Carta Aos Jovens Sobre A Utilid - Sao Basilio
Carta Aos Jovens Sobre A Utilid - Sao Basilio
Carta Aos Jovens Sobre A Utilid - Sao Basilio
Monsenhor de Ségur
Autobiografia
São Gregório de Nazianzo
Próximos Lançamentos:
O Pedagogo
Clemente de Alexandria
SÃO BASÍLIO
A fonte desta tradução são as obras completas de São Basílio, organizadas e traduzidas do grego por Monsenhor
Joseph Planche, professor de retórica no colégio Royal de Bourbon: Esprit de Saint Basile, de Saint Grégoire de
Nazianze et de Saint Chrysostome, publicado pela Librairie de Gide Fils, Paris, 1824.
FICHA CATALOGRÁFICA
Basílio de Cesaréia
Carta aos jovens sobre a utilidade da literatura pagã / São Basílio; Tradução de Diogo Chiuso - Campinas, SP :
Ecclesiae, 2012.
Título Original: Discours aux jeunes gens sur l’utilité qu’ils peuvent retirer de la lecture des livres païens
ISBN 978-85-63160-22-5
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Apresentação da edição brasileira | Por Diogo Chiuso
Laudatório
Notícia histórica sobre São Basílio | Monsenhor Joseph Planche
Prefácio | Audiência Geral do Papa Bento XVI sobre São Basílio (primeira parte)
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Homilia sobre o desapego das coisas mundanas
Homilia sobre a humildade
Pósfacio | Audiência Geral do Papa Bento XVI sobre São Basílio (segunda parte)
APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA
Foram anexadas a esta edição duas homilias de São Basílio: Sobre o desapego
das coisas mundanas e Sobre a humildade. Ambas complementam o texto principal
no momento em que dão uma idéia mais detalhada da perspectiva a partir da qual o
nosso santo se dirigiu aos jovens da sua época.
Foi comum na Igreja Antiga, sobretudo entre os Padres Capadócios, usar os
recursos da literatura grega para pregar e defender a doutrina católica. Orígenes e
Clemente de Alexandria já haviam absorvido a tradição filosófica para demonstrar
os pontos de vista da Revelação Cristã. Era uma época em que o processo
interpretativo já não se fazia suficiente, em função das inúmeras questões
levantadas sobre os significados das narrativas bíblicas. Assim nasceu a filosofia
cristã, profundamente ligada a ensinamentos que visavam orientar os homens na
busca da verdade, combinando a demonstração fundada na Revelação Divina com a
argumentação racional acerca dela. Para tanto, usou-se, além dos métodos
filosóficos, a oratória e também os gêneros literários da tradição grega.
Mas a principal crítica quanto ao uso da literatura pagã na educação dos
jovens não era outra senão os ecos das interdições referentes aos livros que traziam
exemplos de imoralidades e que incentivavam o vício e a concupiscência – além do
perigo da entrega ao culto de alguns dos inúmeros deuses da mitologia grega.
Portanto, embora São Basílio tenha discursado considerando o valor dos
clássicos da literatura pagã, não menosprezava a importância de um certo cuidado
no emprego desses textos na educação literária dos jovens. Antes de tudo é preciso
reconhecer o que convém ou não descartar, e as regras para essa separação
assentam-se em dois princípios: o primeiro versa sobre a plena consciência da
imortalidade da alma. Isto implica que essa vida terrestre é passageira, um
preâmbulo, por assim dizer, daquela eterna que é a nossa condição natural. Mas
precisamos considerar que toda e qualquer vida necessita de aperfeiçoamento, e isto
se dá conforme vai se aproximando ao fim último, que para o Cristianismo é a visão
beatífica, ou seja, contemplar Deus na sua infinita bondade.
Na teologia, esse caminho virtuoso que leva a Deus é chamado ascética, e a sua
função é conduzir as almas à perfeição cristã, orientando as ações dos homens para
a prática da virtude sob a direção dos mandamentos e o impulso da graça.1 Desse
modo, o mais importante é perseverar no caminho da santidade, evitando, a todo
custo, entrar na vida eterna indo diretamente para um lugar infame e sombrio,
«onde o verme não morre e o fogo não se extingue» [Mt 9,48]. Decerto, um
assunto vastíssimo, abordado brevemente por São Basílio na homilia Sobre o
desapego das coisas mundanas – e que ajudará o leitor a melhor compreender o texto
principal.
O segundo princípio é uma característica própria da pedagogia católica:
preparar o homem para a vida eterna através do olhar voltado às coisas do alto,
deixá-lo se inspirar por exemplos virtuosos que exaltam a glória divina. Mas é
preciso levar sempre em conta o que nos ensina Santo Agostinho: «a verdadeira
virtude consiste em fazer uso dos bens e dos males e referir tudo ao fim último».2
Sendo o seu fim último a visão beatífica, o homem traz em si, pela graça de Deus,
uma inclinação natural ao bem. No entanto, é preciso considerá-lo na sua forma
integral, com todos os pecados que o fazem desviar do caminho. Desse modo,
nossas virtudes devem ser exercidas, ao passo que devemos nos pôr em guarda para
refrear os desejos pecaminosos.
E, com esse espírito humilde, saberemos julgar que nem tudo nos é possível.
Que somente através da graça podemos aspirar alguma ascensão. Lembremos que
por falta de modéstia alguém que um dia pretendeu chegar ao lugar mais alto
despencou e no inferno foi precipitado. Assim, a virtude pressupõe a humildade,
para que saibamos medir nossas próprias estaturas morais e intelectuais; para que
saibamos reconhecer a Verdade que a nós se apresenta. Somente dessa forma
podemos subir alguns degraus do conhecimento sem que nos seja inspirado o
orgulho, afinal não é dado a ninguém conhecer todas as coisas. E uma postura
soberba leva-nos diretamente à desonra, tal como nos alerta São Paulo: «jactando-
se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos» [Rm1,2]. Eis o motivo da homilia de
São Basílio sobre a humildade vigorar no segundo apêndice desta edição.
Em suma, a presente obra não pretende apenas ensinar o que podemos tirar de
útil das obras pagãs, mas também – e especialmente – indicar o caminho que leva a
uma vida virtuosa. São Basílio, então, nos convida a «fazer provisões para essa
grande viagem, sem nada negligenciar daquilo que nos ajudará a chegar a nossa
verdadeira pátria».3
DIOGO CHIUSO
Santos, São Paulo, abril de 2012.
*Para este trabalho, as citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de Jerusalém, Paulus, 3ª
reimpressão, 2004 – publicada com aprovação eclesiástica.
LAUDATÓRIO
Preciso dizer algo a respeito de vossa amável carta; não seria de bom tom
escondê-lo. Estava em casa um grande número de pessoas distintas pela posição que
ocupam no Estado. Entre elas, o ilustre Alípio, que é parente de Hierócles. Então,
na presença de todos, o mensageiro entregou-me a vossa carta. Após lê-la em voz
baixa, exclamei com um sorriso e um ar alegre: «Fui vencido!» – Em que fostes
vencido? – perguntaram-me. – E como vossa derrota nos aflige? – Respondi: «Fui
vencido na composição de cartas elegantes. Mas é Basílio o vencedor, e ele é meu
amigo, por isso vede-me contente ao ser vencido!» Essas palavras despertaram-lhes
o interesse em constatar minha derrota na vossa carta. Alípio a leu e os outros
ouviram; numa só voz expressaram-se de forma unânime: – Tens razão! –
Imediatamente o leitor saiu, sem dúvida, para mostrá-la a outras pessoas. E tive de
fazer todo o esforço do mundo para que ele ma devolvesse.
M. JOSEPH PLANCHE
Professor de retórica no colégio Royal de Bourbon, publicado em 1824.
1«Um dia, como despertando de um sonho profundo, eu me dirigi à admirável luz da verdade do
Evangelho [...], e chorei sobre minha miserável vida» (cf. São Basílio, Carta 223: PG 32, 824a) –
NT.
2A teoria conhecida como subordinacionismo, defendida por Ário, que, não entendendo a
consubstancialidade da Santíssima Trindade, acreditava estar defendendo o monoteísmo.
Portanto, Ário afirmava haver um só Deus, que se tornou Pai somente após criar o Filho, que,
portanto, junto com o Espírito Santo, seriam apenas criaturas. O Concílio de Nicéia (325)
condenou a doutrina herética de Ário, e reafirmou a consubstancialidade da Santíssima Trindade
no Credo: «Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de
todos os séculos. Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Gerado, mas não
feito, consubstancial ao Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas». Depois, acrescentou-se no
Concílio de Constantinopla (381): «Creio no Espírito Santo, que é Senhor e dá a Vida e procede do
Pai e do Filho. E com o Pai e o Filho é juntamente adorado e glorificado, e é o que falou pelos
Profetas» – NT.
3Concílio de Rimini (359-360), convocado pelo Imperador Constâncio II, tomou partido de
Ário, ainda que tentassem não evocar abertamente o seu nome, já condenado no Concílio de
Nicéia (325). Embora conste que reuniu mais bispos do que qualquer concílio até então,
subscreveu-se a um credo ambígüo que trazia muita confusão, o que se observou até o Concílio de
Constantinopla, que restabeleceu os cristãos nos lugares eminentes dos quais nunca deveriam ter
saído – NT.
4Em suma, o Concílio de Nicéia determinou que Jesus Cristo é Deus, condenando a doutrina de
Ário que dizia o contrário. Porém, tal doutrina perseverou entre alguns bispos que acrescentaram
a dúvida sobre a divindade do Espírito Santo, que só seria resolvida em 381, no Concílio de
Constantinopla – NT.
PREFÁCIO
AUDIÊNCIA GERAL DO PAPA BENTO XVI
(em 4 de junho de 2007)
3 Cf. Epp. 2 e 22
8 cf. Gregório de Nazianzo, Oratio 43, 48-51 in laudem Basilii: PG 36, 557c-561c
14Cf. Basílio, Ep. 9, 3: PG 32, 272a; Ep. 52, 1-3: PG 32, 392b-396a; Adv. Eunomium 1, 20: PG
29, 556c
15 Cf. De Spiritu Sancto: SC 17bis, 348
20 De Baptismo 1, 2, 9
«CONSCIENTIZA-TE DA TUA GRANDEZA CONSIDERANDO O PREÇO
DERRAMADO POR TI: OLHA PARA O PREÇO DO TEU RESGATE, E COMPREENDE
A TUA DIGNIDADE!»
Bons motivos me encorajam para dar-vos conselhos que creio serem sábios, e
asseguro: serão úteis àqueles que os acolherem. Na idade em que me encontro, o
grande número de acontecimentos pelos quais passei, as diversas revoluções que
experimentei e que são excelentes para instruir, deram-me a experiência para poder
indicar o caminho mais seguro e menos arriscado aos jovens que iniciam nas suas
carreiras. Além disso, depois dos autores de vossas vidas, ninguém está mais perto
de vós do que eu, de sorte que tenho para convosco uma afeição verdadeiramente
paternal; e, a menos que não me engane sobre as disposições dos vossos corações,
posso me gabar que quando voltais seus olhares a mim, vós me colocais no mesmo
patamar dos autores de vossos dias.
Se receberdes meus conselhos com entusiasmo, sabei que estareis entre os que
Hesíodo colocou com louvor como detentores do segundo importante mérito dos
sábios; caso contrário, tendo muito cuidado para não pronunciar algo desagradável,
contento-me a lembrar os versos onde o poeta diz que o primeiro mérito é enxergar
por si mesmo aquilo que é o melhor a ser feito; o segundo é poder seguir os
conselhos sábios úteis que alguém lhe dá; mas que isso tudo é inútil a quem não
sabe nem agir por si mesmo nem aproveitar os bons conselhos.1
Não vos surpreendais que, malgrado o valor dos mestres das escolas que
freqüentais todos os dias, e também a vantagem de conversar com os mais ilustres
escritores da antigüidade por meio dos livros que eles nos deixaram, pretendo
encontrar algo melhor a dizer. Venho advertir para que não sigais de forma cega
esses doutores profanos; não vos entregueis sem reservas em um mar cheio de
armadilhas, conduzidos por esses perigosos pilotos. Deles deve-se absorver o que há
de bom e útil, sempre sabendo aquilo que é preciso rejeitar. Como, então, podemos
fazer essa distinção? É isto que pretendo ensinar, e é por onde iniciarei este
discurso.
1Hesíodo, no poema intitulado As obras e os dias, verso 291. Este pensamento do poeta grego foi
bastante repetido depois dele, entre outros, por Tito Lívio, no discurso de Minúcio ao ditador
Fábio: «Homem excelente é quem por si mesmo tudo pensa, / refletindo o que então e até o fim
seja melhor; / e é bom também quem ao bom conselho obedece; / mas quem não pensa por si nem
ouve o outro / é atingido no ânimo; este, pois, é homem inútil» – versos 291-295, Hesíodo, Os
trabalhos e os dias, Iluminuras, 1996, tradução de Mary de Camargo Neves Lafer.
CAPÍTULO II
Nós cremos, minhas queridas crianças, que a vida presente não é nada: tudo
aquilo que é limitado às vantagens temporais apresentadas nesta vida são nada mais
do que ilusões que se apresentam a nossos olhos. O nascimento, a força, a beleza, a
boa imagem, as honrarias, e mesmo o império; tudo aquilo que há de mais
grandioso no mundo nos parece pouco desejável. Enfim, nada daquilo que possa ser
chamado de grande neste mundo pode ser um bem para nós; assim, não merece a
menor das nossas atenções. Tampouco devemos invejar a pretendida felicidade
daqueles que possuem essas vantagens. Pois as nossas esperanças estão apontadas
para um lugar muito mais distante. Em tudo o que fazemos, propomo-nos a
alcançar uma vida futura. E tudo aquilo que pode a ela nos conduzir deve ser objeto
da nossa atenção e do nosso amor; devemos usar de todas as forças para encontrá-
los. Por outro lado, devemos nos livrar, sem culpa alguma, daquilo que é
desprezível, de tudo aquilo que pode nos afastar do nosso objetivo último.
Para vos explicar do que se trata esta outra vida, e qual será a natureza desta
outra morada, seria preciso falar-vos por muito mais tempo do que pretendo, além
de tratar-se de objetos que escapariam às vossas capacidades de entendimento, pois
sois jovens e ainda estais a iniciar nas vias do conhecimento. Por ora, é-me
suficiente dizer-vos que, reunindo toda a felicidade que o homem tem desfrutado
desde o início dos tempos, mal se chegaria à menor parte da felicidade que espera a
vida futura. E, mesmo que pudéssemos somar todos os bens presentes neste mundo,
veremos que isto ainda seria inferior ao menor dos bens futuros; que a sombra e os
sonhos estão abaixo da realidade; ou ainda, para me servir de uma comparação mais
apropriada, assim como a alma é mais preciosa do que o corpo, a vida futura
prevalece sobre a vida presente.2
As Sagradas Escrituras nos ensinam essas verdades e nos instruem pelos
Santos Mistérios. Mas sei que a juventude ainda não vos permite aprofundar nessas
verdades, portanto retenhamos os olhos sobre os livros que não são completamente
contrários a elas, para que possamos, a partir deles, olhar para nossas próprias almas,
como se estivéssemos defronte a um espelho. É assim que se aplicam os soldados a
diversos exercícios que mais parecem divertimentos, porém acabam por torná-los
mais aptos para o combate. Imaginemos, então, que a maior de todas as lutas nos
fosse proposta, e que seria preciso preparar-nos com todo o cuidado que somos
capazes de ter: ocuparmo-nos da leitura dos poetas, dos oradores, de todos os
escritores que podem nos servir para aperfeiçoar nossa alma. Se quisermos imprimir
em nós a idéia de beleza com força suficiente para que seja indelével, devemos nos
iniciar nas letras profanas, antes de se empenhar no estudo das coisas sagradas.
Primeiro devemos aprender a ver o reflexo do sol nas águas cristalinas e, depois,
com a visão fortalecida, olhar diretamente para a luz pura.
Se há alguma afinidade entre as ciências sagradas dos livros santos com aquelas
dos autores profanos, isto nos será vantajoso conhecer. Caso contrário, saberemos
ver suas diferenças aproximando-as, e a comparação contribuirá bastante para nos
fortalecer no conhecimento da verdade. Mas, por qual analogia poder-se-á
representar uma ou outra doutrina? As árvores têm uma virtude natural de ficar
carregadas de frutos numa dada estação, todavia elas recebem uma espécie de
ornamento de folhas que se agitam em torno de seus ramos. Da mesma forma se dá
com a alma: a verdade é seu fruto essencial, no entanto pode ser enriquecida com
conhecimentos profanos, assim como as folhas realçam a beleza dos frutos.
2Na segunda parte desta edição encontra-se a Homilia sobre o desapego das coisas mundanas
(pp.61), onde São Basílio se concentra apenas neste assunto que, no presente Discurso, não
pretende abordar – NT.
CAPÍTULO III
9Este excerto de Pródico não chegou até nós senão por Xenofonte, que o cita na obra Memoráveis,
13Péricles foi uma das personalidades mais influentes do século V a.C. da Grécia Antiga. Estadista,
exímio orador e general, teve seu governo conhecido como a Era de Ouro de Atenas. Plutarco, na
sua obra Vidas Paralelas, conta-nos que ele colocava os interesses da pólis acima dos seus próprios,
chegando, por vezes, a suportar em silêncio as injúrias dos inimigos. O caso narrado por São
Basílio também consta nesta obra de Plutarco (5.2)– NT.
14Discípulo de Sócrates e fundador da escola de Mégarica.
15Não se sabe qual a fonte dessa história narrada por São Basílio, mas Plutarco conta que «todas
as vezes que Sócrates percebia sua alma agitada por alguma emoção, e prestes a romper contra
alguns de seus amigos, abrandava, por meio de um generoso esforço, o tom de sua voz dando ao
rosto um ar festivo e risonho. Eis como o filósofo reprimia os primeiros movimentos da imperiosa
paixão que pretendia dominá-lo» (Sobre os Meios de Reprimir a Cólera, 455a-b). Se
considerarmos que no seu julgamento, Sócrates aceitou o veredicto injusto por saber, em primeiro
lugar, que sua defesa era inútil àquele tribunal, e encarando a morte como algo justo para ele
mesmo, manteve-se fiel à sua filosofia quando fez a sua defesa com um único propósito:
estabelecer a verdade – NT.
16Outro grande exemplo é o de São Filipe Néri que, pedindo esmolas para ajudar os meninos
pobres que auxiliava, tomou um soco de um homem que se sentiu importunado. Respondeu-lhe:
«Este é para mim, agora dê algum dinheiro para os meus meninos.» – NT.
17Plutarco, Vidas Paralelas: Alexandre; XXXVIII e XXXIX: «Mas, como Alexandre, em minha
opinião, estimava ser coisa mais real vencer-se a si mesmo do que derrotar os inimigos, não tocou
em nenhuma, nem em outras moças ou mulheres, antes de desposá-las [...].» – NT.
CAPÍTULO IV
Mas retornemos ao que vinha dizendo. Devemos selecionar tudo o que é útil,
mas não indiscriminadamente. Entre os alimentos, tomamos o cuidado de rejeitar
aquilo que nos é prejudicial. Da mesma forma não escolheremos aquilo que é
prejudicial à nossa alma? Evitemos ser como uma torrente que no seu curso vai
arrastando tudo o que encontra. Um piloto não abandona sua embarcação ao
capricho dos ventos, mas a conduz segundo as regras de sua arte. O carpinteiro ou o
ferreiro trabalham cada um conforme as regras das suas profissões. Ora, seria
diferente conosco? Os trabalhadores braçais têm um objetivo que os dirige ao
trabalho; a vida humana também tem um objetivo pelo qual devemos dirigir nossas
palavras e ações, evitando que nos tornemos semelhantes aos bárbaros. Se não
agimos para um fim específico, nosso espírito, como um barco desgovernado,
flutuará sem rumo. Para os combates e até mesmo para a música devemos nos
dedicar a exercícios preparatórios que nos levarão a obter a coroa prometida.
Porém, é preciso dizer que aquele que se exercitou na luta não se apresentará para
tocar a flauta ou a lira. O famoso Polidamas, antes de se apresentar aos jogos
olímpicos, parava carros em movimento para, assim, aumentar sua força. Mílon,18
de pé sobre um escudo azeitado, não poderia ser arrancado do lugar. E, qualquer
esforço que se empregasse, ele mantinha-se inabalável como uma coluna fixada com
chumbo. Assim, os exercícios desses homens eram preparações para o combate. Se,
ao invés dos exercícios de luta, ocupassem-se dos talentos de Mársias e Olimpo,19
longe de adquirirem a glória e as coroas, teriam se tornado ridículos! Timóteo20
jamais abandonou a música para viver nos ginásios.21 Não foi assim que conseguiu
prevalecer sobre todos os músicos do seu século, pelo contrário!; dizem que ele era
tão hábil na sua arte que chegava a provocar, quando queria, a indignação através de
sons graves e austeros, e logo depois acalmava com os sons mais suaves. Foi assim
que, dizem também, tocando a lira diante de Alexandre, segundo o modo frígio,
animou-o de tal maneira que o fez levantar bruscamente e pegar as armas no meio
de um banquete. Mas depois, suavizando o tom, acalmou-o a ponto de fazê-lo
dedicar sentimentos mais afetuosos a seus convidados. Enfim, tal é a eficácia dos
exercícios, seja nas lutas, seja na música, para se atingir os objetivos propostos.
Mas prossigamos com nosso raciocínio. Somente depois de muito exercício,
de um árduo trabalho nos ginásios, aumentando suas forças e dedicando-se a
combates particulares, é que os atletas estão preparados para a disputa. Ou seja,
somente depois de muito se dedicar a um regime severo que dê a eles o preparo
exigido para os combates decisivos é que podem tentar ser coroados vencedores. E
nós, que nos propomos a receber prêmios tão admiráveis, de grandeza inexprimível,
poderíamos adquiri-lo sem qualquer esforço? Uma vida covarde e preguiçosa
merece algum tipo de elogio? Seria como dar mérito à vida de um Sardanápalo22 ou
de um Margites23 que Homero (supõe-se que ele seja seu autor) nos apresenta
como um idiota que não sabia manejar o arado e nem a enxada, sendo incapaz até
mesmo de se ocupar de qualquer dos trabalhos necessários para a vida. Então, não
seria mais verdadeiro dizer, com Pítaco,24 que é verdadeiramente difícil ser um bom
homem? Com efeito, após ter muito trabalhado, tudo o que podemos obter é uma
felicidade que mal se pode comparar com a de que se falava anteriormente. Pois
nada, nem que se juntassem todas as coisas deste mundo, poderia lhe ser
comparável. Não devemos, portanto, nos entregar à preguiça, tampouco sacrificar
as grandes esperanças pela satisfação de um momento. Isso nos expõe a uma
confusão e também às penas eternas, não apenas diante dos homens – que já seria
bastante grave para uma pessoa sensata –, mas nos lugares onde o Soberano Juiz
exerce sua justiça, seja na terra, seja em qualquer outro lugar do universo. Ele
poderá tratar favoravelmente aqueles que pecam pela imprudência ou pela
fraqueza, mas aqueles que pecam pela malícia, escolhendo conscientemente a pior
das escolhas, verão recair a si mesmos as súplicas das mais rigorosas.
18Ofamoso Mílon de Crotona. Pausânias narra o mesmo feito desse robusto atleta. Polidamas, de
quem ele fala anteriormente, não era menos conhecido.
19Mársias e Olimpo, dois célebres flautistas. Olimpo era da Mísia. A fábula conta que Mársias foi
um sátiro que ousou desafiar Apolo e foi punido por essa audácia.
20O célebre poeta e músico grego Timóteo de Mileto (447 - c. 357 a.C.) – NT.
21No texto original: «palestras», que na Grécia e na Roma antigas era o lugar para exercício de
luta ou de ginástica – NT.
22Sardanápalo, rei da Assíria, célebre por seu luxo e por sua indolência.
23Margites, poema cômico sobre um herói atrapalhado. Aristóteles, na Arte Poética (13.92) atribui
este poema a Homero, embora outros atribuam sua autoria a Pigres de Halicarnasso.
24Pítaco de Mitilene, um dos sete sábios da Grécia (650-570 a.C.)
CAPÍTULO V
25Segundo a fábula grega, esta foi a pena imposta às filhas de Dânao, rei de Argos, que tinham
assassinado seus maridos e por isso foram enviadas ao Hades, condenadas a carregar água e
despejá-la num tonel sem fundo (Apolodoro II. 1.5) – NT.
26Diógenes, o Cínico; esta mesma frase a ele é atribuída por Diógenes Laércio [em A vida dos
filósofos mais ilustres].
27Cícero narra mais ou menos o mesmo fato com o mesmo Pitágoras.
35Parece
que esse Pítio é o mesmo que consta no sétimo livro das Histórias de Heródoto: «o
homem mais rico que já se viu». Mas, segundo o historiador, ele era oriundo da Lídia.
36Pareceser a discussão contida nos parágrafos 280-281 do diálogo Eutidemo de Platão sobre o
bom uso das riquezas. Já o Salmo 50(49) proclama: «O homem rico e sem inteligência é como um
animal que perece.» – NT.
37Os mais célebres escultores do período clássico da Grécia Antiga – NT.
38Arquíloco,
conhecido por suas poesias satíricas. Tinha composto fábulas nas quais a raposa
desempenhava o papel principal.
39Segundo Heródoto, tratava-se de um rei do Egito com esse poder de metamorfose. Na mitologia
grega foi chamado de Proteu, um deus marítimo que tomava diversas formas – NT.
40No original: «muda como um polvo»; Plutarco se serve dessa mesma comparação no seu
tratado contido nas suas Obras Morais: «Como Distinguir um Adulador de um Amigo» (53a).
Pareceu-me mais claro falar do camaleão – NT.
41Os trabalhos e os dias; v. 361-362, op. cit.: «Pois se um pouco sobre um pouco puseres / e
repetidamente o fizeres, logo grande ficará» – NT.
42Titono, filho de Laomedonte. Segundo a mitologia grega, era um modelo de beleza, tanto que
Aurora, deusa do amanhecer, por ele se apaixona e convence Zeus a lhe dar a imortalidade. Porém,
esquece-se de pedir que ele tenha também uma juventude eterna. Titono passa a envelhecer e
Aurora perde por ele o encanto. Já muito velho, por ela é preso num quarto escuro até que, por
fim, transforma-se numa cigarra – NT.
43Argantonio, o último rei dos Tartessos, apontada pelos gregos como a primeira civilização do
Ocidente. Segundo Heródoto, viveu 120 anos.
44A preocupação excessiva com o passado, lamentando-se constantemente, tende a insuflar-nos de
remorso, angustiando-nos cada vez mais, causando confusões e incertezas. Arrepender-se é nada
mais do que admitir os erros, confessar-se, pedir o perdão a Deus, e esforçar-se para não mais
cometê-los. Ensina-nos o Catecismo: «O movimento de regresso a Deus, pela conversão e
arrependimento, implica dor e aversão em relação aos pecados cometidos, e o propósito firme de
não tornar a pecar no futuro. Portanto, a conversão refere-se ao passado e ao futuro: alimenta-se
da esperança na misericórdia divina.» (CIC, 1490) – NT.
HOMILIA SOBRE O DESAPEGO
DAS COISAS MUNDANAS 1
1A fonte desta tradução é a edição Homélies Discours et Lettres de S. Basile le Grand, tradução de
Monsenhor L’Abbé Auger, vigário geral da diocese de Lescar, membro da Academia de Belas
Artes de Rouen, publicada em Lyon, Guyot-Librairie – Editeur, 1827.
2Como já vimos, segundo a fábula grega, esta foi a pena imposta às filhas de Dânao, rei de Argos,
que haviam assassinado seus maridos e por isso foram enviadas ao Hades, condenadas a carregar
água e despejá-la num tonel sem fundo (Apolodoro II. 1.5) – NT.
3Vale lembrar o que nosso Santo diz no seu discurso aos jovens, citando Teógnis de Mégara
(fragmento 316): «Porém, a virtude é o único bem que não nos pode ser tirado, é o único bem
que acompanha o homem na vida e também na morte. Decerto, tal era o sentimento de Sólon,
quando aos ricos disse: ‘Jamais trocaremos vossas riquezas pela virtude, porque esta em nós
permanece para sempre, ao passo que a propriedade dos bens materiais passa de um homem para
outro’.»; pp. 41,42 – NT.
4O fim último do homem é tomar parte no Supremo Bem, através da visão beatífica, isto é,
contemplar Deus na sua infinita bondade. Assim, o homem tem uma inclinação natural ao bem, e
o pecado é o desvio do caminho que conduz ao seu fim último, podendo levar à separação
definitiva do Supremo Bem, que é Deus, ou seja: a condenação eterna – NT.
5Sl 48,8. Na Vulgata: «frater non redimit, redimet homo non dabit Deo placationem suam».
Noutras versões: «O homem não pode comprar seu próprio resgate, nem pagar a Deus o preço de
si mesmo.» – NT.
6Jó2,10 – «Falas, respondeu-lhe ele, como uma insensata. Aceitamos a felicidade da mão de
Deus; não devemos também aceitar a infelicidade? Em tudo isso, Jó não pecou por palavras.»
HOMILIA SOBRE A HUMILDADE 1
Pergunto-vos, então: por que vos orgulhais das vantagens que possuís, ao invés
de render graças Àquele de quem tendes recebido todos esses dons? Ou, como
pergunta São Paulo: «Pois quem te distingue? Que possuis que não tenhas
recebido?» [1Cor 4,7] Não conheceis a Deus por vossa própria virtude, mas
porque Deus quis vos conhecer. «Mas agora, conhecendo a Deus, ou melhor,
sendo conhecidos por Deus», não fostes, por vossas próprias virtudes, elevados ao
conhecimento de Jesus Cristo, mas o mesmo Jesus Cristo é quem a vós se
manifestou quando veio ao mundo. «Não que eu já o tenha alcançado ou que já
seja perfeito, mas prossigo para ver se o alcanço, pois que também já fui alcançado
por Cristo Jesus» [Fp 3,12], diz o mesmo Apóstolo. E o Senhor mesmo proclama:
«Não fostes vós que me escolhestes, mas fui Eu quem vos escolhi.» [Jo 15,16]
Seria, portanto, possível vos vangloriardes dessa honra que pela misericórdia vos
fora concedida?
Ora, se «tu estás firme pela fé; não te ensoberbeças, mas teme» [Rm 11,20],
pois o julgamento sucede a graça. E o Soberano Juiz vos fará prestar contas das
graças que recebestes; se não podeis compreender que recebestes uma graça e que,
por um excesso de presunção fizestes da graça um mérito, sabei: não sois mais
dignos aos olhos do Senhor do que São Pedro; não amaríeis o Senhor de forma
mais veemente do que esse Apóstolo, a ponto de querer morrer por Ele. Mas
mesmo São Pedro se permitiu dizer estas palavras presunçosas: «Ainda que todos
se escandalizem por tua causa, eu jamais me escandalizarei.» [Mt 26,33 sq] Assim,
foi abandonado à própria fraqueza e caiu na negação. Devido ao seu erro, aprendeu
a ser mais cauteloso e a regrar suas fraquezas e compreendeu perfeitamente que,
estando prestes a ser engolido pelas ondas, fora salvo pelas mãos de Jesus Cristo,
assim como, na tempestade do escândalo, fora salvo pelo poder do mesmo Jesus
Cristo que havia lhe prevenido daquilo que haveria de acontecer:
Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como
trigo; Eu porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando, porém,
te converteres, confirma teus irmãos. [Lc 22, 31-32]
Após repreender São Pedro, Jesus Cristo o fortificou na sabedoria, para que
ele pudesse reprimir todo o sentimento de vaidade e aprendesse a regrar as suas
fraquezas.
Lembrai-vos do fariseu soberbo da parábola, que se enchia de confiança em si
mesmo, e atacava abruptamente o publicano imprudente [Cf. Lc 18, 11-14]. Pelo
orgulho, perdeu a glória da justiça, ao passo que o publicano foi para casa
justificado porque glorificou ao Senhor quando sequer ousou olhar para o céu e,
com humildade, bateu no peito condenando a si. Que este exemplo de um grande
mal causado pelo orgulho vos seja instrutivo: o fariseu orgulhoso perdeu a justiça,
sua presunção o afastou da recompensa, foi colocado abaixo do pecador humilde
porque se exaltou, presumindo estar salvo antes do julgamento de Deus.
A vós, digo: não vos coloqueis acima de ninguém, nem mesmo acima dos
grandes pecadores. Muitas vezes a humildade salva aqueles que cometeram grandes
pecados. Jamais vos declareis justos a vós mesmos em prejuízo de um outro,
temendo que, justificados por vossos próprios julgamentos, não sereis condenados
pelo julgamento de Deus. Como disse São Paulo: «Não julgo a mim mesmo.
Verdade é que a minha consciência de nada me acusa, mas nem por isto estou
justificado; meu juiz é o Senhor.» [1Cor 4,3]
Enfim, quando crerdes ter feito uma boa ação, rendei graças a Deus sem vos
exaltar elevando-vos acima de vosso próximo. «Cada um examine a sua própria
conduta, e então terá de que se gloriar por si só e não por referência ao outro» [Gl
6,4], adverte São Paulo. Pois, que tenhais confessado a fé ou sofrido o exílio pelo
nome de Jesus Cristo, ou ainda sustentado austeros jejuns, qual a importância disso
chegar ao conhecimento do vosso próximo? Não é um outro que se beneficia, mas
vós! Temei, portanto, uma queda semelhante à do demônio, que pretendendo
elevar-se acima de tudo foi precipitado abaixo de todos. Do mesmo modo se deu a
queda dos israelitas: elevaram-se acima das nações que julgavam impuras, mas se
tornaram eles mesmos impuros, ao passo que as nações foram purificadas. Sua
justiça era como panos imundos,3 enquanto a iniquidade e a impiedade das nações
eram apagadas pela fé. Em suma, lembrai-vos da bela máxima dos Provérbios: «Se o
Senhor escarnece dos zombadores, Ele concede a graça aos humildes.» [Pr 3,34]
Tenhais sempre nos lábios esta palavra do Senhor: «Pois todo o que se exalta será
humilhado, e quem se humilha será exaltado.» [Mt 23,12 + Lc 14,11 + Lc 18,14]
Não sejais, então, juízes de vós mesmos; porque o fazeis com muita
benevolência, levando em conta o bem que credes pertencer-vos, e esquecendo tão
facilmente o mal; fácil é para vós aplaudir vossas boas ações de hoje, perdoando
vossas faltas de ontem. Então, quando o presente vos inspirar o orgulho, lembrai-
vos do passado, e vós restringireis a soberba. No caso de ver alguém próximo cair no
pecado, pensai em tudo o que ele fez e ainda faz de bom, e muitas vezes percebereis,
examinando com muito cuidado a vossa própria conduta, que essa pessoa é ainda
melhor do que vós. Deus não examina o homem em partes: «Eu virei, a fim de
reunir todas as nações e línguas» [Is 66,18], diz por seu profeta. Repreendendo
Josafá de um pecado que veio a cometer, não esqueceu de lembrar as suas boas
ações: «Todavia, foi encontrado em ti algo de bom.» [2Cr 19,3]
Repitamos, sem cessar, essas reflexões e outras semelhantes para combater o
orgulho, humilhando-nos para que sejamos exaltados, imitando o Senhor que
desceu do alto dos céus na mais profunda humildade e que, pela mesma humildade,
foi elevado à mais alta glória. Toda a sua vida é para nós uma lição de humildade:
nascido num estábulo, sem ao menos uma cama, criado por um simples artesão e
uma mãe pobre, submisso a seu pai e sua mãe, ouviu as instruções que Lhe deram,
ainda que não fosse necessário, e quando falava escutavam-n'O com admiração
devido a sua sabedoria. Pela própria vontade, submeteu-se ao Batismo pelas mãos
de João, ou seja, o Senhor foi batizado pelo servo. Jamais se opôs àqueles que se
levantaram contra Ele, e não os fez sentir seu poder infinito, como se suas forças
fossem superiores às deles. Enfim, ficou abandonado a uma autoridade passageira
todo o poder do qual ela é suscetível. Como um criminoso, foi posto diante dos
sacerdotes e do governador, sofrendo em silêncio as calúnias, mesmo podendo
facilmente confundir seus caluniadores. Depois de receber bofetadas e ter seu rosto
coberto de escarros por vis escravos, foi entregue à morte, e morte de cruz, a mais
infame dentre as dos homens. Tal foi sua vida mortal do começo ao fim. Após
tamanha humilhação, subiu aos céus numa admirável e gloriosa ascensão, da qual
fizeram parte aqueles que haviam compartilhado das suas humilhações. Entre esses,
os primeiros foram os bem-aventurados discípulos que, entregando-se a uma vida
errante, percorreram o mundo, atravessando terras e mares, pregando por toda
parte, onde foram atormentados, apedrejados, perseguidos e, enfim, condenados à
morte. Tais são os divinos exemplos que temos diante dos olhos. Esforcemo-nos
para imitá-los, a fim de que a humildade nos traga a eterna glória, o dom perfeito e
verdadeiro de Jesus Cristo.
Como, então, chegaremos a suprimir os movimentos tão prejudiciais do
orgulho? E como podemos aumentar os sentimentos tão vantajosos da humildade?
Essas coisas se darão quando passarmos a exercer continuamente a humildade, sem
negligenciar nada daquilo que nos pode causar um mal maior. A alma se modela,
por assim dizer, e toma tal ou qual forma de acordo com seus gostos e seus
costumes. Assim, que todo o vosso exterior, vossos hábitos, vossa diligência, vossa
alimentação, vossa habitação, vossa cama, vossa casa e toda a mobília que nela se
encontra sejam simples e modestas. Que vossas palavras, vossos cantos e vossas
conversas estejam livres de ostentações. Se falardes ou cantardes em público, não
demonstreis nem muito luxo nos vossos discursos nem muita condescendência na
vossa voz. Jamais entreis em disputas com orgulho e vaidade. Subtraí, de tudo,
aquilo que inspira grandeza e aparências. Sede corteses com vossos amigos, amáveis
com vossos servidores, pacientes com as pessoas violentas, humanos com os
humildes. Consolai os aflitos, visitai os que estão tristes, e não desprezeis pessoa
alguma. Falai a todos com doçura, respondei sempre de maneira agradável. Sede
educados e afáveis com todos: evitai falar favoravelmente de vós mesmos, e não
disponhais de outros para fazê-lo. Jamais vos permitais propósitos desonestos e
reconhecei sinceramente vossos pecados, a fim de imitar o justo que começa por
acusar-se a si mesmo [Cf. Pr 18,17]. E, para assemelhar-vos a Jó, que não temeria
dizer diante da multidão se alguma maldade tivesse cometido, que vossas
reprimendas não sejam nem muito bruscas, nem muito duras, e tampouco penosas,
pois isso anuncia a arrogância [Cf. Jó 31,34]. Não se deve condenar os outros por
pequenas falhas, como se fôssemos perfeitamente justos. Tratai com bondade
aqueles que caíram em qualquer pecado, ajudando-os a se levantar com doçura, da
forma como nos exorta o Apóstolo, refletindo sobre vossas próprias vidas e
temendo ser tentados da mesma forma que eles [Cf. 1Cor 4,14-21].
Guardai-vos para não serdes glorificados diante dos homens. Lembrai-vos das
palavras do Salvador sobre buscar a glória dos homens e fazer o bem apenas para
serdes vistos [Cf. Mt 6,2-5]. Quem assim agir perderá a recompensa que vem de
Deus. Portanto, não façais mal a vós mesmos querendo parecer justos aos olhos dos
homens [Cf. 1Pd 5,3]. Dado que Deus é a grande testemunha de nossas ações,
ambicionai a glória junto a Deus, que vos concederá uma magnífica recompensa
[Mt 20,25-28; 23,8]. Se estiverdes acima dos outros, se os homens vos glorificam e
vos honram, não vos diferencieis deles, tratai-os como iguais a vós mesmos, sem o
desejo de dominar a herança do Senhor [2Cor 1,24; 4,5], e sem tomar como
modelo os príncipes do século [1Ts 2,7]. O Senhor ordena àquele «que quiser ser o
primeiro, deve ser o servo de todos.» [Cf. Mc 10,44]
Para não mais me estender, digo em poucas palavras: praticai a humildade
como deve fazer um homem que a ama. Amai esta virtude e ela vos levará à glória.
Eis o meio de alcançar a verdadeira glória, que está na sociedade dos anjos, junto a
Deus. Jesus Cristo vos reconhecerá diante dos anjos como a seus discípulos, e vos
glorificará se vos tornardes imitadores de sua humildade [Cf. Lc 12,8]: «Tomai
sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e
encontrarei descanso para vossas almas». [Mt 11,29]
A Deus Nosso Senhor, toda a honra e toda a glória por todos os séculos dos
séculos. Assim seja!
1A fonte desta tradução é a edição Homélies Discours et Lettres de S. Basile le Grand, tradução de
Monsenhor L’Abbé Auger, vigário geral da diocese de Lescar, membro da Academia de Belas
Artes de Rouen, publicada em Lyon, Guyot-Librairie –Editeur, 1827.
2Deus agiu no Apóstolo Paulo, fazendo-o instrumento de sua Glória. Cf. At 9,15-16 – NT.
3Is64,4-5 – [...] «Sim, tu te irritaste contra nós e, com efeito, nós pecamos, mas permaneceremos
para sempre em teus caminhos e assim seremos salvos. Todos nós éramos como pessoas impuras, e
nossas boas ações como pano imundo. Murchamos todos como pessoas impuras, e nossas
transgressões nos levam como vento.»
PÓSFACIO
AUDIÊNCIA GERAL DO PAPA BENTO XVI
(em 1 de agosto de 2007)
5 Cf. Basílio, In Psalmum 48, 8: PG 29, 452ab; cf. também De Baptismo 1, 2: SC 357, 158
8 Ep 203, 3
17 Cf. Ad Adolescentes 3
18 Ad Adolescentes 4
19 Ad Adolescentes 5
«SENHOR, DEUS ETERNO, LUZ SEM COMEÇO NEM FIM, ARTISTA
DE TODA A CRIAÇÃO, FONTE DE PIEDADE, OCEANO DE BONDADE,
ABISMO INSONDÁVEL DE AMOR PELOS HOMENS, FAZEI BRILHAR
EM NÓS A LUZ DE VOSSA FACE. BRILHAI EM NOSSOS CORAÇÕES,
SOL DA JUSTIÇA, E ENCHEI NOSSAS ALMAS COM VOSSA ALEGRIA.»