Editorial - Thiago Falcão e Kishonna Gray

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Editorial vol. 40 n.

2
Thiago Falcão1
Kishonna Gray2

O jogo é um fenômeno particularmente elusivo. Sua natureza foi largamente discutida ao longo
do último século, mas a acepção da palavra nunca encontrou uma compreensão ideal em português.
Nossa ideia de ‘jogo’ neste dossiê não parte apenas de uma percepção voltada para os videogames –
como costumeiramente esperamos, nos dias de hoje, quando alguém profere o termo – mas sim para
uma condição inerente e incontornável da existência humana. O jogo é aquilo que nos move: que articula
a cultura, que cria o mundo; que oferece modos de ver e sentir; que pauta a existência infantil que foi tão
largamente apropriada na contemporaneidade.
Tal compreensão do jogo como algo inerentemente positivo – ‘bom’ – é largamente difundida
nas Ciências Sociais e Humanas – e, por conseguinte, no campo da Comunicação, mas ela guarda consigo
uma série de agenciamentos que por muito tempo passaram despercebidos e que simplesmente a tornam
incapaz de compreender as condições a partir das quais o fenômeno se estrutura nos dias de hoje. Esta
perspectiva elementar, que exime o jogo de tudo que não é abertamente produtivo e humanista, colabora
para sua condição negligenciada como chave importante para o entendimento dos fenômenos sociais.
Como podemos ser capazes de entender uma cultura particularmente voltada para a transformação
dos fatos da esfera pública em memes, por exemplo, sem que contemplemos dimensões tão óbvias e
ululantes do jogo como mediador de discursos e performances? Como compreender os embates políticos
–partidários ou mesmo eventos midiáticos, entre eles, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da
COVID-19 – sem que nos debrucemos sobre gracejos e encenações agenciadas a partir de uma negociação
entre a lógica das plataformas e a lógica do jogo?
Em paralelo a esta compreensão, um dos efeitos mais perniciosos do capitalismo neoliberal foi
a colonização do jogo: a apropriação de dinâmicas criativas e do lúdico em favor do ritmo acelerado de
produção e acumulação assumidas como regra pelas sociedades pós-industriais. A corrupção do impulso
lúdico em favor da produção de materialidades, sociabilidades, subjetividades específicas. Esse problema
foi explorado por uma série de pensadores do campo dos game studies, mas não passou despercebido
por filósofos e teóricos culturais – pensadores como Byung Chul–Han, Jonathan Crary e Mark Fisher, entre
outros, que dispensaram atenção à discussão, sublinhando a forma através da qual o uso de mecânicas
oriundas dos videogames no gerenciamento e na manutenção do mundo do trabalho e da vida acaba
por eviscerar o sentido lúdico da atividade, que é reduzida apenas à carcaça insidiosa da produtividade
neoliberal.
Os artigos que compõem a primeira parte deste dossiê, assim, versam sobre os mais variados
temas no que diz respeito ao modo como o jogo foi transformado e é encenado nos dias de hoje, no
âmbito do neoliberalismo e das disputas em torno deste sistema que não deve ser considerado

1
Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
2 University of Kentucky, USA
meramente como ‘econômico’, mas sim enquanto condição para o desenvolvimento de uma racionalidade
particular. O intuito desta diversidade é, em nossa percepção, oferecer uma representação diversificada
do contexto, ilustrando assim sua dimensão. Se o jogo deve ser considerado forma agencial, compreensão
que o próprio Miguel Sicart oferece em seu artigo, compreender quais são os horizontes a partir dos quais
podemos exercer uma subjetividade particular se transforma em nossa questão primordial, sobretudo
quando contemplamos a real extensão do processo de apropriação, reestruturação, reculturalização da
própria noção de jogo.
Em Playful capitalism, or Play as an instrument of the capital, artigo que abre esta edição,
Miguel Sicart, professor associado do Centro de Pesquisa em Jogos de Computador da IT University of
Copenhagen, se aproxima do fenômeno do jogo de forma serena, compreendendo o jogo a partir de
uma posição de unificação de suas condições ontológicas ao mesmo tempo que se afasta de perspectivas
românticas, escapistas, improdutivas. O jogo, segundo Sicart, não é separado do mundo, não existe um
círculo mágico e o lúdico sempre pode ser estudado no contexto do político, social, cultural e ético. Com
isso, o autor se aproxima de uma problemática que busca compreender o jogo como forma de agência,
em detrimento de sua usual compreensão enquanto atividade, de forma mais aberta, ou objeto, em uma
condição mais específica.
Aaron Trammell, professor assistente na University of California Irvine, em Playing with letters
and landscapes: interacting with empire in early 19th century print learning aides explora outra dimensão
da racionalidade capitalista e de sua pervasividade ao discutir um elemento histórico do processo
educacional: cartas ilustradas utilizadas para auxiliar no processo de alfabetização que, por sua vez, emula
várias formações discursivas prevalentes na sociedade: tropos nacionalistas, militaristas, geográficos,
de trabalho e lazer. Em seu argumento, Trammell explora de forma radical, a partir de uma percepção
dos aspectos materiais da mídia analógica, como certos significados são carregados por inscrições
argumentavelmente lúdicas e como estes, em contrapartida, são chaves para o entendimento do discurso
que envolve videogames e outros textos acessíveis a partir de mídias digitais.
Em Do ‘The Scratchware Manifesto’ à ‘Game Workers Unite’: manifestos e reivindicações
trabalhistas em duas décadas de videogame independente, Beatriz Blanco e Aline Job se debruçam sobre
a questão do trabalho na indústria dos videogames, um dos tópicos mais recorrentemente discutidos
pelo jornalismo especializado e pela comunidade nas redes sociais, a partir do resgate do manifesto pelo
Scratchware. Blanco e Job retomam não só a importância desta iteração em particular, mas adentram o
próprio gênero do manifesto, sublinhando sua força simbólica e colocando em perspectiva tanto a relação
do ‘The Scratchware Manifesto’ com questões contemporâneas sobre a produção de games de forma
mais ampla quanto seu aspecto particular no contexto brasileiro.
Bruno de Paula, em ’Emergent countries play too!’: the Zeebo console as a (partial) decolonial
project’, propõe um estudo do lançamento do Zeebo, console de videogame produzido e vendido no
Brasil. Seu trabalho contrasta aspectos sociais, econômicos e técnicos que mediaram a relação entre o
console brasileiro e o cenário internacional da indústria de games, dominado por lógicas impostas pelas
condições de trabalho e de investimento vigentes no Norte Global.
Filipe Mostaro e Leonardo de Marchi, em O encantador de serpentes: Tite e a transformação da
figura de treinador de futebol sob a ideologia neoliberal, propõem uma reflexão em torno da representação
midiática do técnico de futebol Tite, em especial no perfil publicado pela revista Você S.A., como processo
que expõe indícios de um enquadramento discursivo da figura do treinador. Esse enquadramento reflete,
segundo os autores, preceitos ideológicos e discursivos típicos do capitalismo neoliberal, que enxerga
qualquer dimensão da vida sob o filtro da lógica da gestão empresarial.
Leonardo Reitano, em Platinar jogos: um projeto enunciativo psicopolítico, parte de uma
perspectiva psicopolítica para perceber a apropriação empreendida pela racionalidade neoliberal sobre as
dimensões formais dos games, construindo uma crítica a partir do conceito de flow e da semiótica tensiva
sobre a construção de metaobjetivos junto a uma prática desta completude traduzida no ato comumente
conhecido como ‘platinar’.
Em Upando com meninas empoderadas: identidades mobilizadas em práticas discursivas nas
streams de Samira Close, Maria de Lourdes Rossi Remenche, Gilmar Montargil e Nívea Rohling se debruçam
sobre Samira Close, drag queen e streamer, para discutir fluidez, queerness e resistência no contexto
gamer, que é reconhecido como particularmente conservador e reacionário. Em seu artigo, os autores
analisam as performances de Close para compreender de que forma improvisos, mediações e uma fluidez
subjetiva ajudam-na a produzir sentido e subverter as noções de gênero ao transitar por vários campos
demarcados da sexualidade. A atitude e o comportamento de Close, afirmam os autores, configura nas
práticas discursivas do queergaming um importante locus de afirmação, representatividade e luta contra
as violências, preconceitos e discursos heterohegemônicos que ainda permeiam a cultura gamer.
Por fim, Ivan Mussa encerra a primeira parte deste dossiê com uma resenha do livro A Precarious
Game: The Illusion of Dream Jobs in the Video Game Industry, de autoria de Ergin Bulut, que se enseja,
de forma incontornável, como uma das mais relevantes discussões sobre trabalho e indústria dos games,
problematizando não apenas sua dimensão mais previsível, comprometida com uma racionalidade
neoliberal encenada a partir da ausência expressiva de organizações sindicais, do individualismo, das
relações de poder entre os desenvolvedores e do abuso e assédio comumente noticiados pela mídia
especializada, mas, principalmente, como todas essas condições se relacionam com um afeto e uma
percepção do jogo que alude à discussão que dá início a este editorial – uma percepção naturalmente
voltada para a criatividade, o aprendizado, o júbilo. Por trás da ilusão do sonho de trabalhar com games,
Bulut “revela mecanismos de coibição da agência dos desenvolvedores, estruturas de domesticação do
trabalhador e o transbordamento dos efeitos nocivos dessa dinâmica para além do ambiente de trabalho,
atingindo a saúde mental dos indivíduos, além de sua vida pessoal” (p. 3), sublinha Mussa, em uma
resenha que medeia de forma muito apropriada o conteúdo do livro.
No mais, esta edição não seria possível sem o valioso trabalho da equipe editorial da Revista
Contracampo, nem sem o auxílio dos colegas que representam o campo dos game studies, que buscaram
diálogo e atuaram na condição de pareceristas, muitas vezes se debruçando sobre mais de um artigo no
processo – nosso muitíssimo obrigado a esta dimensão transparente do processo editorial.

Boa leitura!
EQUIPE EDITORIAL

Editoras-chefes
Ariane Holzbach (UFF)
Camilla Quesada Tavares (UFMA)

Editores-executivos
Paula Fernandes (coordenadora)
Caio Melo
Daniel Rios
Daniela Araújo
Gabriel Ferreirinho
Lucineide Magalhães
Matheus Bibiano
Renata Menezes Constant
Rodrigo Reis

Triagem
Mayara Araújo (coordenadora)
Lieli Loures

Revisão
Ana Luiza de Figueiredo Souza (coordenadora)
Ana Paula Oliveira
Beatriz Medeiros
Edylene Severiano
Guilherme Popolin
Kárin Klém
Larissa Carvalho
Letícia Sabbatini
Pedro Alves
Rodrigo Quinan
Wilian de Abreu

Tradução / Versão
Leonam Dalla Vecchia (coordenador)
Deborah Santos
Gisele Delatorre
Inês da Silva Alves
Jessika Medeiros
Manoela Mayrink

Projeto gráfico / Diagramação


Alan Fragoso (coordenador)
Thayane Guimarães (coordenadora)
Alékis de Carvalho Moreira

Planejamento estratégico
Angélica Fonseca (coordenadora)
Daniela Mazur
Adonay Guerra

Comunicação
Luiza Costa (coordenadora)
Lucas Bragança

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