Relatório Anual Do Observatório Da Cidadania 2003
Relatório Anual Do Observatório Da Cidadania 2003
Relatório Anual Do Observatório Da Cidadania 2003
Grupo de referência
Amélia Cohn (Cedec), Fernanda L. de Carvalho (Ibase), Iara Pietricovsky (Inesc), Jorge Eduardo Durão (Fase), Sonia Corrêa (Rede Dawn)
e Taciana Gouveia (SOS Corpo Gênero e Cidadania)
EQUIPE EDITORIAL
Edição internacional
Chefia de redação: Roberto Bissio
Edição: Patricia Garcé
Edição associada: Amir Hamed, Tim Kessler
Produção: Ana Zeballos
Processamento e análise de estatísticas: Soc. Daniel Macadar, Apoio: Soc. Mariana Sol Cabrera
Assistência editorial: Soledad Bervejillo
Assistência de produção: Graciela Dede
Edição principal dos textos em inglês: Susan Heberling
Edição de textos em inglês: Heather Milton
Revisão de textos: Lucía Beverjillo, Maria Laura Massa
Formatação dos textos em HTML: Pacris Kelbauskas
Tradução: Alvaro Queiruga (espanhol), Clio Bugel e Sylvia Falçao (francês), Victoria Swarbrick (inglês)
Suporte técnico: Red Telemática Chasque
Edição brasileira
Coordenação: Fernanda Lopes de Carvalho
Assistente de Coordenação: Maurício Santoro
Coordenação editorial: Iracema Dantas
Edição: AnaCris Bittencourt
Produção: Geni Macedo
Produção do CD-ROM: Socid – Sociedade Digital
Revisão: Marcelo Bessa
Revisão técnica: Lina Maria Cortes Rojas, Maurício Santoro, Paula Raja (estagiária)
Tradução: Jones de Freitas
Apoio: Novib (Organização Holandesa de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento) e Fundação Ford
© Copyright 2003
O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido por organizações não-governamentais para fins não-comerciais (enviem-nos cópia). Qualquer outra forma de
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prévia do IteM ou do Ibase.
ISSN: 1679-7035
Bolívia
INFORMES TEMÁTICOS Privatização: benefícios duvidosos, riscos concretos / 109
Líbano
Redução da dívida como prioridade / 130
PANORAMA BRASILEIRO Malásia
Muito trabalho e nenhum poder marcam as vidas das agricultoras / 44 O alto custo dos monopólios privados / 133
Por Taciana Gouveia México
Doses de ousadia e determinação no combate à Aids / 50 Agora a responsabilidade recai sobre as empresas / 136
Por Carlos André F. Passarelli, Veriano Terto Jr. e Maria Cristina Pimenta Nicarágua
A hipótese do desespero: a questão racial em tempos de frente popular / 57 Uma nação às escuras / 139
Por Marcelo Paixão Sudão
Reconfigurações da questão social no Brasil / 71 Metas de qualidade de vida além do alcance / 142
Por Amélia Cohn Zâmbia
Desigualdade como questão política / 77 Pobreza no meio do mercado – o cenário zambiano / 145
Por Celia Lessa Kerstenetzky
A sétima edição brasileira do Observatório da Cidadania está com intensificação de um diálogo mais produtivo com a França
sendo publicada ao término do primeiro ano do governo Lula. e a Alemanha, os dois países que questionaram mais
A edição anterior veio à luz quando as eleições presidenciais fortemente o unilateralismo.
ainda não estavam decididas – apesar da folgada maioria que
Lula exibia em todas as pesquisas de opinião. Sua vitória, em As dificuldades enfrentadas pelos Estados Unidos em impor sua
outubro de 2002, serviu para renovar esperanças de que os agenda ao mundo têm tido importante contrapartida nas
sérios problemas que atormentavam a sociedade brasileira há dificuldades por que passa sua economia. Apesar das indicações
pelo menos 20 anos, gerando duas décadas perdidas (1980 e de que a recessão iniciada em 2000 tenha já sido superada, o
1990), começariam finalmente a ser enfrentados. As expectativas desemprego continua forte, os desequilíbrios no balanço de
otimistas com relação ao novo governo, aliás, não se limitavam pagamentos se mantêm extremamente elevados (o déficit em
ao Brasil: a vitória de Lula foi recebida com euforia e esperança transações correntes dos Estados Unidos é equivalente a quase
em todo o mundo, o que se manifestou na entusiástica recepção três Produtos Internos Brutos/PIBs por ano), e o governo voltou
que o presidente eleito encontrou em todas as suas viagens, a gastar muito mais do que arrecada, e vai piorar ainda mais se
dentro e fora do país, mas especialmente na América Latina. os gastos com a ocupação do Iraque não puderem ser limitados.
Os artigos que compõem esta edição apontam que, embora a Nesse quadro internacional de incertezas e encruzilhadas, o
esperança se mantenha, em grande medida, a euforia deu lugar governo Lula tem mostrado o melhor de si. De forma corajosa,
à cautela, em face da decisão do novo governo em prosseguir mas eficaz, o governo brasileiro definiu como prioridades
com as políticas econômicas ortodoxas do governo anterior e (anunciadas pelo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim)
das dificuldades em tomar a iniciativa com relação a políticas as alianças com outros países em desenvolvimento, especialmente
sociais mais efetivas que as implementadas por Fernando Argentina (no Mercosul), África do Sul, China, Índia e Rússia. Os
Henrique Cardoso (FHC). Mas o governo Lula tem mostrado primeiros resultados dessa política afirmativa foram o bem-
ousadia e iniciativa na sua política exterior, em um mundo que sucedido bloqueio das propostas avançadas por Estados Unidos e
se tornou consideravelmente mais complicado após 11 de União Européia para a reunião da Organização Mundial do
setembro de 2001. Comércio (OMC) em Cancún e a refocalização das discussões de
criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).
De fato, logo após os atentados terroristas, o governo
estadunidense – que até então se mostrava indeciso e No primeiro caso, a tentativa dos países mais desenvolvidos de,
desorientado, provavelmente como resultado das condições em simultaneamente, manter seus instrumentos de restrição do
que o presidente foi eleito, contestado por boa parte da acesso a mercados domésticos de produtos agrícolas e forçar a
população – passou à ofensiva, promovendo políticas abertura de mercados não-convencionais (como o de compras
domésticas de restrição das liberdades civis e políticas externas governamentais) dos países em desenvolvimento foi derrotada
orientadas por uma visão marcadamente unilateralista. Com por estes, sob a liderança do chamado G20+, criado por
efeito, o presidente Bush, em discurso pronunciado pouco proposta do governo brasileiro. No segundo, a política externa
depois dos atentados, anunciou as bases de sua nova política do ministro Amorim de busca ativa de estreitamento de contatos
externa ao afirmar que quem não estivesse com os Estados com outros governos latino-americanos indica a intenção de
Unidos em sua guerra ao terror estaria contra eles. limitar a Alca às medidas que forem efetivamente de interesse de
todo o grupo de países, e não apenas da economia líder.
Provavelmente, essa afirmação não teria sido tão
problemática, se não fosse estendida a áreas muito mais Também não se pode esquecer que, se, por um lado, o
extensas do que aquelas legitimamente classificadas de governo brasileiro tem exibido uma postura mais agressiva e
combate e prevenção de atos terroristas. O exemplo mais afirmativa nos foros internacionais, outros países têm
gritante da nova política foi a decisão praticamente isolada dos mostrado disposição para defesa de seus interesses em grau
Estados Unidos de promover a guerra no Iraque, contra forte que parecia esquecido, pelo menos no continente sul-
oposição internacional, expressa nas votações do Conselho de americano. Destacam-se nesse quadro, sem dúvida, as
Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). As políticas adotadas pelo presidente Néstor Kirchner, na
dificuldades enfrentadas nessa ocupação – em que se destaca Argentina, cuja ousadia no tratamento das demandas do
o atentado à representação da ONU, no qual perdeu a vida o Fundo Monetário Internacional (FMI) se contrasta
diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello – fazem emergir favoravelmente com a timidez exibida pela equipe econômica
expectativas, ainda frágeis, de atenuação da postura do governo Lula. Contra todas as expectativas de que seu
unilateralista e imperial assumida depois do 11 de Setembro. discurso de independência fosse apenas eleitoreiro, Kirchner
Ainda que de forma hesitante, o governo estadunidense volta não parece ter hesitado em confrontar as demandas do FMI,
a buscar suporte na ONU, organismo que tentou esvaziar chegando mesmo a declarar default de suas dívidas com a
após a recusa do Conselho de Segurança em apoiar suas instituição – que cedeu rapidamente, aceitando novo acordo
pretensões. Esse processo ainda está em desdobramento, em que prevalecem as exigências argentinas.
Desde 1997, a transferência líquida de recursos financeiros Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o conseqüente fim da
para os países em desenvolvimento tem sido negativa todos os Guerra Fria, diversas conferências e cúpulas importantes1 traçaram
anos, segundo relato do secretário geral da Organização das um plano para a nova era, no qual os dividendos da paz finalmente
Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, na Assembléia Geral em tornariam viável a velha ambição de alimentar, educar e cuidar da
2002. Em outras palavras, estão tirando dinheiro das pessoas saúde de cada criança do planeta. Ao mesmo tempo, o conceito
pobres para dar às ricas. tradicional de desenvolvimento – anteriormente limitado à questão
econômica – foi atualizado pelas preocupações com o meio
A transferência líquida de dinheiro é o resultado de muitos fatores. ambiente, os direitos humanos, a diversidade cultural e a condição
Por exemplo, a ajuda é uma transferência positiva dos países da mulher. As organizações da sociedade civil foram estimuladas à
desenvolvidos para as nações mais pobres, porém o pagamento participação. Elas responderam aos milhares, imprimindo aos
da dívida é um fator negativo. A ajuda vem diminuindo. A promessa processos de negociações diplomáticas um entusiasmo singular, o
de cancelamento da dívida – feita pelos líderes dos sete países mais que atraiu a cobertura da mídia, e defendendo compromissos
poderosos do mundo, que também são os maiores credores – concretos, mensuráveis e limitados no tempo.
vem sendo implementada de forma excessivamente lenta e tímida
para que se possam perceber seus efeitos. A rede do Social Watch foi criada em 1996 para monitorar a
implementação daqueles compromissos e também ser um
O investimento é uma transferência positiva de recursos quando as instrumento de pressão para estimular os líderes a fazerem um
empresas estrangeiras trazem capital para iniciar operações no esforço maior. Desde então, relatórios anuais como este têm sido
país. Porém, pesa negativamente no balanço final se os lucros não publicados em diversos países, acompanhando indicadores,
forem investidos no próprio país, mas remetidos para o exterior. apresentando-os de forma resumida em tabelas e, o mais
Uma balança comercial negativa – quando as importações são importante, divulgando as conclusões e preocupações dos grupos
maiores do que as exportações – aumenta os fluxos de dinheiro de cidadãs e cidadãos ao relatar diversas realidades.
que saem do país. Ainda que exportem mais, as nações em
desenvolvimento ganham menos por causa da queda dos preços Cada relatório é produzido por coalizões civis autônomas e é o
dos produtos primários (commodities) e dos custos mais altos resultado de muitas pesquisas, consultas e debates. Autoras e
dos itens manufaturados. autores vêm de campos distintos: alguns(mas) se dedicam a
defender os direitos humanos, enquanto outros(as) ajudam
As remessas de dinheiro de emigrantes às suas famílias são uma pessoas pobres a se organizarem na esfera comunitária;
contribuição substancial para o balanço de pagamentos dos países alguns(mas) trabalham para sindicatos que representam milhares
de origem. Porém, a fuga de capitais solapa essas contas. Com de trabalhadoras e trabalhadores, enquanto outros(as) estão
freqüência, a fuga de capital tem origem no dinheiro da corrupção, concentrados(as) em questões de gênero.
depositado em paraísos fiscais estrangeiros. No entanto, também
resulta de poupança doméstica legítima transferida para fora do As estatísticas globais e os relatórios nacionais deste ano revelam
país em busca de segurança, diante de potenciais crises financeiras. que as promessas de desenvolvimento não foram cumpridas. Esses
Por outro lado, essas crises são freqüentemente causadas ou compromissos foram assumidos em um mundo de crescimento
agravadas pelo capital especulativo (hot money), que tem interesse econômico rápido, que acreditava na mágica de uma nova economia
em lucros de curto prazo e não no bem-estar público. revolucionária, na qual jovens brilhantes tornavam-se milionários(as)
antes de terminarem a universidade e países esperavam saltar
O dinheiro que se origina nos países em desenvolvimento e termina diretamente da pobreza abjeta para o século 21 – graças ao influxo
no Norte não vem dos bolsos das pessoas pobres ou assalariadas, infinito de capital privado.
que, em geral, não possuem poupança para enviar ao exterior,
compram menos artigos de luxo e importados e não gastam dinheiro
com turismo. Esse dinheiro vem dos cofres dos governos, na
forma de pagamento da dívida, e dos bolsos da elite. No entanto,
as contas dos governos têm de fechar, e os governos compensam
seus déficits fiscais cortando serviços essenciais e aumentando
impostos. A poupança perdida ou enviada para o exterior pelas 1 Cúpula Mundial da Infância, Nova York, 1990; Cúpula da Terra (Conferência das
pessoas ricas são investimentos perdidos pelo país, que teriam Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento), Rio de Janeiro, 1992;
gerado empregos e impostos. As populações pobres e vulneráveis Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena, 1993; Conferência Internacional
terminam sendo as que mais sofrem. sobre População e Desenvolvimento, Cairo, 1994; Conferência Mundial sobre o
Desenvolvimento Sustentável dos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento,
Barbados, 1994; Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Social, Copenhague, 1995;
Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995; Conferência das Nações Unidas
sobre os Assentamentos Humanos (Habitat II), Istambul, 1996; Cúpula Mundial sobre
a Alimentação, Roma, 1996; Conferência das Nações Unidas sobre os Países Menos
Desenvolvidos, Bruxelas, 2001; Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia,
a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, Durban, 2001.
ROBERTO BISSIO
Coordenador do Social Watch
A agenda política da reunião ministerial de Cancún foi definida na Essa retórica, contudo, escondia as significativas concessões feitas
conferência anterior, realizada em novembro de 2001 em Doha, Catar. pelos países em desenvolvimento na reunião de Doha. A Agenda
Naquela oportunidade, foi estabelecida a “Agenda de Doha”. Essa ignorava inúmeras propostas desses países, como a caixa de
agenda consistia em um conjunto de compromissos nas diversas desenvolvimento,3 questões de implementação, importação paralela
áreas de negociação. Em agricultura, por exemplo, estabelecia de genéricos4 etc. O próprio texto de agricultura na declaração
compromissos de eliminação dos subsídios à exportação, redução ministerial de Doha resultou em uma linguagem fraca, muito distante
substancial dos subsídios domésticos distorcivos ao mercado e da proposição inicial dos países em desenvolvimento. Já a agenda dos
ampliação substancial do acesso a mercados. Em Doha, produziu-se países ricos – negociação de um acordo multilateral de investimentos
o entendimento da primazia da saúde pública sobre direitos de e dos demais temas de Cingapura – foi amplamente atendida.
patentes em medicamentos, abrindo a possibilidade de os países em Enfim, ironicamente, o resultado da Agenda de Doha – ou
desenvolvimento produzirem genéricos de custo mais baixo. Com a “Agenda de Desenvolvimento” – estava muito mais próximo
relação aos temas de Cingapura (investimentos, facilitação comercial, dos interesses e das propostas dos países ricos que dos
compras governamentais e políticas de concorrência), definiu-se que posicionamentos dos países em desenvolvimento. Ainda assim,
a conferência de Cancún decidiria sobre a abertura de negociações obteve-se o consenso necessário para adotar a declaração. Tal
caso houvesse acordo, com consenso explícito, sobre as modalidades consenso baseou-se em algumas concessões pontuais dos países
de negociação. Diversas outras áreas, como têxteis, e questões de ricos, mas fundamentalmente em uma pressão gigantesca sobre
implementaçãoNE também tiveram seu escopo definido em Doha. os países pobres forçando-os a aceitar o acordo.
Os Estados Unidos e a UE não hesitaram em apelidar a declaração Pouco mais de um ano após o estabelecimento da Agenda
de “Agenda de Desenvolvimento” e, apressadamente, celebraram o de Doha, a retórica desenvolvimentista caiu por terra. Em de-
primeiro passo para uma abrangente nova rodada de negociações zembro de 2002, os Estados Unidos vetaram uma proposta de
comerciais. Os países ricos buscavam, na realidade, retomar a acordo para solucionar a polêmica em torno do acesso a medi-
legitimidade da OMC seriamente abalada após o fracasso da reunião camentos e do direito de importação paralela de genéricos pelos
ministerial de Seattle em 1999 – quando massivas mobilizações da países sem capacidade de fabricação. Com isso, falhava a pri-
sociedade civil demonstraram o imenso descontentamento popular meira data do cronograma da Agenda de Doha. A data seguinte
com os resultados da implementação desenfreada do livre comércio, era o estabelecimento de modalidades de negociação em agri-
capitaneada pela OMC. A revolta dos países em desenvolvimento, cultura até 31 de março de 2003. Outro fracasso: os Estados
especialmente dos países menos desenvolvidos (LDCs), com os Unidos e a UE não aceitaram sequer honrar os já enfraquecidos
antidemocráticos métodos de decisão em green room2 e com compromissos de Doha sobre agricultura. Nesse ambiente, a
absoluto desprezo pelas suas propostas, também foi fundamental reunião ministerial de Cancún vinha sendo preparada, com a
para a derrocada de Seattle. Esse foi um motivo adicional para a realização de diversas miniministeriais.5
iniciativa européia e estadunidense de dourar a pílula de Doha,
caracterizando-a como pró-desenvolvimento.
3 Proposta de criação de mecanismos de exceção para que países em desenvolvimen-
to pudessem proteger, mesmo por vias tarifárias, as cadeias produtivas agrícolas
fundamentais para a segurança alimentar e a agricultura familiar e/ou camponesa.
1 Diretor de Políticas da ActionAid Brasil. 4 Flexibilização do acordo de propriedade intelectual para que os países em
NE Conjunto de questões remanescentes da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e desenvolvimento sem capacidade de fabricação de genéricos pudessem importá-los
Comércio (Gatt), que ainda não foram colocadas em prática pelos países desenvolvidos. de outros países em desenvolvimento.
2 Processo em que um grupo muito restrito de países é chamado a negociar, e o 5 Reunião ministerial informal na qual alguns ministros, reunidos em um grupo seleto,
acordo resultante é apresentado como imposição aos demais membros. buscam aproximar-se do consenso.
As privatizações estão sendo promovidas pelas instituições de governança internacional, pelos governos que as controlam e
pelas empresas, que pressionam os dois grupos, a despeito dos danos sérios e permanentes que podem causar às populações
mais pobres do mundo. A postura de “privatizar primeiro e perguntar depois” e a confiança ingênua nos processos e resultados
das reformas de mercado têm causado sofrimentos precisamente aos grupos que aquelas organizações deveriam proteger.
Já é hora de transferir o ônus da prova daqueles que questionam as soluções arriscadas para aqueles que as propõem.
A privatização dos serviços públicos básicos tornou-se um tema Por um lado, as instituições de Bretton Woods e os governos,
dominante no discurso sobre políticas públicas, tanto nos países seus principais contribuintes, promovem os supostos benefícios
industrializados como nas nações em desenvolvimento. Nos últimos da privatização do setor público. No Relatório de Desenvolvimento
anos, as políticas que afetam água, eletricidade, saúde e educação Mundial 2004, do Banco Mundial, cujo tema central são os serviços
geraram tanta controvérsia política e mobilização social em alguns países para as populações pobres, afirma-se que nem o crescimento nem
quanto os impostos, a reforma agrária ou mesmo o comércio exterior. o aumento dos gastos públicos serão suficientes para melhorar os
O que os serviços básicos têm de especial? As políticas de serviços de modo a atingir as Metas de Desenvolvimento do Milênio
prestação de serviços orientadas para o mercado têm sido sujeitas (MDM). Em seguida, argumenta-se que, para alcançar as MDM,
a um exame público sem precedentes. Da perspectiva de diversos será necessário rejeitar o modelo governamental de prestação de
movimentos da sociedade civil, a questão atravessa um leque serviços e adotar reformas que, em grande medida, ignorem o
amplo de áreas temáticas, tais como a responsabilidade social e Estado – incluindo concessões privadas e subcontratação.
transparência das instituições de governança internacional, os Por outro lado, as organizações da sociedade civil do Norte e do
direitos humanos, a redução da pobreza, a democratização, a Sul resistem cada vez mais à adoção de políticas que coloquem os
soberania nacional, a igualdade entre os gêneros, a redução e o serviços básicos em mãos privadas. Algumas medidas de privatização
cancelamento da dívida e a proteção ambiental. levaram a mobilizações cidadãs espontâneas que ameaçaram a
As ONGs que trabalham com políticas públicas e defendem sobrevivência de governos nacionais. Considerando a importância
uma causa particular estão incluindo os serviços públicos em suas da prestação de serviços básicos para a redução da pobreza e sua
agendas. Por exemplo, muitas organizações de cidadãos e cidadãs, crescente visibilidade, foi solicitado aos(às) autores(as) dos relatórios
com experiência no monitoramento das instituições de Bretton nacionais do Social Watch 2003 que dessem uma atenção especial
Woods, assumiram um interesse repentino pelo Acordo Geral sobre ao tema. Este artigo analisa suas conclusões.
Comércio de Serviços (Gats), da Organização Mundial do Comércio
(OMC), o qual poderia travar as privatizações, tornando-as Questão de direito
praticamente irreversíveis, e solapar a capacidade de os governos Grupos da sociedade civil organizada têm feito mobilizações para
regularem ou mesmo financiarem seus serviços públicos. resistir às privatizações dos serviços essenciais não somente porque
Existe também uma dimensão econômica especial em alguns esses serviços são necessários para a sobrevivência e a realização
serviços básicos. No caso da água e eletricidade, a distribuição tende humana, mas também por causa da maneira antidemocrática e
a ser um monopólio natural. A dependência física de uma única rede indiscriminada com que as privatizações têm sido feitas. Embora
de abastecimento de água (e muitas vezes de uma única fonte de doadores e credores reconheçam a importância da transparência e
água) ou de um sistema energético comum deixa pouca margem à da boa governança, é comum que essas poderosas instituições
competição. A dimensão monopolista da infra-estrutura básica faz exijam dos governos um compromisso com as privatizações em
com que seja essencial para a privatização ter um organismo acordos secretos – escondidos da opinião pública. Assim, muitas
governamental regulador politicamente autônomo, altamente vezes, os serviços públicos são comercializados e arrendados por
competente e bem financiado. Contudo, nos países mais pobres, décadas, sem o conhecimento, muito menos o consentimento, de
onde o atendimento privado supostamente traria os maiores benefícios, cidadãs e cidadãos e até mesmo de parlamentares.
essas precondições institucionais estão quase sempre ausentes. Na Os privatizadores estão corretos quando enfatizam a importância
ausência de regulamentação eficaz, os monopólios privados podem da eficiência, especialmente para as empresas tradicionalmente
cobrar o que quiserem, assim como ignorar em grande medida as estatais, como linhas aéreas, telecomunicações ou fábricas. No
preferências do público consumidor. Portanto, as alegações sobre os entanto, quando se trata de serviços essenciais, a eqüidade e o
benefícios da competição tornam-se uma piada. acesso universal deveriam ser mais importantes do que a eficiência.
Ganhos de eficiência conseguidos com aumentos de preços, que
terminam limitando o acesso, podem até melhorar o balanço
1 Diretor de pesquisas da Citizens´ Network on Essential Services. contábil, porém prejudicam as populações pobres.
Faces da privatização
As narrativas sobre serviços básicos nos relatórios do Social empresas ou ONGs para fornecer serviços – da manutenção de
Watch sugerem que a privatização está sendo experimentada com escolas e hospitais à educação e ao atendimento médico. Embora
políticas diferentes, de acordo com o país e o setor de serviços. A existam diferenças significativas entre a privatização de “venda
forma mais direta de privatização é a venda: a entrega permanente definitiva” e o arrendamento ou formas de administração das
de bens públicos ao setor privado. Normalmente, envolve uma PPPs, todas elas exigem contratos, monitoramento do governo,
licitação pública formal, na qual ganha quem fizer a oferta mais regulamentação e sua aplicação. Além disso, a maioria requer
alta. Outra forma de privatização é a concessão de longo prazo, na incentivos ou recursos públicos para servir às pessoas pobres.
qual o Estado mantém a propriedade formal, porém paga a uma Muitos relatórios identificaram a fixação de preços comerciais
empresa ou ONG para administrar seus bens, fazer investimentos como um prelúdio à privatização. Embora a introdução e o au-
e prestar serviços específicos. (Certos tipos de concessões, como mento de tarifas de consumo não retirem o governo da prestação
o leasing ou arrendamento, não exigem que o operador privado direta de serviços básicos, alguns(mas) autores(as) concebem
financie os investimentos.) Uma variação comum do essa lógica do mercado – a qual exige que mesmo as pessoas
arrendamento, especialmente dos serviços de energia e água, é mais pobres dediquem parcela maior de sua renda privada a esses
um acordo do tipo “construir-operar-transferir” (BOT, na sigla serviços essenciais – como uma preparação para o atendimento
em inglês), no qual uma empresa constrói e depois administra privado. Finalmente, muitos identificam o que o relatório des-
um serviço durante um período prolongado, antes de entregar os creve como privatização por “inércia”. A erosão dos recursos
bens ao governo. necessários para manter a qualidade dos serviços públicos –
A palavra “privatização” está desaparecendo gradualmente com freqüência acompanhada de desregulamentação para per-
dos documentos produzidos pelos bancos de desenvolvimento. mitir a participação e o investimento do setor privado – tem
“Parceria público-privada” (PPP)5 é agora o termo preferido para resultado numa diminuição da qualidade dos serviços públicos
praticamente qualquer forma de controle dos serviços pelo setor e no crescimento correspondente do fornecimento privado desses
privado. Embora a palavra “parceria” lembre as idéias de serviços para quem pode pagar.
cooperação e interesse mútuo, as PPPs são, em sua essência,
relações adversárias nas quais a responsabilidade do Estado passa
da prestação direta de serviços para assegurar sua realização, por 5 Para um glossário detalhado dos tipos de PPP, consulte o texto “Public-Private
Partnerships: Terms Related to Building and Facility Partnerships”. United States
meio de um outro agente. Na saúde e educação, um tipo comum Government Accounting Office, abril de 1999. Disponível em: <www.gao.gov/
de PPP é a “terceirização”, na qual o governo pode subcontratar special.pubs/Gg99071.pdf>.
Enquanto em âmbito internacional prossegue o debate sobre se a globalização pode ou não trazer benefícios às populações
pobres, a realidade é que o aprofundamento das desigualdades de renda e de oportunidades entre nações, e no interior
delas, tem levado ao aumento do número de pessoas sem habitação adequada e segura. Os direitos humanos das pessoas
e comunidades à habitação, à água e ao saneamento – assegurados pela lei internacional e pelos compromissos das metas de
desenvolvimento assumidos nas cúpulas mundiais, incluindo a Cúpula do Milênio e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável – continuam sendo solapados à medida que o processo de privatização se aprofunda e se acelera. Já é tempo de
repensar as atuais políticas econômicas e sociais globais e reassumir nossos compromissos com os princípios e as normas dos
direitos humanos, que oferecem o único paradigma real para melhorar a vida de milhões de pessoas pobres.
Estima-se que 600 milhões de pessoas que moram em centros global e está estabelecido firmemente em vários instrumentos
urbanos e mais de 1 bilhão de pessoas que moram em zonas rurais internacionais de direitos humanos,4 principalmente no Acordo
vivem atualmente em habitações superlotadas e de baixa qualidade, Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
sem sistemas adequados de abastecimento de água, saneamento, Ao ratificar esses tratados e instrumentos, os Estados aceitaram
esgoto ou coleta de lixo. Mais de 1,2 bilhão de pessoas ainda não voluntariamente a obrigação de implementar progressivamente o
têm acesso à água potável e 2,4 bilhões não possuem serviços direito à alimentação, à saúde, à habitação adequada e uma série
adequados de saneamento. A grave situação coloca essas populações de outros direitos e serviços, incluindo o abastecimento de água
em situação de risco permanente. Também ameaça vários direitos e saneamento – essenciais para o bem-estar populacional.
humanos, incluindo o direito à habitação adequada. As políticas de A globalização e o processo de crescente integração econômica
globalização têm acelerado as tendências à privatização dos direitos têm limitado a capacidade de os Estados fornecerem recursos
humanos, tais como o direito à água, muitas vezes levando à violação apropriados para atender aos direitos econômicos, sociais e
dos direitos das pessoas pobres. culturais, incluindo habitação e serviços sociais essenciais. Vários
Os organismos de direitos humanos da Organização das Nações fatores macroeconômicos influenciam a disponibilidade de
Unidas (ONU) estão cada vez mais preocupados com os impactos recursos para gastos sociais, incluindo:
negativos da privatização sobre a satisfação dos direitos humanos.1 • resultados pequenos ou mesmo negativos da liberalização
Em setembro de 2002, o Comitê de Direitos da Criança teve uma comercial nos países em desenvolvimento, especialmente nos
discussão geral sobre o papel dos prestadores de serviço no setor países menos desenvolvidos;
privado, e, em novembro do mesmo ano, o Comitê de Direitos • volatilidade financeira em seguida à desregulamentação do
Econômicos, Sociais e Culturais (CDESC) adotou o Comentário Geral fluxo de capitais, combinada com aumentos das taxas de juros,
15, sobre o direito à água.2 Este artigo analisa alguns desses que afetam o acesso ao crédito e às hipotecas;
acontecimentos, assim como os resultados preliminares da pesquisa • aumento na especulação com terras, resultante de uma maior
realizada para a Relatoria Especial da ONU para Habitação Adequada.3 competição pelos melhores locais em cidades que estão sendo
Todas as pessoas – mulher, homem, jovem ou criança – têm rapidamente globalizadas. Isso, com freqüência, força
o direito de ter um lar seguro e de viver numa comunidade em residentes de baixa renda a se mudarem para locais menos
paz e com dignidade. Esse direito tem recebido reconhecimento desejáveis e com disponibilidade de serviços inadequada;
• forte ônus do serviço da dívida;
• limitações fiscais e medidas de austeridade impostas pelo
1 Ver também os trabalhos dos relatores especiais da ONU: “The right to food”, de
Jean Zeigler, e “The right to drinking water and sanitation”, de El Hadji Guisse,
Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Banco Mundial –
disponíveis em: <www.unhchr.ch>. formuladas primariamente para reduzir os gastos públicos –,
2 Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Comentário Geral 15, “The right levando invariavelmente a reduções nas alocações financeiras
to water”, E/C 12/2002/11, novembro de 2002. para os setores sociais;
3 Comissão de Direitos Humanos. “Report of the Special Rapporteur on adequate • o processo de reforma do setor público, especialmente pela
housing as a component of the right to an adequate standard of living”, de Miloon
Kothari, E/CN.4/2002/59, março de 2002, parágrafos 49-65. Ver também os descentralização e privatização.
documentos preparados por David Westendorff, Deepika Naruka e Liana Cisneros.
Atualmente, há pesquisas em andamento nos países do Mercosul – Uruguai, A crescente competição entre as cidades para atrair capital e
Argentina, Paraguai e Brasil –, disponíveis em: <www.coopere.net/ negócios que gerem empregos e fontes de receitas fiscais tem
direitoshumanosrmc/index.htm>. Ver também “Global survey on the right to adequate
housing and social services”, preparado por Social Alert, como contribuição ao
levado à ampliação das desigualdades entre essas cidades, com
trabalho do relator especial, disponível em: <www.socialalert.org/e-camp.html>. conseqüentes discrepâncias na qualidade dos serviços essenciais
4 Ver <www.unhchr.ch/housing/i2echou.htm>. prestados às populações. No setor de habitação urbana, a confiança
Caro e ruim
De uma perspectiva de direitos humanos, podem ser retiradas três lições estrutura, tratamento de esgoto, abastecimento de áreas faveladas e
fundamentais da experiência com a privatização dos serviços de água. o serviço de água rural. Essa separação dos serviços de água, além
de tornar explícitos os subsídios, é considerada parte do trabalho
Ênfase nos lucros preparatório necessário para oferecer às empresas privadas de água
Com freqüência, a privatização tem resultado em aumentos de tarifas. pacotes atraentes de investimento.7
Governos endividados são pressionados pelas políticas do FMI e do A privatização muitas vezes leva à perda de empregos. São comuns
Banco Mundial para aumentar as taxas de consumo da água, visando as demissões maciças à medida que as empresas tentam minimizar os
atrair investimentos do setor privado para os serviços de custos e maximizar os lucros. Com freqüência, os serviços e a qualidade
abastecimento. Em muitos casos, as empresas conseguem que da água correm riscos por causa da falta de pessoal. Assim, as
garantias de lucros sejam estipuladas em seus contratos.6 demissões têm um duplo impacto negativo: prejudicam o público
Outra preocupação é que o Banco Mundial e bancos de consumidor e os(as) trabalhadores(as) diretamente envolvidos(as).
desenvolvimento regionais muitas vezes defendem a separação ou
unbundling dos serviços – separando as áreas rentáveis das não- Serviços inadequados e de baixa qualidade
rentáveis nos serviços de abastecimento de água e saneamento. Muitas vezes, a privatização provoca uma redução do acesso das
Permanecem no setor público os setores não-rentáveis, como infra- pessoas pobres aos serviços sociais básicos. Nos países em
6 Por exemplo, se os(as) consumidores(as) utilizarem menos água do que o previsto, 7 GRUSKY, Sara. Profit streams : The World Bank and greedy global water companies.
as empresas podem aumentar as tarifas, de modo que os lucros não fiquem abaixo Relatório de Public Citizen, set. 2002. Disponível em: <www.citizen.org/documents/
do predeterminado. ProfitStreams-World%20Bank.pdf>.
17 Estima-se que, nos países em desenvolvimento, 2,2 milhões de pessoas, na maioria 22 Dados coletados pelo Instituto Mazingira, Nairóbi, Quênia, para meu próximo
crianças, morrem a cada ano de doenças associadas à falta de acesso à água relatório (E/CN.4/2003/55) sobre “Women and Housing”, para a Comissão de
potável e de saneamento e higiene inadequados. Ver <www.unicef.org>. Direitos Humanos.
18 De acordo com o Conselho Colaborador de Abastecimento de Água e Saneamento, as 23 Essas questões e pontos foram apresentados no Questionário sobre Mulheres e
mulheres na África e na Ásia caminham em média 6 quilômetros para conseguir Habitação Digna, desenvolvido pelo relator Especial de Habitação Adequada.
água. O peso de água que as mulheres africanas e asiáticas carregam na cabeça é Disponível em: <www.unhchr.ch/housing>.
cerca de 20 quilos. “WASH Facts and Figures”, Information sheet.
24 Resolução da Assembléia Geral 55/2, parágrafo 6.
19 Human Rights, Poverty Reduction and Sustainable Development: Health, Food and
Water, OHCHR Background Paper, CMDS Johanesburgo, 26 de agosto-4 de setembro 25 O artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que todas as
de 2002. pessoas têm direito a uma ordem social e internacional onde os direitos e as
liberdades contidos na declaração possam ser desfrutados; os artigos 2.1, 11, 15, 22 e
20 PARSURAM, Ray. Its grave, not watery. Grassroots, 4 fev. 1998. 23 do Acordo Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais utilizam
21 É preciso também levar em conta as questões de eqüidade não somente entre como base para a cooperação internacional os artigos 55 e 56 da Carta das Nações
homem e mulher, como também entre mulheres ricas e pobres, pois mulheres de Unidas; e a obrigação de os Estados reconhecerem o papel essencial da cooperação
situações socioeconômicas diferentes têm necessidades distintas, que afetam seu internacional, ao mesmo tempo em que mantêm sua autonomia para realizar ações
interesse e sua participação em várias atividades. Ver Gender issues in watershed conjuntas e separadas. Ver também o Limburg Principles on the Implementation of the
management, de Vasudha Pangare, Oikos, Índia, 2002. International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, parágrafos 29-34.
30 Ver, por exemplo, o trabalho em curso do Fórum Social Mundial de Porto Alegre sobre
a Carta Mundial dos Direitos Humanos nas Cidades. A versão preliminar está
disponível em: <www.hic-mena.org>. Ver também a Carta de Porto Alegre, assinada
por mais de 50 prefeitos e prefeitas do Cone Sul da América Latina e de várias
cidades do mundo.
31 Estão incluídas Rosário, Argentina; Nagpur, Índia; Kati, Mali; Thiès, Senegal; Dinajpur,
Bangladesh; Graz, Áustria; The People of Abra, Filipinas; e El Fasher, Sudão. Para
32 Para uma tentativa desse tipo, consulte meu próximo relatório para a Comissão de
obter mais informações sobre como foi iniciado o trabalho nessas cidades e como
Direitos Humanos da ONU (E/CN.4/2003/5).
evolui atualmente, ver informações sobre o Movimento Popular para Educação de
Direitos Humanos (PDHRE), disponível em: <www.pdhre.org>. NT Transformação em mercadoria.
A oitava das Metas de Desenvolvimento do Milênio (MDMs) não está suficientemente detalhada para definir os
objetivos e ações na área das finanças globais – incluindo aí os problemas da dívida, fluxo de capitais e um sistema
saudável de financiamento do desenvolvimento. O paradigma emergente exige que os países em desenvolvimento
assumam uma abordagem pragmática da globalização e da liberalização, integrando suas economias nacionais à economia
global nas áreas de finanças, comércio e investimentos. No entanto, o sistema financeiro necessita de uma revisão geral,
pois é cada vez mais caracterizado pela ausência de regulamentos, transparência ou um conjunto de regras justas para
resolver os conflitos entre países devedores e credores.
As origens das MDMs estão na Declaração do Milênio das Nações para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as
Unidas, adotada em 8 de setembro de 2000 por todos os 189 agências bilaterais de ajuda – tem, na verdade, um impacto
Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU) – tremendo sobre um país em desenvolvimento.
147 deles representados por chefes de Estado ou de governo. A Até onde é capaz de avançar um país em desenvolvimento em
declaração contém muitos compromissos para melhorar o destino muitas das MDMs (especialmente na Meta 1, erradicar a pobreza
da humanidade no novo século. Posteriormente, o secretariado e a fome, mas também nas Metas 4, 5 e 6, relacionadas à saúde, e
da ONU elaborou uma lista de oito MDMs, cada uma acompanhada na Meta 7, sobre a sustentabilidade ambiental) depende não
de metas e indicadores específicos. A Meta 8 é “desenvolver uma somente das escolhas de políticas nacionais, como também de
parceria global para o desenvolvimento”. Até novembro de 2002, quão favorável ou hostil ao país seja o ambiente econômico
havia sete objetivos listados na Meta 8 e 17 indicadores para externo. Quatro exemplos podem ilustrar este ponto:
medir os avanços na direção daqueles objetivos (no destaque).
• o permanente declínio dos preços das commodities (produtos
São necessárias políticas adequadas, tanto na esfera nacional
primários) exportadas tem causado tremendas perdas de renda
como na internacional, para que os esforços de desenvolvimento
e divisas para muitos países em desenvolvimento e é uma
sejam bem-sucedidos. Como conseqüência da globalização, os
causa importante da persistente pobreza ou do aumento da
fatores internacionais tornaram-se proporcionalmente mais
pobreza em âmbito local;
importantes nos anos recentes. Em geral, os países em
desenvolvimento tornaram-se mais integrados à economia • a instabilidade financeira e as fortes flutuações monetárias
mundial e suas perspectivas de desenvolvimento e desempenho causadas por grandes entradas e saídas de fundos externos
dependem mais das estruturas e tendências econômicas globais. têm levado muitos países em desenvolvimento, incluindo
Um ponto relevante é que políticas que costumavam ser aqueles considerados os mais bem-sucedidos nessa categoria,
desenvolvidas somente, ou principalmente, na esfera nacional a enfrentar crises financeiras e econômicas e a aumentos
agora são influenciadas de modo muito significativo por fóruns e dramáticos e repentinos dos índices de pobreza;
instituições internacionais. Isso se aplica especialmente àqueles • muitos países em desenvolvimento sofreram declínio ou viram
países em desenvolvimento que dependem de instituições ameaçados seus empregos industriais e a subsistência da
financeiras internacionais para empréstimos e reestruturação da classe trabalhadora agrícola como decorrência de políticas
dívida e que devem respeitar as “condicionalidades” dos inadequadas de liberalização das importações. Isso foi parcial
empréstimos. No entanto, também se aplica aos países em ou totalmente causado por influências políticas externas,
desenvolvimento que são membros da Organização Mundial do resultantes de condicionalidades dos empréstimos ou de
Comércio (OMC), obrigados a adequar suas leis e políticas regras comerciais multilaterais;
nacionais aos acordos vinculatórios daquela organização. • cortes de gastos no setor social, assim como a introdução
O ambiente econômico externo – composto de estruturas e do princípio de que o “usuário deve pagar”, resultantes das
tendências econômicas globais e das políticas determinadas ou políticas de ajuste estrutural no passado, foram identificados
influenciadas pelas agências internacionais, tais como o Fundo como fatores significativos na deterioração do bem-estar
Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a OMC, a ONU e social de grupos vulneráveis e de pobres em vários países
os grupos de países desenvolvidos como o G-8, a Organização em desenvolvimento.
Esses exemplos, assim como a continuidade das crises da
dívida em muitos países, mostram que as tentativas de melhorar
as políticas nacionais, por mais exemplares que tenham sido, não
1 O autor é coordenador da Rede do Terceiro Mundo. foram suficientes para que os países em desenvolvimento
A implementação de políticas nacionais acontece em um contexto institucional que determina a distribuição de custos
e benefícios. Entre os desafios que enfrentamos hoje está a necessidade de criar um conjunto de instrumentos políticos
e jurídicos capaz de reconstruir tal contexto, no qual opera a globalização, com um viés de gênero. Os mercados
geraram uma estrutura de incentivos que estimula as mulheres a realizar atividades produtivas. Entretanto, praticamente
não se conhece nenhum incentivo para encorajar os homens a assumir responsabilidades de cuidados familiares.
Assim, a reprodução social está sendo deslocada das famílias para a esfera do mercado privatizado, no que parece ser
uma mudança de mal a pior.
Entre as características da atual onda de globalização estão a Entretanto, a provisão de cuidados precisa continuar e se
ascensão da indústria de serviços e o crescimento do seu acredita que o altruísmo socialmente imposto assegure sua
comércio. Os países desenvolvidos lideram esse processo e, execução. Atribuir às mulheres o papel de cuidadoras as colo-
nas duas últimas décadas, tornaram-se economias mais ca sob uma dupla sobrecarga de trabalho produtivo e de re-
orientadas para os serviços. Em geral, têm-se valorizado os produção social. A natureza dos subsetores de serviços onde
serviços intensivos em especialização, conhecimentos e as mulheres têm maior envolvimento é determinada por essas
tecnologia, pois proporcionam rendimentos mais altos e maior expectativas de papéis. Esses subsetores diferem à medida que
valor agregado. Ao mesmo tempo, os setores de manufaturados elas atuam predominantemente como consumidoras ou como
desindustrializados desses países têm deslocado cada vez mais consumidoras e produtoras. Neste último caso, os serviços
suas operações para os países em desenvolvimento – na forma são menos valorizados, pois tendem a ser dicotomizados entre
de investimentos estrangeiros diretos –, enquanto mantêm serviços formalmente regulamentados e aqueles informalmen-
controle sobre as atividades produtivas em suas sedes. te regulamentados. As mulheres do setor informal são as mais
O setor de serviços nos países em desenvolvimento reproduz vulneráveis às crises.
as características de baixo conhecimento e menor valor agregado O processo de liberalização comercial e globalização colocou
de seus setores de manufaturados – que declinaram em o setor de serviços no centro das atenções – setor que costumava
conseqüência da competição dos similares importados no ser considerado não-comercializável. A insistência no
contexto da liberalização comercial. Assim, a polarização entre investimento2 como forma de comercializar os serviços facilita a
o mundo desenvolvido e em desenvolvimento não apenas persiste abertura dos mercados de serviços aos interesses estrangeiros.
como se intensificou. Quando combinada com a privatização dos bens e empresas do
À medida que acontece essa mudança estrutural na indústria Estado no setor, fica praticamente garantida a mercadização dos
e no emprego, as mulheres são incapazes de subir a escada do serviços de reprodução social.
valor agregado, pois especialização, conhecimentos e tecnologia
continuam a favorecer os homens. Além disso, os setores de Terceirização em alta
serviços que apóiam o trabalho reprodutivo social1 – comunitários, Nas últimas décadas, não foi somente as negociações sobre tarifas
sociais e pessoais, educacionais e de saúde – vêm perdendo apoio de produtos de exportação manufaturados que perderam
financeiro público, pois o mercado está sendo apresentado como relevância. Também as economias desenvolvidas sofreram um
um método mais eficiente de prestação de serviços. Isso acontece deslocamento de sua estrutura industrial e de emprego do setor
numa época em que os orçamentos públicos estão ameaçados de manufaturados para o de serviços. Isso ocorreu principalmente
por ondas constantes de crises financeiras e econômicas. por causa dos avanços tecnológicos e da crescente especialização.
Em meados da década de 1990, a proporção dos serviços no
Produto Interno Bruto (PIB) dos países industrializados ficava
em torno de 70%. As economias recentemente industrializadas
1 Segundo o professor de economia da Universidade da Califórnia – Los Angeles têm serviços na faixa de 50% a 60%, enquanto os países em
(Ucla), Sule Ozler, “a reprodução social descreve todas as atividades e processos
pelos quais os seres humanos são mantidos, direta e indiretamente, material e
desenvolvimento estão perto de 40% (Kang, 2000).
psicologicamente. Essas atividades estão inseridas em estruturas sociais e
historicamente específicas. A reprodução social pode ocorrer através de várias
organizações, tais como o Estado, comunidade, organizações e família – o cuidado
das crianças, idosos e ‘trabalhadores’ pode ser fornecido por todas essas
instituições. Entretanto, nos sistemas econômicos modernos, a maior parte da 2 Mais precisamente, a presença comercial é a terceira modalidade de oferta no
reprodução social se dá na família e, na maioria dos casos, pelo trabalho não- Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (Gats). As outras modalidades são
remunerado das mulheres”. ofertas internacionais, consumo no exterior e movimento de pessoas.
Os programas de seguridade social não se ajustaram à MILBERG, William. Foreign direct investment and development: balancing costs and
benefits. In: International monetary and financial issues for the 1990s Vol. XI.
ascensão da economia de serviços. À medida que o mercado Genebra: UNCTAD, 1999.
de trabalho fica mais informal e precário, tornam-se irrelevantes SASSEN, Saskia. Globalization and its discontents : essays on the new mobility of people
os regimes de seguridade social baseados nas relações and money. Nova York: The New Press, 1998.
Por causa da natureza altamente polêmica dos estudos sobre a pobreza, alguns dos problemas das medições
internacionais são idênticos àqueles que os países enfrentam para estabelecer uma linha de pobreza nacional. O Banco
Mundial propôs que essas comparações fossem feitas em relação ao consumo ou à renda e, em especial, fixou um limiar
de US$ 1/dia por pessoa, baseado na paridade do poder de compra de 1985. As medidas baseadas na renda – embora
possam ser úteis – tornaram-se insuficientes num contexto em que os conceitos de pobreza ficaram mais complexos e
menos unidimensionais. Hoje, existe um consenso amplo de que o acesso à saúde e à educação é tão importante
quanto a renda. No futuro, esse consenso provavelmente incluirá o empoderamento e a participação cidadã.
O estabelecimento de linhas de pobreza nacionais tem um papel e os horizontes de tempo das comparações são diferentes. Do
importante na formulação das políticas econômicas e sociais. Nesse ponto de vista dos organismos internacionais, especialmente
sentido, Atkinson (1993) propôs considerar a existência de linhas das instituições financeiras internacionais, é importante fazer a
de pobreza como instituições e levar em conta seu papel relevante classificação dos países. No entanto, essas classificações feitas
na avaliação do desempenho social de um país ao longo do tempo. com base num único limiar simplificam necessariamente a
Porém, será válido estender esse raciocínio para a esfera realidade, deixando de lado muitos aspectos importantes do ponto
internacional? Será que o estabelecimento de uma linha de pobreza de vista nacional e da sociedade civil.
mundial ajudará a avaliar os esforços realizados para reduzi-la, Nesse sentido, o Banco Mundial (BM) tem defendido a
como proposto, por exemplo, pelas Metas de Desenvolvimento do conveniência de realizar essas comparações com relação ao
Milênio? Neste texto, sem discutir a pertinência de uma meta consumo e à renda e, em especial, de fixar um limiar de US$ 1/dia
particular de redução de pobreza, serão analisados os problemas por pessoa, baseado na paridade do poder de compra de 1985.2
de se estabelecer uma linha única de pobreza internacional. Em defesa dessa posição, Ravallion (2002) argumenta que o uso
As comparações de pobreza entre os países têm objetivos de linhas de pobreza nacionais para realizar comparações
diversos: por exemplo, a avaliação comparativa das condições de internacionais leva a tratar de forma distinta pessoas ou domicílios
vida da população em regiões ou países diferentes, ou a alocação cujos patamares de consumo real são similares.
de recursos da ajuda financeira internacional. No entanto, com Reconhece também que essa linha de pobreza extrema do BM
freqüência, a concentração de esforços para identificar as pessoas é conservadora, pois, de acordo com esse critério, pessoas que são
pobres acontece sem muita discussão sobre os conceitos implícitos consideradas pobres pelos padrões nacionais passam a não ser
nas comparações de bem-estar entre as pessoas, pois a maior quando essa linha é utilizada. Mesmo concordando com o uso de
parte dos estudos traz contribuições às controvérsias sobre linhas de pobreza comparativas entre países, deve ser determinado
políticas ou se referem à própria formulação dessas políticas. em que medida essas linhas serão absolutas ou relativas. Nesse
Porém, de forma explícita ou não, o fato de realizar compa- sentido, cabe perguntar se uma medida internacional de pobreza
rações internacionais entre países sobre as privações da popu- deveria considerar a falta de renda absoluta ou também levar em
lação exige o estabelecimento de vários critérios como ponto de conta as desigualdades de renda. Ravallion forneceu evidências de
partida. Especialmente, requer uma conclusão: se é necessário, que o BM preparou linhas de pobreza relativas que ainda estão
e também possível, estabelecer uma linha de pobreza comum baseadas numa linha de pobreza internacional comum.
para a comparação de todos os países, assim como determinar Por outro lado, Ravallion também indica que os especialistas
suas características. do BM, quando analisam regiões ou países, não utilizam essas
Kanbur (2001) argumentou, de forma muito convincente, que estimativas internacionais, baseando-se nas linhas de pobreza
essa idéia de contar as pessoas pobres do mundo na base de uma nacionais. Esse fato fica claro, por exemplo, nos relatórios de
linha comum tem como contexto o que denominou “a abordagem países elaborados pela instituição.
de Ministério da Fazenda” e reflete a preocupação de muitas Um dos questionamentos sobre essa linha de pobreza é o fato
instituições de formular políticas de luta contra a pobreza. Porém, de não ser derivada de um critério de capacidades ou cesta de
essas preocupações não são percebidas da mesma forma pela necessidades básicas. Esse aspecto tem sido criticado por diversos
sociedade civil, o que leva a enfrentamentos, pois as perspectivas autores, entre eles, Pogge e Reddy (2002). Dificilmente, uma
1 Economista, fez mestrado na London School of Economics. É pesquisadora e docente 2 A metodologia de derivação da linha internacional de pobreza do BM está descrita em
no Instituto de Economia, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade da vários documentos, entre os quais, Banco Mundial (2000). Basicamente, esse
República (Uruguai). Seus interesses principais na pesquisa estão centrados na conceito foi derivado de um estudo de linha de pobreza nacional realizado em mais
pobreza e desigualdade econômica. de 30 países, levando-se em conta as linhas dos países mais pobres.
disso, nas regiões em que a pobreza e a desigualdade aparecem _____. World Development Report 1999/2000, 1999.
em patamares extremos (e se agravando), pode ser compreensível CEPAL. Panorama social de América Latina. Santiago de Chile, 2000.
que aproximações imperfeitas como as linhas de pobreza EVANS, M.; PAUGAM, S.; PRÈLIS, J. Chunnel vision: poverty, social exclusion and the
debate on social welfare in France and Britain. Documento para discussão WSP/115,
baseadas no consumo e comparações de bem-estar baseadas na Sticerd, London School of Economics, 1995.
renda sejam consideradas como atalhos suficientemente bons GARDINER, K.; HILLS, J.; FALKINGHAM, J.; LECHENE, V.; SUTHERLAND, H. The effects of
para chegar aos problemas mais agudos. differences in housing and health care systems on international comparisons of
Entretanto, estudos empíricos realizados por Ruggeri- income distribution, WSP/110, Sticerd, London School of Economics, 1995.
Laderchi no Peru e no Chile mostraram que nem sempre as KANBUR, R. Economic policy, distribution and poverty: the nature of disagreements.
Documento de trabalho, Universidade de Cornell, 2001.
outras dimensões da pobreza são coerentes com a renda. O
POGGE, T.; REDDY, S. How not to count the poor. Disponível em:
mesmo pode ser deduzido da miríade de estudos que analisam <www.socialanalysis.org>. Acesso em: 2002.
a incidência de necessidades básicas insatisfeitas e da pobreza PNUD. Informe sobre desarrollo humano. 2002.
de renda, e mesmo das próprias classificações de países feitas RAVALLION, M. How not to count the poor? A response to Reddy and Pogge. Disponível
pelo Pnud, de acordo com o IDH. em: <www.socialanalysis.org>. Acesso em: 2002.
Também é preciso levar em conta que a renda é uma variável RIUS, A.; VIGORITO, A. Sen meets the marketplace of ideas: The capability approach and
poverty research in Latin America. Apresentação feita no seminário An Operalisation
extremamente atraente para os economistas porque é um of Sen’s Capabilities Approach, Universidade de Cambridge, 2000.
conceito muitíssimo mais fácil de vincular à análise padrão da RUGGERI-LADERCHI, C. The monetary approach to poverty: a survey of concepts and
mudança econômica e permite ligar a evolução da pobreza e methods. Documento de trabalho no 58, Queen Elizabeth House, Universidade de
desigualdade ao restante da economia, especialmente à evolução Oxford, 2000.
do mercado de trabalho. Tal possibilidade facilita retirar dessas _____. The many dimensions of deprivation in Peru: theoretical debates and empirical
evidence. Documento de trabalho no 29, Queen Elizabeth House, Universidade de
análises de pobreza implicações em termos de políticas públicas Oxford, 1999.
(Rius e Vigorito, 2000). SEN, A. Development as freedom. Nova York: Anchor Books, Random House, 1999.
Além disso, a renda satisfaz as exigências disciplinares de _____. Vidas y capacidades. In: NUSSBAUM, M.; SEN, A. (eds.). La calidad de vida.
quantificação, pois pode ser tratada como uma variável contínua. México DF: Fondo de Cultura Económica, 1996.
Essa diferença entre a renda e outras variáveis que podem ser _____. Inequality reexamined. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
Nos últimos anos, a agricultura familiar vem ganhando importância como alternativa para o desenvolvimento rural
sustentável, tanto nas ações dos movimentos sociais como das políticas públicas governamentais. No que se refere a
essas políticas, até o momento, a força discursiva não foi suficiente para provocar resultados que alterem os graves
padrões de pobreza e exclusão a que estão submetidas as populações rurais – cujas causas estão radicadas no
exaustivamente reconhecido modelo de desenvolvimento hegemônico brasileiro, que privilegia o setor latifundiário e
a agricultura patronal. Este artigo pretende analisar as relações, contradições, funcionalidades e dependência entre o
modo como está estruturada a agricultura familiar e as desigualdades de gênero, demonstrando as conseqüências
dessa dinâmica tanto na restrição da autonomia e cidadania das mulheres como no que se refere aos riscos que o
próprio modelo corre, caso não sejam construídas possibilidades para o enfrentamento dessas desigualdades. Tais
riscos não estão relacionados apenas aos limites para expansão ou consolidação da agricultura familiar, mas às suas
possibilidades de constituir-se em um instrumento que promova a democracia e a justiça.
A constatação do hiato e da aparente contradição entre os discursos Ao estudar o processo de envelhecimento e masculinização
estatais e suas proposições políticas não responde à totalidade do da população rural, Camarano e Abramovay questionam: “Até
problema a ser enfrentado. Por outro lado, no campo da sociedade que ponto o meio rural pode ser um espaço propício na construção
civil, o discurso sobre agricultura familiar produzido nos últimos da cidadania e de condições de vida capazes de promover a
anos por vezes a trata como um fenômeno histórico recente e integração econômica e a emancipação social das populações
altamente idealizado, especialmente no que se refere à harmonia que aí vivem?”.3 Tomando como referência as relações de gênero
e à complementaridade entre as ações humanas e a natureza, entre na agricultura familiar em seu atual formato, as possibilidades de
a produção e o consumo, entre mulheres e homens, adultos(as), construção de cidadania e emancipação das mulheres ainda são
jovens e crianças, bem como o seu caráter multifuncional. Com muito restritas. O ethos da agricultura familiar coloca no pai todo
relação a esse aspecto, Soares considera que a “agricultura familiar o poder para organizar não só o empreendimento produtivo como
provê um conjunto de bens públicos, tangíveis e intangíveis, de também todo universo de relações que ali ocorrem. A partir dele,
elevado valor para a sociedade em geral”, 2 destacando sua constrói-se uma hierarquia rígida na ocupação de lugares,
contribuição nos campos da segurança alimentar, sustentabilidade atribuição de valores, oportunidades e benefícios.4
ambiental, função econômica e social. Em outras palavras, na dominação patriarcal, tal como definida
Sem negar que essas características podem ser realizadas por Weber, estão presentes “a crença no caráter inquebrantável
pelo modo de produção familiar, é fato que, entre a potencialidade do que tem sido feito sempre de uma determinada maneira”5 e a
e a realidade, há longo caminho a ser percorrido que não depende autoridade fundamentada na submissão e nas relações pessoais
apenas de mudança nas políticas públicas, mas fundamentalmente de convivência íntima e permanente. Se o patriarcado é o sistema
dos processos sociais e políticos – em suas dimensões que cria, justifica e legitima a opressão e exploração das mulheres,
contraditórias e conflitivas – presentes na base das análises e a agricultura familiar, ao se organizar a partir desse sistema,
ações que tradicionalmente vêm organizando e dinamizando a reproduz e perpetua tal exploração e opressão.
agricultura familiar. A mudança de foco aqui operada talvez nos Tal diferenciação de oportunidades e poderes ocorre não
obrigue a olhar menos para as funções que exerce e mais para as apenas na agricultura familiar, mas no próprio processo de
estruturas que a sustentam. visibilidade e valorização desse modo de produção. Como bem
analisa Buarque, “a nossa agricultura familiar é herança de uma
atividade basicamente feminina [...] instituída pelas mulheres nos
Atividade BA CE MT PR RS SP
P M Fo Fa P M Fo Fa P M Fo Fa P M Fo Fa P M Fo Fa P M Fo Fa
- 31,5 2,0 19,0 - 45,0 0,5 14,0 - 43,0 - 33,5 - 14.5 2,0 17,0 0,5 24,0 - 18,5 0,5 49,0 ,5 0,0
domé ticas
Estudante - 1,5 30,0 50,0 - 0,5 18,5 40,0 - 0,5 0,0 14,5 - 0,5 3,0 20,0 0,5 0,5 4,0 31,5 - - 14,5 25,0
Analisando os dados para além da sub-representação que parece Não cabe aqui analisar a correção ou não de tais proposições,
ocorrer com o trabalho feminino na produção agrícola, tem-se que as mas vale destacar que a inserção em atividades não-agrícolas é
mulheres, especialmente na condição de mães, estão majoritariamente profundamente marcada pelo viés de gênero,15 sendo uma prática
presentes nas quatro atividades apresentadas – o que as torna condicionada pelos contextos sociais, econômicos e políticos.
multifuncionais para a agricultura familiar, já que, além das atividades São as mulheres – independentemente de faixa etária – e, em
domésticas e agrícolas, elas ainda estudam e exercem o magistério. certa medida, os jovens que fazem esse movimento, levando
Além disso, é por elas e por meio de seus trabalhos que se realiza a consigo a subvalorização da sua contribuição para a
integração entre produção e consumo, característica considerada sustentabilidade da agricultura familiar. Como decorrência, é
fundamental na consolidação desse modo de produção. necessário pensar a questão da pluriatividade como uma das
Ainda que os dados apresentados não façam referência direta formas a partir das quais esse modo de produção é constituído
à dimensão da pluriatividade na agricultura familiar, pode-se fazer e dinamizado, sendo possível também estabelecer conexões
inferências sobre quem são as pessoas que, com mais freqüência, entre os processos migratórios femininos e o conceito de
atuam para além do especificamente agrícola, principalmente no pluriatividade. Na maioria dos casos, a ausência física das
contexto dos debates sobre o “novo rural” e os modos como mulheres não significa que elas deixem de ser um elemento da
outras dimensões econômicas – como serviços, turismo, organização e da manutenção do estabelecimento familiar.
artesanato, gastronomia e até mesmo um certo modo de vida – A tendência de diminuição da população feminina no meio
vêm sendo reforçadas nos discursos e políticas como alternativa rural é histórica. Vem ocorrendo tanto na Europa (é o caso da
eficaz para o desenvolvimento rural. França, onde um terço dos homens que trabalhavam na
atividade agrícola não havia se casado até os 35 anos) como na
12 Resultados quase idênticos foram encontrados por Puhl, Moura e Lopes em
América Latina (onde, em 1995, havia 5 milhões de homens a
diagnóstico realizado no Vale do Guaporé (1998). Ver PUHL; MOURA; LOPES. mais do que mulheres).16
Etnografia sobre as relações de gênero na agricultura familiar no Vale do Guaporé.
In: CAMURÇA, Silvia; PACHECO, Maria Emília. (Orgs.). Programa integrado de
capacitação em gênero, desenvolvimento, democracia e políticas públicas. Quarto
Caderno: Experiências Rurais. Rio de Janeiro: Fase, 1998.
13 ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Companheiras de luta ou coordenado- 15 É interessante observar que, mesmo nos estudos que tratam do tema da
ras de panelas?. Brasília: Unesco, 2000. pluriatividade, não há uma nomeação do sexo daqueles(as) que têm múltiplas
14 Versão modificada da tabela original. Fez-se a opção de trabalhar com as categorias inserções produtivas.
de maior significação estatística para o presente artigo. 16 Ver CAMARANO e ABRAMOVAY, op. cit.
A resposta brasileira à epidemia de HIV/Aids foi construída sobre princípios fundamentais inseridos na Constituição
de 1988 que emergiram tanto da mobilização da sociedade civil como da implementação de diversos programas
governamentais. Tais princípios estão na base de todas as ações de enfrentamento e refletem o espírito de solidariedade
que foi, e continua sendo, o coração da luta contra a Aids, desde o seu início. A experiência brasileira nos ensina que
a articulação entre direitos humanos e cidadania formam a base dessa resposta, permitindo o enfrentamento e
legitimando os programas.
Mesmo se considerarmos que a resposta brasileira ao HIV/ Ainda segundo dados da PN-DST/Aids, houve uma queda
Aids é um caso excepcional no Brasil e no mundo, o fato de nacional em torno de 50% dos óbitos em decorrência da Aids.
poder discuti-la e avaliá-la de forma criteriosa possibilita No estado de São Paulo, o número chega a 71%. Quanto às
estender seus aspectos positivos para outros campos da saúde internações hospitalares por causa de doenças oportunistas, a
pública e para outros países em desenvolvimento, a partir de redução ficou em torno de 80%, uma economia em torno de
princípios que reforcem a autonomia das nações e a participação US$ 1,1 bilhão durante os anos de 1997 e 2001 (Brasil, 2002, p. 28).
popular. Esse olhar permite ir além dos desafios e das lacunas O acesso universal ao tratamento, ao contribuir com o aumento
que fazem parte desse percurso, aprimorando a qualidade da do tempo e da qualidade de vida dos(as) pacientes, gera ganhos
resposta nacional à epidemia de Aids. sociais. Por exemplo, a possibilidade de retorno ao trabalho,
Parece ser unânime a compreensão de que o perfil tendo em vista que a infecção pelo HIV atinge principalmente
epidemiológico nos países em que a população pode ter acesso pessoas que integram a população economicamente ativa (PEA).
aos anti-retrovirais contraria todas as expectativas formuladas ao Ao se promover a saúde integral das pessoas afetadas, também se
fim da década de 1980 – quando se dispunha apenas da torna possível diminuir o surgimento de novos casos, uma vez
Zidovudina (AZT) para o tratamento das pessoas doentes. No que os(as) pacientes se engajam em um processo ativo de
Brasil, por exemplo, previa-se que haveria mais de 1 milhão de prevenção de doenças oportunistas e de outras doenças
pessoas infectadas no ano 2000, ao passo que, hoje, as estimativas sexualmente transmissíveis, com um maior cuidado em relação a
mais pessimistas apontam para pouco mais da metade dessa cifra sua própria saúde sexual.
(Brasil, 2002). Segundo o Ministério da Saúde, desde o início da Hoje, não resta dúvida sobre a relação direta entre a política
década de 1980 até dezembro de 2002, foram notificados 257.780 de distribuição de medicamentos, a estabilização no número de
casos de Aids no país. Desse total, 72% (185.061) são verificados novos casos e o aumento da qualidade de vida de pessoas com
em homens, e 28% (72.719), em mulheres (Brasil, 2003). Aids. No entanto, sabemos que esse sucesso não é conseqüência
O Programa Nacional de DST e Aids (PN-DST/Aids) estima somente da descoberta de novas terapias e da ampliação do
que existam 597 mil brasileiros e brasileiras infectados pelo acesso ao tratamento. Os inúmeros esforços dispensados e a
HIV. Desses, 105 mil receberam medicamentos para tratamento quantidade de recursos envolvida na prevenção primária da
da doença em 2001 (Brasil, 2002, p. 5). Além disso, a infecção pelo HIV – seja por campanhas informativas, seja por
economia que se tem feito com a redução do número de ações das ONGs e dos serviços de saúde – servem de exemplo
internações e a queda nas taxas de mortalidade e morbidade para o caráter multifacetado, intersetorial e interdisciplinar das
em função das doenças oportunistas são indicadores do respostas que a sociedade civil e o governo brasileiro vêm dando
sucesso que as novas modalidades de tratamento têm ao problema (Galvão, 2000).
conquistado – apesar de ainda não haver muitos dados a esse Porém, o sucesso da experiência brasileira nesse campo não
respeito nos países em desenvolvimento. pode ser analisado sem levar em conta o contexto da saúde pública
no país. É inegável: o que torna o caso brasileiro exemplar em
relação a outros países em desenvolvimento é justamente o fato
de contar com uma Constituição que pressupõe a saúde como um
1 Este texto foi elaborado a partir do artigo “As organizações não-governamentais e o
direito de todas as pessoas e uma obrigação do Estado, a ser
acesso aos tratamentos anti-retrovirais no Brasil”, de Veriano Terto Júnior e Carlos garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
André F. Passarelli (no prelo). O SUS tem como princípios a integralidade da assistência, a
2 Psicólogo, doutorando em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica do universalidade do acesso e o controle social (Constituição Federal,
Rio de Janeiro (PUC-Rio) e assessor de projetos da Associação Brasileira
Interdisciplinar de Aids (Abia).
título VIII, capítulo II, seção II, artigos 196 a 200). No que diz
3 Psicólogo, doutor em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
respeito especificamente à Aids, há uma política de distribuição
(Uerj) e coordenador geral da Abia. de medicamentos, para suprir as necessidades de tratamento das
4 Psicóloga, doutoranda em Medicina Social na Uerj e coordenadora geral da Abia. pessoas que vivem com HIV/Aids, que, embora tenham acesso
5 Os anti-retrovirais são classificados em três categorias, segundo o tipo de ação 6 O artigo versa sobre casos de licenciamento compulsório e diz o seguinte: “Ensejam,
sobre o vírus: inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeo; igualmente, licença compulsória: I – a não exploração do objeto da patente no
inibidores da transcriptase reversa não-análogos de nucleosídeo; e inibidores da território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou,
protease. Uma quarta classe de medicamentos – os inibidores da fusão – vem ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de
sendo desenvolvida nos últimos anos. inviabilidade econômica, quando será admitida a importação”.
Referência positiva
Na luta por uma atenção mais integral, que inclua, além dos um esquema medicamentoso que inclua o uso de um inibidor de
medicamentos, todos os exames necessários para um melhor protease. A representação civil reivindicava que o exame fosse
acompanhamento da evolução clínica da Aids, um episódio disponibilizado para pacientes com repetidas falhas terapêuticas,
recente ilustra a forma como o acesso ao Poder Judiciário mesmo que não tivessem em uso de inibidor da protease.
pode modificar situações que contrariam os interesses do Durante o procedimento jurídico, que durou mais de um
público usuário. Em julho de 2000, organizações comunitárias ano e meio, o juiz Aroldo José Washington, da 4a Vara da
do estado de São Paulo entraram com representação no Justiça Federal em São Paulo, determinou que as três esferas
Ministério Público Federal, solicitando a realização de testes de gestão do SUS (o Ministério da Saúde e as secretarias
laboratoriais de genotipagem pela rede pública de saúde. São estadual e municipal de Saúde) implementassem “o exame de
exames realizados para identificar as mutações genéticas do genotipagem do vírus da imunodeficiência humana (HIV-1),
HIV, com vistas a avaliar a resistência do vírus ao medicamento no âmbito do Sistema Único de Saúde, para todos os pacientes
e orientar novas condutas terapêuticas. portadores deste vírus”.
Nesse ínterim, o governo federal montou uma rede nacional Assim, o direito à vida e o princípio de universalidade do
de laboratório para a realização desses exames (Renageno), SUS são imperiosos em relação às recomendações de ordem
estabelecendo critérios técnicos que definem quem pode se técnica ou econômica, mas só se fazem cumprir se a sociedade
beneficiar com a realização do teste. O Ministério da Saúde o civil organizada exerce influência sobre a opinião pública e
recomenda para pacientes com primeira falha terapêutica, com recorre, de forma ágil, às instâncias competentes.
urgência da epidemia. Em vez de limitar, as discussões e as BELOQUI, Jorge. Para uma palestra sobre medicação de Aids. In: ABIA. Treinamento:
temas para discussão. Rio de Janeiro: Abia, 1998.
decisões sobre os rumos da epidemia e seus determinantes
BRASIL. Ministério da Saúde. PN-DST/Aids. Aids – Boletim Epidemiológico, ano XVI, n.1,
(comércio exterior, propriedade intelectual, desigualdades sociais, (semanas epidemiológicas 14a a 52a de 2002), 2003.
saúde sexual e reprodutiva, formas de prazer) devem estimular a _____. Ministério da Saúde. PN-DST/Aids. National Aids drug policy. Brasília, 2002.
criatividade, a originalidade e a solução de problemas, a fim de GALVÃO, Jane. 1980–2001: uma cronologia da epidemia de HIV/Aids no Brasil e no
garantir a vida como objetivo inegociável. mundo. Rio de Janeiro: Abia, 2002. (Coleção Abia: Políticas Públicas e Aids, no 2)
Vale repetir: pode parecer que, hoje, no Brasil, a luta está _____. Aids no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: Abia;
São Paulo: Editora 34, 2000.
terminada e coroada de êxitos e que, agora, só resta estabelecer
MATTOS, Ruben; TERTO Jr., Veriano; PARKER, Richard. As estratégias do Banco Mundial
um plano de ação que consiga sustentar, nos moldes do e a resposta à Aids no Brasil. Rio de Janeiro: Abia, 2001. (Coleção Abia: Políticas
pragmatismo neoliberal, os louros dessa conquista. O sucesso da Públicas e Aids, no 1)
política brasileira de combate à epidemia do HIV/Aids só poderá PARKER, Richard; GALVÃO, Jane; BESSA, Marcelo Secron. Políticas sociais, desenvolvi-
mento econômico e saúde coletiva. In: _____. (Orgs.). Saúde, desenvolvimento e
ser entendido como tal se todos e todas se mantiverem alertas
política: respostas frente à Aids no Brasil. Rio de Janeiro: Abia; São Paulo: Editora 34,
para o fato de que, à proporção que a doença se alastra nas 1999, p. 7-25.
comunidades mais empobrecidas e vulneráveis – portanto, com PIMENTA, Maria Cristina; PASARELLI, Carlos André F.; BRITO, Ivo; PARKER, Richard. As
menores condições de enfrentamento –, o governo e a sociedade pesquisas sobre sexualidade e Aids no Brasil: entre a demografia e a cultura sexual
(1980–2000). In: Pesquisa em DST/Aids: determinantes sócio-demográficos e
civil organizada terão de rever, de forma continuada, solidária e cenários futuros, 2002, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro: Abia, 2002, p. 47-56.
criativa, suas posições e possibilidades de interlocução, no longo WORLD BANK. Confronting Aids: public priorities in a global epidemic. Washington:
caminho que ainda temos pela frente. ■ World Bank, 1997.
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República foi um marco na história social e política do Brasil
e da América Latina. Finalmente o gigante, deitado eternamente em berço esplêndido, conseguiu sair de sua longa
letargia, fazendo com que, pela primeira vez, um líder operário e um partido de esquerda fossem alçados à chefia de
Estado e de governo em nosso país. Todavia, uma vez tendo o sonho vencido o medo, a questão do momento passou
a ser os desafios da própria arte de governar um país repleto de desigualdades e problemas. Assim, à medida que o
tempo avança, vê-se que o exercício do governo vem exigindo boas doses de pragmatismo e senso de realismo político.
Esse realismo é positivo para a estabilidade política e econômica, mas também carrega o risco de ser insuficiente para
a transformação de nosso quadro social, cada vez mais repleto de violência, contradições e conflitos.
Em grande medida, o novo momento vivido reflete os limites de desconcentração do patrimônio fundiário, ao acesso aos recursos
um modelo em parte imposto, em parte adotado pelas elites latino- públicos e ao controle do aparato legal-repressivo –, o fato é que,
americanas fundado na agenda do Consenso de Washington. Essa concluindo-se um quartel de século de crise econômica, os seus
agenda propõe uma profunda transformação do modelo econômico efeitos se fizeram refletir de forma mais que proporcional em
dos países da região, por meio da redução do papel do Estado nosso quadro social. Assim, ao menos no Brasil, a cultura da
na economia, da abertura comercial e da economia como um violência, da apartação e do extermínio tomou conta das grandes
todo, das privatizações, da focalização dos investimentos sociais cidades. À guisa de exemplo, segundo dados do IBGE, o brasileiro
e com as reformas da previdência e trabalhista, no rumo de sua do sexo masculino perde atualmente, em média, 2,5 anos de vida
flexibilização. Concomitantemente, o Consenso reza que os Estados motivados por causas externas, tais como suicídios, acidentes e,
nacionais perderam seu antigo papel, uma vez que, de modo especialmente, assassinatos.
inexorável, o espaço nacional se viu esvaziado pela emergência De fato, esse cenário foi propício às vitórias de candidatos com
do local e do global, estes sim pós-modernos e internéticos espaços plataformas mais à esquerda, tais como expressas nas vitórias
de exercício da nova cidadania globalizada e participativa. eleitorais de Lula, no Brasil, e de Kirchner, na Argentina. Todavia,
Na verdade, o que se verificou em toda a América Latina foi a para além dessas vitórias, as exigências postas pela realidade vigente
falência desse modelo, tendo as economias do continente – parecem exigir novas compreensões para o efetivo enfrentamento
especialmente as da América do Sul – caído na mais profunda dos nossos problemas seculares. Afinal de contas, o século 21
estagnação econômica, no aumento da violência política e social e acaba de escancarar suas portas, favorecendo novas reflexões sobre
na redução da qualidade dos postos no mercado de trabalho. Mais o que fomos ao longo do último século e dos erros que não
especificamente, no Brasil, entre 1990 e 1999, a taxa média de poderemos mais cometer, como país e como povo, sob o risco de
crescimento da economia foi de 1,77%, e o PIB per capita evoluiu, um irremediável esgarçamento de nosso tecido social.
em média, minguado 0,34% (Paixão e Carcanholo, 2001). No meio de tantas esperanças e ameaças, será abordado
Considerando-se o fato de que a paz social nos países do neste artigo tema concomitantemente ligado ao conjunto das
nosso continente, ao longo do século 20, foi gerada pela via do mazelas sociais brasileiras e, freqüentemente, relegado ao
salto para frente, pelo crescimento econômico, e posta a secular segundo plano quando da constituição das agendas públicas.
resistência das elites latino-americanas às transformações sociais Trata-se do campo das relações raciais e do diálogo que a questão
de cunho democráticas – principalmente no que tange à guarda em relação ao presente cenário. Se, para algumas
pessoas, tal tema chega a soar como impertinente, creio que
uma análise mais detida sobre o problema exige uma nova
postura perante o assunto. Somando mais de 75 milhões de
1 Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
doutorando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
pessoas, ou seja, 45,5% da população brasileira, os(as)
(Iuperj) e coordenador do Observatório Afrobrasileiro (IPDH/Fala Preta!/UFRJ). afrodescendentes de nosso país formam a maior população negra
Sul 97 92 88 82 44 45 44 38
negros(as) declinou de 25% para 20%. Todavia, quando se observam O indicador sobre a taxa de participação de jovens entre 10 e 14
as diferenças relativas ocorridas entre os dois grupos, encontra-se anos no mercado de trabalho foi utilizado porque traz uma informação
um movimento que não pode passar despercebido. As diferenças especialmente provocadora. Na década de 1990, forjou-se um amplo
relativas entre as taxas de participação no mercado de trabalho de consenso na sociedade brasileira quanto à impertinência do trabalho
jovens negros(as) e brancos(as), em que pese um certo comportamento precoce, seja por conta das seqüelas que acarretavam para os(as)
oscilante, acabaram experimentando um crescimento, de 25%, em jovens explorados(as), seja por seus nefastos efeitos para a economia
1992, para mais de 50%, em 1999. Visto por outro ângulo, o declínio e a sociedade brasileira. Assim, foram mobilizados diversos esforços,
da taxa de participação de jovens no mercado de trabalho, verificado públicos e privados, visando ao enfrentamento do problema.
para ambos os grupos raciais ou de cor, não impediu que o valor Naturalmente, as ações marcaram-se pelo seu perfil color blind,
desse indicador entre pessoas afrodescendentes, no fim da década de isto é, foram indiferentes aos pertencimentos raciais das pessoas
1990, fosse rigorosamente igual ao indicador das pessoas brancas beneficiadas. Nesse caso, é preferível usar o termo color blind ao
no começo da década (Figura 1). termo universalista, uma vez que, em ambos os grupos raciais, o
60,0 %
50,0 %
40,0 %
30,0 %
20,0 % Negras
Brancas
10,0 % Diferença
0,0 %
1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999
Fonte: Pnad/IBGE e Ipea. In: Beghin & Jaccoud, 2002.
NE2 Nos anos de 1994 (Figuras 1, 2 e 3) e 2000 (Figuras 2 e 3), a Pnad não foi realizada.
8,0
7,0
6,0
5,0
4,0
3,0
2,0 Negras
Brancas
1,0 Diferença
0,0
1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001
700,0
600,0
500,0
400,0
300,0
Negros
200,0
Brancos
100,0 Diferença %
-
1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001
das opções neoliberais da década de 1990, impactou, de forma A partir de 1998, contudo, a crise econômica que assolou a
desproporcional, a população afrodescendente. Além disso, economia brasileira fez com que os rendimentos reais mensais
também demonstrou que a alternativa liberal, mesmo quando passassem a apresentar um movimento declinante, não obstante
possa vir a reconhecer as demandas das pessoas negras, propondo a ligeira recuperação verificada em 2001.
direcionamentos específicos de políticas para o grupo, tende a A Figura 3 pode prestar-se a muitas interpretações. O objetivo,
gerar efeitos deletérios em outros campos, fazendo com que surjam neste texto, é apenas frisar um elemento que reside no fato de que
sérias dúvidas quanto à eficácia de suas propostas, no que tange as desigualdades raciais, medidas em termos dos padrões
à redução das desigualdades sociorraciais, em meio a um cenário salariais, ao longo da década passada, mantiveram-se bastante
de aumento do desemprego, da informalidade, da precarização nítidas em todos os cenários conjunturais que a economia
do trabalho e de estagnação econômica – fatores que afetam de brasileira atravessou no decênio passado. Tal constatação também
modo mais intensivo, justamente, a população afrodescendente. não deve esconder o fato de que foi justamente quando a economia
brasileira encontrava-se no seu melhor momento, na década de
• Paliativos e ceticismo 1990, que os diferenciais salariais foram maiores.
Esse dado, combinado com o indicador sobre a evolução do
A análise da evolução dos rendimentos de pessoas brancas e
desemprego de ambos os grupos de raça/cor, sugere que, durante
negras no Brasil ao longo da década de 1990 também guarda
os períodos de crescimento da economia, a população branca
interessantes lições. Na Figura 3, pode-se ver que, entre 1992 e
acaba sendo mais beneficiada, ao passo que, quando da retração
1997, o rendimento real médio mensal, de ambos os grupos de
da atividade econômica, a população negra acaba sendo mais
raça/cor, cresceu 39%, entre a população branca, e 34%, entre a
prejudicada. Considerando correta tal conclusão, ante as exigências
negra. A evolução pode ser creditada, especialmente após 1995,
de redução das desigualdades sociorraciais, deveria haver uma
aos efeitos positivos do Plano Real, por meio do controle da
reflexão mais detida sobre os fundamentos, tanto das filosofias
inflação, sobre o patamar de rendimentos da população ocupada.
desenvolvimentistas como das orientações liberais.
No que tange à agenda desenvolvimentista, os indicadores
evidenciam que não basta mero crescimento econômico para que
10 Recentemente, o próprio IBGE acabou revendo algumas de suas metodologias de
levantamento de indicadores sobre a taxa de desemprego, fazendo com que elas
se consiga lograr a reversão dos abismos de rendimentos e das
passassem a captar melhor a efetiva realidade existente. Uma das mudanças mais demais condições de vida, existentes entre pessoas negras e
importantes diz respeito à pergunta sobre o período de procura de emprego. Antes, o brancas. Alternativamente, a inexistência de mecanismos efetivos
IBGE perguntava se uma determinada pessoa desocupada havia procurado emprego
na última semana de referência da pesquisa. Com as alterações efetivas, a pergunta de proteção social para toda a população torna-se ainda mais
passou a ser feita tomando, como referencial, o último mês. grave para a parcela negra, que, durante os cenários de crise
O contexto global não deixa dúvidas: o Relatório de Desenvolvimento Humano 2003, publicado pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), comprova que, durante a década de 1990, as condições de vida no
mundo pioraram acentuadamente e, claro, de maneira desigual. Não obstante, o documento aponta que, apesar de
tudo, o Brasil subiu quatro pontos no ranking mundial, ocupando agora a 65a posição – o que se atribui a avanços nos
índices de acesso à educação e ao aumento da expectativa de vida da população. Ao mesmo tempo, ainda segundo as
medidas adotadas pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil encontra-se em situação pior que Uruguai
(40a posição), Chile (43a posição) e Argentina (34a posição).
A posição desses países no ranking mundial não é aleatória. No caso brasileiro, parece consensual que a principal
O Chile é tido como o exemplo mais acabado de um modelo causa da pobreza – e, portanto, da exclusão social de grandes
“exitoso” de implementação das políticas neoliberais na área contingentes – reside no grau de desigualdade na apropriação
econômica e, sobretudo, na área social. A Argentina passou, no da riqueza (econômica e de capital social) conformada
período mais recente, por uma profunda crise econômica e política historicamente. Os autores do Atlas da exclusão social no
e é tida por analistas como exemplo de uma experiência Brasil chamam a atenção para o fato de que, diante de tão
“equivocada” de ajuste macroeconômico. E o Uruguai é um país evidentes disparidades e injustiças sociais, torna-se inevitável
de dimensões minúsculas, sem jamais ter usufruído da situação a sensação de urgência no enfrentamento de “questões tão
de contar com uma economia autônoma e um parque industrial antigas e contemporâneas como a desigualdade regional do
diversificado, como foram os casos da Argentina e do Brasil no Brasil”. 3 Evocando mestres como Caio Prado Júnior e Celso
período desenvolvimentista. Furtado, defendem que:
Paralelamente aos avanços do acesso da população pobre a Assim sendo, alterar a configuração geoeconômica do Brasil
serviços sociais básicos, continuamos comungando com países pobres não é simples e tão-somente estimular a produção,
da África a situação de apresentarmos um dos maiores índices mundiais incentivando o espalhamento da lógica industrial no nordeste
(o quinto) de concentração da riqueza, vale dizer, de desigualdade e norte brasileiros. Vai além, significa enfrentar e eliminar
social. Resta o desafio de reequacionar a questão social no Brasil não velhas práticas políticas e implementar ações sociais que
só em termos conceituais, mas, sobretudo, a partir desta outra resgatem a cidadania da população excluída, dando-lhe
perspectiva – a conformação de um conjunto de políticas sociais, condições para sua emancipação.4
desenhando uma rede de proteção social que efetivamente enfrente os
As análises desse grupo de pesquisadores presentes nas
brutais patamares de pobreza e de desigualdade vigentes no país.
duas publicações, quando tomadas em conjunto, revelam um
A discussão sobre sua configuração é bastante presente na
quadro baseado em evidências empíricas extraídas dos dados
literatura sobre esses temas – pobreza e desigualdade. É freqüente,
socioeconômicos oficiais que fundamenta a análise aí contida
por exemplo, a utilização do termo “nova pobreza”, contrapondo
de que, de um lado, entre 1960 e 1980,
aqueles segmentos sociais que sofreram um processo de
empobrecimento mais recente àqueles historicamente pobres. E a o capitalismo brasileiro apresentou um grande charme,
ela se agregam, ainda, sempre de forma associada, conceitos como explicitado pelo fenômeno da mobilidade social... [que]
o de “exclusão social” e “vulnerabilidade social”, traduzindo o funcionou como uma espécie de anestesia, capaz de ocultar
esforço de dar conta dessa reconfiguração das desigualdades sociais o violento processo de crescimento na desigualdade de renda
e da pobreza nessa “nova/velha” realidade social contemporânea.2 e a incapacidade de banir a velha exclusão social;
e que esse padrão muda radicalmente entre 1980 e 2000, quando
a evolução da exclusão social sofre uma acentuada modificação,
1 Socióloga, docente do Departamento de Medicina Preventiva/FMUSP, diretora-
presidenta do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e membro do
tendo prevalecido uma baixa expansão das atividades econômicas,
Grupo de Referência do Observatório da Cidadania. em que pese o avanço do regime político democrático no país.5
2 Entende-se por “velha exclusão social” o processo de marginalização social de
determinados segmentos sociais (no geral, pobres com baixa escolaridade,
mulheres e negros) do crescimento econômico. Por “nova exclusão social”, o
processo de marginalização social que atinge, no período recente, aqueles grupos
sociais até então relativamente bastante protegidos do perigo de cair em tal 3 POCHMANN, M.; AMORIM, R. (Orgs.). Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez,
situação, compreendendo as esferas cultural, econômica, política e social da rede 2003; CAMPOS, A.; POCHMANN, M.; AMORIM, R.; SILVA, R. (Orgs.). Atlas da exclusão social
de sociabilidade desses indivíduos. É a partir dessa ampliação do conceito de no Brasil – Dinâmica e manifestação territorial. Vol. 2. São Paulo: Cortez, 2003.
exclusão social, atingindo uma gama mais diversificada das dimensões da vida em
sociedade (agora que passa a atingir também segmentos economicamente mais 4 Id., ibid., p. 75.
diferenciados), que se chega ao conceito de “vulnerabilidade social”. 5 CAMPOS, A. et al., op. cit., p. 37.
13 Ver, a respeito, COHN, A. As políticas sociais no governo FHC. Tempo Social – Revista
de Sociologia da USP, São Paulo, 11(2), p. 183-198, 1999.
14 PAOLI, M.C.; TELLES, V.S. Direitos sociais – conflitos e negociações no Brasil
11 COSTA, S. Esfera pública, redescobrimento da sociedade civil e movimentos sociais contemporâneo. In: ALVAREZ, S; DANIGNO, E.; ESCOBAR, A. (Orgs.) Cultura e política
no Brasil. Novos Estudos Cebrap, 38, p. 38-52, 1994. nos movimentos sociais latino-americanos – Novas leituras. Belo Horizonte: UFMG,
12 NOGUEIRA, M. A. Em defesa da política. São Paulo: Senac, 2001. 2000, p. 103-148.
No desenho de políticas de enfrentamento das desigualdades sociais, são necessários recursos de toda natureza: uma
compreensão pormenorizada dos problemas concretos, um conhecimento das opções técnicas disponíveis, uma diretriz
de política amparada em princípios de justiça aplicáveis à classe de problemas e, finalmente, uma definição de justiça social
idealmente resultante de escolha coletiva. Em cada um desses níveis, evidentemente, intervém o fator político, isto é, o
fato de que as respostas produzidas serão decisões resultantes de oposições, conflitos, negociações, pluralidade de visões.
Neste artigo, busca-se discernir os recursos que a reflexão mais teórica em política disponibiliza, sobretudo em termos
de parâmetros de justiça social. A idéia é que uma maior clareza quanto às opções políticas, nesse sentido mais
abrangente, possa contribuir para um melhor discernimento na escolha de políticas sociais alternativas. O debate sobre
essas alternativas corre o risco de esterilidade se, em acréscimo à consideração dos problemas concretos e da “tecnologia
social”, não se esclarecerem também as opções disponíveis de justiça social.
Podemos encontrar importantes recursos para pensar modos Segundo o paradigma madisoniano, o sistema político – elei-
de tratar as desigualdades sociais, tanto na chamada teoria da ções livres, eleitorado extenso, arranjos constitucionais incluin-
democracia como nas teorias da justiça propriamente ditas. As do um sistema competitivo de representação política, divisão de
opções políticas serão introduzidas neste texto a partir da poderes e estrutura federal – seria o locus de correção dos danos
recuperação de algumas dessas idéias. Primeiramente, serão impostos pela desigualdade social à igualdade política. Nesse
enfocadas, de forma resumida, estratégias para lidar com as paradigma, uma vez que as desigualdades socioeconômicas ori-
desigualdades sociais indicadas pela teoria democrática; a ginariam conflitos entre facções organizadas em torno de interes-
seguir, serão apresentadas algumas opções contemporâneas de ses simétricos, e supondo que as desigualdades jamais possam
justiça igualitária; e, por último, a abordagem de uma escolha ser canceladas (pois, mesmo se canceladas, elas se recomporiam
indeterminada entre estilos de política social (focalização versus inevitavelmente dada a heterogeneidade humana), apenas o siste-
universalização), indicando que a solução do dilema requer o ma político poderia assegurar alguma forma de igualdade políti-
recurso de uma definição mais ampla de justiça social. ca. As facções seriam domesticadas pela representação política e
pela competição partidária, e esta, plasmando-se sobre um elei-
Teoria democrática torado extenso, socialmente diverso, contra um pano de fundo
constitucional de divisão e descentralização de poderes, produziria
A questão social, sobretudo na forma de desigualdades
uma desejável fragmentação política.
socioeconômicas, ocupou a imaginação dos principais teóricos da
No século 20, os pluralistas americanos são representantes
democracia, de Platão a autores contemporâneos, sem nenhuma
típicos dessa antecipação madisoniana: a idéia de que a extensão
exceção importante. Se excluirmos o próprio Platão e Tocqueville, que
do eleitorado e sua crescente diversidade social ensejariam
indicaram efeitos políticos preocupantes da igualdade social, duas
fragmentação política, ou seja, quanto mais complexa a estrutura
perguntas são recorrentes na tradição democrática moderna: qual a
social mais competitivamente (e menos hierarquicamente) se
extensão do dano que as desigualdades sociais infligem à democracia?
organizaria o poder democrático. Isso significa que o sistema de
Em que dimensão societária esse dano deve ser reparado?
representação política se apresentaria como condição necessária e
Em resposta à primeira pergunta, é usual reconhecer que as
(quase) suficiente para garantir uma igualdade política aproximada.
desigualdades sociais intensas e sistemáticas se traduzem em
A imaginação política democrática é, no entanto, também
desigualdade política – distintos poderes de grupos sociais (de
influenciada por um outro paradigma, denominado, para efeito
decisão, de fixação de agenda ou de formação autônoma de
desta exposição, de rousseauniano. Segundo ele, a representação
preferências políticas), correspondentes ao acesso diferenciado a
política seria uma delegação injustificável de liberdade, uma vez
vantagens socioeconômicas, a recursos materiais e cognitivos.
que as decisões coletivas de que trata o processo democrático
Entretanto, a resposta à segunda pergunta ensejou uma variação
dizem respeito não à agregação de (ou barganha entre) interesses
importante na teoria democrática, compondo o que aqui se denominará
particulares de facções, mas ao bem comum ou ao interesse público.
de o paradigma madisoniano e o paradigma rousseauniano.
Por sua vez, o entendimento sobre o bem comum – seu conteúdo,
suas exigências – requer que os cidadãos sejam capazes de formar
1 Professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal
juízos autônomos, o que pressupõe, ainda, que estejam livres de
Fluminense (UFF). privações e de relações de dependência.
• Ethos
Outro importante pressuposto de uma economia de mercado – que cognitivamente mal fundada da tradição utilitarista, para além de
tem entrado em foco em reflexões recentes sobre justiça distributiva uma mera teoria sobre como se formam as expectativas dos
– é o ethos social de maximização egoísta e de incentivo ao consumo. agentes econômicos em uma economia de mercado. De todo modo,
O autor que mais ênfase tem dado a esse aspecto é o filósofo o ethos social parece ser um componente importante, se não da
americano G. A. Cohen (2001). Ele também considera que as solução, pelo menos do problema da justiça distributiva.
disposições e preferências individuais, socialmente compartilhadas,
deveriam ser objeto de avaliação do ponto de vista da justiça. Cohen
não chega a sugerir que esse ethos social seja objeto de julgamento
público e alvo de políticas públicas específicas com o objetivo de Focalização x universalização
alterá-lo. Mas insiste em que diferentes perfis distributivos vigentes O discernimento sobre concepções alternativas de justiça social,
em sociedades que compartilham das mesmas instituições se não é capaz de selecionar imediatamente entre opções de
econômicas e políticas podem estar associados a diferentes atitudes política social, aumenta a inteligibilidade da escolha,
e disposições sociais, mais egoístas ou mais solidaristas. Em esclarecendo alguns dos pressupostos por trás das opções.
sociedades onde os indivíduos demandam incentivos muito elevados Assim, o debate focalização versus universalização pode ganhar
para trabalhar ou poupar, as desigualdades socioeconômicas em inteligibilidade, uma vez articuladas essas opções contra o
tenderiam a ser maiores do que em outras, onde a demanda por pano de fundo de concepções de justiça.
incentivos é menor. Por que a noção de focalização é capaz de despertar uma
Um aspecto diferente diz respeito ao estímulo ao consumo reação negativa tão forte de setores progressistas de nossa
desenfreado e a uma concepção produtivista das instituições sociedade? Isso ocorre porque a noção de focalização aplicada
econômicas e sociais. Esse aspecto torna-se particularmente a políticas sociais costuma integrar um discurso que se baseia
importante se colocado em perspectiva com questões de na “concepção fina de justiça”, segundo a qual uma economia
sustentabilidade ambiental. Uma concepção de justiça social orientada para o mercado seria dotada de propriedades de
deveria estar atenta também para esse limite. A dificuldade está autocura e, sobretudo, de uma capacidade integradora irresistível
em integrar aspectos relativos ao ethos social em uma concepção pela qual seus benefícios materiais se transmitirão à (quase)
de justiça distributiva que superou a visão paternalista e totalidade do tecido social. Sob esse ponto de vista, as políticas
condicionante. Só é possível determinar a eficiência como definida NAGEL, T.; MURPHY, L. The myth of ownership. Oxford: Oxford University Press, 2002.
acima uma vez que se tenham determinado quais os propósitos a RAWLS, J. Justice as fairness: a restatement. Cambridge, Mass.: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2001.
realizar por meio das políticas públicas. A decisão quanto aos
ROEMER, J. The possibility of market socialism. In: COPP, D.; HAMPTOB, J.; ROEMER, J.
propósitos, que envolve discussão explícita de noções muitas vezes (Eds.). The idea of democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
implícitas de justiça social, é crucial para conduzir o debate focalização VAN PARIJS, P. A basic income for all. In: COHEN, J.; ROGERS, J. What´s wrong with a
versus universalização para além de suas implicações mais triviais. ■ free lunch?. Boston: Beacon Press, 2001.
As políticas econômicas e sociais adotadas em oito anos de governo Fernando Henrique Cardoso têm sido objeto de
avaliação exaustiva, mesmo em edições anteriores deste relatório. Seus efeitos, contudo, não se esgotaram no
período 1995–2002. A última da longa sucessão de crises econômicas e cambiais geradas por aquelas políticas atingiu
a economia brasileira em plena campanha presidencial. As incertezas criadas pela forte turbulência de meados de
2002 marcaram profundamente os discursos dos candidatos à Presidência e as próprias políticas adotadas pelo
vencedor. Pressionado pela necessidade, interpretada como incontornável, de tranqüilizar os mercados, o novo
governo optou por prosseguir nas políticas de FHC. O resultado não poderia ser diferente. Na verdade, as precárias
condições em que o país foi herdado pela nova administração foram agravadas pelo novo governo. Nenhuma
medida foi tomada, até o momento, que pudesse erguer defesas contra as fragilidades da economia brasileira, pelo
contrário. A nova equipe de governo limita-se a pedir paciência, sem, contudo, indicar por que as políticas que
fracassaram no passado dariam hoje melhor resultado. Espera-se pelo “espetáculo do crescimento”, enquanto se
intensificam o desemprego e a estagnação da economia.
12 Ver KERSTENETSKY, C.; CARVALHO, F. Até que ponto o Brasil honrou os compromissos
11 Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. assumidos em Copenhague?. Observatório da Cidadania, n. 4, 2000.
Dois fatores têm sido apontados como responsáveis pela relativa estabilidade da política externa brasileira ao longo
das últimas décadas: a continuidade burocrática representada pelo controle relativo sobre sua formulação pelo Ministério
das Relações Exteriores e a sua natureza estrutural, uma vez que a política externa tem sido um instrumento significativo
na estratégia de desenvolvimento do país. Essa estratégia, como é sabido, até a década de 1990, tinha, por base, forte
indução estatal, mercados protegidos e ampla participação do capital estrangeiro nas atividades industriais. Contudo,
desde o fim da década de 1980, o mundo e o Brasil vêm passando por grandes mudanças que, naturalmente, repercutiram
na política externa do país.
O fim da Guerra Fria e transformações profundas no ordenamento Nos planos econômico e geoestratégico, porém, as mudanças
econômico mundial – como o aprofundamento da globalização internas e externas tiveram o sinal contrário de redução das
econômica, a liberalização financeira e a crise fiscal dos países do margens de viabilidade de um projeto de desenvolvimento
Terceiro Mundo – tiveram efeitos bastante restritivos, com respeito autônomo e auto-sustentado.
aos graus de liberdade internacional dos países na periferia do
capitalismo, em especial na América Latina. Com o colapso dos Perspectiva histórica
modelos socialistas, acentuou-se, no caso dessa região, a sua Quais as conseqüências para a política externa dessas profundas
baixa prioridade estratégica para as grandes potências. Irrelevância metamorfoses nos sistemas mundial e doméstico? A fim de
geopolítica e localização geográfica na esfera de influência contextualizar esses impactos, cabe um breve exame da política
territorial dos Estados Unidos acentuaram ainda mais a externa do período da Guerra Fria. Sem cometer uma simplifica-
subordinação relativa da região à potência, em um contexto de ção excessiva, pode-se concluir que dois modelos guiaram a po-
hegemonia do modelo econômico liberal em toda a periferia, lítica externa naquele período: por um lado, o “alinhamento in-
mesmo entre os anteriores integrantes do bloco soviético. condicional” aos Estados Unidos, que caracterizou particular-
Cabe observar que, se o período da Guerra Fria foi desastroso mente os governos Dutra e Castelo Branco; por outro, o modelo
para o Estado de direito, o respeito aos direitos humanos e a “globalista”, que incluiu tanto a política externa independente
viabilidade da construção de uma ordem democrática na América dos governos Jânio Quadros e João Goulart como o pragmatismo
Latina e na periferia de modo geral, todos os ganhos econômicos responsável do governo Geisel.2
significativos dos países em desenvolvimento, em particular a Curiosamente, ambos paradigmas de política externa estão
instituição do Sistema de Preferências Generalizado, foram presentes quer no período democrático de 1945–1964, quer no
obtidos no contexto da rivalidade estratégica entre os dois regime militar que vigorou a partir de 1964. A principal
sistemas de poder. característica do projeto globalista é se contrapor ao alinhamento
As principais mudanças no plano doméstico foram o fim do incondicional, buscando novas parcerias econômicas e políticas
regime militar e a implantação de uma nova institucionalidade entre as potências fora do hemisfério e, simultaneamente,
democrática com a Constituição de 1988. A implementação do estreitando os laços com os países em desenvolvimento. A política
novo marco institucional brasileiro foi coetânea, porém, com um terceiro-mundista do Brasil, contudo, nunca se configurou como
sério desequilíbrio inflacionário, agravamento da vulnerabilidade uma alternativa de desvinculação da órbita capitalista e ocidental.
externa e esgotamento do modelo prévio de desenvolvimento e Sua conotação principal foi econômica, no âmbito do assim
inserção internacional. chamado Grupo dos 77, que reunia países em desenvolvimento,
Da perspectiva brasileira, conclui-se que as transformações capitalistas e socialistas, e cuja principal motivação era a alteração
políticas internacionais e domésticas moveram-se na mesma das regras dos regimes econômicos internacionais em favor dos
direção de possibilitar a consolidação das instituições políticas interesses do Terceiro Mundo.
democráticas no país, ainda que não necessariamente A instauração da ordem democrática, com a promulgação da
conduzissem ao aprofundamento da justiça social e da eqüidade. Constituição de 1988, não implicou reorientações econômicas
significativas, até porque o primeiro governo civil, de José Sarney,
não modificou substancialmente o padrão de inserção econômica
* Agradeço a sempre competente editoração de Tema Pechman.
1 Professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade
Cândido Mendes (Iuperj/Ucam) e do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) – <mrslima@iuperj.br>. 2 Para um desenvolvimento desses modelos, ver LIMA, 1994.
no Congresso Nacional, visando conferir ao Legislativo formas LIMA, Maria Regina Soares de. Ejes analíticos y conflicto de paradigmas en la política
exterior brasileña. América Latina/Internacional, v. 1, n. 2, 1994.
de controle ex ante nas negociações econômicas internacionais.
No processo da Alca, o respaldo eleitoral do presidente Lula, que MAIOR, Luiz A.P. Souto. Desafios de uma política externa assertiva. Revista Brasileira de
Política Internacional, ano 46, n. 1, 2003.
obteve cerca de 61% dos votos válidos, deu mais credibilidade à
PECEQUILO, Cristina Soreanu. A Cúpula de Washington. Conexão América, n. 35, Colunas
postura negociadora brasileira no sentido de só garantir a ratificação RelNet, 28 jul. 2003. Disponível em: <www.relnet.com.br>
doméstica de um futuro acordo que contemple os principais interesses
PINHEIRO, Letícia. Traídos pelo desejo: um ensaio sobre a teoria e a prática da política
do país. Caso implemente algumas das propostas clássicas do PT de externa brasileira contemporânea. Contexto Internacional, v. 22, n. 2, 2000.
democratização do processo decisório, o governo Lula será ZAKARIA, Fareed. From wealth to power : the unusual origins of America´s world role.
responsável por uma virada histórica na política externa. Princeton: Princeton University Press, 1999.
Para transformar a economia, o governo adotou a Estratégia de Em consonância com os princípios da “recuperação de
Crescimento, Emprego e Redistribuição (Gear, na sigla em inglês) custos”, os serviços básicos foram transformados em mercadorias,
em 1996. Sua premissa principal é a de que uma forte disciplina solapando o acesso das pessoas pobres ao abastecimento de
fiscal, flexibilização da mão-de-obra e privatizações desenvolveriam água, um serviço local no qual as PPPs se espalharam rapidamente.
a economia, atraindo investimentos estrangeiros. Várias formas de A introdução de taxas de consumo exorbitantes em comunidades
privatização – da venda total até parcerias com o setor privado – que antes recebiam o serviço gratuitamente representa a rejeição
têm sido implementadas em setores que vão do turismo a neoliberal às soluções de subsídios cruzados oferecidas pela
telecomunicações, das linhas aéreas às ferrovias. Todas essas sociedade civil, nas quais as parcelas ricas pagariam uma porção
privatizações resultaram em perdas de emprego e aumentos nos maior dos custos totais dos serviços.
custos dos serviços. Entretanto, as privatizações têm sido justificadas Ao contrário, o envolvimento das multinacionais e o império
com argumentos de que os serviços estão fora do escopo da do lucro no abastecimento da água têm levado a que os(as)
responsabilidade estatal e que promovem a eficiência e a geração consumidores(as) mais pobres (especialmente em áreas rurais)
de renda para os projetos de desenvolvimento governamentais. terminem pagando tarifas mais altas para subsidiar pessoas ricas,
principalmente brancas, suburbanas e empresárias. Por exemplo,
Cidadania em cifras 25% da oferta total de água é consumida pela indústria e pela
Mais generalizada do que essas grandes privatizações, altamente mineração, 50% pela agricultura comercial e 12% da água é utilizada
divulgadas, é a gradual expansão de um conceito apresentado em jardins e piscinas da classe média, majoritariamente branca. A
como “parceria público-privada” (PPP) entre governos população pobre sul-africana, cerca da metade do contingente total,
municipais e, principalmente, capitais multinacionais. Como as consome somente 1% ou 2% da oferta de água nacional.2
PPPs não requerem a venda de bens do Estado, é comum que A estratégia principal para a água é a de “construir, operar,
esses negócios sejam concebidos fora da vigilância pública. capacitar e transferir” (Bott, na sigla em inglês), adotada em 1997,
Embora os Estados locais mantenham a propriedade nominal, que privatiza a prestação de serviços, no lugar do bem em si.
as empresas assumem o desenvolvimento da infra-estrutura, a Após um longo período de investimento de seu próprio capital e
prestação dos serviços, a fixação dos preços e a arrecadação. É da “prestação” do serviço, a empresa privada devolveria a atividade
justamente nesse campo que o neoliberalismo tem cobrado o ao governo. Durante esse período, o setor privado realiza os
preço mais alto do setor mais pobre da população, à medida que serviços na base exclusiva do lucro, em que a “recuperação de
os princípios da “recuperação de custos” têm precedência sobre custos” é o princípio diretivo.
os direitos humanos básicos, resultando em desconexões ou Mais de oito anos após o fim do apartheid, é evidente a
cortes generalizados dos serviços. Esses mecanismos também falácia dessa política. Em 1994, cerca de 12 milhões de pessoas
são cada vez mais usados pelos governos locais, mesmo na não tinham acesso à água potável. Embora o governo informasse
ausência de parceiros privados. que havia dado acesso à água a 7 milhões de novos e novas
2 COTTLE, E.; DEEDAT, H. The cholera outbreak: a 2000–2002 case study of the source
1 “The cost of living: how selling basic services excludes the poor”, South African of the outbreak in the Madlebe Tribal Authority areas, Uthungulu Region, KwaZulu-
People and Environments in the Global Market, Folheto 3, Groundwork, 2002. Natal. RDSN, ILRIG, 2002.
Nesse contexto, foi possível garantir uma alta rentabilidade aos setores inicialmente para reduzir a alta inflação – foi mantido até as
de serviços públicos e financeiros, que, depois de um processo de últimas conseqüências pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)
privatizações, foram oligopolizados por empresas privadas de capitais e pela comunidade financeira e foi avaliado como a chave da
externos. Isso incluiu a privatização da maioria dos serviços públicos estabilidade. Entretanto, o valor do peso subiu simultaneamente
essenciais, tais como energia elétrica, gás, telefonia e petróleo. Por ao do dólar, reduzindo, de modo artificial, o preço das importações
sua vez, a transferência maciça de empresas públicas para mãos e aumentando o déficit da balança de pagamentos de tal forma que
privadas coincidiu com um processo em que a economia foi cada vez a situação tornou-se insustentável para os investidores. A fuga
mais concentrada e controlada por estrangeiros. maciça de capitais em 2001 selou finalmente o destino do país.
Tal situação, combinada com a completa liberalização da conta
de capitais, permitiu a remessa de divisas para o exterior sem Indicadores alarmantes
nenhum tipo de restrição. O resultado disso é a existência, nesse Essa crise econômica, somada à crise política e social, foi
âmbito, de um montante de capitais originados da Argentina produzida, entre outros fatores, por cinco anos consecutivos de
equivalente à dívida externa do país.2 Essa conjuntura tornou-se recessão e provocou a renúncia do então presidente Fernando de
cada vez mais insustentável e desembocou, no fim de 2001, na la Rúa. As reivindicações de mudanças, expressas dramaticamente
desvalorização do peso em relação ao dólar3 de quase 75% e na pela sociedade em dezembro de 2001, foram mantidas inalteradas
declaração de inadimplência de grande parte de sua dívida externa. durante o governo de transição dirigido por Eduardo Duhalde,
A desvalorização argentina foi causada, em grande parte, pela limitado a administrar a crise, sem implementar soluções
Lei da Conversibilidade, que fixou o valor do peso ao dólar dos alternativas à erosão dos direitos sociais de setores cada vez mais
Estados Unidos. Esse tipo de câmbio inflexível – proposto amplos da população. Ao contrário, em alguns casos, o governo
promoveu medidas regressivas.
As variáveis sociais ficaram totalmente fora de controle,
conseqüência de um processo caracterizado pela concentração
de riqueza e aumento inédito da pobreza. Nesse marco, a falta de
* Artigo baseado em relatório preparado por Luis Campos, Jimena Garrote e Gabriela
Kletzel, integrantes do Programa de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do medicamentos e o desabastecimento de insumos básicos nos
Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). hospitais públicos foram um dos elementos mais importantes
1 Em 1991, a dívida externa do setor público argentino era de US$ 58,588 bilhões. para evidenciar a crise socioeconômica.
Em março de 2003, o montante subiu para US$ 136,967 bilhões. Fonte: “Balance de
Durante a última década, o número de pessoas que desceu
pagos del I trimestre de 2003”, Indec, junho de 2003.
abaixo da linha de pobreza e da linha de pobreza extrema (indigência)
2 Uma comissão da Câmara de Deputados nacional assinalava que os valores de
residentes argentinos(as) no exterior (ativos financeiros e não-financeiros) aumentou de forma lenta e contínua. O desenvolvimento das variáveis
somavam, em dezembro de 2001, algo em torno de US$ 127,074 bilhões, colocados sociais demonstra que, além de levar os índices de pobreza e de
em depósitos, ações, bens, divisas etc. Não é um fenômeno novo, pois a variação
dos ativos no exterior entre 1992 e 2001, segundo os deputados, tinha sido de US$
pobreza extrema a patamares incompatíveis com o sistema
73,332 bilhões. (GAMBINA, Julio. Seis meses en picada: datos de la crisis democrático, as políticas econômicas implementadas mais
económica. Centro de Estudos, Formação e Informação da FJA. Junho de 2002.) recentemente não fizeram nada.
3 Depois da crise de 2001, o peso argentino (que corresponde ao cifrão – $) se Em outubro de 2002, 57,5% da população – em torno de
desvalorizou em relação ao dólar dos Estados Unidos, passando da paridade de
$ 1 = US$ 1 para $ 3,60 = US$ 1, em outubro de 2002. Em junho de 2003, o valor do 20,7 milhões de pessoas – vivia abaixo da linha de pobreza, de
dólar estava equilibrado em torno de $ 2,80. acordo com a Pesquisa Permanente de Domicílios (PPD) feita
A entidade regulamentadora do saneamento básico regula 22 Banco condicionou à privatização um empréstimo de US$ 14 milhões
sistemas de água potável e esgoto na Bolívia. Desse número, 14 são à Semapa,4 e, em 1997, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o
cooperativas, sete são empresas municipais e uma, a maior em La Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
Paz e em Alto, é concessionária privada.1 Seriam duas empresas condicionaram outros US$ 600 milhões à privatização.5 O processo
privadas, porém, em 2000, a privatização do sistema de água em se complicou por vários motivos: as elites locais vinculavam a
Cochabamba foi revertida, depois de mobilizações maciças. concessão do sistema de água à execução de obras civis ambiciosas
Dados gerais indicam que o acesso à água (número de conexões) e onerosas; a empresa já tinha uma dívida grande a ser assumida pela
tem melhorado nos últimos anos, embora não haja uma relação clara concessionária; o Banco Mundial exigia uma aplicação estrita da
com a privatização (uma única concessão). Ao mesmo tempo, a recuperação total de custos; e a empresa conseguiu, nas negociações,
privatização implica uma realocação de custos. Até mesmo quem estabelecer uma alta taxa de retorno garantido.
defende a privatização reconhece que essa realocação pode produzir Todos esses custos – acertados em um processo totalmente
“efeitos adversos ao bem-estar”,2 ou seja, significa que vai contra as secreto entre empresa, governo e elites locais – seriam refletidos
necessidades das camadas pobres da população. Estão implícitos os nas tarifas de água, antes de qualquer melhoria do sistema de
parâmetros financeiros exigidos pelas instituições de crédito: total abastecimento. Em setembro de 1999, foi assinado o contrato de
recuperação de custos (tarifas que recuperem plenamente os custos concessão em favor do consórcio Aguas del Tunari, dirigido pelo
operacionais) e eliminação de subsídios cruzados ou diretos.3 gigante da construção e de engenharia dos Estados Unidos, Bechtel
O fracasso da privatização da água em Cochabamba é muito Enterprises. Esse contrato criou a área de concessão monopolizada.
conhecido e debatido mundialmente. A relativa escassez de água
cria uma dependência excessiva de fontes subterrâneas e Golpe baixo
interrupções do serviço; um sistema antigo e de baixo nível de No início de 2000, começaram a chegar contas de água com
medição faz com que quase 60% da água distribuída seja perdida aumentos de até 200% ou 300%, e a reação não se fez esperar.
ou não-faturada; a metade dos cerca de 500 mil habitantes não Estourou uma rebelião na cidade e nas zonas rurais e áreas
está conectada à rede de abastecimento de água, depende de periurbanas contra a Aguas del Tunari. Esse conjunto de forças
caminhões-pipas – que vendem talvez a água mais cara da região protagonizou uma escalada de protestos, culminando, em abril de
– ou de sistemas autoconstruídos pelas comunidades locais. O 2000, com enfrentamentos com a polícia e o exército, a declaração
resultado é um quadro de desigualdade no acesso à água, que de estado de sítio, centenas de pessoas feridas e um morto. Em 10
reflete e reproduz a iniqüidade e a polarização social. de abril, o governo anunciou a anulação do contrato de concessão
Desde o início da década de 1990, o Banco Mundial exigia a e, além disso, realizou mudanças substantivas na lei em que estava
privatização da empresa municipal de água, Semapa, como única baseado o contrato e que também deixava sem proteção os sistemas
solução para o problema da água em Cochabamba. Em 1996, o de autogestão, assim como usos e costumes rurais.
6 CRESPO, Carlos. La concesión de La Paz a los cinco años: elementos para una
evaluación. 2001, p. 1. Disponível em: <www.aguabolivia.org>. 10 CRESPO, op. cit., p. 7.
7 BARJA e URQUIOLA, p. 22. 11 Disponível em: <http://www.aguabolivia.org//situacionaguaX/Riego/mapas/indexrh.htm>.
8 Id., ibid. 12 Documento de Discusión y Consulta, de 27 de abril de 1999, reproduzido em Tunupa,
9 FOSTER, Vivien. Economic and financial evaluation of El Alto Pilot Project: condominial n. 2, maio de 1999.
water and sewage systems and related innovations. 2001, p. 14. Disponível em: 13 Comentário feito aos autores por um analista com uma década de experiência em
<http://wbln0018.worldbank.org/eap/eap.nsf/Attachments/Water-Informe/$File/ questões de água na Cooperação Internacional mostrando que um telefonema da
InformeFinalApr09.pdf>. empresa para o Banco Mundial foi mais importante do que as manifestações populares.
14 ALURALDE, Juan. Mitos y realidades sobre la exportación de aguas al norte de Chile. Projeto Observatório da Cidadania (Cedla)
2002, p, 9. Mimeo. <cedla@caoba.entelnet.bo>
NT Águas que ainda não foram tratadas para o consumo humano.
De acordo com a estratégia de desenvolvimento, transformação é a previsão de elevado montante de investimentos privados e
e gestão do abastecimento de água, adotada no fim de 2002 a possibilidade de o Estado e o município controlarem esses
pelo Ministério de Desenvolvimento Regional e de Obras investidores. Atualmente, depois que Varna e Shumen rejeitaram
Públicas da Bulgária, são necessários US$ 3,850 milhões de esse plano, não se sabe se outras cidades adotarão o modelo.
investimentos privados para melhorar o abastecimento de água
no país. Além do setor privado, outros recursos financeiros Caso Sofia Water
incluem fundos concedidos pela União Européia como primeiro No fim de 1999, o usufruto do abastecimento de água de Sófia
passo prévio para a incorporação da Bulgária ao bloco e foi dado em concessão à International Water Ltd. No período de
investimento estatal direto. Os parâmetros concretos da 1998 a 1999, 20 empresas estrangeiras expressaram um interesse
distribuição dos investimentos serão identificados no Programa preliminar na operação de abastecimento de água potável e
Nacional para Desenvolvimento Econômico e Regional. O saneamento da capital, além da reparação da infra-estrutura
principal problema é a ineficiência na gestão do abastecimento existente. Em 6 de outubro de 1999, o vencedor da licitação,
de água, operado por 51 empresas estaduais e municipais, International Water Ltd., consórcio entre a estadunidense Bechtel
que fornecem água potável e saneamento, e as enormes perdas Enterprise e a inglesa United Utilities International, assinou
na transferência da água por causa de uma infra-estrutura contrato de concessão de 25 anos com o governo municipal de
antiquada. Cerca de 90% dessa infra-estrutura precisa ser Sófia. Dessa licitação participaram quatro companhias, entre
modernizada. O resultado é um alto custo de água potável para elas Vivendi e a empresa francesa Lyonnaise des Eaux, que
o público consumidor. também pretendia participar da licitação em Varna e Shumen,
O Banco Mundial vem exigindo uma nova estratégia para o porém em consórcio com Aqua Mundi.
envolvimento do setor privado no fornecimento de água, que A Sofia Water Joint Stock Company foi estabelecida com
inclui uma concessão, seguida de contratos para a administração 75% das ações pertencendo à International Water Ltd. e 25%
e serviços concretos. A estratégia de privatização envolve fórmulas ao governo municipal. Em novembro de 1999, especialistas da
mistas de operação. Por exemplo, o investidor privado constrói Raiffeisen Investment, um grupo de consultores internacionais,
as instalações, utiliza-as por determinado período e, finalmente, alertaram que a International Water Ltd. seria provavelmente
transfere a propriedade desse bem para o Estado.1 O governo incapaz de investir na Sofia Water por falta de demanda pelas
tenciona implementar a estratégia de concessão em outras ações da empresa nos mercados financeiros internacionais e
grandes cidades, tais como Khaskovo, Pernik, Kyustendil, por incertezas sobre a situação financeira e a capacidade de
Dimitrovgrad, Vidin, Montana, Vratza etc. Para as autoridades investimento da companhia.
governamentais, a principal vantagem da política de concessão Tornou-se evidente que a International Water Ltd. seria
incapaz de cumprir suas obrigações contratuais. Em julho de
2002, o governo municipal de Sófia acusou a empresa de
violações contratuais e baixo desempenho. A maioria do público
1 Os contratos de concessão têm uma duração máxima de 35 anos. O primeiro
contrato de 25 anos foi assinado para Sófia, a capital do país. Por recomendação de consumidor foi forçada a pagar antecipadamente contas de água
consultores do Banco Mundial e da União Européia, esses contratos foram desproporcionalmente altas por causa de erros na medição do
planejados para Varna (a “capital” marítima) e Shumen (cidade do nordeste do país)
como programas-piloto. Porém, depois do fracasso recente do plano de concessão
consumo. 2 A mídia divulgou o caso de uma aposentada que
de Sófía, as autoridades municipais das duas cidades rechaçaram o projeto-piloto. vivia em um apartamento e recebeu uma conta de água com
Estados devem garantir que todos os acordos comerciais Relatório da Associação da Proteção aos Consumidores da Concessão de Água.
contraídos sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio Water and poverty, por J. Saghir, diretor de Energia e Água, Banco Mundial. Abertura do
Dia da Água, Saúde e Pobreza, WaterDome, 2 set. 2002, Cúpula Mundial sobre o
(OMC), assim como o processo de privatização e de liberalização Desenvolvimento Sustentável, Johanesburgo.
dos serviços públicos básicos, não tragam riscos para a situação DINAR, Ariel; SUBRAMANIAN, Ashok. (Eds.). Water pricing experiences: an international
social e econômica de suas populações nem viole os direitos perspective. Documento técnico do BM – 386, 31 out. 1997.
fundamentais à vida e ao desenvolvimento, como estipulado no HOLDEN, Paul; THOBANI, Mateen. Tradable water rights: a property rights approach to
resolving water shortages and promoting investment. Documento de trabalho de
artigo 8o, inciso 1, da Declaração das Nações Unidas sobre o
pesquisa sobre políticas – 1.627, 31 jul. 1996.
Direito ao Desenvolvimento.
As instituições financeiras internacionais continuam insistindo
na mercadização dos serviços que, anteriormente, estavam na esfera Fundação Búlgara de Pesquisa de Gênero
pública e não-comercial. Argumentam que os investimentos nessas <bgrf_jiv@inet.bg>
A privatização dos serviços sociais vem sendo imposta por meio de programas estritos e
duradouros de ajuste estrutural pelas instituições financeiras internacionais. Esses programas
têm feito pressão por mudanças nas políticas sociais para transformá-las em serviços rentáveis.
Desse modo, a saúde, a educação, a seguridade social e o acesso a serviços de água, energia,
telecomunicações e saneamento ambiental podem ser operados por agentes privados, que
têm altas margens de lucro garantidas.
A privatização dos serviços básicos tem deteriorado em muito As políticas ordenadas pelo Banco Mundial e pelo Banco
a distribuição de renda, fazendo as pessoas ricas mais ricas Interamericano de Desenvolvimento (BID) avançaram na
e empobrecendo as pobres. Assim, o Estado tem favorecido organização da educação de acordo com a lógica do mercado,
os processos de acumulação de ativos públicos em mãos de colocando o país entre aqueles que possuem maior oferta de
grupos financeiros, vendendo as empresas de serviços vagas escolares em mãos privadas. Com tais patamares de
públicos por um terço de seu valor real. privatização, os acordos com o Fundo Monetário Internacional
O primeiro passo na privatização de todas essas empresas foi (FMI) foram concretizados agora numa reforma constitucional
impor grandes aumentos nas tarifas dos serviços públicos, para que reduz novamente o montante de recursos que o Estado deverá
que passassem a ser atraentes ao capital privado. Por exemplo, destinar ao atendimento à saúde e à educação pública. Embora
no caso da água, cuja privatização é o próximo objetivo dos tenha sido aprovada, houve contra essa reforma uma das maiores
conglomerados financeiros,1 nos últimos cinco anos a tarifa de mobilizações sociais da última década. Ela gerará uma redução
consumo aumentou, em média, 238%2 para o estrato mais pobre de aproximadamente US$ 2,5 bilhões até 2008, liberados para
da população nas nove cidades principais. pagamento dos credores da dívida pública.
Nas privatizações das estradas, das telecomunicações e
da produção e distribuição de energia, foram empregadas Educação como negócio
cláusulas que buscam assegurar margens de lucro preesta- No caminho da privatização das instituições educacionais, o
belecidas para as empresas multinacionais e as empresas Estado limitou seu compromisso com a educação pública
compradoras (que o Estado deve pagar se os compradores praticamente ao pagamento de professores e professoras. As
não conseguirem obter a totalidade dos lucros calculados), famílias devem cobrir os custos de manutenção das instalações
instaurando, dessa forma, um tipo de capitalismo sem riscos, escolares, aquisição de materiais, pagamento dos serviços
no qual o lucro dos empresários não depende das mercadorias públicos de água, telefone e energia, aquisição de materiais
ou dos serviços produzidos e vendidos, mas do faturamento didáticos e pagamento dos salários do pessoal não-docente, como
calculado de antemão. Os riscos de perdas ou lucros não-reali- seguranças, secretárias(os), pessoal de limpeza e de manutenção
zados devem ser assumidos pela população, por meio do orça- das escolas. Esses custos devem ser cobertos com os pagamentos
mento público, e pelas empresas estatais – obrigadas a entregar feitos pelas famílias de matrículas, mensalidades e com os demais
indenizações milionárias às empresas privadas com as quais recursos provenientes da venda e da prestação de serviços
foram obrigadas a competir nessas condições desvantajosas. docentes aos(às) estudantes.3 Portanto, não é estranho que o
Relatório de Desenvolvimento Humano 2000 da Colômbia tenha
constatado que, em 1997, aproximadamente 46% das crianças e
1 Em setores como o da geração de energia, o Estado dispõe somente de 35,5% dos 3 Decreto no 1.857, artigo 2o, 1994.
ativos, e o processo de privatização ainda continua.
4 Pnud e Departamento Nacional de Planejamento – Missão Social. Informe sobre
2 A maior parte dos dados deste artigo foi obtida do estudo realizado pela Controladoria Desarrollo Humano. Colômbia, 2000. Alfaomega Grupo Editor, maio de 2001, p. 201.
Geral do país, em agosto de 2002, denominado “Colombia entre la exclusión y el O Informe sobre Desarrollo Humano 2002 aponta uma evasão escolar de 44%, com
desarrollo” (Bogotá, julho de 2002). 2 milhões de jovens fora da escola.
Venda das empresas estatais exigida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), redução do
Estado por meio de demissões em massa, aplicação de condicionalidades de cortes dos gastos
públicos, eliminação dos subsídios aos serviços básicos e aos combustíveis, redução de salários,
proteção aos credores internacionais e intensificação do modelo de superexploração dos
recursos naturais configuram um exemplo claro das políticas públicas do governo nacional,
seguindo as diretrizes dos organismos internacionais.
Em 1999, o Equador passou por uma crise econômica e financeira dos países vizinhos onde houve desvalorizações. O problema
sem precedentes que levou à queda de 7% do Produto Interno se agravou porque a taxa de juros para empréstimos2 continua
Bruto (PIB) real, à desvalorização do sucre (moeda nacional) em alta para uma economia dolarizada. Isso pode ser observado no
200%, à moratória da dívida externa e ao recrudescimento da crescimento substancial das importações e na contração das
pobreza, que atingiu 70% da população. A proteção oficial a exportações, gerando um déficit comercial de US$ 600 milhões
banqueiros corruptos, congelamento de contas bancárias e a no primeiro semestre de 2002 e que deverá atingir US$ 1,6 bilhão
dolarização fizeram com que, depois de um levante indígena e até o fim do ano. A cifra representa aproximadamente 8% do
popular, o presidente Jamil Mahuad fosse deposto e substituído PIB estimado para o ano 2003.NE1
pelo vice-presidente Gustavo Noboa, em 21 de janeiro de 2000. A possibilidade de sair dessa recessão está condicionada à
O apoio do FMI ao novo governo equatoriano foi marcado melhoria da competitividade, por meio do aumento da produção
pela imposição de novas medidas de ajuste estrutural na negociação (difícil de alcançar sem sérios investimentos em tecnologia, o que
da décima carta de intenção. Nessas circunstâncias, o FMI atua não deve ocorrer no curto prazo), à diminuição dos custos internos
também como mediador e fiador perante os credores internacionais de produção (especialmente da mão-de-obra e dos tributários) e,
na renegociação da dívida externa privada, pela troca de bônus especialmente importante, ao apoio do governo a esses setores –
Brady por bônus Global, avaliados em US$ 5 bilhões e negociados o que no contexto atual, em que se impõe o discurso do livre-
a taxa de juro de 12% e 10% respectivamente – até três vezes mais comércio, não parece provável.
alta que a taxa Libor vigente no mercado internacional.
Essa renegociação não diminuiu a pesada carga da dívida Prioridades perversas
sobre o orçamento geral do Estado, pois o pagamento do Nesse contexto econômico, o subemprego alcança 40% da
serviço da dívida pública,1 externa e interna, representa mais população economicamente ativa (PEA), e a migração,
de 35% do orçamento, comparado com os 19% destinados ao especialmente para a Espanha, a Itália e os Estados Unidos, atinge
cumprimento das obrigações estatais referentes aos direitos quase 1 milhão de equatorianos(as), mais de 8% da população.3
econômicos e sociais (educação, saúde, geração de emprego e Além disso, existe uma distância de consumo entre as
apoio à produção). famílias. O salário médio mensal em 2002 (US$ 140) não dava
Embora tenha provocado certa estabilidade econômica para comprar nem a metade da cesta básica familiar, que, em
depois da crise de 1999, a dolarização não ocasionou uma agosto de 2001, era de US$ 330.NE2 No orçamento geral do
melhoria substancial da economia equatoriana. Ao contrário,
está provocando um profundo enfraquecimento da estrutura
produtiva e social do país. A adoção do dólar estadunidense
como moeda vem provocando perda de competitividade dos
2 A taxa de juros ativa em dólar flutua entre 15% e 20%.
produtos não-tradicionais de exportação, mesmo daqueles
NE1 O déficit comercial em 2002 foi de US$ 1 bilhão, correspondente a 4,1% do PIB.
destinados ao mercado interno – vulneráveis às importações
3 De acordo com o Departamento de Migração, 504.203 equatorianos deixaram o país
entre 1999 e 2000. Paradoxalmente, esses imigrantes geraram o segundo item de
receitas do país, enviando remessas anuais de cerca de US$ 1,4 bilhão em 2001.
Eles têm sido os verdadeiros sustentáculos da dolarização.
1 O serviço da dívida previsto no orçamento é de aproximadamente US$ 2 bilhões NE2 Em setembro de 2003, a cesta básica familiar saía por US$ 376,47 e o salário médio
em 2002. mensal estava em US$ 157.
Estado, 45% das receitas fiscais dependem da venda do petróleo Por causa da instabilidade dos preços internacionais do
e seus derivados. Por isso, o governo estabeleceu o objetivo petróleo, das restrições da política monetária impostas pela
de aumentar substancialmente a exploração petrolífera com dolarização e da exigência do FMI de gerar superávit fiscal, o
capitais privados, com a construção do oleoduto para óleo cru governo justificou a venda ou concessão das empresas públicas
pesado (OCP), a licitação de novos campos petrolíferos na (eletricidade e telecomunicações). Seu argumento foi gerar fontes
Amazônia equatoriana e a extensão dos contratos com as atuais de receitas fiscais alternativas ao petróleo e, assim, sustentar o
empresas de petróleo. orçamento nacional, diminuir os gastos governamentais, elevar
O FMI exigiu a promulgação da Lei Orgânica de os preços dos combustíveis, cortar ou congelar salários e reduzir
Responsabilidade, Estabilização e Transparência Fiscal, o que os gastos operacionais dos ministérios. Entretanto, essa
foi feito em 4 de junho de 2002. A lei estabelece um limite de proposição tem uma intenção muito peculiar: gerar outras fontes
3,5%, em termos reais, para o crescimento dos gastos de receitas fiscais que permitam cobrir o orçamento e gerar um
públicos, excluindo o pagamento da dívida pública, e superávit fiscal, pois as receitas do petróleo estão comprometidas
contempla a criação do Fundo de Estabilização, Investimento e servirão para o pagamento da dívida.
Social e Produtivo, e Redução do Endividamento Público A privatização das empresas públicas no Equador vem
(Feirep) com as receitas fiscais geradas pelo OCP a partir de apresentando problemas: por um lado, em virtude da oposição
2004. Esses recursos serão distribuídos da seguinte maneira: dos sindicatos e das organizações sociais; por outro, por causa
70% para recomprar a dívida pública e pagar a dívida com o da percepção pública de corrupção e falta de transparência nesses
Instituto Equatoriano de Seguridade Social (Iess); 20% para processos. Na tentativa de leilão público das empresas elétricas,
a estabilização das receitas petrolíferas; e 10% para em abril de 2002 – apesar da intensa campanha sobre as vantagens
investimentos em saúde e educação. Isso demonstra da privatização para a chegada de novos capitais e dos benefícios
claramente que a prioridade das políticas do governo na da livre competição –, o governo não conseguiu concretizar a
utilização dos fundos públicos e dos recursos naturais é o venda, embora tenha se esforçado na promulgação e na
pagamento da dívida antes dos investimentos sociais. implementação de leis para uma flexibilização maior do mercado
Por sua vez, a política tributária não está orientada para criar de trabalho (proibição do direito de sindicalização, trabalho por
um sistema eqüitativo. O peso do Imposto sobre Valor Agregado hora, demissões maciças, terceirização etc.), aumentado as tarifas
(IVA), imposto indireto e regressivo, cresceu nos últimos anos públicas dos serviços básicos (Tabela 1), transferido dívidas das
de 1,4% do PIB, em 1983 e 1984, para 8%, em 2001. Isso empresas privadas para o Estado (foi o caso das empresas elétricas,
representava, em 2002, mais de 20% das receitas totais do Estado em que o Estado assumiu US$ 300 milhões de dívidas para que
e 50% das receitas totais não-petrolíferas. No entanto, o imposto aumentasse o valor de mercado) e modificado as leis para
de renda, imposto direto e progressivo, quase não cresceu, assegurar o controle da empresa pelo capital estrangeiro (venda
representando 3,2% do PIB de 2001, equivalente a 20% das de 75% das ações da empresa pública em lugar de 51%).
receitas totais não-petrolíferas e a 11% das receitas totais. No entanto, além de facilitar o processo de privatizações, o
Levando em conta que 70% da população vive na pobreza, Estado se obrigava a dar garantias às empresas, assegurando sua
essas cifras revelam um sistema tributário favorável às classes rentabilidade por meio da autorização de aumento das tarifas dos
de alta renda, em prejuízo da maioria da população. serviços básicos, estabelecimento de monopólios privados, isenção
Desde meados da década de 1980, sucessivos governos têm promovido a privatização como
instrumento de política financeira e, também, de política pública. Até o presente, os organismos
estatais mostram pouca disposição de medir o impacto social desse processo, tanto na Espanha
como na América Latina, onde os capitais espanhóis tiveram participação ativa. É urgente
aumentar os gastos públicos e realocar os recursos para áreas com maior efeito redistributivo.
Cada vez mais, um número maior de setores é privatizado.1 média dos gastos na União Européia. Essa diferença vem
Embora nos serviços sociais básicos (SSB) o processo ainda aumentando progressivamente a partir de 1994, quando os gastos
esteja incipiente, a escassez de avaliações do impacto social com proteção social na Espanha eram de 22,8%, comparado com
de um dos processos com maior incidência no conjunto da popu- a média da União Européia de 28,4%.
lação – e concretamente sobre os grupos mais desfavorecidos – Com mais de 7 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha
revela a pouca atenção prestada pelos organismos públicos às da pobreza, ou seja, 18% da população (Relatório Foessa sobre
repercussões sociais de suas políticas. Também mostra a neces- as condições de vida na Espanha), e com os cortes progressivos
sidade de insistir com esses organismos (pois, se houver inte- dos benefícios sociais, muitas organizações sociais têm insistido
resse político, os resultados podem modificar os passos se- que o governo aumente os gastos públicos sociais, pois é um dos
guintes) para que realizem, por um lado, um estudo do impacto instrumentos mais importantes com que conta o Estado para influir
dos processos de privatização iniciados até o momento e, por na redistribuição de renda e promover a eqüidade social. No
outro, avaliações prévias de impacto que facilitem a tomada de entanto, o governo, sem propor um debate sério sobre as possíveis
decisões democráticas, antes que qualquer tipo de acordo futuro alternativas de realocação de recursos públicos para os gastos
seja implantado. sociais, optou principalmente por estimular a privatização dos
Este artigo faz referência a duas dimensões da participação serviços sociais, começando por esquemas de gestão privada.
do setor privado na provisão dos SSB.2 Em âmbito nacional, são
analisados os avanços contínuos do processo de privatização que Debate urgente
se desenvolve na Espanha durante os últimos anos. Na esfera Em setembro de 2002, o ministro do Trabalho e Assuntos Soci-
internacional, descreve a participação das empresas espanholas ais, Eduardo Zaplana, anunciou a decisão de introduzir a gestão
na privatização dos SSB em outros países, concentrando a atenção mista em alguns serviços públicos e benefícios sociais. Essa
na América Latina, por ser a região com maior fluxo anual de fórmula já havia sido utilizada para enfrentar a falta de recursos
investimentos espanhóis. na saúde pública e na educação, quando os serviços foram trans-
A análise das tendências de privatização dos serviços sociais feridos para as Comunidades Autônomas (regiões e nacionalida-
e de sua influência nas situações de pobreza e exclusão precisa des), sem que houvesse garantia de recursos suficientes. Para
ser colocada no contexto da garantia dos direitos sociais básicos. ajudar a visualizar o futuro da privatização de outros SSB, já
Os gastos espanhóis com proteção social em 19993 representaram dispomos de precedentes sobre o compromisso público com
20% do Produto Interno Bruto (PIB), 7,4% menos do que a serviços sociais direcionados às populações mais desfavorecidas
e seus resultados insatisfatórios. Isso acontece com os serviços
dirigidos aos sem-teto, uma rede que tem uma proporção esma-
gadora de provedores de serviços privados.4 Os centros públicos
são cerca de um quinto do total (21%), ao passo que 55% estão
1 Ver BEL, Germà; COSTAS, Antón. La privatización y sus motivaciones en España: de
instrumento a política. Universitat Barcelona.
2 Neste artigo, o conceito de participação do setor privado engloba ações como a
venda de ativos, subcontratação de serviços, taxas de usuários e as parcerias
público-privadas.
4 CABRERA, Pedro José. La acción social con personas sin hogar en España. Madri:
3 De acordo com os dados de Eurostat, “Dépenses et Recettes”, 1980–1999. Foessa-Cáritas, 2000.
Soc. Gral. Aguas Barcelona Aguas Provinciales de Sta. Fé Gestão de água e resíduos
Cáritas Espanhola
<estudios@caritas-espa.org>
Intermón Oxfam
<cgonzalez@intermon.org>
7 Compromisso assumido pela Iniciativa 20/20, que pretende alcançar a cobertura dos 8 World Development Movement. In: Whose Service. Londres, 2001.
serviços sociais básicos, como meta essencial para combater as manifestações 9 Oxfam Internacional. Cambiar las reglas: comercio, globalización y lucha contra la
mais extremas da pobreza. Ver CEPAL, Equidad, desarrollo y ciudadanía. pobreza. 2002.
Embora a atividade criminosa nas indústrias de serviços privados tenha sido um fator
importante na atual recessão, a indústria de serviços continua a formar a base da posição de
negociação dos Estados Unidos no Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (Gats). O
controle dos ativos dos serviços públicos e a globalização de suas práticas continuam sendo
os objetivos dessas indústrias, mesmo que diariamente surjam novos escândalos.
O plano do presidente George W. Bush para ajudar aos setores mais Apesar da procedência duvidosa da maior parte da assessoria
pobres nos Estados Unidos impõe uma série de novos e rigorosos corporativa que recebe negociadores comerciais estadunidenses
regulamentos, exigindo que as pessoas beneficiadas da assistência no Gats, não tem havido nenhuma discussão pública sobre a
social (welfare) trabalhem mais em troca de benefícios menores. crise de governança das políticas comerciais entre quem promove a
Desde o Observatório da Cidadania 2002 , têm sido liberalização dos serviços e a auto-regulação corporativa. O resumo
publicados artigos quase diários na imprensa dos Estados da proposta dos Estados Unidos para o Gats ainda defende uma
Unidos sobre acusações criminais, sanções civis ou decisões “presença comercial” global que limite a regulamentação dos
de leis administrativas contra assessores corporativos do Gats. governos à forma menos onerosa possível aos critérios comerciais.
É enorme a parcela de mercado capturada pelos infratores de Muitas das grandes firmas que defendem essas disciplinas mantiveram
leis e normas nos serviços financeiros, serviços de energia, práticas de criação e provisão de serviços – estimuladas pela
telecomunicações etc. Ainda maiores foram suas declarações desregulamentação governamental – que contribuíram muito para a
incorretas de lucros durante a década de 1990, reveladas pelo atual recessão econômica dos Estados Unidos. Por exemplo, sobre a
colapso da Enron e outras empresas. indústria de serviços financeiros, William Greider escreveu que
“Nos últimos seis anos, segundo a Business Week , os as fusões de bancos comerciais e firmas de investimentos de
investidores perderam US$ 200 bilhões como conseqüência de Wall Street, ratificadas pelo Congresso em 1999 – legalizando
783 falhas de auditoria em firmas que exageraram seus lucros, novos conglomerados financeiros como Citygroup e J. P.
e o número desses incidentes dobrou entre 1997 e 2000”.1 As Morgan Chase –, já produziram os mesmos escândalos de
declarações de culpa, as suspeitas de crimes, falências e violações negócios em proveito próprio e investidores lesados que
de normas federais cobriram um leque tão amplo que até mesmo determinaram a separação legal dessas duas esferas há 70
um defensor da liberalização dos serviços, como a Brookings anos, com a Lei Glass-Steagall.2
Institution, tentou calcular para a bolsa de valores o custo da crise
de governança corporativa. Contudo, não existem propostas legislativas para impedir essas
práticas comerciais certificadas como “legais” e “normais” por bancos,
firmas contábeis e advogados(as) em seus tratos com Enron, Global
Recessão fortalecida
Crossing, WorldCom etc. Além de apoiar novas leis e iniciar
Ainda não foram calculados os custos para empregados(as), investigações criminais contra o delito que é mais difícil de ser
clientes, contribuintes, aposentados(as), governos e para quem comprovado, a fraude, o governo Bush ainda não foi capaz de superar
perdeu o emprego nos Estados Unidos por causa da conduta ilegal sua aversão a aplicar regulamentos governamentais às corporações.
dessas empresas. Isso sem falar nas conseqüências transnacionais O governo tentou até mesmo enfraquecer a linguagem não-
geradas pelas declarações de supostos benefícios decorrentes da vinculativa sobre a responsabilidade corporativa da Declaração
desregulamentação corporativa que estimularam as privatizações Política da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável.
recomendadas pelo Banco Mundial na década de 1990. As resistências à reforma são particularmente intensas na
1 MOBERG, David. Enronomics 101: business as usual in the disinformation economy. 2 GREIDER, William. The Enron Nine: Wall Street’s most prestigious firms may have
These Times, 4 mar. 2002, p. 15. been involved in a ponzi scheme. The Nation , 13 maio 2002.
A prova dessa tendência é a distância flagrante entre os pronunci- rurais e urbanas e entre dalits, adivasis e outras minorias.4
amentos políticos e as alocações orçamentárias. Durante o perío- Crianças delinqüentes, filhos(as) de prisioneiros(as) e de
do de liberalização econômica, de 1992 em diante, o compromisso trabalhadores(as) do sexo são impedidos(as) pelos distritos
orçamentário decresceu em termos reais. A presença do Estado policiais de receber educação primária.5
na saúde – que historicamente foi muito decisiva – lentamente Os gastos públicos gerais com educação caíram de 4,4% do
começou a desaparecer, com o espaço sendo preenchido por PIB em 1989 para 2,75% em 1998–1999.6 O ensino primário
investimentos privados. Isso fica mais óbvio quando se analisam ainda não é gratuito ou obrigatório, a despeito da Emenda 93 da
as despesas orçamentárias em setores mais centrais, como o Constituição e de uma decisão da Corte Suprema de 1993 – que
percentual do Produto Interno Bruto (PIB) durante a década tornou a educação um direito fundamental das crianças entre 6 e
passada. A retirada de subsídios e de investimentos estatais des- 14 anos.7 Com os atuais gastos em educação primária em cerca
ses setores é outro indicador definitivo.2 de 1,5% do PIB, estima-se que um aumento para 2,8% do PIB
Os direitos básicos de grupos marginalizados – como os contribua para o cumprimento das obrigações constitucionais.8
dalits, comumente chamados de intocáveis; adivasis, comuni- A última década tem visto a crescente retirada do Estado da
dades nativas que constituem cerca de 25% da população; área de educação, especialmente da educação superior, que
trabalhadores(as) sem-terra; mulheres e crianças pobres – estão historicamente estava sob controle governamental. O Estado
sendo substancialmente solapados no meio de declarações polí- tem deixado as universidades entregues à própria sorte e, em
ticas que mascaram alocações financeiras inadequadas. alguns casos, tornou-as dependentes de financiamento privado.
A taxa de alfabetização da Índia é de 65%, porém somente O conseqüente aumento nos custos tornou a educação superior
54% das mulheres sabem ler e escrever.3 A evasão escolar tem quase totalmente inacessível aos grupos marginalizados, a
crescido nos últimos cinco anos e é maior entre as meninas. despeito de vários dispositivos legislativos destinados a
Somente 43,6% das meninas estão matriculadas na escola primária; melhorar seu acesso.
desse número, somente 40,1% passam para a escola secundária.
Também são marcantes as disparidades entre as meninas de áreas Saúde em risco
A Índia é caracterizada por sérios riscos de saúde. Mais de 100
mil mulheres morrem de anemia anualmente. Em 1991, 87,5%
de todas as mulheres grávidas estavam anêmicas. Quase 600 mil
crianças morrem todo ano de diarréia, enquanto 56% das crianças
1 John Samuel é o diretor executivo do National Centre for Advocacy Studies (NCAS),
na cidade de Pune, Índia, e membro convidado do IDS Sussex. Bobby Kunhu é
advogado, especialista em direitos humanos, e trabalha no NCAS.
2 Não possuímos dados exatos sobre a retirada dos subsídios governamentais. Como
esses setores são controlados por estados individuais, atualmente não existem 4 GOVINDA, R. (Ed.). Indian Education Report. Nova Délhi: Oxford University Press, 2002.
dados nacionais disponíveis. Porém, temos provas de que o Estado eliminou os 5 Ibidem.
subsídios educacionais para instituições específicas. O orçamento da Comissão de
Subvenções Universitária – a organização que reúne as universidades indianas que 6 DREZE, Jean; SEN, Amartya. Indian Development and Participation. Nova Délhi: Oxford
fornecem subvenções e fundos para as universidades e ajuda governamental para University Press, 2002.
estudantes – tem também declinado continuamente. Na área de atendimento primário 7 Unnikrishnan v. Union of India, 1993.
à saúde, também tem havido cortes similares de fundos públicos.
8 PARIKH, Kirit S.; RADHAKRISHNA, R. (Eds.). India Development Report 2002. Nova
3 ÍNDIA. Provisional Census Report. Nova Délhi: Departamento do Censo, 2001. Délhi: Oxford University Press, p. 107.
Com 85% dos gastos do governo comprometidos com despesas Os governos modernos geralmente assumem a responsabilidade
fixas (salários e serviço da dívida), há pouco espaço para mais de prover, pelo menos minimamente, esses serviços a todas as
austeridade. Autoridades governamentais argumentam que os pessoas – sem considerar renda ou localização. Este artigo aborda
resultados financeiros das privatizações maciças eram o único os mais recentes acontecimentos sobre as principais empresas
meio de o Líbano sair da armadilha da dívida. O projeto de candidatas à privatização no Líbano, buscando iniciar uma discussão
orçamento para 2003 inclui as privatizações, operações de dos possíveis efeitos colaterais sociais da privatização. Quem toma
securitização, financiamento externo, assim como um corte de as decisões não pesquisou o custo social dessa política, e isso
despesas e aumentos de impostos.1 continua tendo baixa prioridade para o governo.
Em maio de 2000, o Parlamento adotou uma lei dando po-
deres ao governo para privatizar as empresas estatais (SOE, na • Telecomunicações
sigla em inglês) e alocar os resultados financeiros à redução da Esse é o setor estatal mais rentável, gerando cerca de US$ 500
dívida pública. Essa lei também criou o Conselho Superior de milhões em receitas, com quase 40% destinado ao governo. Está
Privatização – que determina quais estatais devem ser vendidas, sob administração de duas empresas privadas, fundadas em 1995,
o tempo requerido para reestruturação e venda e o valor finan- segundo um acordo do tipo “construir, operar, transferir” (BOT,
ceiro das instituições. Inclui ainda dispositivos para garantir a na sigla em inglês). Durante seis anos de administração privada,
competição, os direitos do público consumidor, a proteção os preços não caíram. Após a conclusão do acordo (em meados
ambiental e o emprego de cidadãos(ãs) libaneses(as). Entretan- de 2001), o governo tentou atrair licitantes internacionais para a
to, as decisões de privatização priorizaram a redução da dívida licença de operação de longo prazo em meados de 2002. No
em detrimento de outras metas econômicas, sociais e políticas. entanto, nenhum investidor apareceu na data prevista, e o governo
Em 2002, o Parlamento aprovou legislação que permitia decidiu refazer o leilão de licenças no fim de 2002.
ao setor privado participar dos setores de telecomunicações e Embora tenha sido sugerido o controle por parte do Estado
eletricidade, enquanto outra lei tratando do setor de água e da até a realização de outro leilão, as operações permaneceram sob
empresa aérea nacional estava ainda sendo discutida. NE A a administração das duas empresas que operariam a rede até que
privatização de grandes empresas que prestam serviços de o governo realizasse novo leilão no fim de 2002. Todas as receitas
eletricidade, água e telecomunicações podem gerar receitas das operações correntes revertiam para o governo, que pagava às
significativas para a redução da dívida e a diminuição de seu companhias o valor de depreciação dos ativos e quaisquer outros
peso no orçamento público. Entretanto, essas empresas custos incidentais. Assim, o governo garantiu as vendas eventuais
cumprem papel especial na economia do país, servindo o de licenças, assegurando a continuidade do setor e rejeitando a
interesse comum e provendo serviços básicos essenciais à possibilidade de nacionalização.
subsistência de toda a população.
• Eletricidade
Em agosto de 2002, o Parlamento ratificou a lei de privatização da
1 Ver <http://www.finance.gov.lb/main/govfin/bud03propweb.pdf>.
Electricité du Liban (EDL), que custa anualmente ao governo cerca
NE As leis para privatizar o setor de água e a companhia aérea também acabaram sendo
de US$ 265 milhões em subsídios. As perdas são causadas por
aprovadas em 2002. sistema de cobrança inadequado, roubo de energia, alto custo do
Água 85 departamentos para abastecer de água o país. A lei para privatizar foi ratificada em maio de
2002. Nenhum cronograma foi fixado. Uma
empresa francesa foi contratada para
administrar a á ípoli.
Telecomunicações 1,5 milhão de linhas fixas (40% da população); acordos contratuais entre Lei para privatizar já ratificada. Leilão no fim de
2002 para licitaçã
assinantes de celulares.
Transporte (MEA) ões de prejuízos anuais. Espera- Esperando condições de mercado favoráveis.
ção de 1.200.
Frota de ô
petróleo e limitações técnicas. O faturamento é de 51% do valor • Finanças públicas e gastos sociais
da energia gerada e 61% da receita potencial. Como conseqüência, A crise fiscal converteu a privatização em um instrumento básico
o alívio do déficit da EDL pode vir em grande parte do lado das para reabilitar as finanças públicas. Entretanto, as firmas privadas
receitas. A lei separava o setor de eletricidade em duas áreas de – que somente investem onde esperam obter lucro – relutam em
negócios: uma para produção e distribuição de eletricidade, que comprar empresas que estão perdendo dinheiro, obrigando o
seria privatizada; a outra para o transporte de eletricidade de alta governo a fazer grandes concessões. Mesmo no caso de setor
voltagem, que permaneceria no setor público. Nos próximos dois rentável, como o de telecomunicações, a estatal lucrativa não
anos, 40% das ações da companhia de produção e distribuição atraiu os investidores ou as ofertas não estavam à altura das
de eletricidade serão vendidas ao setor privado, embora a lei expectativas do governo, forçando uma extensão de prazo.
permita a privatização total. Se esse setor lucrativo não conseguiu atrair investimentos
suficientes, muito menos deve ser esperado de estatais
• Transporte aéreo deficitárias, como a EDL.
O governo não desejava vender a Middle East AirlinesNT (MEA) ao O argumento de que a privatização geraria receitas, que
setor privado, antes de tentar fazer uma grande reestruturação e facilitariam o aumento dos gastos sociais, é especialmente frágil.
redução de custos. O total de salários alcançava US$ 70 milhões As políticas sociais e de desenvolvimento humano do Líbano
por ano, e, desde 1996, a linha aérea tinha custado ao governo estão “confinadas às considerações econômicas, que
cerca de US$ 400 milhões. O plano de reestruturação transferia permanecem cativas de perspectivas setoriais ou técnicas”, como
pessoal para companhias subsidiárias (como os serviços de terra e foi observado no Relatório de Desenvolvimento Humano 1997
de manutenção) e oferecia aposentadoria antecipada ou indenização do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
de desemprego, com a ajuda de um empréstimo do Banco Mundial. Com ou sem o aumento dos gastos sociais, os problemas
Cerca de 1.200 pessoas foram despedidas ou pediram demissão – estruturais dos grupos mais necessitados não serão resolvidos,
desencadeando um conflito entre trabalhadores e trabalhadoras da se não houver uma política oficial de desenvolvimento para
empresa e o governo. A disputa foi resolvida com um acordo que atender a essas necessidades.
estabelecia as condições para as demissões.
• Investimentos
Impacto social Quem defende a privatização alega que a privatização será formulada
Embora somente uma abordagem empírica pós-privatização para atrair muito mais investimentos privados que estimularão o
pudesse avaliar o verdadeiro impacto dessa medida, os pontos crescimento interno e fortalecerão a balança de capitais externos
a seguir têm como objetivo chamar a atenção para algumas em setores-chave. No entanto, os investidores nacionais no Líbano
possíveis conseqüências negativas que podem resultar da estão inibidos por uma série de fatores que diminuem as
privatização no Líbano. oportunidades econômicas gerais: gastos governamentais
reduzidos, consumo privado diminuído, como resultado de
impostos adicionais, um grande déficit comercial e uma distância
NT Linhas Aéreas do Oriente Médio. entre investimento e poupança. Embora não haja dúvida de que
• Preços Desigualdade
O objetivo da privatização é concentrar atenção no desempenho Os programas de privatização fizeram muito mais para melhorar
financeiro. Além disso, a melhoria na oferta de serviços a eficiência do que para aumentar a eqüidade. A conseqüência
fundamentais, tais como água, eletricidade e telecomunicações, negativa para a distribuição de riqueza surge principalmente da
pode gerar benefícios para a economia como um todo. Entretanto, transferência dos ativos para os setores com mais recursos. O
não há prova inequívoca de que o setor privado forneça preços efeito negativo da distribuição de renda deriva dos preços mais
mais baixos a quem consome do que o setor público, exceto quando altos e de salários mais baixos.
controlado por uma agência reguladora autônoma e capaz. Por O impacto distributivo nas mudanças de preços dependerá de
causa de seu imperativo de buscar o lucro, os monopólios privados quanto o consumo de bens e serviços varia de acordo com a
tendem a aumentar os preços, o que, no caso dos serviços básicos, renda e do fato de as categorias de consumo enfrentarem ou não
tem um efeito negativo desproporcional sobre as pessoas pobres. preços diferentes. Entretanto, no Líbano, os preços dos serviços
Em relação à eletricidade, a EDL sofre de déficits imensos, públicos são iguais, independentemente de renda. Como foi
resultantes de uma baixa arrecadação, que, por sua vez, é anteriormente assinalado, os serviços públicos são bens básicos
conseqüência de infrações generalizadas e isenções políticas que com demanda inelástica, e, assim, as mudanças de preços afetam
o governo tem sido praticamente incapaz de eliminar. É improvável desproporcionalmente as famílias de baixa renda. A privatização
que os investidores privados possam melhorar a arrecadação, poderia melhorar o acesso a produtos por meio da expansão da
pois não têm o poder político de eliminar as isenções e as infrações. empresa, porém, na maioria dos setores, a expansão já estava
Embora tenha sido difícil limitar as infrações no setor público, o quase concluída antes desse processo.
aumento de preços seria uma solução mais fácil para o setor Por outro lado, há problemas técnicos que não facilitam uma
privado para compensar essas perdas, pois a eletricidade é um distribuição eqüitativa das ações das estatais. Mercados de capital
serviço básico com demanda inelástica.3 Contudo, isso afetaria frágeis e um setor bancário muito forte limitam as possibilidades
principalmente as famílias de baixa renda. da maioria das pessoas de baixa renda de conseguir financiamento.
Atualmente, somente 0,6% de todas as contas bancárias contém
Redução do emprego mais de 40% do total de depósitos, acumulando rendimentos de
Embora o impacto da privatização sobre o emprego varie de acordo juros isentos de impostos. A participação do setor privado nas
com a indústria, as privatizações em geral reduzem as ofertas de empresas públicas seguirá essa estrutura desigual, transferindo
emprego. Normalmente, afirma-se que o motivo para grandes as estatais do controle público para as mãos de um segmento
reduções de despesas é que as entidades públicas têm excesso de muito limitado da sociedade que pode participar do processo de
pessoal. A redução do número de pessoas empregadas é vista privatização. Assim, as privatizações podem contribuir para a
como um incentivo à produtividade. Contudo, o excesso de pessoal consolidação do poder econômico e político de um grupo de
no Líbano não é a causa da baixa produtividade do setor público. interesse que dificilmente representa as pessoas pobres.
De acordo com o Conselho do Serviço Público, a administração Em suma, há um conflito intrínseco entre a privatização das
pública tem 24.200 cargos, mas empregados(as) permanentes empresas públicas e o interesse dos grupos de baixa renda, porque
são 9.851, enquanto temporários(as) chegam a 9.353, ou seja, há a motivação do lucro – que fornece o incentivo teórico para a
uma escassez de servidores(as). melhoria da eficiência – cria uma pressão para a subida dos
Além disso, no precário ambiente econômico do Líbano, preços e a diminuição dos custos, incluindo salários. O setor
pessoas demitidas têm pouca probabilidade de encontrar emprego privado, por sua própria natureza, prioriza os lucros de curto
equivalente. O desemprego cresceu de 8,5%, em 1977, para mais prazo sobre qualquer outro benefício social. ■
de 20%, em 2000 – atualmente mais de um quarto da população Center for Development Studies (Mada)
sofre de desemprego total ou parcial.4 (Centro de Estudos do Desenvolvimento)
Arab NGO Network for Development (Annd)
(Rede Árabe de ONGs para o Desenvolvimento)
<annd@cyberia.net.lb>
As políticas de privatização ficaram limitadas a uma pequena elite que tomou o controle de
empresas públicas rentáveis e as transformou em monopólios privados. Em várias ocasiões, o
objetivo de reduzir a carga fiscal se voltou contra o próprio governo – que teve de pagar altos
custos para resgatar privatizações falidas. Para o público consumidor, os aumentos não
trouxeram benefícios. Há uma séria necessidade de revisar todas as políticas de privatização e
tornar o processo mais responsável e transparente.
O governo anunciou a política de privatização em 1983. Inicialmente, a população entendeu que somente as empresas
Representava uma nova abordagem para o desenvolvimento não-lucrativas seriam privatizadas. Entretanto, no fim, foram
nacional, complementando outras políticas como a Malaysia privatizadas mesmo as estatais mais lucrativas, como a Telekom
Incorporated, formulada para aumentar o papel do setor privado Malaysia (serviços de telecomunicações), Tenaga Nasional
no desenvolvimento econômico. Entre os objetivos, estava a (fornecedora de eletricidade) e Pos Malaysia (serviços postais).
redução da sobrecarga financeira e administrativa do governo Ativos da infra-estrutura nacional, como as estradas com pedágio e
para melhorar a eficiência e a produtividade e facilitar o os serviços-chave de hospitais governamentais, foram entregues a
crescimento econômico. grupos malaios, que receberam concessões de longo prazo para
Os mecanismos utilizados na privatização têm sido diversos, operar as empresas. Em muitos casos, a privatização transformou
incluindo a venda de ações ou ativos, o arrendamento de ativos, monopólios públicos em privados, que se tornaram propriedade
contratos de gestão, esquemas do tipo “construir, operar, de grupos de magnatas bem relacionados politicamente, fazendo a
transferir” (BOT, na sigla em inglês), “construir, possuir, operar” economia da Malásia ficar mais oligárquica.
(BOO, na sigla em inglês), “construir, transferir” (BT, na sigla em Do fim da década de 1980 a meados da década de 1990, o
inglês) e compra das ações por gerentes.1 A venda de ações plano de privatização parecia estar funcionando bem. Com
predomina na agricultura e na indústria manufatureira, nas previsões otimistas de receitas, as companhias envolvidas nos
finanças, imóveis e comércio, enquanto o esquema BOO é mais projetos de privatização recorreram com facilidade aos mercados
comum na infra-estrutura, como eletricidade, gás e água. de capitais e aos bancos para financiar o seu negócio de longo
Desde o início, a privatização tem sido um processo não- prazo, intensivos em capital. No entanto, quando aconteceu a
transparente. No começo, era realizada na base de “quem chegar crise econômica em 1997, muitas dessas companhias estavam
primeiro leva”. Projetos identificados para privatização, incluindo expostas, com pouco dinheiro em caixa e muitas dívidas. Agora,
os altamente rentáveis sob controle público, foram muitas vezes o governo enfrenta a estranha perspectiva de voltar a estatizar
entregues a indivíduos ou empresas com conexões políticas sem algumas das empresas privatizadas no país.
nenhum pagamento – entre elas estavam a United Engineers A privatização trouxe problemas fiscais porque o governo
Malaysia, Fleet Group, Renong, Vincent Tan Chee Yioun e Ananda foi forçado a realizar operações de resgate dos projetos de
Krishnan. Todo o processo de privatização prossegue atrás de privatização fracassados. Em 2000, pagou US$ 51 milhões para
portas fechadas e sem prestar contas ao público. reestatizar os serviços de esgoto. Naquela época, Bernard
Dompok, ministro do Departamento do Primeiro-Ministro,
afirmou que os serviços de esgoto eram um “caso especial”,
pois o governo tinha de “proteger o interesse público e evitar
interrupções no serviço”. Contudo, desde então, o governo
1 O esquema BOT envolve a construção das instalações pelo setor privado, que utiliza também recomprou a Malaysia Airlines e está em processo de
seus próprios recursos, operação dessas instalações durante um período conhecido assumir o controle do conglomerado Renong e de dois sistemas
como período de concessão e sua transferência para o governo no fim desse tempo.
de trens VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) por US$ 2,4 bilhões.
Durante o período de concessão, o setor privado pode auferir receitas diretamente
do público consumidor ou indiretamente, utilizando um intermediário, normalmente Mais preocupantes são os movimentos recentes para privatizar
uma instituição governamental. O esquema “construir, operar” (BO, na sigla em serviços básicos, como água, educação e atendimento à saúde.
inglês) é muito similar ao anterior, mas não inclui a transferência das instalações
para o governo. Os dois esquemas são normalmente acompanhados pela emissão de
Todos esses serviços têm sido amplamente acessíveis a um custo
uma licença e/ou concessão. muito baixo, especialmente para as pessoas de baixa renda.
3 IBRAHIM, Mohd Izham Mohd et al. Drug distribution systems in Malaysia: the
2 JIN, Foo Eu. Sell-off of water utility inevitable to douse rising expenses. New Straits privatisation of the General Medical Store. Apresentado na Conferência Nacional sobre
Times , 29 mar. 2002. Privatização e Financiamento do Atendimento à Saúde. Malásia, USM, Penang, 1997.
O ritmo das privatizações no país foi tão vertiginoso quanto o das sigla em espanhol), convertendo os fundos sociais mais importantes
falências provocadas pelo próprio governo. Assim, “das 1.115 do país em fundos financeiros, pondo-os à disposição dos grandes
empresas estatais que existiam em 1983, dez anos depois só grupos financeiros nacionais e estrangeiros. A reforma também
restavam 213”.2 Entre as companhias paraestatais vendidas estão afetou os serviços médicos, os seguros de acidente de trabalho, as
empresas estratégicas e secundárias, geradoras de lucros e creches e outros benefícios, ao promover a sub-rogação ou
ineficientes. Além disso, muitas dessas empresas foram compradas contratação de serviços com o setor privado e ao restringir benefícios
a preços muito inferiores ao seu valor real. sociais para aumentar o benefício das creches.4
O processo de privatização dos serviços públicos adquiriu Como está assinalado no Informe Alternativo sobre a Situação
diferentes modalidades. Em primeiro lugar, o desmantelamento dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no México, o governo
de instituições governamentais e a desregulamentação de sua mexicano estabeleceu uma ligação entre o desenvolvimento do
atividade para dar lugar ao livre jogo do mercado. Por exemplo, a sistema de seguridade social e os interesses do capital privado,
Comissão Nacional para a Subsistência Popular (Conasupo) – transformando sua essência solidária, de ajuda intergeracional,
encarregada da comercialização de grãos básicos e da fixação de participação e subsídios públicos em algo mercantil, que atenta
preços garantidos – terminou de ser desmantelada na década de contra um conjunto de direitos sociais garantidos tanto pela
1990, o que gerou impactos negativos sobre o direito humano à Constituição 5 como pelo Acordo Internacional dos Direitos
alimentação. Em segundo lugar, a transferência formal da Econômicos, Sociais e Culturais (Desc).6
administração de serviços para o setor privado, como no caso da As conseqüências dessa reforma “parecem configurar um
seguridade social e da energia elétrica. jogo de soma zero, onde o governo e o setor financeiro
ganham, enquanto a maioria dos segurados e das pessoas
Só promessas com direitos, especialmente aquelas de menores rendas e
Com a reforma legislativa de 1991, o governo de Salinas de Gortari mais desprotegidas, correm um alto risco de perder”. 7 Além
estabeleceu o Sistema de Poupança para a Aposentadoria (SPA), disso, é uma medida regressiva em termos de direitos
que converteu os fundos de pensões administrados pelo Estado em humanos, pois provocou a perda de direitos adquiridos. Por
fundos de capitalização individual com gestão privada. exemplo, aumentou o número de semanas de contribuição
Posteriormente, o governo de Zedillo promoveu a nova Lei do necessárias para obter a pensão por idade.
Seguro Social.3 Essa lei determinou que as contas individuais de
cada trabalhador ou trabalhadora passassem a ser administradas
pelas Administradoras de Fundos para a Aposentadoria (Afore, na
4 Baseado na análise de Asa Cristina Laurell. No hay pierde: todos pierden. Lo que
usted necesita saber sobre la nueva ley del Seguro Social (Instituto de Estudios de la
Revolución Democrática-Coyuntura, 1996).
5 Parte 29 do artigo 123 sobre a proteção ao bem-estar dos trabalhadores,
camponeses, não-assalariados e outros setores sociais, assim como suas famílias.
1 Coordenadora de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Programa Diplomacia
6 Artigo 9o sobre o direito de todas as pessoas à seguridade social, vigente para o
Cidadã, Deca Equipo Pueblo, A. C.
México desde 1981.
2 AGUSTÍN, José. Tragicomedia mexicana 3 – La vida en México de 1982 a 1994.
7 FOURNIER, Ma. de Lourdes; MORENO, Pedro H. Los problemas de la reforma
México: Editorial Planeta, 1998, p. 192.
zedillista de la seguridad social. In: LOMELÍ, Enrique Valencia. (Coord.). A dos años:
3 Vigente desde julho de 1997. la política social de Ernesto Zedillo. México: Red Observatorio Social, 1997, p. 202.
As privatizações não resultaram em nenhum benefício social para as pessoas mais pobres. As
empresas de energia e telefonia não somente subiram os preços dos serviços, que estavam
dolarizados, como também aumentaram as exigências de acesso ao serviço e pioraram sua
qualidade. Além de ser um país de pobres, a Nicarágua também é, hoje, uma nação às escuras.
Os indicadores socioeconômicos desenham o panorama do do país, com meio milhão de usuários e usuárias registrados.
desenvolvimento inadequado dos serviços sociais básicos na Dois anos depois de assinado o contrato entre o governo de
Nicarágua. De acordo com dados oficiais do Instituto Nacional de Alemán-Bolaños e a corporação espanhola, seu conteúdo ainda
Estatísticas e Censos (Inec), 43% da população nicaragüense vive não foi revelado ao público – embora seja um documento que
na pobreza, 17% na pobreza extrema e 40% em condições aceitáveis. interessa a toda a população.
Quase 3 milhões de pessoas não contam com os meios necessários
para atender às suas necessidades básicas. Estudos recentes revelam Exclusão generalizada
que, de 5,2 milhões de habitantes, 54% residem em áreas urbanas O monopólio violou as normas aprovadas, os prazos das tarifas,
e 73% das famílias possuem energia elétrica, enquanto somente o alcance, as condições e a qualidade dos serviços. Ou seja, o
40% têm energia nas áreas rurais. De acordo com dados oficiais, “estímulo empresarial” incluía operar com impunidade em relação
80% da população urbana e 28% da rural têm acesso à água potável. aos(às) usuários(as) e ignorar reclamações por cobranças
Têm acesso a serviços de saneamento ou de latrinas 95% dos indevidas (erros nas contas, cobrança de energia não-medida,NT
domicílios urbanos e somente 70% das residências rurais. contas atrasadas etc.), medições alteradas, serviços de iluminação
O processo de privatização foi iniciado na década de 1990, no pública cobrados, mas que não foram prestados, falhas de
governo de Violeta Barrios, quando foram implementadas voltagem, danos a eletrodomésticos, perda de produtos nas
mudanças radicais no sistema político e revertido o regime de empresas etc. Assim, a privatização da energia elétrica não trouxe
propriedade estatal instaurado após a Revolução Popular o impacto positivo de cobertura maior, nem tarifas mais baixas,
Sandinista. A decisão de privatizar os serviços básicos foi nem melhor qualidade de serviços. Na prática, as pessoas mais
concretizada no fim dessa década, no contexto de governos que pobres estão excluídas do acesso legal à energia elétrica.
abandonavam suas responsabilidades sociais e de políticas Durante a década de 1990, a geração de energia foi privatizada,
promovidas pelas instituições financeiras internacionais, como com exceção das hidrelétricas. Em 2002, o governo tentou
parte dos conhecidos pacotes de ajuste estrutural. privatizar as duas centrais hidrelétricas, Hidrogesa-Geosa e
Os incentivos para privatizar as empresas de serviços básicos, Empresa Nacional de Água e Esgoto (Enacal, na sigla em espanhol).
como ficou ilustrado no caso da energia elétrica domiciliar, são No entanto, as duas ações foram adiadas por causa de lacunas
desfrutados pela escala econômica de operação e pelo regime de legais e da crítica de setores (público consumidor, indígenas,
monopólio. O governo vendeu a subavaliada empresa estatal de empresariado, parlamentares) que formam opinião e exercem
energia à Unión Fenosa, um monopólio espanhol, com um acordo pressão contra esses processos.
de que essa empresa não sofreria sanções durante os dois Em setembro de 2002, a Assembléia Nacional aprovou a lei
primeiros anos de operação – uma prática lesiva sob os direitos 440, que proíbe fazer concessões de água para qualquer finalidade,
de consumo. Atualmente, a Unión Fenosa distribui 95% da energia e anunciou a elaboração da Lei Geral de Águas. A Enacal continua
Em 1996, a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha da numa taxa muito superior à entrada gerada pelas exportações. Os
pobreza no norte do Sudão era de 84,6% nas áreas urbanas e de empréstimos estrangeiros, longe de resolverem os problemas
93,3% nas rurais, e nenhum estado tinha um índice inferior a econômicos, tornaram-se eles próprios um problema ao
76% para os centros urbanos e 80% para as zonas rurais. Os provocarem a redução dos gastos públicos. A dívida externa
índices de pobreza e desnutrição devem ser muito mais altos no sudanesa tinha atingido US$ 24 bilhões no fim de 1999, um
sul do Sudão, dilacerado pela guerra, para o qual não há aumento de 77,4% em dez anos, com um serviço de dívida anual
estatísticas disponíveis. NE1 A guerra civil, que se estendeu maciço de mais de US$ 1,3 bilhão.1 NE3
geograficamente e aumentou de intensidade, tem tido custos De acordo com as estatísticas de 1990 do Ministério de
altíssimos em perda de vidas: desde 1983 até hoje, foram Recursos Humanos, a taxa de desemprego nacional era 16,5%.NE4
contabilizados cerca de 2,9 milhões de pessoas mortas. A guerra A taxa era de 13% para homens e 28% para mulheres, 15,5% nas
destruiu recursos naturais e financeiros, gerando instabilidade áreas rurais e 19,6% nas urbanas. Ironicamente, nos estados
social e política. A degradação ambiental, a seca e a má gestão onde o setor público era o maior empregador, o desemprego era
dos recursos também provocaram uma queda da bioprodutividade. maior, principalmente pelas demissões de trabalhadores e
As políticas de liberalização e privatização e os novos termos trabalhadoras associadas às exigências dos Programas de Ajuste
do comércio internacional têm tido um impacto negativo sobre a Estrutural (PAE) e das políticas de privatização.
economia nacional e o status socioeconômico da população. Esse O fato de a renda per capita ter aumentado do equivalente a
impacto se reflete especialmente no colapso das empresas US$ 284 em 1996 para US$ 288 em 1999NE5 é muito enganador,
manufatureiras nacionais por causa de sua fraca posição competitiva pois o poder de compra da moeda se deteriorou seriamente com
em relação aos produtos importados. O embargo econômico contra a alta inflação. A subida dos preços e o congelamento de salários
o Sudão, que durou a maior parte da década de 1990, tanto o são indicadores da deterioração das condições trabalhistas,
declarado como o não-declarado, limitou a entrada de ajuda para o explicando o êxodo do setor público.
desenvolvimento, empréstimos e investimentos. Esse foi o resultado As crianças trabalhadoras constituem 10% do total da força de
da política externa e internacional do regime governante. trabalho e 24% da população infantil total. Outro fenômeno social,
A Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD) per capita caiu de estreitamente vinculado ao trabalho infantil, são as crianças de rua
US$ 32, em 1989, para US$ 3, em 1995, e para menos de US$ 0,50, e sem-teto. As estatísticas disponíveis indicam que existem 66 mil
em 1997.NE2 A suspensão da AOD e o fluxo limitado de investimentos crianças vivendo nas ruas, um aumento de 5,4% entre 1996 e
estrangeiros diretos no setor produtivo também contribuíram para a 1999. Estima-se que essa cifra tenha atingido 13,9% em 2002.
saída de capitais e poupança (para comprar produtos importados)
1 ABDEL ATI, H. A.. International commitments and developments since 1992 and their
NE1 Porcausa da guerra civil, que se estende até hoje, é muito difícil obter informações implications for the implementation of Agenda 21. Sustainable development in Sudan
atualizadas sobre o Sudão. O governo proíbe a ação de organizações humanitárias ten years after Rio Summit: a civil society perspective. Cartum, 2002.
em algumas das zonas de conflito. Nem mesmo as agências da ONU têm dados
recentes sobre o país. Além de 2,9 milhões de pessoas mortas, cerca de 4 milhões NE3 A dívida externa aumentou para US$ 24,9 bilhões em 2000, com o serviço da dívida
estão sem ter onde morar. ficando em US$ 500 milhões (0,4% do Produto Interno Bruto/PIB).
NE2 Osúltimos dados disponíveis sobre AOD datam de 2001 e correspondem a US$ 171,8 NE4 Em 2002, a taxa nacional havia subido para 18,7%.
milhões, equivalente a US$ 5,3 per capita. NE5 Em 2001, a renda per capita era de US$ 330.
NE8 A última contagem aponta que a população urbana do Sudão totaliza 9,62 milhões de
pessoas, o equivalente a 37% da população.
NE9 Hoje, 86% da população urbana e 69% da população rural possuem água encanada.
Disparidades à mostra
O declínio dos investimentos públicos nos serviços tem refletido segurança), a interrupção da AOD e as sanções comerciais a
negativamente sobre o desenvolvimento humano. Isso é constatado que o país esteve sujeito durante a maior parte da década de
pela queda na ingestão calórica per capita e pelo aumento do 1990 são possíveis explicações.
percentual já alto da população que vive abaixo da linha da pobreza. • Embora a incidência de doenças tenha sido reduzida, a
Também está refletido no fracasso quase total de implementar mortalidade infantil e materna cresceu – o que somente pode
quaisquer das metas estabelecidas na Estratégia Nacional Integral ser atribuído à pobreza e a serviços de baixa qualidade.
nos campos da saúde, educação, água potável e saneamento. • O crescimento marcante do número de crianças nas ruas está
Várias tendências merecem atenção especial. diretamente vinculado à queda da matrícula escolar e às altas
• Apesar do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), da taxas de evasão. O número crescente de crianças nas ruas
balança comercial positiva e do crescimento da dívida externa, representa também uma ameaça à propagação da Aids.
há um declínio no orçamento para o desenvolvimento e nos • Todos os indicadores utilizados confirmam a persistência das
gastos sociais. Os altos gastos com a guerra (defesa e grandes disparidades regionais. ■
Referências
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MINISTÉRIO FEDERAL DA SAÚDE, E.P.I. Annual Statistical Report, 1996 e 1999. Cartum.
National Civic Forum (Fórum Nacional Cívico)
SUDÃO. Comprehensive National Strategy 1992–2002. Cartum: KUP, 1992. <h_abdelati@hotmail.com>
O Plano Estratégico de Redução da Pobreza (Perp) é uma resposta pela qual, em algumas culturas, o cônjuge sobrevivente deve
débil diante das proporções alarmantes da pobreza, e a manter relações sexuais com parentes do morto –, coloca as
liberalização da agricultura não trouxe benefícios para os mulheres em maior risco de se infectar pelo HIV.
agricultores e agricultoras nacionais por causa das barreiras das
altas tarifas e dos pesados subsídios nos mercados ocidentais. Vulnerabilidade
Embora na época da independência, em 1964, a economia Além da deficiência de renda, as pessoas pobres não têm acesso
zambiana fosse a mais forte da África Subsaariana, a Zâmbia de a pelo menos uma das necessidades básicas da vida, como
hoje está classificada como uma das nações mais pobres do mundo. alimentação adequada, serviços de saúde e educação, água
A pobreza prevalece mais nas áreas rurais (83%) do que nas potável, vestimenta e habitação. Essa carência material e social
urbanas (56%). Entretanto, estatísticas recentes mostram que a torna a pessoa pobre vulnerável a fatores externos, como
pobreza está em processo rápido de urbanização. Entre 1996 e calamidades naturais (secas e inundações), além de choques
1998, a pobreza urbana aumentou 10%. A propriedade da terra, econômicos. No caso de uma escassez de alimentos, o efeito
saneamento, disposição do lixo e acesso à água nas áreas combinado da pobreza e do HIV/Aids deixaria um grande setor
suburbanas, onde vive a maioria das pessoas pobres, constituem da população da Zâmbia em situação de risco.
problemas sérios. Em grande medida, as más condições sanitárias Os índices de desnutrição das crianças com menos de
são responsáveis pela alta incidência de surtos de cólera e diarréia 5 anos são altos, e a maioria delas tem poucas condições de
nas áreas urbanas durante a estação das chuvas. suportar qualquer perturbação no fornecimento de alimentos e
A pobreza infantil aumentou significativamente nos últimos água. Levando em conta que a Zâmbia passou por vários anos
dez anos, principalmente como resultado da pandemia do HIV/ sucessivos de seca e de inundações isoladas, muitas comunida-
Aids. Cerca de 75 mil crianças tornaram-se pedintes nas ruas des têm hoje uma capacidade limitada de suportar novos ou
para se sustentarem, além de irmãos e irmãs mais novos. Relatórios repetidos choques naturais ou ambientais. Além disso, as pes-
recentes mostram que 11.500 domicílios são chefiados por soas pobres são as principais vítimas de surtos de doenças (por
crianças. Crianças e jovens entre 6 e 24 anos sobrevivem em exemplo, da cólera) e carecem de recursos para adquirir servi-
condições extremamente duras, que incluem abusos físicos, ços médicos no caso de enfermidades curáveis ou que podem
trabalho infantil e prostituição. ser prevenidas – o que resulta em taxas de mortalidade especi-
Indicadores socioeconômicos indicam que as mulheres almente altas nessa população.
são mais pobres (65%) e vivem em condições mais deploráveis Em 1992, o governo retirou os subsídios aos insumos
do que os homens (52%). As mulheres pobres em geral não agrícolas e o apoio à comercialização de produtos. Mais de
têm oportunidades econômicas. E a luta pela sobrevivência 2 milhões de pessoas na Província do Sul estão passando fome,
leva as mulheres a realizarem atividades desumanizadoras, como conseqüência de políticas de mercado e da seca. Algumas
expondo-as a altos riscos. A prostituição como atividade pessoas estão comendo cães para sobreviver.
econômica está altamente disseminada, e a mortalidade materna A pandemia do HIV/Aids tem devastado a Zâmbia. A
é excepcionalmente alta. Os papéis de gênero, combinados com esperança de vida no nascimento, que havia alcançado 54 anos
algumas normas tradicionais e culturais, aumentam a em meados da década de 1980, caiu para 37 anos. Estatísticas
vulnerabilidade das mulheres. A posição inferior na sociedade, recentes mostram que 1 milhão de pessoas (10%) estão
associada a alguns fatores culturais – como a “limpeza sexual”, infectadas com o HIV. O número anual de mortes relacionadas
Banco Mundial humanos. Também luta para estimular a inclusão básicos, emprego, políticas sociais, relações
de uma perspectiva de gênero dentro e fora do trabalhistas, administração sindical, condições de
O Informe do Desenvolvimento Mundial 2003 :
sistema das Nações Unidas. trabalho e proteção social.
desenvolvimento sustentável numa economia
Endereço: daw@un.org Endereço: ilo@ilo.org
dinâmica trata da relação entre os objetivos
contrapostos das políticas para reduzir a pobreza, Sítio: www.un.org/womenwatch/daw Sítio: www.ilo.org
manter o crescimento, melhorar a coesão social A Ilolex é uma base de dados trilíngüe que contém
e proteger o meio ambiente. O relatório enfatiza Divisão das Nações Unidas para os acordos e recomendações da OIT, ratificações,
que foram identificadas várias políticas positivas Política Social e Desenvolvimento comentários da Comissão de Especialistas e do
que não puderam ser implementadas por causa Comitê de Liberdade Sindical, reclamações,
Seu principal objetivo é fortalecer a cooperação interpretações, estudos e numerosos documentos
de problemas de distribuição e obstáculos para internacional para o desenvolvimento social,
desenvolver melhores instituições. O informe relacionados a essas questões.
especialmente no que se refere aos três temas Endereço: infonorm@ilo.org
está disponível em: fundamentais da erradicação da pobreza, geração
http://econ.worldbank.org/wdr/wdr2003/ Sítio: www.ilo.org/ilolex/spanish/index.htm
de emprego e integração social, que permitam a
É possível obter informações sobre projetos construção de sociedades seguras, justas, livres e
específicos ou sobre políticas do Banco em: harmoniosas, visando uma melhor qualidade de OMS
The World Bank vida a todas as pessoas. (Organização Mundial da Saúde)
Endereço: pic1@worldbank.org Endereço: social@un.org Dirige e coordena a esfera da saúde internacional.
Sítio: www.worldbank.org Sítio: www.un.org/esa/socdev/dspd.htm Seu objetivo é o de “que todas as pessoas atinjam o
nível mais alto possível de saúde”. Desde sua fundação
CEA FAO em 1948, a OMS deu grandes contribuições para
(Comissão Econômica das (Organização das Nações Unidas um mundo mais saudável.
Nações Unidas para a África) para Agricultura e Alimentação) Endereço: info@who.int
Sítio: www.who.int
Endereço: ecainfo@uneca.org Fundada em 1945, com o mandato de elevar os
Sítio: www.uneca.org índices de nutrição e de vida, incrementar a
ONU
produtividade agrícola e melhorar as condições da
população rural. Atualmente, é uma das maiores (Organização das Nações Unidas)
Ceap
(Comissão Econômica das Nações agências especializadas do sistema da ONU e a Disponibiliza na Internet informações gerais sobre
principal organização dedicada à agricultura, o sistema, sua estrutura e missão. Também estão
Unidas para a Ásia e Pacifico) silvicultura, pesca e desenvolvimento rural. acessíveis bases de dados, estatísticas, documentos,
Endereço: webmaster@unescap.org Endereço: FAO-HQ@fao.org notícias e comunicados de imprensa.
Sítio: www.unescap.org Sítio: www.fao.org A partir de 1990, as Nações Unidas realizaram uma
A Faostat é uma base de dados integrada on-line série de conferências e cúpulas internacionais. A
Cepal que contém mais de 1 milhão de séries anuais de Declaração e o Programa de Ação da Cúpula
(Comissão Econômica para cerca de 200 países e territórios, com estatísticas de Mundial sobre Desenvolvimento Social (CMDS) e
agricultura, nutrição, produtos de pesca, produtos a Declaração e a Plataforma de Ação da IV
América Latina e o Caribe) Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim,
florestais, ajuda alimentar, aproveitamento de terras
Endereço: publications@eclac.cl e irrigação e população. estão disponíveis em: www.socialwatch.org/
Sítio: www.cepal.org Endereço: faostat-inquiries@fao.org Sítio: www.un.org
Sítio: www.apps.fao.org
Coleção de Tratados das Nações Unidas Pnud
Essa é uma base de dados na Internet elaborada OCDE (Programa das Nações Unidas
e atualizada de forma regular pela Seção de (Organização para a Cooperação para o Desenvolvimento)
Tratados do Escritório de Assuntos Jurídicos da e o Desenvolvimento Econômico) Desde 1990, publica anualmente o Relatório do
ONU. Oferece acesso a mais de 40 mil tratados Desenvolvimento Humano, com o Índice de
e acordos internacionais. Como “existe uma necessidade urgente de um sistema
comum de acompanhamento das metas básicas do Desenvolvimento Humano (IDH). O índice mede o
Sítio: www.untreaty.un.org progresso socioeconômico relativo das nações. O
desenvolvimento e também para não aumentar a
sobrecarga de relatórios dos países-membros”, o Relatório do Desenvolvimento Humano 2003 trata
DAW Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da das Metas de Desenvolvimento do Milênio, com
(Divisão para o Progresso da Mulher) OCDE criou um conjunto de indicadores básicos. estatísticas sobre os avanços e retrocessos no
Uma coleção inicial desses indicadores atualizados combate à pobreza em mais de 170 países. O estudo
Como parte do Departamento de Assuntos
está disponível na Internet. aponta a cooperação internacional como o caminho
Econômicos e Sociais (Desa) do Secretariado da
Endereço: dac.contact@oecd.org para se chegar à estabilidade e ao crescimento.
ONU e com base na concepção de igualdade da
Carta das Nações Unidas, a Divisão para o Progresso Sítio: www.undp.org.br
Sítio: www.oecd.org/dac/goals
da Mulher promove a melhoria do status das
mulheres e sua igualdade com os homens. Seu OIT Popin
objetivo é garantir a participação das mulheres em (Organização Internacional do Trabalho) (Divisão de População
todos os aspectos da atividade humana, em das Nações Unidas)
condições de igualdade com os homens. A DAW Desde sua criação em 1919, tem atribuído particular
importância às atividades de estabelecimento de Endereço: population@un.org
promove as mulheres como participantes e
beneficiárias eqüitativas do desenvolvimento normas. Suas 174 Convenções e 181 Recomendações Sítio: www.un.org/popin
sustentável, paz e segurança, governo e direitos abrangem áreas que incluem os direitos humanos
Endereço: efa@unesco.org abriu um espaço fundamental na Internet para os ATD Fourth World (Ajuda ao Quarto Mundo)
Sítio: www.unesco.org/education/efa/ed_for_all temas das mulheres. Foi criado para monitorar os Dedicada à superação da pobreza extrema, sua meta
resultados da IV Conferência Mundial sobre a é explorar todas as possibilidades de parcerias com
Mulher, realizada em Pequim em 1995. A DAW, o famílias que vivem na pobreza crônica e estimular
Unicef
Unifem e o Instituto Internacional de Pesquisa e que mais pessoas participem desse esforço.
(Fundo das Nações Unidas Formação para o Progresso da Mulher (Instraw)
Endereço: information@atd-fourthworld.org
para a Infância) iniciaram esse projeto em 1997.
Sítio: www.atd-quartmonde.org
O Estado Mundial da Infância 2003 aborda a Endereço: womenwatch@un.org
participação infantil – o direito de interferir na Sítio: www.un.org/womenwatch Canadian Centre for Policy Alternatives
formulação de políticas públicas que afetam (Centro Canadense de Políticas Alternativas)
diretamente a vida das crianças. O relatório trata da Realiza e promove pesquisas sobre problemas de
responsabilidade dos governos, famílias e justiça social e econômica. Produz relatórios de
organizações da sociedade civil, mostrando pesquisa, livros, folhetos e outras publicações,
exemplos bem-sucedidos de participação infantil incluindo o The Monitor – um resumo mensal da
em todas as regiões do mundo. pesquisa e opinião progressistas.
O relatório pode ser obtido na: Endereço: ccpa@policyalternatives.ca
Unicef House Sítio: www.policyalternatives.ca
Endereço: netmaster@unicef.org
Sítio: www.unicef.org/spanish/sowc02 Choike
A base de dados estatísticos do Unicef contém Portal concebido com a perspectiva do Sul, para
informações detalhadas por país, utilizadas para as ajudar pessoas interessadas nos temas relevantes
estimativas do fim da década. Análises globais e para os países em desenvolvimento. Choike não é
regionais resumidas, assim como apresentações uma lista exaustiva, mas uma seleção de sítios
gráficas dos principais avanços durante a década, úteis e relevantes. Espera contribuir para o
podem ser consultadas no sítio, além de um fortalecimento das organizações da sociedade civil,
conjunto completo de ferramentas técnicas para o que é essencial para a democracia. É um produto
realizar pesquisas por agrupamento de indicadores da NGONET, projeto iniciado em 1991 para estender
múltiplos (Mics, na sigla em inglês). às ONGs do Sul os benefícios das novas tecnologias
Endereço: webmeistr@childinfo.org de informação e comunicação. O portal está
Sítio: www.childinfo.org hospedado no Instituto do Terceiro Mundo (IteM),
uma entidade independente e sem fins lucrativos.
Endereço: info@choike.org
Sítio: www.choike.org/links_esp
Embora, para alguns dos compromissos, já tenhamos informação O retrocesso, partindo de esperança de vida inferior a 60
para o ano 2000, o atraso em obter dados impossibilita utilizar anos, está concentrado em 24 países africanos, com diminuição
esses valores para todos os indicadores. A alternativa continua média de cinco anos de vida, chegando, no ano 2000, ao patamar
sendo levar em conta os ritmos de avanço ou retrocesso em função de 44,3 anos. Por sua vez, sete desses países apresentaram
dos últimos dados disponíveis e seguir trabalhando com a meta retrocessos muito acentuados no período (Botsuana, Quênia,
de 2000 como ponto de comparação. Lesoto, Namíbia, Suazilândia, Zâmbia e Zimbábue), com perdas
Na área educacional (Meta 1 – universalização e conclusão de até 18 anos na esperança de vida (Botsuana). Essa grave
do ensino primárioNE), a evolução no fim do período mostra deterioração pode ser associada ao peso importante de fatores
novamente um número alto de países sem informações disponíveis como a Aids, desnutrição e conflitos armados, que continuam
nas fontes internacionais. Em relação à meta de universalização afetando especialmente o continente africano. Finalmente, é
do ensino primário, medida pela taxa de matrícula líquida, de um preocupante também a evolução de um grupo de 11 países que,
total de 132 países com informações – para os quais foi possível havendo iniciado o período com a meta cumprida, terminam a
calcular o índice de avanço –, foram observados retrocessos em década com um retrocesso em relação à situação inicial.
24 países, três dos quais significativos. Avanços rápidos para
cumprir a meta de 2000 foram observados num conjunto de Mortalidade e desnutrição infantil
19 países (12%), enquanto outros 16 avançaram em ritmo As informações do acompanhamento da Meta 3, sobre a
insuficiente. No que diz respeito à conclusão do ensino primário mortalidade das crianças menores de 1 e de 5 anos no ano 2000,
(implementada por meio do estudo do percentual de crianças de também permitem fazer uma avaliação final desse compromisso.
uma coorte que alcança a 5 a série), dos 130 países com A mortalidade infantil de menores de 1 ano foi reduzida durante
informações, menos da metade tinha dados posteriores a 1997, e a década em um grande número de países (80%), porém somente
não existiam, em nenhum caso, informações para o ano 2000 um terço deles, 47 países, conseguiu atingir a meta proposta. Em
necessárias para uma avaliação final do compromisso. 110 países, os avanços foram insuficientes, e, em 13, não houve
Levando em conta os diferentes ritmos observados nos países, mudanças durante toda a década. Ao mesmo tempo, foram
chama muito a atenção que cerca de 30% tenham experimentado observados retrocessos em 17 países, entre os quais se destacam
algum tipo de retrocesso, comparado aos 37% que evoluíram Iraque e Botsuana, pela dimensão desses retrocessos.
favoravelmente, embora nem todos em ritmo suficiente (10%). A mortalidade infantil de menores de 5 anos seguiu evolução
Os retrocessos apresentam diferentes magnitudes: enquanto para similar. Dos 192 países com dados disponíveis, 156 conseguiram
Congo, Etiópia, Gabão, Lesoto e Índia o retrocesso foi leve, para reduzir os índices de mortalidade, porém somente 61 atingiram a
Ruanda, Mauritânia e, principalmente, Malauí esse retrocesso foi meta. O grupo de países que sofreu retrocessos na mortalidade
mais significativo. No grupo de países que sofrem retrocessos, infantil também apresentou retrocessos no indicador de
deve-se ressaltar o fato de que 24 deles que partiam com a meta mortalidade de menores de 5 anos e as situações mais críticas
cumprida em 1990 tiveram diminuição em seus valores, em alguns também foram as do Iraque e Botsuana, onde os patamares foram
casos caindo abaixo de 80% do compromisso (Hungria, Djibuti, praticamente duplicados.
Senegal e Zimbábue). O acompanhamento da meta de reduzir à metade a mortalidade
A meta de 60 anos para o indicador de esperança de vida materna entre 1990 e 2000 foi impossibilitado pela falta de
(Meta 2) não significou um esforço adicional para a maioria dos informações comparáveis no tempo, em virtude da mudança nos
países (62% dos 198 para os quais havia informações disponíveis) critérios de medição das estatísticas internacionais nessa área. Os
que, no início da década de 1990, já haviam superado esse valor. índices desse indicador para cada 100 mil crianças nascidas vivas
No entanto, salvo exceções, o restante dos países não conseguiu apresentam um grau muito alto de heterogeneidade nos diferentes
superar esse limiar no ano 2000, e, em 12% deles, havia diminuído países, e, portanto, as metas refletem situações muito distintas.
a esperança de vida na década. Somente seis países ainda não Como exemplo dessa situação, vale a pena assinalar que as médias
alcançaram essa meta: Bangladesh, Bolívia, Comores, Índia, regionais de mortalidade materna variam entre 30 (Europa e Ásia
Kiribati e Paquistão. Outros 26 países estão melhorando sua Central) e 567 para cada 100 mil crianças nascidas vivas (África
situação, ainda que de forma insuficiente. Subsaariana). Nos limites extremos, é alarmante a situação de
Serra Leoa e de Ruanda, com valores superiores a 2 mil mortes
maternas para cada 100 mil crianças nascidas vivas.
NE Neste relatório, “educação primária, “ensino primário” e “educação básica” A tabela da Meta 5 apresenta a provisão diária de calorias
correspondem às primeiras cinco séries de escolaridade. No Brasil, atualmente a per capita como um indicador da segurança alimentar. Embora a
educação básica é constituída por educação infantil (creche e pré-escola), ensino
fundamental (antigo primeiro grau) e ensino médio (antigo segundo grau), incluindo
meta não estabeleça o valor determinado a ser atingido, foram
as modalidades de ensino especial e de jovens e adultos(as). utilizadas as metas da Organização das Nações Unidas para
Segurança Saúde e
Educação Saúde alimentar e Saúde esperança Água potável
primária infantil nutrição infantil reprodutiva de vida e saneamento
% % % % % %
Avançando significativamente
ou meta já atingida 10,5 24,5 24,2 10,5 6,1
Total de países com informação 153 192 161 162 197 124
% % % % % %
os gastos com defesa e com o serviço da dívida. Gastos públicos Gastos Gastos Serviço total
À luz das novas informações, persiste o que já foi observado com educação públicos com militares como da dívida
como % do PNB saúde como % % do PIB como % do
na edição anterior: existe uma evolução favorável dos gastos do PIB PIB
públicos em todas as áreas. Somente nos gastos referentes
1985/87-1995/97 1990-1998 1990-2000 1990-2000
aos serviços da dívida externa, observa-se certo equilíbrio entre
avanços e retrocessos. 1. Avanço
significativo 29,6 21,5 27,7 34,5
No que diz respeito aos casos extremos na área de gastos (mais de 1%)
com educação, observam-se incrementos superiores a 2,5%
em educação (Jamaica, Bolívia, Paraguai, Polônia, Letônia, 2. Algum
avanço (menos 32,0 39,2 45,5 19,1
Lesoto, Santa Lúcia e Moldávia) e reduções superiores a 5% de 1%)
(Mongólia e Suriname).
3. Estagnado 4,0 6,2 8,9 0,9
Os países com maiores aumentos (superiores a 2% do PIB)
nos gastos com saúde são Alemanha, Bolívia, Belarus, Colômbia, 4. Algum
Estônia, Israel e Samoa. Os países com maiores reduções retrocesso 17,6 24,6 11,9 10,0
(menos de 1%)
(superiores a 2%) são Geórgia, Quirguistão e Macedônia.
Como foi dito, os gastos militares e os juros da dívida 5. Retrocesso
significativo 16,8 8,5 5,9 35,5
externa geralmente levam a culpa de serem despesas que
(mais de 1%)
prejudicam a alocação de recursos para a área social. Por
isso, a redução desses gastos é considerada um êxito para o Total de países 125 130 101 110
desenvolvimento social. Com as últimas informações Avanços e
disponíveis, os países situados nos extremos da distribuição, retrocessos
agrupados
de acordo com esses parâmetros, são Kuweit, Federação
Russa, Omã e Moçambique – cujos gastos militares foram Avanços 61,6 60,8 73,3 53,6
reduzidos em mais de 5%. Por outro lado, os países que
Retrocessos 34,4 33,1 17,8 45,5
aumentaram seus gastos militares em mais de 2% do PIB são
Com base nas últimas informações disponíveis para esta Tratamento dos dados no cálculo dos índices de avanço
edição, o Social Watch apresenta um resumo da situação dos
• Quando o dado disponível se refere a um período (por
países em relação às metas do ano 2000, estabelecidas nos
exemplo: 1990–1994) e não a um único ano, a taxa de variação
compromissos assumidos pelos governos na Cúpula Mundial
foi calculada baseada nas informações correspondentes ao
sobre Desenvolvimento Social (CMDS), em Copenhague, e na
meio do período (nesse exemplo, 1992).
IV Conferência Mundial sobre a Mulher (CMM), em Pequim.
Além disso, o relatório incorpora o acompanhamento dos • Nas tabelas em que os dados de cada país correspondem a
compromissos assumidos na Declaração do Milênio, com uma um ano específico, a taxa de variação foi calculada com base
visão crítica sobre as novas metas estabelecidas no documento. nesses dados, considerando-se que a informação era mais
Quatro conjuntos de tabelas foram construídos. O primeiro precisa do que no método alternativo baseado nos períodos.
corresponde às 12 metas da Cúpula de Copenhague. Um • Nos casos em que a meta não está determinada nos
resumo das informações dessa tabela – Avanços e retrocessos compromissos por um valor numérico, foram utilizados
no cumprimento das metas de ação de Copenhague – agrupa critérios específicos, explicados em cada caso, para avaliar as
os objetivos de acordo com seis áreas temáticas. O segundo metas e o seu acompanhamento.
conjunto de tabelas está constituído em função de indicadores • Finalmente, nas tabelas relativas a Avanços e retrocessos e à
que medem os avanços e retrocessos na evolução da distância Situação atual, foram aplicados outros instrumentos de
entre os gêneros, distribuição dos gastos públicos (educação, avaliação, levando em conta unicamente os valores dos
saúde, defesa e serviço da dívida externa), aumento da ajuda indicadores, independentemente das metas. Para essas tabelas,
para o desenvolvimento e ratificação dos principais acordos e foi adotado o critério de classificação que ordena países em
convenções internacionais. O terceiro conjunto inclui uma nova função da situação atual e dos avanços e retrocessos, de acordo
tabela de resumo que ilustra o progresso na direção dos com a distribuição de valores de cada variável.
objetivos de desenvolvimento anunciados na Cúpula do
Milênio. Finalmente, o quarto bloco incorpora a seleção dos Metas e acompanhamento
temas principais do desenvolvimento social tratados nas
Dando seguimento à estratégia de monitoramento que o Social
respectivas reuniões de cúpula.
Watch tem empregado desde 1997, as metas estabelecidas pelos
governos, seus avanços e retrocessos são avaliados meta por
Fontes
meta. Apresentamos um conjunto de tabelas que ilustra a evolução
Embora persistam as dificuldades para obter e tratar os dados,1 dos países no que diz respeito aos compromissos assumidos por
mantivemos os critérios já adotados para selecionar as fontes de seus governos na CMDS e na IV CMM. Há também uma tabela de
informação. Continuamos a utilizar a fonte mais recente fornecida resumo, em ordem alfabética, na qual os indicadores estão
pelas organizações internacionais mais reconhecidas. agrupados de acordo com grandes áreas temáticas.
Consideramos esses dados confiáveis, mesmo diante de mudanças O Social Watch escolheu as 13 metas mais importantes entre
surpreendentes, que pudessem ter diferentes interpretações ou aquelas mensuráveis quantitativamente, embora, como nos anos
corresponder a causas diversas. anteriores, não tenha sido possível fazer o acompanhamento da
• Quando os dados mais recentes não se encontram nessas 13a – “melhorar a disponibilidade de habitações econômicas e
fontes, escolhemos, entre as demais alternativas, as fontes adequadas para todas as pessoas, de acordo com a Estratégia
secundárias que nos anos anteriores mostraram maior Mundial de Habitação para o ano 2000” – porque não se dispunha
concordância sistemática com as fontes mais reconhecidas. de indicadores apropriados para os países. Nos demais temas,
• Quando havia fontes alternativas, escolhemos aquela com escolhemos um ou mais indicadores. A pertinência do indicador
maior autoridade no assunto tratado pelos dados. escolhido varia em cada caso. Escolhemos aqueles mais de acordo
com as dimensões que queríamos medir e que estavam disponíveis
• Quando não pudemos aplicar nenhum dos critérios anteriores,
para um número suficiente de países.2
escolhemos a fonte que oferecia a maior cobertura de países.
Para os compromissos referentes a metas posteriores ao ano
2000, foi decidido ajustar todas as seqüências à década de
referência (1990–2000).
1 Por exemplo, a falta de homogeneidade das datas para as quais existe informação e
mesmo a existência de diferenças significativas entre as estatísticas de fontes 2 Esses indicadores e suas respectivas tabelas continuam sendo os mesmos da
distintas referentes ao mesmo ano. edição anterior.
6 A taxa de matrícula bruta foi escolhida porque tinha maior cobertura entre os países.
Embora essa taxa inclua a matrícula de pessoas que não estão mais em idade
escolar, considerou-se que isso não traria desvios para a razão mulheres/homens –
o indicador que mede a distância entre os gêneros.