Carta Aos Jovens Sobre A Utilid - Sao Basilio

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O Inferno

Monsenhor de Ségur

Santo Elias - o Doutor de Israel


Rafael Vitola Brodbeck

Autobiografia
São Gregório de Nazianzo

Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã


São Basílio

Próximos Lançamentos:

O Pedagogo
Clemente de Alexandria
SÃO BASÍLIO

Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã


Seguida das homilias: Sobre o desapego
das coisas mundanas e Sobre a humildade.

Tradução e notas complementares de Diogo Chiuso


Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã – São Basílio
1ª edição - agosto de 2012 - CEDET

A fonte desta tradução são as obras completas de São Basílio, organizadas e traduzidas do grego por Monsenhor
Joseph Planche, professor de retórica no colégio Royal de Bourbon: Esprit de Saint Basile, de Saint Grégoire de
Nazianze et de Saint Chrysostome, publicado pela Librairie de Gide Fils, Paris, 1824.

Gestão Editorial: Silvio Grimaldo de Camargo


Edição e Tradução: Diogo Chiuso
Assistente editorial e revisão: Lucas Cardoso da Silveira Santos
Capa, projeto gráfico e diagramação: Diogo Chiuso
Desenvolvimento de eBook: Loope Editora | loope.com.br

FICHA CATALOGRÁFICA
Basílio de Cesaréia
Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã / São Basílio; Tradução de Diogo Chiuso - Campinas, SP :
Ecclesiae, 2012.

Título Original: Discours aux jeunes gens sur l’utilité qu’ils peuvent retirer de la lecture des livres païens
ISBN 978-85-63160-22-5

1. Cristianismo 2. Catolicismo 3. Santos 4. Padres da Igreja


5. Basílio de Cesaréia
I. São Basílio II. Título.
CDD – 189.2

Índice para Catálogo Sistemático


1. Padres da Igreja – 189.2
3. Catolicismo – 282

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Angelo Vicentin, 70
CEP: 13084-060 - Campinas - SP
Telefone: 19-3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio
ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
ÍNDICE

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Apresentação da edição brasileira | Por Diogo Chiuso
Laudatório
Notícia histórica sobre São Basílio | Monsenhor Joseph Planche
Prefácio | Audiência Geral do Papa Bento XVI sobre São Basílio (primeira parte)
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Homilia sobre o desapego das coisas mundanas
Homilia sobre a humildade
Pósfacio | Audiência Geral do Papa Bento XVI sobre São Basílio (segunda parte)
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Foram anexadas a esta edição duas homilias de São Basílio: Sobre o desapego
das coisas mundanas e Sobre a humildade. Ambas complementam o texto principal
no momento em que dão uma idéia mais detalhada da perspectiva a partir da qual o
nosso santo se dirigiu aos jovens da sua época.
Foi comum na Igreja Antiga, sobretudo entre os Padres Capadócios, usar os
recursos da literatura grega para pregar e defender a doutrina católica. Orígenes e
Clemente de Alexandria já haviam absorvido a tradição filosófica para demonstrar
os pontos de vista da Revelação Cristã. Era uma época em que o processo
interpretativo já não se fazia suficiente, em função das inúmeras questões
levantadas sobre os significados das narrativas bíblicas. Assim nasceu a filosofia
cristã, profundamente ligada a ensinamentos que visavam orientar os homens na
busca da verdade, combinando a demonstração fundada na Revelação Divina com a
argumentação racional acerca dela. Para tanto, usou-se, além dos métodos
filosóficos, a oratória e também os gêneros literários da tradição grega.
Mas a principal crítica quanto ao uso da literatura pagã na educação dos
jovens não era outra senão os ecos das interdições referentes aos livros que traziam
exemplos de imoralidades e que incentivavam o vício e a concupiscência – além do
perigo da entrega ao culto de alguns dos inúmeros deuses da mitologia grega.
Portanto, embora São Basílio tenha discursado considerando o valor dos
clássicos da literatura pagã, não menosprezava a importância de um certo cuidado
no emprego desses textos na educação literária dos jovens. Antes de tudo é preciso
reconhecer o que convém ou não descartar, e as regras para essa separação
assentam-se em dois princípios: o primeiro versa sobre a plena consciência da
imortalidade da alma. Isto implica que essa vida terrestre é passageira, um
preâmbulo, por assim dizer, daquela eterna que é a nossa condição natural. Mas
precisamos considerar que toda e qualquer vida necessita de aperfeiçoamento, e isto
se dá conforme vai se aproximando ao fim último, que para o Cristianismo é a visão
beatífica, ou seja, contemplar Deus na sua infinita bondade.
Na teologia, esse caminho virtuoso que leva a Deus é chamado ascética, e a sua
função é conduzir as almas à perfeição cristã, orientando as ações dos homens para
a prática da virtude sob a direção dos mandamentos e o impulso da graça.1 Desse
modo, o mais importante é perseverar no caminho da santidade, evitando, a todo
custo, entrar na vida eterna indo diretamente para um lugar infame e sombrio,
«onde o verme não morre e o fogo não se extingue» [Mt 9,48]. Decerto, um
assunto vastíssimo, abordado brevemente por São Basílio na homilia Sobre o
desapego das coisas mundanas – e que ajudará o leitor a melhor compreender o texto
principal.
O segundo princípio é uma característica própria da pedagogia católica:
preparar o homem para a vida eterna através do olhar voltado às coisas do alto,
deixá-lo se inspirar por exemplos virtuosos que exaltam a glória divina. Mas é
preciso levar sempre em conta o que nos ensina Santo Agostinho: «a verdadeira
virtude consiste em fazer uso dos bens e dos males e referir tudo ao fim último».2
Sendo o seu fim último a visão beatífica, o homem traz em si, pela graça de Deus,
uma inclinação natural ao bem. No entanto, é preciso considerá-lo na sua forma
integral, com todos os pecados que o fazem desviar do caminho. Desse modo,
nossas virtudes devem ser exercidas, ao passo que devemos nos pôr em guarda para
refrear os desejos pecaminosos.
E, com esse espírito humilde, saberemos julgar que nem tudo nos é possível.
Que somente através da graça podemos aspirar alguma ascensão. Lembremos que
por falta de modéstia alguém que um dia pretendeu chegar ao lugar mais alto
despencou e no inferno foi precipitado. Assim, a virtude pressupõe a humildade,
para que saibamos medir nossas próprias estaturas morais e intelectuais; para que
saibamos reconhecer a Verdade que a nós se apresenta. Somente dessa forma
podemos subir alguns degraus do conhecimento sem que nos seja inspirado o
orgulho, afinal não é dado a ninguém conhecer todas as coisas. E uma postura
soberba leva-nos diretamente à desonra, tal como nos alerta São Paulo: «jactando-
se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos» [Rm1,2]. Eis o motivo da homilia de
São Basílio sobre a humildade vigorar no segundo apêndice desta edição.
Em suma, a presente obra não pretende apenas ensinar o que podemos tirar de
útil das obras pagãs, mas também – e especialmente – indicar o caminho que leva a
uma vida virtuosa. São Basílio, então, nos convida a «fazer provisões para essa
grande viagem, sem nada negligenciar daquilo que nos ajudará a chegar a nossa
verdadeira pátria».3

DIOGO CHIUSO
Santos, São Paulo, abril de 2012.

1Cf.Tanquerey, A.D.: Compêndio de Teologia Ascética e Mística, Apostolado da Imprensa, 1948,


Portugal – pp. 2,3 e 4.
2Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XIX, 10.

*Para este trabalho, as citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, Paulus, 3ª
reimpressão, 2004 – publicada com aprovação eclesiástica.
LAUDATÓRIO

Excerto de um calendário grego, impresso na


Biblioteca grega de Fabricius
T. XIII, p. 536, 1.6, c 10

Basílio o Grande floresceu sob o imperador Valêncio, quando resistiu


corajosamente para defender a pureza da fé contra a heresia de Ário, que o
imperador havia abraçado, e que assolava a Igreja com a violência de um fogo
devorador. Seu pai era da cidade da Ponte; sua mãe, da Capadócia. Na arte de bem
falar, superou não somente seus contemporâneos, mas os próprios antigos. Estudou
todos os gêneros do conhecimento, destacando-se em todos. Não se distinguiu
menos na prática da filosofia, e, tendo chegado até ele a contemplação das coisas
divinas, foi elevado à sede arquiepiscopal (de Cesaréia na Capadócia, no ano 370).
Lá, após muitos combates em defesa da fé, desconcertando o governador da
província com sua perseverança e coragem, publicou obras pelas quais fulminou as
impiedades heréticas, desenvolveu os princípios morais e fez conhecer claramente
os dogmas da fé. São Basílio ainda guiou com muita sabedoria o rebanho de Jesus
Cristo, antes de deixar a terra para se reunir a Deus.
Quanto ao físico, era magro e seco, corpo reto, pele fina e escura, com o rosto
ligeiramente pálido, sobrancelhas arqueadas em direção ao nariz, testa franzida com
algumas rugas profundas, olhar pensativo, bochechas alongadas, têmporas salientes,
poucos cabelos, barba grisalha e bastante longa.

Excerto do Elogio de São Gregório de


Nazianzo na morte de São Basílio

Quando a Santíssima Trindade eleva a alma do piedoso Basílio, que era


ansioso para deixar esta morada terrena, todo o exército celeste rejubila-se; mas as
cidades da Capadócia foram imersas na dor. Que posso dizer? O mundo inteiro
solta gritos lancinantes: «Não é mais o arauto da paz; não é mais o que era o elo de
uma feliz concórdia». O mundo inteiro, adorador de Deus nas Três Pessoas, é
cruelmente sacudido pelas opiniões inimigas da santa doutrina. Pobres de nós, os
lábios de Basílio silenciam. Desperta-te, mesmo que apenas por tuas palavras e teus
sacrifícios, para nos livrar das tempestades. Tu és o único cuja conduta responde
sempre à linguagem e a linguagem à conduta.

Excerto de uma carta de Libânio


a São Basílio – Obras Completas de São Basílio
T. III, p. 454, edição Garnier

Preciso dizer algo a respeito de vossa amável carta; não seria de bom tom
escondê-lo. Estava em casa um grande número de pessoas distintas pela posição que
ocupam no Estado. Entre elas, o ilustre Alípio, que é parente de Hierócles. Então,
na presença de todos, o mensageiro entregou-me a vossa carta. Após lê-la em voz
baixa, exclamei com um sorriso e um ar alegre: «Fui vencido!» – Em que fostes
vencido? – perguntaram-me. – E como vossa derrota nos aflige? – Respondi: «Fui
vencido na composição de cartas elegantes. Mas é Basílio o vencedor, e ele é meu
amigo, por isso vede-me contente ao ser vencido!» Essas palavras despertaram-lhes
o interesse em constatar minha derrota na vossa carta. Alípio a leu e os outros
ouviram; numa só voz expressaram-se de forma unânime: – Tens razão! –
Imediatamente o leitor saiu, sem dúvida, para mostrá-la a outras pessoas. E tive de
fazer todo o esforço do mundo para que ele ma devolvesse.

Excerto da Biblioteca de Fótios, CXLI

Basílio o Grande se destaca em todos seus discursos. Autor algum melhor do


que ele tem a pureza, a propriedade de expressão, o verdadeiro estilo da oratória e
do panegírico. Em relação à clareza de pensamento, não tem igual, ou pelo menos
ninguém o supera. Ele se emprega a persuadir: sua dicção, doce e brilhante, flui
naturalmente como um córrego que escapa suavemente de uma copiosa fonte. É
principalmente na arte da persuasão que se mostra superior. E, se pegássemos seus
discursos como modelos do gênero deliberativo, pondo-nos a imitá-los, desde que,
entretanto, não se ignore as próprias regras desse gênero, creio que se poderia
chegar a todos os outros modelos, mesmo os de Platão e de Demóstenes, que os
antigos prescrevem para meditar e aprender a oratória e o panegírico.
NOTÍCIA HISTÓRICA SOBRE SÃO BASÍLIO

São Basílio, arcebispo de Cesaréia da Capadócia, nasceu nesta mesma cidade


no ano 329, no seio de uma tradicional família originária da província da Ponte.
Tinha como pai um dos homens mais virtuosos e mais eloqüentes de Cesaréia; sua
mãe era Santa Eumélia; a irmã, Santa Macrina; e entre seus irmãos, São Gregório de
Nissa e São Pedro de Sebaste.
Fruto de uma família de santos, Basílio parecia destinado, desde o nascimento,
a se tornar um dos mais distintos homens da Igreja, tanto pelos exemplos
domésticos que tinha diante dos olhos quanto dos talentos que a Providência lhe
havia destinado. E essas esperanças não foram perdidas: após ter feito seus estudos
com bastante sucesso na província da Ponte, seguiu para Constantinopla para
tomar lições com Libânio, o mais célebre retórico de seu tempo, que rapidamente
via o aluno se distinguir entre os discípulos, e que lhe conservou por toda a vida a
mais alta estima.
Ao deixar a escola da Capadócia, Basílio foi para Atenas, onde se aperfeiçoou
na clareza da linguagem, adquirindo a tão célebre elegância dos grandes escritores
gregos. Lá reencontrou seu velho amigo Gregório de Nazianzo, o seu equivalente na
piedade, nos talentos e no amor pelo conhecimento.
Após ter se aperfeiçoado na arte da oratória e acumulado um tesouro de
conhecimentos das ciências profanas, resistiu às vantajosas propostas para que
ficasse em Atenas na qualidade de mestre. Retornou à sua pátria, onde assumiu, por
algum tempo, uma cadeira de retórica numa escola local, e também apareceu com
brilho nos tribunais. Mas, percebendo que o alarido das palmas, recebido pelo
exercício das duas profissões, não lhe preenchia o coração, renunciou a suas funções
profanas – onde eclipsava todos os seus concorrentes – para se consagrar
inteiramente a Deus.1 Recebeu o Batismo em 357 e, em seguida, vendeu e
distribuiu todos os seus bens aos pobres. Percorreu os mosteiros da Síria, da
Mesopotâmia e do Egito, onde encontrou consolo aos tristes espetáculos de
devastação que o arianismo trazia a todo o Oriente.2
No seu retorno, foi obrigado a se afastar de Diano, à época bispo de Cesaréia,
que havia sucumbido formalmente ao arianismo. Assim, retira-se nos desertos da
Ponte, não longe do mosteiro feminino fundado por sua mãe e sua irmã, às margens
do Iris. A exemplo delas, estabeleceu um mosteiro para homens do outro lado do
rio, reunindo todos os solitários da vizinhança que haviam escolhido a vida
eremítica – que para ele era bastante inconveniente –, conduzindo-os à vida
monástica. Esses estabelecimentos se foram multiplicando na província da Ponte e
também por toda a Capadócia; então, Basílio estabeleceu regras comuns, das quais
se manteve como inspetor geral, até mesmo depois de, mais tarde, tornar-se bispo.
Diano, atacado por uma doença que o conduziria à morte, convocou Basílio a
se apresentar em Cesaréia, fazendo-o saber que estava ciente do mal que havia sido
espalhado com a fórmula ariana de Rimini,3 e que nunca pretendeu renunciar à fé
de Nicéia. Então, não achou nenhuma dificuldade para voltar sob sua jurisdição, e
prodigalizar-lhe todos os cuidados que exigia o estado do bispo à beira da morte.
Eusébio, sucessor de Diano, foi responsável pela ordenação de Basílio em 364. Mas
seus sucessos nas pregações causaram inveja a Eusébio, que o interditou no exercício
do santo ministério, e deu-lhe liberdade para voltar aos seus mosteiros na província
da Ponte.
Pouco tempo depois, o imperador Valente dirigiu-se a Cesaréia para ajudar os
arianos a tomar posse das igrejas católicas, e isto fez com que Eusébio, incapaz de
lhe fazer oposição, ouvisse o clamor dos fiéis para que trouxesse Basílio. Sua
presença fez cessar as divisões que prevaleciam entre os ortodoxos; seu zelo frustrou
o intento do imperador, e sua eloqüência fez-se ouvir no celeiro dos ricos, para
alimentar os pobres que a fome havia reduzido à mais terrível miséria.
Com a morte do bispo Eusébio, Basílio foi elevado à sede de Cesaréia em 370.
Aquela igreja tomou uma nova face devido ao cuidado com que ele passou a formar
o clero, além do fervor que inspirava em todos os fiéis e também pelo zelo ativo que
exibiu em todas as partes do seu ministério. Tal zelo se estendeu para além da sua
diocese. A Igreja de Antioquia estava dilacerada por um cisma tão complexo que
cada divisão era encabeçada por um homem distinto. Basílio tentou ajudar a
restabelecer a harmonia, mas seus esforços foram inúteis. Porém, obteve êxito
diante dos bispos da Macedônia, que demonstraram desejo de se reunir à Igreja: fê-
los adotar a fé de Nicéia, e se contentou em fazê-los confessar que o Espírito Santo
não é uma criatura.4 Ele acreditava que, uma vez de volta à unidade, poderiam ser
conduzidos facilmente, em conferências amigáveis, a reconhecer a divindade do
Espírito Santo. Esta condescendência, criticada por alguns católicos, seria aprovada
por Santo Atanásio, e enfraqueceu consideravelmente os arianos.
Valente, sempre obcecado pelos facciosos arianos, retomou o projeto de fazer
arianos e católicos comungarem juntos. O terror marchava por todas as províncias
que ele atravessava, e os bispos, intimidados, fraquejavam diante de suas ameaças. O
prefeito Modesto, seguindo as orientações do imperador, deu ordem para subjugar
o arcebispo de Cesaréia. Então, sentado na sua tribuna e cercado por seus lictores
armados, fez comparecer Basílio, informando-lhe do confisco dos seus bens, do
exílio, dos tormentos e mesmo da morte, caso ele não confessasse a religião do
imperador. O santo, com a serenidade que expressava seu rosto, apresentou-lhe
livros que compunham todos os seus bens, seus trapos que o defenderiam das
intempéries das estações, e complementou dizendo que sua estada na terra era
como um exílio, já que o céu era a sua verdadeira pátria, onde ele iria se reunir com
seu Criador.
Modesto, surpreendido com aquela destemida tranqüilidade, disse: «Jamais
alguém me falou com tamanha audácia.» E Basílio respondeu com uma santa
confiança: «Talvez porque vós nunca tivestes de lidar com um bispo: no curso
ordinário da vida, somos os mais doces e agradáveis entre todos os homens. Porém,
quando se trata da religião, desprezamos tudo por Deus, sem que nada nos possa
abalar.»
No dia seguinte, Basílio teve de se apresentar ao próprio imperador, e com a
mesma resignação deixou claro que não se intimidaria. Isso fez com que o
deixassem em paz.
No entanto, Basílio sabia temperar, por uma sábia condescendência, o rigor
de seu ministério. Valente, presente à igreja no dia da Epifania, não ousou se
encaminhar para a comunhão, prevendo que ela lhe seria recusada, mas fez sua
oferta, a qual foi aceita. Basílio sabia que, nessas ocasiões extraordinárias, era preciso
prudência e ser menos severo nas regras para não humilhar a majestade imperial,
provocando ressentimentos desnecessários. Por duas vezes Valente se deixa levar
pelos arianos, dando a ordem para que exilassem Basílio; por duas vezes teve de
revogar tal ordem.
O resto da vida de Basílio oferece uma riqueza de detalhes sobre as medidas
tomadas para manter a boa ordem em sua igreja, para pôr termo às diferenças que se
elevavam nas igrejas vizinhas, para trazer de volta os pastores e seus rebanhos à fé de
Nicéia, para fornecer bispos ortodoxos às dioceses que não os tinham, e também
colocar ordem nas disputas territoriais. As freqüentes viagens que empreendia,
mesmo nas mais rudes estações do ano, acabaram por arruinar a sua saúde, já
consideravelmente enfraquecida pelos rigores da penitência. Sua morte se deu em
379 e foi lamentada universalmente, não apenas pelos cristãos, mas também pelos
judeus e pelos pagãos, que o viam como um pai. São Gregório de Nazianzo se
encarregou de exprimir todos esses lamentos numa oração fúnebre, conhecida
como um dos seus discursos mais tocantes.
As obras de São Basílio consistem em homilias, discursos morais, cinco livros
contra Eunômio, um livro sobre o Espírito Santo, um comentário sobre Isaías, mais
de trezentas cartas sobre diversos assuntos. O que forma a característica de sua
eloqüência é uma excelente dialética, conhecimento extenso e variado, uma rica
imaginação, grandes pensamentos, sublimes concepções, o uso freqüente das
Sagradas Escrituras, numa dicção pura e com extrema precisão. Seus pensamentos
tinham muita ordem, clareza, e eram expressos num estilo muito elegante. Fótios,
que foi um conhecedor profundo desta matéria, via esse talento de São Basílio
como o mais próprio a tocar os corações e a persuadir os espíritos nas ações
públicas.

M. JOSEPH PLANCHE
Professor de retórica no colégio Royal de Bourbon, publicado em 1824.
1«Um dia, como despertando de um sonho profundo, eu me dirigi à admirável luz da verdade do
Evangelho [...], e chorei sobre minha miserável vida» (cf. São Basílio, Carta 223: PG 32, 824a) –
NT.
2A teoria conhecida como subordinacionismo, defendida por Ário, que, não entendendo a
consubstancialidade da Santíssima Trindade, acreditava estar defendendo o monoteísmo.
Portanto, Ário afirmava haver um só Deus, que se tornou Pai somente após criar o Filho, que,
portanto, junto com o Espírito Santo, seriam apenas criaturas. O Concílio de Nicéia (325)
condenou a doutrina herética de Ário, e reafirmou a consubstancialidade da Santíssima Trindade
no Credo: «Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de
todos os séculos. Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Gerado, mas não
feito, consubstancial ao Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas». Depois, acrescentou-se no
Concílio de Constantinopla (381): «Creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a Vida e procede do
Pai e do Filho. E com o Pai e o Filho é juntamente adorado e glorificado, e é o que falou pelos
Profetas» – NT.
3Concílio de Rimini (359-360), convocado pelo Imperador Constâncio II, tomou partido de
Ário, ainda que tentassem não evocar abertamente o seu nome, já condenado no Concílio de
Nicéia (325). Embora conste que reuniu mais bispos do que qualquer concílio até então,
subscreveu-se a um credo ambígüo que trazia muita confusão, o que se observou até o Concílio de
Constantinopla, que restabeleceu os cristãos nos lugares eminentes dos quais nunca deveriam ter
saído – NT.
4Em suma, o Concílio de Nicéia determinou que Jesus Cristo é Deus, condenando a doutrina de
Ário que dizia o contrário. Porém, tal doutrina perseverou entre alguns bispos que acrescentaram
a dúvida sobre a divindade do Espírito Santo, que só seria resolvida em 381, no Concílio de
Constantinopla – NT.
PREFÁCIO
AUDIÊNCIA GERAL DO PAPA BENTO XVI
(em 4 de junho de 2007)

Queridos irmãos e irmãs!

Hoje queremos recordar um dos grandes Padres da Igreja, São Basílio,


definido pelos textos litúrgicos bizantinos um ‘luminar da Igreja’. Foi um grande
bispo do século IV, para quem olha com admiração tanto a Igreja do Oriente como
a do Ocidente pela santidade de vida, pela excelência da doutrina e pela síntese
harmoniosa de dotes especulativos e práticos. Ele nasceu por volta de 330 numa
família de santos, ‘verdadeira igreja doméstica’, que vivia num clima de profunda fé.
Completou os vários estudos com os melhores mestres de Atenas e de
Constantinopla. Insatisfeito com os seus sucessos mundanos, e percebendo que
tinha desperdiçado muito tempo nas vaidades, ele mesmo confessa: «Um dia,
como que acordando de um sono profundo, dirigi-me para a admirável luz da
verdade do Evangelho... e chorei sobre a minha vida miserável.»1 Atraído por
Cristo, começou a olhar para Ele e a ouvir somente a Ele.2 Com determinação
dedicou-se à vida monástica na oração, na meditação das Sagradas Escrituras e dos
escritos dos Padres da Igreja, e no exercício da caridade,3 seguindo também o
exemplo da irmã, Santa Macrina, que já vivia no ascetismo monástico. Depois foi
ordenado sacerdote e enfim, em 370, bispo de Cesaréia da Capadócia, na atual
Turquia.
Mediante a pregação e os escritos, desempenhou uma intensa atividade
pastoral, teológica e literária. Com sábio equilíbrio, soube unir o serviço às almas e a
dedicação à prece e à meditação na solidão. Valendo-se da sua experiência pessoal,
favoreceu a fundação de muitas ‘irmandades’ ou comunidades de cristãos
consagrados a Deus, que visitava freqüentemente.4 Com a palavra e com os escritos,
muitos dos quais chegaram até nós,5 exortava-os a viver e a progredir na perfeição.
Das suas obras hauriram também vários legisladores do monaquismo antigo, entre
os quais São Bento, que considerava Basílio como o seu mestre.6 Na realidade, ele
criou um monaquismo muito particular: não fechado à comunidade da Igreja local,
mas aberto a ela. Os seus monges faziam parte da Igreja particular, eram o seu
núcleo animador que, precedendo os outros fiéis no seguimento de Cristo e não só
na fé, mostrava a firme adesão a Cristo o amor a Ele sobretudo nas obras de
caridade. Estes monges, que tinham escolas e hospitais, estavam ao serviço dos
pobres e mostraram assim a integridade da vida cristã. O Servo de Deus João Paulo
II, falando do monaquismo, escreveu: «Muitos consideram que aquela estrutura
principal da vida da Igreja que é o monaquismo foi posta, para todos os séculos,
principalmente por São Basílio; ou que, pelo menos, não foi definida na sua
natureza mais própria sem o seu contributo decisivo.»7
Como bispo e pastor da sua vasta diocese, Basílio preocupou-se
constantemente pelas difíceis condições materiais em que viviam os fiéis;
denunciou com firmeza os males; comprometeu-se a favor dos mais pobres e
marginalizados; interveio também junto dos governantes para aliviar os
sofrimentos da população, sobretudo em momentos de calamidade; vigiou pela
liberdade da Igreja, opondo-se também aos poderosos para defender o direito de
professar a verdadeira fé.8 De Deus, que é amor e caridade, Basílio deu um válido
testemunho com a construção de vários albergues para os necessitados,9 quase uma
cidade da misericórdia, que dele recebeu o nome de Basilíada.10 Ela está nas origens
das modernas instituições hospitalares de internação e de cuidado dos doentes.
Consciente de que «a liturgia é o ápice para o qual tende a ação da Igreja, e ao
mesmo tempo a fonte da qual jorra toda a sua virtude»,11 Basílio, embora sempre
preocupado em realizar a caridade que é a prova da fé, foi também um sábio
‘reformador litúrgico’.12 Com efeito, deixou-nos uma grande oração eucarística (ou
anáfora), que dele recebe o nome, e deu um ordenamento fundamental à oração e à
salmodia: pelo seu impulso o povo amou e conheceu os Salmos, e recitava-os
também de noite.13 E assim vemos como a liturgia, a adoração, a oração com a
Igreja e a caridade caminham juntas, condicionando-se reciprocamente.
Com zelo e coragem, Basílio soube opor-se aos hereges, que negavam que
Jesus Cristo fosse Deus como o Pai.14 Analogamente, contra aqueles que não
aceitavam a divindade do Espírito Santo, ele afirmou que também o Espírito é
Deus e «deve ser com o Pai e com o Filho igualmente numerado e glorificado».15
Por isso, Basílio é um dos grandes Padres que formularam a doutrina sobre a
Trindade: o único Deus, precisamente porque é amor, é um Deus em três Pessoas,
que formam a unidade mais profunda que existe, a unidade divina.
No seu amor a Cristo e ao seu Evangelho, o grande Santo da Capadócia
comprometeu-se também em recompor as divisões dentro da Igreja,16
empenhando-se para que todos se convertessem a Cristo e à sua Palavra,17 força
unificadora à qual todos os crentes devem obedecer.18 Em conclusão, Basílio
entregou-se completamente ao serviço fiel à Igreja e no exercício multiforme do
ministério episcopal. Segundo o programa por ele mesmo traçado, tornou-se
«apóstolo e ministro de Cristo, dispensador dos mistérios de Deus, arauto do
reino, modelo e regra de piedade, olho do corpo da Igreja, pastor das ovelhas de
Cristo, médico piedoso, pai e sustento, cooperador de Deus, agricultor de Deus,
construtor do templo de Deus».19
Este é o programa que o santo bispo entrega aos anunciadores da Palavra –
ontem e hoje –, um programa que ele mesmo se comprometeu generosamente a
pôr em prática. Em 379 Basílio, não ainda cinqüentenário, consumido pelos
cansaços e pela ascese, retornou para Deus, «na esperança da vida eterna através de
nosso Senhor Jesus Cristo».20 Ele era um homem que viveu verdadeiramente com
o olhar fixo em Cristo. Era um homem do amor ao próximo. Cheio da esperança e
da alegria da fé, Basílio mostra-nos como ser realmente cristãos.

1 Cf. Ep. 223: PG 32, 824a


2 Cf. Moralia 80, 1: PG 31, 860bc

3 Cf. Epp. 2 e 22

4 Cf. Gregório de Nazianzo, Oratio 43, 29 in laudem Basilii: PG 36, 536b

5 Cf. Regulae brevius tractatae, Proêmio: PG 31, 1080ab

6 Cf. Regula 73, 5

7 Carta Apostólica Patres Ecclesiae, 2

8 cf. Gregório de Nazianzo, Oratio 43, 48-51 in laudem Basilii: PG 36, 557c-561c

9 Cf. Basílio, Ep. 94: PG 32, 488bc

10 Cf. Sozomeno, Historia Eccl. 6, 34: PG 67, 1397a

11 Constituição Conciliar Sacrosanctum concilium, 10

12 Cf. Gregório Nazianzeno, Oratio 43, 34 in laudem Basilii: PG 36, 541c

13 Cf. Basílio, In Psalmum, 1-2: PG 29, 212a-213c

14Cf. Basílio, Ep. 9, 3: PG 32, 272a; Ep. 52, 1-3: PG 32, 392b-396a; Adv. Eunomium 1, 20: PG
29, 556c
15 Cf. De Spiritu Sancto: SC 17bis, 348

16 Cf. Epp. 70 e 243

17 Cf. De iudicio 4: PG 31, 660b-661a

18 Cf. ibid., 1-3: PG 31, 653a-656c

19 Cf. Moralia 80, 11-20: PG 31, 864b-868b

20 De Baptismo 1, 2, 9
«CONSCIENTIZA-TE DA TUA GRANDEZA CONSIDERANDO O PREÇO
DERRAMADO POR TI: OLHA PARA O PREÇO DO TEU RESGATE, E COMPREENDE
A TUA DIGNIDADE!»

Psalmum 48, 8: PG 29, 452b


CAPÍTULO I

Minhas crianças queridas,

Bons motivos me encorajam para dar-vos conselhos que creio serem sábios, e
asseguro: serão úteis àqueles que os acolherem. Na idade em que me encontro, o
grande número de acontecimentos pelos quais passei, as diversas revoluções que
experimentei e que são excelentes para instruir, deram-me a experiência para poder
indicar o caminho mais seguro e menos arriscado aos jovens que iniciam nas suas
carreiras. Além disso, depois dos autores de vossas vidas, ninguém está mais perto
de vós do que eu, de sorte que tenho para convosco uma afeição verdadeiramente
paternal; e, a menos que não me engane sobre as disposições dos vossos corações,
posso me gabar que quando voltais seus olhares a mim, vós me colocais no mesmo
patamar dos autores de vossos dias.
Se receberdes meus conselhos com entusiasmo, sabei que estareis entre os que
Hesíodo colocou com louvor como detentores do segundo importante mérito dos
sábios; caso contrário, tendo muito cuidado para não pronunciar algo desagradável,
contento-me a lembrar os versos onde o poeta diz que o primeiro mérito é enxergar
por si mesmo aquilo que é o melhor a ser feito; o segundo é poder seguir os
conselhos sábios úteis que alguém lhe dá; mas que isso tudo é inútil a quem não
sabe nem agir por si mesmo nem aproveitar os bons conselhos.1
Não vos surpreendais que, malgrado o valor dos mestres das escolas que
freqüentais todos os dias, e também a vantagem de conversar com os mais ilustres
escritores da antigüidade por meio dos livros que eles nos deixaram, pretendo
encontrar algo melhor a dizer. Venho advertir para que não sigais de forma cega
esses doutores profanos; não vos entregueis sem reservas em um mar cheio de
armadilhas, conduzidos por esses perigosos pilotos. Deles deve-se absorver o que há
de bom e útil, sempre sabendo aquilo que é preciso rejeitar. Como, então, podemos
fazer essa distinção? É isto que pretendo ensinar, e é por onde iniciarei este
discurso.

1Hesíodo, no poema intitulado As obras e os dias, verso 291. Este pensamento do poeta grego foi
bastante repetido depois dele, entre outros, por Tito Lívio, no discurso de Minúcio ao ditador
Fábio: «Homem excelente é quem por si mesmo tudo pensa, / refletindo o que então e até o fim
seja melhor; / e é bom também quem ao bom conselho obedece; / mas quem não pensa por si nem
ouve o outro / é atingido no ânimo; este, pois, é homem inútil» – versos 291-295, Hesíodo, Os
trabalhos e os dias, Iluminuras, 1996, tradução de Mary de Camargo Neves Lafer.
CAPÍTULO II

Nós cremos, minhas queridas crianças, que a vida presente não é nada: tudo
aquilo que é limitado às vantagens temporais apresentadas nesta vida são nada mais
do que ilusões que se apresentam a nossos olhos. O nascimento, a força, a beleza, a
boa imagem, as honrarias, e mesmo o império; tudo aquilo que há de mais
grandioso no mundo nos parece pouco desejável. Enfim, nada daquilo que possa ser
chamado de grande neste mundo pode ser um bem para nós; assim, não merece a
menor das nossas atenções. Tampouco devemos invejar a pretendida felicidade
daqueles que possuem essas vantagens. Pois as nossas esperanças estão apontadas
para um lugar muito mais distante. Em tudo o que fazemos, propomo-nos a
alcançar uma vida futura. E tudo aquilo que pode a ela nos conduzir deve ser objeto
da nossa atenção e do nosso amor; devemos usar de todas as forças para encontrá-
los. Por outro lado, devemos nos livrar, sem culpa alguma, daquilo que é
desprezível, de tudo aquilo que pode nos afastar do nosso objetivo último.
Para vos explicar do que se trata esta outra vida, e qual será a natureza desta
outra morada, seria preciso falar-vos por muito mais tempo do que pretendo, além
de tratar-se de objetos que escapariam às vossas capacidades de entendimento, pois
sois jovens e ainda estais a iniciar nas vias do conhecimento. Por ora, é-me
suficiente dizer-vos que, reunindo toda a felicidade que o homem tem desfrutado
desde o início dos tempos, mal se chegaria à menor parte da felicidade que espera a
vida futura. E, mesmo que pudéssemos somar todos os bens presentes neste mundo,
veremos que isto ainda seria inferior ao menor dos bens futuros; que a sombra e os
sonhos estão abaixo da realidade; ou ainda, para me servir de uma comparação mais
apropriada, assim como a alma é mais preciosa do que o corpo, a vida futura
prevalece sobre a vida presente.2
As Sagradas Escrituras nos ensinam essas verdades e nos instruem pelos
Santos Mistérios. Mas sei que a juventude ainda não vos permite aprofundar nessas
verdades, portanto retenhamos os olhos sobre os livros que não são completamente
contrários a elas, para que possamos, a partir deles, olhar para nossas próprias almas,
como se estivéssemos defronte a um espelho. É assim que se aplicam os soldados a
diversos exercícios que mais parecem divertimentos, porém acabam por torná-los
mais aptos para o combate. Imaginemos, então, que a maior de todas as lutas nos
fosse proposta, e que seria preciso preparar-nos com todo o cuidado que somos
capazes de ter: ocuparmo-nos da leitura dos poetas, dos oradores, de todos os
escritores que podem nos servir para aperfeiçoar nossa alma. Se quisermos imprimir
em nós a idéia de beleza com força suficiente para que seja indelével, devemos nos
iniciar nas letras profanas, antes de se empenhar no estudo das coisas sagradas.
Primeiro devemos aprender a ver o reflexo do sol nas águas cristalinas e, depois,
com a visão fortalecida, olhar diretamente para a luz pura.
Se há alguma afinidade entre as ciências sagradas dos livros santos com aquelas
dos autores profanos, isto nos será vantajoso conhecer. Caso contrário, saberemos
ver suas diferenças aproximando-as, e a comparação contribuirá bastante para nos
fortalecer no conhecimento da verdade. Mas, por qual analogia poder-se-á
representar uma ou outra doutrina? As árvores têm uma virtude natural de ficar
carregadas de frutos numa dada estação, todavia elas recebem uma espécie de
ornamento de folhas que se agitam em torno de seus ramos. Da mesma forma se dá
com a alma: a verdade é seu fruto essencial, no entanto pode ser enriquecida com
conhecimentos profanos, assim como as folhas realçam a beleza dos frutos.

2Na segunda parte desta edição encontra-se a Homilia sobre o desapego das coisas mundanas
(pp.61), onde São Basílio se concentra apenas neste assunto que, no presente Discurso, não
pretende abordar – NT.
CAPÍTULO III

Sabemos que Moisés, cuja sabedoria bem conhecemos, dedicou-se às ciências


egípcias antes de se dedicar à contemplação das coisas do alto [Cf. At 7,22]. No
século seguinte, o profeta Daniel instruiu-se na sabedoria dos Caldeus da Babilônia,
antes de se aplicar às ciências sagradas [Cf. Dn 1, 5,6 + 1,17]. Então, podemos
concluir que as ciências profanas não são inúteis. Agora, é preciso aprender o que
delas se pode extrair. Comecemos pelos poetas, cujos discursos são variados. Não
devemos nos apegar a tudo aquilo que dizem, mas recolher as ações e palavras dos
grandes homens dos quais nos falaram: iremos admirá-los e tentaremos imitá-los.
Mas quando nos forem apresentadas personagens infames, taparemos os ouvidos
para nos proteger de semelhantes exemplos, como fez Ulisses para evitar o canto
das sereias.3 Pois o hábito de se entreter com palavras contrárias à virtude conduz
diretamente à prática do vício. Portanto, devemos velar por nossas almas, de modo
que as máximas perversas não se insinuem ao coração através das palavras, como se
fossem um amargo veneno adocicado pelo mel. Assim, evitemos os poetas que
espalham pelas bocas de suas personagens as injúrias e os sarcasmos, que descrevem
a lascívia e a embriaguez, que fazem parecer que a felicidade consiste em mesas
suntuosas e cantos efeminados. Ainda menos aqueles que poetizam a pluralidade de
deuses com suas disputas indecentes, onde irmão ataca irmão, o pai guerreia
implacavelmente com seus filhos, os deuses são adúlteros e se entregam às paixões e
aos seus negócios infames, sobretudo este Júpiter, anunciado como uma divindade
suprema, mas se o fosse envergonharia até mesmo os animais. Que sejam todos
abandonados aos historiadores, que saberão o que fazer deles.
O mesmo se pode dizer sobre os proseadores que só buscam corromper o
espírito daqueles que os lêem. Não nos serviremos dos oradores que apenas usam da
sua arte para a enganação. Pois os cristãos escolhem a via reta e verdadeira que está
contida nos Evangelhos, e jamais devem consentir com a mentira. Devemos estudar
os autores profanos que louvam a virtude e condenam o vício. Das flores, nos
contentamos em apreciar suas cores e sentir seu perfume; no entanto, as abelhas
delas extraem a substância para produzir o mel. Do mesmo modo, aqueles que nas
suas leituras não procuram unicamente o prazer poderão extrair coisas muito úteis
para o espírito. Enfim, devemos imitar as abelhas, que não voam
indiscriminadamente sobre todos os tipos de flores: escolhem somente as mais
aptas para lhes fornecer aquilo que é útil ao seu trabalho, abandonando o resto
inútil. Faremos o mesmo se formos sábios: após colher nesses livros tudo aquilo que
é precioso para o conhecimento da verdade, abandonaremos o resto. Devemos
considerar, antes de tudo, as ciências que queremos estudar, relacionando o
conhecimento a um fim conveniente.4
Como a virtude é o caminho para a vida bem-aventurada que pretendemos,
devemos nos concentrar nos poetas, escritores e, sobretudo, nos filósofos que a
celebram em inúmeras de suas obras. Não é pouca a vantagem de inspirar e habituar
os jovens naquilo que é honesto. Dificilmente eles esquecem o que aprendem na
mais tenra idade, e esses primeiros traços se imprimem nas suas almas de uma forma
tão marcante que nunca mais poderão ser apagados. E não fora mesmo o desejo de
incitar os jovens à virtude que fez Hesíodo escrever os versos que estão na boca de
todo mundo? «O caminho que conduz à virtude parece, à primeira vista, áspero,
duro, íngreme, não oferecendo nada mais que suor e cansaço.»5
Assim, não é dado a todos se aproximar deste caminho devido a sua rigidez.
Mas, uma vez que se chega ao topo, percebe-se que ele mesmo é tranqüilo, macio,
fácil, mais agradável do que aquele que conduz ao vício, que podemos chegar sem
demora, como diz o poeta, pois o vício é vizinho da virtude. Creio que, falando
assim, Hesíodo não tem como intenção outra coisa senão exortar-nos, convidar-nos
a seguir o caminho que nos torne homens virtuosos, sem permitir que
desanimemos antes de chegar a esse objetivo. Se qualquer outro autor faz
semelhante elogio à virtude, saudemos suas narrativas, pois tendem aos mesmos fins
aos quais nos propomos.
Ouvi um homem hábil a explicar o sentido dos poetas; falava que toda a
poesia de Homero é um elogio à virtude, que tudo aquilo que não é pura fantasia
conduz a este fim. Temos um belo exemplo no chefe dos cefalenianos,6 que sai nu
de um naufrágio, estando coberto apenas pela sua virtude, sua mais bela veste.
Longe de ser exposto à vergonha, inspira antes o respeito de uma jovem princesa, e
em seguida dos outros feacianos, que por ele tinham tanta veneração que, sem
pensar em luxos ou riquezas, tomam-no como modelo e apressam-se a imitá-lo; não
queriam ser nada mais do que aquele Ulisses saído das ondas num estado miserável
após o naufrágio.
Este intérprete de Homero que ouvi falando acrescenta que naqueles versos o
poeta parece bradar: «Ó mortais! Buscai a virtude, que nos faz superar o naufrágio,
e faz com que um homem nu saído do meio das ondas torne-se mais respeitável que
os mais opulentos feacianos». Sim, sem dúvida, os outros bens não pertencem mais
a seus possuidores do que aos que deles estão privados, pois passam de uma mão a
outra como nos jogos de azar. Porém, a virtude é o único bem que não nos pode ser
tirado, é o único bem que acompanha o homem na vida e também na morte.
Decerto, tal era o sentimento de Sólon, quando aos ricos disse: «Jamais trocaremos
vossas riquezas pela virtude, porque esta em nós permanece para sempre, ao passo
que a propriedade dos bens materiais passa de um homem para outro.»7
Teógnis pensa da mesma forma, quando diz que a divindade (qual seja a que
ele fale) faz pender a balança, às vezes para um lado, às vezes para o outro; que hoje
se tem a riqueza, e amanhã pode-se ter a miséria.8
Pródico, sofista de Ceos, raciocina mais ou menos do mesmo modo numa de
suas obras sobre a virtude e os vícios que merece ser lida com atenção, pois não é
um autor que se possa desprezar.9 Eis um excerto dos seus pensamentos, que cito de
memória, mas não difere essencialmente das suas próprias palavras. Ele diz que
Héracles, quando jovem, mais ou menos na mesma idade em que vos encontrais,
deliberava sobre o caminho que deveria escolher. Estava indeciso por aquele que
conduz à virtude com todas as suas dificuldades, ou um outro mais fácil. Foi
quando lhe apareceram duas mulheres: uma era a Virtude, e a outra, a Felicidade, e
ele as reconheceu antes mesmo que lhe falassem. Uma realçava a beleza com excesso
de maquiagem; parecia banhar-se nas delícias, arrastando atrás de si toda a sorte de
prazeres. Procurava convencer a Héracles, fazendo-lhe a corte e prometendo ainda
muito mais. A outra, magra e exausta, portava um olhar severo e usava de uma
linguagem bem diferente: longe de lhe prometer uma vida doce e tranqüila,
anunciava fadigas, trabalhos, mil perigos na terra e no mar, mas cuja recompensa
seria estar junto da divindade. Assim fala esta mulher, diz Pródico, a quem Héracles
se une e permanece fiel até a morte.
Quase todos que escreveram sobre a sabedoria louvaram a virtude, cada um à
sua maneira. Devemos, portanto, ouvi-los e incorporar seus axiomas à nossa
conduta, pois só é sábio quem confirma sua filosofia pelas suas ações. E aqueles que
filosofam apenas pelas palavras são nada mais do que espantalhos a impressionar
pessoas ingênuas; portanto não merecem nenhum respeito. O verdadeiro sábio me
parece assemelhar-se a um pintor que, pintando as mais belas figuras de homens
virtuosos, vê a si mesmo representado como modelo daqueles cujos traços pretende
retratar. Porque louvar publicamente a virtude, usando magníficos termos em
longos discursos, enquanto na própria vida dá preferência ao prazer em lugar da
temperança, a injustiça em lugar da justiça, é tão somente igualar-se aos palhaços e
aos comediantes que representam os reis e os príncipes, sem eles mesmos serem reis
ou príncipes, e muitas vezes sequer serem homens livres. Um músico não quereria
tocar uma lira desafinada; um corifeu10 não gostaria de reger coristas que não
saibam cantar em harmonia; da mesma forma se dará com um homem em
desacordo consigo mesmo: não terá uma conduta que confirme seus discursos!
Dirá, como em Eurípedes: «Minha boca pronunciou um sermão ao qual meu
espírito não toma parte.»11 Desse modo, é preciso dar fé ao que diz Platão: «O
supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser.»12
Enfim, é preciso amar os discursos que contém bons axiomas. Desta forma,
meditemos sobre todas as passagens que contêm princípios de sabedoria. Além
disso, como as belas ações dos antigos nos foram conservadas, ou pelas lembranças
de gerações em gerações ou pelos trabalhos dos poetas e dos historiadores, não se
deve negligenciar o proveito que deles podemos tirar. Eis alguns exemplos.
Certa vez, Péricles foi, em plena praça pública, insultado e injuriado por um
homem do povo, ao qual não dedicou nenhuma atenção. Porém, tal homem
insistiu em insultá-lo por todo o dia, enquanto ele permaneceu insensível. Chegou
a noite e, enfim, o insolente que dedicou o dia a atormentá-lo precisava voltar para
casa. Então, Péricles ordenou que ele fosse acompanhado com uma tocha, para não
perder uma oportunidade de honrar sua filosofia.13
Um homem irritado com Euclides de Mégara14 tinha jurado que lhe
arrancaria a vida. Ao que Euclides respondeu confiante que, por sua vez,
conseguiria amansá-lo para torná-lo seu amigo. Quão útil seria lembrar desses
exemplos quando somos tomados pela raiva. Pois não seria preciso ouvir a sentença
de um poeta trágico: «A cólera levanta nossas mãos contra os inimigos.»
Fechemos, pois, o coração para a cólera, ou, se isso não for possível, que ao menos a
razão ponha um freio nessa paixão para impedir que ela vá além dos limites. Mas
vejamos mais alguns exemplos de ações virtuosas.
Certa vez, um homem se lançou violentamente contra Sócrates que, sem
oferecer resistência, deixou o furioso homem aplacar sua ira a ponto de sair com o
rosto inchado por causa dos golpes. Quando tudo se acalmou, Sócrates se
contentou em escrever em sua testa: «Obra de um tal», como fazem os escultores
com suas estátuas.15 Assim ele respondeu àquela agressão. Como esses atos de
paciência estão de acordo com os nossos princípios, é bom imitá-los. A atitude de
Sócrates tem muita relação com o preceito que diz: ao invés de nos vingarmos
quando ferem-nos a face, devemos apresentar a outra [Cf. Mt 5,39].16 Já a ação de
Péricles, à luz dos princípios do Evangelho, implica em suportar aqueles que nos
perseguem, sofrer a sua ira, e desejar o bem dos inimigos [Cf. Mt 5,44]. Instruídos
por esses exemplos, não mais serão encarados como impossíveis os preceitos do
cristianismo.
Não posso deixar de louvar a sabedoria de Ale-xandre, que tendo em seu
poder as filhas de Dario, que eram belíssimas, sequer quis vê-las, pois acreditava
desonrar sua vitória se cedesse aos atrativos das mulheres após ter vencido os
homens.17 Esta atitude de Alexandre parece estar de acordo com aquela máxima do
Evangelho: quem olha para uma mulher com desejos libidinosos, embora não
cometa realmente o adultério, não está isento do crime, pois já admitiu a
concupiscência na sua alma [Cf. Mt 5,27-28].
Tenho dificuldade em me persuadir que foi por acaso, e não por uma intenção
formal, que Clínias, um dos discípulos de Pitágoras, observou fielmente um dos
nossos preceitos. E qual deles? Bem, ele teria podido, fazendo juramento, evitar
perder uma soma de três talentos. Mas preferiu pagar o que lhe reclamavam no
lugar de fazer um juramento, ainda que estivesse conforme à verdade. Ele tinha,
parece-me, compreendido a defesa que fazemos de não jurar por motivo algum.
[Cf. Mt. 5,37 + 2Cor 1,17-19 + Tg 5,12]

3Cf. Homero, Odisséia, canto XII – NT.

4No texto em grego há o acréscimo: «alinhando as pedras ao cordão»; trata-se de um provérbio


dórico.
5«Adquirir a miséria, mesmo que seja em abundância/ é fácil; plana é a rota e perto ela reside. /
Mas diante da excelência, suor puseram os deuses / imortais, longa e íngreme é a via até ela, /
áspera no início, mas depois que atinges o topo / fácil desde então é, embora difícil seja» – versos
287-292 (Hesíodo, Os trabalhos e os dias; ibid.) – NT.
6Ulisses,que comandava os cefalenianos. Pode-se ver na Odisséia, livro VI, a maneira pela qual foi
recebido pelos feacianos.
7Citando Teógnis de Mégara, antigo poeta grego, no verso 316 dos fragmentos de suas obras que
chegaram até nós – NT.
8Ibid.; verso 157 – NT.

9Este excerto de Pródico não chegou até nós senão por Xenofonte, que o cita na obra Memoráveis,

livro II, 21-34 – NT.


10Mestre do coro, na tragédia e comédia antigas, o qual exercia a função de principal representante

do povo e de intermediário entre os coreutas e as personagens principais (Novo Dicionário Aurélio


da Língua Portuguesa, 2ª Edição) – NT.
11Eurípedes, na tragédia Hipólito (I.612) – NT.

12Platão, na República, 361a – NT.

13Péricles foi uma das personalidades mais influentes do século V a.C. da Grécia Antiga. Estadista,

exímio orador e general, teve seu governo conhecido como a Era de Ouro de Atenas. Plutarco, na
sua obra Vidas Paralelas, conta-nos que ele colocava os interesses da pólis acima dos seus próprios,
chegando, por vezes, a suportar em silêncio as injúrias dos inimigos. O caso narrado por São
Basílio também consta nesta obra de Plutarco (5.2)– NT.
14Discípulo de Sócrates e fundador da escola de Mégarica.
15Não se sabe qual a fonte dessa história narrada por São Basílio, mas Plutarco conta que «todas
as vezes que Sócrates percebia sua alma agitada por alguma emoção, e prestes a romper contra
alguns de seus amigos, abrandava, por meio de um generoso esforço, o tom de sua voz dando ao
rosto um ar festivo e risonho. Eis como o filósofo reprimia os primeiros movimentos da imperiosa
paixão que pretendia dominá-lo» (Sobre os Meios de Reprimir a Cólera, 455a-b). Se
considerarmos que no seu julgamento, Sócrates aceitou o veredicto injusto por saber, em primeiro
lugar, que sua defesa era inútil àquele tribunal, e encarando a morte como algo justo para ele
mesmo, manteve-se fiel à sua filosofia quando fez a sua defesa com um único propósito:
estabelecer a verdade – NT.
16Outro grande exemplo é o de São Filipe Néri que, pedindo esmolas para ajudar os meninos
pobres que auxiliava, tomou um soco de um homem que se sentiu importunado. Respondeu-lhe:
«Este é para mim, agora dê algum dinheiro para os meus meninos.» – NT.
17Plutarco, Vidas Paralelas: Alexandre; XXXVIII e XXXIX: «Mas, como Alexandre, em minha
opinião, estimava ser coisa mais real vencer-se a si mesmo do que derrotar os inimigos, não tocou
em nenhuma, nem em outras moças ou mulheres, antes de desposá-las [...].» – NT.
CAPÍTULO IV

Mas retornemos ao que vinha dizendo. Devemos selecionar tudo o que é útil,
mas não indiscriminadamente. Entre os alimentos, tomamos o cuidado de rejeitar
aquilo que nos é prejudicial. Da mesma forma não escolheremos aquilo que é
prejudicial à nossa alma? Evitemos ser como uma torrente que no seu curso vai
arrastando tudo o que encontra. Um piloto não abandona sua embarcação ao
capricho dos ventos, mas a conduz segundo as regras de sua arte. O carpinteiro ou o
ferreiro trabalham cada um conforme as regras das suas profissões. Ora, seria
diferente conosco? Os trabalhadores braçais têm um objetivo que os dirige ao
trabalho; a vida humana também tem um objetivo pelo qual devemos dirigir nossas
palavras e ações, evitando que nos tornemos semelhantes aos bárbaros. Se não
agimos para um fim específico, nosso espírito, como um barco desgovernado,
flutuará sem rumo. Para os combates e até mesmo para a música devemos nos
dedicar a exercícios preparatórios que nos levarão a obter a coroa prometida.
Porém, é preciso dizer que aquele que se exercitou na luta não se apresentará para
tocar a flauta ou a lira. O famoso Polidamas, antes de se apresentar aos jogos
olímpicos, parava carros em movimento para, assim, aumentar sua força. Mílon,18
de pé sobre um escudo azeitado, não poderia ser arrancado do lugar. E, qualquer
esforço que se empregasse, ele mantinha-se inabalável como uma coluna fixada com
chumbo. Assim, os exercícios desses homens eram preparações para o combate. Se,
ao invés dos exercícios de luta, ocupassem-se dos talentos de Mársias e Olimpo,19
longe de adquirirem a glória e as coroas, teriam se tornado ridículos! Timóteo20
jamais abandonou a música para viver nos ginásios.21 Não foi assim que conseguiu
prevalecer sobre todos os músicos do seu século, pelo contrário!; dizem que ele era
tão hábil na sua arte que chegava a provocar, quando queria, a indignação através de
sons graves e austeros, e logo depois acalmava com os sons mais suaves. Foi assim
que, dizem também, tocando a lira diante de Alexandre, segundo o modo frígio,
animou-o de tal maneira que o fez levantar bruscamente e pegar as armas no meio
de um banquete. Mas depois, suavizando o tom, acalmou-o a ponto de fazê-lo
dedicar sentimentos mais afetuosos a seus convidados. Enfim, tal é a eficácia dos
exercícios, seja nas lutas, seja na música, para se atingir os objetivos propostos.
Mas prossigamos com nosso raciocínio. Somente depois de muito exercício,
de um árduo trabalho nos ginásios, aumentando suas forças e dedicando-se a
combates particulares, é que os atletas estão preparados para a disputa. Ou seja,
somente depois de muito se dedicar a um regime severo que dê a eles o preparo
exigido para os combates decisivos é que podem tentar ser coroados vencedores. E
nós, que nos propomos a receber prêmios tão admiráveis, de grandeza inexprimível,
poderíamos adquiri-lo sem qualquer esforço? Uma vida covarde e preguiçosa
merece algum tipo de elogio? Seria como dar mérito à vida de um Sardanápalo22 ou
de um Margites23 que Homero (supõe-se que ele seja seu autor) nos apresenta
como um idiota que não sabia manejar o arado e nem a enxada, sendo incapaz até
mesmo de se ocupar de qualquer dos trabalhos necessários para a vida. Então, não
seria mais verdadeiro dizer, com Pítaco,24 que é verdadeiramente difícil ser um bom
homem? Com efeito, após ter muito trabalhado, tudo o que podemos obter é uma
felicidade que mal se pode comparar com a de que se falava anteriormente. Pois
nada, nem que se juntassem todas as coisas deste mundo, poderia lhe ser
comparável. Não devemos, portanto, nos entregar à preguiça, tampouco sacrificar
as grandes esperanças pela satisfação de um momento. Isso nos expõe a uma
confusão e também às penas eternas, não apenas diante dos homens – que já seria
bastante grave para uma pessoa sensata –, mas nos lugares onde o Soberano Juiz
exerce sua justiça, seja na terra, seja em qualquer outro lugar do universo. Ele
poderá tratar favoravelmente aqueles que pecam pela imprudência ou pela
fraqueza, mas aqueles que pecam pela malícia, escolhendo conscientemente a pior
das escolhas, verão recair a si mesmos as súplicas das mais rigorosas.
18Ofamoso Mílon de Crotona. Pausânias narra o mesmo feito desse robusto atleta. Polidamas, de
quem ele fala anteriormente, não era menos conhecido.
19Mársias e Olimpo, dois célebres flautistas. Olimpo era da Mísia. A fábula conta que Mársias foi
um sátiro que ousou desafiar Apolo e foi punido por essa audácia.
20O célebre poeta e músico grego Timóteo de Mileto (447 - c. 357 a.C.) – NT.

21No texto original: «palestras», que na Grécia e na Roma antigas era o lugar para exercício de
luta ou de ginástica – NT.
22Sardanápalo, rei da Assíria, célebre por seu luxo e por sua indolência.

23Margites, poema cômico sobre um herói atrapalhado. Aristóteles, na Arte Poética (13.92) atribui

este poema a Homero, embora outros atribuam sua autoria a Pigres de Halicarnasso.
24Pítaco de Mitilene, um dos sete sábios da Grécia (650-570 a.C.)
CAPÍTULO V

O que fazer então?, perguntar-me-íeis. É preciso cuidar da alma, mas sem


negligenciar todo o resto. Não se incomodar com o corpo além do necessário, pois
não somos seus escravos. Devemos trabalhar para o bem da nossa alma, livrar-nos
das paixões que nos aprisionam, acostumando o corpo a resistir aos próprios
desejos. Sim, é preciso atender às necessidades da carne, mas sem nos tornar servos
da sensualidade, a exemplo daqueles que dedicam-se a imaginar as delícias para
depois percorrer todos os confins da terra e dos mares para pagar uma espécie de
tributo a um mestre deplorável e imperioso. Os que assim agem são miseráveis a si
mesmos, e são tão atormentados nesta vida quanto os ímpios que estão no inferno,
condenados a cortar a chama com uma espada ou a levar água num crivo para
encher um barril furado, sem jamais ver o fim de suas penas.25 Segundo Diógenes,
ter um cuidado excessivo com a cabeleira e com as roupas é uma desgraça ou até
mesmo um crime.26 Sim, ser entusiasta dos adornos é tão vergonhoso quanto ser
indecoroso ou adúltero. Ademais, o que importa a um homem de bom senso estar
revestido por roupas suntuosas, ou não mais do que simples vestes, desde que elas
garantam proteção às intempéries das estações? É preciso evitar o supérfluo, e
trabalhar o corpo apenas no que interesse à alma. Um homem verdadeiramente
digno deste nome deve se envergonhar quando se preocupa em demasia com a
cabeleira e o corpo, na medida em que abandona-se livremente a todos os outros
vícios, dedicando-se diligentemente ao bem-estar do corpo, sem se conhecer a si
mesmo, sem compreender o sábio axioma que nos diz que aquilo que se vê do
homem não é o homem de fato: é-nos preciso uma sabedoria superior para
conhecer a nós mesmos, e tudo fica difícil quando o olho do entendimento não está
são, ainda mais difícil do que quando os olhos do corpo estão doentes para olhar ao
sol.
Ora, é preciso que purifiqueis vossas almas, para dizer o mínimo, ainda que
em poucas palavras, desprezando os prazeres dos sentidos, não alimentando os
olhos com espetáculos vãos que levam todos a se perder em ilusões, evitando, enfim,
coisas e pessoas que acendam o fogo da concupiscência, e também jamais admitindo
que, pelos ouvidos, entrem na alma os sons que a corrompem. Pois uma música
efeminada faz nascer os vícios dos mais vergonhosos e baixos. Devemos procurar
uma música mais útil, que nos inspire sentimentos virtuosos, tal como Davi, que
com sua harpa tocava divinamente as músicas sacras e fazia acalmar a fúria de Saul.
Dizem que um dia Pitágoras27 encontrou homens bêbados bastante animados,
vindos de um banquete onde se haviam entregado a copiosas libações, e pediu ao
músico que marchava à frente para mudar o tom e cantar somente no modo dórico.
Isso os acalmou de tal modo que jogaram suas coroas no chão e deram meia volta,
dirigindo-se para suas casas bastante confusos. Podem-se ver outros que se agitam
ao som de flautas como coribantes ou bacantes,28 tanto que há diferença entre uma
música honesta e uma música licenciosa. Devemos, então, evitar aquelas que
dominam os nossos dias, da mesma forma que se evitam os vícios mais vergonhosos.
Constrange-me ter de advertir que não se deve espalhar no ar fragrâncias de
todas as espécies apenas para agradar o olfato, e ainda menos esfregar essências no
corpo. O que dizer, então, dos prazeres do toque e do gosto, senão que aqueles que
os procuram são escravos que vivem como animais a satisfazer seus ventres e os
apetites dos mais grosseiros?
Em suma, é preciso desprezar o corpo se não quisermos nos afundar nas
volúpias, assim como se afunda no lamaçal. Seu cuidado não deve exceder além
daquilo que pode ser útil à sabedoria. É o que dizia Platão29 e está de acordo com o
que o Apóstolo Paulo nos advertiu sobre não satisfazer os desejos da carne [Cf. Rm
13,14], no temor de acender em nós os maus desejos. Os que têm cuidado excessivo
com o corpo e negligenciam, como não tendo valor, a alma, assemelham-se àqueles
que muito amam os instrumentos de uma arte, sem ao menos se dedicar à arte a
qual eles servem. É preciso o quanto antes castigar o corpo e domá-lo como a um
animal feroz. E a razão nos serve de freio para conter os movimentos tumultuosos
que se agitam na alma. Não deixemos as rédeas soltas, para que o espírito não seja
impulsionado pelas paixões, assim como um cocheiro é arrastado por cavalos
indóceis.
Lembremos das palavras de Pitágoras que, vendo um de seus discípulos
entregando-se à boa mesa e ganhando muito peso, disse-lhe: «Quando deixará de
preparar a si mesmo uma prisão tão severa?» Também de Platão, que sabia o
quanto o corpo pode prejudicar a alma: dizem ter ele escolhido propositalmente
um lugar insalubre para a sua Academia para podar os confortos do corpo,30 assim
como se poda uma videira quando ela tem folhas em excesso. Eu mesmo já ouvi um
médico dizer que o excesso de saúde é perigoso.
Seria então uma evidente loucura o cuidado excessivo do corpo, dado que esta
cautela prejudica tanto este quanto a alma. Se nos habituarmos a desprezar o corpo,
não seremos mais afetados pelas coisas humanas. Qual nos será a necessidade de
riquezas, se abdicarmos dos prazeres corporais? Não vejo qualquer uma, a menos
que se busque o prazer, como os dragões das fábulas, guardiões de tesouros
enterrados. Aqueles que têm aprendido a não mais ser escravos das paixões se
privarão de desonrar sua conduta e seus discursos com coisas vis e vergonhosas.
Tudo o que é supérfluo, seja nas areias da Lídia31 ou nos trabalhos das formigas que
carregam ouro,32 será cada vez mais desprezível aos olhos daqueles que passam a
sentir menos necessidades, pois deixarão de regrar o uso das coisas segundo os
prazeres. E quem quer que não siga esta regra é conduzido pelo vício ao precipício
sem que possa parar. Quanto mais tem, mas irá querer para satisfazer os desejos,
segundo a sentença de Sólon, filho de Execéstides, que disse: «Aos mortais não há
limites para o desejo de riqueza.»33 Teógnis também pode nos servir de mestre:
«Não amo nem desejo as riquezas, contento-me apenas com uma vida isenta de
dor.» Não posso deixar de admirar Diógenes por ter desprezado todas as coisas
humanas, dizendo que era mais rico do que o grande rei,34 afinal para viver
necessitava de menos coisas do que ele. Porém, a nós não bastam todos os ouros,
todas as terras e todo o rebanho de Pítio Mísio;35 ainda que tivéssemos tudo isso,
não nos seria suficiente. Todavia, sou da opinião de que não se devem desejar as
riquezas que não se têm, mas quando se tem alguma, que se saiba usar bem aquilo
que se possui, seguindo as palavras de Sócrates que dizia admirar mais um homem
que sabia usar bem suas riquezas do que um que apenas se envaidece por tê-las.36
Se Fídias e Policleto37 mostrassem-se orgulhosos do ouro e do marfim usados
na estátua de Júpiter da cidade de Eléia, e de Juno na cidade de Argos, estariam, em
verdade, orgulhando-se das riquezas estrangeiras e desprezando a arte mesma que
deu valor a todo aquele ouro e marfim. E isso seria ridículo. Então, nós que cremos
que a virtude humana não é suficientemente ornamentada por ela mesma,
podemos nos imaginar livres de qualquer reprovação?
Mas não é suficiente desprezar as riquezas e os prazeres, se buscamos falsos
elogios e adulações, se imitamos a astúcia e as artimanhas de raposa de Arquíloco.38
Um homem sábio deve sempre evitar a glória vã e o desejo de agradar ao povo.
Tomando a razão como guia, deve permanecer no caminho reto a buscar o objetivo
que julgar melhor, sem desviar-se por conta das contradições dos homens, nem
pelos insultos, tampouco pelos perigos. O que não possui tais sentimentos é
semelhante àquele feiticeiro egípcio que se metamorfoseava em planta, besta, fogo,
água, ou qualquer outra forma que desejava.39 Da mesma forma, um farsante que
muda dependendo das circunstâncias e das pessoas com quem se relaciona: louvará
a justiça enquanto estiver com os justos, mas, língua dupla, mudará o discurso
quando estiver em meio aos escroques. Semelhante a um camaleão, muda de idéia
conforme a vontade dos seus pares.40
Embora pareça que eu tenha me desviado do assunto, tudo isso se pode
aprender nos nossos Livros Sagrados. Porém, a literatura profana nos ajuda a traçar
o primeiro esboço da virtude. Tudo aquilo que se pode reunir a partir de todos os
lados e parecer útil pode ser comparado a córregos que, com seus cursos de águas,
enchem um rio.
A máxima de Hesíodo, de que as riquezas se adquirem pouco a pouco, como
tesouros acumulados a partir de pequenas somas,41 servem também para as ciências.
Bias respondeu a seu filho, que partia para uma viagem ao Egito, ao perguntar-lhe o
que deveria fazer para mais agradá-lo: «Agradar-me-á se você acumular provisões
para a velhice.» Por provisões ele quis dizer virtude, que ocupa muito pouco
espaço, considerando a sua utilidade à vida humana. Em verdade, quando se conta
os anos de Titono,42 de Argantonio,43 ou mesmo os de Matusalém, que viveu quase
mil anos, ainda que se reúna todo o tempo que se passou desde que fora criado o
primeiro homem [Cf. Gn 5,27], poder-se-ia rir disso, como se faz com uma idéia
pueril, afinal se o comparamos com a duração da vida futura é impossível imaginar
o seu fim, pois o contrário seria supor que a alma pode acabar quando, na verdade,
ela é imortal. Então, aconselho-vos a fazer provisões para essa grande viagem, sem
nada negligenciar daquilo que nos ajudará a chegar a nossa verdadeira pátria. Se o
caminho oferece dificuldades e fadigas, não vos desencorajeis. Lembrai-vos que
procuramos escolher o melhor plano de vida, e confiamos que o hábito nos ajudará
a suportar todas as penas. E não percamos o presente, no qual somos mestres,
lamentando-se do passado, quando todos os lamentos são desnecessários e inúteis.
É preciso apenas se arrepender e prosseguir no caminho da virtude.44
Neste tratado estão algumas verdades que acredito serem muito úteis, das
quais sempre se poderá colher ainda mais frutos. Não deixarei de vos oferecer
outras à medida que o momento se apresente. Agora, como as enfermidades são de
três tipos, de acordo com o grau de sua doença, colocai-vos em guarda contra as do
terceiro tipo, ou seja, as mais incuráveis, que são as doenças da alma. Algumas
pessoas são atacadas por males corporais que, quando não muito graves,
encontrarão por si o remédio; outras, mais graves, levam as pessoas indispostas à
procura de um médico e, dependendo da gravidade, é o médico que vem visitá-las.
Porém, há quem seja atacado por uma espécie de melancolia sombria na alma,
recusando-se a se tratar. Temei ser como estes, rejeitando os sábios conselhos.

25Segundo a fábula grega, esta foi a pena imposta às filhas de Dânao, rei de Argos, que tinham
assassinado seus maridos e por isso foram enviadas ao Hades, condenadas a carregar água e
despejá-la num tonel sem fundo (Apolodoro II. 1.5) – NT.
26Diógenes, o Cínico; esta mesma frase a ele é atribuída por Diógenes Laércio [em A vida dos
filósofos mais ilustres].
27Cícero narra mais ou menos o mesmo fato com o mesmo Pitágoras.

28Coribantes,sacerdotes de Cibele, celebravam as festas dessa deusa batendo tambores, pulando,


dançando e correndo para todos os lados como dementes. E sabe-se com quais loucuras as
mulheres, chamadas bacantes, celebravam as festas de Baco.
29Diálogos de Platão: Fédon (67a): «E enquanto vivermos, não nos aproximaremos da verdade
enquanto não nos afastarmos do corpo; renunciemos a qualquer comunicação com ele naquilo
que não seja estritamente necessário; não permitamos que ele nos ocupe de sua corrupção natural,
mas conservemo-nos puros de suas manchas, até que a própria divindade venha nos libertar.» –
NT.
30Porfíriorelata, no terceiro século a.C., que «Platão escolheu a Academia para viver, um lugar
que não era somente solitário e isolado da cidade, mas também, segundo dizem, nada saudável»
(Sobre a abstinência, livro I, 36); alguns autores contestam dizendo que nem Diógenes Laércio
nem Plutarco fizeram comentários a respeito. – NT
31As douradas areias Rio Pactolo, na Lídia, atual Turquia. Segundo as antigas lendas gregas, foi
onde o Rei Midas se lavou para livrar-se da maldição que se havia tornado o seu dom de
transformar tudo o que tocasse em ouro. Entre os gregos, era um símbolo da ambição humana –
NT.
32Trata-se, sem dúvida, das formigas da Índia das quais fala Heródoto no seu livro terceiro das
Histórias: formigas tão grandes quanto as raposas, que escavam a terra como as outras, e que, para
fazer suas tocas, carregavam areia repleta de grãos de ouro.
33O verso citado no texto em grego se encontra em Teógnis, verso 227, com uma ligeira diferença.

34Por ‘grande rei’, os gregos referiam-se sempre ao rei da Pérsia.

35Parece
que esse Pítio é o mesmo que consta no sétimo livro das Histórias de Heródoto: «o
homem mais rico que já se viu». Mas, segundo o historiador, ele era oriundo da Lídia.
36Pareceser a discussão contida nos parágrafos 280-281 do diálogo Eutidemo de Platão sobre o
bom uso das riquezas. Já o Salmo 50(49) proclama: «O homem rico e sem inteligência é como um
animal que perece.» – NT.
37Os mais célebres escultores do período clássico da Grécia Antiga – NT.

38Arquíloco,
conhecido por suas poesias satíricas. Tinha composto fábulas nas quais a raposa
desempenhava o papel principal.
39Segundo Heródoto, tratava-se de um rei do Egito com esse poder de metamorfose. Na mitologia

grega foi chamado de Proteu, um deus marítimo que tomava diversas formas – NT.
40No original: «muda como um polvo»; Plutarco se serve dessa mesma comparação no seu
tratado contido nas suas Obras Morais: «Como Distinguir um Adulador de um Amigo» (53a).
Pareceu-me mais claro falar do camaleão – NT.
41Os trabalhos e os dias; v. 361-362, op. cit.: «Pois se um pouco sobre um pouco puseres / e
repetidamente o fizeres, logo grande ficará» – NT.
42Titono, filho de Laomedonte. Segundo a mitologia grega, era um modelo de beleza, tanto que
Aurora, deusa do amanhecer, por ele se apaixona e convence Zeus a lhe dar a imortalidade. Porém,
esquece-se de pedir que ele tenha também uma juventude eterna. Titono passa a envelhecer e
Aurora perde por ele o encanto. Já muito velho, por ela é preso num quarto escuro até que, por
fim, transforma-se numa cigarra – NT.
43Argantonio, o último rei dos Tartessos, apontada pelos gregos como a primeira civilização do
Ocidente. Segundo Heródoto, viveu 120 anos.
44A preocupação excessiva com o passado, lamentando-se constantemente, tende a insuflar-nos de
remorso, angustiando-nos cada vez mais, causando confusões e incertezas. Arrepender-se é nada
mais do que admitir os erros, confessar-se, pedir o perdão a Deus, e esforçar-se para não mais
cometê-los. Ensina-nos o Catecismo: «O movimento de regresso a Deus, pela conversão e
arrependimento, implica dor e aversão em relação aos pecados cometidos, e o propósito firme de
não tornar a pecar no futuro. Portanto, a conversão refere-se ao passado e ao futuro: alimenta-se
da esperança na misericórdia divina.» (CIC, 1490) – NT.
HOMILIA SOBRE O DESAPEGO
DAS COISAS MUNDANAS 1

Temia, meus irmãos, ao repreender-vos sempre com muita firmeza, tornar-me


um fardo a cada um de vós, assemelhando-me a um homem que fala com mais
liberdade do que convém a um estrangeiro, ou a alguém sujeito às mesmas
imperfeições. Mas as reprimendas que me permito dedicar-vos apenas reanima o
amor que tendes por mim. Os golpes dos meus discursos parecem acender ainda
mais o vosso ardor, e nisso não há nada de surpreendente. Sois sábios nas coisas
espirituais, e assim diz Salomão nos Provérbios: «Repreenda o sábio e ele vos
amará.» [Pr 9,8] Por isso, caríssimos, volto à mesma exortação, já tantas vezes
pronunciada, a fim de vos arrancar das garras do diabo, pois o inimigo da verdade
ataca-nos todos os dias e por todos os lados, tanto pela força quanto pelas
artimanhas das mais vis. Ele nos combate, como sabeis, pelos nossos próprios
desejos, servindo-se das nossas fraquezas para nos prejudicar. Porém, como o seu
poder está sujeito às leis indissolúveis estabelecidas pelo Senhor, não é permitido ao
espírito maligno destruir totalmente o gênero humano; desse modo, ele se vale das
nossas imprudências para nos impor sua vitória. E da mesma forma como os
malfeitores e os bandidos que enriquecem apropriando-se daquilo que pertencem
aos outros, estão acostumados, quando não podem vencer simplesmente pela força,
a armar emboscadas nas partes mais escuras e sombrias dos caminhos, escondendo-
se dos viajantes que são atacados de súbito, ainda antes que os possam perceber.
Nosso pior inimigo age da mesma forma: Satanás esconde-se nas sombras das
volúpias mundanas que, no caminho da vida, são próprias para ocultar suas
brigadas que nos cercam, a fim de se lançar sobre nós inesperadamente, plantando
em nossos pés as armadilhas da perdição.
Devemos, portanto, estar atentos se desejamos percorrer o caminho desta vida
em segurança, oferecendo a Jesus Cristo nossos corpos e nossas almas livres de
qualquer mácula, sem que sejam desfiguradas por qualquer ferida vergonhosa. É
necessário manter os olhos da alma bem abertos, suspeitando de todas as coisas que
possam nos seduzir e passando por elas rapidamente sem a elas se apegar, sem que
tomem conta dos nossos pensamentos e nossos desejos, ainda que as riquezas
estejam prontas a cair nas nossas mãos: «quando a vossa riqueza prospera, disse
Davi, não ponhais nela vosso coração!» [Sl 62(61),11] E mesmo que a terra nos
produza toda sorte de delícias e nos mostrem tendas suntuosas, lembremos daquilo
que nos disse São Paulo: «Nossa vida é no céu, donde esperamos o Senhor Jesus.»
[Fp 3,20] Mas ainda que passemos nossos dias em festins, banquetes, jogatinas,
danças ou concertos de músicas: «Vaidades das vaidades, diz o sábio, tudo não
passa de vaidade.» [Ecle 1,2] Às vezes, o pecado também pode a nós se apresentar
em belos corpos habitados por almas corrompidas: «Fuja do pecado como se foge
de uma serpente» [Eclo 21,2], diz o sábio; e também nos oferece principados,
poderes, tropas de criados que nos sirvam, comitivas de aduladores que nos
aplaudem, promessa de algum trono brilhante e elevado, pelo qual avassalam-se
voluntariamente nações e cidades: «Toda criatura é como a erva e toda a sua glória
como a flor dos campos!» [Is 40,6], disse o Profeta. Em verdade, debaixo de todas
essas enganações esconde-se o inimigo comum, esperando que, seduzidos pelas
coisas visíveis, nos desviemos do caminho reto, atraídos para sua emboscada. É
preciso temer que caiamos nas suas armadilhas, que sejamos persuadidos de que os
prazeres que a nós se apresentam não são de todo perigosos. Não engulamos o anzol
escondido numa isca e, em seguida, em parte por nossa vontade e em parte pela
violência da necessidade, sejamos acorrentados aos objetos sensíveis e, por fim, a
volúpia nos encerre na temível caverna do bandido, isto é, a morte. Desse modo,
meus irmãos, é útil e necessário a todos nós preparar-nos como os viajantes,
buscando de toda forma tornar nossas almas mais leves, apressando-nos, sem nos
desviar por um instante, pelo caminho reto que nos levará à salvação.
E que ninguém me acuse de inventar palavras novas, por chamar a vida do
homem de caminho. Pois o Profeta Davi assim o fez: «Felizes os íntegros em seu
caminho, os que andam conforme a vontade do Senhor!» Também ele, rogando ao
Senhor, disse: «Afasta-me do caminho da mentira, e dá-me a graça da tua vontade.
Escolhi o caminho da verdade e me conformo com as tuas normas.» [Sl 119 (118),
1 + 29-30] Para agradecer a Deus pela ajuda imediata contra os seus inimigos,
tocando sua harpa em tom de alegria, disse: «Há outro Deus além do nosso? Ele
me cinge de força, que tornou meu caminho puro e inocente.» [Sl 18 (17), 32-34]
Enfim, por toda a parte, sob o nome de caminho, designa-se a vida do homem, seja
ela virtuosa ou infame. Aqueles que empreendem uma longa viagem aumentam
seus passos, movendo os pés com muita rapidez e, sem parar, apressam-se para
chegar o quanto antes ao final de suas jornadas. Assim, todos aqueles que o Criador
trouxe para esta vida, imediatamente e desde o princípio, atravessam o tempo a
caminhar até que cheguem ao fim último de suas vidas. A vida presente não parece
uma longa rota contínua, distinta pelas diferentes épocas e estações? Entra-se nesta
rota no momento em que se deixa o ventre da mãe, e chega-se ao fim dela quando se
desce à sepultura, onde, invariavelmente, cedo ou tarde todos chegaremos. Pode-se
evitar, caso se queira, os caminhos que conduzem de uma cidade a outra. Porém, o
caminho da vida, ainda que se queira dilatar ou mesmo abreviar, terá o prazo
marcado pelo Senhor. Sim, meus irmãos, do momento em que entramos pela porta
que conduz a esta via, só nos resta absolutamente chegar ao seu fim. Cada um de
nós, a partir do momento em que deixou o seio materno, liga-se ao curso do tempo,
deixando sempre para trás cada dia vivido sem poder voltar ao dia que passou.
Alegramo-nos à medida que avançamos. Encantamo-nos quando
transportados de uma época a outra, como se adquiríssemos alguma vantagem.
Enchemo-nos de alegria ao passar da infância à idade adulta, até chegar à velhice.
Jamais paramos para pensar que cada dia vivido, na verdade, encurta a nossa vida;
parecemos não sentir que ela se dissipa a cada instante; enfim, não a medimos senão
pelo tempo que passou, sem dar atenção ao que é incerto, pois não sabemos qual a
quantidade de tempo que nos fora concedido para seguir nosso caminho, até que as
portas se abram a cada um de nós. Devemos, então, estar sempre preparados para
partir, e aguardar vigilantes o beneplácito do Senhor: «Tende os rins cingidos e as
lâmpadas acesas. Sede semelhantes aos que esperam seu senhor voltar das núpcias, a
fim de que, quando ele chegar e bater, seja-lhe logo aberta a porta. Felizes os servos
que o senhor à sua chegada encontrar vigilantes.» [Lc 12, 35-37]
Não examinamos com a devida atenção quais as cargas mais leves para essa
nossa viagem, ou seja, quais as coisas mais úteis a esta e também à outra vida.
Também somos negligentes no exame das cargas pesadas, ligadas a este mundo, que
devido à sua própria natureza não podem acompanhar seus donos quando esses
passarem pela porta estreita [Cf. Mt 7,13-14]. Na ignorância, abandonamos aquilo
que seria preciso colher, para colhermos aquilo que se deveria abandonar.
Acabamos por desconhecer as coisas que poderiam ser absorvidas, que poderiam
ornamentar a nossa alma e também o nosso corpo; porém, se desviarmos os olhos
para as coisas que nos servem apenas para nos cobrir com uma perpétua infâmia,
percebemos quanto esforço é feito para amontoá-las, esforço este que nos ocupa
com trabalhos inúteis, tal como aqueles que vivem de ilusões e dedicam-se a encher
um barril furado.2
Creio que até mesmo as crianças saibam que os objetos mais agradáveis desta
vida não têm donos, embora, curiosamente, são estes mesmos que os homens
buscam com tanta paixão.3 Tais objetos são alheios tanto àqueles que os apreciam
quanto àqueles que deles são absolutamente privados. Pois, ainda que haja alguns
que tenham acumulado muitas riquezas nesta vida, sabemos que não permanecerão
com elas para sempre. Por mais que as escondam, elas acabam, desaparecem, passam
a outras mãos. Quando não é assim, chega-se a hora da morte e é preciso abandoná-
las de forma definitiva. E, aos que ficam diante desta inevitável separação, restará
apenas passar os olhos nas suas riquezas, lembrar-se das duras penas vividas para
acumulá-las, e, por fim, considerar que passarão a outros, deixando apenas o
lamento de terem sido consumidos pelo trabalho a fim de enriquecer, além de
contaminados pelo crime da avareza. Quando um homem possui várias
propriedades, magníficos palácios, numerosos rebanhos de todas as espécies, enfim,
enquanto se está envolto por todo o poder humano, jamais se julgará vantajosa a
eternidade; mas isto é nada mais do que apegar-se a ilusões, pois podem ser
considerados ricos por algum tempo, mas não demorarão a ver todos os seus bens
cedidos a outros, tendo que se contentar apenas com alguns palmos de terra.
Muitas vezes, mesmo antes de serem encerrados no túmulo, verão toda sua
prosperidade passar a estranhos, quiçá a seus inimigos. Quantas heranças, quantos
palácios, cidades e nações não temos visto mudar de donos? Quantos escravos
temos visto tornarem-se senhores, reduzindo seus antigos mestres a meros
servidores? Ora, as coisas humanas não mudam subitamente de face tal como nos
jogos de azar?
Quantas coisas imaginamos para beber e comer, quantos e tantos
refinamentos que uma insolente riqueza inventou para satisfazer um ventre
ingrato, que jamais guarda aquilo que lhe é confiado? Enquanto ficamos
constantemente ocupados em lhe servir, teremos tempo para dedicar a nós
mesmos? As suculentas carnes e todas as bebidas, após terem agradado por um
breve momento o nosso gosto, deixando algum sabor no paladar, tornam-se
imediatamente supérfluas e inconvenientes: apressamo-nos a expeli-las, porque
colocariam a nossa vida em risco caso permanecessem nas nossas entranhas. Em
verdade, a intemperança tem causado a morte de um grande número de homens,
ou, pelo menos, tem sido incapaz de garantir qualquer coisa boa para o futuro.
Os comércios vergonhosos, as indecências e imoralidades, todos os excessos
aos quais nos levam às raias da concupiscência, não causam, de fato, um dano
manifesto à nossa natureza? Não mudam nosso temperamento, consumindo nossas
forças? Depois de ter saciado desejos infames, quando o crime consumado diminui
a paixão, e a alma volta-se a si mesma depois da embriaguez, na calma ela reflete
sobre o abismo onde se meteu, arrependendo-se de seus excessos, porque sente que
o corpo está abatido e fraco, incapaz de cumprir suas funções habituais. Eis porque
os treinadores prescrevem leis severas aos jovens atletas, protegendo seus corpos da
volúpia, não lhes permitindo sequer olhar aos rostos das belas mulheres, se
desejosos tiverem de coroar suas cabeças e sagrarem-se campeões, visto que, sem
dúvida, os excessos não os levarão à vitória, pelo contrário, farão com que sejam
expostos tão somente ao ridículo.
Devemos, portanto, abandonar e mesmo evitar dirigir os olhos a todas essas
coisas vãs que só servem para nos corromper. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
devemos nos ocupar e dedicar toda a nossa atenção a tudo aquilo que para nós é
verdadeiro. E, se vos perguntarem o que é verdadeiro para nós, respondei-lhes sem
hesitar: é a alma que nos dá a vida, o ser espiritual, inteligente, que não necessita de
nenhuma dessas coisas que a sobrecarrega; e o corpo que à alma foi dado pelo nosso
Criador como um veículo para esta vida. Eis, então, o homem: uma alma unida a
um corpo feito exclusivamente para ela. É assim que o sapientíssimo Criador do
universo o forma no seio maternal e, então, chegado o tempo do nascimento, dá-se
à luz este homem, constituído para reinar sobre a natureza, submetendo as criaturas
para o exercício de sua virtude [Cf. Gn 1,28]. Desse modo, é imposta a lei para
imitar seu Criador, tanto quanto possível, e representar na terra a vida celeste.
Assim é para quem deixa este mundo e é chamado ao outro; e o homem apresenta-
se no tribunal do Deus que o enviou para prestar contas e onde cada um receberá a
retribuição segundo suas obras. O empenho na prática da virtude nos torna mais
puros e espontâneos, pois está de acordo com a nossa própria natureza.4 As virtudes
são nossas fiéis companheiras que nunca nos abandonam nem nos desamparam,
ainda que passemos por dificuldades nesta dura vida, desde que, regrando nossas
vontades, não deixemos que os vícios nos sejam introduzidos. As virtudes,
portanto, nos servem de guias para nos conduzir à vida eterna, colocando aqueles
que as possuem entre os anjos, resplandecendo por toda a eternidade aos olhos de
Deus [Cf. Jó 34,11 + Pr 24,12 + Eclo 16,13 + Is 59,18 + Rm 2,6 + Hb 11,6 + 1Pd
1,17 + Ap 22,12].
Quanto às riquezas, os poderes, as glórias e as delícias, enfim, todos esses luxos
que a cada dia aumentam nossa insensatez, não entrarão conosco na vida eterna;
ninguém jamais as levará consigo, conforme outrora disse um justo: «Nu saí do
ventre de minha mãe e nu para lá voltarei.» [Jó 1,21]
Aquele que é sábio cuidará muito bem da sua alma e jamais negligenciará
qualquer meio de conservá-la pura e intacta: por mais que o corpo sofra a fome ou a
sede, o frio ou o calor, que seja atacado por enfermidades ou qualquer outro mal,
nada o incomodará, pois dentre todos os males que possam acometê-lo, terá sempre
em conta as palavras do Apóstolo: «[...] Não nos deixamos abater. Pelo contrário,
embora em nós, o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem
interior se renova dia a dia.» [Cf. 2Cor 4,16] Em vista dos perigos que ameaçam
nossa vida, o sábio não temerá, proclamando com confiança: «Sabemos que, se a
nossa morada terrestre for destruída, Deus nos dará no céu um edifício, uma
morada eterna, que não será feita por mãos humanas.» [2Cor 5,1] E ainda que se
queira tratar o corpo como o único bem necessário à alma, como um instrumento
imprescindível para viver na terra, será preciso apenas preocupar-se com
necessidades básicas para conservá-lo saudável a ponto de permitir-lhe servir à alma,
evitando sempre os excessos que o tornem insolente. E, percebendo sua inclinação
aos desejos imoderados e prejudiciais, prescrevemos o preceito de São Paulo: «Nós
nada trouxemos para o mundo, nem coisa alguma dele podemos levar. Se temos,
portanto, alimento e vestuário, devemos estar contentes com isso.» [1Tm 6,7-8]
Decerto, repetindo incessantemente essas palavras a nosso corpo, torná-lo-emos
mais dócil, mais leve para a viagem que nos levará ao céu, servindo de maior ajuda
para o desempenho daquelas funções mais convenientes à nossa salvação. Caso
contrário, se permitindo a insolência, permitindo que o corpo se torne obstinado e
rebelde como um animal selvagem, que, como um pesado fardo, nos atraia de forma
violenta para a terra, permaneceremos prostrados e gemendo em vão. E, quando
nos apresentarmos diante de Deus, quando Ele nos perguntar sobre os frutos da
nossa viagem, por Ele concedida, nada poderemos apresentar, senão enormes
lamentos, já que habitaremos as trevas eternas, acusando os prazeres e as delícias
que nos seduziram por nos terem roubado o nosso tempo de salvação. Nossas
lágrimas já serão em vão. «Quem vos glorificará no inferno?» [Sl 6(7),6], diz Davi.
Portanto, tenhamos muita cautela para não sermos sufocados pelas vontades
que podem nos levar à perdição. Se alguém, deslumbrado com o brilho das riquezas
amontoadas injustamente, ou que tenha sujeitado sua alma às inquietudes de
natureza infame e lasciva, cuja mancha não é fácil de apagar, ou ainda que tenha
caído em outros crimes; que a todos eles renunciem enquanto há tempo, livrando-
se dos fardos funestos, antes que seja tarde e já se esteja irremediavelmente perdido.
Que descarregue o navio antes de ser engolido pelas ondas, lançando ao mar essas
mercadorias que sequer nos pertence. Imitemos os marinheiros que, tendo suas
embarcações carregadas, mas ameaçados por uma violenta tempestade, privam-se
de uma grande parte da carga a fim de evitar que as ondas possam submergir o
navio, e então, o quanto antes e sem vacilar, lançam ao mar o que podem, tornando
a embarcação mais leve para se sustentar sobre as ondas, garantindo, desta forma, a
salvação dos homens embarcados. Eis como todos devemos agir! E a nós é ainda
mais conveniente, pois eles, quando desfazem de suas mercadorias, tornam-se mais
pobres para não perderem a vida; já nós, quanto mais nos livramos das cargas
perniciosas, mais enriqueceremos nossas almas. Pois ao descarregar nossos pecados,
eles deixam de existir, desaparecem diante de nossas lágrimas, substituídos, graça de
Deus, pela santidade e pela justiça, que são leves demais para que sejam submersas
pelas ondas.
Quanto às nossas riquezas, se delas abrirmos mão, longe de serem perdidas,
passam para navios mais seguros, isto é, aos mais necessitados. Então, chegam com
segurança ao porto de destino onde serão guardadas, tornando-se para nós motivos
de glória.
Em vista disso, meus irmãos, tomemos a humanidade para nós. Se queremos
que nossas riquezas nos sejam proveitosas, devemos fazê-las chegar a muitos outros
que as receberão com alegria, e que as depositarão no seio do Senhor, em cofres
invioláveis onde «não há traças nem ferrugem que as corroam, nem ladrões que
furtam ou roubam» [Mt 6,20]. Façamos que nossos bens se estendam aos mais
necessitados; não desviemos os olhos aos Lázaros de nossos dias, não lhes neguemos
as migalhas que caem de nossas mesas, que são suficientes para saciá-los [Cf. Lc
16,20]. Não imitemos a crueldade do rico mau, para que não sejamos condenados,
como ele, às chamas eternas. Pois ainda que imploremos o socorro de Abraão e de
todos os santos, será inútil, pois «se o irmão, diz Davi, não redime seu irmão, um
simples homem o redimirá?»5 Ora, não peçais a compaixão que não tivestes com os
outros! Não queirais receber as coisas boníssimas, quando recusastes repartir outras
menores. Desfrutai daquilo que acumulou durante a vida; chorai, então, já que não
tivestes compaixão de vosso irmão a quem vistes chorar: eis o que vos dirão, e com
muita justiça! Temo ainda que vos digam isso com palavras mais ásperas, pois
seríeis ainda mais culpados do que o rico mau. Não, não é para salvar nossas
riquezas que desprezamos nossos semelhantes estendidos no chão; não é para deixá-
las aos filhos ou parentes que tapamos os ouvidos às súplicas dos necessitados; no
entanto, é para as consumirmos em despesas infames, recompensando e
incentivando o mal, através de uma liberalidade perigosa, àqueles que ainda não se
dedicam a ele. Quantos, sejam homens ou mulheres, sentam-se ao redor de mesas
fartas dos ricos para se divertirem com palavras, olhares e gestos obscenos que lhes
acendam o fogo da luxúria? Uns fazem provocações picantes, a fim de provocar o
riso naqueles que os convidaram; outros os enganam com falsos elogios. Um
magnífico banquete, vantajoso não apenas pelas coisas que lá os convidados possam
consumir, mas também pelos ricos presentes que trazem consigo. Assim, acabamos
por achar melhor bajular os ricos do que praticar a virtude. E, se um pobre aparece à
nossa vista, mal nos podendo falar por estar abatido pela fome, temos horror,
embora ele compartilhe da nossa natureza. Enfim, ele nos causa desgosto e por ele
passamos apressados, como se sua miséria fosse contagiosa. Se a vergonha do seu
estado miserável o faz baixar a cabeça, acanhado talvez de pedir e manifestar sua
miséria, então chamamo-lo de hipócrita! E, se agir com liberdade e confiança,
estimulado mesmo pela violência da fome que sente, temo-lo por insolente,
atrevido, desavergonhado. Se estiver ainda coberto com boas roupas, a ele dadas por
alguma alma caridosa, será tomado como um avarento que dissimula pobreza e
necessidade. Mas se, ao contrário, vestir-se com andrajos, dele nos afastamos ainda
mais por causa do mau cheiro que exala. Então, ainda que suplique em nome de
Deus, seria em vão; de nada adiantaria implorar ao céu para que nós os livrássemos
de tais infortúnios, pois ele não pode dobrar nossa alma impiedosa. Isso é o que me
faz temer que venhamos a ser precipitados nas chamas devoradoras tal como o rico
mau.
Se o tempo me permitisse, e se tivesse talento para tanto, explicar-vos-ia toda a
história do rico do Evangelho, segundo ensina a Tradição. Mas é tempo de liberar-
vos, pois já vos cansei demais. Se por falha de minha memória a minha boca deixou
alguma coisa a dizer, complementai vós mesmos, e aplicai os remédios que julgais
mais adequados a vossas almas, pois as Escrituras nos ensinam: «Dá ao sábio e ele se
tornará ainda mais sábio; ensina ao justo e sua sabedoria aumentará.» [Pr 9,9] E
São Paulo ainda nos diz: «Poderoso é Deus para encher-vos com toda a graça, para
que tendo sempre e em todas as coisas o necessário, tenhais ainda de sobra para
todas as boas obras.» [2Cor 9,8]
Mas, para encerrar este discurso, alguns de nossos irmãos me encorajam a falar
do milagre que Nosso Senhor nos fez ontem. De fato, não poderia passar em
silêncio frente à vitória que Ele impôs ao demônio, uma ocasião para o regozijo,
para cantar os hinos de alegria e glórias ao Senhor.
O demônio novamente fez sentir os efeitos de seu ódio e, armando-se do fogo,
atacou o seio da Igreja. Novamente, essa nossa Mãe comum venceu. Desta vez
voltou contra o inimigo as suas próprias armas, visto que ele não lhe dava outra
vantagem além de demonstrar o ódio que lhe consome. Mas um vento contrário
conteve a violência impetuosa do nosso inimigo, e o templo nada sofreu. A
tempestade levantada pelo espírito maligno sequer pôde mover a pedra sobre a qual
Jesus Cristo edificou a morada de seu rebanho. Aquele que outrora extinguiu as
chamas da fornalha da Babilônia veio em nosso socorro. [Cf. Dn 3,1-30] Quanto
não deve gemer o demônio ao ver que todos os seus esforços restam inúteis? Este
inimigo irreconciliável fez acender o fogo perto da igreja e as violentas chamas
espalharam-se por toda parte, devorando tudo o que a sua ira alcançava, e não teria
poupado a casa sagrada, fazendo-nos participantes dessa calamidade. Porém, o
Salvador rebateu o fogo sobre aquele que o havia acendido, que recebeu a paga
merecida pela sua loucura. Esse cruel adversário, o demônio, já havia esticado o
arco, mas fora impedido de lançar suas flechas. Ou, melhor dizendo: disparou o
arco, mas as flechas se voltaram contra a sua própria cabeça, fazendo ele mesmo
experimentar as lágrimas amargas que tinha preparado a nós.
Além disso, nós mesmos podemos agravar suas feridas, redobrando a sua
aflição. Digo-vos como fazê-lo, caríssimos.
Alguns, pela graça de Deus, foram poupados da violência do fogo, mas tiveram
salvas apenas suas vidas, nada mais lhes restou! Nós, que não fomos atingidos pela
desgraça, devemos partilhar com eles nossos bens; devemos abraçar nossos irmãos
que, pela graça, tiveram suas vidas preservadas, mas agora se encontram
necessitados. Digamos a cada um deles: «Este teu irmão estava morto, mas já
voltou à vida; estava perdido e foi encontrado.» [Lc 15,30] Daremos, então, roupas
para nossos semelhantes vestirem; consolaremos aqueles que sofreram as desolações
do demônio, para que ninguém sinta os efeitos da sua malícia e nem pareça, ainda
que ele tenha conseguido impingir algum dano, que o mal tenha sido tão grande, e
que ele saiba que não triunfou nos seus ataques; que ele veja que, mesmo retirando
os bens dos nossos irmãos, foi derrotado pela nossa generosidade para com aqueles
que ele despojou.
A vós, irmãos, que escaparam à morte, não vos afligis com o excesso de vossos
males, não vos deixeis abater pela desgraça, mas dissipai a tristeza que vos abateis,
fortalecei vossas almas com sentimentos generosos, pois vós triunfastes na
adversidade e, se não perderdes a coragem, estareis mais fortalecidos pela fé; saireis
mais brilhantes do fogo, tal como ouro puro, e assim confundireis o inimigo que
ficará no desespero por não ter movido uma lágrima, malgrado todos os males que
dedicou-vos com sua malícia.
Lembremos da paciência de Jó. Dizei a vós mesmos: «Nu saí do ventre de
minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor tirou: bendito seja o nome do
Senhor! Assim seja!» [Jo 1,21] Que vossos infortúnios não vos ponham a pensar
ou a dizer que não há a Providência que tudo governa neste mundo; tampouco
deveis culpar a conduta e os juízos do Senhor, mas lançai os olhos naquele fiel servo
de Deus, e beneficiai-vos dos seus conselhos. Considerai todos os combates a que
ele adentrou, dos quais ele saiu vitorioso, todos a que ele fora lançado pelo
demônio, sem lhe poder ferir mortalmente. O espírito maligno pode ter arrancado
todos os seus bens, e pensava arruiná-lo o quanto mais com notícias ainda mais
deploráveis. Enquanto um mensageiro anunciava uma desgraça, outro chegava
anunciando uma ainda maior. Os infortúnios se seguiam, como as ondas que se
empurram umas às outras. Mal tinha tempo para enxugar as lágrimas, chegava a ele
uma notícia que o fazia chorar. Semelhante a uma rocha onde batem as ondas, o
justo permaneceu inabalável, e enviou ao Senhor aquelas palavras cheias de
reconhecimento: «Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o
Senhor tirou: bendito seja o nome do Senhor! Assim seja!» Nenhuma das suas
desgraças pareceu-lhe digna de suas lágrimas. Somente quando lhe vieram anunciar
que uma tempestade havia destruído a casa onde seus filhos festejavam, e que todos
tinham sido esmagados pelos escombros, ele rasgou suas vestes, manifestando, de
modo natural e compassivo, que era um pai que amava os seus filhos. Mas ainda que
este golpe final o tenha atingido violentamente, teve forças para proferir as
palavras: «Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei. O Senhor deu, o Senhor
tirou: bendito seja o nome do Senhor! Assim seja!» Ele parecia dizer: fui chamado
pai por todo o tempo que agradou Aquele que me tornou pai. Ele quis me tirar a
coroa da paternidade; não me oponho a que Ele retome aquilo que é seu. Ele é o
Criador da raça humana, a quem todos nós devemos obediência. Quanto a mim,
sou nada mais do que um instrumento e um servo; por que haveria de contrariar
suas ordens absolutas? Por que haveria de me queixar daquilo que não tenho o
poder de evitar? Então, com essas palavras, como se fossem flechas, o justo venceu o
demônio. E quando este nosso inimigo percebeu que Jó não podia ser abalado por
algum desses males, e que havia sido por ele vencido, passou a atacá-lo de outra
maneira: cobriu todo o seu corpo com feridas terríveis e asquerosas, de onde saíam
vermes em abundância, derrubando-o do alto de sua nobreza para a mais vil
indigência. Mas todas essas calamidades não puderam abalar a convicção de Jó:
ainda que seu corpo fosse dilacerado, guardava, no fundo de sua alma, o tesouro de
sua piedade, alheio a toda sorte de ataques.
O demônio, já não sabendo mais o que fazer, lembra-se de seu mais conhecido
estratagema: inspira na mulher de Jó os pensamentos mais ímpios. Trazendo-a para
blasfemar contra Deus, serviu-se dela para tentar minar as forças de um guerreiro
invencível. Vencida, e cedendo às tentações, apresentou-se ao seu esposo,
prostrando-se em terra, levando as mãos à cabeça diante de seu estado miserável, e o
fez lembrar a antiga prosperidade em contraste aos infortúnios presentes.
Apresentou um retrato dessas tristes mudanças e perguntou-lhe qual recompensa
havia recebido do Senhor por toda entrega e sacrifícios. Enfim, ela lhe dirige um
discurso digno de uma mulher frágil, capaz de perturbar os homens e demovê-los
de sua coragem. «Vagueio agora, ela disse, como uma escrava, havendo sido antes
uma rainha. Dependo da vontade de meus criados, estou abandonada a seus
cuidados e generosidade, eu que era suficientemente rica para alimentar uma
multidão. Seria preferível – continuou – arrancar-te a vida a lamentar ao Senhor!
Antes aguçar a sua ira pelas blasfêmias do que prolongar, com tua paciência, as
penas desse combate a ti mesmo e à tua esposa.» Tais palavras ofenderam
profundamente a Jó, ainda mais do que todos os males que houvera sofrido. Então,
com seus olhos cheios de indignação, voltou-se para a sua mulher como se ela fosse
um inimigo: «Por que falas como uma insensata? Não prossiga com semelhantes
conselhos! Até quando, com essas palavras, ultrajarás nossa vida em comum? Tua
insensatez recai sobre mim e me cobre de vergonha, pois vejo-me partícipe das tuas
impiedades, já que o casamento fez de nós um só corpo. Tu caíste nas blasfêmias; ‘se
recebemos os bens das mãos do Senhor, por que não haveríamos de aceitar os
males?’6 Lembra da prosperidade da qual desfrutaste. Compensa as infelicidades de
agora com as felicidades de então. Existe algum homem que seja constantemente
afortunado? Somente em Deus a felicidade é inalterada. Se tuas desgraças presentes
te causam aflição, consola-te com as vantagens que tiveste no passado. Agora
choras, mas antes rias; agora és pobre, mas já foste rica; com prazer bebeste outrora
de fonte límpida: tem coragem e sofre agora com paciência ao beber água turva e
barrenta. As correntes de um rio não são sempre claras e puras, e nossa vida
assemelha-se a um rio que corre sem interrupção, sempre cheio de ondas que se
sucedem. Uma parte dessas ondas já passou, outras ainda estão por vir; e todos
caminhamos rapidamente para o mar comum da morte. ‘Se recebemos os bens das
mãos do Senhor, por que não haveríamos de aceitar os males?’ Por acaso obrigamos
o Soberano Juiz a nos dispensar sempre de igual forma as felicidades? Por acaso
conosco aprenderá o Senhor como governar o curso de nossas vidas? Ora, n’Ele
estão os desígnios; n’Ele estão as leis que regem nossas coisas, pois Ele é
infinitamente sábio, Ele é a Verdade! Somente Ele sabe o que é útil aos seus servos.
Não queiras esquadrinhar os juízos do Senhor; submete-te às disposições de sua
sabedoria. Recebe com alegria tudo aquilo que Ele a ti envia. Mostra, nas aflições,
que és digna da prosperidade e da alegria que outrora tiveste.» E foi assim que Jó
respondeu ao último ataque do demônio e, com uma nova vitória, cobriu-lhe de
opróbrio.
E o que aconteceu em seguida? Curou-se a doença que havia sido inútil para
abalar a obstinação do fiel servo Jó. Seu corpo, então, floresceu com toda a saúde, e
as suas riquezas dobraram em sua casa, uma parte para restabelecer suas perdas, e
outra para recompensar a paciência deste homem justo. Mas por que recebeu em
dobro seus cavalos, suas mulas, seus camelos, suas ovelhas, suas terras, enfim, todas
as suas riquezas, enquanto que, em relação aos filhos, recebeu exatamente os nove
que havia perdido? É porque todos os seus rebanhos e riquezas passageiras haviam
sido perdidas inteiramente, mas seus filhos ainda viviam na melhor parte de si
mesmos. Assim, recebendo do Criador outros filhos e filhas, também dobrou esta
riqueza perene. Uns que viviam, faziam a alegria da vida seus pais; os outros, isto é,
os que haviam morrido, esperavam seu pai quando o Juiz dos vivos e dos mortos
reunir toda a raça humana em seu tribunal. Quando as trombetas anunciarem a
presença do Rei Supremo, ecoando com maior força nos sepulcros, Ele pedirá o
depósito dos corpos. Então, aqueles que agora parecem mortos aparecerão tão
depressa quanto os vivos diante do Criador do Universo. Creio ter sido por isso
que, havendo o Senhor dobrado todas as riquezas de Jó, era o bastante dar-lhe
filhos em número igual aos que havia tido antes.
Percebeis quão grandes são as vantagens que o bem-aventurado Jó tirou de sua
paciência? Pois aqueles que dentre vós tiverem sofrido qualquer prejuízo causado
pelas chamas levantadas pelo demônio, sofram com paciência suas perdas. Que as
tristezas sejam atenuadas por pensamentos confortantes, como as palavras de Davi:
«Descarrega o teu fardo no Senhor, e Ele cuidará de ti. Ele jamais permitirá que o
justo venha a tropeçar». [Sl 55(54),23]
A Deus Nosso Senhor, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos
séculos. Assim seja!

1A fonte desta tradução é a edição Homélies Discours et Lettres de S. Basile le Grand, tradução de
Monsenhor L’Abbé Auger, vigário geral da diocese de Lescar, membro da Academia de Belas
Artes de Rouen, publicada em Lyon, Guyot-Librairie – Editeur, 1827.
2Como já vimos, segundo a fábula grega, esta foi a pena imposta às filhas de Dânao, rei de Argos,
que haviam assassinado seus maridos e por isso foram enviadas ao Hades, condenadas a carregar
água e despejá-la num tonel sem fundo (Apolodoro II. 1.5) – NT.
3Vale lembrar o que nosso Santo diz no seu discurso aos jovens, citando Teógnis de Mégara
(fragmento 316): «Porém, a virtude é o único bem que não nos pode ser tirado, é o único bem
que acompanha o homem na vida e também na morte. Decerto, tal era o sentimento de Sólon,
quando aos ricos disse: ‘Jamais trocaremos vossas riquezas pela virtude, porque esta em nós
permanece para sempre, ao passo que a propriedade dos bens materiais passa de um homem para
outro’.»; pp. 41,42 – NT.
4O fim último do homem é tomar parte no Supremo Bem, através da visão beatífica, isto é,
contemplar Deus na sua infinita bondade. Assim, o homem tem uma inclinação natural ao bem, e
o pecado é o desvio do caminho que conduz ao seu fim último, podendo levar à separação
definitiva do Supremo Bem, que é Deus, ou seja: a condenação eterna – NT.
5Sl 48,8. Na Vulgata: «frater non redimit, redimet homo non dabit Deo placationem suam».
Noutras versões: «O homem não pode comprar seu próprio resgate, nem pagar a Deus o preço de
si mesmo.» – NT.
6Jó2,10 – «Falas, respondeu-lhe ele, como uma insensata. Aceitamos a felicidade da mão de
Deus; não devemos também aceitar a infelicidade? Em tudo isso, Jó não pecou por palavras.»
HOMILIA SOBRE A HUMILDADE 1

Se o homem tivesse conservado a glória na qual Deus o criara, sua elevação


seria real e não imaginária. Ele seria glorificado pelo poder do Altíssimo, instruído
pela sua própria sabedoria. Dessa forma poderia desfrutar das bênçãos da vida
eterna. Mas, desde que renunciou à glória do Senhor, tem desejado de forma
ambiciosa uma outra que jamais poderia alcançar, pondo a perder aquela que está a
seu alcance. Agora, o seu único recurso, o único meio de curar sua doença e
restabelecer a dignidade perdida, é através dos sentimentos humildes. Isto não quer
dizer que se deva imaginar um mero aparato de glória em si mesmo, mas buscar
glorificar-se em Deus. Somente assim o homem corrigirá seus erros e curará sua
doença: apressando-se para voltar ao preceito divino do qual se afastou.
O demônio fez o homem apegar-se à esperança de uma falsa glória e não cessa
em atormentá-lo por esse mesmo motivo, empregando diversos artifícios para
surpreendê-lo: ele o deslumbra pelo brilho das riquezas, de modo que receba
aplausos e, ao mesmo tempo, desperte a inveja por aumentá-las. Contudo, as
riquezas, incapazes de levar à bem-aventurança, trazem consigo um perigo real para
aqueles que a ela se expõem. Acumulá-las pode inspirar a ganância e, portanto, já
não serve para a elevação do espírito. Constantemente, ela cega os homens, torna-os
insolentes, produzindo nas suas almas um efeito semelhante àquele da inflamação
do corpo. O corpo inchado e muito quente não é sinal de saúde, pelo contrário, é
um sinal de perigo de algo que pode causar a morte. O orgulho tem um efeito
bastante semelhante à alma.
Mas não é apenas pela riqueza que o homem se envaidece. Além da pompa da
qual ele se cerca e gosta de ostentar, das mesas suntuosas das quais pode se servir,
das vestimentas magníficas e das belas casas que constrói e decora – ou ainda do
grande número de servidores e da multidão de aduladores que traz consigo –, o
lugar que ocupa pode depender da aprovação e dos caprichos do povo, e isso pode
dar margem a uma arrogância sem limites. Se o povo lhe confere uma distinção,
nomeando-o a um desses cargos elevados, ele pensa estar acima do gênero humano;
imagina-se andando nas nuvens, desmerecendo os outros, levantando-se contra
aqueles a quem deve a sua nomeação. Insensato! Mal pode perceber que toda essa
glória que o reveste é ainda mais ligeira do que um sonho, que todos os aplausos que
recebe não são mais do que ilusões, pois tais glórias e tais aplausos são feitos e
destruídos pelos meros caprichos do povo. Assim se deu com o extravagante filho
de Salomão, ainda mais jovem de espírito do que de idade. Ameaçava tratar o povo
de forma mais dura ao invés de com ele ser mais amável e benevolente. [Cf. 1Rs 12]
Então, desta forma perdeu seu reino: por conta da mesma ameaça pela qual ele
esperava reinar com mais autoridade, assim também perdeu a dignidade que havia
herdado de seu pai.
A habilidade das mãos, a agilidade dos pés, os prazeres do corpo, que refletem
o triunfo das paixões e as amarras do tempo, enchem o homem de orgulho e
confiança, afastando-o da reflexão sobre toda criatura ser «como a erva e toda a sua
glória como a flor dos campos! A erva seca e a flor fenece». Assim eram os gigantes
orgulhosos e também o insensato Golias que estava a desafiar Deus. Ou ainda
Adonias que estava orgulhoso de sua beleza e Absalão que idolatrava sua longa
cabeleira. [Is 40,6-7 + Cf. Gn 6,4 Sb 14,6 + Cf. 1Sm 17 + Cf. 1Rs 1,5 + Cf. 2Sm
14,26]
E a sabedoria e a prudência, que de todos os bens humanos parecem ser os
maiores e mais sólidos, também podem inspirar o orgulho através de uma falsa
grandeza – e tanto a sabedoria quanto a prudência para nada servem quando
separadas da Sabedoria de Deus. As ciladas que o demônio prepara contra o
homem não o farão vencer. Com suas artimanhas ele amaldiçoa mais a si mesmo do
que aquele a quem ele deseja afastar de Deus. Ele está traindo a si mesmo; nutre,
cada vez mais, maiores sentimentos de revolta contra Deus, pois vê-se condenado a
uma morte eterna. Portanto, encontra-se apanhado na armadilha que havia
montado contra o Senhor: sacrificando-O na cruz onde Ele esperava ser
crucificado, e fazendo sofrer a morte que Ele desejava sofrer.
Mas se o príncipe deste mundo, este espírito invisível, este grande e primeiro
mestre da sabedoria mundana, se encontrou preso pelas suas próprias armadilhas, se
caiu por si mesmo na extrema loucura, o que diríamos de seus discípulos e
seguidores? Por mais hábeis que sejam, «jactando-se de possuir a sabedoria,
tornaram-se tolos» [Rm 1,22]. O Faraó que havia calculado, de forma muito hábil,
a perda do povo de Israel, jamais poderia prever o obstáculo que impossibilitaria
todos os seus objetivos: uma criança que deveria morrer em função das suas ordens,
criada secretamente em seu próprio palácio, destruiu o poder do soberano e de toda
a sua nação, salvando o povo de Israel. O homicida Abimelec, filho bastardo de
Gedeão, ordenou um massacre contra seus setenta irmãos, acreditando que assim
asseguraria o poder soberano [Cf. Jz 8-9]. Depois, voltou-se contra aqueles que o
ajudaram na carnificina, fazendo-os seus inimigos, e, por fim, veio a morrer por
uma pedra atirada por uma mulher em sua cabeça. Os judeus, segundo um
raciocínio que criam muito sábio, tomaram partido contra o Senhor, o que fora
desastroso a eles mesmos: «Se o deixamos assim, todos crerão nele e os romanos
virão, destruindo o nosso lugar santo e a nação.» [Jo 11,48] Com esta justificativa
resolveram, a fim de salvar sua nação, levar Jesus Cristo à morte. Assim eles se
perderam; assim foram expulsos da própria nação e privados de suas leis e sua
religião.
Poderia provar por mais uma infinidade de exemplos como a sensatez humana
pode se tornar enganosa, limitando a visão mais do que se imagina. Por mais
esclarecidos que estejamos, não devemos nos orgulhar nem da sabedoria nem de
alguma outra vantagem, mas seguir o sensato conselho da bem-aventurada Ana
[Cântico de Ana. Cf. 1Sm 2,1-10] e do profeta Jeremias: «Que o sábio não se glorie
de sua sabedoria, que o valente não se glorie de sua valentia, que o rico não se glorie
de sua riqueza!» [Jr 9,23]
Mas então de quê o homem pode se gloriar? Em quê ele é grande? «Mas,
aquele que quer gloriar-se, glorie-se disto: que ele tenha inteligência e me conheça,
porque eu sou o Senhor que pratico o amor, o direito e a justiça na terra» [Jr 9,24],
Deus o diz pela boca do mesmo profeta. A grandeza do homem, sua glória e sua
dignidade consistem em conhecer Aquele que é, de fato, glorioso!; unir-se a Ele,
buscando a glória no Senhor da glória. Diz-nos o Apóstolo: «Ora, é por ele que vós
sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça,
santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria,
glorie-se no Senhor.» [1Cor 1,30-31]
Portanto, a verdadeira e a perfeita maneira de nos gloriarmos em Deus é não
nos orgulharmos da nossa justiça, mas de reconhecer que por nós mesmos somos
privados da justiça verdadeira, e que não somos justificados senão pela fé em Jesus
Cristo. São Paulo se gloriou no desprezo de sua própria justiça, e foi nesta
disposição que ele procurou a glória que nasce da fé em Jesus Cristo, aquela que
vem de Deus pela fé, pela qual ele conheceu Nosso Senhor, pela qual ele conheceu a
virtude de sua Ressureição e a participação em seus sofrimentos.2 E, conforme
morria para si, esforçou-se a alcançar a bem-aventurança da ressurreição dos
mortos. [Cf. Fl 3,9 sq] Deste modo vem tombar toda a grandeza do orgulho, e já
não vos resta nada, ó homens, para que possais vos exaltar, dado que toda a vossa
glória e toda a vossa esperança consistem em mortificar tudo o que está em vós para
buscar a vida que vos une a Jesus Cristo. Vida esta que, desde o princípio, fora-nos
dada aqui na terra: vivemos somente pela bondade e pela graça de Deus. Sim, «pois
é Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade» [Fl 2,13].
Pelo seu Espírito, Deus nos revela a sabedoria que destinou para a nossa glória [Cf.
1Cor 2,7-10]. Deus nos dá a força para os trabalhos, como nos diz São Paulo:
«trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo»
[1Cor 15,10]. Deus afasta-nos dos perigos de qualquer esperança estritamente
humana:

Recebíamos em nós mesmos a nossa sentença de morte, para que a nossa


confiança já não se pudesse fundar em nós, mas em Deus, que ressuscita os
mortos. Foi Ele que nos libertou de tal morte e nos libertará; n’Ele
depositamos a esperança de que ainda nos libertará da morte. [2Cor 1,9-10]

Pergunto-vos, então: por que vos orgulhais das vantagens que possuís, ao invés
de render graças Àquele de quem tendes recebido todos esses dons? Ou, como
pergunta São Paulo: «Pois quem te distingue? Que possuis que não tenhas
recebido?» [1Cor 4,7] Não conheceis a Deus por vossa própria virtude, mas
porque Deus quis vos conhecer. «Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor,
sendo conhecidos por Deus», não fostes, por vossas próprias virtudes, elevados ao
conhecimento de Jesus Cristo, mas o mesmo Jesus Cristo é quem a vós se
manifestou quando veio ao mundo. «Não que eu já o tenha alcançado ou que já
seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que também já fui alcançado
por Cristo Jesus» [Fp 3,12], diz o mesmo Apóstolo. E o Senhor mesmo proclama:
«Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu quem vos escolhi.» [Jo 15,16]
Seria, portanto, possível vos vangloriardes dessa honra que pela misericórdia vos
fora concedida?
Ora, se «tu estás firme pela fé; não te ensoberbeças, mas teme» [Rm 11,20],
pois o julgamento sucede a graça. E o Soberano Juiz vos fará prestar contas das
graças que recebestes; se não podeis compreender que recebestes uma graça e que,
por um excesso de presunção fizestes da graça um mérito, sabei: não sois mais
dignos aos olhos do Senhor do que São Pedro; não amaríeis o Senhor de forma
mais veemente do que esse Apóstolo, a ponto de querer morrer por Ele. Mas
mesmo São Pedro se permitiu dizer estas palavras presunçosas: «Ainda que todos
se escandalizem por tua causa, eu jamais me escandalizarei.» [Mt 26,33 sq] Assim,
foi abandonado à própria fraqueza e caiu na negação. Devido ao seu erro, aprendeu
a ser mais cauteloso e a regrar suas fraquezas e compreendeu perfeitamente que,
estando prestes a ser engolido pelas ondas, fora salvo pelas mãos de Jesus Cristo,
assim como, na tempestade do escândalo, fora salvo pelo poder do mesmo Jesus
Cristo que havia lhe prevenido daquilo que haveria de acontecer:

Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como
trigo; Eu porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando, porém,
te converteres, confirma teus irmãos. [Lc 22, 31-32]

Após repreender São Pedro, Jesus Cristo o fortificou na sabedoria, para que
ele pudesse reprimir todo o sentimento de vaidade e aprendesse a regrar as suas
fraquezas.
Lembrai-vos do fariseu soberbo da parábola, que se enchia de confiança em si
mesmo, e atacava abruptamente o publicano imprudente [Cf. Lc 18, 11-14]. Pelo
orgulho, perdeu a glória da justiça, ao passo que o publicano foi para casa
justificado porque glorificou ao Senhor quando sequer ousou olhar para o céu e,
com humildade, bateu no peito condenando a si. Que este exemplo de um grande
mal causado pelo orgulho vos seja instrutivo: o fariseu orgulhoso perdeu a justiça,
sua presunção o afastou da recompensa, foi colocado abaixo do pecador humilde
porque se exaltou, presumindo estar salvo antes do julgamento de Deus.
A vós, digo: não vos coloqueis acima de ninguém, nem mesmo acima dos
grandes pecadores. Muitas vezes a humildade salva aqueles que cometeram grandes
pecados. Jamais vos declareis justos a vós mesmos em prejuízo de um outro,
temendo que, justificados por vossos próprios julgamentos, não sereis condenados
pelo julgamento de Deus. Como disse São Paulo: «Não julgo a mim mesmo.
Verdade é que a minha consciência de nada me acusa, mas nem por isto estou
justificado; meu juiz é o Senhor.» [1Cor 4,3]
Enfim, quando crerdes ter feito uma boa ação, rendei graças a Deus sem vos
exaltar elevando-vos acima de vosso próximo. «Cada um examine a sua própria
conduta, e então terá de que se gloriar por si só e não por referência ao outro» [Gl
6,4], adverte São Paulo. Pois, que tenhais confessado a fé ou sofrido o exílio pelo
nome de Jesus Cristo, ou ainda sustentado austeros jejuns, qual a importância disso
chegar ao conhecimento do vosso próximo? Não é um outro que se beneficia, mas
vós! Temei, portanto, uma queda semelhante à do demônio, que pretendendo
elevar-se acima de tudo foi precipitado abaixo de todos. Do mesmo modo se deu a
queda dos israelitas: elevaram-se acima das nações que julgavam impuras, mas se
tornaram eles mesmos impuros, ao passo que as nações foram purificadas. Sua
justiça era como panos imundos,3 enquanto a iniquidade e a impiedade das nações
eram apagadas pela fé. Em suma, lembrai-vos da bela máxima dos Provérbios: «Se o
Senhor escarnece dos zombadores, Ele concede a graça aos humildes.» [Pr 3,34]
Tenhais sempre nos lábios esta palavra do Senhor: «Pois todo o que se exalta será
humilhado, e quem se humilha será exaltado.» [Mt 23,12 + Lc 14,11 + Lc 18,14]
Não sejais, então, juízes de vós mesmos; porque o fazeis com muita
benevolência, levando em conta o bem que credes pertencer-vos, e esquecendo tão
facilmente o mal; fácil é para vós aplaudir vossas boas ações de hoje, perdoando
vossas faltas de ontem. Então, quando o presente vos inspirar o orgulho, lembrai-
vos do passado, e vós restringireis a soberba. No caso de ver alguém próximo cair no
pecado, pensai em tudo o que ele fez e ainda faz de bom, e muitas vezes percebereis,
examinando com muito cuidado a vossa própria conduta, que essa pessoa é ainda
melhor do que vós. Deus não examina o homem em partes: «Eu virei, a fim de
reunir todas as nações e línguas» [Is 66,18], diz por seu profeta. Repreendendo
Josafá de um pecado que veio a cometer, não esqueceu de lembrar as suas boas
ações: «Todavia, foi encontrado em ti algo de bom.» [2Cr 19,3]
Repitamos, sem cessar, essas reflexões e outras semelhantes para combater o
orgulho, humilhando-nos para que sejamos exaltados, imitando o Senhor que
desceu do alto dos céus na mais profunda humildade e que, pela mesma humildade,
foi elevado à mais alta glória. Toda a sua vida é para nós uma lição de humildade:
nascido num estábulo, sem ao menos uma cama, criado por um simples artesão e
uma mãe pobre, submisso a seu pai e sua mãe, ouviu as instruções que Lhe deram,
ainda que não fosse necessário, e quando falava escutavam-n'O com admiração
devido a sua sabedoria. Pela própria vontade, submeteu-se ao Batismo pelas mãos
de João, ou seja, o Senhor foi batizado pelo servo. Jamais se opôs àqueles que se
levantaram contra Ele, e não os fez sentir seu poder infinito, como se suas forças
fossem superiores às deles. Enfim, ficou abandonado a uma autoridade passageira
todo o poder do qual ela é suscetível. Como um criminoso, foi posto diante dos
sacerdotes e do governador, sofrendo em silêncio as calúnias, mesmo podendo
facilmente confundir seus caluniadores. Depois de receber bofetadas e ter seu rosto
coberto de escarros por vis escravos, foi entregue à morte, e morte de cruz, a mais
infame dentre as dos homens. Tal foi sua vida mortal do começo ao fim. Após
tamanha humilhação, subiu aos céus numa admirável e gloriosa ascensão, da qual
fizeram parte aqueles que haviam compartilhado das suas humilhações. Entre esses,
os primeiros foram os bem-aventurados discípulos que, entregando-se a uma vida
errante, percorreram o mundo, atravessando terras e mares, pregando por toda
parte, onde foram atormentados, apedrejados, perseguidos e, enfim, condenados à
morte. Tais são os divinos exemplos que temos diante dos olhos. Esforcemo-nos
para imitá-los, a fim de que a humildade nos traga a eterna glória, o dom perfeito e
verdadeiro de Jesus Cristo.
Como, então, chegaremos a suprimir os movimentos tão prejudiciais do
orgulho? E como podemos aumentar os sentimentos tão vantajosos da humildade?
Essas coisas se darão quando passarmos a exercer continuamente a humildade, sem
negligenciar nada daquilo que nos pode causar um mal maior. A alma se modela,
por assim dizer, e toma tal ou qual forma de acordo com seus gostos e seus
costumes. Assim, que todo o vosso exterior, vossos hábitos, vossa diligência, vossa
alimentação, vossa habitação, vossa cama, vossa casa e toda a mobília que nela se
encontra sejam simples e modestas. Que vossas palavras, vossos cantos e vossas
conversas estejam livres de ostentações. Se falardes ou cantardes em público, não
demonstreis nem muito luxo nos vossos discursos nem muita condescendência na
vossa voz. Jamais entreis em disputas com orgulho e vaidade. Subtraí, de tudo,
aquilo que inspira grandeza e aparências. Sede corteses com vossos amigos, amáveis
com vossos servidores, pacientes com as pessoas violentas, humanos com os
humildes. Consolai os aflitos, visitai os que estão tristes, e não desprezeis pessoa
alguma. Falai a todos com doçura, respondei sempre de maneira agradável. Sede
educados e afáveis com todos: evitai falar favoravelmente de vós mesmos, e não
disponhais de outros para fazê-lo. Jamais vos permitais propósitos desonestos e
reconhecei sinceramente vossos pecados, a fim de imitar o justo que começa por
acusar-se a si mesmo [Cf. Pr 18,17]. E, para assemelhar-vos a Jó, que não temeria
dizer diante da multidão se alguma maldade tivesse cometido, que vossas
reprimendas não sejam nem muito bruscas, nem muito duras, e tampouco penosas,
pois isso anuncia a arrogância [Cf. Jó 31,34]. Não se deve condenar os outros por
pequenas falhas, como se fôssemos perfeitamente justos. Tratai com bondade
aqueles que caíram em qualquer pecado, ajudando-os a se levantar com doçura, da
forma como nos exorta o Apóstolo, refletindo sobre vossas próprias vidas e
temendo ser tentados da mesma forma que eles [Cf. 1Cor 4,14-21].
Guardai-vos para não serdes glorificados diante dos homens. Lembrai-vos das
palavras do Salvador sobre buscar a glória dos homens e fazer o bem apenas para
serdes vistos [Cf. Mt 6,2-5]. Quem assim agir perderá a recompensa que vem de
Deus. Portanto, não façais mal a vós mesmos querendo parecer justos aos olhos dos
homens [Cf. 1Pd 5,3]. Dado que Deus é a grande testemunha de nossas ações,
ambicionai a glória junto a Deus, que vos concederá uma magnífica recompensa
[Mt 20,25-28; 23,8]. Se estiverdes acima dos outros, se os homens vos glorificam e
vos honram, não vos diferencieis deles, tratai-os como iguais a vós mesmos, sem o
desejo de dominar a herança do Senhor [2Cor 1,24; 4,5], e sem tomar como
modelo os príncipes do século [1Ts 2,7]. O Senhor ordena àquele «que quiser ser o
primeiro, deve ser o servo de todos.» [Cf. Mc 10,44]
Para não mais me estender, digo em poucas palavras: praticai a humildade
como deve fazer um homem que a ama. Amai esta virtude e ela vos levará à glória.
Eis o meio de alcançar a verdadeira glória, que está na sociedade dos anjos, junto a
Deus. Jesus Cristo vos reconhecerá diante dos anjos como a seus discípulos, e vos
glorificará se vos tornardes imitadores de sua humildade [Cf. Lc 12,8]: «Tomai
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e
encontrarei descanso para vossas almas». [Mt 11,29]
A Deus Nosso Senhor, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos
séculos. Assim seja!

1A fonte desta tradução é a edição Homélies Discours et Lettres de S. Basile le Grand, tradução de
Monsenhor L’Abbé Auger, vigário geral da diocese de Lescar, membro da Academia de Belas
Artes de Rouen, publicada em Lyon, Guyot-Librairie –Editeur, 1827.
2Deus agiu no Apóstolo Paulo, fazendo-o instrumento de sua Glória. Cf. At 9,15-16 – NT.

3Is64,4-5 – [...] «Sim, tu te irritaste contra nós e, com efeito, nós pecamos, mas permaneceremos
para sempre em teus caminhos e assim seremos salvos. Todos nós éramos como pessoas impuras, e
nossas boas ações como pano imundo. Murchamos todos como pessoas impuras, e nossas
transgressões nos levam como vento.»
PÓSFACIO
AUDIÊNCIA GERAL DO PAPA BENTO XVI
(em 1 de agosto de 2007)

Queridos irmãos e irmãs!

Depois destas três semanas de pausa, retomamos os nossos habituais


encontros da quarta-feira. Hoje desejo simplesmente relacionar-me com a última
catequese, que tinha como tema a vida e os escritos de São Basílio, Bispo na atual
Turquia, na Ásia Menor, no IV século. A existência deste grande Santo e as suas
obras são ricas de temas de reflexão e de ensinamentos válidos também para nós
hoje.
Antes de tudo há a chamada ao mistério de Deus, que permanece a referência
mais significativa e vital para o homem. O Pai é «o princípio de tudo e a causa de
ser do que existe, a raiz dos vivos»,1 e sobretudo é «o Pai de nosso Senhor Jesus
Cristo».2 Remontando a Deus através das criaturas, nós «tomamos consciência da
sua bondade e da sua sabedoria».3 O Filho é a «imagem da bondade do Pai e sigilo
de forma igual a ele».4 Com a sua obediência e com a sua paixão o Verbo
encarnado realizou a missão de Redentor do homem.5
Por fim, ele fala amplamente do Espírito Santo, ao qual dedicou um livro
inteiro. Revela-nos que o Espírito anima a Igreja, enche-a dos seus dons, torna-a
santa. A luz maravilhosa do mistério divino reflete-se sobre o homem, imagem de
Deus, e eleva a sua dignidade. Olhando para Cristo, compreende-se plenamente a
dignidade do homem. Basílio exclama: «[Homem], conscientiza-te da tua
grandeza considerando o preço derramado por ti: olha para o preço do teu resgate,
e compreende a tua dignidade!»6 Em particular o cristão, vivendo em
conformidade com o Evangelho, reconhece que os homens são todos irmãos entre
si; que a vida é uma administração dos bens recebidos de Deus, pelos quais cada um
é responsável perante os outros, e quem é rico deve ser como um «executor das
ordens de Deus benfeitor».7 Todos nos devemos ajudar, e cooperar como os
membros de um corpo.8
E ele, nas suas homilias, usou também palavras corajosas, fortes sobre este
ponto. De fato, quem segundo o mandamento de Deus deseja amar o próximo
como a si mesmo «não deve possuir nada mais de quanto possui o seu próximo».9
Em tempos de carestias e de calamidades, com palavras apaixonadas o Santo
Bispo exortava os fiéis a «não se mostrarem mais cruéis que as feras, [...]
apropriando-se do que é comum, e possuindo sozinhos o que é de todos».10 O
pensamento profundo de Basílio sobressai bem nesta frase sugestiva: «Todos os
necessitados olham para as nossas mãos, como nós próprios olhamos para as de
Deus, quando estamos em necessidade.» É muito apropriado o elogio feito por
Gregório de Nazianzo, que depois da morte de Basílio disse: «Basílio persuadiu-
nos de que nós, sendo homens, não devemos desprezar os homens, nem ultrajar a
Cristo, cabeça comum de todos, com a nossa desumanidade para com os homens;
antes, nas desgraças dos outros, devemos beneficiar a nós próprios, e fazer
empréstimo a Deus da nossa misericórdia, porque temos necessidade de
misericórdia.»11 São palavras muito atuais. Vemos como São Basílio é realmente
um dos Padres da Doutrina Social da Igreja.
Além disso, Basílio recorda-nos que para manter vivo em nós o amor a Deus e
aos homens é necessária a Eucaristia, alimento adequado para os Batizados, capaz
de alimentar as novas energias derivantes do Batismo.12 É motivo de imensa alegria
poder participar na Eucaristia,13 instituída «para conservar incessantemente a
recordação daquele que morreu e ressuscitou por nós».14 A Eucaristia, imenso dom
de Deus, tutela em cada um de nós a recordação do selo batismal, e permite viver
em plenitude e fidelidade a graça do Batismo. Por isto o Santo Bispo recomenda a
comunhão freqüente, também quotidiana: «Comungar até todos os dias
recebendo o santo corpo e sangue de Cristo é bom e útil; porque ele mesmo diz
claramente: ‘Quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna’ [Jo
6, 54]. Portanto, quem duvidará de que comungar continuamente da vida não seja
viver em plenitude?»15 A Eucaristia, em síntese, nos é necessária para acolhermos
em nós a verdadeira vida, a vida eterna.16
Por fim, Basílio interessou-se naturalmente também daquela porção eleita do
povo de Deus que são os jovens, o futuro da sociedade. A eles dirigiu um discurso
sobre o modo de tirar proveito da cultura pagã desse tempo. Com muito equilíbrio
e abertura, ele reconhece que na literatura clássica, grega e latina, encontram-se
exemplos de virtude. Estes exemplos de vida reta podem ser úteis para o jovem
cristão em busca da verdade, do modo reto de viver.17 Por isso, é preciso tirar dos
textos dos autores clássicos tudo o que é conveniente e conforme com a verdade:
assim com atitude crítica e aberta de fato – trata-se de um verdadeiro e próprio
‘discernimento’ – os jovens crescem em liberdade. Com a célebre imagem das
abelhas, que tiram das flores apenas o que serve para o mel, Basílio recomenda:
«Como as abelhas sabem tirar das flores o mel, diferenciando-se dos outros
animais que se limitam a gozar do perfume e da cor das flores, assim também destes
escritos [...] se pode obter algum proveito para o espírito. Devemos utilizar estes
livros seguindo em tudo o exemplo das abelhas. Elas não vão indistintamente a
todas as flores, nem sequer procuram tirar tudo das flores nas quais pousam, mas
tiram só o que serve para a elaboração do mel, e deixam o resto. E nós, se formos
sábios, tiraremos daqueles escritos o que se adapta a nós, e é conforme à verdade, e
deixaremos o resto.»18 Basílio, sobretudo, recomenda aos jovens que cresçam nas
virtudes, no reto modo de viver: «Enquanto os outros bens [...] passam deste para
aquele como no jogo dos dados, só a virtude é um bem inalienável, e permanece
durante a vida e depois da morte.»19
Queridos irmãos e irmãs, parece-me que se pode dizer que este Padre de
outrora fala também a nós e nos diz coisas importantes. Antes de tudo, esta
participação atenta, crítica e criativa para a cultura de hoje. Depois, a
responsabilidade social: este é um tempo no qual, num mundo globalizado,
também os povos geograficamente distantes são realmente o nosso próximo.
Portanto, a amizade com Cristo, o Deus com rosto humano. E, por fim, o
conhecimento e o reconhecimento a Deus Criador, Pai de todos nós: só abertos a
este Deus, Pai comum, podemos construir um mundo justo e fraterno.
1 Hom. 15, 2 de fide: PG 31, 465c

2 Anaphora sancti Basilii

3 Basílio, Contra Eunomium 1, 14; PG 29, 544b

4 Cf. Anaphora sancti Basilii

5 Cf. Basílio, In Psalmum 48, 8: PG 29, 452ab; cf. também De Baptismo 1, 2: SC 357, 158

6 In Psalmum 48, 8: PG 29, 452b

7 Hom. 6 de avaritia: PG 32, 1181-1196

8 Ep 203, 3

9 Hom. in divites: PG 31, 281b

10 Hom. tempore famis: PG 31, 325a

11 Gregório de Nazianzo, Oratio 43, 63; PG 36, 580b

12 Cf. De Baptismo 1, 3: SC 357, 192

13 Moralia 21, 3: PG 31, 741a

14 Moralia 80, 22: PG 31, 869b

15 Ep. 93: PG 32, 484b

16 Cf. Moralia 21, 1: PG 31, 737c

17 Cf. Ad Adolescentes 3

18 Ad Adolescentes 4

19 Ad Adolescentes 5
«SENHOR, DEUS ETERNO, LUZ SEM COMEÇO NEM FIM, ARTISTA
DE TODA A CRIAÇÃO, FONTE DE PIEDADE, OCEANO DE BONDADE,
ABISMO INSONDÁVEL DE AMOR PELOS HOMENS, FAZEI BRILHAR
EM NÓS A LUZ DE VOSSA FACE. BRILHAI EM NOSSOS CORAÇÕES,
SOL DA JUSTIÇA, E ENCHEI NOSSAS ALMAS COM VOSSA ALEGRIA.»

Do livro: La prière des Églises de rite Byzantin


[A oração das Igrejas de rito Bizantino], vol. I,
Mercenier, Monastère de Chevetogne, 1948].

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