Etica Das Finanças-Robert Schiler

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

ROBERT J. SHILLER

A ÉTICA DAS FINANÇAS

Tradução de
PEDRO CARVALHO E GUERRA
E RITA CARVALHO E GUERRA

Lisboa 2015
ÍNDICE

Prefácio ............................................................................................ 9

A ÉTICA DAS FINANÇAS


Introdução: Finança, administração e os nossos objetivos ...... 23

PARTE 1: PAPÉIS E RESPONSABILIDADES


1. Presidentes-executivos (CEO) .......................................... 51
2. Gestores de investimento .................................................. 64
3. Banqueiros ........................................................................... 81
4. Banqueiros de investimento .............................................. 94
5. Credores hipotecários e securitizadores .......................... 102
6. Operadores de bolsa e market makers ............................... 113
7. Agentes de seguros ............................................................. 125
8. Designers de mercado e engenheiros financeiros ............. 133
9. Fornecedores de derivados ................................................ 142
10. Advogados e consultores financeiros .............................. 153
11. Lobistas ................................................................................ 163
12. Reguladores ......................................................................... 173
13. Contabilistas e auditores .................................................... 182
14. Educadores .......................................................................... 186
15. Financiadores de bens públicos ........................................ 192
16. Responsáveis políticos encarregados de estabilizar
a economia ........................................................................... 198
17. Fundos fiduciários e organizações sem fins
lucrativos .............................................................................. 210
18. Filantropos ........................................................................... 219

PARTE 2: A FINANÇA E OS SEUS


DESCONTENTAMENTOS
19. Finança, matemática e beleza ............................................ 231
20. Categorizando pessoas: financeiros vs. artistas
e outros idealistas ................................................................ 236
21. Um impulso para correr riscos ......................................... 241
22. Um impulso para a convencionalidade e a familiaridade 246
23. Dívida e alavancagem ......................................................... 259
24. Lamentáveis incentivos ao lado corrupto da finança ........ 272
25. O significado da especulação financeira .......................... 286
26. As bolhas especulativas e os seus custos para a sociedade 303
27. Desigualdade e injustiça ..................................................... 318
28. Os problemas com a filantropia ....................................... 334
29. A dispersão da posse do capital ........................................ 354
30. A grande ilusão, então e agora .......................................... 370
Epílogo: Finança, poder e valores humanos ......................... 388

Notas ................................................................................................ 403

Bibliografia ...................................................................................... 423


INTRODUÇÃO:
FINANÇA, ADMINISTRAÇÃO E OS NOSSOS OBJETIVOS

O que pensar de um livro intitulado Finance and the Good Society*?


A alguns leitores, esta poderá parecer uma união entre dois conceitos
inconciliáveis. A palavra «finance» é, por norma, entendida como a ciência
e a prática da gestão de riqueza – da ampliação das carteiras de investi-
mento, da gestão dos seus riscos e obrigações fiscais, garantindo que os
ricos ficam mais ricos. Revisitaremos – e desafiaremos – esta definição
de finança mais à frente, ainda neste capítulo. A expressão «good society»
tem sido utilizada por gerações de filósofos, historiadores e economistas
para descrever o tipo de sociedade em que devemos aspirar viver; nor-
malmente, é vista como uma sociedade igualitária, uma sociedade em
que todas as pessoas se respeitam e se valorizam umas às outras. Logo,
à primeira vista, a finança, pelo menos como é normalmente entendida,
parece funcionar contra a criação de uma sociedade responsável.
Contudo, não é assim tão simples. A finança foi ficando cada vez
mais associada ao capitalismo. Desde a Revolução Industrial que os inte-
lectuais têm vindo a concentrar os seus debates, frequentemente infla-
mados, sobre a sociedade responsável em temas relacionados com o
capitalismo, incluindo o sistema de mercado, a propriedade privada, os
preceitos legais e as relações de classes. Estas instituições e questões têm
vindo, cada vez mais, a definir a sociedade moderna por todo o mundo.
Juntamente com a democracia, poucas ideias se têm revelado tão univer-
sais e litigiosas na definição da sociedade responsável como o capitalismo.

* Título original desta obra. (N. da R.)

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Os debates sobre o capitalismo e sobre a sociedade responsável,


desde as críticas incendiárias de Karl Marx, no século XIX, até à vigorosa
defesa dos mercados livres por Milton Friedman, no século XX, tende-
ram a centrar-se no capitalismo industrial: o sistema de produção, a ativi-
dade bancária e o comércio que deram forma à sociedade moderna até
ao final da Segunda Guerra Mundial. No entanto, as últimas décadas
testemunharam a ascensão do capitalismo financeiro: um sistema no qual a
finança, outrora base da indústria, tomou a liderança como principal
motor do capitalismo. Foi derramada muita tinta em relação aos aspec-
tos puramente económicos do capitalismo financeiro. Eu também con-
tribuí para este debate, na minha escrita académica sobre a volatilidade
dos mercados e em livros como Irrational Exuberance. A atual crise finan-
ceira levantou algumas questões não só acerca das partes do sistema,
mas também acerca do capitalismo financeiro como um todo. Esta crise
– a que Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff chamaram a «Segunda
Grande Contração», um período de economias enfraquecidas pelo
mundo inteiro, que começou em 2007 mas que se tem estendido pelos
anos seguintes, espelhando a Grande Contração que se seguiu à crise de
1929 – levou a rejeições enraivecidas do valor do capitalismo financeiro.
Dada esta experiência, muitos se questionarão sobre o papel da
finança na sociedade responsável. Como pode a finança, enquanto
ciência, atividade e fonte de inovação económica, ser usada para pro-
mover os objetivos da sociedade responsável? Como pode a finança
promover a liberdade, a prosperidade, a igualdade e a segurança eco-
nómica? Como podemos democratizar a finança para que possa fun-
cionar melhor para todos nós?

Capitalismo financeiro em evolução?

A expressão capitalismo financeiro ganhou conotações negativas


mal se tornou popular nos anos 30 do século XX, com a publicação

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de The Evolution of Finance Capitalism, de George W. Edwards.1 Edwards


vira uma conspiração de grandes instituições financeiras, com a J.P.
Morgan no leme. Chamou-lhe a Pax Morgana. Durante a Grande
Depressão os críticos e grande parte da opinião pública culparam o
sistema financeiro pela sua situação difícil; viam o sistema quase como
feudal, sendo que os agentes financeiros tinham substituído os senho-
res feudais.
A expressão foi recentemente reavivada e, uma vez mais, é utili-
zada com hostilidade. Segundo o presidente francês Nicolas Sarkozy:

O capitalismo puramente financeiro perverteu a lógica do capita-


lismo. O capitalismo financeiro é um sistema de irresponsabilidade e
é… amoral. É um sistema onde a lógica de mercado desculpa tudo.2

Tony Blair, antigo primeiro-ministro britânico, ao falar da grave


crise financeira que teve início em 2007, comentou:

O que é claro é que o sistema financeiro alterou os seus fundamen-


tos e nunca poderá voltar a ser o mesmo. O que é necessário é uma ação
radical para lidar com as consequências da crise.3

Grigory Yavlinsky escreveu o Programa de 500 Dias de 1990, que


delineava a transição russa para uma economia de mercado livre, e foi
promovido a vice-primeiro-ministro para o implementar. Yavlinsky
começou a expressar dúvidas semelhantes depois da crise. Na sua obra
de 2011, Realpolitik, numa secção intitulada «Mudança Estrutural: Do
Capitalismo Industrial ao Capitalismo Financeiro», afirmava o
seguinte:

(…) as alterações estruturais fundamentais [estão] diretamente rela-


cionadas com um abrandamento gradual das restrições morais nos
países desenvolvidos. Alterações estruturais como estas seguem um

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ROBERT J. SHILLER

crescimento muito rápido do setor financeiro e dos serviços diretamente


relacionados com ele.4

Afirmo neste livro que, ainda que os críticos estejam corretos


em algumas das suas acusações, as alterações que têm de ser feitas,
em vez de terem o efeito de constranger o poder de inovação do
capitalismo financeiro, devem alargar o seu raio de ação. Faremos
poucos progressos se nos limitarmos a condenar o capitalismo
financeiro como um «sistema de irresponsabilidade». No entanto,
temos o potencial para apoiar os objetivos maiores das sociedades
responsáveis – sociedades prósperas e livres num mundo industria-
lizado e desenvolvido – se expandirmos, corrigirmos e realinharmos
a finança.

A disseminação inexorável do capitalismo financeiro

Na altura em que escrevo este texto, estamos todos presos numa


grave crise financeira que começou em 2007. Como tal, tendemos a
associar a finança aos problemas recentes, como a crise no crédito
imobiliário e a dívida excessiva nos Estados Unidos e na Europa, bem
como com os erros legais e de regulação que precederam estes acon-
tecimentos. Contudo, não devemos perder de vista o quadro com-
pleto. A história mais importante é a proliferação e a transformação
de ideias financeiras de sucesso. Inovações financeiras oriundas de
Amesterdão, Londres e Nova Iorque estão a ser desenvolvidas em
Buenos Aires, Dubai e Tóquio.
A economia de mercado socialista, com as suas estruturas finan-
ceiras cada vez mais avançadas, foi introduzida na China por Deng
Xiaoping a partir de 1978, adaptando à realidade chinesa os exemplos
de outras cidades falantes de chinês com enorme sucesso: Hong
Kong, Singapura e Taipei. A liberalização económica da Índia, que

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

permitiu uma aplicação mais livre da finança moderna, foi iniciada em


1991 sob o mandato do primeiro-ministro P.V. Narasimha Rao através
do seu ministro das Finanças (mais tarde primeiro-ministro) Manmohan
Singh, que teve formação em Economia em Nuffield College, na Uni-
versidade de Oxford. O sistema de privatizações por voucher introdu-
zido na Rússia em 1992/94 sob o primeiro-ministro Boris Ieltsin e
pelo seu ministro Anatole Chubais, a seguir à modificação do plano
Yavlinsky, foi uma estratégia deliberada e agressiva para transformar
a economia russa. A intenção não era apenas igualar o resto do mundo
em termos de universalidade da finança nas vidas quotidianas do povo
russo, mas fazer com que a Rússia ocupasse o primeiro lugar no
mundo em termos de propriedade pública de capital.
Estas integrações tão repentinas de estruturas financeiras sofisti-
cadas, concebidas originalmente em países financeiramente mais avan-
çados, não foram alcançadas de forma completamente suave nestes
países e existiu um certo nível de raiva em relação à desigualdade de
benefícios acumulados por alguns, à medida que os oportunistas iam
reunindo uma riqueza considerável, de forma rápida, durante as tran-
sições. No entanto, a China, a Índia e a Rússia assistiram a um flores-
cimento da sofisticação financeira e a taxas de crescimento económico
espantosamente elevadas. E não são apenas estes países. De acordo
com o Fundo Monetário Internacional, todos os países emergentes
– incluindo os estados independentes da Commonwealth, todo o
Médio Oriente, a África Subsaariana e a América Latina – provaram
ser capazes de gerar um crescimento do produto interno bruto anual
(PIB) superior a 6% ao longo da última década, quando não estavam
tolhidos pela crise financeira mundial.5
Além disso, um conjunto de acordos internacionais criou institui-
ções que trabalhavam para a melhoria da humanidade fazendo uso de
ferramentas financeiras sofisticadas. O Banco Mundial, fundado em
1944 e atualmente alargado por forma a dar origem ao gigantesco
Grupo do Banco Mundial, gravou na sua sede, em Washington D. C.,

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o lema «Trabalhar para um Mundo Livre de Pobreza». O Banco Mun-


dial foi apenas o primeiro dos bancos multilaterais de fomento: o
Banco de Fomento Africano, o Banco de Fomento Asiático, o Banco
Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento, o Banco Intera-
mericano de Desenvolvimento e muitos outros.
As instituições financeiras modernas são universais no mundo
atual. Além disso, não são só as ações e as obrigações que representam
os mercados financeiros. Inicialmente podemos não considerar o
preço dos produtos agrícolas como relevante para um debate sobre
instrumentos financeiros, mas os preços que alcançam nos mercados
de contratos futuros são, em tudo, análogos aos preços nos mercados
de ações e de obrigações. Os mercados de trigo e de arroz também
são mercados financeiros, no sentido em que realizam atividades
semelhantes, confiam em aparatos técnicos comparáveis e têm flutua-
ções e impactos na economia semelhantes. A forma como as vidas
das pessoas com baixo rendimento de todo o mundo dependem dos
preços dos alimentos em alguns destes mercados apenas vem a realçar
ainda mais a importância das nossas instituições financeiras – e a
necessidade de corrigir quaisquer falhas existentes nestas instituições.

Capitalismo financeiro e comunismo marxista

O triunfo do capitalismo financeiro ou seus análogos desde os


anos 70 do século XX, mesmo nos países anteriormente comunistas
marxistas, é uma das revoluções mais significativas da história e uma
rutura radical com o passado.
O comunismo, no seu formato moderno, teve o seu momento
decisivo em 1848, um ano que testemunhou inúmeras sublevações
nas cidades europeias. Essas revoltas da classe operária não tinham
um líder eficaz e não eram, em si mesmas, de natureza comunista.
Tiveram a sua origem num descontentamento generalizado nas raízes

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

da sociedade. Mas criaram uma oportunidade para que o movimento


comunista perdurasse.
Karl Marx e Friedrich Engels reconheceram o significado desses
acontecimentos e, nesse mesmo ano, com o apoio da Liga Comunista
(originalmente uma organização cristã), publicaram o seu breve Mani-
festo Comunista – que se revelou bastante radical e pouco cristão. Defen-
dia uma revolução violenta, e Marx e Engels acabaram por ser vistos
por muitos como preenchendo o vazio de liderança nas revoluções
de 1848. Apesar de essas revoluções terem tido uma curta duração, o
seu manifesto passou a ser visto como falando pelos muitos que
tinham, até então, permanecido em silêncio.
A palavra comunismo deriva do francês antigo commun, que significa
comum, e refere-se à doutrina central original deste sistema de cren-
ças: a detenção comum do capital e dos meios de produção. Neste
livro refiro-me à forma tradicional de comunismo, não à economia de
mercado socialista promovida atualmente pelo Partido Comunista na
China, que permite – e até encoraja ativamente – a propriedade pri-
vada entre os cidadãos.
O argumento central para a posse pública de capital era, de acordo
com Marx na sua obra Capital, a necessidade de quebrar um ciclo
vicioso de pobreza:

Não é por ser o líder da indústria que um homem é um capitalista; pelo


contrário, é um líder da indústria porque é um capitalista. A liderança
da indústria é um atributo do capital, tal como na era feudal as funções de
general e juiz eram atributos da propriedade… O sistema capitalista pres-
supõe a completa separação dos trabalhadores de toda a propriedade dos
meios pelos quais podem realizar o seu trabalho… O processo, como tal,
que abre caminho para o sistema capitalista não pode ser outro senão o
processo que retira ao trabalhador os meios de produção; um processo que
transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção em
capital e, por outro, os produtores imediatos em trabalhadores assalariados.6

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ROBERT J. SHILLER

Marx nunca explicou claramente porque é que os trabalhadores


não têm acesso ao capital. Insinua que sob o capitalismo os objetivos
da sociedade são definidos pelos que se encontram no topo da mesma
– aqueles que têm acesso ao capital – e não por todos. Permanece uma
suposição implícita que um trabalhador pobre nunca conseguiria ter
o seu próprio negócio através do crédito de um banco ou de capital
de investidores ricos.
Contudo, num sistema capitalista ideal, as pessoas com boas ideias
de negócio podem, pelo menos em princípio, fazer isso mesmo. As
nossas instituições capitalistas ainda não estão à altura deste ideal, mas
ao longo da história tem havido uma longa tendência em direção à
democratização da finança, à abertura de oportunidades financeiras
para todos. É uma tendência que temos de esperar que continue no
futuro.
É verdade que as barreiras sociais evitam que algumas pessoas
utilizem e aproveitem os seus talentos. Um rapaz sem estudos de uma
zona rural remota achará difícil entrar nos escritórios de um banco
numa cidade grande para pedir capital para iniciar um negócio. Exis-
tem barreiras bem reais no acesso a capital por tais pessoas e existem
provas substanciais de tais barreiras na variação extrema das taxas de
juro pagas por quem pede emprestado em diferentes regiões e em
diferentes categorias sociais. A economista de desenvolvimento Esther
Duflo resume a questão da seguinte forma: «Este conjunto de provas
faz com que seja difícil que os mercados de crédito, pelo menos nos
países em vias de desenvolvimento, se encontrem próximos do mer-
cado ideal, que faria com que a distribuição de riqueza fosse irrele-
vante para o investimento.»7
Contudo, este não é um problema fundamental do capitalismo
financeiro. É, antes, um problema de democratização, humanização e
expansão do espectro do capitalismo financeiro. O mesmo problema de base
existiria na nova sociedade de Marx. É um dilema social que pode ser
abordado através de mudanças no nosso sistema de educação. De

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

facto, já começámos a mudar o sistema no mundo inteiro graças às


melhorias ao nível da educação pública e das comunicações.8

O capitalismo financeiro entra na idade adulta

Vivemos, de facto, numa era de capitalismo financeiro. Não nos


devemos arrepender disso. Regulações e restrições podem, e devem,
ser aplicadas às instituições financeiras para as ajudar a funcionar em
prol da sociedade, mas a lógica e o poder subjacentes a estas institui-
ções mantêm-se centrais nos seus papéis. As instituições financeiras
e as variáveis financeiras são tanto uma fonte de orientação e um
princípio regulador nas nossas vidas como o nascer e o pôr do Sol, as
estações e as marés.
De facto, não parece haver uma alternativa viável. Nunca ouvimos
falar de capitalismo não financeiro como modelo – embora possamos
utilizar esse termo para referir uma economia de mercado com insti-
tuições financeiras mal desenvolvidas e ainda o vejamos em algumas
das regiões mais pobres do mundo. Por mais que gostássemos de
criticar a finança, não parece haver ninguém que veja nestas alterna-
tivas modelos adequados ao futuro de alguém.
A nossa tarefa, tanto no setor financeiro como na sociedade civil,
é ajudar as pessoas a encontrarem um significado e um propósito
social maior no sistema económico. Tal não é um feito pequeno, com
todas as concentrações aparentemente absurdas de riqueza que o sis-
tema origina, a complexidade das suas estruturas frequentemente des-
concertante e os jogos – muitas vezes insatisfatórios e desagradáveis
– em que as pessoas são obrigadas a participar.
As definições são importantes, e a forma como definimos o capi-
talismo financeiro – como encontramos uma definição correta –
ajudar-nos-á a desenvolver uma hipótese de trabalho sobre esta força
tão importante. Essa definição deveria estabelecer as normas de

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ROBERT J. SHILLER

funcionamento da finança e as regras de atuação dos líderes no mundo


dos negócios, no setor público e na sociedade civil, no sentido de
aproveitar os desenvolvimentos emergentes dentro do campo da
finança, de modo a apoiar os nossos objetivos de uma economia
robusta e próspera, e de refrear os seus excessos, de modo a suavizar
a sua volatilidade e compreendermos como pode a finança ser utili-
zada para abordar as necessidades tanto das economias avançadas
como das economias em desenvolvimento.

Para uma hipótese de trabalho sobre o capitalismo financeiro

No seu nível mais amplo, a finança é a ciência da arquitetura de


objetivos – da estruturação dos acordos económicos necessários a
alcançar um conjunto de objetivos e a administração dos ativos neces-
sários à persecução desse objetivo. Os objetivos podem ser os dos
lares, pequenos negócios, empresas, instituições cívicas, governos e
da própria sociedade. Uma vez traçado um objetivo – como o paga-
mento de um curso universitário, a reforma confortável de um casal,
a abertura de um restaurante, a construção de uma nova ala num
hospital, a criação de um sistema de proteção social ou uma viagem
à Lua –, as partes envolvidas precisam das ferramentas financeiras
adequadas e, muitas vezes, de orientação especializada para as ajudar
a atingir esse objetivo. Neste sentido, a finança é análoga à engenharia.
É um facto curioso e normalmente ignorado que a própria palavra
finança deriva, na realidade, do termo em latim para «objetivo». O dicio-
nário diz-nos que a palavra deriva do latim finis, que é normalmente
traduzido como fim ou conclusão. Um dicionário sublinha que finis deu
origem à palavra finança porque um aspecto da finança é a conclusão
ou pagamento de dívidas. Mas convém aos nossos propósitos recordar
que finis, mesmo na antiguidade, também era utilizado com o signifi-
cado de «objetivo», tal como a palavra portuguesa moderna «fim».

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

A maior parte das pessoas define a finança de forma mais restrita.


No entanto, financiar uma atividade é criar, de facto, a arquitetura para
atingir um objetivo – e oferecer os meios para proteger e preservar os
ativos necessários a atingir e manter esse objetivo.
Os objetivos servidos pela finança têm a sua origem em nós. Refle-
tem os nossos interesses em carreiras profissionais, as nossas espe-
ranças para a família, as nossas ambições nos negócios, as nossas
aspirações culturais e os nossos ideais para a sociedade; a finança só
por si não nos diz quais devem ser os objetivos. A finança não incor-
pora um objetivo. A finança não é só «fazer dinheiro» per se. É uma
ciência «funcional» que existe para apoiar outros objetivos – os da
sociedade. Quanto mais bem alinhadas se encontrarem as instituições
financeiras de uma sociedade com os seus objetivos e ideais, mais forte
e bem-sucedida será essa sociedade. Se os seus mecanismos falharem,
a finança tem o poder para subverter tais objetivos, como aconteceu
no mercado de hipotecas subprime ao longo da última década. Mas, se
estiver a funcionar corretamente, tem um potencial único para pro-
mover elevados níveis de prosperidade.
A concretização de objetivos significativos e a administração dos
ativos necessários a que sejam atingidos requerem, quase sempre, a
cooperação de muitas pessoas. Essas pessoas têm de reunir a sua
informação de forma adequada. Têm de garantir que os incentivos de
todos estão alinhados. Imagine o desenvolvimento de um novo labo-
ratório, o financiamento de um projeto de investigação médica, a
construção de uma nova universidade ou de um novo sistema de
metro de uma cidade. A finança confere estrutura a estas e outras
empresas e instituições através da sociedade. Se a finança funcionar
bem para toda a gente, ajudará a construir uma sociedade responsável.
Quanto melhor compreendermos este ponto, melhor compreendere-
mos a necessidade da contínua inovação financeira.

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ROBERT J. SHILLER

O que faz a finança

Os economistas e profissionais da finança tendem a definir e a


debater a finança em termos mais restritos do que aqueles que temos
empregado até aqui. Muita da investigação académica sobre a finança
tem-se concentrado em estratégias e resultados comerciais a curto
prazo e no tópico relacionado da gestão do risco. Na sua forma canó-
nica, a finança académica é a ciência da conceção de carteiras de inves-
timento ideais. Também as atividades do dia-a-dia em Wall Street
tendem a concentrar-se em atividades altamente específicas. Mas isto
é apenas parte do que a finança realmente envolve.
Uma parte essencial do que os profissionais da finança realmente
fazem é a concretização de negócios – a estruturação de projetos,
empresas e sistemas, grandes e pequenos –, de uma atividade que traz
convergência aos objetivos dos indivíduos muitas vezes divergentes.
Os acordos financeiros – incluindo a estruturação de pagamentos,
empréstimos, garantias, ações, opções de incentivo e estratégias de
saída – são apenas os elementos superficiais destes acordos. A con-
cretização de negócio significa facilitar acordos que motivarão ações
reais por parte de pessoas reais – e muitas vezes por grupos de pessoas
de grandes dimensões. Sem a cooperação dos outros a maior parte
das pessoas não é capaz de alcançar um valor duradouro. Mesmo o
poeta solitário arquetípico precisa de financiamento para desenvolver
a sua arte. Um rendimento para poder viver, editores, impressões,
contratos para leituras em público, a construção das salas onde serão
realizadas essas leituras – existe toda uma arquitetura financeira escon-
dida por detrás de tudo isto.
Todas as partes de um acordo têm de querer atingir o objetivo,
trabalhar e aceitar os riscos; também têm de acreditar que os outros
envolvidos no acordo trabalharão, de facto, ativamente para um obje-
tivo comum e que farão todas as coisas que a melhor informação
disponível sugere que façam. A finança proporciona a estrutura de

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

incentivos necessária à realização dessas atividades e a assegurar esses


objetivos.
Para além disso, a finança envolve a descoberta do mundo e das
suas oportunidades, o que a liga à tecnologia de informação. Sempre
que há um negócio, existe a descoberta do preço – ou seja, a oportu-
nidade de conhecer o valor de mercado do que esteja a ser negociado.
Isto, por sua vez, envolve a revelação dos sentimentos e motivações
das pessoas e das oportunidades que existem entre os grupos de pes-
soas, o que pode, por sua vez, tornar possíveis objetivos ainda mais
ambiciosos.
Além de ser a ciência que estrutura a forma de alcançar os objeti-
vos, a finança incorpora uma tecnologia vital. Enquanto tal, já demons-
trou um progresso contínuo ao longo dos séculos, desde o início dos
empréstimos a dinheiro no mundo antigo até ao desenvolvimento dos
mercados de crédito imobiliário modernos, passando pelas estruturas
legais e reguladoras necessárias ao suporte dessas inovações. E con-
tinuarão a progredir. A finança, adequadamente configurada para o
futuro, pode ser uma força mais forte de promoção do bem-estar e
da realização para uma população global em expansão – para atingir
o maior de todos os objetivos da sociedade responsável.

A finança e a sociedade responsável

A verdadeira cura para o problema que Marx abordou encontra-se


não na destruição do sistema capitalista, mas sim no seu melhora-
mento e na sua democratização – e melhorá-lo significa servir os
objetivos maiores da sociedade responsável. Essa sempre foi a melhor
resposta, para desânimo dos radicais.
O desafio essencial para os líderes, no que diz respeito a aceitar o
futuro da finança, é compreender que esta pode ser utilizada para
ajudar a atingir uma prosperidade que abranja um leque crescente de

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ROBERT J. SHILLER

classes sociais e que os seus produtos possam ser utilizados mais


facilmente pelas pessoas e possam ser integrados de forma mais eficaz
na economia como um todo.
Sobre o primeiro ponto, não existe nada em teoria da finança que
especifique que o controlo de capital deva estar confinado a alguns
«peixes graúdos». Pense na vasta proliferação democrática dos segu-
ros, créditos imobiliários e pensões – tudo inovações financeiras bási-
cas – na sustentação da prosperidade de milhões de pessoas no último
século. O crescente aperfeiçoamento das instituições e instrumentos
financeiros através de grandes e pequenas inovações levará a socie-
dade a alargar o espectro da sua prosperidade e a reverter a crescente
tendência para uma desigualdade social.
Relativamente ao segundo ponto, a conceção das instituições
financeiras em torno das subtilezas humanas tornará mais fácil às
pessoas adaptarem as inovações financeiras às suas vidas e permitirá
ao sistema financeiro como um todo funcionar mais suavemente. Tal
significa que os psicólogos têm de estar do lado da equipa financeira
e que também devemos ter em conta a revolução na economia e na
finança comportamentais ocorrida nas últimas décadas.9 Significa
também que temos de limar as arestas do nosso sistema financeiro
– aqueles aspectos que podem causar problemas quando as pessoas
cometem erros – e que as pessoas têm de saber a verdade sobre os
contratos financeiros que assinam e em que medida esses contratos
lhes podem ser prejudiciais no futuro, para que possam ter plena
consciência das suas emoções e vontades antes de assinarem o con-
trato.
Se extrapolarmos as tendências históricas, será possível alargar
ainda mais o espectro e o alcance do capitalismo financeiro e tornar
as críticas de Marx – a base fundamental da sua visão do comunismo
extremo – para sempre obsoletas. Atingir este objetivo requer um grau
de intervenção governamental, mas não uma intervenção que possa
frustrar as soluções de mercado. A tarefa do governo neste esforço é

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

proporcionar um claro conjunto de regras de jogo, um conjunto de


regras que proteja os consumidores e promova o interesse público, ao
mesmo tempo que permite que os intervenientes compitam, fazendo
o que melhor sabem fazer: comercializar produtos e serviços melho-
res. Um verdadeiro desafio no que a isto diz respeito é que estas regras
têm de ter uma dimensão internacional, porque os atuais mercados
financeiros são, simultaneamente, globais no seu alcance e imediatos
no seu efeito.

A oportunidade de amanhã: capitalismo financeiro na era


da informação

Bill Gates, no seu livro The Road Ahead, de 1995, fez uma série de
previsões sobre o futuro na era da informação, na sua maioria fanta-
sistas. A maior parte das previsões mais divertidas ainda não ocorre-
ram. Por exemplo, Bill Gates previu que algumas pessoas irão gravar
a totalidade das suas vidas, com as câmaras sempre ligadas, registando
as suas biografias para futuro visionamento. Essa ideia gerou uma
leitura que nos obriga a pensar, mas ainda não se tornou realidade.
O que Gates não previu foram inúmeros outros desenvolvimentos
fundamentais, incluindo as páginas da Internet eBay (fundada em
1995, no mesmo ano em que o seu livro era publicado), Wikipédia,
Facebook.com, Linkedin.com, Zipcar.com, CouchSurfing.org e um
milhão de outras que alteraram a forma como vivemos as nossas vidas.
Não devemos culpá-lo por não ter conseguido prever estes últimos
– ninguém deve ser culpado. Em vez disso, devemos considerar o
processo através do qual tais inovações surgiram e o porquê de terem
surgido em determinados ambientes em detrimento de noutros. Este
é o verdadeiro assunto na finança.
Bill Gates não estava a apresentar uma visão do futuro do capi-
talismo ou da sociedade responsável; estava encantado com os

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ROBERT J. SHILLER

pormenores da engenharia. As suas previsões pareciam centrar-se em


pequenas coisas, em geringonças. Também preferiu não olhar muito
para a frente. A verdadeira questão é: o que pode o capitalismo fazer
pela sociedade responsável, com toda a complexidade e toda a infor-
mação interligada que compõem a sociedade? Que pequenas coisas,
em concertação com outras pequenas coisas, têm o potencial para
fortalecer a sensação de realização das nossas vidas? Consideremos
uma coisa «pequena» como o Facebook, não prevista por Bill Gates
em 1995, que pode reunir velhos amigos passados longos anos. Tratar-
-se-á de uma inovação importante para alcançar a sociedade respon-
sável? Poderá ser, na medida em que transmite às pessoas uma
sensação de realização nas suas vidas.
O rápido avanço da tecnologia de informação neste século pres-
sagia inúmeras – e muitas vezes assustadoras – alterações, pois as
máquinas estão rapidamente a substituir a inteligência humana. Um
programa de computador chamado Soar tem a capacidade não só de
jogar jogos contra humanos, mas também de aprender como jogar
novos tipos de jogos.10 O programa DeepQA, inventado na IBM por
um grupo liderado por David Ferruci, consegue reconhecer a fala e
responder a perguntas de conhecimento geral. O programa foi testado
em participações simuladas no programa de televisão Jeopardy e parece
ser capaz de superar os concorrentes humanos.11
Ouvir falar de tais inovações pode ser desmoralizante. Todos nós
queremos desenvolver as nossas capacidades para competir tão efi-
cazmente quanto possível e ter sucesso no mundo do trabalho. Porém,
não faz sentido adquirir competências que serão substituídas por
máquinas. Infelizmente, é difícil prever que competências serão, em
última análise, importantes.
Os economistas Frank Levy e Richard J. Murnane afirmaram, no
seu livro de 2005, The New Division of Labor: How Computers Are Crea-
ting the Next Job Market, que os computadores estão a substituir as
tarefas rotineiras e, no entanto, não conseguem desempenhar aquilo

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

a que chamam «pensamento especializado» ou «comunicação com-


plexa». De facto, é mais provável que os computadores criem empregos
que requeiram estes talentos humanos do que retirarem deles os
humanos.12
Pensamento especializado significa pensar alargadamente, inter-
calando entre diferentes fontes de informação e entre informações de
diferentes perspetivas – informação sobre o que é novo e corrente,
bem como sobre o que é perene e foi esquecido. Um exemplo de
pensamento especializado apresentado por Levy e Murnane é o mecâ-
nico automóvel que esteja familiarizado com as rotinas de diagnóstico
computorizadas requeridas pelos fabricantes de automóveis moder-
nos: sabe onde podem ser encontradas peças mais baratas, tem cons-
ciência da necessidade de uma variedade de clientes e consegue sentir
através do test drive de um carro o que deve realmente ser feito.
Comunicação complexa corresponde à combinação das capacida-
des interpessoais e à compreensão de situações complexas. Um exem-
plo oferecido pelos autores é o de um advogado, que não conhece
apenas as complexidades da lei mas também compreende a que cor-
responde, realmente, o melhor interesse do cliente, dada a sua situa-
ção, e consegue comunicar-lhe esse conhecimento de modo persuasivo.
Não é possível prever que vasto leque de empregos sobreviverá
face a uma tecnologia da informação cada vez mais sofisticada, pois
cada um dos grupos mais significativos continuará a incluir alguns
empregos que proporcionarão oportunidades tanto para o pensa-
mento especializado como para a comunicação complexa. No entanto,
a finança, concebida de forma alargada, é um campo no qual tais
empregos podem, com especial probabilidade, sobreviver e talvez
mesmo proliferar. Os empregos que envolvem a finança são um
pouco como os de mecânico de automóveis ou advogado. É neces-
sário compreender as tecnicidades da engenharia financeira, tal como
o mecânico de automóveis compreende a engenharia mecânica, e é
preciso ser capaz de aplicar esse conhecimento e sensibilidade aos

39
ROBERT J. SHILLER

problemas humanos. É necessário compreender as complexidades das


instituições financeiras (e a moldura legal que as define) e ser capaz
de comunicar esse conhecimento a um cliente.
Este processo tem definido a história da inovação financeira ao
longo de gerações. Nas ruas de Nova Iorque nos anos 40 do século
XIX, era possível ver rapazes a correr para trás e para a frente, entre-
gando cheques, guias e outros instrumentos negociáveis nos vários
guichés dos bancos e a receberem ouro e notas de crédito em troca.
Tudo isso desapareceu depois de 1853, com a fundação da New York
Clearing House, que depressa reunia 54 bancos como membros. Esta
foi uma importante inovação em termos de tecnologia da informação,
embora não corresponda à nossa ideia atual de tal tecnologia, uma vez
que não envolvia qualquer eletrónica. Às dez horas de cada manhã, os
representantes de todos os maiores bancos sentavam-se numa sala
ampla, cada um numa secretária pré-designada, com todas as secretárias
dispostas em círculo. Um assistente de cada um dos representantes
levantava-se então da sua secretária e, em simultâneo com todos os
outros assistentes, percorria todas as outras 53 secretárias, deixando em
cada uma delas um maço de documentos, um para cada um dos outros
bancos. Todo este processo não demorava mais de seis minutos. Quais-
quer desequilíbrios seriam então somados e pagos em ouro ou em notas
de crédito, não pelos bancos uns aos outros, mas à Câmara de Com-
pensação e Liquidação. Os empregos de entregas de documentos e de
dinheiro desapareceram. Mas a finança em si não desaparecera.13
A tecnologia da câmara de compensação melhorou de forma ainda
mais assinalável com o advento do computador. De facto, estarão em
breve disponíveis sistemas de inteligência artificial, como o DeepQA,
que serão capazes de responder a questões tipo Jeopardy sobre a
finança. Com todos estes avanços contínuos na tecnologia, podemos
questionar-nos sobre se sobrarão muitos empregos no futuro. Con-
tudo, no que diz respeito ao futuro previsível, os computadores não
serão capazes de aconselhar as pessoas eficazmente sobre o que

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

precisam realmente de fazer com as suas carteiras, nem aconselhar


um departamento universitário sobre um novo projeto de investiga-
ção, nem realizar um grande número de outras tarefas. Para a finança,
o que importa ainda é atingir objetivos humanos – uma tarefa que as
máquinas não conseguem abordar senão da forma mais básica.
Veremos neste livro que democratizar a finança implica o desen-
volvimento tanto de acordos humanos – como os de aconselhamento
financeiro, aconselhamento legal e orientação financeira –, como de
tecnologia que funcione em conjunto com esses acordos humanos
para tornar possível a todos participarem inteligentemente no sistema
financeiro.

Atividades financeiras na economia

As atividades financeiras consomem uma enorme quantidade de


tempo e de recursos, algo que se foi agravando ao longo dos anos.
O valor bruto acrescentado pela atividade financeira foi de 9,1% do
PIB dos Estados Unidos em 2010, dando continuidade a uma longa
tendência crescente. Por comparação, era de apenas 2,3% do PIB em
1948.14 Estes valores excluem muitos empregos relacionados com a
finança, como os do ramo dos seguros.15 A tecnologia de informação
não diminuiu certamente o número ou o espectro dos empregos em
finança.
Para alguns críticos, a atual percentagem de atividade financeira
na economia como um todo parece demasiado elevada e a tendência
crescente é fonte de preocupação. Mas como poderemos saber se é,
realmente, demasiado elevada ou se a tendência é, de facto, justifi-
cada pela economia evolutiva? Que padrão de comparação temos?
Nos Estados Unidos as pessoas gastam mais 40% (3,7% do PIB) a
comer fora em restaurantes comparativamente com o que o setor
financeiro corporativo consome.16 Será que comer fora é uma atividade

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ROBERT J. SHILLER

de desperdício quando as pessoas poderiam simplesmente ficar em


casa e comer?
Claro que pelo menos uma parte do que todos estes profissionais
da finança estão a fazer é produtiva: uma boa parte deles está a avaliar
negócios e a dirigir recursos para os que são mais prometedores. No
entanto, outros tipos de atividade financeira – tentar ser mais esperto
do que a psicologia do mercado, tentar lucrar com negociação algo-
rítmica ou publicitar produtos financeiros dúbios – não parecem ser
muito produtivos.
Arjun Jayadev e Samuel Bowles estimaram que 19,7% da popula-
ção ativa dos Estados Unidos em 2002 – supervisores, seguranças,
membros das forças armadas – se encontravam envolvidos numa qual-
quer forma de trabalho de policiamento, vigilância e monitorização.17
A elevada percentagem dos nossos cidadãos pagos para nos protege-
rem e às nossas instalações e bens é, na sua essência, seguramente
mais perturbadora do que a percentagem envolvida na atividade finan-
ceira substancialmente produtiva. No entanto, só um número relati-
vamente pequeno da população parece incomodado com esta
estatística.

O capitalismo financeiro e o desafio da inovação financeira

Embora o capitalismo financeiro tenha, inevitavelmente, de ser


obrigado a servir a sociedade responsável, não pode ser resumido em
termos simples. Tal acontece porque representa um conjunto de ins-
tituições, instrumentos e mercados desconcertantemente vasto e
transversal, em que cada elemento evoluiu através de um processo de
invenção semelhante ao processo que produziu os nossos automóveis
e aviões e através do qual estes continuam a evoluir.
A inovação financeira é um fenómeno subestimado. De acordo
com o Google Ngrams, o termo inovação financeira quase não era

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

utilizado até ao final dos anos 70 e 80 do século XX. O termo parece


ter sido aplicado primeiro aos controversos mercados de contratos
futuros complexos que se foram desenvolvendo ao longo do tempo.
Foi pouco depois disso que os escritórios de patentes começaram a
aceitar pedidos de registo de patentes de inovações financeiras. Por
exemplo, o U.S. Patent and Trademark Office concedeu, em 1982,
a patente número 4 346 442 àquilo que é atualmente a Merrill Lynch,
pelo seu Cash Management Account (CMA).
Foi uma mudança marcante. Porque é que as autoridades das
patentes não tinham visto anteriormente os métodos financeiros
como patenteáveis? Podemos encontrar uma pista na decisão de 1908
do Tribunal de Segunda Instância dos Estados Unidos no caso de
Hotel Security Checking Co. vs Lorraine, que estabeleceu uma «doutrina
de isenção dos métodos de negócio» que imperou até à altura da deci-
são de Merrill Lynch. Em 1908, o tribunal declarava que os métodos
de negócio, quer fossem originais ou não, eram uniformemente não
patenteáveis.18 Na sua decisão, o tribunal realçava que a patente con-
cedida, um método de detetar fraude na contabilidade, utilizava apenas
papel, tinta e bom senso nos negócios. A formulação sugeria que o
tribunal estava à procura de uma qualquer prova de inovação concreta,
que se manifestasse nos «meios físicos empregues».19 As patentes
financeiras ficaram, deste modo, à espera da aplicação dos computa-
dores à inovação financeira, como no caso da patente da Merrill Lynch
em 1982; um computador programado para desempenhar um serviço
financeiro poderia, pelo menos pelos padrões de 1908, ser conside-
rado um meio físico.
Um problema com o patentear das inovações financeiras reside
no facto de estas interagirem com toda a economia; podem gerar
consequências – incluindo vencedores e perdedores – que só se tor-
nam evidentes anos mais tarde. O candidato a uma patente financeira
não pode provar a eficácia da invenção como o inventor de um apare-
lho candidato a uma patente de engenharia. Uma vez que as inovações

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ROBERT J. SHILLER

financeiras interagem com os pontos fracos das pessoas – as suas


expectativas, promessas, poupanças –, as patentes sobre as mesmas
parecem ser inerentemente mais controversas do que as patentes de
engenharia. A maior parte das patentes financeiras, que não requerem
implementação computorizada complexa, parecem ter um longo his-
torial de capacidades anteriores que foram implementadas de uma
qualquer forma rudimentar, ainda que nunca bem documentada. De
facto, uma reação comum a muitas patentes financeiras (incluindo a
patente original do CMA da Merrill Lynch, em 1982) é que lhes falta
o tipo de originalidade subjacente às invenções de aparelhos físicos.
Contudo, o processo de inovação financeira não deixa de ser
importante, mesmo que se encontre mais ao nível da inovação corpo-
rativa e societal do que da criatividade do inventor solitário no seu
laboratório. Quando descrevemos a finança e como esta alcança o
sucesso estamos perante um alvo em movimento. Os líderes têm de
compreender que a inovação financeira é um processo confuso e, por
vezes, perturbador. Neste livro, as descrições de produtos financeiros
e de instituições originarão possíveis direções para inovações e mudan-
ças futuras.

O que se segue neste livro

Este livro desenvolve uma hipótese de trabalho sobre o capita-


lismo financeiro cujo objetivo é ajudar a orientar a discussão mais
alargada sobre a finança e sobre a sociedade responsável. Começa, na
primeira parte, com as realidades do capitalismo financeiro, tal como
este se encontra atualmente constituído e tal como será constituído
no futuro. Esta parte aborda os papéis e responsabilidades que as
pessoas assumem no campo da finança, desde os banqueiros de
investimento, aos advogados, aos reguladores e pedagogos. Analisa
os vários órgãos do corpo do capitalismo financeiro – órgãos que

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A ÉTICA DAS FINANÇAS

funcionam em conjunto para produzirem uma entidade económica


viva, órgãos que são gerados a partir de grupos de pessoas unidas em
organizações e com tradições e formas de agir particulares.
Existe uma infeliz tendência para falar sobre o sistema financeiro
de forma abstrata, como se tudo fossem ações e títulos ou equações
matemáticas. Contudo, os condutores do capitalismo financeiro são
homens e mulheres reais, que representam determinados papéis na
nossa sociedade e transformam os objetivos inerentes a esses papéis
nos seus próprios objetivos pessoais e as responsabilidades a eles
associadas nas suas próprias responsabilidades. Cada um desses papéis
tem o seu próprio código de ética e de conduta profissional e o cum-
primento desse código depende do desempenho desse papel por parte
das pessoas. Aqui, consideramos um vasto grupo de tais papéis, por
forma a oferecer uma visão alargada dos verdadeiros funcionamentos
do capitalismo financeiro. Ao mesmo tempo que debatemos estes
vários papéis, consideraremos a forma como poderão ser melhorados
e como a inovação financeira alterará esses mesmos papéis e fará com
que as pessoas que os representam se tornem mais eficazes.
A hostilidade da opinião pública para com o capitalismo finan-
ceiro, a que assistimos hoje, assume, muitas vezes, a forma de uma
raiva dirigida às pessoas que desempenham alguns desses papéis. Uma
missão importante da Parte 1 é dar conta desta hostilidade da opinião
pública, para tentar compreender, um a um, porque é que determina-
dos papéis no sistema financeiro são tão controversos.
A Parte 2 do livro tem uma abordagem mais crítica do sistema
financeiro que todas as pessoas descritas na primeira parte criaram e
fornece algumas ideias sobre como poderá ser, e será, melhor no
futuro. Aborda por isso alguns pontos fortes e inspiradores do sis-
tema, mas também as suas ansiedades e quebras – todas elas relevan-
tes para qualquer debate sobre o papel da finança na sociedade
responsável. O sistema financeiro obedece em grande medida à teoria
financeira, o que tem uma espécie de beleza que pode inspirar mentes,

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ROBERT J. SHILLER

mas também uma certa fealdade, pelo menos na sua forma atual. As
crises financeiras por que passamos, de tempos a tempos, são apenas
parte da história. Esta fealdade pode levar alguns a recusar por com-
pleto o conceito de capitalismo financeiro. Contudo, seria insensato
fazê-lo, porque isso custar-nos-ia a capacidade de concretizarmos os
nossos objetivos mais desejados.
A história do desenvolvimento económico que trouxe o mundo
até ao seu estado atual de prosperidade e esclarecimento é uma histó-
ria de muitos ajustamentos técnicos ao nosso sistema financeiro e de
inovações inspiradas pela teoria financeira, mas também baseada em
avaliações realistas de natureza humana. Esta parte do livro dedica-se
a extrapolações de tendências passadas que resultaram em sistemas
financeiros cada vez melhores; também avança um número concreto
de ideias sobre como o sistema pode ser melhorado nas décadas vin-
douras.
O epílogo oferece alguns pensamentos finais sobre como o poder
é realmente usado pela finança, sobre os nossos sentimentos negativos
em relação à concentração de poder que vemos no mundo financeiro
e sobre como, numa democracia financeira, um tal poder pode ser
usado e reconciliado com os valores humanos básicos.

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