A Economia Politica o Capitalismo e A Escravidao
A Economia Politica o Capitalismo e A Escravidao
A Economia Politica o Capitalismo e A Escravidao
O CAPITALISMO E A ESCRAVIDÃO
Antônio Barros de Castro
Introdução
De acordo com Engels, «A Economia Política, no sentido
amplo, é a ciência das leis governando a produção e a troca
dos meios ma_teriais de subsistência da sociedade humana>.'
Ela não deverá ser «a niesma para todos os países e épocas '
históricas> . : . «Quem· quer que tente trazer para o estudo ...JI__
7·,
da economia política da Patagônia as· mesmas leis que ope-
ram na Inglaterra 'da atualidade, obviamente irá produzir
apenas os mais banais lugares éomuns>.
Esta conhecida. passagem ''do' Anti-Dühring parece -conter'
duas proposições teóricas:· Trata-se, desde logo, de negar ··a:
· possibilidade de uma ciência social que não reconheça a exis
- �'-··
tência de estágios ou �pocas históricas. Além disto, sugere o
autor que paracàda sociedade ou época histórica seja conª::- ·
truída uma «Economia Política>, sendo que a ela caberi ,
enquanto «ciência das leis governand� a produção e a troca>,�
estabelecer «as leis especiais de cada"·estágio>. 1 ·
·•
. t. F, Engels. A11ti-DiiÀriJ1g0 Intunational Publishera, Nova Iorque 1976, I>- 1_63 e 166.
Para um �orço de reinterpretação do ncravismo colonial que se pro� �Ir.
ao pé da 1',tra. aa propostaa de E� veja-ae Jacob Gorender, O E.,,.,._
67
A segunda proposição de Engels parece-me altamrnte ques
tionável. Dado que ela surge no seu texto como um convite
a que se faça, em relação às demais sociedades, o que Mane
teria feito em relação ao capitalismo, nosso primeiro passo
será recapitular certas propriedades que fazem do capitalismo
um objeto de estudo particularmente adequado a uma ciência
como a Economia Política. 2
r
rece». 3 De fato, não subsiste na relação salarial qualquer
evidência de exploração do trabalhador pelo capitalista. Muito
elo contrário, e nas palavras de Marx, «a forma salário apà:
a todo vestígio de divisão da jornada de trabalho em tra-:
alho pago e não retribuído». 4 Em suma, neste primeiro
plano, o trabalhador surge como proprietário de uma deter
. minada mercadoria, interessado em vendê-la ao capitalista,
numa transação semelhante a qualquer outra 5; se alguma
coerção aí existe, ela decorre da ação de mecanismos impes
soais, imperceptíveis ao nível do relacionamento entre com
pradores e vendedores de força de trabalho.
O trabalhador voltará ainda a transacionar com os capi
t\
talistas, agora, porém, na qualidade de consumidor. Aqui,
mais uma vez, «é o· operário mesmo quem converte o di
nheiro em valores de uso, compra com ele tais ou quais mer-
1
1 Colo,,ial, São Paulo 1978. Agradeço ao autor a permissão de ler. ainda em ma
nuscrito, a sua contribuição ao p�ente volume, onde ele procura esclarecer e
realçar o ,entido de seu trabalho anterior.
\
2. Quanto à relação entre a Economia Po!itica e a sua .. crítica" por Marx veja-se
a famosa carta de Marx a Engels datada de 8 de janeiro de 1868 (Sel�ct,d
\ CornspO'ftde-r&u, p. 186), ou, se se quiser, as numerosas passagens em que Mar:,:
compara a eua obra à Economia Politica clássica (notadamente ao final do tomo !TI
de O Capital, no capítulo intitulado ·••A Fórmula Trinitária").
3. Grvndrisse. edição Martin Nicolaus. Vintag-e Books, 1973, p. 284. ·••· ••No mesmo
\ sent:do. vide El Cq;11ital. Fondo de Cultura. Mbico, t. I, p. 128s. \
, 4. O C.1pital. tomo I.·',J>, 452. Marx chegaria mesmo a apontar. como um dos três
� grandes avanços _realizados em O Capital. a demonstração de que o aalário ocults
r ão real ex nte entre trabalhadores e capitalistas. Sekcted Correspond�
�- ;!�� �� ::,._..,
5. O Capital. tomo r;p: .179-lR0.
68
cadorias e, como possuidor de dinheiro, como comprador de
mercadorias, se encontra diante dos vendedores na mesma
relação que todos os demais». 6 � .
..../
Resumidamente, o capitalismo se apresenta, à primeira
vista, como uma ordem social integrada por compradores e
vendedores de mercadorias. Todos «contratam como homens
Üvres e iguais perante a lei», o que faz do capitalismo
sempre numa primeira aproximação - «o paraíso dos di
reitos do homem». 7
Sobre esta experiência da vida diária seria construído um
saber, que aí busca encontrar «uma certa ordem inteligível».
Marx a ele se refere sempre pejorativamente: economia vul
gar, «religião da vida diária». 8 Esta última expressão, remi
niscência dos primeiros escritos - e da influência de Feuer
bach - revela claramente o que pensa Marx acerca do que
ocorre neste primeiro plano: «assim como os cristãos são
iguais no céu, ainda que desiguais na terra, as�im também
Ós indivíduos membros do povo são iguais no · céu de seu
mundo político, ainda que desiguais na sua substância terre
na na sociedade». 9
A ciência da sociedade moderna que se inicia com Quesnay
traz consigo um esforço de interpretação profundamente di
verso. Com ela o capitalismo surge, antes de mais nada,
como um organismo econômico; e há que estudar as con
dições de sua «reprodução> material. O estudo da reprodu
ção estabelece, como questão axial, o «processo social de p�
dução considerado em seus vínculos constantes e no fluxo\
ininterrupto de sua renovação > ... 10 As condições em que se
verifica a produção material assumirão uma importância
decisiva: a agricultura nos fisiocratas, a fábrica de alfinetes
( epítome da divisão manufatureira de trabalho) em Adam
Smith, a produção do trigo em Ricardo, a produção fabril
em Marx.
Como se encontram trabalhadores e capitalistas, neste
mundo substantivo, que começa apenas a ser estudado pelos
6. O Capital. tomo I, capitulo VI, inédito. Siglo XXI, 1972, p, 70, irrifo A. B. Castro.
7. O Capital. tomo I, p. 128. Gnu1dria#,. p. 240-243 e 246.
8. O Capital. tomo m. p. 768.
9. K. Ma=. Critiqu of Heoera Pl&il,,.opÃ11 of Righ.t, Ed. ;J. O'Mnlley, Cambri�
University Press, 19i7, p. 80. _ .
10. O Capital, 1,. I, p. 476: "... o sistema fisiocrático é a primeira versao sistemática
da produçã;.; capitalista" (O Capital. t. II, p. 321); os füiocratas são os "ve!'da
deiros pais 3á moderna economia poiltica" (K. Marx, Th.eorie• of Surplua V�hu,
Lawren� a.n,; Wishart, Londres 1969, voL I, p. U. No mesmo sentido, ve.ia-H
R. L. M=k. La. Fisiocraei4, Barcelona. especialmente capitulo 6.
69
grandes clássicos? De acordo com Marx, a resposta deverá
ser buscada através do exame de como se apresentam e, em
particular, como evoluem as condições materiais da produção,
'já que «os instrumentos de produção não são somente o ba::.·-,
(· r8metro indicador do desenvolvimento da força de trabalho
do homem, mas também o expoente da.s condições sociais em
\ que se trabalha». 11 - .,
70
de novas máquinas, novos materiais e novas fontes de
energia. 15 <--"\
Ao longo deste processo evolutivo transforma-se radical
mente o lugar e papel dos trabalhadores, progressivamente
convertidos em «elos conscientes», que apenas «supervisionam
e atentam contra a interrupção» 16 da atividade das máqui- ·
nas. Os capitalistas, de sua parte, não mais terão por que
manter-se pessoalmente à testa da produção, cujo comando
poderá ser transferido, progressivamente, a administradores
profissionais. 17 Tampouco necessitam eles de conhecer a fun
do os novos meios e processos da produção, cujo reparo e
manutenção estarão a cargo de uma camada diferenciada
de trabalhadores, que, para facilitar, chamaremos de «técni
cos». Este distanciamento dos capitalistas será, claro, imen
samente facilitado pelo desenvolvimento daJ sociedadE>f por
aç�es. 18
No esquema evolutivo que acabamos de evocar percebe-se,
a cada passo, a existência de um íntimo relacionamento entre
t! os meios de produção em uso, o processo de trabalho e o
relacionamento dos trabalhadores com os capitalistas': "-( ou
seus representantes). Vemos, pois, aplicar-se, à evolução do
capitalismo, a tese geral de Marx no sentido de que as con
dições de produção são um «barômetro> das forças produti-
' vas, e um indicador das relações sociais. Ê fundamental real
\ çar, além disso, que o trajeto acima esquematizado é conce
bido como algo� inerente à lógica do capital': «O desenvol
,
vimento dos meios de trabalho em maqumaria não é um mo
mento acidental do capital, e sim uma reformulação dos tra
1
dicionais meios de produção herdados, numa forma�adequa-
, � dah ao cam1ª1..... Este - longo percurso não se dá porém sem
19
problemas. Existe uma tendência ao declínio da taxa de
lucros - mas ela é, em• princípio, compensada pela ação
de determinados fatores. 2º- Verificam-se crises intermitentes,
15. Gn&"4riaact, p. 692-695 e 704-706.
16. Grvtodriaact, p. 692.
17. Neste como em outros pontos, Marx acompanhou de perto a penetrante análise.
desenvolvida por Andrew Ure, acei;ca da evolução conjunta das técnicas e _das
relações sociais, na tran1i9ão da manufatura para a fábrica capitalista. O Copatal.
tomo III. p. 369. Andrli'w Ure, T1w flril-,,1&11 o! M,u,.,foctvrea, Nova Iorque
1967. especialmente capitulo I. ..h-,,•. - . . .
18. "As empresas por ações - que se �volvem co� . o sistema de crM�to -
tendem a separar. cada vez maia, este .:tcàba!ho adm1n1strat1v�. como funçao, ela
possessão d? enpital ..." d�parecendo;"-� processo de prod�çao� como um pen,o
.
nagem supcrfluo. o cap,tabata". O C/Vf'itol. tomo III, p. S,0-3,1.
19. Gno,driaae, p. 694.
20. O Capital, tomo III, cap. XI.
71
de novas máquinas, novos materiais e novas fontes de
energia. 15 <--"\
Ao longo deste processo evolutivo transforma-se radical
mente o lugar e papel dos trabalhadores, progressivamente
convertidos em «elos conscientes», que apenas «supervisionam
e atentam contra a interrupção» 16 da atividade das máqui- ·
nas. Os capitalistas, de sua parte, não mais terão por que
manter-se pessoalmente à testa da produção, cujo comando
poderá ser transferido, progressivamente, a administradores
profissionais. 17 Tampouco necessitam eles de conhecer a fun
do os novos meios e processos da produção, cujo reparo e
manutenção estarão a cargo de uma camada diferenciada
de trabalhadores, que, para facilitar, chamaremos de «técni
cos». Este distanciamento dos capitalistas será, claro, imen
samente facilitado pelo desenvolvimento daJ sociedadE>f por
aç�es. 18
No esquema evolutivo que acabamos de evocar percebe-se,
a cada passo, a existência de um íntimo relacionamento entre
t! os meios de produção em uso, o processo de trabalho e o
relacionamento dos trabalhadores com os capitalistas': "-( ou
seus representantes). Vemos, pois, aplicar-se, à evolução do
capitalismo, a tese geral de Marx no sentido de que as con
dições de produção são um «barômetro> das forças produti-
' vas, e um indicador das relações sociais. Ê fundamental real
\ çar, além disso, que o trajeto acima esquematizado é conce
bido como algo� inerente à lógica do capital': «O desenvol
,
vimento dos meios de trabalho em maqumaria não é um mo
mento acidental do capital, e sim uma reformulação dos tra
1
dicionais meios de produção herdados, numa forma�adequa-
� dah ao cam1ª1..... Este - longo percurso não se dá porém sem
19
problemas. Existe uma tendência ao declínio da taxa de
lucros - mas ela é, em• princípio, compensada pela ação
de determinados fatores. 2º- Verificam-se crises intermitentes,
15. Gn&"4riaact, p. 692-695 e 704-706.
16. Grvtodriaact, p. 692.
17. Neste como em outros pontos, Marx acompanhou de perto a penetrante análise.
desenvolvida por Andrew Ure, acei;ca da evolução conjunta das técnicas e _das
relações sociais, na tran1i9ão da manufatura para a fábrica capitalista. O Copatal.
tomo III. p. 369. Andrli'w Ure, T1w flril-,,1&11 o! M,u,.,foctvrea, Nova Iorque
1967. especialmente capitulo I. ..h-,,•. - . . .
18. "As empresas por ações - que se �volvem co� . o sistema de crM�to -
tendem a separar. cada vez maia, este .:tcàba!ho adm1n1strat1v�. como funçao, ela
possessão d? enpital ..." d�parecendo;"-� processo de prod�çao� como um pen,o
.
nagem supcrfluo. o cap,tabata". O C/Vf'itol. tomo III, p. S,0-3,1.
19. Gno,driaae, p. 694.
20. O Capital, tomo III, cap. XI.
71
contrariamente, são concebidas como fundamentalmente in�
variante s. Antes de mais nada, inútil buscar transformações
significativas no primeiro plano anteriormente assinalado: 1
os homens aí existem, como átomos sociais, como cidadãos
de uma democracia que termina no portão das fábricas. No...-
-plàno da produção e reprodução do sistema, por sua vez, os
trabalhadores estão presentes unicamente como força de tra
balho: dentro da legalidade burguesa o contrato de trabalho-:
autoriza, e o sistema de máquinas executa, uma verdadeira
lobotomia do trabalhador, o qual ingressa na produção como /
uma mercadoria de tipo especial. 29 �
Sem transformações significativas destas características
básicas, o capitali§mJl__prosseguiria o seu avanço, cumprindo
aquilo que maisde uma vez foi rêferido como a sua «missão
histórica>. A diminuição da jornada de trabalho, a elevação-
dos salãrios e o sµi-gimento de novas formas de negociação
salarial nada trarj� . de qualitativamente diferente. Assim
sendo, esperar (e �advogar) mudanças na «distribuição> das
fatias de renda que tocam aos trabalhadores e às demais
classes seria deixar-se levar por mitos do «socialismo vul
gar>. Menos ainda, caberia esperar que os trabalhadores pu
dessem adquirir certo grau de controle sobre os processos
produtivos. O capitalismo, a caminho da automação, conver-
teria o trabalhador em apêndice do processo produtivo, �
tornando-se, portanto, ainda mais opaco, o mecanismo daV
exploração. Esta radical descrença nas possibilidades de mu
dança das ordenadas sociais do sistema seria reafirmada,
com mais ênfase que nunca, na Crítica ao Programa de
Gotha (1875), que Lênin haveria de tomar como uma espécie
de testamento político de Marx. 30
29. Procuro aqui manter-me fiel à concepção de :Marx do trabalhador metamorfoseado
na esfera da produção em mera.daria consumida produtivamente pelo sistema. \
Os problemas inerentes a esta coneep,;io - que estende e ab9olutiza. o conceito
de '"•ubordinação real" - 1altam ...,. olhos no diálogo imaainado por Marx entre
o operário e o capitallata. O Primeiro af'"i.rma: '"Exi.io. pois. a ;-4o tlOMIIOl
de trabalAo, e, ao fazê-lo, nio faço mala que exiair o valor de minha mercadoria. 1
como todo o vendedor". O próprio trabalhador aparece aqui como um "funcionário
do capital". Insinua-se uaim uma· viaão do capitalismo não apenas "centrada '
sobre o capital", mas em que tudo o que existe, existe J>Clrll e em função do /
capitaL Não caberia aqui (e a mim) tentar a critica desta posicão, que /
parece-me no entanto carrepda de problemaa. Veja-se José A. Giannotti, .
.. Contra Althusaer", in TeoriG e Prdtica, São Paulo, n. S. e E. P. Thompson, '"The J
Poverty of Theory", in The Povnt,, of Tl&eo,,, at1à OtJun- E880!/S, Londres 19i8.
Equivocoe do mesmo trênero - mu com diféi'!!ntes raízes .t.�óricas - ettão
também prttentes em dlve..- economi1tas de extração marxiaiaZ · entre eles. noto
riamente, Henry Braverman, em Lab011r attd .V011opol!/ Capital, •Nova Iorque 19i4.
ao. '"Critique of The Gotha Proirramme" it1 K. Marx and Fred�:,,Enirels. Se�cteà
Worb, YOL II, Moscou 1962. V. L Lenin, '"El Estado y la R"!(111§ci6n"', in Obnu
Eecogid,u, :Moscou 1969, p. anu. V. L Lenin. Sc�ctnl Work-.'rwL I. p. 460.
-.�.
73
Não obstante as invariâncias - e até mesmo em decor
rência delas - a expansão-com-transformação se encarre
gará de criar as condições objetivas que irão permitir a ne
gação e superação do capitalismo. Este novo quadro não
será, · contudo, deliberado e conscientemente construído. Co
mo a toupeira de que fala Hegel, ele avança sob a superfície
dos fatos, para vir à tona no ocaso do capitalismo. Só então
- e mais uma vez - torna-se eficaz a ação da força na
história. 31
Escravidão x Capitalismo
74
minantes em «última instância>, havendo na realidade uma
relativa interdependência entre as diferentes «instâncias».
Nos anos 60, Althusser e seus seguidores intervieram estre
pitosamente no debate, afirmando ser necessário distinguir
entre «determinação em última instância», sempre econômi
ca, e «dominação», que pode caber à «instância político-legal
ou à ideológica». 33
Vistas a partir da análise anterior, estas posições pare
cem, no entanto, omitir uma questão a um só tempo preli
minar e fundamental. O problema não consiste em estabele
cer o peso relativo (o «índice de efetividade» na linguagem
pedante de Althusser) do econômico, ou a natureza do seu
relacionamento com outras «instâncias>. A razão fundamen
tal pela qual se pode pensar a época moderna através de uma
obra como O Capital (dedicado-'.ào estudo «das leis naturais
da produção» no período capit.&fi.sta)· �• provém de que no
capitalismo a produção e a vida material em geral passa
a ser regidas .por mecanismos autodeterminados e determi �
nantes. Diante deles: pessoas e classes são ievãdas a rela
cion�r-�e como a «personificação> ou «suporte> de categori�
econoIDicas.
Mudemos de cenário, passando por um momento à escra
vidão romana. Segundo Marx, «o escravo romano se achava
sujeito por grilhões à vontade do seu senhor, o operário assa
lariado está submetido à autoridade de seu proprietário por
meio de fios invisíveis>. 35
À primeira vista o contraste acima estabelecido apenas
reproduz e sublinha a distinção, tantas vezes feita, entre
coação extra-econômica e coação (somente) econômica -
que caracterizam, respectivamente, a escravidão (mas não
apenas ela), e o capitalismo. A imagem empregada por Marx
permite-nos, no entanto, •levantar um outro contraste e atra
vés dele formular uma questão de fundamental importância
para o desenvolvimento deste trabalho.
Admitamos de saída uma distinção entre : a maneira pela
qual o trabalhador é levado a trabalhar (se por coação extra
econômica, ou não) ; e os fallores que determin� ,.,a necessi
dade social do seu trabalho. Isto posto, lembremos·" que o tra�
U. Loaia AlthlUSe!'. POMr Jf•n:. Franeoia 1fupbo, Paria 1965, p. 206 a H'- :,'
,,
Lni• ª"" Plii�w. Montb' Revirw Presa. 1971, p. 1a.a.1S6.
84. O Capital. tomo 1, Prólogo. XIV.
Sli. O Capit.al. tomo 1. p, 482.
75
balho que os capitalistas extraem de seus operários está deter
minado «pela necessidade de exploração que tem o capital
que o emprega». 36 No escravismo, contudo, de acordo com a
sentença anterior, o trabalho dos escravos seria determinado
pela «vontade» dos senhores. O que estaria, porém, por trás
desta vontade?
A questão que acabamos de formular foi mais de uma vez
tocada, ainda que de passagem, por Marx. Numa delas, de
clara o autor, referindo-se à escravidão e à servidão: «aqui,
o império das condições de produção sobre o produtor fica
oculto por trás das relações de domínio e sujeição que apa-
• recem e são visíveis como as molas imediatas do processo
de produção». 37
A se admitir este último juízo de Marx, «por trás::>' do
chicote estaria, pois, também no escravismo, o «império trlas
condições de produção,. A diferença entre o capitalismo é os
regimes pré-capitalistas residiria, então, na maneira pela
qual se extrai o trabalho - a qual permitiria uma maior
ou menor visibilidade das condições de produção e das deter
minações que daí provêm.
A primeira objeção a ser levantada a esta proposição é
de que ela se choca com as numerosas passagens em que
:Marx busca justamente caracterizar o capitalismo pelo im
'rio - que com ele se instala·- das condições de produção.
estas passagens, fique bem claro, não se trata de afirmãrl
ue o império das condições de produção torna-se «visível> \
1 e, sim, que ele é implantado com o capitalismo. 11 __...;
- Retornemos, por um momento, à escravidão romana.
A produção extraída dos escravos (bem como dos campo-
neses livres) , coberto o seu parco consumo, será absorvida,
/ digamos, pelo consumo suntuário das camadas proprietárias,
. pelas campanhas militares e também pela plebe romana. Na
/ medida em que garanta a sustentação destes traços funda
mentais da formação social romana - o ócio das classes pro
\., prietárias, o expansionismo militar, bem como o pão e o circo
\ do «populacho» ..;.;.:; o trabalho extraído dos escravos é evi-
dentemente necessm/-¼, à preservação deste regime social. Não
há porém como á'dfuitir que essa necessidade seja de natu-
36. lnlàito, p. 68.
37. O Capital. tomo III, p. �119 !trrifo A. B. Cutro).
38. Veja-se este tl!.."tto, às p. 69, 70, ":Z e a nota 28.
76
reza «econômiêà:» ou, mais precisamente, que ela derive das
próprias_�oEdições de produção.·
Convém agora atentar· para -a importante questão da ma
neira pela qual o trabalho é obtido.
O trabalhador livre, «como qualquer outro vendedor de
mercadorias, é responsável pela mercadoria que subministra
e que deve subministrar a certo nível de qualidade se não
quer ceder o terreno a outros vendedores de mercadorias do
mesmo gênero». O escravo, contrariamente, cuja sobrevivên
cia «está garantida, ... só trabalha sob o acicate do terror
exterior». 39
Que conclusões sugere este confronto?
Na tradição da economia política, a resposta é clara e
uníssona. O escravo, não tendo interesse no que faz, traba
lha mal. O trabalho do escravo é de qualidade fn:erior ao
trabalho livre, convicção que Cairnes resumiu em seu fa
moso juízo: o trabalho escravo «é feito relutantemente, é
inábil, e carece de versatilidade>. 40 Marx, como é bem sa
bido, endossou, em boa medida, a posição de Cairnes, no que
seria seguido por uma legião de autores.
Não caberia aqui a crítica desta posição. 41 Acredito, no
entanto, que ela se funda em mal-entendidos e equívocos
vários, que se condensam, justamente, na idéia de que o tra
balho escravo, feito com desinteresse, ou mesmo com relu
tância, é de má qualidade.
Convém advertir, antes de mais nada, que o traba�
lizado pelo moderno proletariado, nem é feito com i��;r:����!
nem é apreciado pela sua «qualidade>. O que faz traballiãr
o proletário, uma vez no interior da fábrica, é o ritmo das t
máquinas, é o avanço das correias de transmissão, é, em 1
resumo, a _ç_o�pu�sªº- técnica, à qual ele se encontra subme- \
tido.u O --seu - tra6allio, simples e monótono, longe de ser )
39. Inédito. capítulo VI, p. 68. A IObrevivência do trabM!ho assalariado, contraria
mente. não é motivo de preocupação para o eapitalista: ..O capitalista pode
deixar tranqüilamente o cumprimento desta condição ao instinto de perpetuação
doa operários". O Capital. tomo I. p.. 481-482.
40. John Cairne:,", "The Economic Baais of Slavery". reproduzido' em Ditl Slovs'1/
Pa11? ColetAnea editada por Hugh Aitken, Boaton 1971, p, 28.
41. Antônio 'Bàr!'Oa de Castro, Em tonw à Q,&utdo tla4 TdtniotU no Escrovirm!'•
mimeoirrafado, Mestrado em Desenvolvimento Asricola, Rio 1976. Uma venao
revista e aií\pliada do raacunho apresentado à dl.scuuão em 1976 11erá brevemente
publicaJa. .·
42. Sobre a impgrtãneia da máquina (e do relógio) no controle do trabalho na
fibric:a capitalista. veja-se Andrew Ure. Tl• Plailosqplay o/ Ma,.u/ach<r�•. Frank
Cus and Company Llmited, Londres 1967, p. 13-23.
7.7
apreciado qualitativamente, é medido pelo ponteiro do reló
gio. Vê-se pois o quanto se equivoca um autor como Fraginals,
quando, ao admitir muito a contragosto o avanço da meca
nizacão dos engenhos cubanos operados por escravos, decla
ra que isto só foi possível, porque o escravo não teria de
, «realizar tarefas novas ou distintas, mas sim necessitava mul
i I tiplicar ao infinito os mesmos trabalhos materiais de sempre,
, acoplando seus músculos aos pistões de vapor...> 43 Como
· ; se isto não fosse a própria essência da mutação trazida pela
: ; Revolução Industrial, para os trabalhadores livres da Ingla-
i / terra! Taylor, verdadeiro codificador dos princípios que re-_
' gem o trabalho na indústria moderna, afirmaria: «Um dos �
primeiros requisitos para que um homem se adapte ao ma- /
nejo do ferro gusa como ocupação regular é que ele seja ;
tão estúpido e pachorrento que mais pareça em sua consti- !
tuição mental uma vaca ...>. 44 --'.
78
necessita estar «maduro» para· ser posto em questão. Existe
nele, desde sempre e a qualquer momento, um inextinguível
potencial de rebeldia e rebelião. Já na Antiguidade clássica,
recomendava o autor de Oeconomica, que se evitasse a con
centração de grandes levas de escravos da mesma naciona
lidade. 48 A advertência, como é bem sabido, atravessa
ria os tempos ecoando inúmeras vezes nas terras do Novo
Mundo. Antes mesmo do surgimento dos primeiros engenhos
no Brasil, já haviam eclodido rebeliões e surgido os primei
ros «quilombos:., na colônia açucareira portuguesa de São
Tomé ... 49
Em outras palavras, a escravidão insere, no próprio âmago
do sistema social que sobre ela se ergue, uma situação con
flitiva, e, com ela, uma energia política primária, que amea
ça, indetermina e introduz variantes na sua evolução histó�.
rica. Isto não impede, sem dúvida, que o escravismo possa ·
atravessar séculos gozando de relativa estabilidade; haveriii'°.
no entanto que explicar como ele se mantém . . . Em suma, e \
como muitos haveriam de entender na passagem do século
XVIII para o século XIX, existe um São Domingos inscrito _; ;·
como possibilidade em cada sociedade escravista; também
existem, no entanto, diversas maneiras de abafar, contor-
_::; !Dar, ou desviar, o choque de vontades que se encontra em
/ estado latente no âmago desta sociedade. 'j
79
social não pode ( e esta é umâ questão de princípio) deter
minar a forma e a direção em que ela se transforma, como,
· 1·
também, a artificiosa separação entre feudalismo e centros
urbano-comerciais.
Uma outra maneira, mais fecunda, creio, de criticar Sweezy ,
, consiste em mostrar que ele supõe a priori - e equivoca-
damente - que se o feudalisrno se move por razões que
/ lhe são inerentes, isto terá de se dar de forma análoga ao
\_ apitalismo. A premissa, implícita em toda a argumentação
�de Sweezy, transparece claramente, quando, tentando ser tão
«conciso quanto possível», o autor indaga: «Qual era o prin
cípio motor (prime mover) por trás do desenvolvimento do
feudalismo na Europa Ocidental?», ao que acrescenta, de ime
diato: «No caso do capitalismo podemos responder à questão
positivamente e sem arnbigüidades.... Existe algo análogg_
no caso do Jéudalisrno?> 61 Visivelmente, não ocorre a Swee
a possibilidade de que urna estrutura social seja movida por�
algo que .lhe seja inerente e, no entanto, essencialmente di
verso daquilo que move o capitalismo.
A pos1çao de Sweezy foi em certa medida facilitada pela
argumentação de Dobb. De fato, também este último busca
entender o «declínio do feudalismo>, através de mudanças
similares às que regem a evolução do capitalismo.Isto fica
desde logo patente, quando o autor declara na introdução de
seu livro que: «Nos capítulos que se seguem, a influência
exercida pelo cambiante estado do mercado de trabalho, irá,
acertada ou erradamente, ser um tema recorrente>. 52
É bem verdade que ao longo de seu livro DQbb iria intro
duzir a existência e o agravamento dos conflitos entre cam
poneses e «lords», abrindo com isto espaço para um tipo de
argumento que tem a ver com a estrutura própria e a pro
blemática específica do feudalismo. Ocorre, no entanto, que
o próprio Dobb fecha esta avenida ao colocar de um lado
o modo de produção ( dito de pequenos produtores) , e do
õl. Idem. p. 103 (grifo A. B. C.).
SZ. M. Dobb, · Stvdiu in ''"' De11elop111nst of Capitaliam, International Publishers.
1974. p. 23. Não caberia aqui desen� uma critica--'&- Dobb. Não POIIIIO contudo
deixar de mencionar o quanto 110& anacrônico faJa,-'t-im "mercado de trabalho"
noa aéculoa XIV e XV. Além disto. é fácil ver �1!11. situações de escas:sn ou
abundlncia de trabalhadores a que ae refere Do�'!fflefletem fundamentahnente
conjunturas dffffloonífica11 distintas. lias. se assim e�Jtf:;:_,cerne da questão retorna.
em 61tima análise, ao Ambito do (11eo)malthuaian�• tendo a palavra autores
como Postan e Laduriel M. M. Postan. Eua11s J.· Medieeal Aaricvlh&.. aKd
ª""•ral Problema of tA• MHieNI E�0ttom11. Cambridp ·1973, e Le Roy Ladurie.
"L'Histoire Immobile", Anuales E.S.C., 1974, p. 673-692.
80
outro, a «classe dominante:& - uma camada social movida
por «nece�i.<!füies.2>.-que lhe são próprias. No tal mõâo-ãê
produção de pequenos produtores, já existe «o embrião das
relações de produção burguesas», e, desde que os pequenos
produtores consigam apropriar-se de algum «surplus», come
ça a haver «acumulação de capital» no seu interior. 53 Have
ria, no entanto, que liberar a pequena produção da excres
cente camada social que a explora, cabendo às lutas entre
camponeses e senhores levar a efeito esta progressiva liber- -.
tação. Ora, se assim é, o segredo da transição é que não 1
existe propriamente transição, apenas «maturação» de um
capitalismo já existente (como? desde quando?) em estado
larvar.
Polarizado pelas posições de Dobb e Sweezy, a famosa con
trovérsia esvaiu-se em confrontações principistas e, '-!má._�:(
feita.c;. e refeitas todas as possíveis citações de Marx e Engels,
foi perdendo interesse ... 64
Novas possibilidades vieram a se abrir recentemente, com
um vigoroso ensaio de Robert Brennei:z buscando mostrar
que as várias mudanças que se sucedem e se combinam na
superação do feudalismo são determinadas ou, pelo menos,
profundamente marcadas pelos conflitos entre camponeses e
senhores.65 A posição de Brenner tem indiscutivelmente vá
rios precedentes. Já Rodney Hilton havia demonstrado o
quanto a transformação e, a rigor, a própria superação do
feudalismo na Inglaterra se devia às lutas camponesas vi
sando a redução das prestações de serviços aos senhores, a
retenção dos frutos do seu trabalho, um maior acesso aos
bosques, às pastagens, etc. Também alguns historiadores so
viéticos haviam procurado demonstrar a importância dos
conflitos de classe, na evolução e transformação do f euda
lismo. 56 O seu trabalho não foi, no entanto, devidamente
apreciado, por várias razões·, entre elas um certo simplismo
63. TA• Tl"CIMiti011 fro-. Fftl<ialiffl& to Capital'-, )(. Dobb e outros, Londra 1976.
p. 167.
l.
64. Curiosamente a J)OAição de Swees:,, duramente criticada e repudiada por tan'
voltaria a florescer nos trabalhos de Gunder Frank e, 1obretudo, de lmman�
. Wallerstein. enquanto os adeptos de Dobb continuariam denunciando u lncon•
sistências da posição contrári11-,, ,,
55. Robert Brenner, "Aiirarian Clua Structure�'-•'iiii Economia Development. ln Pre-
Industrial Europe". in Paat and Praent,
56. Veja-se. por exemplo. E. Kosmimky, -rhe ·.
;7&.
from the XI to the XV Centuriea", Paat .v ._ Prnfflt, abril. 1956, e.
levantamento do■ trabalhos realizados por h _ ·r1adore1 do Les�. ace r,e a
g:r�.=
1\ution of Feudal Rent ln Ena-
-'•-d
oadoi&ky
de exploração'" (e ,ua variabilidade) ■ob · 1>: ,feudalismo, veJ&•■e · R __...;
8
"The Distribution of the Airrarian Produet ia· Feudalism", ln J,,..,.....1 °1
lliator,. 1951. p. 2'7-266.
81
na argumentação: a confrontação de classes surge por vezes
como mera ilustração do princípio universal de que «a luta
de classes é o motor da história». Além disso Kosminsky,
por exemplo, após realçar as confrontações e lutas, declara:
«A grande luta histórica do campesinato medieval por terra
e liberdade contra os seus opressores era objetivamente orien
tada .l!cara_, a libertação das forças produtivas dos grilhões
feudais». Vale dizer, as lutas camponesas, como tal, nada
introduziriam de novo na história. Importa, sim, o seu re
sultado: a libertação das forças produtivas. Qs camponeses
seriam, pois, seres prograII!ado§, que dão cumprimento, atra
vés de suas fotãs (-;objetivamente orientadas»), aos desíg
nios de uma deidade histórica, que tudo orienta no sentido
da expansão das forças produtivas. Quanto aos senhores .
( quase uma encarnação do mal), apenas resistem, cruel e ;
inutilmente ao inexorável desenrolar desta meta-história.
Contrastado com estes· prfdecessores, Brenner apresenta
uma vantagem fundamental. Se à luta de classes cabe efeti
vamente um importante papel na transformação do feuda
lismo, não existe uma lógica econômica regendo a sua evolu
ção. Na Inglaterra, os camponeses venceram. sucessivas ba
talhas, a servidão praticamente desaparece, e a pequena pro
dução camponesa veio a florescer; na Polônia, contrariamen
te, uma sucessão de vitórias senhoriais levaria à total sub
missão dos camponeses e ao definhamento do próprio setor
mercantil, mantendo-se praticamente intacto o feudalismo
até fins do século XVIII. 57 A relevância destas lutas polí
ticas - e de seus mc,erlos resultados - parece ser uma
das razões da indeterminação dos caminhos do feudalismo,
que, salvo em certas regiões da Europa Ocidental ( e, talvez,
do Japão), não tendeu a evoluir em direção ao capitalismo. 58
A razão fundamental pela qual a luta de classes possui uma
importância decisiva na transformação do feudalismo deriva
de que a relação de produção básica é, também, e, simul
taneamente, uma relação de dominação. Assim, a luta contra
67. M. Malowist. "The Eoonomic arid_ Social Development of the Baltic Countries from
the Fiftenth to the Se,·enteenth Centuries'", in TA• E<"Ot1oWlth Hutorv &trin,,.
---- S,glo
1959, p. 177 e 189; Witold Kula. T80riG EcOt1ómic,,a àd Siat.MG Fo:wiaL�·•'
XXI. 197', p. 229. i ,:: :
_;
58. E. Hob•bawn, "Introdução a Earl Marx••. in Pr--C11 pi talut Economi• Forfldt�ÕM.
International Publishers, 196� p. 43. Veja-se, a propósito, a aceitação., ·iiÍ1Jro
reticente), por parte de Dobb, do questionamento, feito por Hobeba�·'.. élas
tendências evolutivas do feudalismo, Tu T11111aitio11.. •• p. 165.
82
a intensificação dos serviços na segunda metade do século
XIV, ali onde ela é vencida pelos camponeses, implica, a um
só tempo, em alívio nas condições da sua vida material, e,
possivelmente, ampliação do seu raio de manobra, do seu
espaço social.
Retornemos por um momento ao capitalismo e, com ele,
à Economia Política.
São inerentes ao processo de reprodução e ampliação do
capitalisrriõ-�dências várias (CÕino a renovação dos méto
dos e técnicas produtivas, o aumento da produtividade do
trabalho, a concentração do capital, etc.) que dão margem, e
até mesmo induzem, um gênero de conflito de classe peculiar
ao capitalismo. Nele, os capitalistas estão presentes com ã
sua «máscara econômica> 59, e os trabalhadores discutem ba
sicamente o valor de- mercado de sua força de trabalho -
!
não estando absolut�ente em questão o balizamento polí- -- ·
tico da sociedade.
Na tradição marxista, este gênero de conflito - um eufe
mismo da luta de classes - é usualmente referido como
«lutas econômicas>. Marx estudou o capitalismo na suposi-
ção, amplamente justificada, de que os choques entre capi
talistas e proletários permanecem, em regra, dentro deste
território. 'º Este tipo de suposição não poderia contudo ser
feito, ali onde as relações sociais não se reificaram, e ine
. xiste o território relativamente neutro que acabamos de men
cionar. Bloch observou certa vez que no século XIV os levan-
tes camponeses eram «tão inseparáveis do regime senhorial
quanto as greves o são do capitalismo plenamente estabele
cido>. 61 Ocorre, no entanto, que o capitalismo possui uma
apacidade aparentemente limitada de absorver este tipo de
ílhoques, enquanto as rebeliões camponesas punham à prova
__ cada_p__asso aspectos e traços do regime feudal.
� O que . ficou dito anteriormente não implica obviamente
em afirmar que a luta de classes esteja sempre presente
83
e ativa no feudalismo, ou que dela apenas provenham as
suas transformações; a confrontação de classes pode, pelo
contrário, submergir por períodos mais ou menos longos, per
mitindo a cristalização de relações de sujeição - e de pro-
dução - sob o manto de uma legalidade feudal. 62 _/
O que se pretende frisar é que o feudalismo tem em sua \
base, uma «substância» histórica - união química entre o j
econômico e o político - inexistente no capitalismo. Num tal
contexto, não tem, pois, cabimento discutir o peso relativo do
«econômico», que simplesmente não existe como tal. Tam- !
pouco tem sentido pretender sequer estabelecer a «lei econô- \
mica que preside o movimento desta sociedade>. 63 Em outras
palavras, este regime social e sua evolução são rigorosamen-
te intratáveis pela economia política, e não se pode fazer ;
com ela 0 �!lál�g_o do que Marx fez para o capitalismo. u
4
• ✓-.
�{-'-/
84
destinadas ao mercado europeu. Aos interesses mercantis ca
beria não apenas assegurar o mercado externo, como finan
ciar a implantação das unidades produtoras, e garantir o
aprovisionamento de escravos. Sumariando as característi
cas daí provenientes, diria Caio Prado : ca colonização dos
Trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, ...
destinada a explorar os recursos naturais de um território
virgem em proveito do comércio europeu». Ao que acrescen
ta enfático : «Se vamos à essência da nossa formação, vere
mos que na realidade nos constituímos para fornecer . . . o
comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo
exterior, voltado para fora do país e sem atenção a consi
derações que não fossem o interesse daquele comércio, que
se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo
se disporá naquele sentido: a estrutura bem' como as ativi-
dades .do país>. •s �:.;:-
Fernando Novais, que adota e radicaliza esta perspectiva
crê que as relações coloniais podem «ser apreendidas em is
níveis : primeiro, na extensa legislação ultramarina... ; � se
gundo, no movimento concreto de circulação> . . . O destaque
atribuído às normas legais se justificaria, antes de mais nada,
pelo fato de elas «cristalizarem os objetivos da empresa co
lonizadora>. . . «ignorar aquele _projem. básico, que por vários'
séculos informou a política ultramarina das nações euro
péias>, seria «desconhecer os mecanismos profundos do pro
cesso e ficar na superfície dos eventos ...> já que a chistó-
�� da colonização moderna se processou segundo aquele de- •
�rato fundamental>.
16 .
85
do açúcar de Chipre. O patiicio Frederico Cornaro de Ve
neza tem uma grande propriedade, Episcopio perto de Li
misso, onde se fabrica tanto açúcar, que julgo com ele se
poderia abastecer o mundo: o açúcar melhor vai para Ve
neza onde as vendas aumentam cada ano. . .. os indivíduos,
i / quase quatrocentos, se distribuem em suas tarefas, uns aqui,
: : outros ali; há tanta aparelhagem, que me julguei em outro
mundo, e caldeiras tão grandes, que ninguém me tomari�
/ a sério, se as descrevesse. Aos sábados faz-se o pagame�t�l
!
: ' do pessoal». 67 _j
À época em que o viajante italiano fazia o seu relato, a
produção do açúcar em ampla escala começava a espalhar
se pela orla do Atlântico. Nesta passagem, umas poucas mu
danças técnicas seriam registradas. Além delas, no entanto,
uma transformação de grande alcance iria verificar-se-:. a
introdução em massa de trabalhadores cativos. 68 Admitamos,
pois, desde logo ( e isto foi diversas vezes salientado) que
não foi o mesmo contexto histórico que produziu a grande
�anufatura açucareira e o moderno trabalho escravo: os ca
! tivos eram extraídos de formações sociais diversas e levados
\ a um casamento forçad�, �om u�a •o�ganização produtiva
· em tudo e por tudo alheia a sua historia.
- Concentremo-nos, por � momen_to,_ �obre alguns traços
-em-tad por todo alhcla a sua_ lusto,l'Hr.
�D<.,a.,v,.. � 0
escon a os C!J'.>?
pequenos
�'- ensaios,
� � setn 'maior'
• � re�
evancia� ci..his-
.. A •
·\ i \ e 86
instalações, mecanismos de prensagem, apetrechos para o tra
tamento da calda e clarificação do produto (pai-a o que eram
mandados vir «mestres» das ilhas atlânticas). Tudo isto, evi
dentemente, sofre desgaste, devendo ser reposto e reparado,
a cada safra, e segundo determinadas normas técnicas. Os
trabalhos do campo, por sua vez, exigiam a utilização de
grandes turmas de escravos, aos quais caberia suprir o enge
nho de cana e lenha em quantidades ditadas (respeitadas
as restrições impostas pelo calendário agrícola)�pela capa- >;:
cidade das instalações e, claro, pelo ritmo em que se desen-
volviam os trabalhos de processamento. 7º
Evidentemente, havia ainda a necessidade de adquirir
escravos e de providenciar certos itens do seu consumo. Tudo
isto requer, além de um complexo trabalho de administração,
um determinado nível de receita, proveniente da venda _!do
açúcar e complementado, em maior ou menor mediàa, J)ót
diferentes modalidades de crédito. Insinua-se aqui um quaàro
profundamente diverso daquele estudado por Witold Kula e
referido às grandes fazendas polonesas exportadoras de ce
reais. Neste último caso, a grande unidade exportadora
(como a pequena economia camponesa) não conhece ca pos
sibilidade de «quebra> no sentido estritamente econômico do
termo, ou seja, um estado de insolvência devido a um erro
de cálculo econômico ou a mudanças em elementos deste últi
mo. Se alguma fazenda ou exploração camponesa chega
arruinar-se nesta época (que se estende até fins do século �
XVIII) , a causa fundamental reside na esfera dos fenômenos
não-econômicos>. 71
O anterior pretende deixar claro que o engenho não pode
ser governado pela «vontade> (e os caprichos) do senhor. \\
Os que assim o foram terão sucumbido sob o peso das obri
gações não cumpridas - e a impressão que se tem é que,
por estas e por outras razões, os engenhos trocavam de \
dono com relativa freqüência. 72 Numa palavra, uma vez cons
tituído, o engenho se antr..9�orfiza e passa a determin8;1"
as ações do proprietário. Não e por outra razão que An�oml
:f,a -.�
70. Antônio Barros de ·• Oe TrabaU.O. do Açtleor " • Politi<G doa Snltoru.
Te... de Doutoramenti/j,ltrsão revista. a ser publicada.
'11. Witold ltula. Teoria '-��CG do Siat.,,,.. Fndal, México 197,, P, 2%7-l28
(parintesia lntrodmidJi.til!lr A.B.C.). .
72. Rae Jean Deli Flo�'.,:lfaA.ia Socàff11 ia tA• Mid..Coloftilll Pn,od: Tb S
Plaalera. Tobaeco Groow-_a. M....-"4ata au ArtiaM of Salt111dor •• �• R•.::::•
Teoe dr Doutoramento; Universidade do Tuu, 1978.
87
abre a sua obra clássica, relacionando tudo aquilo que um
engenho quer: «Querem as fornalhas, que por sete ou oito
meses ardem de dia e de noite, muita lenha ... » «Querem os
canaviais ... » «Quer a fábrica de açúcar ... » ;.
Diante do que precede, que dizer do «sentido da coloniza
ção», definido, seja por mercadores, seja pela política colo
. nial? A serem válidas estas colocações, a vida material da
colônia seria algo amorfo, uma matéria sem consistência pró-
. pria, indefinidamente plasmada e replasmada em função de
interesses externos. 74 Mas esta concepção parece ser funda
mentalmente equivocada. A produção em massa de mercado
rias cria raízes no Novo Mundo, objetivando-se sob a forma
de um complexo aparato produtivo. O «objetivo» maior desta
realidade , ;- o seu «sentido» se se quiser - lhe é agora
..:,i
fTnerenteJ:;r.itender as suas múltiplas necessidades, garantir a
/ '. sua reprodução. Em tais condições o comércio é estrutural-
mente recolocado e os interesses mercantis - bem como os
da Coroa - terão necessariamente que ter em conta as de-
terminações que se estabelecem _.aQ_JlÍVeLda ___pr9g_u�9.__ Em
outras palavras, a forma pela qual os interesses externos
atuam sobre a colônia passa a depender «primeiramente da
sua solidez e da sua estrutura interna». 75 O «projeto» co-
,': lonial e/ou mercantilista subsiste, sem dúvida; o seu raio
de incidência - especialmente em conjunturas adversas -
fica no entanto severamente limitado pelo surgimento na co
lônia de uma estrutura sócio-econômica, com seus elementos
de rigidez, suas regularidades, seus interesses e, por últi-
,1
ultra,.1·
com razão, que ..Formação Econômica do Brasil Colônia" de Caio Prado conatitui
um verdadeiro "salto qualitativo'º... "no caminho do conhecimento do arcabouço
econômico-social" da colônia: ao que acre!!centa, "porém a6 na medida em que
o permitia o mirante onde se colocava o pesquisador - a perspectiva do
comércio exterior" (Jacob Gorende;, ob. cit.,· :,,. 17). O juizo de Gorender
merece um reparo. No correr da ·"própria obr'ií,"..ÂJn questão, Caio Prado
passa, repetidas vezes, a "perspectiva do com�• exterior", Mm o que, aliáa.
dificilmente poderia ter avançado o ••conhecime"'°'i.<i o arcabouço econ�ial..
da colônia. A postura de Caio Prado parece aim�_i�vel - no sentido apontado
por Gorender - quando o autor trata de c�'!r•zar o periodo oo!onial (ou
estabelecer o ,eu "balanço"), através de jul,..,.. <·Ue limitados quanto mativoa,
especialmente no capitulo pr:111eiro. e às p. 1%2443:
75. O Capital, tomo III, p. 321.
88
mo, mas também . importante, pelos conflitos que lhe são
' •
propnos ... 76
O que precede tem profundas implicações, que não serão
aqui exploradas. Não seria demais, contudo, indicar, através
de um episódio histórico ocorrido na segunda metade do
século XVII, o quanto a coroa portuguesa conhecia e tinha
em conta os problemas colocados pela preservação da estru
tura produtiva escravista açucareira.
Diante das dificuldades trazidas pela relativa carestia do
açúcar brasileiro - num contexto em que cresce a cada dia
a oferta procedente do Caribe 77 - decide Sua Majestade li
mitar o preço do açúcar, no ano de 1688. «Fui Servido re
solver com os do Meu Conselho do Estado do Brazil, tivessem
os ·açúcares tal moderação no preço,"que não sendo de pre
jufao para os Senhores de Engenho,"'-pudesse também ser
útil para os compradores em ordem a poderem ter melhor
saída e aumentar-se o comércio ... > Para tanto o açúcar fino
da Bahia deveria ter o preço de «até 950 réis ... > Ao que
se acrescenta: «E porque também desejo mostrar aos lavra
dores do Estado do Brasil que no mesmo tempo em que lhe
mando limitar os preços aos seus açúcares, com especial cui
dado e providência atendo aos seus interesses. . . Dou for
ma para que os gastos dos Engenhos não possam crescer,
pondo-se preço certo os gêneros de que se fornecem ... >
76. Aa pro�ições acima t.êm mais sentido e propriedade no caso do açúcar, mas
não dei%am de ter validade, admitidas certas qualificações. no caso de outras
atividades coloniais. Contrariamente o capital mercantil português e a politica
colonial lusitana eram capazes de moldar, segundo os aeus interesses e designioo,
o ocorrido em determinada& atividades. Este seria o caao, por exemplo, do co
mércio do ui. Veja-oe, a respeito, Myriam Ellis. O Monop6lio tio Sal wo E•tado
do Bruil (1631-1801), São Paulo 1956. Conviria a propósito relembrar, ainda
que de pasaagem, o predomlnio, a ririoa t{tuloa, da economia açucareira no
perlodo colonial. De acordo com Jlanricio Goulart. "Seriam. na nossa estimativa.
66 ou 70% de escravaria impottada destinando-ae aos engenhos: e a restante,
150 ou ZOO mil negros, aplicada em oUU'OII mi.tera.•• " O autor refere-se aqui
unicamente ao aéculo XVIL A Éamu11idão Afrieana. 110 a,....;1, dlu Orignu •
E•trsaolnl do Tnifi,:o, São Paulo, 1975, p. 123. Para uma apreciação maia ampla
da qneotão, veja-se o capitulo V da Hiat6ri4 EconcSmica, de Roberto Simonsen.
Veja--. também, a critica contundente de Gorender a toda uma pma de
autores que parecem erer que "a .finalidade deliberada do colonizador pujrue
'
estabelecer o modelo estrutural e clinâmieo" •.• ; para os quais "A funçao
determinante, o sistema (ou,,piodo) de PrJ!!i.ução ê derivado". O comentl.rio ourire
n
referido a um trabalho de Florestan FernAPdes. mas o seu alcance ê seguramr te
de
muito maior. Gorender, ob. cit., p, �,t'·Veja-se, ainda. Antônio Barro•
rnvl
Castro. uAs mãoa e os pés do Senho�$ Engenho. Dinâmica do � "':
UNICAMP, 19,li, on
�lonial", Conferência tobre Históri:" e .·�l,cias Socinls,
:,;_if,&:�
1ao augeridas alitumas das Idéias acima.
77. João Peixoto Vieps "Parecer e Tratada felto 110bre oa exces51v ,
_. o
"•
;:;'�!'.:.q;::
calram 110bre as lav�uras do Brasil arrufhatido o comércio d"st"
Biblio(�aa NaciOJIGI do Rio de Jattrira. •vol. 20, p. 213 e 22�.
89
1
Segue-se o tabelamento do preço do breu, do cobre, do ferro
e do pano. 78 ,,----
90
Até este ponto foram ressaltadas unicamente as determi
nações que se manifestam ( e devem ser atendidas), ao nível
mesmo das unidades produtoras. Existe no entanto uma
outra ordem de questões deixada de lado até o presente.
Refiro-me às condições do mercado externo; ao aprovisio
namento de mão-de-obra; a problemas fiscais, monetários,
etc. Em todas estas frentes podem surgir dificuldades que
venham a comprometer a situação econômico-financeira dos
produtores, e que não podem, em princípio, ser contornadas
por medidas tomadas no âmbito das unidades produtoras.
Na busca de soluções para estes problemas, as camadas
proprietárias lançariam mão de todas as instituições ao seu
alcance, -chegando mesmo, em certos casos, a infiltrar-se nos
centros de poder metropolitanos para, a partir deles, advogái- :
seus interesses. Seus objetivos imediatos variavam, natural- i
mente, com as circunst�ncias : garantia de reserva de mer- !
cado, suprimento de catiws,
� �- - favores
. '
fiscais, etc..
---!
Um dos exemplos mais notáveis de militância - indiscuti
velmente bem sucedida - por parte dos proprietários de
engenhos, veio a ser registrado no caso das colônias açuca
reiras britânicas. 81 Na grande colônia lusitana, porém, os in
teresses do açúcar não tiveram - e não poderiam mesmo ter
tido - a influência e o poder alcançados pelos seus rivais
britânicos: o mercado metropolitano português pouco signifi
cava para os produtores brasileiros, e os demais mercados
encontravam-se absolutamente fora do seu alcance político
( e, em determinados casos, sob a influência direta de outros
produtores coloniais) . Desta forma, o desequilíbrio que ca
racteriza as relações coloniais luso-brasileiras - onde a co
lônia cada vez mais se avantaja sobre a metrópole - limita,
de saída, o raio de ação dos interesses aqui sediados. Pri-
consta de E. J. Hobabawn. ""fhe Seventeenth Century ln the Development of
Capitalism"", reeditado por E. Genoveae, em 7'Ae SIAN Ecqaq,nia, voL L. 197S.
p. 154-155. Finalmente, quanto a.oa mecanismos de determinação doa preços na
Colônia existe. publicada. ampla cklc:umentação que espera a ves de aer analiada
e interpretada. Ref°ll'O-me la numeroaaa referências ao tema que podem aer
encontradas em div� volumes da série DOC11me,ttos Hiatómoa, noa A.aia •
Bibliouca. NuciOftal, nos DocumC11toa Hiatóricoa do Arquivo Mu11icipal, série Ata
da CõmarCJ, Salvador, Bahia. nos Me111uac:ritoa tlo Arquivo da CtuG " C•
Rup«itGntu ao Bl'IUil, e�. José Honório Rodrigues, em pequenos arlilloa p�ll
cados na RBVÍ4tG BNJBil 4çuee1niro, doa anos de 194JL a 45, levantou várias
pistas interessantes aeerca do temL -· .
. :-.•,.
81. Veja-se Richard S. Dunn, Su11Gr a,.,I SIGva, TA• _Ria• of �• Pla,.�;j!i""'." ..
! C
tlt.8 E>&glish. W�_.t. lftdiea, l� ,-17!�• North . � hna. 1972. Tra l� )
�or · �=
úi
em passagens rl.ás1ncas de Erac Walhama, Ce1P1toli.,,. ..,.,1 s1a.,..,,,
1944.
91
vados da possibilidade, sequer, de reservar para si um grande
mercado metropolitano, os produtores brasileiros estavam
condenados a enfrentar situações particularmente difíceis,
durante os períodos de saturação e/ou depressão do mercado
internacional. 82 Este terá sido, com certeza, um dos fatores
determinantes do elevado grau de diversificação da atividade
econômica dos senhores, especialmente no longo e tormen
toso período que se inaugura por volta de 1670. De acordo
,, com Flory, «pelo menos três quartos dos senhores de engê-1
nho na mostra de oitenta, bem como numerosos proprietários !
de engenho não incluídos no grupo, investiram em algo mais !
\. além do plantio da cana e a produção de açúcar». 83 --�
92
conformação interior. Não é, pois, necessano recorrer às co
nexões «externas:. - e muito menos a um simples «critério
de mercado» - para deixar assinaladas as fortes similitu
des existentes entre o moderno escravismo e o capitalismo ss
- proximidade esta que pode ainda ser realçada, ao lembrar
mos que a organização produtiva aqui focalizada surge asso
ciada aos primórdios do capitalismo, cresce e se multiplica
acoplada a ele. 86
Dispomos agora de elementos para indicar o que nos pa-
rece ser a diferença específica do moderno escravismo. Nele,
\=
� senhores estão submetidos a uma engrenagem �9nômiGa
o que os diferencia, essencialmente, dos senhores de escra-
1 vos do mundo antigo.
87 Mas esta engrenagem se interrompe
93
nação de uma catego1·ia econômico-social - o que necessa
riamente repercute sob1·e o papel e a natureza social dos
senhores. Os escravos são fundamentalmente «cativos» e se .
ajustam (bem ou mal) ao aparelho de produção de que tra- \..
tamos, por uma combinação mais ou menos eficaz de vio- Ji.
lência, agrados, persuasão, etc. Paradoxalmente, portanto, /
os escravos, que a tradição juridicista teima em chamar de i
«coisa», impossibilitam a reificação das relações sociais 90 - '
com o que fica definitivamente prejudicada qualquer tenta- 1
tiva no sentido de «descobrir a lei econômica que preside o
movimento» deste regime social. :.
94
Henrique Cardoso, para qNem os escravos ( e não apenas
eles), seriam «testemunhos mudos de uma história para a
qual não existem senão como uma espécie de instrumento
passivo». Para este autor, os gestos pessoais de rebeldia, bem
como as rebeliões, por não criarem «saídas estruturalmente
viáveis», estão condenados a permaneceri1 nos desvãos da
história». 92
Os autores que compartilham esta posição parecem crer que
a rebeldia do escravo, manifestando-se ao mvel individual,
seria abafada, in loco, direta e pessoalmente, de tal maneira,
que a chamada coerção extra-econômica, efetivamente, começa
e termina com o chicote, sem deixar marcas no regime
econômico-social. Quanto às rebeliões, quando, raramente,
bem sucedidas ( e isto, possivelmente, apenas por algum tem
po) , não criariam as bases de uma nova história, podendo
assim ser deixadas de lado. 93 Os escravos existiriam, em
suma, apenas como fonte de energia - «instrumentos vo
cais> - integrando-se ao regime de produção, como uma
quantidade social nula. 94 A sua presença só se faria sent!!_
92. Fernando H. CardOIIO. '"Classes Sociais e História: Considerações Metodol6irieu".
in A•toritariamo • D�, Rio 1975, p. 112. A negação da preaença
histórica do escravo chegaria talvez ao seu limite em Fernando Novais. para
quem: "o escravo. por iaao mesmo que escravo. há que manter-se em níveis
culturais infra-humanoe. para que não IN! desperte a 11U& condição humana -
isto é parte indispenú.vel da dominação esc:ravista", ob. cit., p. 108. Como
obsenou Ciro CardOIIO (obra eitada a aeguir, p. 203), a mais fecunda sugestão
de Erie Williams em Capitalin& au S14.,.... foi, possivelmente. a menos explo
rada (por ele e por aeua aeguidores). Trata....., da lmportAncia atn'buida ao
eacra-.o eomo força bist6rica. "Eate aspecto do problema das 1ndias Ocidentais
(Williams se refere aqui a uma eerta conjuntura hist6riea) tem sido estuda-
damente ia'norado, eomo ee os eacravoe. ao ae tornar instrumentos de produção .•. "
deixassem de contar eomo homens (ob. cit.. p. ZOl-202). Não caberia no contexto
deste artigo referir-se à literatura norte-americana acerca da condição do escra•o.
aua personalidade. familia. ete. Esta imensa e variada obra. que culmina. talves.
eom RoU, Jonla-. RoU. de Eugene Genovese e '"The Black FamilY in SlaffTtl
aw,l Frnáow& (1750-1!1!15)", de Herbert Gutman, veio ampliar enormemente o
eonheeimento acerca da aituação do aeravo. Tais trabalhos tendem. no entanto.
a tratar o escravo "em ai" (buscando recuperar uma hist6ria feita Mem pri
meira pem,oa"'). e/ou no aeu relacionamento (fnndamentahnente enquanto """"'
humanos). eom a· camada senhorial. A questão primordial do ncravo eomo bue
de um alatema produtivo - por ele, em principio. rejeitado e, em maior ou
menor medida. tranaformado -'- fica então submena. ou mesmo. ostensiftlftfllte.
poga de lado. Advirta-ae, a este propóalto, que considero TAe Politieal B�•
of s1a.,..... de Genovese. tudo. menos uma Economia Polltiea da �-..,dlo.
Para um bre..e resumo das tendineias da literatura americana a respeito da
acraTidão. veja-ee: Ciro Cardoso. '"EI Modo de Producci6n Eselavista Colonial
em América"' in Jlodoa tl• ProeNeci611 .,. At11érieo Lati-. Auadouriam. Cardam
e outros. C6;,ioba 1973, e Emllia Viotti da Costa. "Da Eserav!dão ao Tra �
Livn,", in Da Jlo.arqllia à .Rei,tibliCG: M0111...toa Detiait/08, São Paulo 19 '
:
93. Esta PoSição f Involuntariamente ·ratificada por um aênero de relato blstdneo
que fas a �'<ão das rebeliões escravas. mas não consegue _relaeloná-lu coaa
a corrente pri11,_�I da hist6ria - a qual (aupQStamente) aeau1rla o seu euno.
guiada quer �;':"ientido"' quer pela 1611:lca evolutiva de u � determinado moda
de produção. � parece ser o easo, por exemplo, de Rebeliõea da Snu<lla. •
lm_..
Cl6Tis Moura SJ<,··'·Paolo 1959 onde por um lado, ae procura realçar a "°- ,,,.9:'
nôml
t&neia das ...;� por ou� .., �ta um ft!rreo determinismo ee<?•
que se. refere à ��lação da aoeledade (p. 27-28 e 52. quanto a eate 6lt
=
i::.....;
94. Maria Sllvia pa�e· espoaar uta poalção, ao afirmar que "a P'!{tlr
d P"°""""
XV e XVI. quando a ewera..idão aparece auport_ando u� . esti �m! .,.....,..;.
vin.,ulado ao sistema eapilallata. o ncravo surgiu red.,f1n11lo
95
a meados do século XIX, mas já, então, como barreira ou
«entrave» ao desenvolvimento capitalista. 95
A posição anterior parece-nos profundamente questionável.
Antes, porém, de expor os nossos argumentos, gostaríamos de
chamar a atenção para um documento recentemente desco
berto e divulgado por Stuart Schwartz. 96 Refiro-me ao Tra
tado de Paz, proposto pelos escravos rebelados do Engenho
Santana de Ilhéus, possivelmente no ano de 1789. O documen
to, notável a muitos títulos, vem levantar uma ponta do véu
de ignorância que encobre a atuação dos escravos como agen
tes históricos, capazes de traduzir os seus interesses em rei
vindicações, e exercer pressões no sentido da transformação
do regime que os oprime. 97
A proposta de paz enuncia, no fundamental, as condições
estipuladas pelos rebeldes, para a cessação das hostilidades,
e o seµ ,,:,retorno aos trabalhos do engenho. Entre estas con
dições, as mais importantes parecem ser :
- Os escravos teriam a sexta-feira e o sábado para traba
lhar para si próprios, e isto deveria ser respeitado, mesmo
na ocorrência de dia santo nos demais dias da semana. Para
os cultivos de arroz, os escravos poderiam escolher qualquer
brejo, sem para isto pedir licença. Quanto às ferramentas,
ficariam permanentemente em posse dos escravos;
puramente econômica. assim integrand�se àa 110Ciedades coloniais". O aentido
de ma obra aponta. no entanto, em outra direção. o que pode ser percebido
desde llll primeiras sentenças de seu principal trabalho. O escravo "existiu como
'presença-ausente', mas constante e pesada. no mundo de homens livres que
procurarei reconstituir". Maria Sllvia de Carvalho Franco, Hom.,.. Livra wa
Ordem Eacra11ocnita. 1969, 1 e 11.
95. Muito haveria que dizer sobre o escravismo concebido como barreira ao desen
volvimento do capitalismo. A questão parece-me, no mínimo. mal formulada.
Sem ingressar neste terreno. llOSlaria contudo de lembrar que. em set111 ""critos
sobre a Guerra Civil Norte-Americana. Marx jamais endossou a tese da destruição
do escravismo em conseqüência de "necessidades" do capitaliano. Quanto à clássica
interpretação dada por E. Williams à (suposta) crise econômica dlUI 1ndias
Ocidentais Britãnicas a fina do século XVIII (que teria tido lnflnfneia decisiva
sobre o movimento abolicionista britãnico), foi reeentemente refutada detalhada
mente por Drescher. Negada a tese imensamente influente de Willlama, ficam
abertas as portas para uma reinterpretação do abolicionismo, em que argu
mentos de naturesa politica - como se sugere adiante - terão neeesaariamente
muito maior peso. A tentativa mais articulada- de apresentação de escravi!mo
como entrave ao desenvolvimento do capitalismo encontra-se. erelo. em F. H.
Cardoso, CapitaU-o • Eacnnnàiio, São Paulo 1962, cap. VI. Argumentos seme
lhantes surgem. por vezes, em Octavio lannl, As M4tiomorfoaea ,lo Eacn,.110.
São Paulo 1962, p. 94 e outras. Veja-se K. Marx e F. Engela. LG Gl&nTG Citlil
"" Los EEUU, Buenos Aires 1973, diversos artigos e S. Dreacher. "'Le 'Déclin'
du-;Systeme Esclavagiste Britanique et L'Abolltlon de la Traité". Annales. E.S.C.,
0
19i'6. ,,.
96. Stuart Schwarts, "'Resistanee and Aceomodat #f1r,dn Eighteenth-Century Brazil:
Tbe Slaves' View of Slavery", in TM Hi�.Jt: Alllffic:a11 Hiatarical Rmew,
fev. de 1917.
97. Observe-se que as propoatas de paz partidas /dói1;. eiscravoa não devem ter sido
rarns como 1e preswne. De acordo com um �& datado de 1686 o Conselho
Ultramarino é advertido de que "two convêm ,':Wiít ae admita a paa com estes,
negros, pois a el<llt' riência tffll mostrado que :ieata prática é twml,l� um mero
engnno ••. " Texto reproduzido em Cló.-is Moura, ob. eit .• p. 200.
96
- no barco que vai a Salvador, haveria um espaco reser
vado para os escravos remeterem as suas «cargas», -sem pa
gamento de frete ;
- a carga de trabalho diário seria reduzida, segundo pro
postas precisas e detalhadas, que discriminam atividade e
sexo;
- os atuais feitores seriam substituídos por outros, escõ:1
lhidos «com a nossa aprovação»; ___!
- finalmente, os escravos poderiam «brincar, folgar e
cantar em todos os tempos», sem que para isto fosse preciso
licença.
Seria ocioso realçar o alcance e a amplitude destas re1vm
dicações. Importante é perceber que se trata, a rigor, de
l')
uma tentativa de transformação do regime econômico-social
escravista. Com efeito, aceitas as propostas apresentadas, a
escra:i.�idão se descaracterizaria, profundamente. O que os
escravos-rebeldes propõem, em suma, é a instauração de um
novo regime social no qual eles cederiam a maior parte de
seu tempo de trabalho, em troca dos meios de produção de
que necessitam . . . e cuidariam da sua própria existência.
Curiosamente, como observou Stuart Schwartz, os castigos
corporais não são mencionados no documento. Ficava, talvez,
subentendido que eles não teriam razão de ser, na ordem
social proposta pelos escravos.
98
questão «do ponto de vista econômico» - e nisto consiste
possivelmente, o mérito maior do seu trabalho. Assim sendo'
acrescenta logo a seguir: «Para o escravo, a margem de
autonomia representada pela possibilidade de dispor de uma
economia própria era muito importante econômica e psico
logicamente». A sugestão não é contudo desenvolvida. Pelo
contrário, a per�ectiva dos amos escravistas_é imediatamen
te retomada, sendo a atrlhuição de parcelas referida como
uma «concessão revogável, destinada a ligar o escravo à fa
zenda e evitar a fuga». Desta maneira, não obstante a men
ção feita aos interesses dos escravos, a prática da concessão
de lotes volta a ser ( ou, melhor, continua sendo) concebida
como algo «funcional> à grande exploração.
Não se trata aqui de negar, quer as economias que possam
advir do cultivo de parcelas pelos escravos, quer o fato, in
discutível, de qmf 'isto estabelece vínculos entre os escravos e
os engenhos ou f-à!eiidas. 101 Caberia, sim, indagar se a prá
tica em questão não surge do entrechoque de senhores e es
-
cravos: estes, procurando construir um espaço próprio, aque=-
les, divididos, resistindo em parte, cedendo em parte (inclu 1
sive por perceber os possíveis benefícios trazidos pelas pe- .
quenas roças de mantimentos) . De acordo com depoimento
do intendente de uma· fazenda de São Domingos, a área
ocupada pelos escravos parecia «uma pequena Guiné>, um
pedaço de Africa cercado por paliçada, onde ele não gostava
de entrar, pois caí os escravos estão em casa>. ioz À luz
destas observações, os escravos parecem ter reconstruído,
nas Antilhas, um pequeno mundo seu, eivado, naturalmente,
de reminiscências africanas. Além do que, o depoimento do
tal intendente mais parece referido a um quilombo pac ·f1-
. cado, que a um expediente destinado a «reduzir o custo �de
Ç_ reprodução da mão-de-obra>. 1 0a
99
não teria por que mudar com o tempo. 10·1 Na perspectiva aqui
sugerida, no entanto, o seu significado poderia variar e mes
mo «evoluir» na dependência dos interesses e aspirações dos
escravos e, claro, das oportunidades oferecidas pelo contexto
histórico. ,..,,1
Em fases de turbulência política, aí podem os escravos re- \
beldes encontrar um apoio, uma retaguarda, ou até mesmo
um santuário. Assim, informa-nos o Jornal de Aracaju, em____J
artigos datados, respectivamente, de 20 de março e 3 de abril
de 1872 : «A amizade e proteção que quase todos os escravos
dos engenhos votam aos quilombos são sérios obstáculos:
dão não só o aviso como guarida no caso de qualquer emer
gência mesmo dentro das senzalas ...> ; «A experiência tem
mostrado o grau de relação que entretêm os quilombos com
os escravos dos engenhos : acham aquelii' apoio e proteção;
trocam estes farinha e agasalho pela part.ffiia · nos roubos dos
primeiros e em caso de perigo invadem as senzalas>.105
Por outro lado, à medida que cresçam as populações urba-
nas, se multiplique o pequeno comércio interiorano, e aumen
�� as facilidades de transporte, os escravos verão abrir-se
\ diruite de si certas �portunidades mercantis que, possivel
�nte, tratarão de explorar. Na medida em que se evolua
�r(· nesta direção, sob a aparência monolítica do escravismo, esta
rá germinando um submundo de relações sócio-econômicas,
! que não mais expres5ay apenas, o esforço dos escravos no
\ sentido de negar as condições que os oprimem - e não mais
se � por «reminiscências africanas». Quanto aos senhores,
poáerão combater estes desenvolvimentos, admiti-los, ou, mes
mo, deles tirar proveito ... 106 Seja como for, o importante
104. Assim, para Jacob Gorender. "A mola oculta do 'aiatema do Brasil' j{ tinha
sido desvendada, aéculoa antes,. por Jean Léon l'Afrlcain" (Gorender, ob. eit.,
p. 264). O autor ae refere. no caso, às pucelaa eedidaa aoa ecravoa na ilha
de São Tomé (segundo omervações que o publiciata John Pory adicionou à
obra de Leo Africanua). & importante destacar. a esae respeito, que vf.rioa
fatores ( entre eles a topografia da ilha. aeu clima africano. e a ausência de
povos nativos hostis), facilitaTam a fup e a sobrevivência dos escravos rebeldes
de S. Tomé. O fato de que neste preciso contexto, onde a rela� de forças
favorece, relativamente, os eseravos. tenham eles eontado, desde tão cedo, com
a sua própria b&l!e de subsistência. sugere, a meu ver, a presença da iniciativa
afrkana na criação daquilo que viria a ser chamado de "sistema do Brasil"•
. The Hut,n-v afld Deacriptioa oi Africa. Leo Afrté)ànua. Londres 1896. p. 94-95.
. : baseado na tradução e edi� realizadas por John Pory em 1600. Sobre ba
... li\tores que favorecem as rebeliões veja-se o lnteresaantl.simo trabalho de Orlando
;, :, l'atterson, uslavery and S1aTe Revolta: a Socio-historical Ana)yaia uf The Firat
;'1',.U:aroon War, 1665-1740", ln MarOOt& Soeíetiu, editado por Richard Prlce, Nuva
'ili :'!brque 1973, p, 246-292.
106. ,A'l)êndice-Documentos. em Clô'l'is Moura. ob. eit., p. 208-211. 1
106.. .>.11 vésperas do término da escravidão, este mun� da sombra. habitado por 1
,,.--·
eecMLvos que não são apenu escravos, havia 'ãaiiúlridõcerta· êctnplCJ<idade, em
alKQmRs áreu do Vale do Paralbt\ - comu ae pode 'NT, por el<emplo. no precioso
100
é ter presente que nada disto poderá ser entendido, como
mero reflexo dos interesses dos senhores, e nem tampoucÕ
poderá ser reduzido ao seu significado «econômico» para os ·•
escravos. As aspirações dos escravos, seja no que se refer·�--,
ao trabalho dedicado às suas roças, seja em torno à liber-1
dade nos batuques e festividades, colocam em cheio e, pri- (
mordialmente, a questão do reconhecimento da sua existên- \
eia e lugar na sociedade. - - ..,
Tocaremos agora, ainda que de passagem, uma delicada
questão, em torno da qual vem se desenvolvendo, de longa
data, um grande debate.
Numerosas fontes dão testemunho de que as condições de
operação dos engenhos e fazendas e o tratamento conferido
aos escravos teriam se modificado, em" "diversas regiões, na
passagem do século XVIII, para o sécull\ XIX. A interpre
tação dessa mudança histórica, por parte de Marx, é clara
e precisa. Antes deste período, especialmente nos EUA e em
Cuba, a produção escravista estaria basicamente circunscri
ta às necessidades locais, com o que o regime de trabalho
conservava «certo suave caráter patriarcah. A seguir, e à
medida que se desenvolve a produção voltada para o mer
cado externo, tudo passa a girar cem torno à produção da-)
plus-valia pela plus-valia mesma>, com o que as condições 1
a que estão submetidos os escravos serão brutalmente enrije
cidas, a carga de trabalho ampliada, e a própria vida dos
cativos encurtada. 1º7
Admitamos, com Marx, que o estreitamento e a intensifi
cação das conexões com o mercado mundial têm importantes
conseqüências sobre o regime escravista. Estas conseqüência
não derivam, contudo, da «metamorfose:. 1º8 implicada naD
passagem à «produção da plus-valia pela plus-valia>. Elas
serão determinadas antes e,' talvez, mesmo, predominante
mente, pela natureza abertamente conflitiva da relação se
nhor-escravo; vale dizer, pelo fato de a relação entre os ca-
°"
ntlatório de Delden Laerne, Brazil afld Ja.,,.., Report Cofee4:1'lt,,re, Haia 18�5.
p. SOl. 303, 333 e diversaa outras passagens. Veja-se também Stanley Ste1n,
Grawde:a • DecadêftciG do Café, São Paulo 1961.' p. 202-219. Seria. erelo, de
IIT8llde interesse, comparar as condições em que vivem (em �eterminadae 11.reu)
• . Os ei,eravoa. nesta fase final do l'eltime, eom u aepiraçoes formulada DO
·.•·Tratado de Pu proposto peloe rebeldes do enir,,nho Santana.
lOf,. O C.pital tomo 1, p. 181.
ar aee do
.1 l(ll!. 'O- Capital. tomo Ill. p. 804. As Informações de que dlapunha M x, ra 0X I.X.
•·.•. oco rrido DO sul dos EUA e em Cuba. na transição do aéeulo X�,UI Pll
1
PaHeem IUl)erelltimar, consideravelmente. o irrau de ufechamento anterior (ui,.o
porém, não
cialmeDte DO cuo norte-americano) destas regiões ueravlotaa. lato,
ções que ae aetrU em.
tem maior relevlnela. para efeito du considera
101
tivas-trabalhadores e os seus amos-patrões ser algo que se
encontra em princípio em questão. Vejamos, sucintamente,
o que isto significa.
A enorme expansão das exportações verificadas em fins
do século XVIII exigia a importação de grandes levas de
escravos. Formavam-se, com isto, grandes concentrações de
«escravos-novos» (também chamados «boçais»). Constituída
esta massa crítica, tendiam a ocorrer reações em cadeia, sob
a forma de atos coletivos e recorrentes de rebeldia. Daí por
(, diante, os problemas referentes à manutenção da ordem, à
f / disciplina, à acomodação, e à aculturação desta massa de
; 1 rebeldes em potencial, passavam, indiscutivelmente, ao pri-
102
Do ponto de vista dos senhores do açúcar - a famosa
sacarocracia cubana - a ilha encontrava-se diante de uma
situação excepcionalmente favorável: «Não há que duvidá-lo,
a época da nossa felicidade chegou ... » m
Não obstante seu indisfarçado entusiasmo, Arango y Par
refio conclui o seu discurso expressando sérias e bem fun
dadas preocupações. A insurreição de São Domingos, diz ele,
«ampliou os horizontes de minhas idéias. Ao ruído deste fu
nesto acontecimento, despertei e vi que toda minha obra se ,
sustentava no ar . . . que o repouso de todos os meus com- 1
patriotas . . . estava pendente de um fio : da _§!.l_b_ordinação :
e paciência de um enxame de_homens.._Qªrbªro&>�. Por enquan- ;
to, acrescenta�autor, pouco há a temer, dado que o número ,
de negros é inferior ao de brancos : «Meus receios se refe
rem ao que vem depois, ao tempo em que cresça a fo:r:túna i
da ilha e tenha dentro de seu recinto quinhentos mH fou
seiscentos mil africanos. Desde já falo para esta époéa, e
quero que nossas precauções comecem desde este momento». 113
Não caberia referir-se aqui às propostas feitas e às medi
das tomadas, para acomodar a massa de escravos que de
sembarcavam em Cuba. 114 É lícito admitir, no entanto, que
o processo de lutas e acomodações que se seguiria iria mar
car, em profundidade, a história de Cuba. A própria per-\
manência da ilha, por tão longo tempo, como uma fiel c -
· lônia espanhola, possivelmente se explica pelas vantagens, que�
colonos e senhores descobririam, em ter por trás de si o
poder militar de uma metrópole européia... 115
· As preocupações de Arango y Pàrreiio encontram seu pa
ralelo (algo defasado) no Brasil, onde porta-vozes da cama
da senhorial advertem para os perigos acarretados pelo rã
, pido aumento da população escrava, que acompanha o surto
� expansivo iniciado a fins do século XVIII. Cresce, assim, a
consciência dos perigos cria_dos por esta «África transplan
tada para o Brasil», e começa-se a discutir o futuro incerto
de uma nação que não possui «verdadeiramente o que se
112. Ob. cit.. _ J). 197. A re,ipeito da arrancada açucareira cubana, ver o b,:ilh!.nte
capitulo - de Fraginals (o�,- cit.) intitulado: "EI camino bacia la planblc16n •
113. Arango y Parreiio, ob. cit.. p. 210. grifo A. B. Castro.
114. Sobre as condições de , : YJlli_n dos eseravos cubanos. nns décadas que se seiru•m
à " 1>rimt!ira dança dos; �ilhãP.s", ..,.j11•8e O notável relllto feito pelo ex--ttcraYo
E.teban Montejo. em J!J_iliú,!I Barret. Bior,n,.ffo d• 1111 Cimarr6�, Barcelona 1968..
115. Franklin W. Knight, ·s1aw Socirt,, ;,. Cuba I>tcri.. g th, N,t1et••1ttA Cnohlr._
Wioc,onsin. 1!170, �ap,t; _ '.
103
chama povo».116 Espíritos mais lúcidos chegam a perceber
que a escravidão dificulta ou mesmo impede o enquadramen
to dos «vadios» e marginais que se multiplicam nas cidades
( e, em certas áreas, no próprio campo), como força de tra
balho «livre» e assalariada. Segundo muitos, isto se deveria
a que a escravidão «degrada» o trabalho. Outros, porém,
· iriam mais longe: o problema maior é que não se pode travar
' grandes lutas sociais - e, muito menos, tratar a ferro e
: fogo a população livre e pobre - sobre o solo movediço da
/ escravidão. Já, anteriormente, José .Alvares Maciel havia de
clarado, nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, que
a presença de escravos constituía um sério entrave porqge_
«toda e qualquer revolução que aqueles (escravos) pressen-'
tissem nestes seria certo motivo de eles mesmos se rebe�
rem; e por conseqüência ficaria frustrada toda e qualquer
ação intentada> ... 117 Mais tarde, por ocasião da fracassada
«primet� revolução social> brasileira (1798), ficaria mesmo
comprovado que escravos-rebeldes e «libertos> eram capazes
de fazer causa comum - o que tornava a situação das ca
madas proprietárias muito mais delicada. A situação mos
trava-se, aliás, particularmente grave na Bahia, de onde seria
enviado ao rei, no ano de 1814, um manifesto advertindo:
ê
«Ninguém de bom senso . .. poderá duvidar que a sorte
desta Capitania venha a ser a mesma da ilha de S. Domin
gos, por dois princípios : primeiro pela demonstrada enorme
desproporção de forças> ... segundo pela «relaxação dos cos-
es e falta de polícia, que geralmente se observa nesta
ade pelas muitas larguezas que se lhes tem dado (aos
ravos) ...> 118 Por contraste, ali, como em Porto Rico,
116. J'oão Severiano Maciel da Costa. M""'6ri4 sobre G Necn.ülad• ,ü Abolir a lwtro
d� tloa Ettt:n1t1ot1 Af� 1IO Bram. Coimbra 1821, p. U e 21.
117. Citado em Clóvis Moura. el>. eit.. p. &O, parintesis acrescentado por A. B. Castro.
Veja-se também Carlos Guilherme Mota, Atituda ü r-11c1o wo Brasil 1111-
1801. Lisboa 1969, P. 66. e. do mesmo autor, Nonl&te 1111, São Paulo 1972,
p. 152-153.
118. Citado em Maria Beatris Niua da Silva, A Primei"' GautG c1G &Aia: ldmu
V:Ovro do s,....;z. São Paulo 1978, p. - 101-102. José Honório Rodrigues, em
trabalho amplamente documentado, parece suiierir que a amea�a de revolução
negra aeria um fantasma manipulado peloe lntereaes contririoa à independên
cia. Ainda que o partido português tivesse, efetivamente, chantageado oa bra
sileiros com base no espectro dominicano, não pode haver dúvidas de que o
sentimento de perigo ers bastante difundido e. naquela conjuntura. possivel
mente. bem fundado. Jo,e Honório Rodrigues, It1depndêflcia: RnolMi;ão • C011tro
Rnô!Kçlfo, Ecow011tia • Soci<!dadc·:�:Rio 1975, lr,,'.,124-131. Afinal, como observou
Bryan Edwards à mesma êpoca (1807): "Em �11ítçs onde a escravidão se encon
tra estabelecida. o principio primeiro no qual �ernoú
ae baseia é o medo" •••
B. Edwards. "Tbe History Civil and C-0mmerci_i ;Qf the British Colonies in the
West Indies", citado em E. Genovese. T1'• W�-�• SlafflOlders Made, Vintaiie
Books, 1971, p. 162. Ve;a-ae, a esse propósitd:,di::�quaae p&nlco de Hip6Uto da
Costa. ao aaber da publicação em portuguis, qwn·· Jornal "l)9elldoclenttflco", da
104
onde os escravos eram relativamente poucos (e sendo 0
ingresso de novos cativos praticamente impossível), seriam"\
decretadas e postas em prática medidas brutais no sentido i
de promover a proletarização da população livre e pobre.119-·----.,
Neste último caso, sim, a passagem à produção da plus-
valia pela plus-valia teria temíveis conseqüências . . . para as
camadas pobres da população. Marx parece ter-se deixado
levar por uma tentadora analogia entre as conseqüências da
proletarização de uma população livre e pobre, e os efeitos
da intensificação da produção de mercadorias por uma po
pulação escrava. Neste último caso, se · parte de uma situa
ção radicalmente diferente, desencadeiam-se conflitos pró
prios ao regime escravista, além do que, os proprietários
têm interesse imediato na sobrevivência dos trabalhadores ...
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tiva irá mesmo sobreviver à escravidão, modificada, natural
mente, pela mudança de sua base social .
Não obstante o que acabamos de dizer, durante os séculos
de predomínio escravista as organizações produt,ivas, e so
bretudo as sociedades em formação no Novo Mundo, tiveraJl1-.
a sua evolução co-determinada pela presença - e a força r
,-- ...
viva - dos escravos. Esta presença se mostraria tanto mais
n
forte e influente, quanto mais se tendesse a ultrapassar a
W\.,; produção em ampla escala de mercadorias. Assim, ela será
menos marcante em Barbados - uma mera coleção de uni- ,
dades produtivas - que no Brasil, onde já na segunda me- 1
tade do século XVII ensaia-se o surgimento de uma nação. 121
1·
Ela será também mais determinante nos centros urbanos,
onde não se vive sob o império da produção sistemática de
mercadorias: o escravo «de ganho», figura marcante das
nossas cidades na entrãda do século XIX, mais tem a ver
om a escravidão, enquanto tal, que com as estruturas pro
; dutivas características do Novo Mundo. 122
--- Estas são razões fundamentais que impossibilitam estudar
o regime social imperante no nosso passado, através das con
dições e necessidades da produção de mercadorias. �!_deter=.
_!DÍI!.�:Q.Lpxistem 1_e têm o seu espaço.
)(
a vapor como fonte de energia a acionar um processo manufa� foi, mesmo,
pela primeira vez ensaiado na produção do açúe&J:., em Jamaica. em 1768 (até
então a máquina a vapor era empregada apenaa em minas e destinada ao
bombeamento de água para a superfície). Noel Deer, 7'1Le Hiatmv of S•11Gr,
Londres 1949, vol II. p. U9. A tecnificação dos encenhoe ei,era'riataa do Brasil
foi estudada por Francisco Edunrdo Píres de Souza, em A Ev� daa Tée11iC<1a
Prod1&ti11<U 110 Século XIX: o E11a...,.,, ü Aç1icar • a Fauwd.G tl4t Cafs, Cam
pinas. Diuertaçii.o de Mestrado. 1978. p. 15-97.
121. C. R. Boxer, Salvador tl4t Sá • a L"'4 pelo Bnuil • A11aola 110•-1111, São
Paulo 1973, c:ap. VIII; Padre Antônio Vieira. "Por Brasil e Portugal, Sermões••.
comentados por Pedro Calmon, São Paulo 1938; Rae Je:in Deli Flory, ob. eit.; e
Stuart Schwartz. Co!Oftial Brazil. Th• Roü, of Th11 State ito G SlalHI S«ial
Formation, mimeografndo, 1979.
122. O escravo de ganho ou •�gro de ganho" trabalhava•. basicamente y,or con�c,
própria, devendo usualmente levar, ao fim do dia. uma certa 8IIDl& em·· :i!inheiro
ao aeu dono. No Brasil. eles l!Ão referidos. entre muitos outros autó�. por
Nina Rodrigues na aua obra clássica. O• Africa11oa •o Bruil. Sio P•\lló· l!!i6.
cap. IV. A mesma prática havia aido desenvolvida nu cidades irre� ·. (M. I.
Finley, ob. cit., p. 39). Pyt"aJ'd de Lavai ae refere a ela corno c:araetttia:t'Jca da
cidade de Goa, nos primeiros anos do século XVL Viacem de Franciac;i> ''•Pyrard
de Lavai, Porto 194', p. 32.
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de mercadorias, com a sua partitura composta de determi
nações econômicas. E há a escravidão, um velho tema, que
< permite improvisos de muita força. A tE;_orfa desta realidade
" ,,,-ir ,� está por ser produzida. Mas não será negando característi- ,
\_ .1_.,')--·cas fundamentais do regime social, aqui surgido, que ela po-
.J 1 derá vir a ser construída. Nesta empresa, como se procurou
mostrar ao longo deste trabalho, há que resistir a duas ten
tações: tomar esta realidade como uma história sem de-'
terminações próprias, com o que se resvala, inexoravel
mente, para a teleologia; ou concebê-la como um sistema
sócio-econômico homólogo ao capitalismo, e, como tal, passí
vel de ser apreendidÕ- - através de uma Economia Política. ·
-'
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