Luck - TWAIN - 1891

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Sorte

Mark Twain

Foi em Londres, num banquete oferecido em honra de dois ou três dos mais ilustres soldados
ingleses desta geração. Por motivos que logo serão vistos, não direi o seu verdadeiro nome. Chamá-
lo-ei Tenente General Lorde Artur Scoresby, Cavalheiro da Ordem do Banho, etc., etc., etc. Que
fascinação a de um nome célebre! Ali estava sentado, em carne e osso, um homem a quem já ouvira
mencionar milhares de vezes desde o dia em que, há trinta anos, o seu nome, bruscamente, surgira
para a glória, nos campos de batalha da Crimeia, para continuar desde então sempre famoso.
Satisfazia a minha fome e a minha sede admirar e ver, sim, ver aquele semideus, inspeccionando,
esquadrinhando, observando a impassibilidade, a reserva e a nobre gravidade do seu semblante, a
singela honestidade que se irradiava de toda a sua pessoa, a suave inconsciência da sua grandeza,
inconsciência das centenas de olhares admirativos nele fixos, inconsciência de profunda, afectuosa e
sincera admiração que. brotava do peito de todos.
O pastor, sentado à minha esquerda, era meu velho amigo. Era agora pastor, mas passara
metade da vida em acampamentos e campos de batalha, tendo sido instrutor na escola militar de
Woolwich. Justamente no momento a que me referi, uma vaga e estranha luz cintilou de seus olhos,
e sussurrou-me, discretamente, apontando ao herói do banquete:
— Confidencialmente lhe direi que... que se trata de um perfeito animal.
Estas palavras constituíram para mim uma autêntica surpresa. O meu assombro não poderia ter
sido maior se o protagonista tivesse sido Napoleão, Sócrates ou Salomão. De duas coisas eu tinha
plena certeza: que o reverendo era um homem verdadeiro, e que sabia julgar os homens com bom
senso e critério. Assim fiquei a saber, sem a mínima dúvida, de que o mundo estava equivocado
com relação àquele herói. Tratava-se, na realidade, de um animal. Oportunamente tratei de
averiguar como o reverendo descobrira o segredo.
Dias depois a oportunidade apresentou-se, e ele contou-me o seguinte:
— Há quarenta anos eu era instrutor da academia militar de Woolwich. Encontrava-me presente
quando o jovem Scoresby se submeteu ao exame preliminar. A piedade constrangeu-me o coração,
pois enquanto o resto da classe respondia brilhantemente, ele... oh! Deus meu! — ele, por assim
dizer, não sabia nada. Era, sem dúvida alguma, bom, suave, simpático e ingénuo. Por isso mesmo
era penoso vê-lo ali, parado, imóvel, como uma estátua, dando respostas realmente milagrosas pela
estupidez e ignorância. Toda a compaixão que havia no meu coração despertou a seu favor. Pensei
que, quando ele voltasse a prestar os exames, seria naturalmente reprovado. Dessa maneira, não
passava de um inofensivo acto de caridade aliviar-lhe a queda, tornando-a o mais suave possível.
Levei-o para um canto e apurei que ele conhecia um pouco da história de César. Como não
sabia outra coisa, pus mãos à obra, e preparei-o, em curto prazo, com um certo tipo de perguntas
sobre César, preferidas pelos examinadores. Eu sabia como eles a fariam. Creia-me, ou não, mas
Scoresby foi aprovado brilhantemente no dia dos exames. Aprovado com esse conhecimento
puramente superficial, enquanto os outros, que sabiam mil vezes mais, foram reprovados. Devido a
um incidente estranhamente afortunado — que não sucede em geral duas vezes num século — não
lhe formularam uma só pergunta fora dos estreitos limites do seu aprendizado.
Era algo assombroso. Durante todo o curso, estive a seu lado, com um sentimento semelhante
ao de uma mãe pelo filho entrevado. Scoresby salvava-se sempre... aparentemente por simples
milagre.
Apesar disso, o seu ponto fraco, que o liquidaria definitivamente, seriam as matemáticas.
Resolvi amenizar a sua queda no que fosse possível. Preparei-o, enchi-o de noções, seguindo o tipo
de perguntas mais prováveis pelos examinadores, e abandonei-o ao seu destino. Pois bem, senhor...
imagine, se é possível, o resultado! Diante da minha consternação, Scoresby obteve o primeiro
prémio! E com ele, toda uma longa ovação como aplauso.
Sonho? Não houve sonhos para mim durante toda uma semana. A minha consciência
atormentava-me dia e noite. Fizera aquilo por caridade, apenas para salvá-lo na queda. Jamais
sonhara com resultados tão absurdos como aqueles que ocorreram. Sentia-me tão culpado e aflito
como Frankestein. Havia aqui uma casca grossa a quem eu jogara no caminho das promoções.
rutilantes e das responsabilidades perigosas. Só podia ocorrer uma coisa, ele e as suas
responsabilidades ruiriam por terra na primeira oportunidade.
Acabava de estourar a guerra na Crimeia. Logo agora vai haver uma guerra, pensei. Não podia
haver paz, dando àquele asno uma oportunidade de morrer antes de ser desmascarado? Esperei o
terramoto. Chegou. Scoresby foi oficialmente declarado comandante de uma companhia de um
regimento que ia para a frente. Há homens melhores que envelhecem e ficam brancos antes de
chegarem a uma posição tão alta como esta. E quem poderia prever que poriam a carga de
semelhante responsabilidade sobre os ombros tão inexperientes e inadequados? Custaria a crer se o
tivesse nomeado simplesmente porta-estandarte! Mas... capitão?.. Imagine você! Foi um golpe
muito duro para mim.
Preste atenção no que fiz... eu, que amo tanto o repouso e a inactividade, convenci-me de que
era responsável diante da Nação por aquilo, e que devia acompanhar Scoresby, protegendo assim o
País dele, no que fosse passível. De maneira que reuni os meus magros capitais, conseguidos à custa
de três anos de trabalho e de penosa economia, e fui, com um suspiro, adquirir o lugar de porta-
estandarte no seu regimento. Depois, partimos para o campo de batalha.
E ali... Oh! Deus meu! Foi terrível. Erros? Scoresby não fazia outra coisa senão cometê-los.
Observe, porém, que nada ficava em segredo. Todos encaravam com prevenção a Scoresby, e
forçosamente interpretavam de forma errónea a sua actuação em todas as oportunidades. Tomavam
os seus estúpidos erros como geniais inspirações. Realmente! Os seus menores erros eram
suficientes para fazerem um homem de juízo chorar. E eles, em verdade, fizeram-me chorar...
Irritavam-me, levando-me ao desespero. O que cada vez mais me fazia transpirar de apreensão, era
o facto de que a cada novo erro cometido por ele, o brilho da sua reputação aumentava. Eu pensava:
"Subirá tanto, que um dia, quando descobrirem, a sua queda será como a de um sol que desabasse
dos céus".
Foi subindo de posto em posto sobre os cadáveres de seus superiores até que, finalmente, no
mais culminante da batalha de..., morreu o nosso coronel, e o coração subiu-me à garganta, porque
era Scoresby quem iria substituí-lo. Eis aí, pensei, dentro de dez minutos iremos todos parar no
inferno.
O combate era terrível. Os aliados cediam terreno em toda a extensão do campo. O nosso
regimento ocupava uma posição vital: um erro, agora, seria a destruição. Naquele momento
crítico... que fez aquele imbecil imortal? Desviou o regimento do seu lugar, e ordenou uma carga
contra uma colina próxima, onde não havia sequer a sombra de um inimigo.
— Eis aí, pensei. — Agora é mesmo o fim.
E para lá nos dirigimos, franqueando o alto da colina, antes que aquele movimento absurdo
pudesse ser descoberto e detido. E com quem nos encontrámos? Com todo um insuspeitável
exército de reserva! E que aconteceu? Fomos aniquilados? Isso teria forçosamente ocorrido em
noventa e nove de cem anos. Mas, não! Os russos imaginaram que um regimento isolado não viria
pastar naqueles campos em semelhante circunstância. Aquilo devia ser todo o exército inglês. Era
evidente que o astuto jogo russo fora adivinhado e bloqueado. De maneira que eles nos voltaram as
costas e fugiram em grande confusão, franqueando a colina. Nós perseguimo-los. E em menos
tempo do que leva um galo a cantar, presenciámos a mais tremenda fuga até agora vista, e a derrota
dos aliados transformou-se numa avassaladora e esplêndida vitória. O marechal Canrobert
contemplou aquilo, aturdido, cheio de assombro. E imediatamente mandou chamar Scoresby e o
abraçou, condecorando-o no campo de batalha, na presença de todos os exércitos.
Que erro Scoresby cometera dessa vez? Confundira, simplesmente, a sua mão direita com a
esquerda. Eis tudo. Recebera ordens de retroceder e de apoiar a nossa direita, e em lugar de assim
proceder, retrocedera para diante, flanqueando a colina pela esquerda. Mas a fama que nesse dia
conquistou como génio militar foi difundida pelo mundo inteiro e a glória jamais será empalidecida
enquanto durarem os livros de história.
Scoresby é o que de bom, amável, simpático e modesto pode ser um homem, mas não sabe o
suficiente para regressar à casa quando chove. Isto é absolutamente verdadeiro. É o asno supremo
do universo. E até meia hora antes, além dele e de mim, ninguém sabia disto. Scoresby tem sido
perseguido, dia a dia, ano a ano, por uma sorte realmente fenomenal e assombrosa. Tem sido um
brilhante soldado em todas as nossas guerras durante uma geração. Toda a sua vida militar está
cheia de erros, e no entanto não cometeu um só erro que não o tenha convertido em cavaleiro,
barão, lorde, ou algo parecido. Olhe o seu peito: parece, simplesmente, que ele está vestido de
condecorações nacionais e estrangeiras. Pois bem, meu caro senhor, cada uma dessas
condecorações é o documento vivo de tal ou qual alarmante estupidez. Tomadas em conjunto, são a
prova de que o melhor que pode ocorrer a um homem neste mundo é nascer com sorte. Volto a
repetir-lhe o que disse no banquete: Scoresby é um perfeito animal.

Extraído do livro “Alegres histórias”, Editora Cultrix – São Paulo, 1958, pág. 171, selecção e
tradução de Araújo Nabuco.
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