BNCC e o Ensino de História Critica
BNCC e o Ensino de História Critica
BNCC e o Ensino de História Critica
A HISTORY FOR CONFORMITY AND PATRIOTIC EXALTATION: a criticism of the proposed BNCC /History
G I L BERTO CA L IL
Doutor em História Social (UFF) e pós-doutorado em História (Universidade do Porto)
Professor do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná
gilb ertocal i l @uol .com.br
RESUMO: ESTE ARTIGO DISCUTE CRITICAMENTE A PROPOSTA DE BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) PROPOSTA PARA A ÁREA DE HISTÓRIA.
ARGUMENTA QUE SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO FOI POUCO DEMOCRÁTICO E QUE A PROPOSTA APRESENTADA É INSATISFATÓRIA. CRITICA EM
ESPECIAL SUA PERSPECTIVA PATRIÓTICA, A FRAGMENTAÇÃO DA ABORDAGEM, A EXCLUSÃO DOS CONCEITOS E PROCESSOS FUNDAMENTAIS PARA
A COMPREENSÃO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E A CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS SUBORDINADA AO CONSUMO.
PALAVRAS-CHAVE: ENSINO DE HISTÓRIA; POLÍTICAS EDUCACIONAIS; EDUCAÇÃO.
ABSTRACT: THIS ARTICLE CRITICALLY DISCUSSES THE PROPOSED COMMON NATIONAL BASE CURRICULUM (BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR,
BNCC) PROPOSAL FOR THE HISTORY AREA. ARGUES THAT ITS CONSTRUCTION PROCESS WAS UNDEMOCRATIC AND THAT THE PROPOSAL SUBMITTED IS
UNSATISFACTORY. CRITICIZES ESPECIALLY ITS PATRIOTIC PERSPECTIVE, THE FRAGMENTATION OF APPROACH, THE EXCLUSION OF THE FUNDAMENTAL
CONCEPTS AND PROCESSES FOR UNDERSTANDING THE CONTEMPORARY WORLD AND THE CONCEPTION OF HUMAN RIGHTS SUBORDINATE TO THE
CONSUMPTION.
KEYWORDS: HISTORY TEACHING; EDUCATIONAL POLICIES; EDUCATION.
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A cada série, os conteúdos estão distribu- tização” destes símbolos muito diversa daquela (in)
ídos, ainda, em quatro eixos: “procedimentos de existente nas famigeradas aulas de Moral e Cívica.
pesquisa”; “representações do tempo”; “catego- Muitos conceitos e designações já
rias, noções e conceitos”; “dimensões político-ci- superados pela historiografia são reproduzidos sem
dadãs”. De acordo com os autores, “trata-se de qualquer problematização. É o caso dos “ciclos”
uma tipologia para explicitar a operação predo- da cana de açúcar, do ouro e da mineração e do
minante, mas não a única, em cada objetivo de café (CHHI7FOA085) e, pior, da naturalização do
aprendizagem” (p. 245). Não há justificativa para a termo “conquista” para designar a submissão dos
definição destes eixos e é realmente difícil compre- povos ameríndios pelos europeus, presente em
ender o que os autores imaginaram ao propor um inúmeros componentes (081, 086, 099, 100, 101,
eixo como “representações do tempo” para uma 106) reproduzindo uma perspectiva eurocêntrica.
área que tem o tempo (e não suas “representa- Em diversos casos, há indicação arbitrária
ções”) como elemento constitutivo. A distribuição e injustificada dos aspectos a serem considerados
dos conteúdos entre os eixos parece muitas vezes no estudo de determinado processo. A julgar pela
aleatória, sem elementos que permitam compre- prescrição do documento, o Golpe de 1964 deve
ender a conexão entre conteúdo e eixo. ser conhecido e compreendido “como resultado
das tensões sociais gestadas desde o processo
UMA HISTÓRIA PATRIÓTICA de Redemocratização, por meio do estudo das
condições sociais no campo, das propostas de
Não é apenas a história europeia e asiática reformulação da educação e dos movimentos
trabalhada na 3ª série do Ensino Médio que é subor- culturais urbanos” (CHHI9FOA137). A injustificada
dinada aos “nexos” e “vínculos” com a história prioridade a estes três aspectos em detrimento
brasileira: este é o procedimento constante que de inúmeros outros fundamentais (agravamento
perpassa o conjunto dos componentes propostos. da crise econômica, politização crescente do
E os problemas não se restringem à “ênfase em movimento operário, participação de empresários
História do Brasil” explicitamente defendida no e militares na conspiração golpista; interferência do
documento, com a consequente redução do tempo Estados Unidos, etc) determina a impossibilidade
destinado à abordagem dos processos históricos de uma compreensão de conjunto que leve em
extranacionais, mas abarcam também a pers- conta a articulação dos fatores políticos, econô-
pectiva com que a história nacional é abordada micos e sociais que desencadearam o golpe – algo
e a subordinação da história extranacional a seus inteiramente factível para a faixa etária do 9º ano
nexos e vínculos com o Brasil. (13/14 anos).
Uma das maiores contradições para uma Os conflitos sociais são apagados e há
proposta que se pretende atenta às diversidades é uma definição idealizada de sociedade civil que
o viés patriótico, nacionalista e brasilcentrista com fundamenta a concepção liberal de cidadania que
que são enunciados os mais diversos conteúdos atravessa o documento. Ao propor o estudo da
de História do Brasil, das séries iniciais ao Ensino “Abertura política” “como resultado de demandas
Médio. O HHI5FOA054 (5ª série) propõe expressar da sociedade civil organizada” (CHHI9FOA137),
“o que é ser brasileiro”, deixando evidente o pressu- o documento ignora e omite a existência de um
posto unificador e reducionista da existência de um projeto de “distensão política” gestado no interior
“tipo brasileiro”; o HHI5FOA059 (5ª série) propõe da ditadura e colocado em prática desde meados
“problematizar os significados e os sentidos dos dos anos 1970, que condicionou fortemente os
símbolos nacionais – hino, bandeira, brasão, selo”. rumos do processo. O componente CHHI9FOA139
É difícil imaginar que crianças de 9 a 10 anos, no apresenta uma conceituação de sociedade civil
contexto de um currículo centrado na história restrita aos movimentos populares, mencionando
nacional, tenham condições para uma “problema- explicitamente os movimentos negro, indígena,
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de mulheres e pela ampliação dos direitos das do Atlântico ou via do Pacífico” (CHHI6FOA070).
crianças e adolescentes. Deixa-se de considerar A História Africana só é estudada a partir do
como parte da sociedade civil, portanto, todas as século XVI, como se sua relevância fosse decor-
organizações constituídas pela classe dominantes, rência do tráfico de escravos (CHHI8FOA070). A
entidades empresariais e lobbies constituídos pelas Revolução Francesa – processo cuja importância
grandes empresas, o que apenas reforça o sentido para a conformação do mundo contemporâneo é
apassivador e idealizado da compreensão proposta. indiscutível – é estudada apenas com o objetivo
de identificar “os nexos entre os processos de
O “RESTO DO MUNDO” SÓ EXISTE PARA QUE O Independência [na América] e as transformações
BRASIL EXISTA... ocorridas na Europa” (CHHI8FOA111) e para reco-
nhecer “as incorporações do pensamento liberal
A abordagem dos diversos processos no Brasil” (CHHI8FOA114). A busca por “nexos”
desenvolvidos nos continentes europeu, africano, ocorre também quando se propõe “reconhecer
asiático e mesmo no restante da América Latina nexos entre o processo de reordenamento da
é desorganizada pelo princípio geral que compre- mão de obra no Império e as transformações
ende “a História do Brasil como o alicerce a partir ocorridas na economia internacional, por meio do
do qual tais conhecimentos serão construídos ao estudo do fim do comércio atlântico de escravos”
longo da educação básica” (p. 242). Os processos (CHHI8FOA116).
fundamentais constituidores do mundo moderno Ao invés de indagar o passado com base
e contemporâneo são estudados não para que se nas questões do presente – o que seria um proce-
compreenda sua historicidade própria, mas apenas dimento historiográfico mais adequado -, o que
sob o viés dos “nexos” e “vínculos” com a história se propõe é pensar o estrangeiro com base na
brasileira. Já os processos relacionados à pré-his- experiência nacional (naturalizada e tomada acriti-
tória, ao mundo antigo e ao medievo, são quase camente), produzindo-se nexos forçados e empo-
inteiramente esquecidos, pois não oferecem tantas brecedores e uma leitura anacrônica de processos
possibilidades de estabelecimento de “nexos” e passados interpretados em função de uma expe-
“vínculos”. riência particular e de um presente naturalizado.
Partir da história nacional para compreender
processos relativos a realidades mais distantes A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO
é procedimento didático compreensível para as
séries do primeiro ciclo (1ª a 5ª série), permitindo A mais surpreendente proeza da proposta é
a progressiva familiarização das crianças com que em seus 200 componentes não há uma única
processos desconhecidos. Torna-se, no entanto referência ao sistema social e econômico vigente
contraproducente e redutor a partir da 6ª série, e nos últimos três séculos, como também à classe
mais ainda no Ensino Médio, implicando na renúncia social que nele é dominante. Os termos capitalismo,
em compreender outras culturas e processos, capital e burguesia estão inteiramente ausente da
subordinando sua compreensão à ênfase naquilo proposta, abolindo do estudo de História conceitos
que mais se aproximar com a história brasileira. imprescindíveis para a compreensão do mundo
São inúmeros os exemplos das distor- contemporâneo5. A Revolução Industrial, processo
ções produzidas. A única referência à história decisivo para a conformação da realidade social
humana anterior à escrita nos 200 componentes tal como existe atualmente, é também inteiramente
(CHHI6FOA069), que poderia ser desbodrada em excluída dos componentes de História, sendo
diversas temáticas e para além da 6ª série, é arti- mencionada apenas nos conteúdos de Física!
culada ao debate claramente menos abrangente (p. 205, 210, 213 e 215). Sem capitalismo, sem
“sobre as prováveis rotas do ser humano para burguesia e sem Revolução Industrial, é difícil
a América, tais como via Estreito de Bering, via imaginar o mundo em que vivem os elaboradores
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e “cultura” produz anacronismos flagrantes. Um a fundação do PCB? Para afirmar que a noção
exemplo são os componentes 100 e 101, que de Brasil e de brasileiros é produto da atuação de
propõem estudar o “contexto político”, respecti- setores médios e do Estado?
vamente, “da África subsaariana às vésperas da A desestruturação da linha temporal na
conquista” e “dos povos indígenas habitantes do distribuição dos conteúdos acentua a fragmen-
território brasileiro ao tempo da Conquista”, sem tação, pois dificulta o encadeamento histórico dos
cogitar que a noção contemporânea de “contexto processos, muitas vezes prevendo o estudo de
político” é anacrônica e imprópria para a compre- processos cujos antecedentes serão estudados
ensão da organização social - simultaneamente apenas em anos posteriores. Já para o início do 2º
política, econômica e cultural - dos reinos africanos ciclo (6º ano) propõe o estudo dos “processos de
e comunidades indígenas. colonização ocorridos nas Américas, com ênfase
Os exemplos de escolha arbitrária e injusti- na colonização portuguesa” (CHHI6FOA065). Isto
ficada são inúmeros. A nota CHHI2MOA027 propõe será feito sem qualquer noção anterior relativa ao
a análise dos processos de independência das mundo moderno, ao mercantilismo e às condições
Américas “tais como a Independência dos Estados gerais que tornaram possível o processo de coloni-
Unidos, Haiti e do Paraguai”. Por que esta escolha, zação! Apenas no 8º ano será proposta a compre-
em detrimento da Argentina e México, por exemplo, ensão do contexto econômico de Portugal, e ainda
que são processos de impacto continental? O assim sem qualquer referência mais ampla.
que é referido como “exemplo” não será tomado
como percurso único pela editoras e produtores A DEMOCRACIA DO CAPITALISMO E A CIDADANIA
de materiais didáticos? DO CONSUMIDOR
Algumas escolhas parecem totalmente arbi-
trárias e injustificadas, como a opção por discutir A perspectiva política e ideológica confor-
o impacto do 13 de maio para a população negra mista e conservadora fica bastante explícita nas
e o movimento negro (CHHI7FOA089), omitindo concepções que fundamentam o eixo “Dimensão
qualquer referência ao 20 de novembro, data que Político-Cidadã”, que naturaliza a concepção
igualmente tem grande impacto e ressalta os liberal de democracia, com a opção por conceitos
aspectos de conflito e resistência; ou a escolha/ frágeis e apassivadores como “exclusão social”
indicação das colônias de São Vicente, Salvador, (CHHI7FOA094), em detrimento de outros de maior
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e alcance explicativo como “exploração”. Difunde-se
Maranhão, como aquelas nas quais devem ser assim uma concepção prescritiva, moralizante
estudadas as relações mantidas pelos colonos com e a-histórica de cidadania. O componente 134
os povos africanos e indígenas (CHHI8FOA102). menciona expressamente os “direitos e deveres
Aqui não há como não pensar nos testes padro- trabalhistas e dos movimentos sociais de trabalha-
nizados e deixar de ver os “exemplos” como dores rurais e urbanos”, enquanto o 142 menciona
indicação de conteúdos que deles constarão. a “luta pela ampliação dos direitos e deveres ao
O componente CHHI9FOA136 propõe longo do século XX” (grifos meus).
compreender a “conformação de uma noção No quarto ano do Ensino Fundamental, antes
de Brasil e de brasileiros, emergida da atuação mesmo de seres apresentadas à qualquer noção
política de setores médios urbanos e das políticas sobre direitos sociais, as crianças aprenderão que
culturais do Estado Novo, por meio do estudo do “as relações de consumo são regulamentadas pela
Modernismo (Semana da Arte Moderna), Teatro legislação, por meio de estudo de documentos
Experimental do Negro e da política de estado para como o Código de Defesa do Consumidor, identifi-
a cultura”. Por que a eleição destes processos cando mudanças e permanências nessas relações
em detrimento de outros tão relevantes como a ao longo do tempo” (CHHI4FOA044). Como em
emergência e atuação do movimento operário e momento algum serão apresentadas à história e ao
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