Illumination of the


Lamp of the Five Stages explica que a mistura das forças femininas e masculinas
condensadas no cakra do coração são capazes de conduzir o ser humano às alturas mais
elevadas do êxtase místico. O autor cita novamente a obra “Práticas Integradas” de
Aryadeva que descreve, alegoricamente, o processo de união sexual entre o homem
(Vajra, upāya) e a mulher (lótus, prajñā): “Pela união do Vraja e do lótus, iniciando
desde a coroa, o espírito da iluminação é dissolvido nos 72.000 canais e desce
161

gradualmente através da luxúria, da não-luxúria, e do estado intermediário entre eles.”


(ARYADEVA apud TSONGKHAPA, 2010, VI, 199a, tradução nossa).

Referindo-se a esta união entre o Vajra e o lótus, a Guhyasamāja-tantra nos


lança diretamente ao encontro do sexo-yoga: “Unindo os 2 órgãos, com o vraja
conectado ao lótus, deve-se adorar os budas e Vajrasattvas com as gotas de sua própria
semente.” (GUHYASAMĀJA TANTRA, VII, 26; FREMANTLE, 1971, p. 48). As
“gotas de sua própria semente” se referem à força erótica-sexual a qual tem importância
decisiva para o processo de desenvolvimento do corpo sutil, o qual será devidamente
analisado no próximo íten deste terceiro capítulo.

3.3 O êxtase e a salvação através do maithuna: Mahāsukha

O texto tântrico Kalacakra é também analisado no sentido alegórico, Geshe


Lharampa Ngawang Dhargyey, explica o significado sensual incutido nesta importante
obra budista, e novamente nos deparamos com os “meios” e a “sabedoria” como método
de desenvolvimento espiritual:

É muito importante compreender claramente o significado da união


sexual da divindade com a sua consorte. Isto simboliza
especificamente a união dos meios e da sabedoria. Neste caso, a
deidade Kalacakra simboliza os meios [...], refere-se à grande
felicidade. A consorte simboliza a sabedoria que é a realização do
vazio. A união de ambos simboliza o grande êxtase e a sabedoria do
vazio. (DHARGYEY, 1994, p. 60-61, tradução nossa).

Em grande parte das aparições de prajñā (sabedoria) e upāya (meios) nos textos
tântricos, via de regra, eles estão dirigidos ao processo de realização espiritual. Um forte
cunho soteriológico está implícito na união destes dois conceitos, por meio deles, o
yogin supera as limitações grosseiras do devir e alcança o “grande êxtase”
(Mahāsukha), que nada mais é do que o próprio nirvāṇa. O professor Benoytosh
Bhattacharyya explica que os termos sânscritos Mahāsukha (êxtase supremo) e
162

nirvāṇa133, dentro da perspectiva tântrica, expressam um mesmo significado de


arroubamento místico proporcionado pelo sexo-yoga, e novamente encontramos um
forte apelo ao salvacionismo religioso:

[...] Os tântricos definiram o Nirvāṇa como Śuniā, Vijñāna e


Mahāsukha, explicaram que a mente iluminada pelo nirvāṇa é
representado pelo abraço de uma mulher. Os praticantes tântricos
associavam-se com um número de mulheres representadas como as
suas próprias Śaktis, a união entre eles era denominada Yoga; gerava-
se, a partir desta união, uma força poderosa capaz de conduzi-los à
salvação. (BHATTACHARYYA, 1989, p. 33, tradução nossa, grifo
do autor).

Os textos tântricos apresentam os termos upāya e prajñā como os verdadeiros


mecanismos do salvacionismo místico budista, nesta “salvação” está implícita a ideia de
beatitude, de total emancipação da dor existencial. Mais do que um simples fenômeno
social, o sexo converte-se em objeto de culto, capaz de “transmutar” a química corporal
em estados superiores de consciência. Sobre esse tópico, Mircea Eliade enfatiza a
função salvacionista da sexualidade tântrica hindu e budista: “O maithuna é conhecido
desde os tempos védicos, mas caberá ao tantrismo transformá-lo em instrumento de
salvação.” (ELIADE, 2012, p. 213).

Na sexualidade tântrica a necessidade sádica do domínio está totalmente


excluída; o início do processo é doloroso, pois ao invés do frenesi passional
proporcionado pelo sexo ordinário, o Tantra lhe pede a entrega serena. O prazer
espiritual exige os galopes mais sobressaltados da consciência, em outras palavras, o
praticante precisa ir além das suas fantasias sensuais. A busca desenfreada pelo prazer
carnal deve ser transmutada, espiritualizada. A essência do sexo tântrico está justamente
ancorada no esquecimento de si. O ego, a personalidade, o indivíduo (este ser que
possui uma profissão, uma família, uma religião, uma ideologia etc.) todo este conjunto
psíquico chamado “eu”, não deve entrar na sacra arena do erotismo, na câmara nupcial,
simplesmente porque desconhece os seus mistérios, provavelmente se perderá em algum
momento da jornada.

133
Conforme o dicionário budista editado por Nyanatiloka, a palavra sânscrita nirvāṇa, significa
literalmente “extinção” (nir + va, cessar o sopro, se tornar extinto); é a libertação última e definitiva do
renascimento, velhice, doença e morte, de todo sofrimento/miséria/infelicidade/desventura. Cf.
NYANATILOKA, 1970.
163

Para o Tantra, no âmbito sexual, só existe um único preceptor: a vacuidade! O


autêntico sexo-yoga efetiva-se pelas mãos do silêncio, pela eloquência do vazio; durante
o intercurso sexual nenhum pensamento pode estar presente, nenhuma meta, qualquer
divisão interior adultera o rito, redimensionando-o para a esfera do egotismo, para a
satisfação dos desejos individuais. A patologia do sexo reside justamente na
incapacidade da entrega, ao invés de nos entregarmos ao “não-desejo”, aproveitando
sabiamente as carícias do amor, preferimos os fetiches sensuais. Existe um sabotador
em nossa mente, um “falso eu” que tenta, a todo custo, saciar as suas baixas paixões.
Enquanto o sabotador (ego) estiver presente, nenhuma transcendência será atingida, pois
ele não possui o mapa para o “grande êxtase”, sua presença é hostil, profanadora, com
este desditoso intruso a função salvacionista do sexo deixará de existir, pois o
verdadeiro amante – a vacuidade – saiu de cena.

Ora, somente a compaixão (Karuṇā) indivisa do vazio é capaz de amar por amar,
sem pedir nada em troca. Quando a vacuidade ou a grande compaixão se apodera dos
amantes, um belo fenômeno acontece: eles são lançados para fora do tempo, tornam-se
unos com a existência, o “poder da presença”, do “existir-na-momentaneidade” é
sentido desde as células mais elementares do corpo físico, nesses instantes de êxtase
místico, os amantes se apoderam do “grande segredo”, da “flor de ouro”, do seleto
espaço da atemporalidade, da “outra margem”, reduto dos yogins avançados.

Nesse “novo mundo” sujeito e objeto desaparecem, não há nada para se


contemplar do lado de fora, amor e amante estão fusionados pelo vazio indiviso. O mais
belo presente do sexo-yoga é ofertado ao casal neste extato momento em que o “eu” não
existe mais e consequentemente suas metas e fantasias sexuais também deixaram de
existir, então o objetivo do Tantra é atingido: abre-se o canal para o nirvāṇa, para o
“sair de si”, a experiência da beatitude mística, que está além da matéria e dos apegos
humanos, em suma, Mahāsukha finalmente foi encontrado.

Portanto, o “grande êxtase”, ou a “suprema felicidade” (Mahāsukha)


experimentado pelo praticante tântrico é a perfeita união entre espiritualidade e
sexualidade. O professor Dasgupta, reforçando nossas explanações, explica que este
conceito budista nada tem que ver com o prazer carnal desfrutado pelos amantes
ordinários, ou não-iniciados, vejamos a sua explicação sobre este ponto:
164

Em nossa vida ordinária experimentamos um intenso prazer nas


relações sexuais. Existe uma enorme diferença entre este prazer sexual
e o êxtase perfeito, que é a natureza última do eu e do não-eu [...]. O
sexo-yoga, sādhanā dos tântricos, busca transformar este prazer
sexual em uma realização de infinita bem-aventurança, na qual o eu e
o mundo ao seu redor são absorvidos numa total unicidade. Esta
imersão do eu e do não-eu na unicidade da bem-aventurança é o que é
compreendido como nirvaṇā pelos budistas tântricos. (DASGUPTA,
1950, p. 160-161, grifo do autor, tradução nossa).

O Tantra exige do praticante a capacidade de viver em outra dimensão,


paradoxalmente, isto significa mover-se na direção contrária ao prazer. Neste momento
podemos nos confundir um pouco, visto que, desde o primeiro capítulo estamos
afirmando que o Tantra estimula o uso das paixões e do prazer como meios de elevação
espiritual, porém agora afirmamos que durante o ato sexual este mesmo prazer deve ser
contido. Como resolver este impasse?

De fato, o Tantra utiliza as paixões e os desejos na via espiritual, contudo agrega


outro componente fundamental para o triunfo do método: a consciência. Neste contexto,
“consciência” significa tão somente a capacidade de viver o “presente”, é a própria
vigilância da mente, o esforço em não permitir qualquer interferência do ego 134 durante
a prática do sexo-yoga. Trata-se do próprio domínio dos pensamentos, emoções,
sentimentos, prazeres etc. Exige-se do praticante autodomínio, uma força interior capaz
de refrear os anseios desmedidos das paixões egocêntricas.

Portanto, na verdade, o devoto tântrico adentra com todas as suas forças no


mundo sinuoso dos prazeres e paixões sensuais, mas diferentemente das grandes
massas, ele possui as chaves da libertação, conhece os segredos íntimos da
“transmutação”, está plenamente cônscio do projeto escatológico no qual o sexo está
envolvido, e ao invés do desfrute sensório, sua visão é redirecionada para o
autodomínio, à superação de todos os condicionamentos da mente – luxúria,
concupiscência, morbosidade, aversão etc.

A mulher, para ele, não é um simples objeto, senão uma ponte, um complemento
existencial que transcende os limites da matéria. Na verdade, busca-se, com as práticas

134
Ego, neste contexto, significa a falsa identidade, desejos e anseios que habitam a mente humana,
porém estes não refletem a nossa real natureza, que é pura e iluminada.
165

alquímicas, a completa transformação interior, como atesta Houseman: “Alquimia


(rasāyana) é a transmutação de substâncias básicas em outras mais elevadas. O caminho
tântrico é alquímico [...] diz aos praticantes: ‘pela benção da alquimia, alcança-se a
verdadeira bem-aventurança’.” (HOUSEMAN, 2014, p. 96).

Com semelhante entendimento, o sexo converte-se num verdadeiro rito


sacramental, santificado pelo nível de consciência do praticante. Então, o salto é
possível. A migração do material para o imaterial é agora iniciada, pois a consciência
compreendeu a missão libertadora do sexo-yoga. O treinamento é árduo, antes de
alcançar o grande êxtase místico, o praticante ainda precisa trilhar uma longa jornada,
triunfos e fracassos fazem parte deste jogo.

Ainda sobre os efeitos do maithuna, o professor Dasgupta esclarece que a


palavra sânscrita rāga, em alguns casos, significa justamente esse arroubamento
místico, um “prazer superior”, essa indescritível felicidade ou “êxtase divino”,
produzido, principalmente através da conexão entre prajñā (sabedoria) e upāya (meios),
ou homem e mulher:

Portanto, está claro que a palavra rāga foi usada para significar a
intensa emoção do êxtase que é produzida através da metódica e bem
controlada união de prajñā e upāya; esta emoção, graças a sua elevada
intensidade, é capaz de absorver todas as demais funções constitutivas
da mente e por isso trazer a liberação para o yogin. (DASGUPTA,
1950, p. 137-138, grifo do autor, tradução nossa).

Em outra passagem esclarecedora, Dasgupta analisa a evolução do termo rāga


em diversos textos tântricos. É interessante observar que esta palavra, dependendo da
literatura consultada e do contexto em que está inserida, pode significar “apego”, ou
seja, algo negativo para as pretensões salvíficas do iniciado budista. Contudo, o termo
foi, pouco a pouco, ganhando novas conotações até que finalmente acaba por designar o
próprio êxtase emergido através da prática do sexo-yoga, a transcendental fusão
cosmogônica entre prajñā e upāya:

Outro fato a ser observado no Budismo esotérico é o conceito de rāga


que ordinariamente significa profundo apego [...]. A palavra rāga
também é usada como Karuṇā [...]. No prajñopāya-viniścaya-siddhi é
166

dito que kṛpā ou compaixão é entendida como rāga porque com ele
alcançamos a felicidade (rañjati) e salvamos (rakṣati) todos os seres
imergidos no oceano do sofrimento. No Jvālāvali-vajramālā-tantra
encontramos a palavra rāga utilizada como upāya. Mas gradualmente
a palavra passou a designar o êxtase intenso e transcendental
decorrente das práticas do sexo-yoga, que através dos meios (upāya)
atingie-se a Bodhicitta ou o Sahaja que são da mesma natureza da
grande bem-aventurança (māha-sukha). No Kriyā-saṁgraha é dito
que o nectar da bodhicitta é para ser meditado em fusão com
māharāga. No Hevajra-tantra também encontramos o senhor supremo
e sua Śaki em profunda união, no êxtase-sahaja, em intensa afecção
emocional [...]. (DASGUPTA, 1950, p. 135-136, grifo do autor,
tradução nossa).

Reforçamos aqui que o objetivo do sexo-yoga é lançar os corpos dos amantes na


terrível arena do desejo: neste duro combate a vitória é consolidada quando se
transcende a lascívia, permitindo que a mente repouse sobre sua própria essência
luminosa, sem interferência de qualquer pensamento. Os amantes devem aprender a
linguagem do vazio. O “falso amor” do ego deve ser transmutado pela sublime
compaixão surgida da própria vacuidade. Trata-se de uma operação alquímica em que
substituimos a “ideia-racional-de-amor” pela “intuição-mística-do-vazio”. O maithuna
não cede espaço aos cálculos da razão, o rito sacro-sexual é um fenômeno intuitivo,
profundo; exige-se dos praticantes o estado de “não-mente”, situando-se assim em
perfeito equilíbrio interior, abrindo possibilidades reais para a obtenção da insuperável
iluminação, a grande salvação budista.

Logo nos primeiros parágrafos do Hevajra-tantra, encontramos uma explicação


muito precisa sobre o significado esotérico do termo “Hevraja” e de sua conexão com
upāya (meios) e prajñā (sabedoria).

Vajragarbha disse: "O que significa esse nome composto HEVAJRA?


O que é proclamado pelo som HE, e também por VAJRA? O Senhor
respondeu: “Pelo HE é proclamado a grande compaixão, e sabedoria
pelo VAJRA. Escute este tantra, a essência da sabedoria e dos meios,
o qual agora é proclamado por mim.” (HEVRAJA-TANTRA, I, b. 6-
7; SNELLGROVE, 1959, p. 47-48, tradução nossa, grifo do autor).

Em outro texto, o Śrī-Cakraśaṁvara-Tantra também é descrito a divindade


Heruka em união sexual com sua consorte Vajra Vārāhī. Cada parte da divindade: os
braços, o olhar, o cabelo, os ornamentos etc. tudo possui um cunho simbólico adaptado
167

à linguagem esotérica do budismo tântrico. Novamente, encontramos a ideia de “união”


associada à beatitude, ao êxtase. Vejamos um trecho em que Heruka é simbolizado
pelos “meios” (upāya) e sua consorte como a “sabedoria” (prajñā):

Os Meios e a Grande Compaixão aparecem como divindade


masculina enquanto o vazio, Prajñā, tranqüilidade e o grande êxtase
são a divindade feminina. Para mostrar que estes dois devem estar
unidos, eles são descritos em união sexual, tocando todos os pontos de
contato. (ŚRĪ-CAKRAŚAMVARA-TANTRA, I, 28-29; DAWA-
SAMDUP, 1987, p. 100, 101).

Sir John Woodroffe (1987) analisando a obra Śrī-Cakraśaṁvara-Tantra,


esclarece que a palavra tibetana bDemchog significa “grande prazer”, “suprema bem-
aventuraça” ou “supremo êxtase”, é um sinônimo do termo sânscrito Mahāsukha.
Segundo o autor, a natureza constitutiva da divindade Heruka – principal personagem
do Cakraśaṁvara-Tantra – é o próprio êxtase, esta é a sua principal característica.
Portanto, esta obra literária busca traçar um método iniciático capaz de conduzir o ser
humano ao “êxtase espiritual”, ou ao “supremo prazer” (Mahāsukha), que neste
contexto, é alcançado através da união mística-sensual das divindades Heruka (upāya) e
sua consorte Vājrā-varahī (prajñā):

A palavra tibetana (bDemchog) significa supremo prazer


(Mahāsukha), que é o estado de Devatā, adorado neste tantra, e que
também é conhecido como Demchog. Vajra-yoginī (rDo-rje rNal-
hbyorma) ou Vājrā-varahī (rDo-rje Phagmo) é a sua consorte [...]. Ele
é o método (Thabs) ou compaixão, e ela é a sabedoria (Shes-rabs) que
é o vazio ou Shūnyatā [...]. (WOODROFFE, 1987, p. 49-50).

Os poderes místicos, as faculdades parasensoriais do homem, o êxtase espiritual,


são conquistas esotéricas prometidas pelos Tantras. Elas estão em estreita relação com o
sexo-yoga, como podemos observar na obra Guhyasamāja-tantra:

O que é meditação na recordação do vajra? Colocando o liṅga no


bhaga o sábio deve vizualizar Vajrasattva e enviar nuvens da sua
família através dos seus poros [...]. O que é meditação na recordação
do samaya? Unindo os dois órgãos, com seu vajra unido ao lótus, ele
deve adorar os Buddhas e os Vajrasattvas com a energia da sua
semente [...]. O que é meditação na recordação do samaya? Aquele
168

que deseja o resultado deve beber o sêmen produzido a partir da


sagrada união, e eliminar o anfitrião dos thatagatas, atingindo assim os
poderes últimos. (GUHYASAMĀJA TANTRA, VII, 23-33;
FREMANTLE, 1971, p. 48-49, tradução nossa, grifo nosso).

Estamos convencidos de que a passagem acima se refere ao sexo-yoga. Vale


ressaltar que, conforme explicações dadas no segundo capítulo, a prática do sexo-yoga
não é conferida a qualquer devoto, por isso reforçamos a ideia de que somente um guru
altamente qualificado estaria em condições de explicar esta passagem, tornando-a
realizável e compatível com as aspirações do dharma.

Alexandra David-Néel explica que no misticismo tibetano existe uma estranha


prática cujo único objetivo é a continuação da estirpe de mestres, ou seja, gerar uma
criança com o intuito de torná-la um iniciado e sucessor da linhagem de seu pai, que
neste caso é o próprio guru. Segundo a autora, um rito semelhante a este descrito na
Guhyasamāja-tantra teria sido realizado por Marpa (mestre de Milarepa) para outro
discípulo casado chamado Ngog Tcheudor:

No final do retiro, com as iniciações devidamente conferidas a marido


e mulher, erigido o kyilkhor e todas as cerimônias terminadas, Marpa
fechou-se em seu oratório particular com sua esposa Dagmédma e o
jovem casal. Ali, ao lado de sua esposa-fada, sentou-se o lama no
trono ritual, enquanto Ngog Tcheudor e sua mulher quedavam-se
abraçados a seus pés. Marpa recolheu então o seu esperma em uma
taça feita de crânio humano adicionando-lhe diversos ingredientes
supostamente dotados de propriedades mágicas, e a poção foi bebida
pelo discípulo e sua mulher. (DAVID-NÉEL, [s/d], p. 31-32).

Novamente, o sêmen é mencionado como um importante condutor energético


capaz de transmitir à criança a força espiritual do guru. A autora salienta que tais
práticas são conhecidas por um pequeno grupo de lamas, sendo raramente executados.
“Diz-se que somente os iniciados nos mais profundos segredos de certa categoria de
doutrinas esotéricas têm o direito de praticá-lo. Qualquer outro que o fizesse, teria por
castigo um renascimento como demônio.” (DAVID-NÉEL, [s/d], p. 32).

Victor M. Fic (2003) confirma a existência desses ritos no interior do Tantra


budista. O autor faz uma descrição detalhada sobre o ritual realizado por alguns adeptos
tântricos cujo objetivo é a fusão com Śakti. O principal mantra do Tibete “OM MANI
169

PADME HUM”, recebe uma significação erótica, através de sua recitação fervorosa, o
devoto imagina a si mesmo unido sexualmente com Śakti (energia feminina), desta
conexão surge um poderoso círculo energético, envolvendo os praticantes em uma
atmosfera psíquica-sexual de grande intensidade, abrindo ou despertando os canais sutis
do praticante, a fim de que este atinja a suprema dita, o êxtase místico, a fusão
cosmogônica:

Complexas cerimônias e rituais são realizados pelo mestre Tântrico


mais experiente durante a iniciação de um noviço dentro do Budismo
Tântrico Vajrayana no Tibete. Estas consistem, dependendo da seita
envolvida, em beber vinho ou sangue consagrado em uma taça
cerimonial feita de crânio humano, em seguida sopra-se uma trombeta
feita de osso humano a fim de expulsar espíritos demoníacos, em
seguida o sino cerimonial é ressoado, utilizando o vajra para invocar
as forças cósmicas, cantando mantras, oferecendo flores consagradas e
comida, tocando tambores sagrados e música, desenhando mandalas e
círculos mágicos ao redor do noviço, e outros rituais sagrados. Aqui a
união com Sakti é imaginária, simbólica, alcançado pelo mais famoso
canto de “seis sílabas” (sadksara) mantra “OM MANI PADME
HUM”, significando que o diamante (linga) está dentro do lótus
(yoni). O devoto repete esta invocação imaginando que está unido
com Sakti, gerando uma poderosa energia psíquica-sexual, a qual é
sublimada e transmutada, possibilitando à consciência do noviço o
sentir da suprema dita, do êxtase, conhecimento e iluminação.
Contudo, em algumas escolas do Budismo Tântrico a união com Sakti,
embora ritualítica em objetivos é real no sentido físico, envolvendo
união sexual. Os rituais de iniciação no tantra Hevajra realizados pelo
mestre tântrico envolve a consagração da vagina feminina, que se
converte na própria Sakti do noviço, e a união sexual ritualística
transfere a energia do mestre para ela, que por sua vez, poderá
transmitir este poder ao seu parceiro [...]. (FIC, 2003, localização
776135).

Inegavelmente, esses rituais estão limitados a pequenos grupos devido ao seu


teor altamente polêmico. Todavia, não podemos negligenciar a sua apararição em
alguns contextos da religiosidade budista. De fato, os ritos mistéricos e as artes mágicas
constituem realidades incontestáveis dentro do universo tântrico.

135
A obra The Tantra escrita por Victor M. Fic é citada de forma diferente das demais literaturas, porque
foi consultada por meio do leitor digital Kindle, o qual não utiliza a referência numérica a qual estamos
habituados (no leitor Kindle não aparece a página, mas a localização, esta não segue uma ordem
crescente). Portanto, a citação terá o ano da obra seguida de sua “localização”, conforme o leitor digital
mencionado.
170

3.4 A construção da anatomia oculta e o fenômeno das 4 alegrias

De fato, no Hevraja-tantra existe uma especial inclinação ao erotismo místico,


evidenciamos, novamente, nessa literatura o aparecimento do vajra e do lótus;
acreditamos que estas duas palavras estão diretamente ligadas ao sexo-yoga, tal como
foi explicado por Tsongkhapa e Aryadeva nos parágrafos anteriores. A seguir,
apresentamos uma passagem do Hevraja-Tantra que reforça a importância simbólica e
sexual destes dois termos e sua característica cosmogônica:

O Senhor respondeu: “Da união do vajra e do lótus, lá surge a terra do


contato com as duras qualidades. Através do fluxo do śukra, surgem
as águas e da fricção surge o fogo. O vento vem do movimento, e o
espaço corresponde à felicidade [...]. O yogin é o meio e a compaixão,
e a yoguinī, sabedoria e vazio [...]. O pensamento da iluminação é a
unidade indivisa da Compaixão e do Vazio.” (HEVRAJA-TANTRA,
I, e. 38-42; SNELLGROVE, 1959, p. 83-84, tradução nossa, grifo do
autor).

David Snellgrove (1959) explica que a palavra śukra mencionada na citação


acima significa o sêmen masculino. Estamos diante de uma clássica descrição de um
hierò gámos (casamento sagrado), com vistas à geração e à fecundidade da terra, algo
muito próximo dos mitologemas gregos. Entretanto, nesse caso específico da tradição
tântrica, seguimos a interpretação simbólico-sexual, ou seja, a passagem acima se refere
à própria constituição interna que cada indivíduo necessita criar. Esta “criação” é a
própria condição de possibilidade para a iluminação espiritual, que está relacionada à
ativação dos cakras e a subida da energia sexual. Todo esse processo equivale a uma
“criação interior” que, conforme a linha tântrica escolhida se faz necessário realizar a
fim de atingir a bem-aventurança espiritual.

Em outras palavras, “nosso mundo interior” está incompleto, totalmente


inacabado, temos um corpo físico, racionalidade, emoções etc. Contudo carecemos de
muitas outras faculdades, tais como: intuição, clarividência, leitura do pensamento,
171

levitação, conhecimento das vidas passadas, corpos sutis, experiência do samādhi etc. A
aquisição de todas essas faculdades mencionadas é a própria “criação” mencionada,
alegoricamente, pelos textos tântricos.

A fim de construir essa “nova” estrutura interior, o homem necessita ativar


certos “vórtices de energia”, por meio dos quais se torna possível a comunhão com as
forças cósmicas superiores. O Lama Govinda explica que os centros magnéticos
(cakras) que existem no interior do ser humano, vibram em constante harmonia com o
universo, indicando assim uma clara relação entre o micro (homem) e o macrocosmo
(existência):

Os sete Centros do corpo humano representam de certo modo a


estrutura elementar e dimensionalidade do universo: do estado de
maior densidade e materialidade, elevando-se ao estado de extensão
da imaterialidade multidimensional [...]. Estas formas de
potencialidade de todo o universo estão latentes nestes centros,
podendo-se atribuir-lhes todos os sons do alfabeto Sânscrito na forma
de sílabas-semente. (GOVINDA, 1995, p. 153).

A relação entre os cakras e as forças do universo são também analisadas no


tantrismo hindu. A ciência mística do Tantra fundamenta-se na investigação subjetiva,
diferentemente do cientificismo pragmático e tecnicista praticado no ocidente, que faz
do mundo exterior o seu principal campo de investigação empírica, as escolas tântricas
preferem inverter este jogo, ao invés da realidade externa, preferem investigar a
realidade interna. Abaixo apresentamos uma pequena descrição do pesquisador
Woodroffe acerca destes pontos de energia existentes no corpo humano e que são
descritos pelo tantrismo hindu:

Dentro do Meru, ou da coluna espinhal, existem os seis principais


centros de operação Tattvica, chamadas Chakras, ou Padmas, os quais
são os assentos de Shakti, como o Sahasrāra acima é a morada de
Shiva. Estes são Mūlādhāra, Svāhishthāna, Manipūra, Anāhata e
Vishuddha e Ājnā, que no corpo físico diz-se ter suas
correspondências nos plexos nervosos principais e órgãos, começando
possivelmente do plexo do sacro-coccígeno ao “espaço entre as
sobrancelhas”, que alguns identificam como a glândula pineal, o
centro do terceiro olho, ou olho espiritual, e outros com o cerebelo. Os
Chakras, em si mesmos, são, contudo, como explicados anteriormente,
centros da Consciência (Chaitanya) como força extremamente sutil
172

(Shakti); mas as regiões físicas, que são construídas por suas


influências, e com o qual, livremente e imprecisamente, são muitas
das vezes identificadas, têm sido relacionadas com os vários plexos no
tronco do corpo e o centro cerebral inferior mencionado. Na porção do
corpo abaixo do Mūlādhāra estão os sete mundos inferiores, Pātāla e
outros, juntos com as Shaktis que suportam tudo no universo.
(WOODROFFE, 1950, p. 64).

Assim como na doutrina hindu, o Tantra budista também investiga a relação


entre os “mundos”, os “deuses do espaço infinito” e o próprio homem. Apresentamos
uma passagem do kālacakra-tantra que mostra prajñā e upāya circunscritos,
simbolicamente, numa dimensão cosmogônica e direcionadas aos aspectos relacionados
ao corpo sutil e sua construção:

Consequentemente, no Ādibuddha existem 1620 deuses e deusas;


prajñā e upāya são noite e dia, estão distribuídos uniformemente na
metade da noite e na metade do dia. Ele os reconhece em seu próprio
corpo com uma divisão de contagem em meses, noites e dias. Ele, o
abençoado Manjuvajra, que destroi o medo da existência, aqui em seu
nascimento é um Buda. (KĀLACAKRA-TANTRA, II, 56;
HAMMAR, 2005, p. 118, grifo do autor, tradução nossa).

Referindo-se especificamente ao simbolismo da citação acima, Urban Hammar


explica que ela está direcionada aos aspectos internos do ser humano: “A palavra
Ādibuddha é encontrada em alguns lugares no segundo capítulo do KĀLACAKRA-
TANTRA [...] Este capítulo trata das funções internas e externas do corpo, os cakras,
canais, ventos etc, e o mundo compreendido como um microcosmo.” (HAMMAR,
2005, p. 118).

Este ponto é fulcral para a compreensão dos Tantras. Quando os textos


mencionam o sol, a lua, dia, noite etc. na verdade, estão se dirigindo aos aspectos
internos do ser humano, isto é, a sua natureza oculta que precisa ser “construída”. Para
tanto, faz-se necessário a utilização de certas técnicas apropriadas e é justamente nesse
momento que nos deparamos com a importância do maithuna.

O sexo-yoga trabalha com as energias sutis que circulam pelo corpo humano,
forças transpessoais que normalmente não são percebidas pelas pessoas comuns. O
Tantra busca exercitar justamente este lado supra-sensível adormecido, inativo talvez
173

por inúmeros renascimentos; o treinamento do praticante tântrico fundamenta-se,


portanto, na descoberta consciente destas forças sobrenaturais. Enquanto a pele
experimenta as sensações físicas e grosseiras, os cakras experimentam a estética
transcendental, são os receptores das influências metafísicas ou espirituais, que em
seguida são transmitidas ao corpo físico.

O professor Dasgupta alerta sobre a existência de uma anatomia oculta,


extremamente complexa, que necessita ser exercitada por meio das técnicas
respiratórias do yoga, bem como pelo sexo-yoga, a fim de viabilizar a movimentação
das energias sutis, as quais seriam responsáveis pelo atingimento do grande êxtase
(mahāsuka):

A identificação de mahāsuka com o nirvaṇā ou realidade última


modificou a concepção Mahāyāna sobre a Bodhicitta no Vajra-yāna,
particularmente, no sahaja-yāna. A concepção Mahāyāna de produção
da Bodhicitta (bodhi-citto-tpāda) é transformada no sahaja-yāna na
produção do estado de supremo êxtase através da prática do sexo-
yoga. Após a sua produção, a bodhicitta sobe através dos dez estágios
(tecnicamente conhecidos como bodhisattva-bhūmis), então vemos
também que as práticas do sahaja-yāna envolvem processos yóguicos
de controle da respiração e outras práticas psíco-físicas, por meio das
quais o sêmen disperso pode ser concentrado no Maṇipura (situado
próximo ao umbigo), conhecido geralmente como Nirmaṇā-cakra,
posteriormente se dirige em direção ao Dharma-cakra, situado no
coração, depois ao Sambhoga-cakra, localizado na garganta,
alcançando então o Uṣṇīṣa (isto é, o lótus na cabeça) onde será
produzido o mahāsuka que é da mesma natureza do nirvaṇā. A
palavra bodhicitta às vezes no Vajra-yāna e quase sempre no Sahaja-
yāna é um sinônimo da palavra sêmen. (DASGUPTA, 1950, p. 158-
159, grifo do autor, tradução nossa).

A força espiritual contida na Bodhicitta (sêmen) precisa ser dissolvida e


posteriormente enviada para os centros magnéticos espalhados pelo corpo sutil. Por esta
razão, enfatizamos rigorosamente que “sem a retenção do sêmen”, se torna impossível a
completa evolução espiritual, visto que a energia sexual, no tantrismo, atua de modo
suplementar, isto é, agrega aos cakras uma espécie de “alimento sutil”, um combustível
extra, necessário para o seu pleno desempenho. Estas rodas magnéticas ou cakras são,
em realidade, receptores bio-energéticos que possibilitam, quando carregadas pela
174

eletricidade sexual, as sensações sublimes, também conhecidas como “as quatro


alegrias”:

Central para o método tântrico é a experiência das “quatro alegrias”


(dga’ ba, ānanda). Durante a prática, a energia vital branca situada na
cabeça é intencionalmente dissolvida para experimentar o êxtase. Este
processo envolve a ativação da energia vital vermelha alojada no
umbigo, provocando o fogo interno através das técnicas de controle da
respiração e outros meios. A constituição elementar natural do fogo
interno ativa o calor da energia vermelha, que se move para cima,
aquecendo a natureza fria da essência branca. A essência branca dilui-
se e goteja, um processo no qual a energia vital se torna cada vez mais
fluída à medida que atinge os órgãos reprodutores. Dada a natureza
pesada das propriedades elementares da essência branca, a qual é
composta por terra e água, essa essência vital se move para baixo.
Uma vez que as essências vitais originais permanecem na cabeça e
abaixo do umbigo até a morte, o calor da essência vermelha e o
gotejamento da branca dizem respeito a uma aceleração do processo
energético mencionado acima, em que os subprodutos destes
ascendem e descem no corpo. A descida da essência vital branca é
marcada por quatro etapas principais de experiência conhecidas como
"alegrias". Cada uma das quatro alegrias surge, por sua vez, quando a
essência vital branca fundida atinge as rodas energéticas (rtsa ´khor,
cakra) ou centros de energia, ao longo do canal central. Uma vez que
os tantras diferem em suas enumerações de rodas energéticas, alguns
afirmando quatro, outros seis, os pontos da descida da essência vital
onde as alegrias ocorrem são postados de forma diferente. De acordo
com o sistema Kalachakra, à medida que o fluxo de "néctar" branco da
parte superior da cabeça atinge a garganta, então ocorre a alegria
inicial (dang po’i dga’ ba, prathamānanda). Quando atinge o coração,
surge a suprema alegria (mchog dga’ paramānanda). Ao atingir o
umbigo ocorre a alegria especial (khyad dga’viramānanda). Quando
atinge a ponta do pênis, então ocorre a alegria interior (lhan cig skyes
pa’i dga’ ba, sahajānanda). Nos tantras, assim como no Hevajra que
postula a existência de quatro rodas energéticas, esta última alegria
acontece no umbigo. (KONGTRUL, 2005, p. 33-34, grifo do autor,
tradução nossa).

Os thigles136 (brancos e vermelhos) estão dispersos por todo o corpo, sobretudo


nos cakras. Quando o iniciado se utiliza de certas técnicas yóguicas avançadas
(tummo)137, ele logra “derreter” ou sublimar a energia vital (thigle) alojada no cakra
frontal, uma espécie de sutilização, purificação energética; pouco a pouco, à medida que
o yogin se aprofunda nesse processo, as grosserias da mente, o apego às formas
materiais, as energias pesadas do pensamento materialista, vão se dissolvendo,

136
Sobre a definição da palavra tibetana thigle ou bindu em sânscrito, ver págs. 84-85, 100, 116-118.
137
Sobre a técnica do tummo, ver pág. 31.
175

transformando-se alquimicamente em “sabedoria não-dual”, permitindo o acesso a


elevados estados de consciência, que neste caso são chamadas de “as quatro alegrias”.

Iniciado o processo descendente, a energia vital branca alcança cada um dos


quatro cakras (coronário, laríngeo, cardíaco e umbilical), e em cada um deles
experimenta-se um diferente tipo de alegria. É importante observar que, segundo
Houseman (2014), antes da bodhicitta ou kunḍalinī iniciar sua trajetória ascendente,
primeiramente, as energias brancas e vermelhas precisam se encontrar na região genital,
após este místico encontro, as energias vitais estão finalmente harmonizadas, integradas
e reestruturadas, prontas para retornar até o cakra da cabeça, trilhando o caminho
ascendente.

O mestre tântrico Jamgön Kongtrul traz uma importante explicação sobre o


fenômeno das “quatro alegrias”. Basicamente, dois tipos de alegrias são sentidas: a
primeira é quando a energia desce da cabeça, passando pelos cakras e alcança a ponta
do órgão genital; posteriormente, acontece um segundo movimento energético, porém
ascendente, o qual faculta ao iniciado “quatro alegrias”, (uma em cada cakra), ainda
mais intensas, mais estáveis do que as anteriores, isto é, uma vez estabilizada e
harmonizada a energia branca e vermelha nos órgãos reprodutores, torna-se possível a
sua subida energética em direção ao topo da cabeça e cada vez que esta força toca os
cakras as alegrias inefáveis são novamente sentidas:

À medida que a bodhicitta cai, as quatro alegrias surgem em


sequência. Então os dois fluidos sexuais se encontram nas pontas das
partes íntimas do macho e da fêmea. Essa é a prática de vivenciar a
consciência originária coemergente com a entidade real [ou substância
do fluido sexual]. O ramo da grande realização é quando os
constituintes brancos e vermelhos se misturam em um e são
modelados através do vajra masculino como um fio de aranha. À
medida que sobe pelos chakras do umbigo, do coração, da garganta e
da cabeça, experimentam-se as quatro alegrias estáveis da ascensão.
Por fim, ele se espalha por todo o corpo [...] a bodhicitta permeia
todos os canais de energia, o mesmo ocorre com a consciência
originária da alegria. (KONGTRUL, 2005, p. 72-73, tradução nossa).

Portanto, estas práticas tântricas que estimulam o fogo interior são fundamentais
para o desenvolvimento da anatomia oculta do praticante. Na verdade, com elas, o
176

adepto tântrico realiza um poderoso intercâmbio bio-energético em seu próprio corpo


sutil, as energias entram em atividade, subindo e descendo simultaneamente.

A utilização das energias do corpo (thigles), envolvendo os cakras e os canais


sutis são, na verdade, técnicas muito antigas encontradas, sobretudo, nos seis dharmas
(ou yogas) de Naropa138. A técnica do tummo ou “calor interior”, foi amplamente
utilizada pelo lendário Milarepa, este consistia em seu principal método de ascenção
espiritual. Trata-se de uma prática rigorosa que envolve o sábio uso da respiração, da
visualização, concentração da energia vital e sexual etc.

Salientamos que, no Tantra, existem contradições sobre a localização, o número


exato e outras descrições mais específicas acerca dos cakras e dos nādīs. Embora outras
obras possam reafirmar a existência de um número maior de cakras, comumente, os
textos tântricos budistas enfatizam a existência de quatro principais (na região do
umbigo, no coração, na garganta e na cabeça). Contradições à parte, o importante é
ressaltar que não seria possível o sentir do “êxtase místico”, sem a existência desses
pontos magnéticos. O sexo-yoga está fundamentado na ativação e energização desses
centros de poder.

O fogo sexual é um componente decisivo para a aceleração espiritual. Contudo,


embora a potência erótica possua importância basilar em todo esse processo, nem
sempre é fácil identificá-la nos textos tântricos. Poderíamos citar como exemplo a obra
The Dalai Lamas on tantra, mais especificamente o segundo capítulo, nele encontramos
o VII Dalai Lama ensinando, com agudo simbolismo, a grande relevância do fogo
sexual e sua conexão com as quatro alegrias:

Vizualize-se a si mesmo como Heruka com sua consorte, luminoso e


vazio, o corpo vazio, os canais de energia das três qualidades vibrando
internamente, no seu coração a roda do Dharma com oito pétalas.
Mantenha a gota indestrutível na forma de HUM, entre os meios do
sol e a sabedoria da lua, com a mente fixa, as incompreensões
conceituais são cortadas e a clara luz pura surge como o céu de
outono. A consorte, através do fogo natural, derrete nos setenta e dois
mil canais as energias vitais que estão em curso, conduzindo-as ao
canal central, dando origem às quatro alegrias inefáveis. (DALAI
LAMA VII, 2006, p. 77, tradução nossa).

138
Sobre os seis dharmas (ou yogas) de Naropa, consultar NAROPA, 1997.
177

Outro ponto importante a se destacar é que as técnicas vinculadas às quatro


alegrias podem ser experimentas tanto pelos tântricos da mão esquerda (com suas
esposas reais) ou pelos tântricos da direita – os celibatários139. Obviamente, um monge
que aceitou os votos de castidade não poderia fazer esta prática com uma mulher,
porém, nesses casos, recomenda-se a utilização de uma consorte imaginária, que poderia
ser uma divindade feminina do panteão budista. Entretanto, acreditamos que a base de
todo esse processo metafísico é o sexo-yoga e sua relação com as forças seminais.

3.5 O Despertar da bodhicita (kunḍalinī) e a ativação dos canais sutis

Homem (Upāya) e mulher (Prajñā), por meio do sexo-yoga, produzem a energia


sexual (bodhicitta ou kunḍalinī140) que fica alojada no cakra do umbigo até que alcance
uma estabilização, tal como nos indica o professor Dasgupta: “Através da união yóguica
de Prajñā e Upāya, a bodhicitta é produzida, em seguida ela fica armazenada na região
do umbigo, que é o Maṇipura-cakra ou o nirmāṇa-kāya-cakra.” (DASGUPTA, 1950, p.
178-179, grifo do autor, tradução nossa).

Quando a energia foi estabilizada, ou seja, quando está totalmente sob o domínio
do yogin, então sobe, de cakra em cakra, até o topo da cabeça e o praticante
experimenta o prazer místico, que é da mesma natureza da iluminação. Cada cakra, ao
receber o fogo erótico, experimenta sensações sublimes produzidas pela sutilização da
consciência. Pouco a pouco o autodomínio e a disciplina mental se apoderam do
praticante até o momento em que ele transmuta o prazer mundano, transforma-o em
uma espécie de estética transcendental. Portanto, a bodhicitta possui dois aspectos bem
definidos: um “volátil” (que produz o prazer mundano) e outro “estável” (que produz
um prazer transcendental):

139
Uma explicação detalhada sobre as quatro alegrias e as iniciações correspondetes a elas podem ser
consultadas na obra Studies in the Kālacakra Tantra. Salienta-se neste texto a possiblidade de realizar tais
práticas com uma consorte física ou imaginária.
140
As palavras Kuṇḍalinī e bodhicita, nesse contexto, são sinônimos, representam a energia sexual
adormecida. A primeira é mais utilizada pelos tântricos do hinduísmo, já a segunda aparece com mais
freqüência nos textos do tantra budista.
178

Os dois aspectos da bodhicitta, o físico ou aspecto fenomênico (na


forma do sêmen viril) é conhecido como saṁvṛta e o aspecto último –
parāmārthika – ou vivṛta (conhecido na forma incorpórea e todo-
penetrante do mahāsuka – a natureza última dos dharmas).
(DASGUPTA, 1950, p. 179).

Parāmārthika é a forma incorpórea do sêmen a qual é atingida quando o iniciado


tântrico, através do sexo-yoga, consegue sublimar a sua energia sexual. As respirações
rítmicas (prāṇāyāma) e o controle mental possuem influência decisiva em todo esse
processo, visto que é por meio deles que a matéria física do sêmen recebe um choque
adicional, uma descarga bio-eletromagnética responsável pela produção dos “vapores
seminais”. Estes “vapores” ou “ventos sutis” representam a contraparte espiritual do
sêmen, seu aspecto transpessoal, metafísico. A passagem da matéria bruta para a
substância sutil é a condição necessária para que a “cobra sagrada” – Kuṇḍalinī – inicie
sua subida pela coluna vertebral do praticante.

O ascenço da Kuṇḍalinī provoca faíscas ígneas, um calor interior no cakra


umbilical, indicando que seu sono foi perturbado, a víbora divina dos hindus foi
despertada, o túnel para o nirvāṇa finalmente foi iluminado:

Os tantras budistas evidenciam ainda mais a característica ígnea da


Kuṇḍalinī. Segundo os budistas, a Śakti (também chamada Caṇḍālī,
ḍombī, Yoginī, Nairāmani etc.) dorme no nirmāna-kāya (região
umbilical): acordamo-la produzindo o bodhicitta nessa região e esse
despertar se expressa através da sensação de “grande fogo”. O
Hevajra-tantra diz que “a Caṇḍālī queima no umbigo” e quando tudo
está queimado, a “Lua” (situada na testa) deixa escorrer gotas de
néctar. (ELIADE, 2012, p. 206, grifo do autor).

Ao transmutar suas energias sexuais, ao estimular a bodhicitta, o yogin inicia sua


marcha segura até a obtenção do supremo despertar. O néctar da imortalidade é
produzido justamente pelo contato do calor interior com os cakras:

Nas escolas tântricas budistas também encontramos a questão da


subida de Śakti em conexão com a subida da bodhicitta. Diz-se que
quando a boddhicitta é produzida na região do umbigo a deusa
Caṇḍālī é também despertada no nirmāṇa-cakra. Quando ela é
despertada, a lua situada na testa começa a derramar um néctar que
179

rejuvenece e transmuta o corpo do yogin. Caṇḍālī conhecida também


como ḍombī, Yoginī, Sahaja-Sundarī, Nairātmān (ou Nairāmaṇī) é
descrita em vários Tantras, Dohas e canções. (DASGUPTA, 1950, p.
189-190, tradução nossa, grifo do autor).

A subida da Kuṇḍalinī é efetuada durante a relação sexual, por isso a


importância de estabilizar a energia. Esta “estabilização” refere-se ao controle da
excitação sexual, ou seja, o iniciado não deve aumentar em demasia o fogo erótico, pois
com isso ele poderia perder o sêmen comprometendo drasticamente a performace do
rito sagrado. Desta forma, torna-se fundamental conservar ou preservar a energia sexual
no cakra do umbigo até que o fogo erótico esteja totalmente sob o domínio do
praticante. Após esta estabilização energética, a boddhicitta ou Kuṇḍalinī pode
continuar seu ascenço através dos outros cakras, possibilitando assim a aceleração
espiritual do iniciado:

Para acelerar a ascenção da Kuṇḍalinī, certas escolas tântricas


combinaram posições corporais com práticas sexuais. A ideia
subjacente era que se devia obter, conjuntamente, a “imobilidade” da
respiração, do pensamento e do sêmen. A Gorakṣa-saṃhitā (61-71)
afirma que durante a Khecarīmudrā, o bindu (= esperma) “não cai”,
apesar de o praticante ser abraçado por uma mulher [...]. Todos esses
textos insistem sobre a interdependência entre respiração, experiência
psicomental e sêmen viril. (ELIADE, 2012, p. 208, grifo do autor).

O maithuna é utilizado para acelerar este processo bio-energético que acontece


no corpo sutil do praticante. O método tântrico prescreve que, durante a prática sexual,
deve haver uma combinação harmoniosa entre técnicas respiratórias, domínio do
pensamento e preservação do sêmen. “O maithuna serve, inicialmente, para ritmar a
respiração e facilitar a concentração; portanto é um substituto do prāṇāyāma e da
dhāranā, ou melhor, seu suporte.” (ELIADE, 2012, p. 217, grifo do autor). Mircea
Eliade (2012) insiste na ideia de que uma consciência estável, pacificada, é o resultado
de uma respiração ritmada e profunda, esta estabilização prânica possibilita a retenção
seminal, de modo que a energia sexual fica totalmente sob o domínio do yogin.

No sistema tântrico hindu o iniciado é considerado um “segundo Śiva” quando


consegue estabilizar a substância seminal e elevá-la até o último centro magnético –
sahasrāra-cakra. A força sexual tem papel decisivo, pois age como um fluído, uma
180

energia sutil que flui em direção à liberdade incondicionada, que neste contexto,
encontra-se potencialmente armazenada no topo da cabeça:

Diz-se que como Ananta, o Senhor das Serpentes, suporta todo o


universo, assim é Kundalinī, “por quem o corpo é suportado”, o
suporte de toda prática de Yoga, e o que “com uma força abre a porta
com uma chave”, assim o Yogī deve forçar a abertura da porta da
Liberação (Moksha), pelo auxílio de Kundalinī (a espiral), que é
conhecida por vários nomes, tais como Shakti, Ῑshvarī (Senhora
Soberana), Kutilāngī (encurvada), Bhujangī (serpente), Arundhatī
(constante auxílio para boa ação). Esta Shakti é a Suprema Shakti
(Parashakti) no corpo humano, incorporando todos os poderes e
assumindo todas as formas. Assim, a força sexual é um desses poderes
e é utilizada. Ao invés, contudo, de descer em forma de fluído
seminal, ela é conservada como uma forma de energia sutil, e flui para
Shiva junto com o Prāna. É assim feito uma fonte de vida espiritual ao
invés de uma fonte causadora da morte física. Com a extinção do
desejo sexual, a mente é liberada de sua mais poderosa escravidão.
(WOODROFFE, 1950, p. 123).

A “serpente do poder” ou Kuṇḍalinī possui simultanealmente tanto a graça


quanto a maldição. O sexo, em si mesmo, pode escravizar um indivíduo, porém, ao
mesmo tempo, pode servir como a causa primordial da libertação. O caminho para o céu
(nirvāṇa) ou para o inferno (apegos) depende exclusivamente do treinamento
psicológico efetuado pelo praticante. Sua consciência deve estar suficientemente
madura para rejeitar os galanteios da luxúria, a qual busca sempre transformar o ato
sexual em puro desfrute dos sentidos. Pelo poder do yoga tântrico, o discípulo é
orientado a subjugar os apegos da mente, situando-se em perfeito equilíbrio interior,
transformando o sexo em ato sacramental através do domínio do sêmen. Nas escolas do
Tantra hindu, encontramos verdadeiros hinos de louvores à energia sexual. Criação e
libertação estão intimamente associados a ela, numa íntima conexão entre homem e
cosmos:

Ela é a “Serpente do Poder” dormindo enrolada junto ao Mūlādhāra,


fechando com sua boca a entrada de Sushumnā chamada de “a porta
de Brahman” (Brahmadvāra). Ela dorme sobre aquilo que se chama
Kanda, ou Kandyoni, que tem quatro dedos de comprimento e de
largura, e está coberta por um “pano branco macio” – ou seja, uma
membrana semelhante ao de um ovo de uma ave. Ela é geralmente
descrita como sendo de dois dedos (Anguli) acima do ânus (Guda) e
dois dedos abaixo do pênis (Medhra). Deste Kanda parte as 72.000
181

Nādīs que aqui, ambas, unem-se e se separam [...] Ela, a mais sutil das
sutis, mantém em Si mesma o mistério da criação [...] Por Sua
radiância o universo é iluminado e pela consciência eterna é
despertado – ou seja, Ela está associada tanto como uma Criadora
(Avidyā Shakti) como também é o meio como Vidyā Shakti, pelo qual
a Liberação pode ser alcançada. Por esta razão diz-se que no
Hathayogapradīpikā é Ela que dá a liberação aos Yogīs e a escravidão
aos ignorantes. Pois quem a conhece, conhece o Yoga, e aqueles que
são ignorantes do Yoga são mantidos na escravidão de suas vidas
mundanas. (WOODROFFE, 1950, p. 123).

De acordo com as pesquisas de Woodroffe, mesmo quando a energia sexual –


Kuṇḍalinī – atinge o último cakra (no topo da cabeça), disso não resulta que o yogin
atingiu o supremo despertar, a total emancipação espiritual. Inegavelmente, qualquer
yogin que tenha conquistado semelhante proeza deve ser considerado avançado nas
técnicas tântricas, contudo faz-se necessário uma estabilização da energia no cakra da
coroa, visto que, ao atingir pela primeira vez esta etapa tão significativa da jornada,
existe uma tendência natural e até mesmo mecânica da energia sexual em retornar para
os cakras inferiores, não permanecendo ali por muito tempo. O tempo de permanência
no último cakra depende exclusivamente do desenvolvimento interior do yogin.
Vejamos a explicação de Woodroffe sobre este ponto:

Kundalī não permanece por muito tempo, na primeira vez, no


Sahasrāra. O tempo de sua estadia depende da força da prática do
Yogī. Existe uma tendência natural (Samskāra) da parte de Kundalī ao
retorno. O yogī deverá usar todo o esforço à sua disposição para
mantê-la acima por mais tempo. Deve-se observar que a Liberação
não é obtida por meramente levar Kundalī ao Sahasrāra e, óbvio,
menos ainda por meio da agitação no Mūlādhāra, ou fixando-A em
qualquer um dos centros inferiores. A Liberação é obtida somente
quando Kundalinī retoma sua residência permanentemente no
Sahasrāra, de modo que Ela somente retorna pela vontade do Sādhaka.
Diz-se que depois de estar no Sahasrāra por um longo tempo, alguns
Yogins levam Kundalinī de volta a Hridaya (coração), e A adoram aí.
Isto é feto por aqueles que são incapazes de ficar por muito tempo no
Sahasrāra. Se eles levam Kundalinī mais abaixo do que Hridaya – ou
seja, adoram-Na nos três Chakras abaixo de Anāhata, eles já não,
assim é dito, pertencem ao grupo Samaya (WOODROFFE, 1950, p.
132)

Objetivando a total libertação da dor existencial, o yogin necessita trabalhar com


certos condutores sutis, também conhecidos como nādīs. Estes são frequentemente
182

citados nos textos tântricos budistas. Em sua obra A commentary on the Kalacakra
tantra, Lharampa Ngawang Dhargyey observa que estes conduíntes interiores se
formam no ser humano ainda no útero, antes mesmo do nascimento:

Existem 72.000 canais (Skt. Nadi, Tib. Rtsa) no corpo que


gradualmente começam a se formar no coração durante o período de
gestação no útero. O principal deles corre como um eixo central no
corpo, é chamado de 'canal central' (Skt. avadhuti; Tib. dbu.ma). O
canal à direita é chamado de roma (Skt. Rasana; Tib. ro.ma) e o canal
à esquerda, kyangma (Skt. Lalana, Tib. Rkyang.ma). Estes se formam
no coração enquanto o feto ainda está no útero. (DHARGYEY, 1994,
p.104, tradução nossa).

Em ambos os Tantras (budistas ou hinduístas) encontramos informações


variadas sobre o número dos nādīs que percorrem o corpo sutil do ser humano; o
assunto é polêmico, pois dependendo da obra consultada poderemos encontrar variações
gritantes sobre a quantidade desses canais no corpo, como nos alerta Woodroffe em suas
análises sobre o tantrismo hindu:

O Bhūtashuddi Tantra fala de 72.000 Nādīs, o Prapanchasāra Tantra


de 300.00, e o Shiva Samhitā de 350.000; mas destes, qualquer que
seja seu total, somente um número limitado tem importância. Algumas
são Nādīs brutas, tais como os nervos físicos, veias e artérias,
conhecidas pela ciência médica. Mas elas não têm em tudo essas
características visíveis e físicas. Elas existem, como todas as outras,
em formas sutis, e são conhecidas como Yoga Nādīs. A última pode
ser descrita como canais sutis (Vivara) de energia Prānica, ou energia
vital. As Nādīs são, como afirmado, os conduítes do Prāna. Através
delas, suas correntes de energia solar e lunar, correm. Se pudessemos
vê-las, o corpo pareceria com um desses mapas que descrevem as
várias correntes oceânicas. Elas são caminhos por onde a Prānashakti
flui. Elas, portanto, dizem respeito a ciencia vital como elemento da
vida, e não como um Shāstra médico (Vaidyashāstra). Por isso a
importancia do Sādhana, que consiste da purificação física do corpo e
das Nādīs. A pureza do corpo é necessária se a pureza da mente é para
obter em sua extensão um sentido hindu. A purificação das Nādīs é,
talvez, o principal fator nos estágios preliminares deste Yoga; pois
assim como suas impurezas impedem a ascenção de Kundalinī Shakti,
sua purificação facilita esse trabalho. Este é o trabalho do Prānāyāma
(WOODROFFE, 1950, p. 62).

Woodroffe enfatiza a necessidade de purificar o corpo sutil, torna-se impossível


acordar a Kuṇḍalinī sem uma adequada preparação inciática a qual inclui a utilização do
183

prāṇāyāma, mudrā, āsana etc. No sistema tântrico budista os nādīs necessitam ser
estimulados a fim de que a energia sutil possa se desenvolver harmoniozamente. A
função deles é a mesma daquela encontrada nos textos do Tantra hindu, a diferença
básica está na terminologia, como sublinha o pesquisador Dasgupta:

Prajñā e Upāya são também conhecidos como Lalanā e Rasanā que


são os nomes de dois nervos Iḍā e Piṅgalā bem conhecidos no sistema
tântrico Hindu. Esses dois nervos se encontram em outro nervo central
chamado Avadhūtī que corresponde ao suṣumnā no tantra hindu; e este
nervo central é considerado o caminho para o nirvaṇā. É dito que:
Lalanā é da natureza de Prajñā e Rasanā pertence a Upāya, e Avadhūtī
encontra-se no meio, como a morada de Mahāsuka. Deve-se perceber
aqui que no Tantra Hindu o nervo Iḍā, que corresponde a Lalanā cuja
natureza está relacionada com a Lua, é a própria Śakti; e Piṅgalā
corresponde a Rasanā, possui natureza solar e é identificado como
Puruṣa (o princípio masculino). Novamente, Lalanā e Rasanā são
representados carregando o sêmen e o óvulo respectivamente.
(DASGUPTA, 1950, p. 118, grifo do autor, tradução nossa).

Lalanā (iḍā), Rasanā (piṅgalā) e Avadhūtī (suṣumṇā) integram, sem sombra de


dúvida, os nervos centrais, os principais nādīs, responsáveis pelo ascenço da Kuṇḍalinī.
As técnicas respiratórias visam purificar esses canais a fim de que a força erótica suba
sem impedimentos. O mestre da tradição kadampa, Geshe Kelsang Gyatso, descreve
detalhadamente o modo pelo qual essas “veias internas” aparecem em nossa natureza
oculta:

O canal central está localizado exatamente no meio, entre as metades


esquerda e direita do corpo [...]. Ele começa no ponto entre as
sobrancelhas, de onde ascende formando um arco até a coroa da
cabeça e, então, desce em linha reta até a ponta do órgão sexual [...].
De ambos os lados do canal central, estão os canais direito e esquerdo,
sem nenhum espaço entre eles e o canal central. O canal direito é
vermelho e o esquerdo é branco. O canal direito começa na ponta da
narina direita e, o canal esquerdo, na ponta da narina esquerda. A
partir daí, ambos ascendem formando um arco até a coroa da cabeça,
por ambos os lados do canal central. Da coroa da cabeça até o umbigo,
esses três principais canais são retos e adjacentes entre si. À medida
que o canal esquerdo continua descendo abaixo do nível do umbigo,
ele faz uma pequena curva à direita, separando-se levemente do canal
central e voltando a se reunir com ele na ponta do órgão sexual. Ali,
ele cumpre a função de reter e soltar esperma, sangue e urina. À
medida que o canal direito continua abaixo do nível do umbigo, ele
faz uma pequena curva à esquerda e termina na ponta do ânus, onde
184

cumpre a função de reter e soltar fezes e assim por diante. (GYATSO,


2016, p. 165-166).
Basicamente, duas energias principais utilizam os nādīs como meios de
locomoção sutil: o prāṇa141 e os thigles. Kalu Rinpoche (1999) explica que tanto o
prāṇa quanto os tigles não provêm dos elementos físicos do pai ou da mãe, reunidos no
momento da procriação. Eles são, na verdade, o produto de um encadeamento cármico;
diz-se que os canais sutis são o “corpo do Despertar”, os ventos sutis, a “palavra do
Despertar” e os thigles, a “mente do Despertar”, portanto:

Assim, considerando a mente como uma pessoa, diríamos que o corpo


é a região onde ela habita, que os canais sutis formam as estradas
sobre as quais ela se desloca, que os ventos constituem seu meio de
locomoção, e que os thigles representam todos os bens em sua posse.
(RINPOCHE, 1999, p. 210).

As escolas tântricas ensinam que os “ventos sutis” (prāṇa) atuam como uma
espécie de veículo, um condutor da mente, uma força invisível que tornaria possível o
“movimento epistêmico” da consciência, isto é, sua capacidade de realizar induções,
deduções, analogias, em suma, todas essas potencialidades intelectivas seriam de
responsabilidade dos “ventos interiores”, como sugere Gyatso (2016, p. 277): “Eles são
também denominados ‘os cinco ventos das faculdades sensoriais’ porque possibilitam o
desenvolvimento das percepções sensoriais.” Portanto, a principal função dos “ventos” é
mover a mente em direção ao seu objeto, estabelecendo uma perfeita interconexão
epistemológica, a ponte entre o sujeito perceptivo e o objeto percebido é efetuada pelos
movimentos sutis dos ventos interiores:

Os ventos interiores são os ventos no continuum de uma pessoa, que


fluem através dos canais de seu corpo. A principal função dos ventos
interiores é mover a mente para o seu objeto. A função da mente é
apreender objetos, mas ela não pode se mover para um objeto ou
estabelecer uma conexão com ele sem um vento que lhe sirva de
montaria. A mente é, algumas vezes, comparada a uma pessoa coxa
que pode enxergar, e, o vento, a uma pessoa cega que tem pernas. As
mentes podem funcionar apenas quando operam em conjunto com os
ventos interiores. (GYATSO, 2016, p. 273).

141
A relação do prāṇa com as forças sutis do corpo é um tema muito amplo e complexo. Sugerimos como
introdução ao assunto a leitura da obra Fundamentos do Misticismo Tibetano, escrito pelo Lama
Anagarika Govinda.
185

Portanto, do ponto de vista tântrico, os “ventos sutis” são compreendidos como


modificações do prāṇa, sua contraparte sutil, ao passo que a respiração seria a forma
mais grosseira e mais perceptível aos sentidos humanos. Geshe Kelsang Gyatso, em seu
livro Budismo Moderno, o caminho de compaixão e sabedoria, sublinha a importância
de se conhecer e estudar profundamente os canais suprasensíveis que habitam o nosso
corpo, visto que é por meio deles que os estados sublimes serão percebidos:

Cada um desses 24 canais ramifica-se em outros três canais, que se


distinguem entre si pelos elementos principais – ventos, gotas
vermelhas e gotas brancas – que fluem por eles. Cada um desses 72
canais divide-se, por sua vez, em mil canais, totalizando 72 mil canais.
É importante, para um praticante do Tantra Ioga Supremo,
familiarizar-se com a disposição dos canais, já que é por meio do
controle sobre os ventos e gotas que fluem por esses canais que a
união de grande êxtase espontâneo e vacuidade é realizada.
(GYATSO, 2016, p. 271).

As “gotas vermelhas” (mais fortes nas mulheres) e “brancas” (mais fortes nos
homens) são os próprios thigles, energias sutis disseminadas por todo o sistema
transpessoal humano. Na verdade, os “centros” (cakras), os “ventos” (prāṇa) e também
os thigles, referem-se à experiência yóguica de cosmificação do corpo (cf. Imagem 2),
uma sobreposição de qualidades místico-fisiológicas cuja efetivação acontece por meio
dos “estados superiores de consciência”, realizáveis por meio de uma aguda ampliação
da “estética corporal” (sensibilidade), atingida através da plena harmonia entre
meditação, respiração e sexo-yoga. Em outras palavras, o corpo, inebriado pelas práticas
do êxtase, responde, através das intuições e inspirações, aos variados estímulos
somáticos do cosmos, sendo capaz de captar vibrações sutis antes ignoradas, tornando-
se um dócil instrumento do grande mistério, passivo e receptivo, como nos demonstra
Eliade:

O sādhana tântrico utiliza essa cosmofisiologia arcaica. Todas essas


imagens, símbolos pressupõe uma experimentação mística, a teandria,
a santificação do homem por meio de disciplinas ascéticas e
espirituais. As atividades sensoriais são aí ampliadas em proporção
alucinante, seguidas de inumeráveis identificações de órgãos e
186

funções fisiológicas com regiões cósmicas, astros, deuses etc.


(ELIADE, 2012, p. 198).

Comumente, os seres humanos não se preocupam em dominar os pensamentos,


as emoções e os instintos negativos; a auto-obervação e a transformação interior são
necessidades pouco atendidas pelas grandes massas, o resultado é o movimento
inadequado dos “ventos interiores” e dos “thigles”. A energia sutil, nas pessoas que não
tenham ingressado na via da transformação interior (com práticas e disciplinas
ordenadas), tende a se concentrar em um dos dois canais principais – lalanā ou Rasanā
–. O grande problema é que estes dois canais são os responsáveis pelo dualismo da
mente. Ou seja, se a energia se concentra mais do lado esquerdo, isto é, em lalanā,
então o sentimento de um “eu-verdadeiro” é reforçado, fazendo-nos acreditar que somos
um “ente real” e por isso nos apegamos à nossa própria forma corpórea, mantendo-nos,
por esta razão, na escravidão do saṁsāra. Ao contrário, se a energia sutil se concentra
do lado direito, em rasanā, então aferramo-nos ao mundo externo e transitório, à
realidade ilusória de māyā, potencializando consideravelmente o nosso apego aos
objetos sensíveis.
187

Imagem 2 – Pintura tibetana retratando a cosmificação do corpo

Fonte: http://peaceformeandtheworld.ning.com/profiles/blogs/chakren. Acesso 21/09/2018.

Esta é a fisiologia da humanidade (não-iniciada) desenhada pelo tantrismo.


Desafortunadamente, as energias que fluem pelos canais sutis dos homens comuns estão
demasiadamente impuras, repletas de conceitos bipolares, relativos ao “eu” (lalanā) ou
ao “meu” (rasanā). Sobre este ponto, vejamos o posicionamento do mestre Gyatso:

Os ventos no corpo de um ser comum fluem pela maioria desses


canais, exceto pelo canal central. Como esses ventos são impuros, as
várias mentes que eles sustentam são também impuras e, enquanto
esses ventos continuarem a fluir pelos canais periféricos, eles
continuarão a sustentar as diversas concepções negativas que nos
188

mantêm presos ao samsara. Por força da meditação, entretanto, esses


ventos podem ser trazidos para o canal central, onde não mais serão
capazes de sustentar o desenvolvimento das concepções densas da
aparência dual. Com a mente livre das aparências duais, seremos
capazes de obter uma realização direta da verdade última, a vacuidade.
(GYATSO, 2016, p. 271).

Ao se moverem através de lalanā e rasanā, os “ventos interiores” e os “thigles”


influenciam a vida psicoemocional dos seres humanos, lançando-os na terrível oposição
dos contrários. O Hevraja-tantra confirma a dualidade existente nos dois canais
periféricos e a necessidade de redirecionarmos a nossa energia, para o canal central ou
Avadhūtī:

Então Vajragarbha disse: “Quantas veias existem, Senhor, no corpo de


Vajra.” “Existem trinta e duas veias”, ele respondeu “Trinta e duas
que sustentam a bodhicitta e fluem em direção ao grande prazer. Entre
todas estas veias, três são consideradas princiais, Lalanā, Rasanā e
Avadhūtī. Lalanā é a natureza da sabedoria e Rasanā consiste nos
meios, e Avadhūtī está no meio, livre das noções de sujeito e objeto.
(HEVRAJA-TANTRA, 1959, p. 48-49, tradução nossa)

Mircea Eliade (2012) alerta sobre o perigo dos extremos: tanto a direita
(rasanā) quanto a esquerda (lalanā) fluem em direção ao perigo, à armadilha da ilusão,
ao devir incontrolável das forças naturais. A lua (canal direito) e o sol (canal esquerdo)
devem fusionar-se em Avadhūtī, dentro do canal central, nem na extrema-direita
tampouco na extrema-esquerda, rigorosamente no meio. A grande beatitude
(mahāsukha) surge quando os “ventos” e os “thigles” encontram a via da salvação, o
canal central ou Avadhūtī. “[...] A reunião dos ventos dentro desse canal faz com que a
atividade negativa associada com os ventos dos canais direito e esquerdo seja
abandonada. Ele é também conhecido como ‘o canal da mente’ e como ‘Rahu’.”
(GYATSO, 2016, p. 267).

O pesquisador britânico, Woodroffe, também alerta sobre a importância basilar


do canal central (suṣumnā142) descrito nos textos do Tantra hindu:

142
A palavra Suṣumnā é utilizada no tantra hindu para se referir ao canal central; já no tantra budista
encontramos o termo Avadhūtī.
189

Dessas Nādīs, as principais são catorzes; e destas catorze, Idā, Pingalā


e Sushumnā são as principais. Dessas três, novamente, Sushumnā é a
mais importante e, para ela todas as outras estão subordinadas; pois
pelo poder do Yoga (Yogabala), o Prāna é direcionado através dela e,
passando os Chakras, deixa o corpo através do Brahmarandhra. Ele
está situado no interior do eixo cérebro-espinhal, o Merudanda, ou
coluna espinhal, na posição atribuída ao seu canal interior, e se
estende do plexo básico, o centro Tāttivco chamado de Mūlādhāra, ao
lótus de doze pétalas no pericarpo de Sahasrāra Padma, ou o lótus de
mil pétalas. (WOODROFFE, 1950, p. 62).

Portanto, o yogin deve esforçar-se em não permitir que sua energia interior flua
em direção aos canais da direita ou da esquerda. O mestre Gyatso explica que é possível
perceber o momento exato em que as energias sutis entraram no canal central, por meio
do ritmo respiratório:

Podemos saber se os ventos entraram, ou não, no canal central


observando a nossa respiração. Normalmente, há desequilíbrios em
nossa respiração – uma narina exala mais ar do que a outra, e o ar
começa a sair primeiro por uma narina antes de sair pela outra. No
entanto, quando os ventos entram no canal central em consequência
das meditações explicadas acima, a pressão e a simultaneidade da
respiração são iguais em ambas as narinas durante a inalação e a
exalação. Por essa razão, o primeiro sinal a ser observado é que
estaremos respirando uniformemente por ambas as narinas. Outro
desequilíbrio que podemos notar na respiração normal é que a
inalação é mais forte que a exalação, ou vice-versa. O segundo sinal
de que os ventos entraram no canal central é que a pressão da inalação
será exatamente igual à da exalação. Existem mais dois sinais que
indicam que os ventos estão permanecendo no canal central: (1) a
nossa respiração torna-se cada vez mais fraca, até cessar por completo,
e (2) todo o movimento abdominal, normalmente associado com a
respiração, cessa. Em circunstâncias normais, se a nossa respiração
parar, seremos tomados pelo pânico e pensaremos que estamos prestes
a morrer, mas se formos capazes de interromper a respiração por força
de meditação, longe de entrarmos em pânico, nossa mente irá se tornar
mais e mais confiante, confortável e flexível. Quando os ventos
permanecem dentro do canal central, não dependemos mais do ar
denso para permanecermos vivos. (GYATSO, 2016, p. 174).

No Tantra da esquerda, ressaltamos que o trabalho com as forças sutis do corpo


pode ser alcançado pela prática do sexo-yoga. A Kuṇḍalinī (cf. Imagem 3) entra no
canal central quando homem e mulher, unidos pelos laços sexuais, permanecem como
simples testemunhas, utilizando o sexo como meditação, somente com semelhante
190

disciplina os ventos sutis e os thigles podem se dirigir ao canal central, à via da


salvação, o caminho do nirvāṇa.

Imagem 3 – Representação do Kundalini e os cakras

Fonte: https://www.exoticindiaart.com/product/paintings/kundalini-chakras-in-human-body-TP88/.
Acessado em 21/09/2018

Tsongkhapa, citando a obra Sheaf of instuctions, explica que é possível, através


do sexo-yoga, reconduzir os “ventos sutis” em direção ao Avadhūtī (canal central).
Vejamos a interpretação do patricarca da tradição Gelug sobre este antigo texto:
191

Portanto, é explicado que, pela união com a consorte, os ventos sutis


entram pelo canal dhūti, as chamas e o espírito da iluminação são
fundidos. Tathāgatavajra explica que quando as narinas estão fechadas
significa que os ventos sutis entraram no canal dhūti.
(TSONGKHAPA, 2010, VI, 60b, tradução nossa).

A cessão da respiração durante o ato sexual lança o yogin cada vez mais
profundamente dentro de si mesmo, a ponto de perceber que o seu corpo físico é
simplesmente um veículo dentre tantos outros de que ele próprio dispõe. Esta
constatação metafísica é possibilitada pela sutilização da consciência. Identificada
unicamente consigo mesma, a consciência se expande e experimenta sensações oriundas
de outros corpos, muito mais sutis do que o veículo físico. Sobre este ponto, o
pesquisador Evans-Wentz destaca os diferentes tipos de corpos sutis, os quais ele chama
de “bainha” ou “camada”:

Força Vital (sânscrito: Prāṇa) – O princípio humano da consciência, o


Conhecedor, se veste, quando encarnado, sob cinco bainhas (sânscrito:
Koṣḥa), que são: (1) a bainha física (Anna-maya-Koṣḥa); (2) a bainha
vital (Prāṇa-maya-Koṣḥa); (3) a bainha sob a qual reside a
consciência humana normal (Mano-maya-Koṣḥa); (4) a bainha da
subconsciência (Vijñana-maya-Koṣḥa) e (5) a bainha da bem-
aventurada consciência todo-transcendental da Realidade (Ānanda-
maya-Koṣḥa). (EVANS-WENTZ, 2015, p. 163).

O Lama Govinda explica que existe um paralelismo auto-evidente entre os


canais sutis, os cakras e os outros corpos transpessoais do ser humano, de algum modo,
todos eles estão interconectados:

Os canais invisíveis e vasos sutis, servindo como condutores destas


forças que fluem através do corpo humano, são chamados nádís (Tib.:
rtsa) [...]. Embora os nádís possam parcialmente coincidir com o
curso dos nervos e vasos sanguíneos, e por isso têm sido muitas vezes
comparados com suas funções, eles, contudo, não são idênticos, mas
ficam em relação semelhante a eles como os cakras para os órgãos e
funções corporais com os quais estão associados [...]. Este paralelismo
está bem demonstrado na doutrina das cinco camadas ou bainhas
(kosa) da cosciência humana [...]. A mais densa e a mais externa
destas camadas é a do corpo físico, desenvolvida através da nutrição
(anna-maya-kosa); a seguinte, é a camada material fina sutil (prána-
maya-kosa), constituído de prána, sustentado e nutrido pela
respiração, e penetrando o corpo físico. Podemos também chamá-la de
192

prânica ou corpo etérico. A camada seguinte mais fina é a do nosso


corpo pensante (mano-maya-kosa), nossa “personalidade” formada
através do pensamento ativo. A quarta camada é o corpo da nossa
consciência potencial (vijñana-maya-kosa), que se extende muito além
do nosso pensamento ativo, pela inclusão da totalidade das nossas
capacidades espirituais [...]. A última camada e a mais fina, que
previamente penetrou todas as anteriores, é o corpo da mais alta
consciência universal, nutrido e mantido pela alegria do êxtase
(ananda-maya-kosa). Só é experimentada no estado de iluminação, ou
nos mais altos estados de meditação (dhyána). Corresponde, na
terminologia do Maháyána, ao “Corpo da Inspiração” ou “Corpo da
Bem-aventurança”: Sambhoga-káya. (GOVINDA, 1995, p. 157-159).

Com as técnicas tântricas, o yogin redireciona o poder da sexualidade para a


dimensão supra-sensível. Assim como o sexo ordinário é capaz de “gerar” uma nova
vida, um pequeno bebê, analogamente, por meio do sexo-yoga, também se faz possível
a criação de um novo corpo; a palavra “criação” aqui é empregada no sentido de
“constatação”, de “percepção sutil”. Uma vez expandida, a consciência adentra com
todo vigor nos quadrantes mais rarefeitos da existência. Ao experimentar as vibrações
dos outros corpos, o yogin finalmente comprova a eficiência do sexo-yoga, a capacidade
da força erótica em lançar-nos em direção às outras dimensões, regiões pintadas pelas
cores do mistério, refúgio inefável dos budas compassivos, eis a promessa do Tantra.

O mestre tântrico Dhargyey Geshe Lharampa Ngawang (1994), em sua obra A


Commentary on the kalacakra tantra, estabelece uma relação entre as quatro alegrias
(mencionadas nos parágrafos acima), os cakras, os cinco corpos supra-sensíveis e o
sexo-yoga. Cada tipo de “alegria” alcançada durante o rito alquímico corresponderia a
um determinado cakra, bem como a um corpo sutil específico. Tais esplanações
confirmam o caráter excessivamente metafísico do budismo tântrico.

Concluímos este capítulo enfatizando a proposta salvífica do Tantra. Seja


budista ou hinduísta, o tantrismo está comprometido com a libertação espiritual dos seus
seguidores, para tanto se faz necessário o despertar das forças ocultas, por meio de uma
aguda disciplina sexual e espiritual, que habitam o interior dos seres humanos.
Novamente, o presente capítulo reforça a importância e a necessidade de trabalhar com
as forças sexuais. O sêmen é o agente, por excelência, por detrás da expanção da
consciência. A própria constituição da anatomia oculta depende da preservação e
transmutação da energia sexual. Salientamos, portanto, com o estudo deste capítulo, que
193

a hipótese central de nossa tese está ancorada na impossibilidade de iluminação


espiritual, enquanto a energia sexual estiver sendo desperdiçada. A menos que o homem
e a mulher dediquem-se com afinco à transmutação da energia sexual (seja através do
sexo-yoga ou através do celibato), a libertação definitiva do sofrimento torna-se tão
somente uma espassa miragem no infindável deserto da mente humana.
194

CAPÍTULO 4: A EXALTAÇÃO DO FEMININO NAS PRÁTICAS


TÂNTRICAS

4.1 Os cultos matrilineares e a ressurgência da sexualidade sagrada

Os Tantras (budistas e hinduístas) revelam a pureza crepuscular da mulher, em


certa medida despertam o sentimento da “grande deusa”, típico dos ritos arcaicos. O
culto ao sagrado feminino emergiu em diferentes períodos de tempo, em variadas
culturas. Georg Feuerstein (2004) alerta sobre a existência, desde o período Paleolítico
(aproximadamente 25.000 a.C), de uma espiritualidade centrada nas divindades
femininas; este sentimento religioso arcaico é evidenciado por meio das estatuetas
(algumas delas demonstrando o corpo de divindades femininas) encontradas pelos
arqueólogos do século XX.

Além da reverência ao poder feminino, o culto à deusa traz como inevitável


corolário uma sacralização da vida, o poder ctônio da “grande mãe” é percebido em
toda a existência, e nas ações humanas, naturalmente, o próprio ato sexual converte-se
em experiência religiosa. No prefácio de sua obra Sacred sexuality, Georg Feuerstein
adverte sobre a necessidade de uma releitura dos povos arcaicos, a fim de
ressignificarmos a nossa relação com a sexualidade e, por conseqüência, com o
“sagrado feminino”:

Culturas tradicionais que não reconhecem a nossa moderna separação


entre sagrado e profano, consideram a sexualidade como um aspecto
do grande mistério da existência. Eu acredito que essas culturas
possuem muitas pistas importantes para nós. Por isso, os principais
capítulos deste volume, aqueles da parte II, são dedicados a uma visão
geral sobre os importantes caminhos pelos quais as sociedades
tradicionais – da idade da pedra até a nossa era – tem integrado a
sexualidade em sua visão de mundo religiosa. (FEUERSTEIN 2004,
p. XIII-XIV, tradução nossa).

Outra cultura especialmente ligada ao sagrado feminino – os minoicos – que


teriam vivido por volta de 2800 a.C, na misteriosa ilha de Creta, onde, por sinal,
195

evidenciou-se os lampejos de uma religiosidade matrilinear. Junito Brandão (2004)


acredita, com base nas descobertas arqueológicas (pintura, escultura, cerâmica) que a
cultura cretense estava totalmente centrada no culto à “Grande Mãe”, cujas hipóstases,
em Creta, foram Réia, Hera, Perséfone, a “deusa das serpentes” etc.

Com inevitáveis adaptações, a Grécia do Período Homérico (aproximadamente


séc. IX a.C) herdou grande parte do panteão cretense, porém as divindades femininas
não conseguiram manter a sua primazia cultual, o pináculo da força espiritual, da
soberania celeste, passou para as mãos do imponente deus olímpico Zeus, relegando às
deusas de Creta, posições secundárias.

A civilização grega do Período Homérico, extendendo-se até a tragédia do teatro


ateniense, elegeu os deuses masculinos como os grandes manteneadores da ordem
universal. Os irmãos Zeus, Posídon e Hades, cada qual ficou responsável por uma
determinada parte do universo mítico. O primeiro se tornou o soberano do Olímpo, a
morada dos deuses imortais; o segundo responsabilizou-se pelo mundo dos homens,
sobretudo os oceanos e os mares; já o terceiro era o senhor do submundo, a região dos
mortos. Essa tripartição do universo acarretou uma relevância extra aos três irmãos
imortais, filhos de Reia, com eles, os deuses masculinos ganharam importância basilar
em toda narrativa mítica grega.

Embora o pináculo da sacralidade grega, principalmente na época de Homero,


tenha se masculinizado, a “grande deusa” ainda exercia o seu protagonismo cultual nas
religiões de mistérios gregas, sobretudo, no culto à Demeter, em Elêusis. Este é um
exemplo contundente da força feminina presente e ativa em meio à aguda influência dos
deuses masculinos do panteão olímpico. Segundo Junito Brandão, o primeiro santuário
de Elêusis foi erguido no século XV a.C e o seu apogeu aconteceu no século VII a.C,
com efeito, o culto à Deméter e outras tradições relacionadas aos mistérios gregos,
constituem reminiscências das adorações arcaicas direcionadas ao eterno feminino,
como nos lembra Brandão:

Os Mistérios de Elêusis não foram os únicos a existir na Hélade. Mas


Deméter era a mais venerada e a mais popular das deusas gregas [...].
De certa forma, a deusa de Elêusis prolonga o culto das Grandes Mães
do neolítico, e, por isso mesmo, outros grandes mistérios lhe eram
consagrados, como os da Arcádia e da Messênia, sem excluir sua
196

participação nos de Flia, na Ática [...]. Consoante a tradição, os


primeiros habitantes e colonizadores de Elêusis, localidade que fica a
pouco mais de vinte quilômetros do centro de Atenas, foram trácios.
Recentes escavações aqueológicas permitem afirmar que Elêusis deve
ter sido colonizada entre 1580 e 1500 a.C., mas o primeiro santuário
[...] foi construído no século XV a.C. e, nesse mesmo século, se
inauguraram os mistérios [...]. Foi, sem dúvida, a união política de
Elêusis com Atenas, no último quartel do século VII a.C., que
proporcionou a seu culto todo o esplendor e majestade, que
perduraram dois mil anos. (BRANDÃO, 2004, p. 295-297).

O culto à Ísis, no Egito, bem como o misticismo dos primeiros gnósticos cristãos
e sua nelfrágica busca por Sophia, são outros exemplos destacados da ressurgência da
“grande mãe”, no coração das escolas místicas ao redor do mundo. O mapeamento de
todas essas tradições matrilineares não é uma tarefa fácil, tampouco é o nosso interesse
aprofundar em demasia este complexo tema, desejamos apenas que o leitor compreenda
que o Tantra budista e também hinduísta, de algum modo, participa, assim como as
culturas assinaladas acima, de uma intensa adoração ao aspecto feminino da existência.

Confrontando os conhecimentos destes diferentes povos, percebemos certas


simetrias inevitáveis, talvez a principal delas seja o “caráter excessivamente
devocional” que gravita ao redor de todos os cultos vinculados à grande deusa. A
“grande mãe”, de um modo geral, insere-se numa perspectiva de amor incondicional, é a
personificação do perdão, não delega leis como o deus-pai, apenas irradia uma itensa
compaixão pelo sofrimento humano cujo limite é o próprio infinito.

Assim como os gregos do Período Homérico, a cultura bramânica, sobretudo no


Período Védico (compreendido desde a chegada dos povos indo-europeus até a
produção dos últimos textos dos Vedas, por volta de 800 a.C.) é tradicionalmente
patriarcal, a figura da mulher, nas linhas mais ortodoxas, assume características de
subordinação e não de veneração. O sacerdote (homem), enquanto oficiante cerimonial
é o mediador das forças divinas, através do fogo sacrificial por ele produzido, a “boca
de deus” é aberta, nesse momento, o portal dimensional que separa o céu e a terra é
finalmente aberto e as divindades aceitam as oferendas humanas lançadas na fogueira
sagrada. De fato, as características patriarcais do Período Védico não se restringem
apenas ao sacerdócio, extendem-se também às principais divindades cultuadas: Agni,
Varuṇa, Indra, Mitra etc.
197

Seja com os sacerdotes indianos do hinduísmo ou com os padres da Igreja


Católica, as mulheres sempre ocuparam posições subalternas nas cerimônias litúrgicas,
jamais de proeminência. Por séculos, o sexismo do qual ainda somos herdeiros, elegeu
os homens como a figura central do culto religioso.

Contudo, a ressurgência do poder feminino finalmente conseguiu penetrar nas


seculares camadas do vedantismo indiano através da cosmogonia tântrica Śiva-Śakti,
onde, por sinal, o poder da deusa igualou-se em importância cultual ao aspecto
masculino. Assim como no budismo, o hinduísmo também precisou ressignificar,
espiritualmente, a sua ancestral relação com o eterno feminino, encontrando na deusa
Kālī e em outras divindades femininas, sua lembrança Neolítica, um período marcado
pela preponderância da “Deusa Mãe”, a qual foi ofuscada, por séculos, pela dominação
patriarcal ariana, como destaca Heinrich Zimmer em seu livro Filosofias da Índia:

[...] O desenvolvimento do tantrismo favoreceu a volta, ao hinduísmo


popular, da figura da Deusa Mãe com seus diversos nomes: Devī,
Durgā, Kālī, Pārvatī, Umā, Satī, Padmā, Candī, Tripura-sundarī, etc.,
cujo culto, enraizado no passado neolítico, havia sido eclipsado
durante quase mil anos pelas divindades masculinas do panteão
patriarcal ariano. A Deusa principiou sua hegemonia no período das
últimas Upaniṣad. Hoje, é novamente a principal divindade [...]. É
perfeitamente possível que esta restauração da Deusa – tanto nos
cultos populares como na profunda filosofia do Tantra – seja um outro
sinal do ressurgimento da religiosidade da tradição matriarcal, não-
ariana e pré-ariana, dos tempos dravídicos. (ZIMMER, 2015, p. 404-
405).

O ressurgimento da concepção religiosa matricarcal, nos dias atuais, destacado


por Zimmer é um indício claro de outra característica tântrica mencionada pelos textos e
mestres antigos. Os tântricos insistem na ideia de que as suas práticas (incluindo aqui
principalmente a adoração à Deusa e o sexo-yoga) estariam adaptadas às exigências
materialistas desta era na qual vivemos, também conhecida como Kali-Yuga.

Acreditamos que a ressurgência do sagrado feminino se constitui como uma


imperiosa necessidade, tendo em vista a supervalorização masculina incutida nos cultos
religiosos mais tradicionais. O pesquisador Paulo A. E. Borges (2010), em seu trabalho
intitulado Experiência sexual e iluminação na tradição tântrica explica que o Tantra,
centrado na adoração ao aspecto feminino, manifesta-se tanto na tradição hindu quanto
198

budista, como “a via mais rápida para a realização integral do ser humano”,
particularmente adaptada às condições espirituais da nossa era, Kali-Yuga, cuja extrema
decadência se considera poder ser transmutada numa oportunidade superior de
libertação.

A libertação da mulher esbarra na própria libertação do sexo. O erotismo


sagrado é a reconciliação do homem e da mulher com a sua própria interioridade. A
relação sexual, como foi mencionado no capítulo anterior, constitui-se como uma ponte
para a vacuidade, esta parece ser a mensagem tântrica para os próxmos milênios. Se o
sexo é a grande válvula de escape do prazer humano, então o grande mérito do
tantrismo foi ressignificar justamente a nossa maior distração sensória, retirando dele o
rótulo de “principal causa da escravidão”, para a “principal causa da liberação”.

Ao espiritualizar o sexo, a mulher, como conseqüência, também se


espiritualizou, recebeu o devido valor, o Tantra convidou para o “banquete alquímico”,
todos os casais que não podendo trilhar uma vida celibatária, longe do pecado, da
luxúria, tal como fazem os monges, padres e outras autoridades religiosas, poderiam,
todavia, alcançar a mesma transcendência dos vícios, não pela repressão dos sentidos,
senão pela sublimação, pela transmutação, pelo método sagrado do sexo-yoga.

4.2 A divinização da mulher através dos ritos sexuais da deusa Tara

Embora o Tantra seja muito amplo, comportando inúmeras práticas, é no ato


sexual que a sua singularidade mais profunda é descoberta. No clímax amoroso, homem
e mulher reencontram a sanidade espiritual, a relação sexual, antes demoníaca e taxada
como o principal apego ao samsāra, transforma-se no principal meio de libertação.

“Toda mulher nua encarna a prakṛti.” (ELIADE, 2012, p. 216). Com esta
afirmação, Eliade lança sobre os ombros delicados da mulher a honra de conservar
dentro de si mesma os segredos mais sublimes da existência. O corpo feminino é, por
esta razão, uma manifestação individual e temporária da natureza manifesta e
imanifesta, sua nudez é comparável aos princípios de prakṛti (natureza), que quando
199

contemplada com a devida pureza, transmorma-se, mediante o maithuna, na mais pura


representação da sabedoria divina.

Não é exagero comparar a prática do maithuna com uma autêntica adoração


ritualística. Segundo Eliade, o sexo-yoga possui as mesmas qualidades purificatórias,
expiatórias e salvíficas dos rituais védicos:

Notemos um fato importante: a partir da Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad


impões-se a crença de que os frutos das “obras” – o resultado de um
sacrifício védico – podem ser obtidos mediante uma união marital
consumada ritualmente. A identificação do fogo sacrificial com o
órgão sexual feminino é confirmada pelo encantamento mágico que se
lança sobre o amante da mulher: “Tu fizeste uma libação no meu
fogo” (ib., VI, 4, 12). (ELIADE, 2012, p. 213, grifo do autor).

O sexo converte-se em rito sagrado atingindo níveis mitológicos, cosmogônicos;


o casal, inebriado pelo deleite sexual, transcende a concepção profana, inserindo-se,
com efeito, na dimensão da atemporalidade, região inefável onde pureza e sensualidade
possuem a mesma essência, os corpos, a mente, os pensamentos, todos os fenômenos
internos e externos fundem-se na vacuidade, no “em-si”, cuja suprema realidade está
além de qualquer conceito. Nestas alturas do êxtase sensual, o sexo sofre uma inevitável
despersonalização, os amantes (os egos) já saíram de cena, suplataram a condição
humana, transformando o ato sexual em um instrumento ritualístico poderoso de
comunhão com o divino.

Na ânsia desenfreada pelo sagrado, os amantes despiram-se de si mesmos,


soltaram as amarras do prazer mundano, dos desejos e paixões carnais, permitindo à
consciência contemplar a sua própria nudez, sem trajes, ou qualquer adorno,
completamente desnuda, a consciência é “raptada” pelo vazio e por alguns instantes
contempla a máxima realidade metafísica. Portanto,

[...] Pelo fato de não se tratar mais de um ato profano, e sim de um rito
em que os celebrantes já não são humanos, mas seres “desapegados”
como deuses, a união sexual não mais participa do nível kármico. Os
textos tântricos repetem muitas vezes o adágio: “Pelos mesmos atos
que fazem queimar certos homens no inferno durante milhões de anos,
o yogin obtém sua eterna salvação”. (ELIADE, 2012, p. 220).
200

O maithuna deve ser compreendido como um “projeto”, não apenas como uma
prática. O “projeto” a que nos referimos é o movimento em direção à deusa, isto é, a
mulher converte-se em divindade. Recebe o amor e a devoção do seu parceiro,
semelhante às deusas-consortes do budismo. O “eterno feminino”, como já destacamos,
é sentido no amor fraternal, em seu aspecto devocional, experimentado em máximo grau
pelo coração fervoroso do yogin, o qual finalmente é capaz de enxergar a sacralidade
inata contida no interior de cada rosto feminino.

A seguir, apresentamos uma interessante história budista que ilustra


perfeitamente o nosso posicionamento:

[...] O Mahācīnā-kramācāra, também chamado Cinācāra-sāra-tantra,


conta como, com a aparência do Buda, o sábio Vasiṣṭha, filho de
Brahmā, vai interrogar Viṣṇu a respeito dos ritos da deusa Tārā.
“Penetra no grande país da China e percebe o Buda rodeado de um
milhar de amantes em êxtase erótico. A surpresa do sábio chega ao
escândalo e exclama: ‘Eis práticas contrárias aos Veda!’ Uma voz no
espaço corrige seu erro: ‘Se desejas – diz a voz – ganhar o favor de
Tārā, então é com estas práticas ao estilo chinês que é necessário me
adorar!’. (ELIADE, 2012, p. 220).

A passagem acima retrata fidedignamente o momento exato em que o sexo e a


mulher transformam-se, simultaneamente, em experiência religiosa, êxtase divino.
Mircea Eliade cita a corrente tântrica Sahajiyā como detentora e propagadora dos
segredos relacionados ao eterno feminino:

[...] O maithuna aparece como coroamento de uma longa e difícil


aprendizagem ascética. O neófito deve dominar perfeitamente seus
sentidos e, com esse propósito, tem que aproximar-se por etapas da
“mulher devota” (nāyikā) e transformá-la em deusa mediante uma
dramaturgia iconográfica interiorizada. Para tanto, ele deve servi-la
durante os quatro primeiros meses como um serviçal, e dormir no
mesmo quarto que ela, mas a seus pés. Durante os quatro meses
seguintes, ainda continuando a servi-la, dorme no mesmo leito, do
lado esquerdo. Nos próximos quatro meses dormirá do lado direito,
depois dormirão abraçados etc. Todas essas preliminares têm por
finalidade a “autonomização” da volúpia – considerada como a única
experiência humana que pode levar à beatitude nirvânica – e o
domínio dos sentidos, isto é, detenção seminal. (ELIADE, 2012, p.
222).
201

Agora podemos entender melhor porque o budismo Vajrayāna é considerado o


caminho mais rápido, dentre os três veículos, de ascese espiritual. Enquanto algumas
linhagens budistas proíbem o contato sexual, certas escolas do Vajrayāna permitem ao
discípulo tal ação, lançando-o avidamente na direção da própria tentação, para que ela –
a própria tentação – lhe ensine sobre os caminhos tortuosos do sendeiro iniciático. Ora,
vencer a luxúria no plano mental já é uma tarefa árdua, porém torna-se muito mais
difícil a sua superação no mundo físico, frente a frente com uma mulher de carne e osso.
Por isso considera-se a prática do sexo-yoga, um autêntico método de “aceleração
espiritual”, visto que a tentação, durante o ato sexual, ganha proporções avaçaladoras, o
toque, o cheiro, o magnetismo, todas essas sensações transformam o sexo em um teste
terrível para o yogin que, agora, deve vencer não apenas os pensamentos morbosos,
senão todos os comandos instintivos do corpo, para poder encarnar em si mesmo os
princípios do autodomínio, retirando definitivamente da sua consciência todas as
impurezas sensuais.

Em outras palavras, o yogin precisa, em sentido figurado, transformar-se em uma


“pequena criança”, cujos olhos inocentes não diferenciam o corpo feminino do
masculino. Uma mulher desnunda não pode abalar a virtude de uma simples criança,
analogamente, um tântrico avançado, também não deveria se abalar diante do sexo
oposto.

As etapas introdutórias do rito tântrico elencadas acima por Eliade, reforçam a


ideia de que a “mulher devota” (nāyikā) possui importância capital para os objetivos do
Tantra; a transmutação da volúpia em autodomínio, da sexualidade em espiritualidade,
depende da disciplina mental, da purificação dos sentidos. A divinização da mulher, no
fundo, é uma dramatização erótica. Comumente, inicia-se por meio de uma penosa
austeridade psicológica, os amantes sobem, de grau em grau, perfazendo um duro
caminho, no qual as amarguras dos vícios perdem força, são dilacerados, porém, junto a
eles, uma parte do próprio casal também se desvanece, o abandono de antigos padrões
psicológicos custa caro, terríveis descargas emocionais integram a dramaturgia tântrico-
sexual praticada pelo “casal devoto”. Durante o maithuna, cada momento possui uma
determinada relevância espiritual no processo de santificação do devoto. A esse
respeito, Eliade tece alguns comentários sobre o Nāyikā-sādhana-ṭīkā, texto tântrico que
trata sobre a disciplina com as mulheres:
202

Na Nāyikā-sādhana-ṭikā (“Comentários sobre a disciplina espiritual


em companhia da mulher”) o cerimonial é descrito em todos os
detalhes. Compreende oito partes começando com sādhana,
“concentração mística com ajuda de fórmulas litúrgicas”; seguem-se
smaraṇa, “a lembrança, a penetração na consciência”; āropa143
“atribuição de outras qualidades ao objeto”, durante o qual se
oferecem cerimonialmente flores à nāyikā, que começa a se
transformar em deusa; manana, “lembrar-se da beleza da mulher
quando ela está ausente”, o que já é uma interiorização do ritual. Na
quinta etapa, dhyana, “meditação mística, a mulher senta-se à
esquerda do devoto e é abraçada “de maneira que o espírito se
inspire”144. Na pūjā, “o culto propriamente dito”, adora-se o lugar
onde a nāyikā está sentada, fazem-se oferendas e banha-se a mulher
como se banha a estátua de uma deusa. Durante esse tempo o
praticante repete mentalmente os mantra. A concentração atinge o
máximo quando ele ergue a nāyikā nos braços e a conduz ao leito,
repetindo a estrofe Hlīng klīng kandarpa svāhā. A união tem lugar
entre “deuses”. O jogo erótico realiza-se em um plano
transfisiológico, porque nunca tem fim. Durante o maithuna o yogin e
sua nāyikā incorporam uma “condição divina”, pois não somente
experimentam a beatitude, como também podem contemplar de modo
direto a realidade última. (ELIADE, 2012, p. 222-223).

Uma vez que o yogin tântrico tenha culminado com êxito o seu processo de
purificação, então se torna possível o encontro com a deusa, a grande musa do budismo,
a qual espera pacientemente por seus filhos exiliados no doloroso vale do samsāra.
Agora, com os olhos purificados pelo sādhana, a nāyikā (mulher devota) converte-se no
próprio mistério da criação, a sacerdotiza nupcial converte-se na resplandecente
divindade Tārā145.

A deusa Tārā146 (Drölma em tibetano) é o arquétipo, por excelência, da grande


mãe, ocupa posição privilegiada na vida religiosa tibetana; em virtude das suas

143
Āropa desempenha um papel importante na tradição Sahajiyā; indica o primeiro movimento para a
transcendência que consiste em ver o ser humano não no sentido físico, biológico e psicológico, mas em
uma perspectiva ontológica; Cf. textos em S. Dasgupta, Obscure Religious Cults, p. 158.
144
“A mulher não deve ser tocada pelo prazer corporal, mas pelo aperfeiçoamento do espírito”, afirma o
Ānandabhairava (citado por Bose em Post-Caitanya Sahajiyā Cults, 1930, p. 77-78).
145
Esta é uma questão muito pessoal de cada iniciado tântrico, citamos aqui a deusa Tārā, porque o seu
culto é muito popular no Tibete e suas características fraternais estão totalmente alinhadas com os cultos
arcaicos mencionados nos parágrafos anteriores. Entretanto, outras divindades femininas poderiam ser
mencionadas, sobretudo da tradição vajrayāna, que estão em perfeita sintonia com as características
protetoras e amorosas da Grande Mãe.
146
Existem vinte e uma manifestações de Tārā, cada uma delas possui um ritual (pújá) e um mantra
específicos. A Tārā Branca, por exemplo, está vinculada com a cura, a Tārā Vermelha à prosperidade.
Inquestionavelmente, dentre todas as emanações, Tārā Verde ocupa a posição de maior destaque, está
diretamente relacionada à atividade da compaixão, uma das virtudes mais exaltadas do budismo, e por
este motivo a escolhemos como a principal representante do panteão feminino budista.
203

características fraternais, é considerada a “mãe de todos os budas”. Ela é Prajñā 147, a


ilustre sabedoria que liberta todos os seres do sofrimento, sua característica mais
destacada é o “amor devocional” (Bhakti), o qual foi expresso tão avidamente pela
relação conjugal entre Kṛṣṇa e Radha, narrada poeticamente no Śrīmad Bhāgavatam,
um dos purāṇas mais importantes do vaixinavismo. A seguir, apresentamos uma citação
do Lama Govinda a qual expressa, com clareza, as qualidades devocionais atribuídas à
deusa Tārā:

Entre as personificações femininas da Sabedoria (“Prajñá”), Tárá


ocupa uma posição especial [...]. Ela representa a verdadeira essência
do amor devocional, que é o fundamento de todas as práticas
religiosas, do mais simples ato de veneração (pújá) ao mais
desenvolvido treino de meditação. Ela é, por isso, uma das figuras
mais populares, acessível e atrativa do panteão tibetano [...]. Ela
estende seu cuidado amoroso para os bons e para os maus, para o
sábio e para o insensato [...] os tibetanos, por isso, a chamam “dam-
ishig-sgrol-ma”, a Dölma fiel; ela é a personificação daquela fiel
devoção que nasceu do amor e foi reforçada pelo voto do bodhisattva
para liberar todos os seres vivos. “Dam-tshig” significa literalmente “o
voto solene ou sagrado”, porém, na linguagem mística dos Tantras, é a
força gerada por um voto através da fé e completa renúncia de si
mesmo. É “a fé que move montanhas”, a sabedoria do coração. Ela
corresponde de um certo modo ao termo sânscrito “bhakti”, que nas
religiões teístas da Índia significa o amor devocional para com Deus e
a última auto-identificação com ele. Por isso, é mais do que sraddha,
mais do que a simples fé, porque ela é inspirada pelo amor. Um
“bhakta” é um devoto como também um amante. (GOVINDA, 1995,
p. 119-118).

Os atributos maternais e devocionais de Tārā colocam-na decisivamente dentre


àquelas divindades representantes do eterno feminino, uma viva manifestação da
“grande deusa”, dignamente cultuada no Tantra budista. Reforçando a nossa premissa,
147
Prajñā (no tantra budista) equivale à “Śakti” dos hindus. Alex Wayman, em seu artigo Female Energy
and Symbolism in the Buddhist Tantras, explica que a palavra Śakti não é comum nos textos budistas, por
isso prefere o termo Prajñā, o qual é recorrente nos textos do vajrayāna, e por esta razão, mais fidedigno
à doutrina tântrica budista. Posição semelhante adota o Lama Anagarika Govinda, reforçando ainda que
no shaktismo hindu o poder feminino universal (Śakti) seria responsável, juntamente com o seu princípio
masculino, pela “criação” existencial. No entanto, o autor repele qualquer tipo de criacionismo dentro do
tantra budista, de modo que “Prajñā” não possui qualidades criacionistas, sua principal característica é a
“sabedoria que liberta os seres do samsāra”, portanto não devemos confundi-la com “Śakti”. Alertamos
aos leitores que estes dois posicionamentos expressam apenas alusões sobre possíveis diferenças entre os
tantras budistas e hinduístas. Diferentemente do Lama Govinda e do pesquisador Wayman, acreditamos
que, embora existam pequenas diferenças conceituais entre Prajñā e Śakti, em essência, possuem
exatamente o mesmo significado. Evidentemente, o nosso posicionamento também é passível de crítica e
questionamento.
204

Bokar Rimpoche (2018) ensina que o divino amor de Tārā, pode ser percebido inclusive
em sua iconografia: a cor verde emanada de seu próprio corpo luminoso representa a
sua completa resignação ao dharma, isto é, atende prontamente ao chamado de um
“coração aflito”. A perna esquerda dobrada representa a renúncia de todas as emoções
conflituosas. A perna direita meio dobrada indica que, sob qualquer circunstância, ela
está sempre disposta a se levantar e se dirigir aos seres que necessitam da sua proteção.
Com a sua mão direita, ela faz o mudrā da doação, indicando com esse gesto a sua
especial vocação em conferir realizações comuns (poderes sobrenaturais) e as
realizações sublimes (realização da natureza da mente). Sua mão esquerda faz o mudrā
do refúgio, os dedos polegares e anelares estão juntos simbolizando a união dos “meios”
(upāya) e do “conhecimento” (prajñā), numa clara alusão à sua natureza tântrica. Os
seus outros dedos para cima representam as Três Jóias: Buda, Dharma, e Samgha. As
hastes do lótus que ela segura em suas mãos indicam que todas as qualidades de
realização desabrocharam totalmente nela. Sua beleza expressa a compaixão sem
limites, indica ainda que ela é a mãe de todos os Budas. Os ornamentos (sedas e jóias)
dão testemunho da maestria de suas qualidades e atividades. Suas costas eretas mostram
o seu perfeito estado de meditação, é similar ao diamante que nunca vacila. A lua atrás
dela, simboliza a plenitude da felicidade inexaurível.

Imagem 4 – Deusa Tara verde


205

Fonte: http://mariposasenelparque.blogspot.com/2015/09/mantra-de-la-tara-verde.html. Acessado em


25/09/2018.

Portanto, a mulher devota (nāyikā) deve transformar todas as sensações sublimes


extraídas do contato sexual em atributos atemporais da deusa Tārā, descritas com agudo
primor pelos antigos sábios. Um casal que tenha acessado a estes elevados níveis do
conhecimento tântrico, certamente compreendeu o verdadeiro valor das técnicas
sexuais, bem como da própria mulher em todo esse processo. Por isso, torna-se possível,
de acordo com o Tantra, enxergar a mulher enquanto uma manifestação física de Tārā,
de modo a contemplá-la e adorá-la dignamente.

Inquestionavelmente, a “divinização da mulher” é um ponto fulcral para as


pretensões do Tantra. A soteriologia sexual exige do praticante uma pureza absoluta em
termos físicos e psicológicos. Enquanto a mente do praticante tântrico não se
desvincilhar, por completo, da luxúria, então ele não terá completado o seu treinamento,
pois, com a mente luxuriosa, não é possível enxergar a mulher como uma divindade,
como a própria deusa Tārā, impossibilitando qualquer tipo de libertação; portanto, em
última análise, o salvacionismo espiritual prometido pelo Tantra só pode ser
manifestado quando a mulher se converte, para os olhos do discípulo, em uma
206

divindade inefável. Este é o sinal inequívoco de que o devoto avançou


consideravelmente em seu sādhana.

4.3 O hibridismo das ḍākinīs

Além da deusa Tārā, outra divindade feminina, as ḍākinīs, aguça o imaginário


tântrico com um toque especial de magia, misticismo e sensualidade. Elas estão
distribuídas nas mais diversas formas de expressão do tantrismo: na iconografia, na
escatologia, na alquimia-sexual, no simbolismo dos textos, na figura das consortes-
yoginīs, em experiências oníricas. Todos estes exemplos integram as notáveis aparições
das ḍākinīs na literatura tântrica, influenciando decisivamente os rumos espirituais do
budismo tibetano.

O mestre contemporâneo Namkhai Norbu Rimpoché, em sua obra El Yoga de


los Sueños y la Práctica de la Luz Natural, explica que a palavra ḍākinī possui uma
conotação especial, não podemos encará-la como uma simples divindade feminina,
embora apareçam repetidas vezes com esta forma, ao que tudo indica, elas estão além de
qualquer gênero:

Dakini: (Tib.: khandro). “Kha” significa espaço, céu; “dró” significa


ir. O termo indica aquele que vai ao céu/espaço. A dakini é o corpo da
sabedoria e está mais além de uma distinção sexual, porém é
percebida com forma femenina. Existem muitas classes de dakinis
incluindo as dakinis sábias, que tem alcançado a Iluminação.
Exemplos como estes são: Mandarava, Yeshe Tsogyal e Vajra
Yoguini. (RIMPOCHÉ, 2002, p. 41, tradução nossa).

A pesquisadora Judith Simmer-Brown em sua obra Dakini´s Warm Breath: The


feminine principle in Tibetan Buddhism (2001), traça uma interessante linha do tempo
na qual as ḍākinīs, assim como a deusa hindu, Kālī, já apareceriam cultuadas nos
antigos povos pré-arianos148, que depositavam nas divindades femininas o centro da sua

148
Conforme alguns indólogos, as culturas que antecederam a chegada e a consequente influência do
vedantismo, aparentemente, possuíam uma atitude ritualística e espiritual que girava em torno das
divindades femininas. Esta premissa já foi trabalhada nos parágrafos anteriores. Para maior
aprofundamento, sugerimos a obra de SIMMER-BROWN, 2001.
207

fé. Importa salientar que antes de alcançar uma posição de destaque dentre as escolas
tântricas do Tibete, as ḍākinīs eram as servidoras da deusa Kālī, estavam relacionadas às
transgressões, à desmedida, à fúria dos deuses. Do ponto de vista social, estavam
vinculadas às castas inferiores, aos comedores de carne, assassinos, indivíduos fora da
lei.

O espectral mundo das bruxas, os feitiços encarniçados, a sede pelo sangue


humano, o colar de crânio pendurado em seu pescoço e os passeios noturnos pelas covas
dos cemitérios, são características dakinianas que, de algum modo, também estão
presentes no folclórico mundo da deusa Kālī, como sublinha Simmer-Brown:

As ḍākinīs foram consideradas uma classe de divindades inferior que


serviram sob o julgo de divindades dominantes não-bramânica, como
a furiosa deusa Durgā ou Kālī, ou o deus Śiva através da sua forma
Gaṇapati “Senhor das categorias”. É significante que as ḍākinīs
suguem o sangue, a preciosa rasa, ou o suco corpóreo vital da tradição
Ária, que de acordo com as regras das castas, deve ser mantido puro e
integral a fim de preservar a sacralidade do corpo. Aqueles que violam
esta pureza foram vistos na sociedade ariana como dotados de
inimaginável maldade e perigo. Assim como as famosas Kālī e Durgā,
as ḍākinīs representaram forças marginais a fim de manter a sociedade
ariana – feminina, sem casta, impura – e, por isso foram consideradas
poderosas transgressoras da lei. (SIMMER-BROWN, 2001, p. 43,
tradução nossa).

Inquestionavelmente, uma definição exata sobre os diversos significados ocultos


dessa divindade torna-se uma tarefa assaz difícil. De fato, desde a Índia dravídica, as
ḍākinīs receberam inevitáveis adaptações, ressignificações profundas, variando
conforme o momento histórico e a cultura que absorveu os seus símbolos e suas
características arcaicas:

Resulta, talvez, numa insensatez tentar descrever, sistematicamente, a


ḍākinī, tal como se apresenta em sua forma natural. As Escolas do
Vajrayāna Tibetano se frustram em tentar defini-la, considerando o
termo ḍākinī “semanticamente ambíguo, multivalente” [...].
Entrevistando os Lamas sobre o tópico da ḍākinī, eu frequentemente
pergunto a mesma questão e recebo uma grande variedade de
respostas [...]. É dito que a ḍākinī não segue uma filosofia ou um
sistema, suas atividades não obedecem padrões ou leis externas.
(SIMMER-BROWN, 2001, p. 43, tradução nossa).
208

Embora possuam uma natureza polivalente, hodiernamente, elas são


representadas pelos indólogos e mestres tântricos do budismo tibetano, como as
“dançarinas celestiais”, “fadas encantadas” (cf. Imagem 5), cumprindo um papel
extremamente importante dentro da literatura tântrica.

Imagem 5 – Representação de uma ḍākinī

Fonte: https://tricycle.org/magazine/mothers-liberation-2/. Acessado em 25/09/2018.

Judith Simmer-Brown (2001) define a palavra sânscrita ḍākinī (tib. Khandroma)


como “aquela que voa através do céu”. Quando analisamos a palavra tibetana
Khandroma torna-se mais profunda a compreensão desta divindade:

De acordo com os comentários tibetanos a primeira parte do seu


nome, kha, refere-se ao espaço ou ao céu, à ilimitada extensão do
vazio (śūnyatā, tong-pa-nyi), que é o fundamento de toda experiência
209

no contexto do budismo vajrayāna [...]. A segunda parte do seu nome,


dro, indica movimento e a vida em si mesma [...]. Esta qualidade do
movimento é um dos seus traços mais consistentes, refere-se não
somente ao movimento no sentido físico, mas também na sua
habilidade em mudar de forma, aparecer e desaparecer à vontade [...]
representa a profunda experiência do espaço, o inspirado impulso em
direção ao coração da iluminação. (SIMMER-BROWN, 2001, p. 51-
52, tradução nossa).

No contexto do Vajrayāna, estas divindades femininas evoluíram, alcançaram


sua maturidade espiritual, sobretudo quando são retratadas como preceptoras de mestres
do calibre de Padmasambhava149, Saraha, Lūipa e Virūpa. Keith Dowman (1985)
explica que em alguns casos, elas aparecem encarnadas em algum corpo feminino e
instruem os devotos de forma pessoal150, este é o caso do māhasiddha Lūipa, cuja
preceptora foi uma ḍākinī com corpo físico. Em outros casos, todavia, as ḍākinīs
aparecem em sua forma arquetípica, isto é, manifestam-se ao discípulo em visões
internas, expressando a própria “sabedoria divina”, poderíamos citar como exemplo o
māhasiddha Virūpa, o qual teria sido iniciado pela própria deusa-ḍākinī, Vajravārāhī,
uma divindade tântrica mencionada na obra Cakraśaṁvara-tantra.

Além de mestra dos yogins, as ḍākinīs também cumprem um importante papel


escatológico. “O paraíso das ḍākinīs” é um destino espiritual frequentemente

149
Dentre os vários encontros entre Padmasambhava e as ḍākinīs, três deles merecem atenção especial.
No primeiro, a deusa Vajravārāhī (uma dakini), teria iniciado o siddha indiano nos mistérios tântricos,
sendo, por esta razão, considerada uma importante preceptora. Um segundo encontro capital aconteceu
através da forma corpórea de Yeshe Tsogyal, sua principal discípula e consorte. Por fim, outro momento
chave desta conexão, acontece quando Padmasambhava pede às ḍākinīs para que sejam as guardiãs dos
“tesouros escondidos”, também conhecidos como Terma (tib. gTer Ma). O mestre contemporâneo Tulku
Thondup Rinpoche (1997), em sua obra Hidden teachins of Tibet, explica que Padmasambhava ocultou
preciosos ensinamentos tântricos (terma), alguns deles são textos sagrados preservados em mosteiros e
ocultados, misticamente, por meio de cerimônias mágicas. O poderoso yogin também ocultou alguns
termas na contraparte espiritual de certos lagos, montanhas e vales espalhados pela terra, transformando-
os, com o seu poder místico, em regiões encantadas. Além destes locais sagrados, o grande siddha indiano
também teria escondido conhecimentos secretos (terma) nas mentes de alguns seletos discípulos, estes
seriam conhecidos como Terton, os quais tomariam corpo físico, no tempo propício, e encontrariam os
tesouros ocultos perdidos, revelando-os às gerações futuras, no momento em que a humanindade já
estivesse suficientemente preparada para recebê-los. Atribui-se a Padmasambhava a criação da tradição
dos Tertons, porém coube a sua poderosa consorte, Yeshe Tsogyal, a nobre tarefa de divulgar e ensinar os
detalhes desta mística transmissão. A tradição tibetana Nyingma é especialmente conectada com a
tradição do Terma, muitos dos seus textos, incluindo importantes sutras do mahayāna, como o
prajñapāramitā, e outras relevantes obras tântricas, como é o caso do kalacakra tantra e o Bardo Thodöl
(livro Tibetano dos mortos), seriam exemplos destacados de Terma, isto é, escrituras escondidas
fisicamente e/ou em outras dimensões paralelas, acessíveis apenas aos seres predestinados (tertum). Cf.
RINPOCHE, 1997.
150
As ḍākinīs também são retratadas como discípulas, não somente como mestras, este é o caso de
Milarepa, que teve algumas ḍākinīs encarnadas como suas discípulas.
210

mencionado nas biografias dos mahāsiddhas, muitos deles, após penosas austeridades,
alcançaram esta inefável morada celestial. Perecebe-se, portanto, uma ressignificação
considerável das suas funções. De simples assistentes da deusa Kālī (do período pré-
ariano), passaram a representar a própria sabedoria refulgente dos seres iluminados, as
ḍākinīs, de fato, elevaram em máximo grau a sua relevância cultual nas escolas tântricas
do Tibete:

A origem indiana da ḍākinī nos tantras budistas e nas biografias de


grandes yogins e yoginīs são, é claro, extremamente importante.
Contudo, o seu desenvolvimento no Tibete evoluiu a partir da figura
de uma deusa menor para o símbolo central da experiência meditativa
iconográfica, no ritual e na meditação. [...]. Quando examinamos a
ḍākinī em seu contexto tibetano, encontramos a sua importância vital
dentro da tradição do tantra. (SIMMER-BROWN, 2001, p. 48,
tradução nossa).

Antes de prosseguirmos, vale destacar que as características infratoras e


passionais das ḍākinīs, herdadas desde a Índia Dravídica (aproximadamente 3000 a.C.),
são pistas seguras de sua natureza tântrica; com aparições sanguinolentas, elas
buscavam quebrar a esfera dos pares opostos, “bem” e “mal” devem ser percebidos
como “construções” da natureza material, não possuem existência própria; ao vizualizar
a ḍākinī irada, em seu aspecto funesto, o devoto experiênte produz em seu interior uma
auto-imolação, isto é, “morre” para o mundo fenomênico, transcende o medo e
compreende a sua natureza transitória, irreal. Eis a essência do Vajrayāna: “a
transmutação da impureza interior”.

Com efeito, o objetivo do método tântrico não é simplemente passar do “puro”


para o “impuro”, mas transcender a ambos, adentrando assim na própria vacuidade,
substrato metafísico de toda existência. Com semelhante compreensão, o discípulo
percebe a si mesmo enquanto divindade, não somente ele, senão toda a realidade torna-
se “una”, “indivisa”, não há qualquer polarização.
211

4.4 A iniciação sexual através das ḍākinīs

As características híbridas das ḍākinīs também estão associadas ao maithuna. A


sexualidade, em certo sentido, assemelha-se a um termômetro, que mede o nível de
evolução de um devoto. Por vezes, as ḍākinīs realizam danças eróticas, com
movimentos sensuais, atraindo para si mesmas uma força magnética-sexual,
extremamente poderosa, que desperta no discípulo, a sua própria “cobra sagrada” –
kunḍalinī –.

O pesquisador John Ryan Haule em seu livro Tantra & Erotic Transe (2012),
explica que as ḍākinīs são capazes de “impulsionar” o discípulo em direção ao dharma.
Com seu poder magnético, coloca os seus devotos em uma espécie de transe místico,
ativando os seus cakras, bem como a própria energia sexual. A força erótica entra em
ebulição, o discípulo sente em seu corpo o calor e o instinto vivo da “serpente sagrada”
(kunḍalinī), despertando-a e impulsionando-a avidamente para o caminho da
iluminação, que neste caso, consiste em sua subida e consequente passagem pelos
centros magnéticos do corpo:

Todas as Dakinis, furiosas ou felizes, são encontradas em um


específico nível da dimensão sutil, o que chamamos de plano da
Dakini. A diferença entre elas, se as vemos como felizes ou furiosas –
depende da quantidade de néctar do nosso transe erótico [...]. Se nós
tivermos o privilégio de encontrar um Daka ou Dakini, então a
kundalini é despertada. (HAULE, 2012, p. 70, tradução nossa).

O iniciado tântrico precisa compreender que a verdadeira sabedoria está além do


“bem” e do “mal” e que, portanto, as divindades iradas assim como as pacíficas, em
última instância, emergem da própria natureza iluminada do vazio, a qual está dentro do
próprio homem, entretanto, por vezes, a vacuidade, motivada unicamente pela
compaixão, manifesta-se com formas pitorescas, transformam-se em deusas furiosas, a
fim de colocar à prova a evolução interna do devoto, ou seja, trata-se de um truque, uma
pedagogia extremamente poderosa com vistas, unicamente, ao pleno desenvolvimento
espiritual.
212

Yassine Ernest (2014) explica que todas as consortes dos herukas (divindades
iradas), são na verdade, as próprias ḍākinīs. Segundo o autor, os deuses furiosos são
mais poderosos do que os pacíficos, pois sua função é limpar, através de uma completa
transmutação, todos os resíduos impuros do medo e pavor humano. Trata-se de uma
poderosa expurgação espiritual cuja eficiência reside justamente na total emancipação
psicológica e espiritual do discípulo.

Como já fora mencionado em parágrafos anteriores, as ḍākinīs também podem


aparecer sob a forma corpórea; geralmente encarnam em um corpo belo e jovial,
associam-se aos grandes mestres e sábios, vivendo na companhia deles, servindo-os ou
instruindo-os diligentemente. Stephen Beyer, em seu livro, Magic and Ritual in Tibet,
esclarece que em muitos relatos, elas aparecem como executoras dos ritos sexuais,
transformando o seu erotismo místico em uma ferramenta poderosa para os alquimistas
avançados:

Há frequentes referências a elas nos textos tântricos, onde aparecem


como parceiras dos yogins, reunindo-se em torno deles quando
visitam os grandes centros de peregrinação. Sua presença era essencial
para a realização dos ritos psicossexuais e suas atividades geralmente
são tão grosseiras e obscenas a ponto de lhes dar o nome de bruxa.
Elas entram na mitologia tibetana num aspecto um tanto mais gentil e,
deixando de ser seres de carne e osso, tornam-se as doadoras de
doutrinas místicas e portadoras de oferendas divinas. Elas se tornam
os símbolos individuais da sabedoria divina com os quais o meditador
deve ser misticamente unificado... embora iconograficamente, elas
mantenham suas formas ferozes e horripilantes. (BAYER, 2001, p. 46,
tradução nossa).

Dentre as ḍākinīs encarnadas, talvez a mais conhecida de toda a história do


budismo Vajrayāna seja Yeshe Tsogyal (principal consorte-yogini do mestre indiano
Padmasambhava). De acordo com os tantras, Tsogyal é uma yogini perfeita,
conhecedora de todos os mistérios iniciáticos do caminho tântrico, incluindo,
logicamente, o próprio sexo-yoga:

É conveniente falar do caminho tântrico em termos de quatro


iniciações ou quatro níveis de fortalecimento que introduzem o
discípulo aos diferentes aspectos do estado totalmente iluminado. Nos
termos mais simples, a primeira das quatro iniciações capacita o
213

discípulo a empreender as iogas do Estágio de Geração. Estes visam a


realização da verdadeira natureza de todos os fenômenos e envolvem
principalmente a prática de visualização e recitação. A segunda
iniciação introduz o discípulo às práticas da Perfeição, em que os
canais, energias e essências sutis de seu próprio corpo são controlados.
Quando isto foi perfeitamente realizado, o discípulo está pronto para
receber a terceira iniciação, o que lhe dá poderes para praticar um tipo
semelhante de yoga, mas desta vez tomando o apoio do corpo de
outra pessoa, em outras palavras, uma consorte. Finalmente, a quarta
iniciação está diretamente relacionada à introdução à natureza da
própria mente. Yeshe Tsogyal implementou sucessivamente as
práticas de todas as quatro iniciações [...] praticando-as intensamente
para estabilizar essa experiência e amadurecê-la em plena e indelével
realização. (PADMAKARA, 2002, p. 25-26, tradução nossa, grifo
nosso).

Esclarecemos aos leitores que as quatro iniciações mencionadas na citação acima


são etapas sucessivas correspondentes a quarta e última classe do Tantra:
Annutarayoga-Tantra, a qual permite a execução das práticas sexuais. Yeshe Tsogyal
praticou a terceira iniciação tântrica, que inclui o ato sexual. Contudo, ao longo da sua
biografia, ela esclarece que as práticas do sexo-yoga (correspondentes à terceira
iniciação do Annutarayoga-tantra) devem ser transmitidas a praticantes experientes,
cujo nível espiritual já tenha alcançado elevados patamares, como podemos evidenciar
na citação a seguir:

A prática da terceira iniciação só pode ser implementada por pessoas


capazes de sentir e permanecer sem apego, mesmo em uma situação
de clímax físico. É lógico que indivíduos genuinamente capazes de
praticar dessa maneira (distintos daqueles que simplesmente pensam
que são) são poucos e distantes entre si. Por outro lado, para aqueles
que podem implementá-lo, a ioga da terceira iniciação é considerada
de imenso poder e rapidez. Como é evidente na vida de Yeshe
Tsogyal, é rápido para gerar grandes realizações. Ao mesmo tempo, é
um caminho profundamente perigoso, envolvendo uma área em que as
pessoas são particularmente frágeis e propensas a se enganarem. É
perigoso até mesmo para praticantes avançados e sinceros, porque o
surgimento do apego pode ser extremamente sutil, com o resultado de
que eles podem se desviar e cair do caminho. Não há dúvida de que,
por esse motivo, poucas pessoas são encorajadas a tentar essas
práticas. (PADMAKARA, 2002, p. 27, tradução nossa)

Novamente, vemos a grande relevância da sexualidade dentro das práticas


budistas. Um discípulo que recebe a terceira iniciação (sexo-yoga) é um candidato
214

seguro para a libertação do sofrimento, pois é o sinal inequívoco de que já possui


suficiente intrepidez interna para suportar as terríveis provas iniciáticas do sendeiro
sexual.

A biografia da ḍākinī Yeshe Tsogyal mostra que uma das principais técnicas
recebidas por ela, através de Padmasambhava, foram justamente as práticas sexuais,
reforçando a aproximação do budismo com o aspecto sensual da natureza humana.
Vejamos abaixo uma citação da própria Tsogyal, que ilustra o nosso posicionamento:

Agitando os pistilos do lótus com meus dedos, em uma dança rítmica,


ofereci a mandala à mandala do Guru. O grande Padma Heruka, com o
gesto do gancho, puxou a mandala do espaço em sua direção e, em
uma explosão esmagadora de tremendo riso e uma expressão de ira
feroz, ele colocou o grande e resplandecente vajra, o heruka absoluto,
sobre o trono do lótus. Todas as aparências foram engolidas pelo
rugido longo e lento da Grande Felicidade. A mandala do Sol
Brilhante, do Espaço Radiante foi aberta e o empoderamento
conferido. Na mandala da sabedoria e dos meios do Guru estavam os
sublimes campos búdicos dos quatro herukas, soberanos dos quatro
chacras, expressos como miríades de divindades, discos de luz e
sílabas sementes. E nessa mandala, o empoderamento das Quatro
Alegrias foi dado. O Guru e eu permanecemos em união e, através do
poder do chakra em sua testa, uma experiência intensamente
penetrante da Sabedoria Primordial da Alegria veio sobre mim. Nos
trinta e dois campos búdicos subsidiários, que são a mandala branca,
havia trinta e dois herukas brancos em união com suas consortes,
cercados por centenas de milhares de herukas semelhantes a eles, e no
meio deles, a soberana heruka, em união com sua consorte, concedeu-
me uma introdução à Primordial Sabedoria da Alegria. A aflição da
cólera foi purificada, da mesma forma as tendências habituais e
obscurecimentos do corpo, eu percebi os aspectos do Caminho da
Junção e tendo agora o poder de trabalhar para o benefício dos sete
universos das dez direções, recebi o nome secreto de Dechen Karmo
Tsogyalma: Tsogyal Branco, Senhora da Grande Felicidade.
(CHANGCHUB; NYINGPO, 2002, p. 40-41, tradução nossa).

Assim como destacamos no terceiro capítulo, o vajra e o lótus representam, em


sentido alegórico e alquímico, o falo masculino e a vagina feminina. Na passagem
acima, a ḍākinī Yeshe Tsogyal, retrata fidedignamente o momento em que foi iniciada
nos mistérios sexuais por seu guru, Padmasambhava. A seguir, transcrevemos outra
passagem do relato biográfico de Tsogyal, que descreve o vajra e o lótus, o sol e a lua,
como componentes alegóricos da experiência mística-sexual:
215

E eu, sem vergonha ou hesitação, longe do caminho profano do


mundo, com alegria e profundo respeito, mostrei e ofereci a mandala
secreta. Do esplendor do sorriso compassivo do Mestre, raios
cintilantes de luz do arco-íris irromperam e, permeando mil milhões
de universos, retornou, sendo reabsorvido em seu rosto. Convocados
pelas sílabas Dza e Hung, eles passaram por seu corpo, fazendo com
que o vajra secreto se levantasse em fúria, entrando no silêncio
perfeito do lótus. Através dos movimentos da dança da bem-
aventurança, as mandalas do sol e da lua dentro dos oito chacras da
raiz do Guru e sua Consorte foram gradualmente incendiadas com a
luz, e para as divindades que residem em cada um dos oito chakras, a
oferta foi feita com as Quatro Alegrias. E, nessa ardente experiência
da realização da bem-aventurança da luminosidade perfeita, difícil de
suportar, a Mandala da Essência do Coração dos Dakinis, o Khandro
Nyingtik, foi aberta dentro da mandala do Corpo do Guru [...]
(CHANGCHUB; NYINGPO, 2002, p. 36-37, tradução nossa).

Antes de se tornar um guru, Padmasambhava foi discípulo das ḍākinīs. Judith


Simmer Brown (2001) explica que o guru indiano teria recebido, durante o seu árduo
treinamento, em longínquas cavernas, poderosos empoderamentos iniciáticos
outorgados por estas divindades femininas. Ao chegar ao Tibete, Padmasambhava
gozava de uma intensa realização espiritual, um autêntico mahāsiddha, e já teria mil
anos de idade, graças às técnicas de imortalidade e retenção do sêmen, concedidas pelas
ḍākinīs.

É interessante observar que Padmasambhava passou de discípulo para mestre das


ḍākinīs, colocando sob a responsabilidade de Tsogyal, uma ḍākinī, a manutenção e
propagação destes conhecimentos secretos. Ou seja, o mitológico yogin de Orisa,
depositou no corpo e na mente de uma mulher as joias espirituais mais elevadas,
nenhum outro discípulo se igualou a ela em importância, confirmando a proposta
tântrica de supervalorização do gênero feminino.

O mestre tântrico Ter dag Ling pa (1646-1714) também recebeu das ḍākinīs
conhecimentos espirituais, sobretudo àqueles vinculados ao erotismo místico, isto é,
técnicas sexuais para o cultivo da própria iluminação interior:

No início da manhã do décimo dia do mês do mês de Nag pa [terceiro


do calendário tibetano], em um sonho, uma dakini celestial veio até
ele na forma de uma jovem sorridente e bonita, vestida de seda
colorida com ornamentos de jóias preciosas. Ela começou a mostrar-
lhe a expressão de grande felicidade. Ao ter contato com ela, ele foi
216

liberado para a extensão da liberdade das elaborações, a natureza das


experiências de grande bem-aventurança. A dakini disse: “A sabedoria
da grande bem-aventurança nada mais é do que isso. Agora você
realizou as circunstâncias auspiciosas.” E ela tirou o anel precioso e
colocou-o na taça dele dizendo: “Mantenha-o como um sinal de
realização”. Então ela desapareceu e ele acordou. Ainda não havia
amanhecido, por isso não podia ver nada, mas ele sentiu um rolo de
papel em sua taça. Pela manhã, levou-a para a janela e descobriu que
era o guia profético de uma Terma151. Era um rolo de papel vermelho
claro com um roteiro impresso em letras muito finas, como se
estivesse escrito com um único fio de cabelo. (RINPOCHE, 1997, p.
73-74, tradução nossa, nota nossa).

Em todo esse cenário, torna-se evidente a companhia das ḍākinīs na vida dos
grandes santos; enquanto divindade tutelar manifestam-se com ferocidade contra
qualquer um que tente prejudicar o seu devoto, enquanto amante, manifesta-se, ora
como bela esposa carnal, ora como emanação espiritual.

Heinrich Zimmer (2015) assegura que estamos vivenciando uma época em que a
Grande Deusa ressurgiu, retomou, ainda que tardiamente, o seu protagonismo no âmbito
das religiões, e o Tantra teria uma participação especial em todo esse processo.
Concordamos que o tantrismo contribuiu para o retorno da adoração ao aspecto
feminino da existência, porém, mesmo nos dias atuais, o culto à Grande Mãe parece
ainda balbuciar. Não podemos simplesmente contemplar as divindades femininas sem
compreender, profundamente, todo arcabouço doutrinal que elas carregam. A adoração
ao eterno feminino, tal como foi expressso ao longo deste trabalho, inclui, em seu
aspecto mais esotérico, e, portanto, mais profundo, as técnicas do sexo-yoga. Resulta
superficial ensinar apenas um tipo específico de prece, um mantra, e com eles achar que
o culto à Grande Deusa já foi restabelecido.

Acreditamos que o salvacionismo sexual é uma das expressões mais destacadas


do culto à Grande Mãe, ressignificado pelos padrões religiosos da contemporaneidade.
A adoração à Deusa, em suas mais distintas formas, torna-se incompleta se a ela não for
agregada a prática sexual. Desta forma, o erotismo místico, com o Tantra, e mais
especificamente com o maithuna, transforma a mulher em objeto de adoração, visto
que, por meio dela, um precioso instrumento de salvação se torna posível: o sexo-yoga.

151
Na página 2014 explicamos, sumariamente, na nota de roda pé, no que consiste a tradição do terma.
217

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No âmbito das Ciências das Religiões temos testemunhado um aumento


gradativo de publicações, núcleos e grupos de pesquisas ligados diretamente ao estudo
do pensamento Oriental. Desde o século passado, sobretudo na década de 60, com a
criação do Curso de Bacharelado em Sânscrito na Universidade Estadual de São Paulo
(USP), a área vem ganhando espaço e se consolidando no cenário acadêmico nacional.
Os programas de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFJF e da UFPB são
alguns exemplos destacados, de importantes universidades brasileiras que abraçaram os
estudos vinculados às tradições religiosas do oriente.

Pretendemos, com esta pesquisa, estimular o diálogo inter-religioso e científico,


contribuindo para a formação, compreensão e respeito à pluralidade de manifestações
religiosas. De fato, torna-se assaz desafiador analisar o sexo enquanto via de salvação,
instrumento, por excelência, do desenvolvimento interior. Nesse sentido, acreditamos
que as hipóteses formuladas ao longo dos quatro capítulos possuem uma dose de
ineditismo e inovação, visto que, após um extenso período de estudos que agora se
encerram, percebemos uma profunda carência de pesquisas científicas que vinculem o
sexo à soteriologia budista; esta é uma discussão escassamente explorada pelos
programas brasileiros de Pós-Graduação em Ciências das Religiões, o que torna a nossa
tarefa ainda mais estimulante.

Nossa pesquisa possui, essencialmente, três hipóteses, as quais foram


formuladas e desenvolvidas no decorrer do texto. A primeira delas152 defende a
premissa de que o sexo-yoga constitui-se como um método de ascese espiritual que
possibilita a salvação interior, a libertação do sofirmento; a segunda hipótese153 baseia-
se na rigorosa constatação de que o potencial espiritual contido na energia sexual
(sêmen masculino e líbido feminina) é o fator que determina a própria iluminação de um
indivíduo. A terceira hipótese154 resulta no entendimento de que as escolas tântricas da

152
A primeira hipótese encontra-se desenvolvida no segundo capítulo.
153
A segunda hipótese encontra-se desenvolvida no segundo capítulo e também no terceiro capítulo.
154
A terceira hipótese encontra-se desenvolvida no terceiro capítulo.
218

mão esquerda (defensores do sexo-yoga) são mais completas do que as escolas da mão
direita (detratores do sexo-yoga).

Com relação aos tântricos da mão esquerda, ao incluírem o rito sagrado do


maithuna em sua ortodoxia, possibilitaram aos chefes de família o acesso, in loco, aos
mistérios relacionados à retenção e conseqüente transmutação das energias sexuais,
práticas estas que estavam apenas dirigidas aos adeptos avançados. Com isso,
acreditamos que as escolas da mão esquerda se tornaram uma opção valiosa para muitos
estudantes sinceros, que não possuindo inclinação à vida celibatária, a qual seria
sugerida pelos tântricos da direita, poderiam, contudo, se desenvolver em seus lares
utilizando o sexo-yoga, método defendido pelos tântricos da mão esquerda.

De fato, com o Tantra, abrem-se novas possibilidades. A vida familiar e,


sobretudo, a sexualidade são ressignificados, o último nível de realização interior não
estaria limitado unicamente aos monges, o caminho espiritual pode ser realizado em
qualquer ambiente, tudo depende do sadhāna, da disciplina esotérica do buscador,
incluindo aqui, obviamente, como fator determinante, a transmutação sexual (esta
podendo ser feita por celibatários ou homens casados).

Considerar o sexo-yoga simplesmente como “mais uma prática budista”, não nos
parece adequado tendo em vista o poder regenerador contido em nossas gônodas
sexuais. Desta forma, consideramos mais prudente realocar o maithuna em uma
categoria de excelência quando comparada com outras práticas do panteão budista,
evitando o amargo desprezo deste tema por parte de muitos pesquisadores, tal como já
foi mencionado na introdução deste trabalho.

Se hodiernamente as práticas sexuais são negadas por certos lamas e monges do


budismo tântrico, talvez a hipótese mais plausível para esse fenômeno seja unicamente
o caráter esotérico destas práticas, de modo que para recebê-las de um mestre
qualificado, exige-se uma aguda disciplina, bem como uma pré-disposição kármica para
seguir por essa via, sem tais requisitos o rito sagrado do maithuna não pode ser
entregue. Vale recordar ainda que, como foi apresentado no primeiro capítulo, é
somente na quarta classe do Tantra que os métodos sexuais são utilizados. Com base
nisso, podemos também concluir que muitos simpatizantes e até mesmo monges
budistas que refutam a existência do sexo-yoga no budismo tântrico, assim o fazem por
219

não possuirem as iniciações necessárias correspondentes à quarta classe do Tantra,


razão pela qual se tornam naturalmente privados desse conhecimento.

Não temos interesse em modismos sádicos, ensinamentos rasos que se utilizam


do Tantra, tendo por prerrogativa uma suposta “libertação dos impulsos sexuais”. Ora, a
permissividade sensual do Tantra é um estágio, um degrau necessário, o qual se tornou
o eixo central de muitos grupos que se autointitulam “tântricos”, dando a falsa
impressão de que possuem a essência do tantrismo; na verdade, tais grupos, muito em
voga hoje no ocidente, trocaram o centro pela periferia, contentaram-se com as migalhas
do Tantra, não percebendo que os estímulos sensórios, se não forem perseguidos de
perto pela disciplina mental e pela nobre aspiração à superação dos próprios vícios, não
poderá conduzir-nos à “outra margem”, ao êxtase místico, luminosa região dos budas
ditosos.

Acreditamos que a explosão dos “centros tântricos” cravados, muitas vezes, no


epicentro comercial das grandes cidades, vendendo cursos sexuais, massagens, técnicas
meditativas etc. tudo isso carregado pelo atrativo rótulo “tântrico”, é o resultado
inequívoco de um fenômeno social necessário. As próximas décadas poderão
testemunhar uma aguda reconfiguração do papel da sexualidade no âmbito das religiões.
É o balbuciar de uma “nova onda”, talvez mais intensa do que a anterior 155, a qual se
aproxima com a precisão e a maturidade que talvez tenha faltado aos entusistas “new
age” do século passado.

No ocidente o Tantra já se tornou público, falta agora realinhá-lo com os


ensinamentos das distintas tradições do oriente (budismo, hinduísmo, taoísmo etc.).
Para tanto, torna-se imprescindível recebê-los de uma linhagem fidedigna. No caso do
budismo, poderíamos citar as quatro escolas tântricas do Tibete, as quais se encontram
em solo brasileiro. Sem dúvida, estas linhagens são ótimas opções para estudantes que
buscam o aprofundamento da mensagem tântrica.

A suprema iluminação é a herança prometida pelo Tantra para aqueles que se


utilizam das suas práticas. Compreender o maithuna como uma necessidade interior é
urgente para transcender as baixas paixões e finalmente alcançar a salvação espiritual,

155
Referimo-nos aqui a onda “New Age”, muito popular na década de 70. Além de um agudo sincretismo
religioso, o movimento também pregava a liberdade sexual.
220

que em outras palavras, contitui-se na própria libertação da roda do samsāra. Esta, por
sua vez, depende não apenas da transmutação sexual, mas também da experiência
meditativa do vazio iluminador.

A imersão na vacuidade possibilita-nos experimentar, não com conceitos ou


formulações abstratas, senão com a própria consciência, o êxtase místico, região
inefável onde estão contidas as joias espirituais do Tantra. O estado de não-pensamento
é a pista segura para a compreensão uníssona da doutrina budista. O sexo-yoga quando
praticado nesse estado de consciência, aproxima-se do grande ideal, das chaves místicas
ensinadas pelos mestres do passado. A mente treinada na arte da meditação, segundo o
tantrismo, é a única capaz de compreender profundamente os mistérios relacionados ao
sexo-yoga.

Esperamos, com estas páginas, ingressar em um novo ciclo de estudos e


reflexões acerca da dinâmica sexual e a sua intrísenca relação com o desenvolvimento
espiritual do gênero humano. Responsabilidade, senso crítico, fidelidade aos textos
ortodoxos, todos esses componentes foram reunidos em nosso trabalho na tentativa de
realizar um estudo dirigido e compreensível a todos que quiserem aprofundar o
conhecimento sobre o Tantra. Estamos abertos ao diálogo e a construção sistemática de
novos pontos de vista, bem como de críticas construtivas que certamente enriquecerão o
debate budista ao longo dos próximos anos.
221

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230

GLOSÁRIO DE TERMOS SÂNSCRITOS E TIBETANOS

A fim de facilitar a consulta aos principais termos sânscritos e tibetanos que


aparecem neste trabalho, apresentamos uma lista de verbetes que segue a ordem
alfabética romana.

Abhiṣeka (Sânscrito): Consagração. Relaciona-se com os ritos purificatórios do tantra.

Ādibuda (Sânscrito): Divindade budista. Manifestação do Buda primordial.

Avaduthī (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.

Bhaga (Sânscrito): Matriz.

Bindu (Sânscrito): Literalmente, significa “ponto” ou “gota”. No contexto da alquimia


tântrica representa o semên masculino.

Bodhicita (Sânscrito): No contexto tântrico, representa a energia sexual.

Bön (Tibetano): Antiga tradição religiosa do Tibete.

Cakra (Sanscrito): Centros magnéticos localizados no corpo sutil do ser humano.

Cakraśaṁvara-tantra (Sânscrito): Texto tântrico budista. Escrito provavelmente no


século VIII d.C.

ḍākinī (Sânscrito): “Aquela que voa através do céu”. São divindades femininas do
budismo tântrico.

Demchog (Tibetano): Grande prazer.

Dhāranā (Sânscrito): Concentração.

Dharma (Sânscrito): Doutrina do Buda. Também significa a realidade dos fenômenos.

Dharma-cakra (Sânscrito): Cakra localizado na região do coração.

Dohākośa (Sânscrito): Poesia escrita em sânscrito e outras línguas antigas da Índia.


Estão inseridos na segunda parte do cânon tibetano, mais especificamente no Tanjur.

Gelug (Tibetano): Escola do budismo tibetano vajrayāna fundada por Tsongkhapa


(1357-1419).
231

Guhyasamāja Tantra (Sânscrito): Um dos principais textos tântricos do budismo. A


Guhyasamāja Tantra surgiu na Índia entre os séculos IV e X d.C.

Hevajra-tantra (Sânscrito): Importante escritura tântrica do budismo. Provavelmente,


foi composto no século VIII d.C.

Iḍā (Sânscrito): Termo utilizado no tantra hindu. Ver Lalanā.

Jīvanmukta (Sânscrito): Refere-se ao homem iluminado que se libertou das limitações


do mundo material.

Kagyü (Tibetano): Escola do budismo tibetano vajrayāna fundada pelo monge


Gampopa (1079-1153).

Kālacakra-tantra (Sânscrito): Importante texto tântrico budista. O Kālacakra-tantra


apareceu na Índia no início do século XI e logo em seguida, no Tibete.

Kālī (Sânscrito): Divindade feminina do hinduísmo.

Kali-Yuga (Sânscrito): A era das desavenças. Segundo a tradição védica, Kali-Yuga


iniciou-se há cinco mil anos e pemanecerá por mais um longo período.

Karma (Sânscrito): Significa literalmente ação. Refere-se ainda à lei de causa e efeito.

Karmamudrā (Sânscrito): Ritual tântrico que inclui a prática sexual.

Karuṇā (Sânscrito): Compaixão.

Kuṇḍalinī (Sânscrito): Energia primordial que habita o corpo humano. No contexto


tântrico, também está associada à força sexual.

Lalanā (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.

Liṅga (Sânscrito): Membro viril.

Mahāsukha (Sânscrito): Grande êxtase.

Mahāsiddha (Sânscrito): Mestre de perfeição.

Mahāmudrā (Sânscrito): Literalmente, “Grande selo”. Técnica de meditação cujo


objetivo é a realização direta da vacuidade.

Maithuna (Sânscrito): relação sexual.


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Maṇḍala (Sânscrito): Diagramas sagrados.

Maṇipura (Sânscrito): Um dos termos utilizados para se referir ao cakra da região


umbilical.

Mantra (Sânscrito): Som sagrado.

Māyā (Sânscrito): Ilusão.

Mokṣa (Sânscrito): Libertação.

Mudrā (Sânscrito): Gestos sagrados.

Nāḍīs (Sanscrito): Canais metafísicos que servem como condutores das forças sutis que
habitam o corpo humano.

Nāyikā (Sânscrito): Mulher devota.

Nirvāṇa (Sânscrito): Significa literalmente “extinção”. Representa a libertação última e


definitiva de todo sofrimento/miséria/infelicidade/desventura.

Nirmaṇā-cakra (Sânscrito): Cakra localizado na região do umbigo.

Nyingma (Tibetano): A mais antiga das quatro escolas do budismo tibetano vajrayāna.

Padma (Sânscrito): Lótus.

Paramānanda (Sânscrito): Suprema alegria.

Parāmārthika (Sânscrito): Aspecto incorpóreo do sêmen.

Piṅgalā (Sânscrito): Termo utilizado no tantra hindu. Ver Rasanā.

Prajñāpāramitā (Sânscrito): Perfeição da sabedoria. Designa também um conjunto de


textos atribuídos à tradição Mahāyāna.

Prakṛti (Sânscrito): Natureza.

Prāṇa (Sânscrito): Energia vital. Existe tanto no macrocosmo quanto no microcosmo.

Prāṇāyāma (Sânscrito): Prática yóguica que envolve o controle do ritmo respiratório.

Prathamānanda (Sânscrito): Alegria inicial.

Pūjā (Sânscrito): Cerimônia religiosa.


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Rāga (Sânscrito): No contexto tântrico, significa êxtase.

Rasa (Sânscrito): No contexto tântrico, significa sumo, fluído essencial, mercúrio.

Rasanā (Sânscrito): Canal sutil por onde circulam as energias vitais do corpo.

Rasāyana (Sânscrito): Veículo do mercúrio. O termo alquimia, na língua sânscrita,


equivale à palavra rasāyāna. As práticas alquímicas desta escola estavam disseminadas
por muitas tradições esotéricas da Índia medieval, grande parte delas atreladas,
principalmente, ao tantrismo hindu e budista.

Sādhana (Sânscrito): Prática espiritual.

Sahajānanda (Sânscrito): Alegria interior.

Sahajiyā (Sânscrito): Escola tântrica considerada como um ramo da tradição Vajrayāna.

Śakti (Sânscrito): Embora mais comum no tantra hindu, representa, em sentido


ontológico, a própria energia feminina, no tantra budista ela é comparada a Prajñā.

Sakya (Tibetano): Escola do budismo tibetano vajrayāna.

Samaya (Sânscrito): Compromisso ou voto.

Sambhoga-cakra (Sânscrito): Cakra localizado na região da garganta.

Saṁsāra (Sanscrito): Trata-se do processo contínuo de nascimento, envelhecimento,


sofrimento e morte. Também conhecido como “roda do renascimento”.

Siddhas (Sânscrito): Aquele que é realizado ou perfeito

Śukra (Sânscrito): No contexto tântrico, significa sêmen.

Śūnya (Sânscrito): Vazio.

Śūnyatā (Sânscrito): Vacuidade.

Suṣumṇā (Sânscrito): Termo utilizado no tantra hindu. Ver Avadhūtī.

Tantra (Sânscrito): Conjunto de teorias, textos, técnicas e rituais desenvolvidos na


Índia Antiga que mais tarde se espalharam para outras partes da Ásia.

Tārā (Sânscrito): Significa libertadora. Divindade feminina que é a manifestação da


sabedoria última de todos os Budas.
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Tathāgata (Sânscrito): Um dos dez títulos utilizados pelo Buda para se referir a si
mesmo ou a outros budas.

Thigle (tibetano): Literalmente significa gota ou ponto. No contexto tântrico representa


a energia sexual, o semên masculino e também a libido feminina.

Tummo (Tibetano): prática yóguica que desperta o calor corporal.

Upāya (Sânscrito): Meios.

Uṣṇīṣa (Sânscrito): Cakra localizado na região da cabeça.

Vajra (Sânscrito): Diamante. Como um adjetivo, significa indestrutível, invencível.

Vajradhara (Sânscrito): Divindade que personifica o Buda primordial.

Vajrasattva (Sânscrito): Divindade budista associada à purificação.

Vajrayāna (Sânscrito): Literalemente, “veículo do diamante”. Linhagem budista


atrelada aos ensinamentos tântricos.

Viramānanda (Sânscrito): Alegria especial.

Vijñāna (Sânscrito): Conhecimento, sabedoria.

Yoga (Sânscrito): União. Termo utilizado para várias práticas espirituais do tantrismo.

Yogī ou Yogīn (Sânscrito): Aquele que pratica yoga.

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