Alegoria
Alegoria
Alegoria
MEDIEVAL
LAUAND, Jean
Prof. Titular Faculdade de Educação da USP
RESUMO: O estudo apresenta uma seleção de enigmas medievais e discute os diversos papéis
que o enigma exerce para a educação da época: do lúdico à suas relações com a visão religiosa,
onipresente na pedagogia da Idade Média.
Palavras chave: Educação Medieval. Lúdico. Enigmas. Alegoria. Religião.
ABSTRACT: This paper presents a selection of medieval riddles and discusses the various
roles they play in Middle Ages education: from ludus to the relations between aenigmata and
the omnipresent religious mentality.
KEYWORDS: Medieval Education. Ludus. Riddles. Allegory. Religion.
INTRODUÇÃO
A imensa criatividade da gíria brasileira criou a expressão “é a cara de”. Quando uma
realidade expressa muito bem uma outra, resume-a em alguns de seus traços essenciais, diz-se
que "é (ou tem) a cara dela". Assim, se é difícil dizer quem “tem a cara” de São Paulo; no caso
do Rio, o problema é o oposto, excesso de representantes: Romário (que avalizou sua
“nomeação” pelo governador Sérgio Cabral, também ele nomeado “a cara do Rio”, em um
samba enredo do carnaval carioca), Zeca Pagodinho etc. No campo das instituições, “cara do
Rio é o futevôlei” (diz o “embaixador” Romário) ou - nem Hegel faria melhor! - o estratégico
feriado municipal de São Jorge, 23 de abril, que, “por acaso”, faz ponte com o nacional de
Tiradentes... (já os feriados paulistas, 25 de janeiro e 9 de julho, caem nas férias escolares...).
No campo da educação, se o videogame “é a cara” das nossas novas gerações; os
enigmas o são da pedagogia medieval. Certamente, todas as épocas conhecem e cultivam
enigmas, adivinhas e charadas, mas, no caso da Idade Média, há uma especial afinidade com
esses jogos de linguagem: eles atingem valores centrais: não só pelo lúdico - que é um fim em si
– e seu valor pedagógico, mas também pela carga religiosa que, na interpretação da época, o
enigma traz consigo.
Isso se compreende melhor, quando, por um lado, mostrarmos a consideração religiosa
dos enigmas; e, por outro, quando se recorda que o grande “tema transversal” de toda a
educação medieval é a religião, a visão religiosa, e que a busca do entendimento da Palavra de
Deus, se dá numa clave amplamente alegórica. Nesse quadro, como veremos, o enigma adquire
destacado valor.
Chama-se alegoria a palavra que soa de um modo, mas acaba significando outra coisa
diferente. Por exemplo, Cristo é chamado cordeiro (Jo 1,29); acaso é Ele animal? Cristo é
chamado leão (Apo 5,5); acaso é Ele fera? É chamado pedra (ICor 10,4); acaso é Ele
dureza? É chamado monte (Dan 2,35); acaso é Ele elevação de terra? E, assim, há muitas
palavras que soam de um modo, mas são entendidas de outro e a isto se chama alegoria (En.
103, 13).
Criadas pela Inteligência do Logos, as coisas do mundo trazem uma mensagem cifrada
sobre Deus e as verdades eternas. Esta, aliás, vai ser, desde o cristianismo antigo, uma das bases
da legitimação do estudo dos saberes profanos; pois eles, no fundo, não são profanos: ao estudar
os animais - serpente, pomba ou boi -, adquire-se uma maior compreensão do que disse Jesus
Cristo, por exemplo: “Sede prudentes como serpentes e simples como pombas” (Mt 10, 16). E
São Paulo, comentando a lei dada por Deus: “Não atarás a boca do boi que debulha” (Deut 25,
4), desfere a ironia: “Acaso Deus está se preocupando com bois? Ou é para nós que Ele diz
isto?” (I Cor. 9, 9-10).
Nos famosos versos - PL 210:579 - atribuídos a Alain de Lille (que dirão também que a
rosa - seu aflorar, desabrochar e murchar – representa nossa condição):
Dados da Bíblia para o cristão de hoje totalmente secundários, são, para os antigos e
medievais, temas centrais de sua exegese. Os números, por exemplo, como quando da pesca
milagrosa - no último capítulo de seu evangelho - , João narra que Pedro trouxe em sua rede 153
peixes grandes (Jo 21, 11). O número 153, no caso, para o cristão de hoje significa
simplesmente uma grande quantidade de peixes. Mas para os medievais, não: esse número -
como cada número mencionado na Bíblia - tem um significado místico: é um enigma, que Deus
quer que decifremos para podermos entender sua mensagem. Como era de esperar, essa
mentalidade leva a autênticos contorcionismos alegóricos para fazer com que as coisas se
encaixem: no caso de nosso 153, Agostinho, por exemplo, vai jogar com o caráter perfeito dos
números 10 (a perfeição da lei) e 7 (perfeição do espírito), que somados dão 17. Ora, a soma dos
números de 1 a 17 dá precisamente 153, o número da multidão dos bem-aventurados (que, da
barca de Pedro, que alegoricamente é a Igreja, são levados a Jesus; porque foram apanhados
pela rede da atividade evangelizadora etc.).
A explicação do fato de serem 153 peixes é a que costumo fazer-vos [ao menos
todos os anos na missa de 6a. f. da Páscoa] e muitos tomam-me a dianteira; no entanto, eu
vou repeti-la solenemente [...]. Estes 153 são 17. 10 mais 7. 10 por quê? 7 por quê? 10 por
causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária é por causa da perfeição que se
celebra nos dons do Espírito Santo. Descansará - diz o santo profeta Isaías - sobre ele, o
Espírito Santo com seus 7 dons (Is 11,23) etc. Já a lei tem 10 mandamentos [...]. Se ao 10
ajuntarmos o 7 temos 17. E este é o número em que está toda a multidão dos bem-
aventurados. Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras vezes, já
muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar de vos expor cada ano este ponto.
Muitos já o esqueceram, alguns nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram
tenham paciência para que os outros ou reavivem a memória ou recebam o ensino [...] Conta
17, começando por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números, e chegarás ao
153. Por que estais à espera que o faça eu? Fazei vós a conta" (Sermão 250, 3)
Em tradução que preserva a resposta: “Eu sou o princípio do mundo e estou no fim do
fim; sou trino e uno, mas não sou Deus. Quem sou eu?
Ou em versão mais completa (em tradução livre): “Eu sou o princípio do mundo e estou
no fim do fim; sou trino e uno, mas não sou Deus. Estou no maravilhoso e no normal; sem mim,
nada é. Quem sou eu?
A resposta é: a letra m, que sendo uno (uma letra) se escreve como o número 3 (em
romano), está no princípio (da palavra) “mundo” e no fim do (vocábulo) “fim” (a palavra
“nada” é sem m etc.).
E na Divina Comédia, (Purg. 23, 31 e ss.), no rosto humano está escrita a palavra
“homem” (“omo”, na língua de Dante):
O.............quid..............tuae
be.............est................biae?
ra ra ra es et in ram ram ram ii
Para a solução, tenha-se em conta que os três termos da primeira linha “estão acima”
(“super”, em latim) de seus correspondentes na segunda linha. E na terceira linha temos “três
vezes” (“ter”) ra e ram, e i duas vezes (“bis”). Assim:
Os enigmas na Bíblia
Para um exegeta de hoje como Margalith (1986) não haveria, em sentido estrito,
enigmas (riddles) na Bíblia: a tradução por “enigma” da palavra hebraica hida só seria
apropriada (pois riddle/enigma exige reposta) no caso do enigma de Sansão (Juízes 14, 14) e
que mesmo esse caso seria problemático.
Seja como for, para a leitura medieval, sim, há enigmas: a Vulgata diz que a rainha de
Sabá veio a Salomão para testá-lo com enigmas e que ele respondeu a todos. E na própria
tradição judaica podemos encontrar essa entrevista como uma sessão (ou até um duelo) de
adivinhas (Lassner 1993, Appendix , pp. 161 e ss.), como as que a rainha emprega para começar
a desafiar Salomão, segundo o Midrash Mishle ou o Midrash ha-Hefez:
- Que são: sete que se vão e nove que vêm; dois que dão de beber, mas só um participa.
- Sem dúvida: sete são os dias do ciclo menstrual; nove, os meses da gravidez; dois, os
peitos que amamentam; e um é o bebê.
- Uma mulher disse a seu filho: Teu pai é meu pai; teu avô, meu marido; tu és meu filho e eu
sou tua irmã.
- Sem dúvida: trata-se das filhas de Ló.
E ainda hoje o site Beit Chabad (2008), referência judaica na Internet, reapresenta às
novas gerações os enigmas da rainha, como na seguinte amostra:
"Estou tão feliz de ter feito esta longa viagem para ver o Rei Salomão, pois ele é na verdade
o mais sábio de todos os homens!" [...] [e louva o Deus de Israel]
Antes de começar a série final de adivinhas, o mestre, habilmente, as liga à fé: “certeza
das coisas não sabidas e admiráveis” (ignotae rei et mirandae certitudo) e designa as adivinhas
por mirandum, “o que causa admiração”: voltamos ao paralelismo dos enigmas como modelo da
verdade religiosa: “Como é que eu, tendo tantas vezes visto isso, não o entendi por mim
mesmo?”, diz o menino.
A resposta é “pergaminhos”: em sua preparação, as peles devem secar bem, num varal,
para que possam receber a escrita (para que os autores mortos, copiados nos pergaminhos,
possam falar bem). O aluno, já auto-confiante pelos primeiros acertos, começa a responder não
já com a palavra solução, mas, por vezes, com rodeios, que indicam que ele sabe a resposta,
como que complementando engenhosamente a formulação enigmática do mestre e criando uma
cumplicidade com ele: preservando o mistério ante os coleguinhas que qinda não atinaram com
a resposta (cf. fala 184, abaixo).
De uma outra obra de Alcuíno (Carmina, PL 101, 802B et. ss.), traduzo - com alguma
liberdade - outros enigmas, cujas respostas são palavras latinas :
R.: malum (o fruto, causa do pecado original) / mulam (a solução começa e termina com M:
comer e cavalgar regem acusativo)
Ao concluir este tópico, vale ressaltar que a última adivinha que Alcuíno propõe ao
menino (a do mensageiro mudo) complementa-se com uma outra, da coleção acima:
Queres saber, ó viandante, como pode o poeta viver após a morte?
Nisto que tu lês, sou eu que falo; tua voz, neste momento, é a minha
(PL 101, 802B).
Enigmas nos problemas de matemática
Um boi que está arando todo dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último sulco?"
Resposta: Nenhuma em absoluto. Pois o boi precede o arado e o arado segue o boi;e, assim,
todas as pegadas que o boi faz na terra trabalhada, o arado asapaga. E, deste modo, não se
encontrará nenhuma pegada no último sulco.
Numa escada de 100 degraus, no 1º. degrau está pousada 1 pomba; no 2o, 2; no 3o, 3; no 4o,
4; no 5o, 5; e assim em todos os degraus até o 100o. Diga, quem puder, quantas pombas há
no total?
R.: Calcule assim: tome a pomba do 1o. degrau e some-a às 99 do 99º., o que dá 100. Do
mesmo modo, as do 2º. com as do 98o. somam 100. E assim, degrau por degrau, juntando
sempre um de cima com o correspondente de baixo, obterá sempre 100. Some tudo junto
com as 50 do 50o. degrau e as 100 do 100º. degrau que ficaram de fora, e obter-se-á 5050.
Um homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço
de couves. E não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma que só comportava dois
entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem
puder, como fez ele a travessia?"
R: Todos estavam na margem direita do rio. O homem leva primeiro a cabra e a deixa na
margem esquerda. Volta para a margem direita e pega a couve, e volta para a margem
esquerda. Deixa a couve e volta para a margem direita com a cabra, deixando-a e voltando
para margem esquerda com o lobo. O lobo ficará com a couve na margem esquerda e o
homem voltará para pegar a cabra na margem direita.
Se dois homens casam, cada um com a mãe do outro, que relação de parentesco haverá entre
seus filhos?
[R.: Cada um será, ao mesmo tempo, tio e sobrinho do outro.]
REFERÊNCIAS