Tese Tferraz 2014

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Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH)


Escola de Comunicação (ECO)

TALITHA GOMES FERRAZ

ESPECTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NO SUBÚRBIO CARIOCA DA


LEOPOLDINA: DOS "CINEMAS DE ESTAÇÃO" ÀS EXPERIÊNCIAS
CONTEMPORÂNEAS DE EXIBIÇÃO

Rio de Janeiro
Março de 2014
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH)
Escola de Comunicação (ECO)

ESPECTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA NO SUBÚRBIO CARIOCA DA


LEOPOLDINA: DOS "CINEMAS DE ESTAÇÃO" ÀS EXPERIÊNCIAS
CONTEMPORÂNEAS DE EXIBIÇÃO"

TALITHA GOMES FERRAZ

Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Comunicação e Cultura da
Escola de Comunicação da UFRJ, como parte
dos requisitos para a obtenção do título de
Doutora em Comunicação e Cultura.

Orientadora: Profª Drª Janice Caiafa Pereira e


Silva

Rio de Janeiro
Março de 2014
Ferraz, Talitha Gomes. Espectação cinematográfica no
subúrbio carioca da Leopoldina: dos "cinemas de estação" às
experiências contemporâneas de exibição./ Talitha Gomes
Ferraz. Rio de Janeiro, 2014.

235f.

Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura) – Universidade


Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Comunicação –
ECO-UFRJ, 2014.

Orientadora: Janice Caiafa Pereira e Silva

1. Salas de cinema. 2. Cinema de estação. 3. Exibição


cinematográfica. 4. Subúrbio carioca (Zona da Leopoldina).
5. Estações de trem. I. Janice Caiafa (Orient.). II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação. III. Título.
TALITHA GOMES FERRAZ

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Comunicação e Cultura da
Escola de Comunicação da UFRJ, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Doutora em Comunicação e Cultura

Rio de Janeiro, 28 de março de 2014

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Janice Caiafa Pereira e Silva – Orientadora


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Profª. Drª. Maria Isabel Mendes de Almeida


Universidade Cândido Mendes / Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Erick Felinto


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Paulo Filipe Monteiro


Universidade Nova de Lisboa

Prof. Dr. Paulo Vaz


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2014
Ao Deus que sorri, ilumina e sempre
presenteia.

Para a forte e doce Carlinda. Minha mãe,


maior incentivadora e melhor amiga.
AGRADECIMENTOS

Ao meu pai que apoia incondicionalmente minhas decisões e escolhas com o seu
amor. Ao carinho de meu irmão Thales, pessoa que mais me ajuda nas horas em que mais
preciso, exercendo com perfeição a ideia de irmandade. Aos meus tios Marília e Carlinhos, à
minha afilhada Stacy e ao meu padrinho Nelson Sergio pelo carinho e também por suas
torcidas de fibra.
Ao Beto e à beleza de tudo o que nos aproxima e ao mesmo tempo nos torna
estrangeiros em meio às traduções diárias de afetos e culturas, aos fusos horários e à
admiração que nutrimos um pelo outro.
À minha querida orientadora professora Drª. Janice Caiafa por todos os ensinamentos
e as trocas intelectuais e afetivas realizadas nesses últimos sete anos, desde que iniciei meus
estudos no Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Com Janice,
pude construir, bem nos termos de Agamben, uma ligação da ordem da condivisão, do com-
sentir, ou seja, da amizade. Cresci academicamente com a sua orientação generosa. Cada um
dos passos dados nesta recente trajetória como pesquisadora e professora seria nulo sem o
carinho e o zelo de sua presença.
À amizade do professor João Luiz Vieira, mestre com quem compartilho muitas
histórias sobre os cinemas de rua do Rio de Janeiro. Sou grata pela sua aposta em meus
trabalhos e crescimento como pesquisadora. Ao professor Paulo Filipe Monteiro, que me
recebeu com imensa atenção e disponibilidade em Lisboa, na ocasião de meu estágio doutoral
na Universidade Nova de Lisboa.
A todos os interlocutores que participaram deste trabalho, dividindo comigo as suas
belas memórias relacionadas aos extintos cinemas da Zona da Leopoldina. Agradecimentos
também àqueles com quem conversei sobre o cenário atual do lazer cinematográfico nessa
região carioca. Sem a força de seus relatos, coração deste estudo, minha voz haveria
esmorecido solitária.
À minha amiga Juliana Manzoni Cavalcanti pela vida inteira de cumplicidade,
afetuosidade e cuidado. Um agradecimento especial à Mayka Castellano que se transformou
em grande amiga, confidente e companheira durante os meus anos de ECO-UFRJ.
Aos queridos e preciosos amigos que fiz na ECO-UFRJ ao longo dos últimos sete anos
de estudos, no mestrado e no doutorado: Bruno Campanella, Danielle Brasiliense, Fernanda
Gomes, Fernanda Lima Lopes, Igor Sacramento, João Paulo Malerba, Lucia Santacruz,
Marcio Castilho, Marianna Araújo, Nina Quiroga, Simone Do Vale, Sofia Zanforlin, Tatiana
Galvão, Tiago Monteiro e Vitor Monteiro de Castro. Às amigas de infância Camila
Vasconcelos, Clarissa Pepe e Luciana Guimarães, queridas pessoas que fazem parte de
qualquer uma das minhas conquistas. Aos meus grandes e queridos amigos de PUC-Rio:
Eduardo Ferraz, Érika Brunner, João Guilherme Campos, Letícia Camilher von Wissel,
Rafael Monteiro e Renata Dillon. Agradeço aos amigos portugueses – em especial a Joana
Freitas, Joana Patrício e Carina Pisco – que durante a minha estadia em Lisboa, à época do
doutorado sanduíche, me abraçaram como faz uma família. Agradeço ao amigo Vladimir
Freire pela generosidade durante a finalização da escritura da tese. Aos amigos Adrien
Muselet, Mariana Albinati e Rodrigo Bouiellet pelas boas conversas e parcerias.
A todos os professores que passaram pela minha vida de estudante e aos inesquecíveis
exemplos de educadores, pesquisadores e docentes nos quais tento me espelhar: Professora
Drª. Ana Paula Goulart (ECO-UFRJ); Professor Helimar (Colégio Palas), Professor Dr. Paulo
Vaz (ECO-UFRJ), Professor Dr. Roberto Machado (IFCS-UFRJ), Professora Drª. Sandra
Korman (PUC-Rio), Professor Dr. Sergio Mota (PUC-Rio). Igualmente, agradeço à
disponibilidade dos professores Drª. Maria Isabel Mendes e Dr. Erick Felinto, que ao lado dos
já citados professores Dr. Paulo Filipe Monteiro e Dr. Paulo Vaz participam da banca de
avaliação desta tese. Aos funcionários da ECO-UFRJ que sempre me auxiliaram com
solicitude e simpatia: Jorgina Silva, Marlene Cardoso Bonfim e Thiago Couto.
Aos colegas de docência na Universidade Estácio de Sá, principalmente aos
professores Evlen Lauer, Francisco Aiello, Gisele Barreto, Joaquim Delphim, Marcelo
Gabbay, Marcio Gonçalves, Maria Alice Nogueira, Ney Ferreira, Pablo Laigner, Paulo
Ribeiro, Patrícia D’Abreu, Rafael Rocha e Wilson Oliveira. À amizade e à cooperação das
queridas ex-alunas e alunas Emanuelle Barbosa, Déborah Cruz, Juliana Crespo, Letícia Pellin,
Lyvia Tavares e Marianna Ferraz. Aos estagiários e funcionários do Núcleo de Comunicação
da Universidade Estácio de Sá – Madureira.
Finalmente, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pelos recursos financeiros que possibilitaram o maior aproveitamento dos
três últimos anos do doutorado na Escola de Comunicação da UFRJ e a oportunidade de
realização de estágio doutoral na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, no âmbito do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE).
“(...) o espectador liga as salas aos filmes que
nelas viu, e as emoções que estes
desencadeiam entranham-se nesses espaços
povoando-os como fantasmas. Talvez por isso
se tivesse quase sempre a sensação de que não
havia salas vazias. Nelas pareciam habitar
espectros que conviviam com as imagens que
os cineastas montavam e que se fundiam com
o lugar numa presença única.”

(Margarida Acciaiuoli, 2012)


RESUMO

Neste trabalho, investigamos os processos comunicativos e as sociabilidades relacionados às


práticas de exibição e espectação cinematográficas realizadas no contexto urbano dos bairros
da Zona da Leopoldina, subúrbio do Rio de Janeiro, em cinemas de estação – como
denominamos os cinemas que se localizavam, no século XX, em frente a estações de trem – e
complexos multiplex atuais. Examinamos ainda como se efetivam hoje na região as iniciativas
de democratização do acesso ao audiovisual cinematográfico por meio de experiências de
cineclubes e cinema em favela. A partir de conversas com interlocutores, observação
participante e pesquisas em arquivos, exploramos como as pessoas fazem uso desses
equipamentos coletivos de lazer. Do mesmo modo, examinamos em que medida a presença
dos cinemas na rua, com variados perfis, se conecta a diferentes soluções urbanas,
participando das ocupações do espaço e da produção de sociabilidades na área da Leopoldina.

Palavras-chave: salas de cinema; cinema de estação; exibição cinematográfica; subúrbio


carioca (Zona da Leopoldina); estações de trem.
ABSTRACT

In this study, we investigate the communicative processes and sociabilities related to the
practices of cinema exhibitions and espectatorship taking place in the urban context of the
Leopoldina area, a suburb of Rio de Janeiro, in station cinemas – which is how we call the
movie theaters that used to exist opposite of train stations in the 20th century – and present
day multiplex cinemas. We also examine how the initiatives of democratising access to
audiovisual and films unfold in the region nowadays through the experiences of "cinema
clubs" and movie theaters in the favela. Starting from conversations with informants,
participant observation and archival research, we explore how people use such collectives
leisure equipments. In the same way, we examine to which extent the presence of street
cinemas, with different profiles, is linked to different urban solutions, participating in the
occupation of space and the production of sociability in the Leopoldina area.

Keywords: movie theatres; station cinemas; cinema exhibition; carioca suburb (Leopoldina
area); train stations.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

a) Chegando ao objeto ............................................................................................................. 14

b) Uma inspiração etnográfica ................................................................................................. 16

c) O corpo da tese .................................................................................................................... 21

CAPÍTULO 1 - O subúrbio carioca e a Zona da Leopoldina............................................. 25

1.1. Subúrbio: conceitos, categorias e representações .............................................................. 25

1.2. A noção de “subúrbio carioca”. ........................................................................................ 42

1.2.1. “Rapto ideológico” e o binômio subúrbio-indústria. ................................................. .... 42

1.2.2. O subúrbio, o trem e o bonde ........................................................................................ 48

1.2.3. Circulação e habitação em meio às particularidades da Zona da Leopoldina ............... 52

CAPÍTULO 2 - O cinema: um lazer moderno e urbano ....................................................67

2.1. Visualidades, máquinas, percepções ................................................................................ 67

2.2. O cinema como lazer ........................................................................................................ 85

2.3. A Belle Époque cinematográfica carioca.......................................................................... 96

2.4. Cinemas cariocas em meados do século XX .................................................................. 107

2.5. Domingos Vassalo Caruso: o “bemfeitor dos subúrbios” .............................................. 111

CAPÍTULO 3 - Os “cinemas de estação” e os primeiros cinemas de shopping: uma

etnografia de lembranças ..................................................................................................... 119


CAPÍTULO 4 – Os lugares do cinema na Zona da Leopoldina hoje: um cenário de

mudanças .............................................................................................................................. 176

4.1. Outros espaços para o cinema ........................................................................................ 176

4.2. Ocupar o espaço através do cinema ................................................................................ 184

4.2.1. O Cinecarioca Nova Brasília no Complexo do Alemão .............................................. 184

4.2.2. Promessas de reabertura ............................................................................................... 203

CONCLUSÃO....................................................................................................................... 216

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 223


LISTA DE FIGURAS

Fig. 1 - Mapa do Rio de Janeiro com a indicação das linhas de trem.......................................48


Fig. 2 - As linhas de bonde no Rio de Janeiro..........................................................................51
Fig. 3 - Figura 3 – Anúncio imobiliário publicado na Revista Fon-fon em
1913...........................................................................................................................................57
Fig. 4 - Relação de empresas imobiliárias atuantes nos
subúrbios...................................................................................................................................63
Fig.5 - Figura 5 – Evolução da sala de cinema nos EUA.........................................................84
Fig. 6 - Nota sobre o aniversário de Domingos Vassalo Caruso, na Revista Cine Repórter, de
novembro de 1947...................................................................................................................116
Fig. 7 - A Revista Cine Repórter, em 5 de outubro de 1957, noticiou a morte de Domingos
Vassalo Caruso........................................................................................................................117
Fig. 8 - Cinema Oriente, década de 1920................................................................................123
Fig.9 - Local onde havia o Cinema Oriente, já nos dias atuais...............................................125
Fig. 10 - Programa do Cine Teatro Penha cedido por Alcyr, ex-morador de Brás de
Pina..........................................................................................................................................127
Fig.11 - Ao fundo, o Cinema Paraíso, na Praça das Nações, em Bonsucesso,
1929.........................................................................................................................................128
Fig.12 - Estação de Ramos. Ao lado direito, em destaque, vê-se parte da arquitetura do extinto
Cinema Ramos: curvas art déco.............................................................................................130
Fig.13 - Extinto Ramos, pela plataforma da estação. No local, há uma igreja
protestante...............................................................................................................................130
Fig.14 - Fragmento da Revista Cinearte, de 15 de março de 1940.........................................131
Fig.15 - Cinema Santa Cecília em Brás de Pina.....................................................................133
Fig.16 - Estação de Ramos e Rosário ao fundo, no canto direito, com cocar art déco que
ostentava o nome do cinema...................................................................................................135
Fig.17- Luzes laterais da sala de exibição do Rosário/Ramos................................................138
Fig.18 - Interior do Rosário, já em sua fase como Cinema Ramos.........................................138
Fig.19 - João Luiz Vieira e Margareth Pereira na entrada do Rosário/Ramos
.................................................................................................................................................139
Fig.20 - Visão atual do prédio do Cinema Ramos, antigo Rosário, hoje
abandonado.............................................................................................................................140
Fig.21 - Extinto Rosário frontalmente....................................................................................140
Fig.22 - Antiga bilheteria do Rosário, forjada em ferro..........................................................141
Fig. 23 - Página da Revista A Cena Muda sobre a abertura do Olaria...................................141
Fig. 24 - Cinema Olaria, antigo Santa Helena........................................................................143
Fig. 25 - Antigo Olaria............................................................................................................145
Fig. 26 - Interior do extinto Olaria na época do anúncio de sua venda..................................146
Fig.27 - Olaria hoje: fachada descaracterizada.......................................................................146
Fig. 28 - São Geraldo já na fase pornô....................................................................................148
Fig.29 - Atual aparência do prédio do São Geraldo, em Olaria..............................................148
Fig.30 - Cinema São Pedro, provavelmente em 1949. Nota-se a proximidade com a linha do
trem.........................................................................................................................................149
Fig.31 - Família Caruso e suas aparições nos jornais.............................................................155
Fig. 32 - Notas que citam Caruso e Severiano Ribeiro...........................................................156
Fig. 33 - Anúncio de empreendimento, três anos antes da inauguração do Cine Rio
Palace......................................................................................................................................160
Fig. 34 - Cinecarioca Nova Brasília........................................................................................185
Fig. 35 - Poltronas e tela do cinema vistas da sala de projeção..............................................187
Fig.36 - Uma das entradas da favela de Nova Brasília que dá acesso ao
cinema.....................................................................................................................................189
Fig.37- Arbitragens sob as restrições de tempo......................................................................192
Fig.38 - As informações sobre o funcionamento do cinema também são disponibilizadas de
forma simples, além do uso dos tradicionais cartazes.............................................................192
Fig.39 - O cinema, ao fundo, na área onde há também a Praça do
Conhecimento.........................................................................................................................195
Fig.40 - O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao lado do secretário estadual de Segurança, José
Mariano Beltrame, na primeira sessão do Cinecarioca, em 2011...........................................200
Fig.41 - Presença do exército na inauguração do cinema.......................................................201
Fig.42 - Policiais e soldados em meio ao público durante a inauguração do
cinema.....................................................................................................................................201
Fig. 43 - Carros da PM na rua que dá acesso ao cinema.........................................................202
Introdução

a) Chegando ao objeto
Em 2010, quando fui aprovada para cursar o doutorado no Programa de Pós-graduação
da Escola de Comunicação da UFRJ, eu já havia passado pela experiência cotidiana de ir ao
subúrbio do Rio de Janeiro. Na época, morava na Tijuca, onde nasci, e trabalhava no
Observatório de Favelas, ONG sediada na Favela da Maré, próximo a Bonsucesso, bairro do
subúrbio da Zona da Leopoldina.
A experiência da “vida suburbana”, mesmo por apenas algumas horas diárias, não
alterou naquela etapa nada do que eu já pensava acerca do subúrbio carioca: um lugar repleto
de bairros simples, de vida pacata e população composta por trabalhadores pobres e de classe
média. Na época, eu ainda não era usuária de trem e raramente passava perto das estações
ferroviárias da extinta Leopoldina Railway. O dia-a-dia de trabalho na favela não me levou a
ter contato com os prédios que abrigaram, outrora, os cinemas de rua da Leopoldina.
Foi um pouco mais tarde, quando me encontrava em busca de um novo objeto de
pesquisa para a tese de doutorado, que cheguei aos primeiros dados e histórias acerca desses
cinemas. Nunca assisti a nenhum filme nos equipamentos e nunca residi na Zona da
Leopoldina. Conhecia esses locais tão somente de passagem, mas a história dos cinemas que
existiram bem em frente a cada estação de trem me chamou atenção assim que precisei
reformular o eixo das minhas investigações na ECO-UFRJ. À altura, percebi que continuar
com o primeiro tópico acerca da midiatização da relação entre as milícias e as redes de
transporte por van ao longo da Avenida Brasil seria uma tarefa que, a longo prazo, poderia
oferecer grandes riscos à vida.
Então, auxiliada por minha orientadora, decidi retomar minha trajetória em pesquisas
sobre circuitos de salas de cinema de rua. Era uma linha de trabalho, de inspiração
etnográfica, que com base em outras motivações eu já havia realizado no mestrado, quando
produzi uma dissertação – e logo depois, um livro – sob o título de “A Segunda Cinelândia
Carioca; cinemas, memória e sociabilidades na Tijuca” (FERRAZ, 2009; 2012). Nesse exame,
tive contato com as memórias de ex-frequentadores da extinta rede de movie palaces, cinemas
de galeria e poeirinhas estabelecidos durante o século XX nos arredores da Praça Saens Peña,
ponto principal da Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. O doutorado seria,
portanto, o novo local onde eu me ocuparia de outro objeto também ligado à antiga temática
do mestrado: os cinemas que existiram no subúrbio do Rio de Janeiro, extensão vasta e
14
imensamente plural da qual minha família materna partiu nos anos 60, assim que minha avó
resolveu abrir um pequeno comércio na Tijuca, mudando-se de Inhaúma.
Escolhi como recorte geográfico do estudo a Zona da Leopoldina, área suburbana
atravessada pela antiga linha de ferro da Leopoldina Railway, hoje incorporada à Supervia,
empresa concessionária na prestação de serviço em transporte público, que faz a operação de
todos os ramais ferroviários da cidade, incluindo nessa lista o ramal da Central do Brasil. Os
bairros suburbanos da Central do Brasil (Engenho Novo, Méier, Engenho de Dentro,
Cascadura, Madureira e Marechal Hermes, por exemplo) viveram um processo de
urbanização que se diferenciou um pouco daquele que ocorreu nos bairros leopoldinenses. Os
arrabaldes da Leopoldina reuniram no passado feições tipicamente rurais e se consolidaram
através de um caráter bastante domiciliar. Sua veia comercial foi constituída ao longo dos
anos de forma bem mais tímida, se a compararmos com o que se deu no caso da Central do
Brasil. A presença da indústria, das linhas de bondes e da ferrovia são elementos que se
encontram no cerne de suas configurações.
Observando as diferenças entre os locais suburbanos, consideravelmente heterogêneos
em suas formações urbanas e relações com o equipamento sala de cinema, dei início a um
exercício de convívio com aquilo que me parecia estranho, embora esse campo fosse
relativamente próximo de mim em vários sentidos. Conforme disse acima, um pouco antes de
começar de fato a pesquisa, eu viajava diariamente até a Favela da Maré, perto de
Bonsucesso, para trabalhar; logo depois de entrar no doutorado, cheguei também a fazer
algumas visitas a Brás de Pina, nos fins de semana, por conta de relações interpessoais com
pessoas que lá moram. Isso, de certa forma, ajudou um pouco na chegada ao campo de
pesquisa.
Na tese, me ocupei da verificação dos laços de sociabilidade produzidos
principalmente entre as pessoas e os cinemas de Olaria e Ramos: bairros onde mais estive nos
quatro anos de investigação. Porém, Bonsucesso, Penha e Brás de Pina participaram
ativamente, desde o começo, do escopo de regiões perquiridas. Penha Circular e Vila da
Penha, bairros associados a essa área, não receberam muito destaque nesse processo, apesar
de uma incursão feita na Vila da Penha quando visitei, ao lado de um interlocutor, o Carioca
Shopping, que atualmente possui um complexo de cinemas no perfil multiplex em seu interior.
O Complexo do Alemão, cujo extenso território é colado a vários bairros leopoldinenses,
precisou igualmente ser incorporado à pesquisa. Entre as favelas do Complexo, a Nova
Brasília, há uma recente experiência de cinema popular, que vem se consolidando desde 2011.
15
b) Uma inspiração etnográfica
A metodologia de pesquisa seguida neste trabalho é de inspiração etnográfica. Isso
significa que houve a tentativa de abordar o tema a partir do cultivo de uma relação próxima
com o ambiente investigado e as pessoas e histórias que através dele acessei. Deste modo,
procurei construir uma postura de disponibilidade (CAIAFA, 2007; ALVAREZ e PASSOS,
2009; CAVALCANTI, 2003) perante a Zona da Leopoldina e suas dinâmicas socioculturais
de ontem e de hoje. Por esse caminho, um estranhamento de mim e do outro teve de ser
suscitado, na medida em que o “deixar-se levar”, isto é, um abandono de si à situação de
pesquisa (CAVALCANTI, 2003, p. 119), passou a guiar os movimentos efetivados no campo,
sob a esperança de fazer da experiência de estranhamento uma “condição de conhecimento”,
conforme propõe Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2003). Tendo isso em vista, o
rompimento de pré-concepções acerca daquela região suburbana, que eu conhecia
basicamente “de ouvido”, e a “exposição à novidade” (CAIAFA, 2007, p. 149) poderiam
proficuamente diminuir os riscos da exotização dos modos de vida das pessoas que vivem e
viveram naquele espaço.
Essa área se colocava, simultaneamente, como um pedaço distante e próximo de
minha realidade pessoal, tanto no sentido geográfico, quanto no temporal e cultural. De fato, a
Zona da Leopoldina é parte integrante da mesma cidade em que vivo e, consequentemente,
não poderia ser considerada um “outro mundo” geográfico, a despeito das segregações
espaciais e econômicas que separaram historicamente o subúrbio carioca das demais zonas do
Rio. Paralelamente a isso, no cenário dos centros urbanos, o universo dos cinemas de rua, com
seu apogeu e queda ao longo do século XX, está substancialmente ligado à
contemporaneidade. Salvo as particularidades de cada caso, de cada lugar, presenciamos e
vivemos efetivamente as diversas trajetórias e rumos que as salas exibidoras, de bairros de
norte a sul, construíram em conexão com a produção de nossas sociabilidades e hábitos de
lazer nos espaços coletivos. Ou seja: a fixação do equipamento sala de cinema na paisagem
urbana e em nossas vidas não é prerrogativa de um ou outro lugar.
Há de se levar em conta que a Zona da Leopoldina participou culturalmente, a seu
modo, das dinâmicas concernentes ao mercado exibidor e à prática de espectação
cinematográfica efetuadas ao mesmo tempo em outras partes da cidade. Cabe ressaltar que os
fenômenos midiáticos (inseridos, em variados graus, há pelo menos quase dois séculos no
meio citadino) possuem uma veia transnacional e, muitas vezes, superam a localidade, sendo,
portanto, na acepção mais geral do termo, globalizados. A indústria do cinema deve aí ser
16
alocada.
Passados esses pontos, procurei realizar um exercício de afastamento do que poderia
soar em mim algo muito familiar, no que diz respeito às análises sobre circuitos de sala de
cinema de rua no Rio de Janeiro. Em minha jovem trajetória na área acadêmica, segundo
falado um pouco antes, a vivência de pesquisa com cinemas de rua, ao lado de interlocutores e
suas memórias, já havia sido realizada em um período precedente. Nessa nova aprendizagem,
contudo, esteve em jogo a construção de relações com outra localidade, diferente em vários
aspectos da Tijuca. Com a Zona da Leopoldina e seus extintos cinemas, eu não guardava
nenhum laço afetivo mais direto, nem memórias, nem parentescos.
Ao contrário do que aconteceu anos antes, quando lidei com um objeto por mim
vivido intensamente como espectadora e “nativa”, iniciavam-se, agora, uma inquietação e
algumas dificuldades para me aproximar e entrar, de fato, no campo de pesquisa. Esse cenário
exigiu, portanto, uma saudável postura de alheamento para que, em alguma medida, uma
desfamiliarização com o tema “sala de cinema” pudesse ocorrer em benefício da partilha de
afetos e impressões com os “nativos” daquele outro contexto.
Essa atitude de se deparar com o não-familiar diz respeito àquilo que Janice Caiafa
(2007) chama de “evocação da viagem”, uma qualidade criadora que pode caracterizar o
trabalho de campo do etnógrafo, mas que não exclui o surgimento de alguns problemas ao
longo do caminho. Entre essas agruras bem especificas que se levantam durante o trabalho
etnográfico estão os limites tênues entre o longe o perto que, frequentemente, não se definem
tão facilmente. Conforme questiona a autora, isso sempre dependerá do prisma de análise: o
geográfico ou o cultural é o parâmetro para a definição do próximo e do distante? (CAIAFA,
2007, p. 148).
Nos estudos etnográficos produzidos no meio urbano, a questão do estranhamento
ganha especial nuance porque, de todo o modo, um pedaço urbano nunca será completamente
exótico a ponto de ousarmos ter sobre ele uma atitude de apreensão, domínio e decifração do
objeto de investigação – postura há muitas décadas já abandonada, até mesmo em pesquisas
feitas com povos de outros mundos culturais. Também temos em vista que a própria
metrópole, lugar de trocas constantes, nos convoca a viver situações de pesquisa em que
diversos elementos agirão na transformação do etnógrafo (ou do pesquisador inspirado pelo
método etnográfico), à maneira mesmo de um rito de passagem. São pontos que brotam
durante os intercâmbios realizados – tanto no campo, como no texto – entre quem investiga e
as demais pessoas, as quais, por sua vez, têm seus pontos de vista, vivências, conjunto de
17
valores e afetos, que podem ou não ser diferentes dos nossos. Logo, nesse cultivo, algum grau
de estranhamento é esperado, dada a imensidão de subjetividades que circulam e se tecem
coletivamente no meio urbano.
Gilberto Velho (2008) é um autor que pondera sobre esse assunto:

O fato é que dentro da grande metrópole, seja Nova York, Paris ou Rio de
Janeiro, há descontinuidades vigorosas entre “o mundo” do pesquisador e
outros mundos, fazendo com que ele, mesmo sendo nova-iorquino,
parisiense ou carioca, possa ter experiência de estranheza, não-
reconhecimento ou até choque cultural comparáveis à de viagens a
sociedades e regiões “exóticas” (VELHO, 2008, p. 126).

Associada a esse pensamento, Lilian de Lucca Torres (2000) comenta algo válido de
ser pensado em relação aos objetivos deste trabalho. A preocupação da Antropologia com a
diversidade urbana e como a pesquisa etnográfica na esfera do lazer se lança como um
método apropriado também convêm às análises dos processos comunicativos, no âmbito da
área da Comunicação. Para a autora, a múltipla reunião de equipamentos de lazer e diversas
formas de sociabilidade na urbe evoca uma das características principais da cidade: a
“diversidade cultural interna ao meio urbano”:

Não se trata de uma diversidade caótica: há uma ordenação, porém não há


“o” padrão urbano, mas uma multiplicidade de padrões. É esta
heterogeneidade que faz do espaço urbano contexto profícuo para a pesquisa
antropológica: a diversidade, questão fundante da antropologia, está muito
perto de nós, está na cidade em que vivemos. (TORRES, 2000, p. 86)

Segui na esfera dos estudos em Comunicação e Cultura, portanto, um procedimento


que a literatura antropológica sobre as etnografias construídas em meios urbanos aconselha
comumente: a previsão de um aprendizado de si e do outro. Assim como proposto no método
cartográfico1 (ALVAREZ e PASSOS, 2009; KASTRUP, 2009; KASTRUP e BARROS,
2009), que se avizinha do método etnográfico, nesse trilho pretende-se acompanhar os

1
Virgínia Kastrup e Regina Benevides Barros (2009, p. 76) explicam que a cartografia é um método fundado por
Gilles Deleuze e Félix Guattari, o qual “(...) não comparece como um método pronto, embora possamos
encontrar pistas para praticá-lo. Falamos em praticar a cartografia e não em aplicar a cartografia, pois não se
trata de um método baseado em regras gerais que servem para casos particulares. A cartografia é um
procedimento ah hoc, a ser construído caso a caso. Temos sempre, portanto, cartografias praticadas em domínios
específicos. Em segundo lugar, notamos que a proposta de Deleuze e Guattari não é a de uma abordagem
histórica ou longitudinal, e sim geográfica e transversal. A opção pelo método cartográfico, ao revelar sua
proximidade com a geografia, ratifica sua pertinência para acompanhar a processualidade dos processos de
subjetivação que ocorrem a partir de uma configuração de elementos, forças ou linhas que atuam
simultaneamente.”.
18
movimentos da miríade de aspectos relativos ao campo, habitando de maneira compartilhada
o mesmo território existencial que o seu “objeto”. Nas palavras de Alvarez e Passos (2009),
isso faz parte da ordem de um aprendizado que não é pensado como etapa de um
desenvolvimento, mas como “um trabalho de cultivo e refinamento” que supomos vir do com-
viver coletivo. Trata-se de um:

Aprendizado no duplo sentido de processo e de transformação qualitativa


desse processo. Movimento em transformação. Tal aprendizado não pode ser
enquadrado numa técnica e em um conjunto de procedimentos a seguir, mas
deve ser construído no próprio processo de pesquisa (ALVAREZ e
PASSOS, 2009, p. 135).

Destarte, no processo de pesquisa estive no encalço de pistas e estratégias que


pudessem ultrapassar o senso comum que muitas vezes despotencializa o espaço suburbano
da Zona da Leopoldina, relegando-o a significados reducionistas e a um apagamento cultural,
histórico e urbano frente a outras regiões, como, inclusive, o subúrbio mais famoso da Central
do Brasil. O objetivo é, então, fazer conversar as vozes dos interlocutores, os dados coletados
em arquivos e trechos de reportagens e colunas extraídas de jornais que se dispuseram a falar
sobre a Zona Leopoldina e o contexto de seus cinemas, além de minhas impressões na
observação participante.
Em várias partes do trabalho de inspiração etnográfica, sobretudo no Capítulo 3, na
construção textual busco expor a minha voz como pesquisadora, colocando-a, sempre que
possível, em diálogo com as vozes dos interlocutores que estiveram ao meu lado nesse longo
caminho. Alguns riscos na tarefa de relatar as falas de outrem com frequência se impõem no
horizonte da escrita etnográfica, pois o discurso monolítico e a autoridade do etnógrafo
podem, sim, se elevar em detrimento das expressividades das pessoas com quem se
conversou.
Comentando e advertindo sobre a solução do discurso indireto no texto etnográfico,
Caiafa (2007) se apoia em Mikhail Bakhtin e Valentin Volochínov para explicar que, em
geral, nesse tipo de construção narrativa há uma “tematização” do discurso dos outros e uma
tendência analítica por parte de quem narra. A partir daí, despersonifica-se o colorido das
vozes que as outras pessoas ecoaram e passa a ser o etnógrafo quem irá, como um examinador
onisciente, organizar a heterogeneidade discursiva em prol das significações aonde quer
chegar.
Entre as alternativas, haveria o recurso do discurso direto, que, segundo a autora,
19
representa uma “modalidade interessante para o texto etnográfico” (CAIAFA, 2007, p.164),
mas, de qualquer forma, mesmo com a previsão de uma integração maior da fala de outrem à
narração, ainda assim há riscos de transformar o texto em blocos compactos de
perguntas/respostas. No discurso direto, há oportunidades para a queda em um “estilo
monolítico”, expressão bakhtiniana que Caiafa cita.
Em contrapartida, depois de fazer uma rica exemplificação de estilos narrativos
etnográficos, a sugestão cogitada pela antropóloga se alia à ideia de que para se chegar a boas
escrituras etnográficas, ciente da inexistência de regras propriamente ditas, o etnógrafo
precisa fazer valer o fôlego que o levará a “apreender e transmitir um discurso colorido,
singular, cuja alteridade deveria inspirá-lo a produzir, ele mesmo um discurso também
singular e expressivo, particular e não absoluto ou dominante” (Ibidem, p. 167). É perante a
perspectiva de Bakhtin e Volochínov, e também com base em pontos da obra de Gilles
Deleuze e Félix Guattari, que a autora fala a propósito da proficuidade dos discursos que se
amparam não na eliminação das alteridades por simples justaposição, mas na troca e na
operação dialógica entre expressividades, enunciados e afetos.
Grosso modo, Caiafa (2007, p.168) salienta a importância do contágio entre a voz do
pesquisador e a fala de seus interlocutores, associado à atitude de disponibilidade em expor-se
aos acontecimentos do campo. Assim, maior será a possibilidade de ocorrerem práticas de
“Chegar perto, expor-se, falar junto e não acima” (Idem), que se diferem, em todas as
instâncias, da mistura. Com essa intenção, o “discurso indireto livre” aparece como um estilo
profícuo para a construção narrativa. Esse recurso que, conforme nos indica Caiafa (2007),
surge de fato com Bakhtin e Volochínov, pode ser uma solução conveniente para o texto
etnográfico, abrindo ensejos para que a escrita encontre formas de escapar de um
posicionamento autoritário do etnógrafo e da minoração dos múltiplos aspectos que pululam
nos relatos dos interlocutores.
Caiafa diz que para Bakhtin e Volochínov, o discurso indireto livre:

(...) não é propriamente um caso do discurso indireto, mas uma nova


tendência com características próprias, uma “orientação particular”
(BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 2002: 175) da interação do discurso citado
com o contexto narrativo. A novidade é que há ali “convergência” dos dois
discursos, mas a orientação dos dois é diferente. Os dois discursos falam
juntos em alguma medida, mas o discurso citado “resiste por trás da
transmissão pelo autor (BAKHTIN e VOLOCHÍNOV, 2002: 173). No
uníssono, portanto, permanece uma distinção entre os dois discursos e a
alteridade do discurso relatado não se perde. Importa observar que o discurso

20
narrativo, nesse caso, se desinvestiu de sua autoridade para acompanhar o
discurso citado, mas não houve mistura. (CAIAFA, 2007, p.168-169)

À luz desse conjunto de atitudes e práticas relativas à condução da pesquisa e da


escritura etnográficas, houve no processo de construção do texto a tentativa de seguir estas
inspirações ao praticar o método etnográfico. O fortalecimento daquilo que os outros “tinham
para contar” em curtas ou longas conversas esteve na proa da execução do trabalho.
Creio que o mais interessante são o manuseio e o exercício da habilidade em lidar com
um campo cujos objetos diretos de investigação, as salas de cinema de rua, não existem
(materialmente) mais, salvo aquilo que permanece e se reconstrói na memória de quem teve
suas experiências de vida marcadas pelos cinemas de estação. Preservar a gama de
tonalidades que daí advém torna-se um compromisso. O trabalho a seguir se sustenta nesses
alicerces.

c) O corpo da tese
O Capítulo 1 abordará a formação dos bairros suburbanos na passagem do século XIX
para o século XX. Fundamentando esse objetivo, nossa linha de análise parte de uma
perspectiva que retoma acontecimentos relativos a aspectos da urbanização do Rio de Janeiro.
Pretendemos observar como os bairros do subúrbio do Rio de Janeiro, com foco naqueles
localizados às margens da estrada de ferro da Leopoldina, se configuraram, tendo em vista os
tipos de equipamentos coletivos urbanos erigidos nessas localidades. É nosso objetivo ainda
investigar as particularidades da noção de subúrbio carioca, recorrendo a autores como
Maurício de Almeida Abreu (2006), Nelson da Nóbrega Fernandes (2011), Maria Therezinha
Segadas Soares (1966) e Elizabeth Cardoso (1986), que estudaram esse conceito e os usos
específicos da designação de áreas urbanas ao norte, ao extremo norte e a oeste do Rio de
Janeiro. Contudo, antes de nos debruçarmos na concepção de subúrbio no contexto dessa
cidade, será preciso recorrer a Lewis Mumford (1998) e a Henri Lefebvre (2012), autores da
base teórica que fundamenta os tradicionais conceitos de suburb e banlieue nos estudos em
Sociologia Urbana e no Urbanismo.
No Capítulo 2, o texto se destinará inicialmente às análises do estatuto do olhar na
emergência da Modernidade, tendo em vista a sedimentação da noção do homem como
sujeito do conhecimento de si e do mundo. Buscaremos apoio essencialmente na obra de
Jonathan Crary (2012), que numa revisão teórica ampla, bem à luz de Michel Foucault,
investiga o papel das tecnologias modernas na organização do olhar sob um novo estatuto do
21
indivíduo. Nessa linha, chegaremos às análises do cinema como uma tecnologia de época e
um medium que na fase de urbanização das cidades, entre os séculos XIX e XX, se constituiu
como um vigoroso dispositivo (AGAMBEN, 2009; BAUDRY, J-L.,1978; FOUCAULT,
1979; VIEIRA e PEREIRA, 1982) . Em face de sua forma urbana mais imediata, na figura da
sala de exibição, o cinema reuniu elementos técnicos, físicos, históricos e discursivos, os
quais, por sua vez, teceram arranjos com a cidade, seus habitantes e os paradigmas midiáticos.
O capítulo se estenderá sobre o assunto da inserção do cinema no Rio de Janeiro à
época de sua Belle Èpoque, isto é, quando a cidade começou a ganhar feições
caracteristicamente urbanas. A esfera do lazer, que passava por um galopante avanço no
ambiente coletivo urbanizado, e as questões relacionadas às aventuras e à sedimentação de um
seminal mercado exibidor carioca são igualmente perscrutadas.
A partir daí, abordaremos o período dos cinemas cariocas em meados do século XX,
quando certos padrões arquiteturais/ mercadológicos de salas exibidoras e determinadas
formas de espectação cinematográfica ganharam um papel de destaque na paisagem da cidade
e na vida dos citadinos. Apresentaremos alguns pontos que mostram como o equipamento
urbano sala de cinema se infiltrou notavelmente nesse cenário.
É válido destacar que nesse mesmo capítulo, a investigação contou com dados
coletados em arquivos, assim como material extraído de periódicos e conversas com
frequentadores. Tudo isso nos deu condições para – numa perspectiva que buscou mais as
minúcias e menos a remontagem de uma historicidade oficial sobre os lazeres modernos no
Rio de Janeiro – examinar a organização do circuito de salas de exibição na cidade nas
primeiras décadas do século XX, sobretudo do circuito exibidor suburbano. Consideramos o
fato de que o cinema já nasceu como um equipamento coletivo intrinsecamente ligado à
urbanização carioca, em sua época moderna, e às práticas de diversão e sociabilidade aqui
efetivadas.
Depois de um breve panorama sobre o surgimento do cinema mundial e das salas de
cinema cariocas, partiremos para a investigação do aparecimento de salas exibidoras em
bairros suburbanos. Notaremos brevemente as questões relacionadas ao mercado exibidor
comercial atuante nesta região no século passado. Daremos ênfase ao papel do comerciante
Domingos Vassalo Caruso, que fora proprietário da maior parte dos cinemas da Leopoldina,
ao longo da segunda metade do século XX.
O Capítulo 3 apresentará um inventário geral dos equipamentos de exibição do
subúrbio da Leopoldina, conectando alguns dados coletados em documentos às memórias de
22
antigos frequentadores dos cinemas erguidos em frente (ou nas imediações) das estações de
trem de bairros como Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha e Brás de Pina. Em conversas
realizadas com cerca de quinze pessoas ao longo de quatro anos de pesquisa, foi organizado
um vasto material gravado e escrito pertinente às lembranças que essas pessoas têm a respeito
de suas idas aos cinemas. Procuramos trazer para o texto as impressões acerca dos
equipamentos que marcaram as infâncias, adolescências e fases adultas desses interlocutores.
Em conexão com essas vozes, por alguns breves momentos, observações de cunho
histórico dão leves toques à escritura, em meio às falas sobre a trajetória dos cinemas na vida
dos espectadores. Trabalharemos, aí, com a ideia de cinemas de estação, isto é, equipamentos
coletivos de lazer cinematográfico que se encontravam em frente às estações de trem.
Buscamos, assim, entender a relação de proximidade entre os aparatos sala de cinema e
estação de trem nas paisagens concretas e simbólicas da Zona da Leopoldina. Ao final,
registraremos, a título de introdução ao assunto, quais foram os primeiros cinemas que
surgiram na Zona da Leopoldina depois do fechamento irrestrito dos cinemas de estação. As
particularidades desses novos espaços de exibição, preponderantemente encontrados dentro de
shopping centers, serão ressaltadas.
O Capítulo 4 se dirigirá aos atuais locais onde é possível fazer contato com o
audiovisual cinematográfico na Zona da Leopoldina. Comentaremos sucintamente como as
iniciativas de cineclubes e cinema não comercial, que contam com aportes estatais, têm hoje
condições de participação transformadora no cenário suburbano da região em face da
uniformização desse lazer nos multiplex dos centros fechados de comércio. Verificaremos em
que grau eles são alternativas a um tipo de privatismo espacial, que parece balizar as idas aos
cinemas em shopping center e as exibições domiciliares.
Em seguida, o nosso exame enfocará uma solução interessante – embora não
impassível a inquietações – que recentemente se coloca em favor da democratização do
acesso ao audiovisual cinematográfico na Zona da Leopoldina, especialmente no Complexo
do Alemão. Falaremos da experiência inovadora do Cinecarioca Nova Brasília, o primeiro
cinema de favela do mundo e o único equipamento de exibição, adequado à categoria “cinema
de rua”, em funcionamento na Leopoldina.
Trata-se de um projeto desenvolvido no âmbito municipal pela Riofilme, uma entidade
pública voltada para o fomento do audiovisual na cidade. Com operação diária a cargo da
Cinemagic, empresa do capital privado, o Cinecarioca Nova Brasília apareceu no cenário da
comunidade na mesma época em que parte do conjunto de favelas recebeu suas Unidades de
23
Polícia Pacificadora, as UPPs, que têm por objetivo efetivar os planos estatais da política de
segurança pública contra o narcotráfico atuante na região. Veremos quais implicações daí se
levantam.
Noutro momento, já perto da finalização, nos empenharemos em discutir os eixos das
promessas de reabertura dos extintos cinemas suburbanos, com foco em dois cinemas locais
da Zona da Leopoldina, o Rosário/Ramos e o Santa Helena/Olaria. Tais probabilidades vêm
sendo estudadas em consonância com os planos municipais de melhoria no acesso aos
equipamentos de exibição em regiões pobres do Rio de Janeiro. Nessa fase, por conta de ser
uma conjuntura que ainda se desenvolve, o trabalho ganha um tom ensaístico. Com isso,
esperamos observar as pistas e os seminais dados desse contexto, através de questionamentos
acerca do perfil dos investimentos e das parcerias público-privadas que já são pensadas para a
área pelo Estado.
Incluiremos nesse grupo os condicionamentos de alguns projetos à capitalização dos
territórios em benefício da dotação de infraestruturas que comportem os jogos esportivos que
a cidade sediará em 2014 e 2016. Na conclusão, lançamos um olhar que sobrevoa o conjunto
do trabalho, propondo algumas perspectivas a futuras investigações que, porventura, se
avizinhem do tema.

24
Capítulo 1
O subúrbio carioca e a Zona da Leopoldina

1.1 - Subúrbio: conceitos, categorias e representações


“Agora reaparecem os valores fundamentais da classe média, do pessoal da periferia”.
Com essa frase, o cineasta Cacá Diegues explicou ao Jornal O Globo as causas do crescente
interesse de alguns realizadores brasileiros por argumentos cinematográficos que utilizam o
tema “subúrbio do Rio de Janeiro” como mote central de seus filmes. Na reportagem de capa
do Segundo Caderno, edição do dia 25 outubro de 2012, diretores com diversas inclinações
dentro do cinema nacional (desde os mais “alternativos” e “cults”, até os mais ligados às
produções estritamente comerciais) deixam claro: o subúrbio está na moda.
Segundo eles, uma série de urgências coloca o subúrbio na proa temática da
cinematografia atual. Nesse sentido, argumentam que: 1) esses locais precisam ser
artisticamente revisitados; 2) os roteiros que os celebram devem receber incentivos
financeiros para serem filmados; e 3) é de notável importância que a ode aos suburbian films,
como nomeiam os filmes brasileiros cuja temática são as regiões suburbanas cariocas, angarie
visibilidade em festivais internacionais.
“Coração suburbano” é o título da matéria onde expressões como “folclore
suburbano”, “fenômeno econômico da classe C”, “recuperação da autoconfiança da
população”, “gosto de rua”, “lado suburbano do carioca”, “riqueza humana e estética”,
“diretores nativos” etc. são utilizadas pelo jornalista e por seus entrevistados nas alegações
que fazem acerca da retomada das narrativas sobre as áreas suburbanas, empreendida pelo
cinema brasileiro. O texto destaca ainda que este movimento, muito atual, vem superar a febre
dos favela-movies dos anos 2000.
Perceber que o subúrbio do Rio de Janeiro ganha ultimamente mais explorações dentro
do setor audiovisual não é uma exclusividade de gênio do autor da reportagem de O Globo e
seus personagens entrevistados. Sabemos que, paralelamente às iniciativas da indústria
cinematográfica, produtos da Rede Globo, por exemplo, como as telenovelas “Avenida
Brasil” (2012) e “Salve Jorge” (2013), e os seriados “Subúrbia” (2012) e “A Grande Família”
(em exibição) têm ajudado a engrossar as confabulações midiáticas em torno das regiões
localizadas ao norte, ao extremo norte e a oeste da cidade.
Entretanto, embora existam conteúdos cinematográficos e televisivos (e também
comunidades em redes sociais da Internet) voltados para o elogio aos subúrbios, poucos se

25
atêm, de fato, a uma problematização das já sedimentadas representações – em sua maioria,
de cunho generalista e alegorizado – dessas áreas urbanas diante do contexto social e histórico
do Rio de Janeiro. Em verdade, tais produções efetuam menos ainda uma análise sobre os
desenhos e recortes espaciais que segregam, desde o início do século XX, alguns pedaços da
cidade alocados na categoria “subúrbio”.
O caráter redutor pelo qual a ideia de subúrbio é usualmente tratada parece prender
certas regiões do Rio de Janeiro, e seus moradores, a círculos sociais, culturais e econômicos
claustrofóbicos. Observamos que, muitas vezes, não são levadas em conta as diversidades e as
variantes históricas que estiveram ininterruptamente em jogo nos processos de estruturação
dos bairros, seus equipamentos urbanos e locais de produção de sociabilidade e práticas
comunicacionais.

Ao falar em subúrbio, no singular, reforçamos uma imagem homogênea que


não expressa os diferentes momentos, ritmos e direções do processo de
produção das duas grandes áreas suburbanas – a da Central e a da
Leopoldina –, acrescidas pelas estradas de ferro Rio D’Ouro e Linha
Auxiliar nas antigas freguesias rurais de Inhaúma e Irajá, a partir de meados
do século XIX. Analisados em conjunto e apenas a partir de dinâmicas e
movimentos do capital imobiliário, também podemos apagar as múltiplas
experiências sociais vividas nesses bairros da cidade e que fazem parte da
história do Rio de Janeiro (MACIEL, 2010, p.196).

Ao sabor da caracterização do espaço segundo princípios de comercialização


territorial, a noção de subúrbio carioca, pelo menos no breve exemplo citado acima, se atrela a
enunciados sobre esses locais, e suas gentes, organizados em face de narrativas que acabam
caindo nos vazios clichês da nostalgia de um tempo passado “sempre bom”, da superação de
obstáculos que o “homem do povo” consegue driblar sem perder o “sorriso no rosto” e da
autenticidade do suburbano e de suas ruas, onde “crianças ainda podem brincar na calçada”.
Não é demasiado lembrar que a difusão e a legitimação de modos de representação se
vinculam fortemente aos meios de comunicação de massa (FREIRE FILHO;
HERSCHMANN; PAIVA, 2004), os quais elaboram, por meio de suas veiculações,
poderosos artifícios para naturalização e criação de efeitos de verdade. No caso da
representação midiática acerca das áreas citadinas designadas como subúrbios, hoje o que se
nota nas recorrentes vezes em que o tema vira pauta central é a existência de uma série de
apropriações significantes, adjetivações e menções que passam ao largo do tratamento da
genealogia e dos processos de formação (e conformação) socioespacial dessas localidades.

26
Acreditamos que o “subúrbio” mostrado pelo campo midiático brasileiro é usualmente
elaborado como uma categoria urbana (territorial e cultural) ancorada em imagens
homogeneizadas e estanques. Por esse viés, é raro haver cruzamentos entre as concepções
relacionadas à vivência e à experiência cotidianas, não mediatizadas, e os constructos sobre o
subúrbio que o transformam em produto rentável. Essa tendência faz valer justamente os
aspectos que, na verdade, condizem apenas à rentabilidade simbólica dos espaços e suas
gentes, muitas vezes em detrimento tanto da miríade de diversidade, como das chances de
ruptura com convenções do senso comum, traços da diferença que a cidade (e seus pedaços e
pessoas) pode ricamente abrigar.
As capacidades de mistura, produção do coletivo e criação de esferas criativas na
cidade convivem, assim, com o recorrente aparecimento de narrativas reducionistas e
reacionárias da mídia, todas muito capazes de ameaçar a circulação de um pensamento sobre
o urbano que escape da previsibilidade identitária e proponha algo alternativo à modelação da
cidade pela comunicação mass-midiática (CAIAFA, 2007, p.25).
Seguindo esse raciocínio, não podemos deixar de abordar a “mass-midalização
embrutecedora”, nas palavras de Félix Guattari, à qual indivíduos e grupos são condenados
quando não há uma efetiva “re-apropriação e uma re-singularização da utilização da mídia”
(GUATTARI, 1992, p.15-16), no sentido de promover outros usos dos meios midiáticos em
prol de uma produção singularizante de enunciados e discursos.
Citamos o termo “singularizante”, evocando propositalmente os sentidos que Guattari
elabora quando opõe os conceitos “singularidade' (de onde se desmembra a noção de
“processo de singularização”) e “identidade”. Ele diz, em linhas gerais, que esses conceitos se
atêm a níveis diferentes da produção de subjetividade. A identidade está para o
reconhecimento, a referenciação, enquanto a singularidade está para a existência, as formas
singulares de viver, sentir, experimentar, criar, falar, agir, querer ou não querer alguma coisa
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 80). Talvez o aspecto mais essencial do uso dessas noções
é que a identidade, ao contrário da singularidade, se refere a “quadros de referência, quadros
esses que podem ser imaginários”.

Em outras palavras, a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de


diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência
identificável. Quando vivemos nossa própria existência, nós a vivemos com
as palavras de uma língua que pertence a cem milhões de pessoas; nós a
vivemos com um sistema de trocas econômicas que pertence a todo um
campo social; nós a vivemos com representações de modos de produção
27
totalmente serializados. No entanto, viveremos e morreremos numa relação
totalmente singular com esse cruzamento. O que é verdadeiro para qualquer
processo de criação é verdadeiro para a vida. (…) o que interessa à
subjetividade capitalística não é o processo de singularização, mas
justamente esse resultado do processo: sua circunscrição a modos de
identificação dessa subjetividade dominante (GUATTARI e ROLNIK, 2005,
p. 80).

Ainda com base nas ideias de Guattari, consideramos imperativo que as


reapropriações dos conteúdos midiáticos se constituam de modo heterogêneo e não
submetidas ao paradoxo da circulação intensa de “diferenças”, que, por sua vez, acabam se
petrificando e permanecendo no mesmo lugar, ameaçando, assim, a subjetividade de paralisia,
porque na lógica desse excesso já não há um caminho para singularização (apenas, um breve
aceno do “diferente sem densidade”, justamente aquele que se torna intercambiável,
equivalente) (GUATTARI, 1992, p.169).
Não seria arriscado pensar que a construção de significados para o termo “subúrbio”
se apresenta muitas vezes como uma exclusividade de intérpretes autorizados e autóctones,
como, por exemplo, os cineastas dos suburbian films entrevistados na supracitada reportagem
de O Globo. Juntos, parecem segurar o bastão da produção sígnica em mãos, que lhes
conferiu uma fala legitimada sobre si e os outros. Quando se ajustam às prerrogativas dessa
representação identitária, não deixam, a seu modo, de estar ligados a mecanismos de
identificação e reconhecimento circunscritos à “subjetividade dominante” capitalística
(GUATTARI, 2005, p. 80), fomentada por vetores midiáticos, entre outros.
Nosso exame vem ressaltar que não é apenas a seara midiática o ambiente onde a
noção de “subúrbio” é forjada em meio a dominações simbólicas. Cremos que a noção de
“subúrbio”, no caso carioca, mantém fortes laços com estereótipos ancorados em uma espécie
de desatenção com os acontecimentos, rompimentos e continuidades, que ocorreram durante
longos anos de estruturação e reformas urbanas do Rio de Janeiro e que, conforme notaremos,
não fazem parte da História oficial da cidade, à medida que alguns aspectos concernentes às
particularidades e às experiências singulares em torno da constituição dos subúrbios ficaram
despercebidos.
À ideia atual de subúrbio carioca, se entrelaçam características forjadas a partir de
uma ativa circulação midiática. As imagens aí fabricadas respondem, ao que tudo indica, à
necessidade de alguns meios de mídia de tomar os subúrbios (e tudo o que deles advém) como
um bem simbólico serializado, pronto para o consumo cultural de uma sociedade ávida pelo
acesso àquilo que é “popular”, “excêntrico”, “tradicional” ou “vanguardista” e “cult”. Com
28
efeito, tudo parece ser conduzido em detrimento da heterogeneidade de aspectos que
contribuem, desde há muito, para a configuração material desses espaços e suas imagens
socioculturais em circulação.
Os avanços sociais que grupos economicamente marginalizados obtiveram durante os
últimos anos, com a escalada das classes C e D ao longo da Era Lula e das primeiras etapas do
governo da presidente Dilma Rousseff, podem ter contribuído para a formação de uma rede de
discursos de enaltecimento identitário da classe pobre.
Geralmente, nas falas sobre a “pobreza emancipada”, a alteridade (personificada em
indivíduos, grupos ou territórios) é colocada de forma exotizada. Busca-se apoio em palavras
como “reconhecimento”, “recuperação”, “reafirmação”, “revitalização” e “ressurgimento”.
Por esse viés ainda se destaca a existência de demarcações entre o “nós” e os “outros”, de
uma produção significante que tenta trazer o diferente para a normalidade ou lança sobre ele
um olhar colonizador.
Orientados por este quadro teórico, podemos observar mais cuidadosamente as
demarcações socioespaciais ocorridas ao longo do século XX no Rio de Janeiro – por
ordenações de decretos da municipalidade ou através de estratégias de ocupação territorial
ligadas a empresas – e as fronteiras físicas e simbólicas erguidas com o amparo de
cartografias oficiais, com cunho segregacionista.
Esses recortes espaciais referem-se às áreas hoje conhecidas como as zonas
suburbanas e têm por base representações nem sempre condizentes com o “objeto”
representado. A noção de “suburbano” é outra que não parece escapar da engrenagem de
produção de sentidos vinculada a estereótipos e visões de mundo segregantes.
As iniciativas do poder público na orquestração do espaço se apropriaram da categoria
“subúrbio”, há tempos existente no Urbanismo, utilizando-a de maneiras muito próprias para
caracterizar algumas áreas desta cidade. A aplicação deste conceito, na esfera carioca, até se
combinou em alguns raros momentos com a acepção tradicional do termo, que, em sua
origem latina, suburbiu, significa “cercanias da cidade” e se relaciona com redutos de classes
elitizadas (MUMFORD, 1998, p. 533; FERNANDES, 2011, p. 22; LINS, 2010, p. 139). Mas,
ao nos apoiarmos na literatura sobre a urbanização do Rio de Janeiro, percebemos que a
representação de zonas ao norte, ao extremo norte e a oeste do município como “zona
suburbana” responde a uma classificação simbólica e a práticas de produção de sentido muito
específicas.
A expressão e a ideia “subúrbio do Rio de Janeiro” se distanciam em grande escala da
29
definição original do conceito de “subúrbio” arregimentado na história ocidental, cuja
acepção mais estrita se adequa, com mais precisão, aos desenvolvimentos de cidades
norteamericanas e europeias da segunda metade do século XIX. Nesses lugares, essa categoria
do Urbanismo, em linhas gerais, foi consolidada e aplicada para classificar as áreas
nitidamente distintas do centro, embora dependente dele em vários aspectos, locais onde a
elite poderia levar uma vida social mais tranquila, longe da “degradação” dos núcleos urbanos
que então fervilhavam.
Essa atribuição é apenas um dos constructos urbanísticos e geográficos que ligam
“subúrbio” às noções “cidade” e “urbano”. As análises que Lewis Mumford (1998) e Henri
Lefebvre (2012) realizam, quase em contraponto, em torno do conceito de subúrbio (tratando-
o historicamente e, ao mesmo passo, cunhando as bases de seu entendimento) mostram como
este termo atravessa a estruturação tanto das cidades contemporâneas e industriais, como, em
alguma medida, das medievais, romanas, gregas e egípcias.
Mumford confere à expressão uma importância de ordem elementar nos exames que
faz acerca do desenvolvimento da cidade na História. Para ele, mesmo muito antes do advento
do século XX – quando há, de fato, uma evidente divisão entre a cidade (centro) e o subúrbio
(zona periférica e de refúgio rumo a uma vida mais salubre) –, as chamadas “áreas
suburbanas” já eram proeminentes até na organização dos espaços dos tempos bíblicos, por
exemplo. Também, na Idade Média, a constituição de “áreas suburbanas” acompanhava o
espírito dos homens que à época teciam odes aos locais de recreação, prazeres rurais e
jardinagem, comumente situados fora dos limites citadinos. Nas palavras de Mumford: “(...) o
fato é que o subúrbio se torna visível quase tão cedo quanto a própria cidade, e talvez
explique a capacidade de sobrevivência da cidade antiga, frente às condições insalubres que
predominavam dentro de seus muros.” (MUMFORD, 1998, p. 522).
Inicialmente muito atrelado à imagem do campo, o antigo subúrbio vai guardar
afinidades com o momento em que um êxodo proposital para longe das cidades
congestionadas torna-se hábito entre os europeus ricos do século XVIII. Seus afastamentos
dos núcleos citadinos ocorriam por causas variadas, que iam desde prescrições médicas à
busca por bem-estar e lazer, por longas ou curtas temporadas de estadia em localidades não
centrais.
O “antigo subúrbio romântico”, noção criada por Mumford, com o tempo se tornou
um lugar caro. No século XIX, pagava-se “um preço elevado pelo ar puro” (1998, p. 530)
dessas cercanias. Dando como exemplo as cidades industriais da Inglaterra e dos EUA, o
30
autor mostra que as áreas suburbanas viraram guetos, sendo socialmente marcadas pela
estratificação de classe.
Os subúrbios então equivaliam a “um esforço da classe média no sentido de encontrar
uma solução privada para a depressão e a desordem da metrópole imunda (...)” (1998, p.531).
Desligavam-se da cidade, originando “comunidades segregadas” (1998, p. 533), mas a ela se
mantinham em algum grau conectados: seja economicamente, seja intelectual, artística ou
culturalmente.
Já no século XX, a expansão da ferrovia nas metrópoles ocidentais ocasionou o
surgimento dos subúrbios ferroviários, cujas baixas densidades demográficas e extensões que
podiam ser percorridas pelos pedestres através de curtas e médias caminhadas tornaram-se
características fortes. Neste formato de subúrbio, segundo Mumford, uma espécie de núcleo
comercial nasce espontaneamente nas adjacências das estações de trem. Entretanto, em meio
às intensas transformações nas mobilidades urbanas, dá-se o avanço da motorização das
cidades.
Sobre esse aspecto, este autor dirá que é neste momento que se altera substancialmente
a configuração suburbana, cujo crescimento era antes “controlado” pela estação ferroviária e
as distâncias a pé. A forma suburbana então se submeterá cada vez mais a um modelo de
anticidade, dependente dos imperativos do automóvel. Destruindo a escala do pedestre, o
carro fez com que o subúrbio perdesse “a maior parte de sua individualidade e do seu
encanto” (MUMFORD, 1998, p. 546).

O subúrbio deixou de ser uma unidade de vizinhança: tornou-se uma massa


difusa, de baixa densidade, envolvida pela conurbação e posteriormente
envolvendo-a mais. O subúrbio precisava de sua própria pequenez, assim
como precisava de seu background rural, para realizar seu próprio tipo de
perfeição semi-rural. Uma vez ultrapassado aquele limite, o subúrbio deixou
de ser um refúgio da cidade e passou a fazer parte da metrópole inescapável,
“la ville tentaculaire”, cujos espaços abertos contíguos e distantes e cujos
parques públicos também eram outras manifestações da cidade
congestionada (MUMFORD, 1998, p. 546).

É diante desta constatação que o autor cria a ideia de “subúrbio de massa”, acepção
com a qual perceberá as áreas suburbanas as quais, na segunda metade do século XX, se
caracterizavam por fatores como: homogeneidade arquitetônica, ausência do que chama de
“vantagens do grupo primário de vizinhança” (ou seja, um tipo de solidariedade entre
vizinhos, num sentido comunitário restrito), e “vida encasulada, passada cada vez mais dentro
de um automóvel ou dentro de uma câmara escura, ante um aparelho de televisão”
31
(MUMFORD, 1998, p. 553).
Mesmo se detendo durante longas páginas de sua célebre obra “A cidade na História”
às abordagens sobre “subúrbio”, Mumford não faz menções diretas a possíveis relações entre
essas zonas e grupos sociais pobres. Em suas considerações, “subúrbio” é uma palavra que
sempre se vincula à elite ou a classes médias, principalmente quando examina os subúrbios
norteamericanos, como o de Los Angeles, por exemplo.
Partindo justamente deste ponto, o geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes (2011)
destaca as distâncias teóricas entre Mumford e Henri Lefebvre, outro autor indispensável para
as discussões sobre a categoria “subúrbio”. Fernandes comenta que Mumford não confere
quase nenhuma atenção2 à “existência de um subúrbio proletário nas cidades modernas da
Europa e dos EUA” (FERNANDES, 2011, p. 28). A perspectiva de Mumford se diferencia
bastante das análises de Lefebvre exatamente porque este faz entrar o vetor da habitação
(avaliando a lógica do habitat na realidade da França oitocentista) nas suas conclusões sobre a
ocupação dos locais periféricos de cidades industriais.
Fernandes assinala que:

A ideologia do habitat – a propriedade da casa proletária no subúrbio – e a


sua realização com a suburbanização do proletariado são vistas por Lefebvre
como mais do que simples consequências das reformas urbanas (...). Mais
concretamente, tais reformas não terminaram com a inauguração da última
grande avenida dos planos de embelezamento e saneamento das áreas
centrais, pois a transformação capitalista da totalidade urbana envolveu a
proletarização de grande parte do subúrbio, promovida e justificada pela
ideologia do habitat. (FERNANDES, 2011, p. 30).

Fazendo coro aos comentários de Fernandes (2011) e examinando diretamente as


reflexões de Lefebvre (2012), compreendemos que quando o autor de “O direito à cidade”
encara os fenômenos urbanos sob um ponto de vista marxista, ele faz uma aproximação
precisa entre o processo de suburbanização parisiense e acontecimentos como: a ascensão
derradeira dos ideários burgueses ligados ao capitalismo industrial; os enlaces entre
proletários, o Estado e a “ideologia do habitat”; e as reformas urbanas promovidas entre 1853
e 1869 na capital da França.
Lefebvre preconiza que no cerne da questão urbana – e de uma transformação
hegemônica dos espaços citadinos pela força da lógica produtivista – está a própria gênese das

2
Fernandes cita um trecho no qual Mumford irá brevemente mencionar que as classes médias inferiores à elite
migram para os subúrbios, levando um viés depressivo para esses locais. Cf. FERNANDES, 2011, p. 28.
32
áreas suburbanas, entendidas por ele como filhas diletas de um segundo ato das reformas
urbanas da Paris haussmaniana. Conforme sua crítica, os subúrbios seriam fruto da
“destruição da urbanidade” parisiense (LEFEBVRE, 2012, p.28).
O segundo ato das reformas é caracterizado pelo autor como a fase diretamente
posterior às obras promovidas pelo barão Haussmann. Já as obras propriamente ditas fazem
parte de um momento anterior: a etapa inicial das reorganizações da Paris de final de século.
Neste primeiro período, ruas apertadas foram substituídas por amplas avenidas e boulevares,
bairros inteiros passaram por um “aburguesamento” e à cidade foram permitidas novas
possibilidades de circulação a partir da construção de grandes “espaços abertos” (Idem).
Para além das obras de infraestrutura, foi a ideia de “habitat” que norteou as práticas
explicitamente segregadoras, e aquelas baseadas na filantropia, implementadas durante o
aparelhamento dos espaços da cidade e suas periferias. Lefebvre chama de “estratégia de
classe” o processo de hierarquização de casas e bairros promovido em Paris, embasado pela
filosofia do habitat, isto é, a lógica do “acesso à propriedade”. O autor entenderá a questão do
habitat como o ponto fundamental para a expulsão do proletário do centro urbano parisiense,
aí enxergando claramente a ocorrência da destruição da “urbanidade” (LEFEBVRE, 2012,
p.28).
Por meio de um viés moralizador, altamente vinculado a um progressivo esvaziamento
político dos centros, os subúrbios de Paris não se traduziram numa realidade propriamente
urbana – marcada por encontros, promoção de heterogeneidade, diversidade e usos
combinados dos espaços e coexistências entre as diferenças (LEFEBVRE, 2012; JACOBS,
2007, CAIAFA, 2007). Ao contrário, foram marcados pela desvitalização do urbano, por uma
“urbanização desurbanizante e desurbanizada” (LEFEBVRE, 2012, p.30). Deste modo:

Com a criação do subúrbio, surge em França um encarniçado pensamento


urbanístico contra a cidade. Paradoxo singular. Durante dezenas de anos, sob
a Terceira República, surgem os textos que autorizam e regulamentam os
loteamentos e das áreas residenciais de vivendas. Ao redor da cidade instala-
se uma periferia desurbanizada e, no entanto, dependente da cidade. Com
efeito, os “suburbanos” e os habitantes dos grandes bairros residenciais não
deixam de ser urbanos também, ainda que percam essa consciência e se
julguem mais próximos da natureza, do sol e das áreas verdes. (Idem)

Ainda pela perspectiva de Lefebvre, somos levados a pensar que nem sempre nas
trajetórias de urbanização das metrópoles a aposta na “circulação” citadina significou garantia
de “acesso”, “mistura” e “dessegregação” de pessoas na urbe. Tais termos dizem respeito a

33
um modo especial de povoamento urbano e são utilizados por Janice Caiafa (2007) para
pensar a produção coletiva de espaços públicos.
Nos arranjos espaciais que deram origem a centralidades e recantos suburbanos em
Paris, houve medidas em prol da “circulação” urbana e da habitação popular (questões
essenciais para a reforma de Haussmann). No entanto, não se ignora o fato de terem existido
na retaguarda dessas iniciativas interesses de ordem segregante e asséptica, contrariando o
entendimento que observa a cidade como um resultado de movimentos de “dessegregação”,
mesmo que locais e provisórios, segundo bem propõe Janice Caiafa (2007). A partir de uma
ótica que trata a “circulação” como condição crucial para a existência das cidades, essa autora
busca apoio em partes da literatura de Fernand Braudel, Gilles Deleuze e Félix Guattari
relacionadas aos temas do urbano e dos espaços.
Janice Caiafa (2007) comenta que a expansão das cidades modernas – através de suas
interligações umas com as outras – possibilitou tanto a atração de uma diversidade
populacional, como uma combinação interessante entre dispersão e concentração nesses
locais. Para a pesquisadora, assim foram geradas mais chances para profícuas experiências
com a alteridade nos espaços coletivos, fundando mesmo um povoamento urbano.

(...) a cidade se expande em rede com outras cidades e atrai uma população
muito diversa, promovendo mais mistura e tornando as atividades mais
partilhadas (BRAUDEL, 1979). Deleuze e Guattari (1997) vão chamar de
vertical o procedimento do Estado opondo-o à expansão horizontal das
cidades, apoiada na comunicação, na dispersão e na circulação. Outra faceta
das cidades é a densidade da população. Os meios urbanos são densos,
concentram ao mesmo tempo em que criam possibilidades de dispersão, de
circulação, de acesso. De diferentes maneiras, em cada configuração urbana,
a história das cidades envolve o povoamento, a ocupação do espaço. Trata-se
de uma ocupação coletiva, da produção de espaços públicos. Parece-me que
esse coletivo urbano se caracteriza por possibilitar, de alguma forma, a
experiência com a alteridade. Nesse espaço coletivo se dá a mistura
propriamente urbana e em alguma medida uma dessegregação, mesmo que
sempre provisória e local (CAIAFA, 2007, p. 21).

Tendo em vista tantos aspectos caros às expansões e configurações das cidades, aqui
levantados por Caiafa (2007) – tais como: “densidade”, “circulação”, “alteridade”,
“dispersão” e “acesso” –, voltamos ao caso de Paris, com base no trabalho de Lefebvre, para
observar que em vez de uma mistura heterogênea na ocupação dos espaços desta metrópole
europeia na era Moderna, o que parece ter havido foi, no entanto, a desvitalização política dos
centros através de um povoamento das áreas suburbanas, condicionado a medidas da

34
racionalidade estatal. De acordo com o autor, tudo ocorreu em prol de um bem-estar
burocratizado e de “estratégias de classe” vinculadas ao capital industrial daquele momento
do século XIX.

A suburbanização, este afastamento do proletariado da Cidade, fará com que


a classe perca o sentido da vida urbana e da cidade como obra, já que
distante dos locais de produção e absorvidos pelo consumo, “o proletariado
deixará se esfumar em sua consciência a capacidade criadora. A consciência
urbana vai se dissipar” (LEFEBVRE, 1991, p. 18) (FERNANDES, 2011, p.
31).

Entretanto, a despeito desse tipo de urbanização, que, de acordo com Lefebvre, foi
inicialmente vítima da “indústria e [d]o processo de industrialização [que] atacam e devastam
a realidade urbana previamente existente, até a destruírem através da prática e da ideologia,
até a extirparem da realidade e da consciência.” (LEFEBVRE, 2012, p. 33), a sociedade
urbana, no caso de Paris, percebeu os sérios riscos de sua decomposição, caso a cidade, no
sentido de “vida urbana”, não fosse restituída de alguma maneira; diante de uma nova
racionalidade, o urbano se reinventou, ainda que subordinado à forte presença de “estratégias
de classe” (LEFEBVRE, 2012, p.34).
Ocupado por conjuntos habitacionais e vivendas3, conforme explica o autor
supracitado, os arredores de Paris foram alvo de especulações imobiliárias e de uma distensão
desordenada dos terrenos através de edificações. Embora esse processo tenha “povoado” as
periferias parisienses, foi um cenário de dissipação da “consciência da cidade e da realidade
urbana” (LEFEBVRE, 2012, p. 33) que se verificou na trajetória de constituição dos
banlieues desta cidade.
É digna de registro a complexidade do termo banlieue e a sua relação com a ideia de
“subúrbio”. Para isso, evocamos as considerações de Maria Therezinha Segadas Soares
(1990), que esclarece que:

(…) a palavra banlieue, que é considerada sinônimo de suburb, na língua


inglesa, como esta serve para designar uma forma de crescimento das

3
Adotaremos a partir desta fase do trabalho a categoria “subúrbio” tal como ela é utilizada habitualmente nas
organizações espaciais e simbólicas do Rio de Janeiro, desde o começo do século XX. Diversos grupos sociais,
incluindo os próprios moradores dessas regiões, incorporaram a expressão para designar sobretudo as regiões da
zona mais ao norte da cidade, cortadas ou não pelas linhas do trem, localizadas a partir do bairro do Engenho
Novo até os limites com outros municípios como Campo Grande e Nova Iguaçu, por exemplo. Excetuam-se
dessa classificação locais como Tijuca, Andaraí, Vila Isabel, Rio Comprido e São Cristóvão, os quais fazem
parte da zona norte carioca, mas, em regra, não são chamados de bairros suburbanos.

35
grandes cidades e seu uso deve ser reservado a um tipo de crescimento
urbano particular às grandes cidades da Europa Ocidental, devido a seu
conteúdo histórico e à forma de evolução que ela encerra (SOARES, 1990, p.
138).

Soares (1990), e também Fernandes, buscarão apoio nos escritos de Pierre Bonnoure,
geógrafo que fixou o termo banlieue na Geografia Urbana. Ambos dizem que Bonnoure
chama atenção para a não submissão dos subúrbios a limites jurídicos e municipais. Antes, na
concepção de Bonnoure, serão os traçados característicos, as formas, as paisagens – áreas não
edificadas e presença de espaços vazios entre as construções – e os sentimentos de
pertencimento dos moradores que configurarão o banlieue (SOARES, 1990).
Para Fernandes, a grande contribuição desse autor para a investigação do conceito de
subúrbio foi propor a multiplicidade dessa categoria, numa análise que foi além das usuais
dicotomias que, à época de seus estudos, separavam lugares de moradia de classe média e
zonas industriais de moradia popular. Banlieue/ subúrbio:

(…) admite variados usos e conteúdos sociais: banlieues industriais, de


população burguesa, residenciais pobres, operárias, de loteamentos, banlieues
em antigas aldeias, banlieues de horticultores e mesmo banlieues leiteriais.
Paisagem multiforme que tem seu ponto de partida fundamental em sua
morfologia, ou seja, no campo aberto, em construções desafogadas, que
contrasta com a regra dos edifícios contíguos da paisagem da cidade, não
sendo a distância do Centro da cidade nem os elementos sociais as condições
essenciais para sua definição (...) (FERNANDES, 2011, p. 32).

Em meio a esse paradigma de onde despontam as ideias acerca da configuração dos


banlieues, a noção de “habitar” – antes ligada à ideia de “participar de uma vida social, de
uma comunidade, aldeia ou cidade” (FERNANDES, 2011, p.30) – se reduziu à simples
questão residencial, ao valor de troca econômica que determinadas localidades passaram a ter.
Fernandes (2011) explica que a mudança de perspectiva no cerne do habitat – que antes
previa “outros direitos, prerrogativas, deveres e convivências que formavam a vida e o habitar
na cidade pré-industrial” (Idem) – ameaçou o próprio “direito à cidade”. O autor define,
partindo de Lefebvre, a “ideologia do habitat” com base no caso da reforma urbanística
parisiense. A saber:
Tomando o caso da reforma de Paris (1853-1869) descrito por Lefebvre,
essas reformas urbanas foram realizadas em dois atos. No primeiro, o Estado
associado à burguesia empreendeu grandes intervenções urbanas,
construindo, por um lado, a cidade moderna, e por outro, destruindo a cidade
antiga, especialmente os bairros centrais mais antigos ou degradados em que
habitavam grupos sociais que resistiam às imposições do capitalismo e da
36
indústria, o que determinou a expulsão dos trabalhadores do Centro de Paris
para a periferia e os subúrbios. O segundo ato foi a defesa da promoção pelo
Estado da casa própria para os operários no subúrbio, a chamada ideologia
do habitat, como a solução da crise da habitação decorrente das reformas e
da imigração. Segundo Lefebvre, tal ideologia e estratégia vieream à tona
após a Comuna de Paris, impulsionada por políticos, católicos e protestantes
do establishment francês, especialmente Frederic Le Play (FERNANDES,
2011, p. 30).

A noção de subúrbio aplicada à realidade parisiense é uma prova de que áreas


emancipadas e/ou áreas dependentes dos centros urbanos, assim como toda a cidade, têm suas
configurações espaciais ligadas às dinâmicas sociopolíticas. Estas configurações citadinas, por
sua vez, são produtos de movimentos históricos e lógicas internas de cada local, ao mesmo
tempo em que também podem fabricá-los. O próprio Lefebvre lembra que o espaço é um
produto social e nunca um receptáculo vazio.
Janice Caiafa (2007) também irá escrever sobre a noção de “subúrbio” em suas notas
acerca dos processos de suburbanização decorridos em cidades dos Estados Unidos da
América. A autora enfatiza a existência de uma estreita relação entre as regiões periféricas e
as habitações de classes médias e altas no contexto estadunidense.
Com foco no desenvolvimento do transporte coletivo nos EUA, Janice Caiafa (2007)
afirma que depois da 1° Guerra Mundial, paralelamente à expansão das cidades combinada à
exuberância de circuitos de trens, bondes, metrô e ônibus, inicia-se um processo fundado no
êxodo urbano e em pequenas emigrações para áreas distantes dos centros. Ancorada por essa
observação, a antropóloga desenvolve a ideia da “suburbanização” como uma aposta em um
estilo de vida centrado no consumo automobilístico e na existência das autovias.
Por este ponto de análise, a suburbanização será um fenômeno que vem, na realidade
estadunidense, mudar em alto grau a imagem da urbanidade e muitos aspectos da vitalidade
citadina, até então preponderantes em algumas cidades desse país. Neste caso, foram os
homens e as mulheres das classes médias e altas os personagens que deixaram os centros para
habitar as bordas urbanas, mantendo durante o tempo e em determinadas ocasiões, relações
funcionais com as regiões centrais, embora uma rede de serviços logo se erguesse nos
subúrbios recém-ocupados, fato que parece ter territorializado de algum modo moradores e
atividades dentro de tais cercanias.
Nessa trajetória citadina, o centro passou a ser destinado à moradia dos pobres. Ao
mesmo passo, os transportes coletivos entraram na ordem de um sucateamento intenso,
justamente por conta da falta de investimentos em modernização e manutenção básica.

37
Segundo descreve Caiafa (2007) foi com esse desenho que o uso da rodovia e dos carros
particulares reinaram no estilo de vida dos suburbanos das classes média e rica. A essas
classes, pouco a pouco, se juntaram também alguns grupos e pessoas pobres que, por sua vez,
emergiram financeiramente e evadiram dos centros em dinâmicas de “mobilidade social”.
Consecutivamente, fenecem as garantias de um ir e vir coletivo, e público, diante do novo
momento urbano, marcado pelo elogio aos veículos capsulares (individualizados, particulares
e motorizados) e às formas privadas de ocupação das cidades.
Na acepção de Janice Caiafa (2007), o processo de suburbanização das cidades
estadunidenses, com exceção de Nova York, trata-se da:

(...) construção de regiões residenciais em torno das cidades, os subúrbios,


que em geral só podem ser atingidas por automóvel. As classes alta e média
alta começam a abandonar as cidades, mudando-se para longe dos sistemas
de transporte coletivo, do trânsito urbano e dos espaços públicos. As
atividades e os empregos vão deixando as cidades e se concentrando em
torno das residências e ao longo das autoestradas. O espaço da circulação e
da mistura urbana tende a desaparecer. Ironicamente, é o transporte coletivo
que vai permitir que em seguida famílias de baixa renda possam imitar as
mais ricas e partir para os subúrbios. Aos poucos os subúrbios vão se
tornando independentes da cidade central e não é mais o transporte coletivo
que fará a conexão entre eles, mas apenas o automóvel privado. Os
investimentos federais em transporte coletivo são paralisados e o transporte
existente será cada vez mais precarizado por falta de manutenção. As
cidades se esvaziam e esse processo muda totalmente a face do país. A rigor
não existem mais cidades, mas conjuntos de áreas metropolitanas que
reúnem subúrbios residenciais de baixíssima densidade demográfica
(CAIAFA, 2007, p. 21).

Vemos, com base nesse pensamento, que há no cerne do conceito de subúrbio, de sua
história e das práticas a ele conectadas claras ordenações provenientes dos movimentos e
interesses do capital. Crescimento econômico e controle (estatal e financeiro) dos espaços
atravessam, ao longo do tempo, não apenas os arranjos e morfologias urbanas, mas ainda os
modos de vida, pertencimento, habitação, além de alterarem substancialmente as
subjetividades.
As esquematizações urbanas que deram origem aos subúrbios, pelo menos nos
exemplos aqui citados – Paris, por meio da leitura de Lefebvre; EUA e Inglaterra, por meio da
leitura de Mumford e Caiafa –, indicam que os contextos de criação de zonas suburbanas em
grandes cidades ocidentais atrelam-se às produções e aos usos do espaço, levando em
consideração as sanções e vontades do capital, desde os períodos de industrialização até os
tempos atuais.
38
Em nosso escrutínio, não podemos deixar de salientar que os subúrbios se sedimentam
na história e na contemporaneidade com hastes na intrínseca relação entre as cidades e a
capitalização de quase tudo o que ela contempla. É daí que, mais tarde, pensaremos as
particularidades dos subúrbios cariocas no contexto urbano do Rio e a organização dos seus
territórios e equipamentos coletivos pelas ações do estado capitalista e agentes do capital
privado. Por hora, pensamos apenas no conceito de “território” como uma instância que
aparece como:

(...) uma arena de movimentos cada vez mais numerosos, fundados sobre
uma lei do valor que tanto deve ao caráter da produção presente em cada
lugar como às possibilidades e realidades em circulação. O dinheiro é, cada
vez mais, um dado essencial para o uso do território” (SANTOS, 2003, p.
99).

Numa análise sobre a destinação da cidade aos imperativos do dinheiro e da produção


de bens, recorremos a Lefebvre. Ele deixa claro que a cidade como “obra”, rica em “criação”
(na ideia de um “criar” cunhado pelas mãos de grupos opressores, em sociedades pré-
industriais, os quais esbanjavam fortunas, gastando-as com a construção suntuosa de edifícios,
palácios e operações de embelezamento dos espaços), perde seu valor de uso, passando a ter
um mero valor de troca na emergência da sociedade industrializada.
Isso ocorre quando esta cidade criativa – local de acúmulo de riquezas4 e também de
conhecimentos, onde se molda a vida sociopolítica – subordina-se à generalização da
mercadoria pela industrialização. Enquanto refúgio do valor de uso, dirá Lefebvre (2012,
p.19), a cidade destrói-se em prol de um valor de troca.

Em suma, as cidades tornam-se centros de vida social e política onde se


acumulam não só riquezas mas os conhecimentos, as técnicas e as obras
(obras de arte, monumentos). Esta cidade é, em si mesma, obra, e esta
característica contrasta com a irreversível orientação para o dinheiro, para o
comércio, para as trocas, para os produtos. Com efeito, a obra é valor de uso
e o produto é valor de troca. (LEFEBVRE, 2012, p. 18)

Na literatura sobre as cidades, também Max Weber irá elaborar uma visão acerca da
relação entre a origem dos espaços citadinos e o capital. Quando define as diversas formas de

4
Lefebvre irá dizer que no advento da industrialização, com o nascimento do capitalismo concorrencial e da
burguesia industrial, a cidade já constituía uma poderosa realidade. Não era, assim, algo novo. Firmava-se como
solo de excelência para as atividades de mercadores e para o acúmulo de riqueza monetária obtida por meio da
usura e do comércio (LEFEBVRE, 2012, p.17).
39
cidade, sob o ponto de vista econômico, ele afirma que as principais características desta
categoria circulam em torno do estabelecimento de uma vida na qual os habitantes vivem do
produto da indústria e do comércio, em localidades com certa diversidade de ocupações
industriais (WEBER, 1973, p. 69). Além disso, o autor destaca que para haver cidade é
preciso existir “um intercâmbio regular e não ocasional de mercadorias na localidade, como
elemento essencial da atividade lucrativa e do abastecimento de seus habitantes, portanto de
um mercado” (Idem).
Na obra de Weber, a cidade:

(…) é pré-condição do capitalismo na medida em que é necessária para a


existência do mesmo, mas mais tarde o desenvolvimento do capitalismo
intensifica o crescimento das cidades. Neste sentido, para Weber, a cidade é
primeiro um pressuposto do capitalismo mas posteriormente seu
desenvolvimento é um resultado dele. De fato, ele argumentou que uma das
razões pelas quais o capitalismo não se desenvolveu no Oriente foi
exatamente a ausência de cidades definidas de acordo com seus critérios
(OLIVEN, 1980, p. 15).

Entretanto, nos escritos de Deleuze e Guattari (1997), os procedimentos da cidade e do


Estado distinguem-se de acordo com as maneiras com que tais instâncias operam (e
organizam) os fluxos, circuitos, retenções, hierarquizações e estratificações (ou não) do
território e das formações de poder.
Para esses autores, enquanto a solução-cidade procede em função da circulação, de
entradas e saídas, sendo a cidade “um ponto assinalável sobre os circuitos que a criam ou que
ela cria” (1997, p. 122) – impondo mesmo uma frequência, onde há uma rede de cidades que
se ligam umas às outras5 –, a forma-Estado faz com que pontos de ordens diversas ressoem
juntos, operando por estratificação.
O Estado, dizem Deleuze e Guattari,

(…) forma um conjunto vertical e hierarquizado que atravessa as linhas


horizontais em profundidade. Ele só retém, portanto, tais e tais elementos
cortando suas relações com outros elementos que, então, se tornam
exteriores, inibindo, retardando ou controlando essas relações; se o Estado
tem ele mesmo um circuito, é um circuito interior que depende primeiro
da ressonância, é uma zona de recorrência que se isola assim do
resto da rede, pronto a controlar ainda mais estritamente as relações
5
Os autores dizem que a cidade “representa um limiar de desterritorialização, pois é preciso que o material
qualquer seja suficientemente desterritorializado para entrar em rede” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 122].
É daí então que tal material desterriorializado, concernente à cidade, irá submeter-se à polarização e, assim,
seguirá o circuito de recodificação urbana e itinerária (Idem).
40
com esse resto. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 123).

Destarte, o poder do Estado é hierarquizado; é uma integração global, uma


estratificação do território. A integração que a cidade envolve, contudo, é uma integração
local. Ela opera por frequência e circulação entre os pontos. Com isso, pelas noções de
Deleuze e Guattari, a cidade “tende a se emancipar quando a própria sobrecodificação do
Estado provoca fluxos descodificados” (1997, p. 124). A cidade, na fase em que há a
necessidade de uma recodificação dos fluxos então descodificados e desterritorializados, faz
valer sua autonomia e descola-se da forma-Estado. É por aí, pela recodificação urbana,
afirmam eles, que se forma uma rede comercial livre entre cidades comerciantes e
corporativas, as quais não precisam proceder vinculadas aos moldes da sobrecodificação
estatal.
Deleuze e Guattari ainda dirão que não se pode atribuir, após a verificação dos modos
de procedimento da solução-cidade e da forma-Estado, a criação do Capitalismo às cidades,
fato que, em algum grau, se desloca das concepções de Max Weber acerca da íntima relação
(genealógica) entre cidade e Capitalismo.

Não são as cidades que criam o capitalismo. É que as cidades comerciantes e


bancárias, com sua improdutividade, sua indiferença ao subúrbio, não
operam uma recodificação sem inibir também a conjugação geral dos fluxos
descodificados. Se é verdade que elas antecipam o capitalismo, por sua vez
elas não o antecipam sem conjurá-lo. Elas estão aquém desse novo limiar. É
preciso, portanto, estender a hipótese de mecanismo ao mesmo tempo
antecipadores e inibidores: esses mecanismos atuam nas cidades “contra” o
Estado e “contra” o capitalismo, e não somente nas sociedades primitivas.
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 125).

Assim, é pela forma-Estado que o capitalismo triunfa. E isso acontece quando os


Estados ocidentais se tornam modelos de realização ideais do capital, reassujeitando, por sua
vez, as cidades, dissipando-as (de maneira violenta ou não). Por esse viés, é o Estado quem dá
ao capitalismo as condições de sua efetivação.
Portanto, diante de reflexões acerca do espaço citadino e do território, e suas relações
com o capital e as ações do Estado, temos em vista que esses fatores são indispensáveis para
pensar a criação de centralidades e margens urbanas, além dos usos simbólicos e materiais
que as pessoas fazem dos lugares. Será a partir deste ponto que lançaremos um olhar atento
sobre o conceito de subúrbio aplicado à realidade do Rio de Janeiro, investigando a sua
genealogia. É imperativo observar os diferentes contextos urbanos e temporais com os quais a
41
ideia de “subúrbio” se articulou, e articula, nesta cidade.
Acreditamos que em razão de haver uma proficuidade em torno da noção de
“subúrbio” (sempre em face de categorias como a cidade, o território, o urbano, o capital),
autores como Maria Therezinha Segadas Soares (1966) e Nelson da Nóbrega Fernandes
(2011), por exemplo, puderam propor outras formas de pensá-la. Nos estudos que realizaram
sobre regiões ao norte, ao extremo norte e a oeste do município do Rio de Janeiro, eles
evidenciam ressignificações e reapropriações muito particulares de uma noção antiga e cara
ao urbanismo ocidental. É por esta leitura ímpar da ideia de subúrbio, que nos nortearemos,
tendo na ideia de “rapto ideológico” (FERNANDES, 2011) um eixo para a compreensão das
peculiaridades da categoria “subúrbio carioca”.

1.2 - A noção de “subúrbio carioca”


1.2.1 - “Rapto ideológico” e o binômio subúrbio-indústria
Fernandes (2011) argumenta que as caracterizações das regiões norte e oeste do
município do Rio de Janeiro como locais de moradia das camadas populacionais pobres, zona
industrial e espaço margeado por linhas ferroviárias resultam de uma série de ajustamentos da
noção clássica de “subúrbio”, segundo um caráter claramente segregante e ideologicamente
estruturado. Esta articulação muito especial entre aspectos sociais, geográficos e econômicos
nasceu como fruto de um processo de significação, que, para o autor, só ganhou consistência
no imaginário dos cariocas e nas cartografias oficiais da cidade a partir da segunda década do
século XX.
Antes dos anos 20, porém, boa parte desses pedaços ao norte e a oeste da cidade era
qualificada através dos sentidos “originais” da noção “subúrbio”. Isto é: a ideia de “subúrbio
carioca” ainda se aproximava dos significados clássicos desta categoria, tal como propuseram
alguns estudiosos aqui já abordados: 1) as classificações de Mumford (1998) e Lefebvre
(2012); 2) os exames de Caiafa (2007) em relação a cidades norte-americanas; e 3) os
comentários de Fernandes (2011) à luz das teorias de Pierre Bonnoure.
Em outras palavras, tudo indica que as zonas ao norte e a oeste eram vistas naquele
início de século como regiões afastadas do Centro, que reuniam casas da classe média ou de
pessoas mais abastadas e, ao mesmo tempo, serviam como lugares de vilegiatura6. Repletos
de espaços livres e desafogados, esses pedaços configuravam-se, muitas vezes, como regiões

6
Lugares de campo ou praia onde se pode passar temporadas, localizados em áreas geralmente afastadas dos
grandes centros urbanos.
42
de excelência para a vida bucólica e salubre.
Há mais um aspecto notável que destaca a particularidade do conceito de subúrbio
aplicado ao Rio de Janeiro em sua fase de modernização. Fernandes (2011) adverte que
alguns bairros da hoje “zona sul” eram frequentemente citados na literatura e em documentos
municipais da época como arrabaldes suburbanos. Essa qualificação era algo de praxe nos
tempos anteriores às valorizações imobiliária e territorial de bairros como, por exemplo,
Botafogo e Copacabana, os quais só “emergiriam” de categoria em meados do século XX.
Tudo isso indica que pode ter havido nas dinâmicas urbanas do Rio certo grau de
arbitrariedade em relação aos elos entre as localizações geográficas de alguns espaços
cariocas e a categoria subúrbio, no período que vai do final do século XIX à primeira metade
do século passado.
Portanto, notamos que as marcações “zona sul” e “zona norte (ou oeste)
suburbanizada” não parecem fazer parte de um arranjo a priori da cidade. Ao contrário,
existiram momentos ambíguos durante a categorização (e caracterização) de determinadas
regiões, com entrelaçamentos socioespaciais imprecisos no que tange à categoria “subúrbio” e
aos pedaços hoje considerados membros de uma “centralidade” carioca. As marcações zona
sul versus zona norte/subúrbios, de imediato reconhecimento e fácil legibilidade nos tempos
atuais, nem sempre foram balizas evidentes nas percepções do espaço urbano carioca, no que
se refere aos limites sociais e territoriais desta cidade.
O que esteve em jogo ao longo do século XX, de acordo com as pesquisas de
Fernandes (2011), foi um rol de adaptações e uma variedade de usos do conceito “subúrbio”,
de forma a raptá-lo ideologicamente. Este “rapto” se estruturou com força a partir da Reforma
Passos – momento-chave da urbanização capitalista do Rio de Janeiro, quando passa a ser
adotada “uma política discriminatória em relação ao subúrbio ferroviário que, desde então,
começou a ser idealizado como lugar do proletário” (FERNANDES, 2011, p. 59).

Será a partir desta época, mais precisamente em meio às reformas urbanas do


Prefeito Pereira Passos (...) que se detecta a mudança do significado espacial
e social da categoria subúrbio e seu rapto ideológico. De agora em diante,
essa categoria deixa de ser usada na representação de todos os espaços
circunvizinhos à cidade para se fixar exclusivamente naqueles do norte e
oeste, servidos pela ferrovia. Em termos sociais subúrbio passa a representar
o espaço idealizado como lugar do proletariado e das indústrias,
simbolizando o ambiente das classes sociais e das atividades rejeitadas pela
cidade. (FERNANDES, 2011, p. 58).

43
Fernandes (2011) procura observar criticamente a urbanização do Rio de Janeiro e a
consequente naturalização do vínculo entre subúrbio, pobreza e trem, que infiltrou os recortes
geográficos e as representações socioespaciais da cidade. O autor salienta que o “rapto
ideológico” nasceu, de fato, na gestão de Pereira Passos, mas mostra que a consumação da
particular ideia de “subúrbio carioca” se deu na época em que foram traçadas, dentro do Plano
Agache, as propostas de intervenção urbana do governo do prefeito Prado Júnior, em 1927.
Naquele que é considerado o primeiro plano diretor do Rio de Janeiro, da autoria do
urbanista Alfred Agache, pretendeu-se promover a divisão explícita da cidade em áreas
funcionais específicas: zonas de negócios, zonas voltadas para as habitações das classes altas,
zonas de moradia da burguesia e da classe média, e zonas de ocupação popular/pobre. Para
dar o suporte necessário a essas ordenações e estratificações, estaria o controle efetivo do
Estado sob os territórios (ABREU, 2008; FERNANDES, 2011).
Apesar do Plano Agache não ter sido implantado, suas heranças se colocaram
evidentes em décadas posteriores, quando o processo de segregação socioespacial se adensou
no Rio de Janeiro, a partir do desenvolvimento da urbanidade capitalista em detrimento tanto
dos bairros ferroviários e arrabaldes a oeste (FERNANDES, 2011, p. 65), como de áreas
centrais já, à época, favelizadas.
Nessa fase, os lugares de aparência rural e as terras mais ou menos afastadas do
Centro – ocupadas por linhas de trem, fábricas e casas de uma população sem recursos
financeiros avantajados (com algumas exceções) – eram paulatinamente incorporados pela
categoria “subúrbio”, termo que nesse contexto já se mostrava como uma categoria
reformulada, distanciada de seus sentidos urbanísticos clássicos. Assim, a partir de uma
aplicação do conceito claramente sujeita aos imperativos da estratificação, com vistas à
consecução de um uso meramente capitalista dos espaços, houve o descolamento, em alto
grau, entre a noção de subúrbio carioca e a ideia de subúrbio mais fiel às representações dos
suburbs e banlieues aqui já mencionadas.
Destarte, ressaltamos que o conceito carioca de subúrbio coincide:

(...) com as grandes transformações da sociedade e do espaço do Rio de


Janeiro do início do século XX e sintetizadas nas reformas urbanas então
realizadas. Neste reordenamento do espaço social e de implantação da
separação capitalista entre usos e classes sociais, que assalta e reestrutura o
tecido urbano para as necessidades do capitalismo, o conceito carioca de
subúrbio pode ser compreendido como uma necessidade ideológica,
definindo não apenas um lugar, mas, sobretudo, o lugar que passou a ser
ideologicamente destinado ao proletariado do Rio de Janeiro (...). Desta
44
forma, o aparecimento do conceito carioca de subúrbio pode ser
caracterizado como o fruto de um rapto ideológico intimamente ligado ao
problema da criação do espaço e das representações ideológicas do Rio de
Janeiro reformado em moldes capitalistas (FERNANDES, 2011, p. 48).

Através de uma abordagem histórica, e sem chegar a discutir em pormenores os usos


singulares do termo “subúrbio” no caso carioca, Maurício de Azevedo Abreu, que fora
professor do supracitado Fernandes (2011), foi outro autor que norteou as compreensões
acerca da “produção de um espaço urbano socialmente desigual e injusto” (ABREU, 2008,
p.7). No livro “Evolução urbana do Rio de Janeiro” – obra clássica da década de 1980,
atualizada no início dos anos 2000 –, ele optou por um eixo de análise que contempla as
dimensões do papel do Estado Capitalista na estruturação espacial desta cidade e nas
dinâmicas sociais entre os grupos/ classes nela residentes.
Para Abreu (2008), a Reforma Passos também foi um divisor de águas no que condiz
às mudanças estruturais ocorridas em meio ao que chama de “evolução da forma urbana”
carioca. Referindo-se ao período que vai do final do século XIX até 1930, ele afirma que as
transformações empreendidas no Centro e na zona sul estiveram profundamente vinculadas ao
papel do Estado, cuja intervenção nesses pedaços veio socorrer os então agudos problemas de
planejamento da cidade, que impossibilitavam a divisão do Rio em áreas mais e menos
nobres.
Era necessário, nas lógicas dos poderes federal e municipal da então capital do país,
organizar e equipar determinadas localidades, já que novos processos econômicos estriavam
cada vez mais o território em prol de uma configuração capitalista e industrial diretamente
oposta à face agrícola – face enxergada como um espólio do século XIX ainda não totalmente
extinto, mesmo diante dos esforços modernizadores da Belle Époque do Rio de Janeiro.
Em verdade, a profícua ocupação urbana dos subúrbios do Rio não fez parte das
atenções e dos planos estatais para a (re)formulação da cidade naquele início de século.
Equipamentos, moradias e mobilidades, que lá iam se consolidando, concatenaram-se muito
mais ao desenvolvimento industrial do Rio de Janeiro e a experiências com os espaços
marcadas por interesses privados do que a estratégias governamentais7.
A rápida associação subúrbio-indústria, que fora, sim, evidente em alguns pedaços ao

7
Cada caso de ocupação urbana dos bairros suburbanos cariocas precisaria de uma investigação mais minuciosa,
que este trabalho não se propõe a fazer, embora aqui atentemos para a existência de uma série de particularidades
quanto aos tipos de equipamentos, funções e infraestrutura ligados à história das zonas da Leopoldina e da
Central do Brasil.

45
norte e a oeste da cidade (mas não em toda a parte desses territórios), não exclui o fato de que
no primeiro quartel do século XX, bairros da zona sul (exemplos: Laranjeiras, Gávea e Jardim
Botânico) se colocassem em pé de importância com os arrabaldes, no que se refere a uma
intensa vida fabril e proletária. Tal observação, como propõe Fernandes (2011), desnaturaliza
a compreensão imediatista do senso comum que concebe uma ligação irrevogável entre a
categoria “subúrbio”, as zonas norte e oeste cariocas e a característica “zona industrial”.
Embasando essas considerações, temos em vista que entre 1914 e 1918, de acordo
com dados de Abreu (2008), a atividade industrial no Rio de Janeiro já era a maior do país,
com uma produção duas vezes superior à de São Paulo (ABREU, 2008, p. 80). Ajudadas por
fatores como a eletrificação – proporcionada pela Light – e a abertura de um porto marítimo
mais moderno na região que hoje compreende as imediações da Praça Mauá – com
oportunidades extras para o escoamento de produtos –, áreas suburbanas ao norte e a oeste,
mas também partes extensas da zona sul foram o destino das sedes de muitas fábricas de
médio a grande portes que eram inauguradas. Tornaram-se também um novo terreno para as
indústrias que precisaram abandonar as áreas centrais do Rio (naquela fase, recentemente
embelezadas, em parte elitizadas, e encarecidas).
O bairro de São Cristóvão, por exemplo, apesar de nunca ter sido denominado como
um bairro suburbano, tornou-se destaque nos processos de realocação e sedimentação das
fábricas cariocas. Até as reformas urbanas das primeiras décadas do século XX, o local se
notabilizou como bairro aristocrático, de posição geográfica estratégica: próximo ao Centro,
mas também vizinho do norte da cidade. Com o tempo, no entanto, passou a seguir um viés
meramente fabril, até porque o novo porto, depois de inaugurado, encontrava-se a dois passos
de suas fronteiras.
Mas, de fato, os arrabaldes suburbanos mais afastados, ao norte e a oeste, entravam
paulatinamente na lista dos terrenos preferidos pela indústria, e pelos operários que neles iam
residir, justamente por não terem sido um alvo direto da especulação imobiliária em forte ação
pela cidade.

Nota-se nessa fase a preferência pela localização industrial próxima ao porto,


especialmente em São Cristóvão. Todavia, a existência de terrenos mais
baratos nas áreas servidas pela ferrovia levou muitas fábricas a optar pela
localização suburbana. (...) as freguesias suburbanas apresentaram, nesse
período, uma taxa de crescimento bem maior do que aquela das freguesias
urbanas (...). (ABREU, 2008, p. 80).

Entretanto, esse adensamento urbano das primeiras décadas do século XX não


46
aconteceu por toda a malha suburbana. Não chegou, conforme se observa, aos bairros
cortados pela estrada de ferro da Leopoldina. Foi ao longo do eixo ferroviário da Central do
Brasil que as fábricas apareceram com mais intensidade.
Os seminais parques industriais do subúrbio do Rio de Janeiro, frisamos, não contaram
de início com o incentivo estatal para as suas implantações. Decorrentes deles, os aumentos
populacionais também não tiveram a mão governamental dando suportes à construção de uma
infraestrutura adequada e à organização dos espaços de moradia e convivência das pessoas. O
que se verifica na situação de expansão urbana suburbana de início de século XX, marcada
pela ausência estatal, é a inversão de um dos sentidos originais da categoria “subúrbio”, pelo
menos daquele que nasce nas Reformas de Paris e que se liga à ideologia do habitat, tal como
concebe Lefebvre (2012).
Os apoios da máquina governamental ao processo de desenvolvimento produtivo, os
quais aceleraram a colocação de indústrias em áreas ao redor dos trilhos fluminenses da
Leopoldina, só vieram com maior vigor anos mais tarde. A intervenção mais robusta do poder
público na organização dos espaços suburbanos – dos locais atravessados tanto pela Estrada
de Ferro da Central do Brasil, como aqueles cortados pela Leopoldina Railway (e pelos trilhos
da Linha Auxiliar e da Linha D’Ouro) – aconteceu somente na Era Vargas8.

(...) o processo de crescimento demográfico e industrial dos subúrbios


apresentou, a partir de 1930, uma intensificação notável [...]. Em segundo
lugar, é também a partir da década de 1930 que o Estado passa a intervir no
processo de localização industrial, surgindo dessa iniciativa o Decreto-lei
6.000/37, que definiu pela primeira vez uma zona industrial na cidade
(ABREU, 2008, p. 99).

Segundo Maurício de Abreu (2008), das idealizações sobre o que se formava, já perto
da metade do século, como “zona industrial da cidade” foram excluídas a zona sul e algumas
partes da zona norte (o bairro da Tijuca, aqui, é um bom exemplo). Em muitos casos, as
fábricas que existiam há décadas nessas áreas migraram para terrenos precariamente
construídos e ainda pouco habitados às margens das linhas de ferro.
Esse foi exatamente o caso de bairros como Tijuca9, Laranjeiras, Jardim Botânico e

8
A ocupação dos subúrbios pelas indústrias a partir da década de 1930 pode ter se valido também do incremento
do parque industrial nacional pós-crise mundial de 1929, como também aconteceria anos depois com o
fortalecimento da indústria brasileira após a Segunda Guerra Mundial (ABREU, 2008; SILVA, 2004).
9
Em um trabalho anterior, no qual menciono a urbanização da Tijuca e arredores (como Vila Isabel, por
exemplo), destaco a importância da indústria para o primeiro grande fluxo de ocupação urbana do local. A
Fábrica de Chitas e as indústrias têxteis dessa região marcaram boa parte da vida da Grande Tijuca em décadas
47
Gávea: regiões com uma formação urbana anterior à década de 1930, fortemente vinculada à
presença de atividades fabris, conforme já citamos anteriormente.

1.2.2 O subúrbio, o trem e o bonde


Os bairros integrantes do que hoje conhecemos como subúrbios do Rio de Janeiro
nasceram, timidamente, ao longo das linhas ferroviárias Central do Brasil, Leopoldina,
Auxiliar e Linha D’Ouro: quatro ferrovias que apareceram nas regiões ao extremo norte do
Rio de Janeiro, em seus contextos rurais da segunda metade do século XIX (ABREU, 2008).

Figura 1 - Mapa do Rio de Janeiro com a indicação das linhas de trem (Fonte: Abreu, 2008, p. 52)

Entretanto, a ideia de uma ocupação urbana mais efetiva desses pedaços distantes do
Centro a partir da presença da linha férrea pode não se manter com tanto vigor, caso lancemos
um olhar minucioso sobre outras referências em torno da relação entre a urbanização desses
locais e as formas de mobilidade humana lá engendradas através do uso coletivo de
transportes.
Já nos são evidentes os debates que problematizam as ligações entre a urbanização das

de virada de século (XIX e XX) (FERRAZ, 2009; 2012).


48
regiões cortadas pelas estradas de ferro da Central do Brasil e da Leopoldina e o setor
industrial carioca. Da mesma maneira, parece haver dissensos sobre os nexos instantâneos
entre essas áreas e o trem; vínculos que, muitas vezes, obliteram o papel fundamental que os
bondes desempenharam na ocupação moderna dos bairros ao norte e a oeste do Rio de
Janeiro. É o que justamente examina Fernandes (2011) ao mostrar o bonde como um
transporte que não se deteve apenas aos pedaços da zona sul da cidade, tendo participado
efetivamente da configuração dos subúrbios e das formas de circulação e integração entre seus
espaços e gentes.
A questão é que entre os tipos de mobilidade urbana ali presentes, de fato, algumas
áreas, como a região cortada pela Estrada de Ferro da Leopoldina, guardaram, sim, uma
estreita ligação com a ferrovia, no que concerne às suas formações e arranjos espaciais mais
seminais. Aí, incluímos o desmembramento de fazendas, com a venda de parte de terras
agrícolas às empresas ferroviárias (ABREU, 2008; FERNANDES, 2011), possibilitando com
isso a abertura de espaços “públicos” a partir da montagem de trilhos, episódio que demonstra
que a ocupação de alguns locais saiu das mãos de latifundiários para a de outros agentes
privados, sem sequer passar pela via estatal.
Essa intrínseca relação com o trem não exclui o fato de que, mais tarde, o bonde, a seu
modo, tenha também efetivado costuras e expansões nesses territórios, principalmente após os
anos 30 do século XX, fase em que os aspectos exclusivamente agrários do “Sertão a dentro”
carioca (CRUZ, 1942, p. 44) já eram menos evidentes por causa da entrada de equipamentos e
mobiliários urbanos nesses espaços.
Viagens para além da zona suburbana foram facilitadas também pelos bondes e não
apenas pela ferrovia. Os bondes integravam os bairros dessa região entre si e, da mesma
maneira, os conectavam ao Centro. Em alguma medida, estabeleciam ligações com a zona sul
e bairros da zona norte “mais central”, a exemplo de Tijuca e Andaraí.
Podemos afirmar que o trem e o bonde estriaram algumas partes dos subúrbios
concomitantemente. Em muitos casos, a penetração de companhias de bondes, tal como a
Companhia Ferro-Carril Vila Isabel, ocorreu com a diferença de menos de uma década em
relação à inauguração de trechos de Estrada de Ferro D. Pedro II (Central do Brasil)10.
Assim, os bairros ferroviários ao norte do Rio de Janeiro não deixaram de contar com
linhas de bonde, as quais se associavam de diversas formas às locomotivas férreas a vapor e
10
Segundo Fernandes (2011), foi com a Cia. Ferro-Carril que os bondes (ou carris) começaram a operar nos
subúrbios ferroviários. A empresa começou os seus serviços com tramways puxados a burro e mesmo assim, por
volta de 1875, concorria com a Estrada de Ferro D. Pedro II, então inaugurada em 1858 (ABREU, 2008).
49
igualmente às locomotivas elétricas (surgidas a partir de 1937, quando a eletrificação das
ferrovias que atendiam os subúrbios cariocas tornou-se realidade).
Através da integração entre esses transportes, entroncamentos e chances de
transbordos entre uma paragem de trem e um ponto de bonde eram possibilitados pelo sistema
de mobilidade carioca do final do século XIX e início do século XX. A rede de meios de
locomoção se formava com vigor e proficuidade em terras que cresciam não somente por
causa de insumos industriais, mas porque também eram procuradas como regiões de
vilegiatura e de moradias das classes médias modestas.
Essa complementação de modais, entretanto, não escapava à época dos imperativos
dos capitalistas dos transportes. Ali, em subúrbios como Méier, Cascadura e Engenho Novo
(bairros bem recentes naquele momento), empresários desse ramo viram possibilidades de
lucro, abraçando com fins mercadológicos todas as necessidades de mobilidade daqueles que
lá moravam ou circulavam. Articulações capitalísticas embasavam a lógica de se contar com o
“trem ligando estações e paradas a distâncias maiores e o bonde costurando o interior dos
bairros” (LINS, 2010, p. 150).
De fato, essa interessante conexão entre linhas/ paradas de trem e linhas/ paradas de
bondes não se espalhou por todos os arrabaldes cariocas. Também não atingiu os bairros da
zona sul, nem mesmo aqueles que mantiveram até a Reforma Passos algumas características
que poderiam classificá-los como áreas suburbanas, indicativos tais como seu viés quase
agrário ou, em outros casos, bem industrial.
As interseções entre bonde e trem ocorreram com mais intensidade em bairros
atravessados pela linha de ferro da Central do Brasil. Já as localidades por onde corriam os
trilhos da Leopoldina Railway, não experimentaram com tanta força essa combinação de
transportes ao longo das primeiras décadas do século XX.
O mapa abaixo mostra a inexpressividade do bonde na área da Leopoldina em 1934.
Na imagem, isso se evidencia se observarmos a ausência de emaranhado de linhas de bonde
entre Bonsucesso e Penha. Ao contrário, a parte mais central do mapa, que destaca os
caminhos feitos pelos bondes nas proximidades da linha da Estrada de Ferro Central do
Brasil, parece indicar uma boa presença deste meio de transporte na região dos bairros
suburbanos do Engenho Novo à Piedade.

50
Figura 2 - As linhas de bonde no Rio de Janeiro (Fonte: ABREU, 2008, p. 84)

A linha de bonde que existia na região da Leopoldina (abrangendo Bonsucesso,


Ramos, Olaria e Penha, além de Vicente de Carvalho), conforme vemos, não se destinava aos
interiores dos bairros, tal como faziam os bondes que cortavam os pedaços atravessados pela
Central do Brasil.
Outro ponto salientado pelas informações do material cartográfico (referentes a 1948)
diz respeito às idades das linhas de bonde dos subúrbios da Central e da Leopoldina. Notamos
que a linha de bonde que operava na Leopoldina começou a operar somente a partir de 1907,
mas em um bom pedaço dos bairros da Central percebemos que capilaridade dos bondes, com
linhas efetivas, já era realidade antes dessa data. Isto é, o bonde chegou primeiro nas cercanias
da Central; na Leopoldina; tardou um pouco a aparecer.
Essas observações, em linhas gerais, motivam nosso entendimento acerca das
peculiaridades da Zona da Leopoldina frente às configurações e disposições socioespaciais, e
econômicas, de outras regiões suburbanas. Na base dessa consideração, que sustenta uma
diferença primordial entre os subúrbios da Leopoldina e os subúrbios da Central (ou entre

51
aqueles que não são classificados como arrabaldes ferroviários, a despeito de estarem em
faixas a norte e oeste da cidade), apoiamo-nos em cinco especificidades que a autora Ana
Paula Medeiros (2011) lista ao destacar algumas características de Bonsucesso, Ramos, Penha
e Olaria, aludindo ao passado e à contemporaneidade.
De acordo com Medeiros, esses bairros se estruturam de maneira peculiar no cenário
urbano carioca e suburbano porque:

(a) receberam desde o seu início contingentes populacionais ligados às


camadas mais pobres da população; (b) passaram por um período de
industrialização, a partir da década de 30, que atraiu por sua vez uma massa
de moradores motivados pela oferta destes postos de trabalho, porém não
contaram com a oferta adequada de infraestrutura, como saneamento ou
transportes, neste primeiro momento; (c) apresentam especificidades e
características de segregação socioespacial estreitamente ligadas ao fato de
serem rasgados longitudinalmente por dois grandes eixos viários,
nomeadamente a própria estrada de ferro e a Avenida Brasil, construída na
década de 40; (d) viram expandir-se, de ambos os lados do tecido formal,
dois dos maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro, a saber, o
Complexo da Maré, à direita da Avenida Brasil, margeando a Baía de
Guanabara, e o Complexo do Alemão, ocupando os morros à esquerda
dos bairros mencionados; (e) caracterizam-se, hoje, pelo uso residencial e de
pequeno comércio e serviços, apresentando esparsamente vazios e galpões
inutilizados remanescentes do período de industrialização, que teve um
esvaziamento relativo a partir da década de 70; (f) e, por fim, como se
pretende demonstrar, não têm merecido atenção suficiente nem por parte do
poder público – não estando expressivamente contemplados em praticamente
nenhum dos grandes projetos em vigor ou em planejamento, nem por
parte dos estudos acadêmicos, que privilegiam quase sempre os bairros de
subúrbio ao longo do eixo ferroviário da Central do Brasil. (MEDEIROS,
2011, p.1).

A autora apresenta tais justificativas ao afirmar que esses bairros mantêm entre si
aparências morfológicas e processos históricos de urbanização bem parecidos. Excetua-se
deste recorte o bairro de Brás de Pina, que Medeiros não incluiu em suas análises. Porém,
neste trabalho, acreditamos que não seja pertinente apartá-lo dos demais.

1.2.3 Circulação e habitação em meio às particularidades da Zona da Leopoldina


Os territórios dos subúrbios, em geral, já eram servidos por linhas ferroviárias desde
meados do século XIX. As estradas de ferro eram utilizadas tanto para o transporte de cargas,
como para o deslocamento de pessoas. As ferrovias tiveram um papel notável na abertura de
freguesias que do final do século XIX até por volta da década de 1930 aparentavam ter
predominantemente feições rurais.
52
Em 1858, foi inaugurado o primeiro trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil, na
época chamada de Estrada de Ferro Dom Pedro II. O trecho partia da estação Central (prédio
hoje conhecido como Central do Brasil, no Centro do Rio de Janeiro) rumo a Japeri, com
estações intermediárias separadas por intervalos quilométricos. Somente a partir de 1870 os
trilhos dessa ferrovia atingiram bairros como Piedade, Méier, Madureira, Marechal Hermes,
entre outros, ganhando também novos ramais e entroncamentos direcionados para demais
municípios do Estado do Rio de Janeiro e estados como Minas Gerais e São Paulo.
Com uma história marcada por longas extensões de trilhos, incorporações de linhas e
ramais existentes desde a formação da primeira estrada de ferro brasileira pelo Barão de
Mauá, além de muitos administradores e construtores, a Rio de Janeiro Northern Railway
Company, conhecida pelo nome Estrada do Norte (e, mais tarde, por Leopoldina Railway)
inaugurou em 1886 um trecho fundamental para a sua expansão em terras cariocas. O
percurso começava em São Francisco Xavier, parada de trem ainda existente na zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, e seguia até a cidade fluminense de Duque de Caxias. Depois dessa
construção, foi possível interligar regiões semi-urbanas, que em menos de duas décadas se
tornariam os bairros de Bonsucesso, Ramos, Olaria, Penha e Vila Guanabara (Brás de Pina);
todas elas, localidades exemplares do “subúrbio da Leopoldina”, agora servidas pelo Ramal
Saracuruna da Supervia, que é atualmente a empresa concessionária do serviço de trens
urbanos do Rio de Janeiro11.
A seguir, em 1893, apareceu no cenário dos transportes sobre trilhos a Estrada de
Ferro Melhoramentos do Brasil. Em 1903, ela foi incorporada à Central do Brasil e daí passou
a ser chamada de Linha Auxiliar. Essa ferrovia atingia bairros como Maria da Graça, Del
Castilho, Pilares e Rocha Miranda, arrabaldes do “meio” da zona suburbana, hoje atendidos

11
A Leopoldina Railway foi uma empresa baseada em Londres, em 1898, para assumir as operações da
Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, que passava por séries crises financeiras no final do século XX. Antes
dos problemas monetários, com uma série de pequenas ferrovias locais, por sua vez, já incorporadas há muitos
anos, linhas e ramais existentes desde 1854, a Companhia Estrada de Ferro Leopoldina mantinha trilhos
espalhados pelos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. No Estado do Rio de Janeiro, suas
linhas englobavam destinos que cruzavam zonas litorâneas, a exemplo de Macaé e Cabo Frio, e a serra
fluminense, como Petrópolis, Teresópolis e Itaipava. Como se vê, a Leopoldina teve presença importante
também no norte da cidade do Rio de Janeiro. Segundo a listagem que há no site Estações Ferroviárias do Brasil,
uma das poucas fontes mais completas sobre o assunto, havia pelo menos 16 linhas diferentes dentro da estrutura
da Companhia Estrada de Ferro Leopoldina, mais tarde Leopoldina Railway; cada qual trazia inúmeros ramais,
entroncamentos e estações, que permaneceriam abertas ao longo do século XX, em processos que incluíram
inaugurações e muitos fechamentos até a década de 1960. Esta última fase foi quando o que restou da
Leopoldina passou para a mão do Estado. Atualmente retalhada, sucateada e privatizada, suas linhas pertencem,
a grosso modo, a empresas como a Ferrovia Centro-Atlântica e Supervia. Os meandros da configuração dessa
estrada de ferro, tão pujante e múltipla, para serem observados com rigor, mereceriam um estudo à parte, o que
escapa de nossos objetivos. (ABREU, 2008; Site Estações Ferroviárias do Brasil).
53
pela Linha 2 do Metrô Rio.
Já a Estrada de Ferro Linha D’Ouro, começou a ser composta em 1876 para fazer, de
início, o transporte de materiais da obra da então nova rede de abastecimento de água da
cidade. Somente em 1883 ela passou a trabalhar com serviço de passageiros. Alguns de seus
percursos chegaram a acompanhar lado a lado os trilhos da Linha Auxiliar. Regiões hoje
conhecidas como Inhaúma, Engenho da Rainha, Vicente de Carvalho e Coelho Neto, por
exemplo, de fato, se formaram como núcleos urbanos e bairros depois da construção dessa
linha férrea (ABREU, 2008; Site Estações Ferroviárias do Brasil12). Nos dias atuais, esses
pedaços também são assistidos pela Linha 2 do Metrô Rio.
É interessante notar que entre a passagem do século XIX para o século XX os nomes
dados aos seminais bairros suburbanos eram muitas vezes homônimos das estações de trem. A
estação de Ramos, da Leopoldina Railway, correspondia justamente à parada da locomotiva
no bairro de Ramos. Nesse caso, foi a estação de trem que batizou o bairro. A família Fonseca
Ramos13 doou, em 1886, pedaços de suas terras à empresa ferroviária, exigindo em troca que
houvesse uma parada exclusiva com seu sobrenome. Os Ramos denominaram a estação de
trem neste mesmo ano e, pouco a pouco, a palavra se tornou a nomenclatura oficial para toda
aquela faixa territorial14.
O bairro de Brás de Pina, também na Zona da Leopoldina, foi outro espaço cujo
nascimento urbano se vincula, de alguma maneira, com a estação de trem, mesmo que, neste
caso, os meandros históricos se diferenciem bastante dos caminhos que levaram o bairro de
Ramos a ter o nome exato da estação ferroviária que o corta. A paragem férrea de Brás de
Pina foi aberta em 1886 pela Leopoldina Railway15 numa localidade que ainda flertava com o

12
Fonte: Site Estações Ferroviárias do Brasil. Disponível em: www.estacoesferroviarias.com.br. Última
visualização em 13 de outubro de 2013.
13
Em 1870, a o capitão Luiz José Fonseca Ramos, um militar da Corte, adquiriu as terras onde ficava o Sítio dos
Bambus, de onde nasceram as raízes do bairro de Ramos, ainda na época de D. Pedro II. Seus descendentes
fizeram um acordo com a companhia de trem, que prometera uma paragem com o nome da família: a Parada de
Ramos. Anos mais tarde, com o Sítio dos Bambus vendido à família de um antigo dono daquelas terras, houve,
por essa iniciativa privada, o loteamento e a abertura de ruas de chão batido e o seminal bairro incorporou o
nome da estação de trem, enquanto fazia surgir ruas até hoje importantes na localidade, como a Rua Uranos e a
Rua Euclides Farias. Com o tempo, a área passou por valorizações imobiliárias devido à presença de moradores
abastados. Inclusive, já em meados do século XX a Praia de Ramos (ou Praia do Apicú, ou ainda Praia de
Mariangu) esteve em meio a uma espécie de aburguesamento urbano. Foi transformada em balneário, pensou-se
em construir por lá um cassino à beira-mar na época do Prefeito Henrique Dodsworth e a região também ganhou
o apelido de “Copacabana dos Subúrbios” (FRAIHA e LOBO, 2004).
14
Fonte: Site Estações Ferroviárias do Brasil. Disponível em: www.estacoesferroviarias.com.br. Última
visualização em 13 de outubro de 2013.
15
Fonte: Site Estações Ferroviárias do Brasil. Disponível em:
http://www.estacoesferroviarias.com.br/efl_rj_petropolis/bras.htm . Última visualização em: 12 de outubro de
2013.
54
seu passado como engenho de açúcar. Na verdade, o nome da estação de trem vem do
Visconde de Brás de Pina, dono das terras. Entretanto, de início o bairro não recebeu o mesmo
nome que o seu latifundiário, nem da estação ferroviária que lá funcionava. O local foi
declarado oficialmente bairro em 1929 e chamou-se Vila Guanabara16.
Este arrabalde compôs um dos exemplos mais marcantes de bairros suburbanos
cariocas que abraçaram a noção clássica do suburbs norteamericanos. Loteado e equipado
pela Companhia Construtora Kosmos (ou Companhia Imobiliária Kosmos, já que os dados
históricos se confundem às vezes), a Vila Guanabara surgiu como região voltada para a
moradia das classes média e média-alta que buscavam no subúrbio “elegante” da região uma
vida pacata e salubre. Nas avenidas arborizadas e planejadas segundo moldes urbanísticos da
“cidade-jardim”, ergueram-se casarões, alguns em estilo colonial, com bosques e ornamentos
naturais de plantas nobres. Ali, foi fundada uma das igrejas mais importantes do subúrbio do
Rio, a Paróquia de Santa Cecília (que, inclusive, emprestou o seu nome a um dos cinemas da
área). Apenas em 1981, a Prefeitura decretou que o nome do bairro passasse a ser Brás de
Pina, igualando-se ao nome da estação de trem local17.
Ainda que existam críticas ao rapto ideológico do conceito de subúrbio (tal como
Fernandes (2011) e Soares (1990) julgam, quando se contrapõem às analogias imediatas entre
subúrbio e ferrovia), é pertinente pensarmos a notabilidade da estrada de ferro nos momentos
de configuração dos espaços suburbanos no Rio de Janeiro. Não obstante, não são excluídos
os riscos ao lidarmos com o significado de “subúrbio” adotado pelo senso comum, isto é,
lugares bem além do Centro, com ares rurais ou industriais, dependentes do trem, onde
moram pessoas mais pobres que os residentes das “áreas nobres” ao sul/centro da cidade. A
questão aqui colocada é que no caso concreto dos bairros da Zona da Leopoldina – com foco
naqueles com que mais trabalhamos nessa análise: Ramos, Penha, Olaria e Brás de Pina –, a
estrada de ferro Leopoldina Railway e seus aparatos territoriais conectaram-se ativamente aos
processos de formação urbana dessas freguesias levantadas entre o final do século XIX e as
três primeiras décadas do século XX.
Com ações do capital privado no loteamento, compra e venda dos grandes terrenos
familiares que anteriormente compunham a região, e somando-se a isso os acordos entre as

16
Fonte: Blog Um Coração Suburbano. Disponível em: http://suburbiosdorio.blogspot.com.br/2011/11/casarao-
de-braz-de-pina.html . Última visualização: 11 de outubro de 2013.
17
Fonte: Armazém de Dados do Rio/Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro).
Disponível em: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/index2_bairro.htm. Última
visualização: 11 de outubro de 2013.
55
empresas, os clãs ricos (com fortunas ainda montadas no lucro agrícola) e os interesses
imobiliários da companhia de transporte, contribuiu-se para um cenário efetivamente propício
ao estabelecimento e consolidação dos eixos da ferrovia nessas vizinhanças. A parte carioca
da Leopoldina Railway estriou localidades, marcando-as. Promoveu, em graus variados, a
expansão espacial que colocou regiões inteiras do norte do município do Rio de Janeiro em
conexão com outras áreas da cidade, no início do século XX. Além disso, a ferrovia integrou-
se às políticas e ao mercado de habitação dos bairros, cujas ruas e pontos focais tiveram como
um de seus atrativos a proximidade com a linha do trem e as estações.
É o que verificamos no anúncio abaixo, publicado na Revista Fon-Fon em 1913. A
propaganda da Leopoldina Railway indica a companhia como uma instituição tipicamente
suburbana. Da mesma forma, chama atenção para as qualidades dos subúrbios cortados pela
ferrovia: “Aluguel módico”, “bons ares” e “vida econômica” são mostrados como atrativos
para os potenciais moradores leopoldinenses, os quais o anúncio queria atingir. Esses
benefícios, no discurso publicitário, se aliam às informações acerca dos preços praticados pela
empresa de trem. É interessante notar que os anunciantes frisam bem os dados sobre as
distâncias entre alguns trechos ligados pela ferrovia e os horários dos serviços deste
transporte. Destarte, não é arriscado concluir, segundo o que se sugere, o papel relevante desta
ferrovia para a estrutura urbana dos bairros da Zona da Leopoldina.

56
Figura 3 – Anúncio imobiliário publicado na Revista Fon-fon em 191318

18
Fonte: Revista Fon-fon. N° 40, 11 de Outubro de 1913, p. 14. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1913/fonfon_1913_041.pdf

57
De acordo com o que indicam os dados consultados, os bondes da região da
Leopoldina não foram capazes de suplantar a força dos trens na configuração espacial dos
bairros e nos modos de circulação urbana que lá vigoraram. Isso pode nos colocar frente a
frente com mais algumas diferenciações entre os subúrbios da Leopoldina e os da Central.
Tanto a formação de núcleos espaciais, como a criação de locais de encontro e convivência
sociais podem ser pensadas através da presença da linha do trem, se aqui a concebermos como
um notável aparato urbano de inarredável presença na região da Leopoldina, sem concorrentes
à altura.
O modelo de povoamento urbano lá predominante teve nesse meio de transporte um
vetor de dispersão das pessoas para regiões mais afastadas. Mas, além disso, o trem, seus
trilhos e suas estações serviram como estruturas urbanas bem visíveis, funcionando como
divisores dos bairros em duas bandas territoriais e pontos de destaque na paisagem.
Cabe destacar que as linhas de trem colocam-se nos ambientes como verdadeiros
“limites”, os quais fundamentam o tipo de organização entre equipamentos e aparatos
territoriais, disposição de ruas e trajetos executados em determinada localidade. A noção de
“limite” é vista por Kevin Lynch (1997, p. 52), em suas classificações acerca dos dados que
integram o conteúdo da imagem das cidades, como um elemento linear formador de barreiras
e, ao mesmo tempo, como costuras entre partes relacionadas.
Observadas como “pontos nodais”, outra noção de Lynch (1997, p. 53), pensamos as
estações de trem como fortes provocadores de uma configuração citadina que prevê a
existência de junções, “focos intensivos”, “(...) momentos de passagem de uma estrutura a
outra” ou “(...) meras concentrações que adquirem importância por serem a condensação de
algum uso ou de alguma característica física” (Idem).
No caso da Leopoldina, os centros comerciais de mais fôlego ergueram-se nos bairros
de maneira bem específica. Cresciam em torno dos pontos nodais formados pelas estações
ferroviárias e não tão “para dentro” das freguesias. As estações seriam, portanto, exemplos de
centro polarizador, núcleos de intensa apresentação, física e simbólica, que influencia o
restante do espaço. As partes “interiores” desses arrabaldes, em sua maioria, guardaram (e
ainda guardam) um viés predominantemente domiciliar.
Já ao longo da Central, algo de diferente parece ter se arranjado. Percebe-se que,
sobretudo em bairros como Méier e Madureira, uma forte veia comercial se estruturou à beira
das estações mas também longe da linha do trem, alcançando o “interior” dos bairros.
Acreditamos que essa particularidade pode ter relação com a presença mais ativa dos bondes
58
nas cercanias da linha da Central.
Dando alicerces a essa posição, recorremos a Lewis Mumford (2011), para quem o
tipo de ocupação urbana realizada pelo trem se assemelha a um colar de pérolas, com focos
mais espaçados e concentrações de gentes e equipamentos de estação em estação. De outro
modo, a ocupação promovida pelos bondes se realiza em escalas menos nucleadas e mais
diluídas pelo espaço, proporcionando maior adensamento territorial e outras experiências de
circulação, concentração e dispersão.
Lins também escreve sobre a diferença entre as ocupações promovidas pelo trem e o
bonde, ressaltando o contexto do Rio de Janeiro, no qual o trem aparecia:

(...) ligando estações e paradas a distâncias maiores e o bonde costurando o


interior dos bairros. (...) [O trem] ao atravessar locais da periferia de baixa
densidade populacional, compostos por propriedades rurais de diversas
dimensões, trouxe nova mobilidade para essas regiões e facilitou o acesso ao
centro da cidade. Os bondes, por sua vez, estabeleceram a mobilidade pelo
interior dos bairros (...). Esses bairros nasceram em volta das estações
ferroviárias, utilizando-as, em muitos casos, como polo estruturador, As ruas
que deram origem aos bairros suburbanos de origem ferroviária, se podemos
assim chamar, eram e são perpendiculares e/ou paralelas à via férrea (LINS,
2010, p. 150).

Tudo indica que a combinação entre trem e bonde facilitou um tipo de vida urbana
mais múltipla e com "usos derivados" (JACOBS, 2000) – isto é: diversidade de equipamentos
urbanos, instalações comerciais, atividades e, com isso, mais motivações para que as pessoas
ocupassem e usassem as ruas. Isso se evidenciou mais nas regiões à beira da linha da Central,
em comparação à Zona da Leopoldina, que além de ter recebido o bonde mais tarde, teve uma
ferrovia com média de número de passageiros inferior aos da Estrada de Ferro Central do
Brasil, sem contar com o caráter industrial mais fraco da área da Leopoldina em relação aos
subúrbios da Central.
Esses apontamentos sobre as diferenças entre a Zona da Leopoldina e a Zona da
Central do Brasil ajustam-se à ideia de que a história da cidade é a história de sua produção
continuada, tal como propõe Milton Santos. Os lugares se distinguem porque não há apenas
um, mas múltiplos padrões de urbanização, com variáveis nas arrumações de equipamentos,
objetos, aparatos e configurações que dependem de cada forma de organização triunfante. Na
proposta de Santos (1997, p.71): “A história de uma dada cidade se produz através do urbano
que ela incorpora ou deixa de incorporar; desse urbano que em outros lugares pode tardar a
chegar”.

59
Propomos, então, que aí residem muitas das particularidades dos bairros que se
urbanizaram nas três primeiras décadas do século XX às margens da Leopoldina. O aspecto
do atraso em relação à entrada do bonde em sua rede de mobilidade urbana, por exemplo, fez
com que a Zona da Leopoldina tivesse por todo o tempo o trem, pelo menos fisicamente,
como um marco inegável para a paisagem de suas localidades, influenciando ainda os
modelos de circulação lá empreendidos. A formação de pontos nodais nesses bairros deu-se
justamente no entorno das estações (mais do que nos pontos de paragem dos bondes),
geralmente de maneira bem espaçada, numa escala não tão confortável para pedestres
porventura mais sedentários.
Conforme apontam os dados e as memórias de alguns moradores, para quem quisesse
“sair” dos bairros leopoldinenses, alcançando regiões vizinhas ou mais distantes sem utilizar o
trem, também havia a possibilidade de usar os ônibus, além dos bondes que eram a alternativa
mais clássica ao trem. Posteriormente, as pessoas passaram a se valer da mobilidade via
Avenida Brasil, que a partir de 1946 se tornou uma importante artéria rodoviária brasileira.
Para a Zona da Leopoldina especificamente, a Avenida Brasil foi de grande relevância, pois
fez a interligação de Bonsucesso, Ramos, Olaria e Penha (entre outros) – considerados bairros
ferroviários já à época da inauguração da via expressa– com demais bairros do Rio de Janeiro
e outras cidades nos limites do Estado.
Já no aspecto que se refere às formas de habitação suburbanas, seguindo a linha que já
discutimos ao abordar a questão da “ideologia do habitat” (LEFEBVRE, 2012), há muitas
especificidades relacionadas às construções dos bairros leopoldinenses e dos subúrbios da
Central.
Abreu (2008, p. 80) mostra que entre 1906 e 1920, as freguesias suburbanas, assim
como todo o tecido urbano carioca, cresceu vertiginosamente com a ampliação das áreas
ocupadas e aumento das taxas demográficas. Esse período coincidiu com o momento quando
se promoveu no Rio de Janeiro uma modernização higienista através de remoções de casas e
pessoas do Centro.
Em relação a esse tempo, o autor cita o exemplo do subúrbio de Inhaúma, bairro que
não se vinculava às linhas férreas mais proeminentes (Central e Leopoldina), mas à linha
Auxiliar. A população desse arrabalde cresceu 92% no intervalo de 14 anos, passando de
68.557 para 131.886 moradores (ABREU, 2008). No mesmo recorte temporal, algumas
freguesias centrais viveram um influxo populacional, tudo por conta, pelo que se percebe, das
medidas de remodelação de áreas do Centro como Candelária e São José (hoje já extinta), que
60
tiveram boa parte de seus habitantes expulsos, além de casas populares, vielas e até igrejas
demolidas.
Porém, seria leviano associar diretamente o crescimento populacional dos subúrbios
nas três primeiras décadas do século XX e a detonação por que passou o Centro do Rio em
prol de um modelo urbanístico claramente marcado pelo capital imobiliário. Muitos
moradores expulsos do Centro remodelado formaram os contingentes populacionais de
favelas cariocas, as quais, desde cedo, sem algo que as substituísse de forma democratizada e
não-segregante, foram alvo de sucessivos planos de remoções e gentrificação espaciais
(ABREU, 2008)19.
Nesse ínterim, o que sobressai são vetores heterogêneos que contribuíram para a
ocupação dos subúrbios cariocas: entrada da indústria nessas regiões; criação de novas áreas
para abrigar operários; construção de infraestrutura pela mão de agentes privados; formação
de bairros-jardins voltados para a classe média; presença da ferrovia e de bondes como meios
de transporte garantidores de um fácil acesso aos subúrbios etc. Não “há relação de causa e
efeito entre o trem e a proletarização do subúrbio” (FERNANDES, 2011, p. 149), mas a
combinação de fatores variados que fizeram dessas áreas locais de moradia tanto de classes
mais abastadas, como, em outros casos, de assalariados de baixa e média rendas, e ainda, de
militares. Pouco a pouco, a ligação entre indústria, trem e subúrbio passou a fazer sentido
somente à medida que, de fato, esses recantos foram encampados pelas definições estatais dos
planos de organização urbana, que precisavam justificar suas preferências expressivas por
tornar nobres as áreas ao sul da cidade, cujo solo se valorizava galopantemente.
Assim, apesar das considerações que desassociam a categoria subúrbio dos vetores
trem e indústria, percebemos que essa relação procede perfeitamente e que há em seu bojo um
viés segregante o qual pode ter acompanhado a ocupação e o aparelhamento territoriais dessas
regiões ao longo das primeiras décadas do século XX. A mão do Estado surge mais
substantivamente no período do Estado Novo, que se aproveita para lançar suas políticas
populistas sobre uma realidade socioespacial estrategicamente interessante.
Neste excerto de Henrique Dias da Cruz, em texto escrito por encomenda do governo
getulista, se percebe sutilmente os porquês do interesse repentino do Estado Brasileiro pelos
subúrbios, algo que não se verificava na época de Pereira Passos, por exemplo.

Os subúrbios cariocas no Estado Novo tiveram um progresso tão acelerado,


que compensou todo o retardamento em que viveram longos anos. Em meses
19
Sobre os processos de remoção ocorridos atualmente na cidade do Rio de Janeiro, consultar o Capítulo 4.
61
surgiram novos bairros e outros, antigos, velhos, se transformaram, tomando
ares de modernos. [...] Há, e em grande maioria, os bairros que, pela sua
população, se podem classificar de proletários. O homem do trabalho
procura os subúrbios para viver, morar, logo que constitui família. Mais
econômico. São, igualmente, elementos sociais ponderáveis, isso porque o
Governo, o Estado, no novo regime, tem com essas populações cuidados
especiais, dando-lhes facilidades através de leis ditadas pelo espírito de
cooperação, que garantem a esses grandes núcleos toda a potencialidade
econômica, elevando, desse modo, o valor humano (CRUZ, 1942, p.7).

Para Fernandes (2011), na República Velha a questão da habitação flertou com as


características da ideologia do habitat e do modelo central da urbanização capitalista. Mas se
dissociando do sentido de “moralização da classe operária”, presente na urbanização
parisiense (conforme aponta Lefebvre), ao contrário, no Rio de Janeiro:

(...) o sentido da ideologia do habitat foi justamente o de desmoralizar a


classe operária e o subúrbio. Além de não cogitar qualquer política
consequente em termos de habitação popular, a República Velha criou
obstáculos que vieram dificultar a construção proletária nos subúrbios. Se o
subúrbio veio a ser ocupado pelo proletariado, isto se deu pelo imperativo do
crescimento acelerado da cidade, da torrente imigratória, dos especuladores
que ali promoveram loteamentos vastos e baratos pela ausência de
infraestrutura (FERNANDES, 2011, p. 151).

Acreditamos, portanto, que exista, em algum grau, certa previsibilidade em relação às


funções que os bairros suburbanos e seus equipamentos coletivos desempenhariam em meio
ao contexto geral da cidade. Percebemos ainda que isso ocorreu com mais fôlego na primeira
metade do século XX, já que a partir da década de 1950, o contexto só se tornou mais hostil
em relação às classes pauperizadas que lá se sedentarizaram, com a generalização do
abandono do Estado e até mesmo a fuga das iniciativas do capital privado daquelas regiões.
Antes de sair efetivamente desse cenário, a ação do capital privado, na figura de
algumas empresas, agiu categoricamente na configuração das cercanias da Leopoldina.
Companhias imobiliárias atuavam nesses espaços desde a década de 1910 e por meio delas os
subúrbios leopoldinenses ganharam feições muito particulares, com ruas desenhadas segundo
modelos de bairros-jardins, bairros inteiros planejados com arquitetura aos moldes coloniais e
art déco, casas geminadas às margens das ferrovias, além de casarões que sobreviviam aos
rearranjos espaciais de algumas avenidas.
Uma das mais expressivas empresas imobiliárias da Leopoldina era a Companhia
Imobiliária Kosmos, que, conforme já vimos, foi responsável por equipar urbanisticamente a
Vila Guanabara, a mesma área que mais tarde se tornou o bairro de Brás de Pina. Não se
62
exclui da lista das companhias interessadas em fatiar os territórios suburbanos para vendê-los
em seguida à Light, então composta predominantemente por capital estrangeiro.

(...) nos eixos ferroviários da Leopoldina, Rio D’Ouro e Auxiliar, as terras


foram incorporadas e vendidas por pelo menos uma dezena de companhias
imobiliárias, havendo entre elas bancos e empresas estrangeiras atraídas
pelos lucros rápidos (FERNANDES, 2011, p. 149).

Com a ausência acentuada do Estado até o período Vargas, foram as iniciativas


privadas que atuaram na organização desses espaços, segundo seus interesses. As missões
dessas empresas, de fato, não incluíam as massas realmente pobres no oferecimento de acesso
à casa própria.

Figura 4 – Relação de empresas imobiliárias atuantes nos subúrbios (Fonte: FERNANDES, 2011, p. 149).

Com o objetivo de racionalizar o acesso à moradia, dando mais garantias aos


proletários por meio de uma política evidentemente populista, o Estado Novo assumiu as
glórias da promoção do ideal da habitação e do direito à casa própria. Medidas e licenças para
construções de casas eram anunciadas como “leis generosas”, tal como expõe Henrique Dias
da Cruz (1942) no supracitado livro, a ele encarregado pelo DIP de Vargas.
As medidas getulistas de habitação vinham beneficiar a parcela populacional
composta por “operários, artífices, seguida dos comerciários e estes dos industriários”, sem
esquecer nesta lista os militares de baixa patente (CRUZ, 1942, p. 15). O que ocorre, no
entanto, é que os agentes imobiliários particulares continuaram de alguma forma na base
dessas iniciativas, negociando terrenos antes já privatizados.
A iniciativa do Estado foi efetivada através de construções de casas populares,
63
erguidas com verba repassada por instituições públicas. Entre as entidades envolvidas,
estavam prioritariamente as Caixas de Aposentadoria e Pensões e o Instituto de
Aposentadorias e Pensões dos Industriários. Este último, por exemplo, agiu nitidamente no
bairro da Penha20, onde um conjunto habitacional de grandes extensões se sedimentou e ficou
conhecido como IAPI da Penha, existindo até hoje na área.

Data de 1934 a mudança de tal estado de coisas. Desde então os Institutos de


Aposentadoria levantaram, pelos vários subúrbios, grupos de habitações
proletárias, construindo o dos Estivadores na zona da Leopoldina, onde,
também, o Instituto de Previdência construiu vários, ultimamente
melhorados nas suas condições de habitabilidade, para funcionários
públicos. (...) Na estação de Olaria21, subúrbio da Leopoldina, está instalado
o Serviço de Construções Proletárias, melhor, S. C. P., como se vulgarizou e
que toda a população daquela zona já conhece. Há, nesse serviço, um tom
forte de sinceridade, qual o de ser o mais útil possível àquele que pretende
construir a sua própria morada (CRUZ, 1942, p. 12-13).

20
A Penha foi oficializada como bairro em 1919, mas se colocou no cenário carioca, desde os tempos coloniais,
como um santuário dedicado à Nossa Senhora da Penha de França. Na localidade, existiu também um quilombo.
Festas em torno da religiosidade católica e da cultura lusitana acompanharam desde muito cedo a vida na região.
Entre 1903 e 1906, a Igreja de Nossa Senhora da Penha, com sua imensa escadaria, foi finalizada depois da
reforma de uma edificação já existente desde 1870. Nessa mesma fase, no governo Pereira Passos, obras no
Porto de Mariangu possibilitaram maior integração entre a área e a Praça XV, no Centro, por meio de barcas
(FRAIHA e LOBO, 2004). Foi na Penha que se deu a primeira exibição cinematográfica da Zona da Leopoldina,
ao ar livre. O bairro foi se organizando urbanisticamente, ao longo dos trilhos da ferrovia, mas também em seus
interiores, contando com a presença de um forte comércio local – herança de práticas de venda feita por
comerciantes de porta em porta das casas – e do Curtume Carioca, que promoveu uma ocupação profícua do
bairro por operários da manufatura de artigos de couro. Outra marca da Penha foi a ocupação expressiva dos
morros ao seu redor, formando o Complexo de Favelas do Alemão (Ver Capítulo IV). A Penha diferencia-se
tanto dos bairros da Penha Circular e da Vila da Penha. Apesar de terem “Penha” no nome, e de serem vizinhos,
os três são bairros distintos. A Vila da Penha faz parte do Grande Irajá e sempre teve como marca grandes
casarões de classe médias abastadas; já o bairro da Penha Circular, localizado entre a Penha e o bairro de Brás de
Pina, liga-se historicamente a uma extinta linha de trem que existiu na região entre 1930 e 1940. Essa linha
permitia o retorno dos trens suburbanos que vinham de Barão de Mauá. (Fonte: Armazém de Dados do
Rio/Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro). Disponível em:
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/main_bairro.asp?area=044.
Última visualização: 15 de outubro de 2013).
21
Olaria é um bairro cujas raízes se confundem com a fabricação de telhas, utensílios domésticos e tijolos. Foi
com base nessa produção que o local ficou conhecido como a região das olarias (FRAIHA e LOBO, 2004).
“Quando o trem chegou àquele local, não havia propriamente uma estação, mas uma parada feita informalmente
pelos ferroviários para que o barro ou a madeira para a lenha, que vinham de outras localidades, fossem
descarregados em frente às fábricas de louças e de tijolos, ou para que as peças acabadas seguissem seus
destinos, ou até mesmo para que a escassa população não tivesse que andar a pé até Ramos e Penha para tomar o
trem, que não era um transporte tão veloz e regular” (FRAIHA e LOBO, 2004, p.31). Fora com base nesse
contexto (de uma configuração citadina possibilitada através de uma ocupação irregular e semiurbana), que a
estação de Olaria surgiu em 1917, marcando, assim, um certo atraso desta parada de trem em relação às demais
estações da Zona da Leopoldina. As ruas do seminal bairro teriam sido abertas após o desmembramento de terras
da família Rêgo por iniciativa de agentes privados. Estes agentes eram, na verdade, homens interessados na
compra dos lotes transversais à Estrada da Penha (que hoje é a Rua Uranos). Inclui-se entre eles o fundador da
Companhia Imobiliária Kosmos, um engenheiro chamado Oscar Santana (FRAIHA e LOBO, 2004). Podemos
observar mais uma vez o papel estratégico e fundamental do capital privado na ocupação da área da Leopoldina
e sua estruturação como um local caracteristicamente urbano.
64
Mas essas ações governamentais getulistas, que, segundo Cruz (1942), traziam todas
as suas etapas bem facilitadas ao trabalhador e sempre a baixo custo, apesar de terem
suplantado uma tendência segregacionista muito forte adotada pela República Velha, não
impediram a proliferação das favelas, que já na década de 1940 se concentravam
predominantemente nos subúrbios (ABREU, 2008).

Uma visão convencional do problema acusa que os resultados de todas essas


obras se mostraram restritos pelos seguintes fatos: primeiro, a maior parte da
população não tinha acesso ou recursos financeiros para adquirir tais
habitações; segundo, os níveis de exclusão social das massas não se
alteraram substancialmente depois do ano de 1930, já que como é
amplamente admitido, o pacto populista era nacionalista e necessariamente
restritivo; terceiro, parte significativa das obras viárias e de saneamento
visava também atender à necessidade de expansão e descentralização da
indústria, melhorar a comunicação da Capital da República com outros
Estados etc.; e quarto, pela enorme expansão da demanda decorrente do
acelerado crescimento da cidade (FERNANDES, 2011, p. 157).

As favelas foram alternativas para quem sofria com a falta de uma política de
habitação consistente e, de fato, democrática. Estenderam-se pela realidade urbana da
Leopoldina. Nessa região, a Favela da Maré, em Bonsucesso 22, e o Complexo do Alemão, na
Penha, são proeminentes.
Por volta do último quartel do século XX até os dias atuais, houve em toda a extensão
ao longo da estrada de Ferro da Leopoldina, e no interior dos bairros constituídos à sua beira,
22
Como antigo engenho de açúcar atravessado pelo Rio Faria, o bairro de Bonsucesso foi urbanizado a partir de
1910, quando as terras agrícolas do antigo Engenho da Pedra (as quais também abrangiam o que depois se tornou
o bairro de Ramos) foram loteadas pelo engenheiro Guilherme Maxwell, quem, curiosamente, batizou as
avenidas e ruas do bairro com nome de cidades de nações que lutaram contra a Alemanha na Primeira Guerra
Mundial. Essa iniciativa foi tão forte que ele acabou criando um “sub-bairro” conhecido como “Cidade dos
Aliados”. O Armazém de Dados da Prefeitura do Rio de Janeiro afirma que é por conta disso que houve a
denominação de trechos como “Praça das Nações, Avenidas Londres, Paris, Nova York, Bruxelas e Roma”. A
mesma fonte indica que: “Do lado oposto [à linha do trem], Paulo de Frontin [abriu] as Ruas Clemenceau, Saint
Hilaire, Humboldt, entre outras, consolidando Bonsucesso, cuja nova estação seria inaugurada na Praça das
Nações”. O passado do local também é marcado pela forte influência da Igreja Católica. A região abriga até hoje
algumas paróquias e se fundou, desde os tempos coloniais, a partir da relação com essas igrejas e capelas. A
estação de trem de Bonsucesso, por sua vez, foi fundada ainda em 1886. A área constituiu em meados do século
XX um dos centros industriais mais importantes do Rio de Janeiro, com pequenas fábricas e algumas empresas
da área de serviços. A maioria abandonou seus galpões e com isso uma imagem de esvaziamento urbano é bem
notável em alguns pedaços do bairro, que sempre conviveu com o crescimento desordenado das favelas que
compõem o Complexo da Maré, localizadas entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha. Os decretos que o
oficializaram como bairro datam da década de 1980, mas nos anos 90 a Lei Nº 2055, de 9 de dezembro de 1993,
delimitou a Região Administrativa e o bairro do Complexo do Alemão e, da mesma forma, a Lei Nº 2119, de 19
de janeiro de 1994, criou o Bairro da Maré, que se distingue hoje do bairro de Bonsucesso, cujos limites com as
favelas da Maré são visíveis por causa presença da Avenida Brasil, embora a precariedade na infraestrutura seja,
em gradações diversas, compartilhada por ambos os lados daquela região. Fonte: Armazém de Dados do
Rio/Instituto Pereira Passos (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro). Disponível em:
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/armazenzinho/web/BairrosCariocas/index2_bairro.htm. Última visualização: 12 de
outubro de 2013.
65
a descaracterização de ruas e das vocações como recantos de vilegiatura e bairros-jardins. Um
dos marcos importantes – e que, em algum grau, contribuiu para iniciar os processos de
transformação desses subúrbios em zonas pauperizadas e inóspitas – foi a febre viária que
surgiu com força a partir dos anos do governo de Juscelino Kubitscheck e do período da
Ditadura Militar.
É curioso notar que o avanço da motorização na cidade do Rio de Janeiro e a escalada
da Avenida Brasil, quiçá como o principal acesso aos bairros leopoldinenses, veio
acompanhado do esvaziamento cultural da região. Da mesma forma, as indústrias dessa área
migraram com seus negócios para outras regiões, deixando para trás uma série de galpões sem
uso, ruas esvaziadas e sombrias. O comércio local também feneceu substancialmente.
Esses aspectos conjugados, paulatinamente, podem ter posto por terra, nas últimas
décadas do século XX, as iniciativas que equiparam urbanamente esses bairros; delas não
excluímos os cinemas de rua, que apareceram defronte às estações de trem da Zona da
Leopoldina à medida que esses recantos cresciam como bairros. Assim como a ferrovia, a
fábrica, o bonde e a habitação proletária ou da classe média baixa, o cinema foi mais um vetor
que percorreu de perto a configuração dos subúrbios. Na Leopoldina, ele pode ter se
conectado de maneira bem especial às particularidades dos bairros dessa região, aqui já
discutidas, traçando mesmo trajetórias bem específicas como equipamentos em intensa
relação com a cidade.
É sobre tais cinemas, inseridos no múltiplo contexto sociocultural e urbano (passado e
presente) dos subúrbios que os abrigaram – multiplicidade que, no caso da Zona da
Leopoldina, se adensa ainda mais por conta de um caleidoscópio de singularidades –, que
iremos nos ater nos capítulos em diante. Para isso, seguimos munidos do seguinte
entendimento: as construções de significados sobre as áreas suburbanas do Rio de Janeiro não
podem se restringir a concepções imediatas – seja por parte dos meios midiáticos, da História
ou de ações públicas para a gestão da cidade – que subtraiam os diversos momentos da
urbanização desses locais e a gama heterogênea de poderes em circulação.

66
Capítulo 2
O cinema: um lazer moderno e urbano

2.1 Visualidades, máquinas, percepções


Os limites deste estudo não comportam a tarefa de traçar a genealogia das séries de
aparelhos ligados à criação de ilusões óticas, desenvolvidos a partir da superação tecnológica
(científica, social e filosófica) da câmara escura, dispositivo que, por sua vez, ao longo dos
séculos XVII e XVIII, reinou de forma paradigmática como “o modelo mais amplamente
usado para explicar a visão humana e representar tanto a relação do sujeito perceptivo quanto
a posição de um sujeito cognoscente em relação ao mundo exterior” (CRARY, 2012, p. 35).
Aqui, no entanto, podemos frisar que as alterações da percepção humana e da própria noção
de indivíduo na passagem do século XVIII para o século XIX associaram-se à emergência de
máquinas que promoveram novas formas de visualidade e relações sensoriais-imagéticas do
humano com o mundo. Nessa esteira, recorremos primeiramente aos exames que Jonathan
Crary (2012) realiza a respeito do indivíduo moderno nas figuras de observador, objeto de
investigação e locus do conhecimento.
Crary (2012) retrocede longinquamente na linha histórica da “ciência da visão” e toma
como base para o seu trabalho as emergências da ótica fisiológica e de um modelo de saber
que, ancorado na ideia de “visão subjetiva”, aparece nos anos finais do século XIX. Ele
evidencia que este saber não apenas conferiu autonomia ao homem-observador, como ainda
“abriu caminho para normatizá-lo em termos de produção laboral e consumo visual”
(CAPISTRANO in CRARY, 2012).
De tal modo, Crary faz o registro de uma série de aparelhos existentes desde bem antes
dos séculos XIX e XX, cuja utilização ao longo da história foi decisiva para pensar as
condições de possibilidade do conhecimento humano, a começar pela câmara escura. Ao
elencar uma série de maquinários empregados pela Ciência e pela Filosofia a partir do século
XVI, o autor aborda as dinâmicas que, há anos e anos, ocorrem entre o olhar, a produção de
subjetividade e, mais uma vez, as máquinas.
O pesquisador mostra como os dispositivos técnicos e óticos sempre estiveram no seio
das transformações dos modos de subjetividade, chegando a um momento tal em que
passaram a reelaborar de uma vez por todas o estatuto do sujeito observador. A reconstrução
do sujeito, para Crary, não se desarticula dos avanços tecnológicos, fluxos incessantes do
urbano e das novas experiências de ordens sensoriais e espaciais, e também econômicas e

67
políticas.

De acordo com Crary, a modernização da percepção – inseparável do


desenvolvimento e disseminação de transportes mecanizados nas cidades bem
como da invenção de novas tecnologias de produção e reprodução de imagens
(fotografia, estereoscópio, cinema, por exemplo) – diz respeito a uma mudança
radical do sistema ótico e do modelo epistemológico vigentes nos séculos XVII e
XVIII, expressos no dispositivo da camara obscura. Nesse sistema e modelo
clássico, a produção da imagem estava referida a leis óticas ligadas a uma física
dos raios luminosos (leis de reflexão e refração), de base newtoniana, que
prescindiam de qualquer interferência humana, assegurando-se, desse modo, a
crença em um sujeito e em um objeto dados a priori, em uma relação de
exterioridade, não problemática entre ambos. A rigor, a corporeidade não
intervinha: quando emergia, era imediata e rapidamente descartada (...)
(FERRAZ,M., 2005, p.3).

Buscando fundamentação em Michel Foucault para falar de tais condições


epistemológicas e institucionais que estiveram na raiz ontológica do observador – como
detentor de um “corpo que vê” (FERRAZ,M., 2005, p.4) e para quem a imagem não será
apenas um dado externo a ser apreendido, mas um efeito da maneira como esse sujeito
perceberá o mundo –, Crary não desprezou a investigação acerca das modernas formas de
poder que surgiram associadas ao que chama de “dissolução dos limites que haviam mantido
o sujeito como um domínio interior, qualitativamente separado do mundo” (CRARY, 2012, p.
145). Mas é, sobretudo, em Walter Benjamin que Crary encontra meios de mostrar a relação
intrínseca entre a racionalização da sensação, a invenção e a sedimentação de tecnologias e a
rearrumação do campo social (e do tempo) em vista da inserção de um sujeito-observador,
que, por sua vez, é convocado pelas tramas de experiências fugazes na modernidade do século
XIX.
Crary diz que em Benjamin:

(...) deparamo-nos com um observador ambulante, formado por uma


convergência de novos espaços urbanos, novas tecnologias e novas funções
econômicas e simbólicas das imagens e dos produtos – formas de ilusão
artificial, novos usos de espelhos, arquitetura de vidro e aço, ferrovias,
museus, jardins, fotografia, moda, multidões. Para Benjamin, a percepção
era nitidamente temporal e cinética; ele esclarece como a modernidade
subverte até mesmo a possibilidade de uma percepção contemplativa. Jamais
há acesso puro a um objeto em sua unicidade; a visão é sempre múltipla,
contígua e sobreposta aos outros objetos, desejos e vetores (CRARY, 2012,
p. 28).

Quando fala efetivamente dos aparelhos óticos, situando-os historicamente, Crary não
68
traça uma linha evolutiva entre eles e a câmera escura, para, ao final, chegar ao advento da
fotografia (curiosamente, ele pouco fala do cinema). Ao contrário, lança-se a partir do
pressuposto deleuziano de que as “máquinas são sociais antes de serem técnicas” (CRARY,
2012, p.38; DELEUZE, 2006, p. 49). Isto é, o autor concebe algum grau de relação
estruturalmente histórica entre a câmara escura e a fotografia (e entre os dispositivos que se
colocaram entre ambas), mas leva em consideração as ordenações particulares que orientaram
cada um desses aparelhos, no que concerne aos tipos de percepção/representação da realidade
e de observador a eles conectados. Prevê, portanto, que a inserção desses objetos técnicos se
fez em meio à trama de diferentes redes de enunciados e práticas sociais (CRARY, 2012, p.
38).
Quando Deleuze (2006) analisa a obra “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, e propõe
uma interpretação acerca do conceito foucaultiano de “máquina” (abstrata e concreta), ele
expressa a supracitada noção de que a “tecnologia é então social antes de ser técnica”
(DELEUZE, 2006, p.49). Na retaguarda da aparição da técnica, haveria, segundo ele, uma
tecnologia humana. É em uma mistura de corpos e possibilidades de conteúdos e expressões
que ocorrem pretextos para o aparecimento do aspecto material da máquina técnica cujos
efeitos:

(...) atingem, é certo, todo o campo social; mas para que ela mesma seja
possível, é preciso que os instrumentos, é preciso que as máquinas materiais
tenham sido primeiramente selecionadas por um diagrama, assumidas por
agenciamentos (Idem).

De acordo com Deleuze, nesse diagrama são expostas as relações de força (difusas,
estratégicas e microfísicas) que configuram o poder. Deste modo, o diagrama:

(...) é o mapa das relações de forças, mapa de densidade, de intensidade, que


procede por ligações primárias não-localizáveis e que passa a cada instante
por todos os pontos, “ou melhor, em toda relação de um ponto a outro”.
Certamente, nada a ver com uma Ideia transcendente, nem com uma
superestrutura ideológica; nada a ver tampouco com uma infraestrutura
econômica, já qualificada em sua substância e definida em sua forma e
utilização. Mas não deixa de ser verdade que o diagrama age como uma
causa imanente não-unificadora, estendendo-se por todo o campo social: a
máquina abstrata é como causa dos agenciamentos concretos que efetuam
suas relações; e essas relações de força passam, “não por cima”, mas pelo
próprio tecido dos agenciamentos que produzem (Ibidem, p. 46).

A ideia de diagrama para Deleuze (2006) é complexa. Liga-se, por sua vez, ao
69
conceito de “máquina abstrata” (conjunto de matérias-funções, isto é, phylum e diagrama).
Excedendo toda a “mecânica”, a máquina abstrata opõe-se também ao simples abstrato, ao
transcendental, ao eterno. Singulares e imanentes, as máquinas abstratas constituem devires,
“consistem em matérias não formadas e funções não formais” (DELEUZE e GUATTARI,
1997, p. 227), abrem os agenciamentos para outra coisa, possibilitando, por exemplo, que um
plano tecnológico seja visto como algo que vai muito além de sua composição em termos de
substâncias formadas (seus dados materiais, por assim dizer) e formas organizadoras (os
modos conforme o seu aspecto material se combina fisicamente); nesse sentido, um plano
tecnológico pode reunir um conjunto de matérias não formadas.
As máquinas abstratas, portanto, vão funcionar nos agenciamentos por meio de formas
e substâncias com variados estados de liberdade. Tudo isso acontece a despeito das máquinas
abstratas que, por si mesmas, ignoram formas e substâncias.

Abstratas, singulares e criativas, aqui e agora, reais embora não concretas,


atuais ainda que não efetuadas; por isso, as máquinas abstratas são datadas e
nomeadas (...). Não que remetam a pessoas ou a momentos efetuantes; ao
contrário, são os nomes e as datas que remetem às singularidades das
máquinas, e a seu efetuado (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 228).

A partir dessa abordagem, voltamos a Crary (2012), para quem tanto a câmara escura,
como a fotografia (e o cinema) são amálgamas sociais e mecânicos, objetos sobre os quais se
diz algo e, ao mesmo passo, objetos que são utilizados por alguém, ou seja, que se confirmam
mesmo como um “assemblage”, conceito deleuzeano que descreve uma arrumação
concomitante entre máquina e enunciação (CRARY, 2012, p.37). Com identidades múltiplas,
que operam segundo um “estatuto ‘misto’ como figura epistemológica em uma ordem
discursiva e objeto em um arranjo de práticas culturais” (Idem), cada um desses aspectos está
inserido em um momento específico da conexão entre determinadas formações enunciativas e
práticas materiais.
Portanto, ao trabalhar com a importância desses equipamentos para a análise das
relações entre o observador e o mundo (no eixo do pensamento sobre os modos possíveis de
subjetivação e a interioridade moderna), o autor desaconselha a manutenção da história
contínua entre a câmara escura e a fotografia. Conforme sua análise, proceder via uma história
evolutiva, em vez de uma genealogia, geralmente abre precedentes para classificar tais
máquinas como um “único e duradouro dispositivo de poder político e social, elaborado ao
longo de vários séculos, que continua a disciplinar e regular o estatuto do observador”
70
(Ibidem, p. 34). Não é nisso que Crary se apoiará. Pretende, no entanto, salientar que os
aparelhos óticos devem ser mais pertinentemente considerados à luz de seus diferentes
contextos.
Para além dos estudos de Crary (2012) – voltados mais para o exame da câmara
escura, da fotografia e de aparelhos dependentes, no final do século XIX, do envolvimento
físico do observador –, encontramos também em textos de autores como Tom Gunning
(2010), Ben Singer (2001; 2004), Leo Charney (2004), Daniel Biltereyst (2013), e nas obras
do clássico Walter Benjamin (1992; 1993; 1994) a correlação entre estas três importantes
esferas: o cinema (e demais dispositivos da cultura da imagem e da visualidade), a
Modernidade e a emergência da ideia de um sujeito capaz de ter acesso à percepção sensível
do mundo23 e a uma “observação sobre si, sobre o próprio corpo, em sua complexa fisiologia”
(FERRAZ,M., 2005, p. 6).
No que notamos, o cinema estaria no bojo das invenções que organizaram o olhar sob
um novo estatuto do indivíduo; ao surgir, ele funcionará como uma tecnologia de época, isto
é, uma ferramenta (historicamente construída e sempre apta a produzir algo) que se coloca
tanto como um aparelho técnico, como também um intrincado de vetores de ordens humanas,
não humanas e discursivas. A sua invenção (e o seu desenvolvimento) atrela-se a uma época
de passagem entre séculos, animada por uma série de deslocamentos da noção do sujeito e de
suas relações com o pensamento sobre si e o mundo circundante.
Inferimos que esta etapa histórica não deixa de se relacionar com a “grande ruptura
que se produziu na epistémê moderna, na curva do século XVIII para o século XIX”
(FOUCAULT, 2007, p. 449). Também entendemos que esta fase foi marcada pela
sedimentação da noção de homem/eu como sujeito do conhecimento de si e do mundo, cuja
existência torna-se determinantemente compreendida de maneira autônoma e empiricamente
verificável. É interessante retomar a interpretação que a autora Maria Cristina Franco Ferraz
(2005) tece ao dizer que Crary explorou justamente um processo de modernização da

23
É fato evidente que já com a câmara escura, em finais do século XVI, nasce um observador isolado, que
realiza uma operação de individuação, embora seu corpo esteja separado do ato de ver, ou seja, não há aqui uma
percepção sensível do humano, a qual mais tarde será validada como paradigma filosófico. Através da câmara
escura, um indivíduo autônomo apreende o mundo, mas não por meio dos sentidos (para a perspectiva
cartesiana, sempre falhos e enganadores): é uma experiência mediada pela precisão técnica (verificável,
infalível) que ordena o mundo exterior sem a necessidade fundamental do corpo humano; tal mundo, já dado a
priori, não poderá ser “conhecido” pela percepção sensível. Essa objetivação do mundo, descolada de um corpo
“que sente”, é algo indissociável de uma “metafísica da interioridade” (CRARY, 2012, p. 45), que mais tarde
será revolucionada, adquirindo novos aspectos que, aí sim, inserirão o corpo humano e as possibilidades de
subjetivação no contexto do conhecimento (CRARY, 2012; FERRAZ,M., 2005).

71
percepção que corresponde a um “segundo movimento da Modernidade”. Essa etapa posterior
– já um desdobramento da primeira grande fenda na epistémê, de acordo com a localização
dada por Foucault – caracteriza-se, por sua vez, pela emergência do “observador em segundo
plano”, preocupado com a observação sobre si mesmo, que já mencionamos.
Contudo, conforme Foucault propõe (2007), é preciso ir mais além. É mister ter em
vista que, mais do que uma consciência de si e controle sobre o pensamento e a
possibilidade/impossibilidade do conhecimento, há neste homem moderno algo que o faz
escapar do cogito cartesiano. Tal sujeito seria, nesse sentido, um “duplo empírico-
transcendental” e o “lugar do desconhecido”, do impensado (FOUCAULT, 2007, p.445).

Se alguma coisa está ligada à descoberta da vida, do trabalho e da


linguagem; é também a essa figura nova que, sob o velho nome de homem,
surgiu não há ainda dois séculos; é à interrogação sobre o modo de ser do
homem e sobre sua relação com o impensado. É por isso que a
fenomenologia – ainda que se tenha esboçado primeiramente através do
antipsicologismo, ou, antes, na medida mesma em que, contra este, tenha
feito ressurgir o problema do a priori e o motivo transcendental – jamais
pôde conjurar o insidioso parentesco, a vizinhança ao mesmo tempo
prometedora e ameaçante com as análises empíricas sobre o homem; é por
isso também que, embora se tenha inaugurado por uma redução do cogito,
ela foi sempre conduzida a questões, à questão ontológica. Sob nossos olhos,
o projeto fenomenológico não cessa de se resolver numa descrição do vivido
que, queira ou não, é empírica, e uma ontologia do impensado que põe fora
de circuito a primazia do “Eu penso” (Ibidem, p. 449).

Mais adiante, portanto, esta preocupação com o impensado deslocará o cogito de


Descartes, assim como também a reflexão transcendental moderna se afastará de Kant
(Ibidem, p. 446). Para Foucault, o homem e o impensado, em níveis arqueológicos, são
contemporâneos. Diante disso, ele dirá que não será mais a possibilidade de pensamento que
levará à evidência do “Eu sou”. Ao contrário, será instaurada:

(...) uma forma de reflexão, bastante afastada do cartesianismo e da análise


kantiana, em que está em questão, pela primeira vez, o ser do homem, nessa
dimensão segundo a qual o pensamento se dirige ao impensado e com ele se
articula” (Ibidem, p. 448).

Paralelamente a todo esse nível de pensamento, para entendermos algumas nuances


inscritas nas transformações do estatuto do sujeito como um observador de si e do mundo,
podemos ainda mencionar as conclusões de Max Weber (2007) em relação a um “espírito
novo” proporcionado pela ascensão do Capitalismo como lógica e via de condição do sujeito
72
moderno24. Em um longo processo de desencantamento do mundo, com a passagem
sistemática de um mundo mágico para um mundo desmagificado25, a regulação da vida
cotidiana, com bases em valores mundanos, é orientada por sua racionalização, isto é:
“processo de difusão da racionalidade da ação em vários âmbitos da vida social” (THIRY-
CHERQUES, 2009, p. 912).
No cerne de um sujeito que já não tem na “ascese cristã” e em um “meio mágico-
sacramental” (WEBER, 2007, p.139) a chave para toda a sua existência26, a lógica
materialista do capitalismo moderno fundará as suas estruturas subjetivas e coletivas. É um
cenário em que se sobressaem o trabalho duro, o não desperdício (de tempo, gozo da vida ou
posses), o emprego racional da riqueza e, enfim, o surgimento de um “ethos profissional
especificamente burguês” (Ibidem, p. 161).
O olhar também será chamado a se reconfigurar de maneira que, por meio dele, em
seus níveis de atenção e de retenção do visível, o corpo humano possa adequar-se às
necessidades produtivistas da época da passagem entre os séculos XVIII e XIX.
Crary (2012), aqui, é mais uma vez essencial porque pesquisa o tema da “exigência de
atenção” do olho humano, explicando-o em face de um momento quando surgem
preocupações com o aumento da eficácia do trabalho, questão também muito cara a Max
Weber, mesmo que indiretamente.

A necessidade econômica da rápida coordenação dos olhos e das mãos na


execução de ações repetitivas exigiu um conhecimento previsto das
capacidades ópticas e sensoriais do homem (...). O conhecimento
disponibilizou técnicas para o controle externo e para a dominação do sujeito
humano e, ao mesmo tempo, constituiu o fundamento emancipatório da ideia
de visão subjetiva na teoria da arte e na experimentação modernistas.
Qualquer interpretação efetiva da cultura moderna tem de se confrontar com
as maneiras pelas quais o modernismo é inseparável dos processos de
racionalização científica e econômica, em vez de ser uma reação contrária a
eles ou de transcendê-los (CRARY, 2012, p. 87-88).

24
Aqui nos referimos aos escritos de Weber sobre a ascese intramundana, que tem suas bases no protestantismo
ascético: calvinismo, pietismo, metodismo e nas seitas anabatistas, os quais, desde o século XVII trabalharam em
prol do nascimento de uma ética burguesa, no seio da dessacratização do mundo (WEBER, 2007).
25
Optamos por essa palavra para nos aproximarmos da ideia de “desmagificação”, sentido literal do termo
alemão Entzauberung, pelo qual Max Weber conceitua, na segunda versão de “A ética protestante”, o
“desencantamento do mundo” (Entzauberung der Welt). O desencantamento é exposto nessa expressão a partir
do termo Entzauberung (“desmagificação”) (PIERUCCI, 2007, p.282).
26
“O desencantamento do mundo: a eliminação da magia como meio de salvação, não foi realizado na piedade
católica com as mesmas consequências que na religiosidade puritana (e, antes dela, somente na judaica). (...) O
Deus do Calvinismo exigia dos seus, não “boas obras” isoladas, mas uma santificação pelas obras erigidas em
sistema. Nem pensar no vaivém católico e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência,
alívio e, de novo, pecado (...) (WEBER, 2007, p.106).
73
Assim, não é arriscado supor que o cinema, como experimento, arte e indústria, se
inscreveu nos processos de racionalização científica e esteve em alto grau conectado às
rupturas e emergências ligadas à noção do sujeito moderno. Avizinhou-se de técnicas e
tecnologias que, com foco nos meios de apreensão da realidade pelo humano e de
representação imagética do mundo, estiveram no seio dos processos de racionalização da vida
social e na construção de uma “cultura moderna” (e de uma economia essencialmente
burguesa).
Como bem lembra Maria Cristina Franco Ferraz (2005), tendo aporte de Crary:

(...) foi no âmbito dessa ampla mutação de cunho epistemológico que se


desenvolveram novas tecnologias ópticas, que dos laboratórios, migraram
para as feiras populares e casas burguesas (taumatrópios, esterescópios etc),
e se inseriram na cultura do espetáculo nascente, vinculada a um novo
regime de atenção, que configura um continuum entre a atenção e formas
variadas de desatenção, devaneio, transe, sonambulismo. Como salienta
Crary, as novas formas de “industrialização da contemplação” foram de fato
associadas a estados relativos de hipnose e sonambulismo (FERRAZ,M.,
2005, p. 6).

Nesse trilho, é importante nos afastarmos de qualquer concepção evolucionista em


relação ao desenvolvimento do cinema perante as demais máquinas e experiências ópticas,
incluindo nesse bojo tanto a secular câmara escura, quanto os mecanismos que colocaram, já
perto da segunda metade do século XIX, a imagem em movimento.
O “movimento” – como categoria que proveu a vida moderna de sua fragmentalidade,
dando chance à criação do novo, na perspectiva da diferença inerente a qualquer duração
(DELEUZE, 1983) – é, inclusive, um adequado divisor para marcarmos bem as diferenças
entre os modos de apreensão do real permitidos por tais máquinas ópticas. Crary dirá que
“uma característica da modernização no século XIX foi o “desenraizamento” da visão em
relação ao sistema representacional mais inflexível da câmara escura” (CRARY, 2012, p. 113)
e, diante disso, nota que até mesmo para Karl Marx, “uma das grandes inovações técnicas do
século XIX foi a maneira como o corpo tornou-se adaptável às ‘poucas, mas fundamentais
formas de movimento’” (Idem).
Na taxionomia dos elementos da imagem que Deleuze se propõe a fazer em “Imagem-
movimento” (partindo de análises de “Matéria e Memória” e “A evolução criativa”, de Henri
Bergson), há a afirmação de que o movimento pressupõe uma mudança qualitativa em um

74
todo e seria sempre da ordem do heterogêneo. “O movimento é uma translação no espaço”
(DELEUZE, 1983, p. 13).
Deleuze expõe aí que Bergson teve o mérito de descobrir as imagens-movimento e os
cortes móveis antes mesmo do advento oficial do cinema, em Paris. Para o autor, Bergson
teria previsto que o movimento não era constituído a partir do somatório entre cortes imóveis
instantâneos e tempo abstrato, tal como presumia a tradição da filosofia e da ciência
clássicas27.
Nessa perspectiva, Deleuze de algum modo situará o cinema na esteira filosófica de
Bergson, que, profeticamente, pressentiu a essência do cinema: os cortes móveis e os planos
temporais (DELEUZE, 1983, p.8). No lugar de poses ou instantes privilegiados – por sua vez
ligados a um tipo de pensamento que se remete ao eterno –, cortes e momentos quaisquer em
sucessão, dando, com isso, ensejo à diferença, ao aparecimento do novo.

Quando reportamos o movimento a momentos quaisquer, devemos nos


tornar capazes de pensar a produção do novo, isto é, do notável e do singular
em qualquer um desses momentos: trata-se de uma conversão total da
filosofia (...) (DELEUZE, 1983, p. 13).

Eis aqui, para Deleuze, a diferença capital entre uma concepção antiga sobre o
movimento e uma concepção moderna sobre o movimento. É nesse caminho que ele articula
suas teses em torno da condição da imagem cinematográfica e acaba distinguindo o cinema28
das outras experiências com a imagem (maquinários e suas formas de captação e

27
“Ora, A Evolução Criadora [obra de Henri Bergson, escrita em 1907] apresenta justamente uma segunda tese
que, em vez de reduzir tudo a uma mesma ilusão sobre o movimento, distingue pelo menos duas ilusões muito
diferentes. O erro consiste sempre em reconstituir o movimento através de instantes ou posições, mas há duas
maneiras de fazê-lo: a antiga e a moderna. Para a antiguidade, o movimento remete a elementos inteligíveis,
Formas ou Ideias que são, elas próprias, eternas e imóveis. Evidentemente, para reconstituir o movimento,
apreenderemos essas formas o mais próximo possível de sua atualização numa matéria fluente. São
potencialidades que só se realizam ao se encarnarem na matéria. Mas, inversamente, o movimento limita-se a
exprimir uma "dialética" das formas, uma síntese ideal que lhe confere ordem e medida. O movimento assim
concebido será, portanto, a passagem regulada de uma forma a uma outra, isto é, uma ordem de poses ou de
instantes privilegiados, como uma dança. "Supõe-se" que as formas ou ideias "caracterizam um período cuja
quintessência exprimiriam, sendo todo o resto desse período preenchido pela passagem, em si mesma desprovida
de interesse, de uma forma a uma outra forma... Isola-se o termo final, ou o ponto culminante (télos, acmé) que é
considerado como momento essencial, e este momento, que a linguagem fixou para exprimir o conjunto do fato,
basta também para a ciência o caracterizar". A revolução científica moderna consistiu em referir o movimento
não mais a instantes privilegiados, mas ao instante qualquer. Mesmo que o movimento fosse recomposto, ele não
era mais recomposto a partir de elementos formais transcendentes (poses), mas a partir de elementos materiais
imanentes (cortes). Em vez de fazer uma síntese inteligível do movimento, empreendia-se uma análise sensível.”
(DELEUZE, 1983, p. 9).
28
Segundo Deleuze (1983), ainda há a ideia de que o cinema se encontrou, aquando de sua “descoberta”, em
uma difícil encruzilhada entre arte, indústria e ciência, sem, de fato, se situar confortavelmente em nenhuma
dessas categorias.
75
representação do real). O cinema pertenceria inteiramente à concepção moderna do
movimento (DELEUZE, 1983, p. 12).
Ainda conforme o filósofo:

O cinema parece realmente o último rebento desta linhagem destacada por


Bergson. Poderíamos conceber uma série de meios de translação (trem,
carro, avião...) e, paralelamente, uma série de meios de expressão (gráfico,
foto, cinema): a câmera surgiria então como um transdutor, ou melhor, como
um equivalente generalizado dos movimentos de translação. É assim que ela
aparece nos filmes de Wenders. Quando nos indagamos sobre a pré-história
do cinema somos às vezes levados a considerações confusas, porque não
sabemos até onde remonta, nem como definir a linhagem tecnológica que o
caracteriza. É sempre possível, então, invocar as sombras chinesas ou os
mais arcaicos sistemas de projeção. Mas na verdade as condições
determinantes do cinema são as seguintes: não apenas a foto, mas a foto
instantânea (a fotografia posada pertence a uma outra linhagem); a
equidistância dos instantâneos; a transferência dessa equidistância para um
suporte que constitui o "filme" (Edison e Dickson perfuram a película); um
mecanismo que puxa as imagens (as garras de Lumière). É neste sentido que
o cinema é o sistema que reproduz o movimento em função do instante
qualquer, isto é, em função de momentos equidistantes, escolhidos de modo
a dar a impressão de continuidade. É estranho ao cinema qualquer outro
sistema que porventura reproduza o movimento através de uma ordem de
poses projetadas de modo a passarem umas através de outras, ou a "se
transformarem" (Ibidem, p. 10).

É com apoio nessas perspectivas que perquirimos o estatuto da imagem e o papel do


cinema na fase moderna, à época da urbanização das cidades na virada do século XIX para o
século XX. Um sujeito moderno, investido de maneiras muito peculiares de olhar e captar o
mundo ao seu redor, conectar-se-á a uma seminal experiência imagética, que, acelerando a
realidade e acionando novas articulações entre atenção, corpo e sensações (diferenciando-se,
como vimos, de outras maneiras de lidar com a visualidade), irá provocar novos efeitos nos
sentidos humanos.
Não foram apenas as ordens existenciais do sujeito que se deslocaram quando a
experiência do olhar fora modificada ao longo do tempo. As próprias trocas sociais e as
dimensões espaciais e arquitetônicas do habitat dos homens modernos reajustaram-se, à
época, em face das novas percepções do espectador (e observador) do século passado.
Ademais, o advento do cinema não escapou da reverberação de sua tecnologia no
espaço urbano, onde ele se entranhou, sedimentando-se de variadas maneiras. No ambiente
social e espaço construído das cidades, em meio às interações entre as pessoas e suas práticas
de sociabilidade, ele se ergueu como um “dispositivo técnico”, no sentido mesmo colocado

76
por Jean-Louis Baudry (1978), que o concebe como uma reunião de aspectos técnicos e
estéticos, incluindo nesse elenco: a câmera; a tela; a sala escura; a projeção e seus efeitos de
empatia sobre o espectador; a indústria cultural que lhe dá bases e toda a produção simbólica
de mitos e imaginários que ela é capaz de engendrar etc.
Não obstante, ao seguirmos essa descrição do cinema como um tipo de dispositivo, é
imperativo nos desvencilharmos da via pela qual Jean-Louis Baudry (1978) o explica. Não
intencionamos tomar o cinema como um “equivalente do sonho” (GUIMARÃES, 2004, p.38),
articulado à esfera de produção do simbólico e a uma noção de “imaturidade motriz do
espectador” em que quem predomina é o olhar. Acreditamos que essa concepção, que ancora,
em linhas gerais, as conclusões de Jean-Louis Baudry (1978), não considera com
profundidade necessária as ordens sociais da relação entre o homem (na figura de espectador),
o espaço citadino e o dispositivo cinematográfico.
Apesar de encontramos muita validade no dispositivo de Jean-Louis Baudry (1978), o
isolamos e vamos adiante. Em seu lugar, para podermos nos afastar de sua “vertente
metapsicológica” (AUMONT, 1993, p.189) – que escapa das fundamentações teóricas deste
trabalho –, optamos pela ideia de dispositivo proposta por Giorgio Agamben (2009), a partir
da ampliação que faz da noção foucaultiana de dispositivo.
Antes de avançarmos com Agamben, é pertinente haver um breve desvio para
localizarmos de maneira clara a noção de “dispositivo” em Foucault. Atendendo a isso,
partimos da descrição desse conceito explicada pelo filósofo francês em uma entrevista que
concedeu a Alain Grosrichard, cujo título do texto final ficou conhecido como “Sobre a
História da Sexualidade” (FOUCAULT, 1979, p. 243). É lá que Foucault concebe o
dispositivo como uma estrutura em rede, em que se relacionam, como em um jogo, elementos
bem heterogêneos, de ordens discursivas e não discursivas, que interagem diante de um
imperativo estratégico do próprio dispositivo.

Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto


decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em
suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 1979, p.
244).

Somando-se a isso, o autor prossegue falando que os elementos heterogêneos em rede,


a todo o tempo, encontram-se às voltas com mudanças de posição e funções entre si. Os
77
dispositivos causam ressonâncias que provocam rearticulações e rearrumações dos elementos
heterogêneos. Muitas vezes, os dispositivos ainda geram efeitos anteriormente não previstos,
suscitando, por meio de sua natureza estratégica, a emergência de determinadas situações de
poder e saber.
Sobre isso, Foucault esclarece:

Disse que o dispositivo era de natureza essencialmente estratégica, o que


supõe que trata-se no caso de uma certa manipulação das relações de força,
de uma intervenção racional e organizada nestas relações de força, seja para
desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para
estabilizá-las, utilizá-las, etc... O dispositivo, portanto, está sempre inscrito
em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a
configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam.
É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de
saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1979, p. 246).

Em Agamben, porém, o dispositivo é visto de forma um pouco diferente. Para o autor


italiano, o “existente” divide-se em dois grandes grupos distintos: o dos seres/substâncias e o
dos dispositivos, que trabalham para captura, governo e orientação das criaturas viventes. Do
corpo a corpo entre seres e dispositivos resultam os sujeitos. A grande questão é que se
chegou a uma etapa, na contemporaneidade estudada por Agamben, em que um mesmo
indivíduo passa a abrigar múltiplos processos de subjetivação devido a um imensurável
crescimento do número de dispositivos, os quais, por sua vez, sempre se colocam em relação,
logicamente, com as substâncias (AGAMBEN, 2009, p. 40).
Sugerindo uma generalização da “classe dos dispositivos foucaultianos” (Idem),
Agamben intui, assim, que os dispositivos são:

(...) qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,


orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente,
portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as
fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder
é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura,
a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os
telefones celulares e – por que não – a própria linguagem, que talvez é [sic]
o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um
primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se
seguiram – teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2009,
p.40).

78
É nesse sentido que aqui adotamos o vasto conceito do dispositivo de Agamben29 para
pensar o cinema como uma rede e um conjunto combinado (embora não estagnado) de
discursos, linguagens, eixos econômicos (mercados e fluxos do capital), arquiteturas e
tecnologias que, há mais de um século, modelam, padronizam, interceptam, controlam,
capturam, orientam e determinam corpos, ações, sociabilidades, gostos, memórias, sonhos,
tempo, opiniões, sentimentos, modas e gestos dos viventes. Nossa proposta, diante disso, é a
de que o cinema constitui um dispositivo, no qual se inscrevem elementos cujo tipo
dominante de associação vigora desde a época de sua formação moderna, quando ele se
estabelece como uma experiência de visualidade, arte e indústria.
Arriscamos dizer ainda que a sala de cinema configura-se como um dos elementos do
extenso dispositivo cinema, mas não apenas isso. Percebemos que ela mesma pode ser
apresentada como um dispositivo, na medida em que atua sobre/com as pessoas e produz
subjetivações. Está em adequação, deste modo, à proposição de Agamben acerca da relação
entre os dispositivos e os viventes e, como efeito da articulação desses dois termos, os
sujeitos.
Os elementos técnicos, físicos, históricos e discursivos da sala de cinema, com o
tempo, arranjaram-se em associação com a cidade, as disponibilidades das pessoas para o
lazer, as maneiras de elas circularem nos espaços, os demais equipamentos urbanos, as
arrumações arquitetônicas, os grupos capitalistas que manipulam os mercados
cinematográficos, as leis que sempre regeram a urbe, o interesse voraz de igrejas e farmácias
pela compra dos prédios da exibição, os próprios filmes exibidos etc.
Portanto, a partir daqui abraçarmos como foco da análise o dispositivo sala de cinema,
investigando alguns pontos de sua relação com o espaço urbano e com a vida das pessoas que,
por meio do cinema, principalmente da sala de exibição de rua, viveram alguma experiência
cinematográfica coletiva, cujas ressonâncias reverberaram em seus laços de sociabilidade.
Para tal, em uma revisão breve, não podemos deixar de lado a perquirição dos caminhos que a
consolidaram, publicamente, como uma edificação notável e um “local de disponibilidade”
(BARTHES, 1980, p.122), de incontestável importância para a configuração dos espaços
urbanos desde o início do século XX.
Esse tipo de “equipamento coletivo de lazer” urbano (FERRAZ,T., 2009; 2012),
destinado à exibição de filmes e à frequentação compartilhada de homens, mulheres e
29
Voltaremos ao conceito de dispositivo segundo a ótica de Agamben no Capítulo IV deste trabalho, quando
abordaremos a questão da proliferação dos dispositivos na contemporaneidade e a correlata noção de “processos
de dessubjetivação” articulada pelo autor (AGAMBEN, 2009).
79
crianças, entrelaçou-se ao longo de sua trajetória (pelo menos, segundo temos notícia, na
Europa, nos EUA e em parte da América Latina) a vários formatos, tecnologias de projeção
da imagem em movimento, estruturas dos espaços construídos e incontáveis finalidades junto
aos espectadores. A sala de cinema, nesse sentido, parece ter sempre acompanhado a posição
do cinema como “(...) la première forme indiscutable de loisir de masse”30 (SORLIN, 2001,
p.30).
O cinema – enquanto arte, experimento imagético e negócio comercial – algumas
vezes concorreu e, em outras, se colocou ao lado de outras experiências de espetáculo urbano
na Modernidade. Espacialmente, ele se localizou, no princípio, em espaços ainda não
assumidos propriamente como salas de cinema.
Nessa trajetória, a situação de espectação cinematográfica realizada em equipamentos
coletivos de lazer não surgiu como uma etapa final de toda uma evolução das atrações do
trompe l’oeil (proporcionado por maquinários ópticos de visualização coletiva ou individual)
ou enquanto um lance derradeiro do progresso de algumas formas de lazer urbano, a exemplo
do circo (nos quais o cinema teve forte presença, pelo menos em cidades da Europa, como
Lisboa31), das recreações em praças públicas, do teatro, da vaudeville etc.
Antes de ser simplesmente um herdeiro de outros formatos de divertimento e da
curiosidade coletiva pelas motion pictures, o equipamento urbano sala de cinema (por sua vez,
enredado no dispositivo cinema) tem raízes também na série de esforços de alguns
empresários que procuravam solidificar e aperfeiçoar seus inventos em prol de maneiras mais
concretas (e, por que não, mais rentáveis) de comercialização de fotogramas animados e da
captura da realidade para posterior exibição em movimento.
Aos outros divertimentos ou experimentos com a imagem – todos eles entrantes
poderosos do cinema institucional, o qual passa a se estabilizar, com força, a partir da segunda
década do século passado –, aos poucos coube ceder lugar, tomando rumos próprios ou
desaparecendo, para que o cinema e seus aparatos triunfassem. Foi após flertar com outras
tecnologias, espaços e maneiras de lazer coletivo (e não apenas deles puramente decorrer),
que o cinema encontrou, de uma vez por todas, o seu sítio e a sua razão de ser no ambiente
urbano das cidades.
Destarte, nessa espécie de ontologia da sala de cinema, é pertinente levar em
consideração algumas acepções que esse equipamento angariou durante todo o século XX. A
30
“(...) a primeira forma indiscutível de lazer de massa” (Tradução da autora).
31
A relação entre os espetáculos de imagem e movimento e os circos na cidade de Lisboa é abordada na obra
“Os cinemas de Lisboa: um fenómeno urbano do século XX”, de Margarida Acciaiuoli (2012).
80
princípio, recorremos então a duas das três escalas do cinema (enquanto equipamento coletivo
urbano) ramificadas pelo arquiteto Oliver Baudry (2001): 1) a sala de cinema como lugar de
compartilhamento da emoção e 2) o cinema como um lugar fora do mundo32.

La salle comme lieu de l’émotion partagée. Deuxième singularité, l’émotion


que l’on resent en tant que spectateur, d’autres semblent la ressentir en
même temps que soi. L’illusion serait-elle une illusion colletive? L’espace-
temps propre de film joue l’espace-temps de la salle et la presence bien
réelle des autres. Cette complicité, fût-elle genante, determine le lien de
chacun avec le film. Le cinema comme lieu hors du monde. Le cinema, c’est
l’interface entre l’espace public de la ville, et l’espace privé de l’émotion qui
naît dans la salle. Pris entre ces deux plans que sont la façade et l’écran de
projection, le cinema se déploie comme une espèce d’aberration topologique
dans la ville. Entre dans une salle de cinema, c’est em quelque sorte sortir de
la ville par um espace qu’elle continente, c’est s’em échapper par l’intérieur.
Le rôle de la façade du cinema et des espaces d’accueil est primordial dans
cette inviation au voyage (BAUDRY, O., 2001, p. 126)33.

Acolhendo e estendendo esses sentidos oferecidos pelo autor, associando-os a demais


concepções, tomamos a sala de cinema como: 1) um “tipo de desvio topológico na cidade”
que nos convida a viajar, segundo mesmo o que acima diz Oliver Baudry; 2) um “espaço do
sonho”, que, na proposta de João Luiz Vieira e Margareth Pereira (1982, p.7-8), funciona
como um “dispositivo de sedução”, onde o sujeito não é apenas um olhar, mas um corpo
sensível que “se lança no espaço que este olho, ao percorrer, definiu, recriou” (VIEIRA e
PEREIRA, 1982, p.7); 3) um espaço heterotópico foucaultiano, isto é, um espaço-outro, “uma
espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos (...)”
(FOUCAULT, 1984, p.416)34.
O próprio Foucault menciona o cinema entre os tipos diversos de heterotopia que

32
A terceira escala para o autor seria a da tela como interface entre duas realidades, pela qual ele conclui que a
combinação entre película, projetor e tela pode ser considerada a versão moderna da Caverna de Platão
(BAUDRY, O., 2001, p.126).
33
“A sala como um lugar de emoção compartilhada. Segunda particularidade, a emoção que se sente como
espectador e que os outros parecem sentir ao mesmo tempo. Será essa ilusão uma ilusão coletiva? O espaço-
tempo do filme brinca com o espaço-tempo da sala e com a presença bem real dos outros. Essa cumplicidade,
ainda que problemática, determina a relação de cada um com o filme. O cinema como um lugar fora do mundo.
O cinema é o ponto de contato entre o espaço público da cidade e o espaço privado da emoção que nasce na sala.
Preso entre estes dois planos, que são a fachada e o ecrã de projeção, o cinema se desdobra como um tipo de
desvio topológico na cidade. Entrar numa sala de cinema é de um certo modo sair da cidade para um espaço que
ela contém; é fugir para o interior. A função da fachada e da entrada do cinema é primordial nesse convite à
viagem”. (Tradução de Robert-Jan Bartunek).
34
As heterotopias, para Foucault, são lugares efetivamente localizáveis e reais (ao contrário das utopias) que
funcionam em contraposição aos posicionamentos da sociedade. São espaços que representam, questionam e
invertem de maneira concreta os posicionamentos habituais presentes em qualquer civilização (FOUCAULT,
1984, p. 414-415).
81
elenca. Apesar de não estabelecer nenhuma relação entre o espaço do cinema e o espaço da
cidade (pois não os coloca em contraposição ou inversão), ele fala especificamente da sala de
cinema limitando-se ao arranjo interior do equipamento. A alusão é feita depois que cita o
teatro, quando aborda um dos princípios das heterotopias, a saber: “o poder de justapor em um
só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”
(Ibidem, 1984, p.418). O autor aproxima a sala de cinema da ideia de heterotopia, dizendo
que “o cinema é uma sala retangular muito curiosa, no fundo da qual, sobre uma tela em duas
dimensões, vê-se projetar um espaço em três dimensões” (Idem)35.
Em todo o caso, a sala de cinema é, de fato, um equipamento coletivo urbano de
provocação. Direta ou indiretamente, age como fator de alteração dos percursos habituais dos
transeuntes, reordena as motivações das pessoas em suas ocupações do espaço urbano,
atravessa as memórias, as afetividades e as sociabilidades de muitos indivíduos que vivem
cotidianamente um “balé da boa calçada” (JACOBS, 2007).
Muitos outros autores36 investigam, há décadas, os aspectos da sala de cinema nos
termos de sua conexão (histórica e atual) com as cidades ou como equipamento urbano de
lazer, cuja arquitetura, aberturas para a tessitura de sociabilidades e tramas econômicas a

35
Aqui podemos também intuir que o cinema se adequaria ao quarto princípio da heterotopia proposto por
Foucault, o princípio que vai falar sobre o recorte do tempo, dando ensejo ao que ele chama de heterocronia. Ela
ocorre quando o homem se encontra em uma ruptura absoluta com o seu tempo tradicional. Inferimos tal
hipótese dadas as articulações que se estabelecem entre o espectador (que já se encontra diante de um espaço
desvinculado do espaço-temporal da cidade/rua) e a temporalidade/espacialidade fílmicas, a qual não condiz nem
com o espaço real da sala de cinema (onde se localiza a pessoa que, sentada, avista feixes de luz projetados em
uma tela por uma máquina colocada atrás de si), nem com o espaço comum dos transeuntes/habitantes do sítio
urbano de onde inicialmente o espectador saiu por algumas horas para se submeter a uma outra ordem de
duração, própria do filme exibido.
36
Os exames acerca do aparecimento de equipamentos coletivos de lazer destinados à exibição de imagem em
movimento, assim como da emergência de circuitos exibidores em metrópoles e pequenas cidades parece, agora,
ganhar um fôlego especial. O tema é colocado em discussão e observado justamente no contexto contemporâneo
de profundas mudanças nas formas de mostrar e ver filmes. Publicações, que podemos considerar bem recentes,
remontam à trajetória das intensas relações entre as salas de cinema e a configuração dos espaços urbanos de
cidades como Rio de Janeiro, Niterói, Berlim, Bruxelas, Paris etc (BIVER, 2009; BUSCHMANN, 2013;
CAIAFA e FERRAZ, 2012; CLADEL et al, 2001; FERRAZ,T., 2009; 2012; FREIRE, 2012). Mais
especificamente focalizamos a obra “Watching films: new perspectives on movie-going, exhibition and
reception”, editada por Karina Aveyard e Albert Moran. O livro reúne em sua terceira parte, cinco artigos
escritos a partir de estudos de caso que lançam luz sobre a história de movie palaces e salas de cinema multiplex,
dos EUA, à Bélgica e à Inglaterra, entre outros locais. Os autores abordam temas como audiência, práticas
comunitárias de ida ao cinema, tecnologia dos equipamentos, fechamentos de salas de exibição. Aqui no Brasil,
não podemos ignorar os recentes trabalhos de Rafael de Luna Freire (2012), que pesquisou a história dos extintos
cinemas da cidade de Niterói, contada no livro “Cinematographos em Nictheroy” (Niterói Livros, 2012), e de
Marcia Bessa (2013), que escreveu a tese “Entre achados e perdidos: colecionando memórias dos palácios
cinematográficos da cidade do Rio de Janeiro”, defendida em 2013, no âmbito do programa de pós-graduação
em Memória Social da UNIRIO. Além deles, há os clássicos, e supracitados, João Luiz Vieira e Margareth
Pereira (1982) e Alice Gonzaga (1995). Todos engrossam a lista de autores que se ocupam do inventário das
salas de cinema em suas associações com os espaços urbanos, as memórias e os laços de sociabilidade que se
tecem entre as pessoas.
82
elevam a um alto patamar de relevância para a cultura urbana, o consumo cinematográfico e a
fisionomia dos espaços construídos de ruas, esquinas e praças.
Poderíamos mencionar aqui uma gama incontável de trabalhos que contribuíram para
as investigações acerca da sala de cinema e o seu papel na cidade e na vida das pessoas, desde
os períodos em que nelas eram exibidos filmetes – quando, realmente, ainda não tinham um
modelo espacial autônomo –, até a fase dos grandes palácios do cinema. No entanto, qualquer
revisão de autores e suas respectivas obras, por mais breve que seja, certamente deixaria de
fora muitos estudiosos do tema e excederia os limites desta perscrutação. Bem
resumidamente, é válido, porém, nos determos à citação de duas estudiosas em especial.
É inevitável fazer alusão à espécie de retrospectiva das salas de cinema
norteamericanas37, principalmente daquelas localizadas em Los Angeles, que Maggie
Valentine (1994) desenvolve. Nas palavras da autora, o cinema, na rua, serviu como uma
significante experiência arquitetônica para milhões de pessoas nos EUA (VALENTINE,
1994, p.3). A autora propõe um quadro esquemático para mostrar a evolução da sala de
cinema no contexto estadunidense, dando destaque ao período de trabalho de um dos mais
importantes arquitetos dos prédios da exibição daquele país, S. Charles Lee. Apesar de o
esquema ser voltado para exame dos modelos de sala que se ergueram nos EUA, muito do que
tivemos (e até hoje temos) no Brasil, mais especificamente, no Rio de Janeiro, participou um
pouco desse caminho carregado por aparecimentos de perfis de cinemas no espaço urbano.

37
Mesmo não sendo o foco deste trabalho, tal elaboração referente aos EUA – um dos berços, de fato, dos
modelos variados do equipamento cinema – mostra-se pertinente para o exame das etapas das salas de cinema
cariocas, que buscamos fazer ao longo deste trabalho.
83
Figura 5 – Evolução da sala de cinema nos EUA (Fonte: Valentine, 1994, p. 7)

A outra autora que merece destaque no tratamento desse assunto é a pesquisadora Margarida
Acciaiuoli (2012), que, em um trabalho vigoroso sobre os cinemas de Lisboa, não apenas reconstrói a
história dos equipamentos exibidores da capital portuguesa, mas articula a vida e a morte dessas salas
com o desenvolvimento e as organizações espacial e sociocultural da cidade e arredores. Notando que
o ato de ir ao cinema não se circunscreve apenas ao ato de “ir ver um filme”, a pesquisadora apresenta
a mais-valia das salas de exibição, que, conjugadas com o filme, parecem ter sempre produzido efeitos
que ressoam nas pessoas durante gerações inteiras.
Margarida Acciaiuoli (2012) defende que a sala de cinema é muito mais do que um
espaço neutro. Ao se referir aos cinemas de Lisboa de todo o século XX, mostra que
rapidamente os arquitetos perceberam que a estrutura desse tipo de equipamento urbano
poderia se tornar um prolongamento do filme. O movimento do cinema não se esgota, assim,

84
na projeção e na tela animada. É o que ela defende. A animação da imagem não se reduz,
portanto, ao tempo e ao espaço do filme porque transborda e se agencia com os ambientes
arquiteturais e seus elementos físicos.
Sobretudo a afinidade entre os edifícios cinematográficos e as emoções dos
espectadores é ressaltada pela pesquisadora, caráter com o qual corroboramos ao pensar na
potência do cinema de rua na constituição de sociabilidades entre os homens citadinos e, ao
mesmo passo, na sugestão de trajetos e marcas espaciais na carne da cidade (ACCIAIUOLI,
2012).

Os cinemas concretizavam assim a relação que o espectador estabelecia com


o universo dos filmes e com as suas emoções, condensando-as e
engrandecendo-as ao mesmo tempo. Essa ligação aumentava, por seu lado, a
envergadura dos edifícios, dignificando-os e integrando-os numa dinâmica
de utilização que, muitas vezes, não tinha correspondência directa com a
qualidade das suas arquiteturas. No entanto, estes aspectos pouco têm
contado, limitando-se a análise histórica ao seu valor artístico ou à novidade
que trouxeram. O resultado foi que se descurou a questão das formas de
apropriação destes edifícios e da força que imprimiam aos locais, mesmo
quando não eram a sua maior ou melhor referência. Aliás, quando atingiam
esse estatuto, faziam mais do que afirmar a sua existência através das
fachadas. Mostravam-se também capazes de nos devolver um ou outro
momento que tínhamos sido tocados por um qualquer arrebatamento que se
efectivava na presença do lugar. E tudo leva a crer que seria essa capacidade
de restituição de um “estado de espírito”, que os cinemas tinham, que os
tornava, aos nossos olhos, tão familiares... (Idem, p. 279).

Diante desse panorama, nas próximas páginas, poderemos nos debruçar, seguindo uma
perspectiva transnacional, sobre alguns pontos do enlace entre a sala de cinema (com foco em
sua consolidação na urbe carioca) e a esfera do lazer no ambiente citadino, até meados do
século XX. Seguimos conscientes de que, conforme afirma Michel Marie, mais um autor do
rol de pesquisadores sobre o tema, “Le cinéma est une invention urbaine”38 (MARIE, 2001, p.
51).

2.2. O cinema como lazer


As práticas de lazer efetivadas na cidade do Rio de Janeiro, na passagem do século
XIX para o século XX, não eram poucas. Segundo coloca Evelyn Furquim Werneck Lima
(2006), a sociedade carioca dessa época – marcada por intensas transformações da ordem
urbana, que acabavam agindo sobre as relações entre as pessoas – assistia à disseminação do

38
“O cinema é uma invenção urbana” (Tradução da autora).
85
“gosto burguês”, um tipo de modelização das posturas sociais que tomava o lazer em alta
estima. A urbanista aponta que na cidade houve o crescimento daquilo que chama de
“vocação para o lazer” (LIMA, 2006, p. 35), isto é, cada vez mais motivações e espaços
ligados à diversão coletiva, tudo ocasionado, justamente, pela ampliação da esfera pública nos
primeiros anos da República Velha.
A expansão dos espaços de convivência social, para além do ambiente familiar dos
salões coloniais e da casa, e o aparecimento de áreas comuns como praças, ruas e avenidas
são dois aspectos que permeiam o nascimento de categorias e ideias como
público/espectadores, cosmopolitismo e lazer no contexto carioca.
Notavelmente, essas expressões, caras à cultura moderna que se formava em terras
brasileiras no início do século passado, correspondiam à realidade de apenas uma pequena
parcela da população. De fato, os antecedentes dessas modificações tiveram muito a ver com
a vontade de emancipação de um passado então recentemente agrícola e colonial, cujos
espólios ainda eram bem evidentes na estrutura socioeconômica do país.

A ascensão da burguesia como classe social implicou na formação de um


gosto especialmente mundano que tentava romper com o passado colonial e
lusitano. (...) a classe média interagia publicamente imitando o star-system
americano, onde a aparência era uma mercadoria a ser comercializada,
provavelmente devido ao grande êxito dos cinematógrafos. O que ficou
claro, observando-se os primeiros trinta anos deste século [a autora refere-se
ao século XX], foi o fato de o uso intensivo do espaço público ter provocado
um comportamento simbólico dos indivíduos nesta esfera, reforçando,
apenas em alguns espaços específicos da cidade, a imagem de
cosmopolitismo, denotada na Avenida Central (LIMA, 2006, p. 36).

Por esse ponto de vista, foram as elites econômicas, formadas por indivíduos elegantes
e distintos da sociedade (LIMA, 2006; GONZAGA, 1996), que tiveram acesso aos produtos
de última moda do loisir moderno na capital brasileira de ares europeizados. Porém, não seria
sensato afirmar que o ingresso em um novo perfil de vida pública, acalorada naquela
circunstância pelo lazer, excluía totalmente as camadas mais pobres e as classes médias
baixas da população, apesar da nítida desigualdade na distribuição dos equipamentos culturais
pela cidade. Inclusive, as finalidades dadas ao lazer nas cidades brasileiras que se
urbanizavam na primeira metade do século XX ligavam-se à instrumentalização dessas
práticas de diversão de modo que, através delas, houvesse um tipo de controle das gentes e
dos espaços públicos, evitando “desordens” no tecido urbano, pois “acreditava-se que as
atividades de lazer funcionariam como elementos disciplinadores e de manutenção da ordem”
86
(MELO e PERES, 2005, p. 85).
Ademais, havia certa aposta no papel do lazer como um tipo de bálsamo para a
recuperação das forças gastas com o trabalho, um motivador de relevância essencial em um
país que se industrializava (Idem). Por conseguinte, esse processo de industrialização
provocava impactos no condicionamento físico e mental dos trabalhadores urbanos, ou seja,
exatamente as pessoas das parcelas mais pobres da sociedade que, assim, obtinham uma
trégua no lazer proporcionado em forma de festas religiosas, esporte, clube de bairros,
footing, idas às praias, corridas de cavalo e, sem esquecermos, pelo cinema.
Conforme também abordo em trabalho anterior (FERRAZ,T., 2009; 2012), as
aberturas de negócios voltados para o lazer, a diversão e as atividades sem compromissos
laborais espocaram com bastante força no Rio de Janeiro de início de século. Tanto quanto o
Centro, a zona sul, a Grande Tijuca, os subúrbios participaram ativamente da fase de elogio à
recreação.

Em boa parte da cidade, os lazeres tornaram-se o ponto de partida para a


mistura propriamente urbana. Eles se colocaram em pé de importância com o
sistema de transporte por bondes que costurou a cidade, entrelaçando seus
recantos. As novas relações na produção capitalista, ainda reflexo da
Revolução Industrial, fizeram com que a prática econômica ligada à
dimensão do lucro fosse mais um vetor a ressoar naquele contexto. O
consumo e a demanda por lazer foram potencializados pelo surgimento de
novas tecnologias e pela intensa circulação de moeda (...). Desta maneira, os
variados aspectos operados simultaneamente durante a Belle Époque carioca,
por estarem ligados ao comportamento das pessoas e à configuração dos
espaços urbanos, podem ser encarados como elementos de uma modernidade
que se instaurou (...). (FERRAZ,T., 2009, p. 48).

De fato, há de se salientar que as particularidades do subúrbio do Rio, cujos processos


de ocupação urbana tiveram marcas bem específicas, tal como vimos no Capítulo I deste
trabalho, podem ter gerado outro tipo de vínculo entre as ruas, as praças e as beiras da linha
férrea suburbanas e os equipamentos coletivos de lazer que se instalaram em localidades
cortadas pelas ferrovias Central do Brasil, D’ouro, Auxiliar e, para nós mais especialmente, a
Leopoldina.
A grande questão aí envolvida – exaustivamente comentada em vários estudos sobre a
história do Rio de Janeiro (ABREU, 2008; SEVCENKO, 1995) e aqui já expostas no capítulo
anterior – é que nas primeiras décadas do século XX, a cidade passou por uma fase de
mudanças estruturais que modificaram intensamente as suas configurações físicas e as
relações socioculturais de seus moradores. Novas categorias sociais e modos de estar no
87
espaço foram erigidos naquele momento. Tornavam-se evidentes as diferenças e os
entrelaçamentos (por vezes, tensos e antagônicos) entre a rua e a casa, os locais de diversão
moderna e o trabalho, as classes de indivíduos abastados e as classes de pessoas apartadas das
melhorias efetivadas durante a Belle Époque carioca. Um processo civilizador tomado pela
urgência, somado às apostas nas ideias de progresso, desenvolvimento e lucro, funcionou
como o motor central das obras de remodelação da capital da República Velha.
Será nesse contexto histórico de crescente implantação de uma veia capitalista, em
plena estruturação moderna da cidade e das sociabilidades cariocas, que em 1896 é
apresentada ao público do Rio a atração cinematográfica, a partir de uma máquina cujo
modelo fora baseado no “aparelho de Lumière”. Antes de entrarmos especificamente nas
aventuras do cinema no Rio de Janeiro, com o aparecimento de um mercado profícuo de salas
exibidoras, é preciso localizarmos a atividade cinematográfica em meio às concepções acerca
do lazer.
Nesse intento, pode soar como um exagero, e até chega a ser um clichê, remontarmos
à primeira sessão de cinema do mundo, realizada durante a apresentação do cinematógrafo
dos irmãos Louis e Auguste Lumière39 no Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris,
no ano de 1895. Mais ainda lugar comum é dizer que tal aparelho, contudo, já podia ser
encontrado, à época, em várias versões criadas por diversos inventores de maquinarias óticas
que se espalhavam pela Europa e pelos Estados Unidos.
Todavia, até mesmo a título de contraponto, é conveniente relembrarmos alguns motes
da história do cinema, como, por exemplo, a ênfase dada por alguns autores à teoria de que os
irmãos Lumière e Thomas Edison, o inventor do quinetógrafo40, não teriam colaborado tanto
para a inovação do que já existia no Ocidente em termos de máquinas exibidoras de imagens
em movimento. Essa é a linha de pensamento com que, indiretamente, Jonathan Crary
trabalha, quando traça um estudo do estatuto do observador na Modernidade. E é também, só
que mais explicitamente, a hipótese pela qual Anatol Rosenfeld (2009), um autor clássico da
história do cinema, defende que:

39
Entretanto, por terem vencido, na França, a corrida na apresentação do cinematógrafo para o maior número
possível de pessoas pagantes – o que garantiu fama, autenticidade e ajudou no reconhecimento da patente –, os
irmãos Lumière ganharam, na história oficial do cinema, a chancela de inventores da tecnologia, que em
pouquíssimo tempo revolucionaria as artes e a economia do entretenimento (ARAÚJO, 1976; ROSENFELD,
2009; SADOUL, 1963; COSTA, F.C., 2005).
40
Mais um aparelho destinado ao registro fotográfico do movimento, através do qual uma só pessoa podia ver
cenas animadas de fotografias que passavam rapidamente em frente aos olhos. De fato, a grande invenção de
Thomas Edison foi o “filme de 35 mm com quatro pares de perfuração por imagem” (SADOUL, 1963, p. 12).
88
Edison e os Irmãos Lumière (especificamente Louis), que são considerados
os inventores reais da cinematografia, contribuíram com pouco de
essencialmente novo, de modo que não vale a pena tomar partido em favor
do francês ou do norteamericano para verificar a que nação se deve a
realização do sonho milenar. O fato real é que Edison, por várias razões,
principalmente comerciais, nunca chegou a projetar publicamente fotografias
animadas. Esse efeito – o de terem estado entre os primeiros a projetarem
publicamente filmes com razoável perfeição técnica – deve ser atribuído aos
Lumière. Por outro lado, foi Edison quem construiu a primeira cinecâmera
mais ou menos aperfeiçoada. Porém, mesmo nesse terreno, contavam-se
então com numerosos pioneiros, que lançavam mão de todos os recursos da
fotografia para decompor o movimento nas suas várias fases.
(ROSENFELD, 2009, p. 59).

O reconhecimento da existência de uma larga esteira de pioneiros na base tecnológica


e na produção e exibição de imagem em movimento nos ajuda a confirmar que o cinema
emergiu de maneira não tão facilmente localizada, sendo, além disso, uma invenção
tipicamente urbana, com bases sólidas na experimentação científica sim, mas, sobretudo, com
hastes bem fincadas no tecido urbano. Bem de início, uma cadeia cinematográfica
embrionária foi estruturada tanto nos EUA, quanto na Europa. Em feiras, quermesses, circos,
teatros, galpões, cafés e bares das zonas urbanas41 europeia e estadunidense, os lugares da
exibição emergiram, de ponto a ponto, paulatinamente, durante as primeiras décadas do
século XX.

Na Inglaterra, cada aglomeração industrial tinha os seus Music-halls,


correspondentes aos seus Cafés-concerto franceses, aos Vaudevilles ou aos
Smoking Concerts americanos. Os filmes figuraram cedo nos programas dos
Music-halls. Grande parte dessas salas estavam agrupadas em circuitos
(como o circuito Moss), propriedades de importantes grupos financeiros. E
os Music-halls, depois das barracas, feiras tenderam a transformar-se em
cinemas. A Inglaterra foi a primeira a possuir um grande número de salas de
exibição, mas foi rapidamente suplantada pelos Estados Unidos (SADOUL,
1963, p. 66-67).

41
É interessante notar a existência de estudos que falam sobre a vida do cinema também em zonas não urbanas
de algumas cidades do mundo, principalmente a partir da metade do século XX. Citamos o recente artigo “The
place of rural exhibition: makeshift cinema-going and the highlands and Island Film Guild (Scotland)”, de Ian
Goode (2013), da Escola de Cultura e Artes Criativas da Universidade de Glasgow. No trabalho de viés
histórico, o autor situa as condições de exibição de filmes em comunidades rurais da Escócia, no pós-Segunda
Guerra Mundial, por meio dos benefícios dos aparatos de projeção em 16mm. Um texto que também circula em
torno da preocupação acerca do cinema em áreas não urbanas é o “Une expérience: Oyonnax”, de Nicole Singier
(2001). Nele, é abordada a implantação, nos dias atuais, de um complexo de salas de cinemas em uma localidade
isolada do tecido urbano, nos alpes franceses. Aliás, na França, destaca-se a atividade do organismo l’Agence
pour le développement regional du cinema (l’ADRC), cuja atuação nos setores de exibição/programação e
distribuição se faz através da prestação de assistência aos atores envolvidos nos processos de diversificação e
manutenção de salas de cinema em pequenas cidades e periferias urbanas francesas (Fonte: Site l’ADRC.
Disponível em: http://www.adrc-asso.org . Última visualização: 17 de novembro de 2013).
89
Nessa direção, parece ser clara a relação intrínseca entre a consolidação do cinema
como indústria e prática moderna de lazer coletivo e a existência de grupos proletários ligados
às indústrias que compunham algumas cidades dos EUA e países europeus. Anatol Rosenfeld
(2009), Georges Sadoul (1963) e Ismail Xavier (1978) comentam que o cinema saiu de uma
primeira posição como invenção científica curiosa, que fora também observada com saturação
pelos membros de uma elite ilustrada e chic dos centros urbanos, para, logo depois, tornar-se
sinônimo de “espetáculo dirigido para as grandes massas” (XAVIER, 1978, p. 26). Figurou-
se, dessa forma, como uma diversão a custo de um níquel42, que atingiu em cheio as camadas
médias e pobres das sociedades. Portanto, não é leviano afirmar que, na figura de uma jovem
indústria e grande novidade na área do lazer coletivo, o cinema contou com o amparo de um
público de massa representado pelo proletariado e as classes médias urbanas.
Embora exista no senso comum a ideia de que em seu seminal estágio o cinema ainda
flertava com o campo científico, há forte indicação de que ele já se colocava entre os
negócios, os inventos e as diversões das primeiras décadas do século XX como um filho
direto do capitalismo. O ímpeto de alguns homens em torno da corrida pela patente de
máquinas óticas, o abre-fecha de espaços voltados à exibição de imagem em movimento nas
cidades ou a incorporação dessas exibições pelas atrações cotidianas de cafés, teatros etc, nos
primeiros vinte anos da vida do cinema mostra um interesse, no mínimo, estratégico por essa
novidade.
Com isso, o Early Cinema43 – caracterizado pelas ideias de “cinema de atrações”,
“cinema de mostração”, “modo de representação primitivo”44 –, pelo que indicam os dados,

42
Aqui fazemos menção ao níquel, moeda de cinco centavos, que era o preço cobrado pela entrada nas sessões
de cinema de pequenas lojas exibidoras nos EUA, a partir de 1905. O pioneiro ao oferecer exibição de filmes a
preços módicos, em sessões de cerca de 30 minutos, para uma plateia formada basicamente por indivíduos
proletários e imigrantes, foi um cinema montado pelos empresários Harry Davis e John Harris, localizado em
Pittsburgh, na Pensilvânia. Esse perfil de sala de cinema se multiplicou, ganhando o nome de Nickel (níquel)
Odeons (nickelodeons). Com baixos níveis de investimento, mas com grande lucratividade devido ao alto grau
de frequentação do público, os nickelodeons fizeram a fortuna dos empreendedores donos de circuitos
espalhados pelos EUA (GONZAGA, 1996; SADOUL, 1963, p. 67).
43
Esta é a nomenclatura mais comum, de uso internacional, para o Primeiro Cinema.
44
“Cinema de atrações”, “cinema de mostração” e “modo de representação primitivo” são expressões usadas
respectivamente por Tom Gunning (GUNNING, 2010; GUNNING apud COSTA,F.C., 2005, p. 24), André
Gaudreault (COSTA,F.C., 2005) e Noel Burch (COSTA,F.C., 2005), todos eles, historiadores da fase inicial do
cinema que tentam compreender as propriedades dos primeiros filmes (quanto aos planos, duração, narrativa,
montagem etc) e, consequentemente, as particularidades das relações entre esses filmes e os espectadores. Em
linhas gerais, o “cinema de atrações” caracterizava-se pela sua intenção exibicionista, maravilhamento e espanto
do espectador, por meio de gags, comicidade, truques e fusões de imagens, apresentação de atualidades de forma
documental, como, por exemplo, as travelogues. Os apelos não-narrativos destas atrações da imagem em
movimento equivaliam-se aos “choques” modernos, tal como a concepção da experiência moderna de Walter
Benjamin (COSTA,F.C., 2005; GUNNING, 2010, p. 440). Já o “cinema de mostração”, para Gaudreault (apud
COSTA,F.C., 2005), opunha-se ao cinema narrativo, que só ganharia maiores vultos depois de 1907, na época da
90
talvez se desloque em algum grau das considerações que o reduzem à mera experimentação
curiosa e despretensiosa ou a uma fase da linha evolutiva das brincadeiras e ensaios óticos/
imagéticos. Não apenas o senso comum, nesse caso, pode ser contradito, mas é válida também
a releitura crítica de autores como, por exemplo, Rosenfeld (2009), que enxergam, no que se
verifica, alguma ingenuidade nos pioneiros do cinema. Para designadamente este autor, os
homens que lidaram com o cinema nas primeiras décadas do século XX:

(...) não reconheceram que havia, particularmente nas metrópoles com suas
imensas aglomerações populares, um público potencial de imaginação
estandardizada, de fracas aspirações individualistas, que representava um
mercado ideal para o consumo em massa de um espetáculo produzido em
massa (ROSENFELD, 2009, p. 64).

No entanto, o cinema, como um ativo participante de um longo desenvolvimento


tecnológico, criou um público e um mercado; configurou-se como uma arena social profícua
já na sua fase mais seminal. Ligado diretamente ao capitalismo industrial, que trouxe em seu
bojo a afirmação do lazer como prática social notadamente moderna, o cinema ocidental
enamorou-se desde cedo, e rapidamente, pelo mercado. Conectou-se às engrenagens de
produção da indústria cultural, que, para os frankfurtianos:

(...) permanece a indústria da diversão. Seu controle sobre os consumidores é


mediado pela diversão, e não é por um mero decreto que esta acaba por se
destituir, mas pela hostilidade inerente ao princípio da diversão por tudo
aquilo que seja mais do que ela própria. (...) a grande reorganização do
cinema pouco antes da Primeira Guerra Mundial – condição material de sua
expansão – consistiu com base nas bilheterias, necessidades essas que as
pessoas mal acreditavam ter de levar em conta na época pioneira do cinema.
Ainda hoje [1947] pensam assim os capitães da indústria cinematográfica
(...). Sua ideologia é o negócio. A verdade em tudo isso é que o poder da
indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida,
não da simples oposição a ela, mesmo que se tratasse de uma oposição entre
a onipotência e a impotência. A diversão é o prolongamento do trabalho sob
o capitalismo tardio. Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de

expansão dos nickelodeons e da demanda por filmes ficcionais, resultados mais ou menos decorrentes do
nascimento de convenções especificamente cinematográficas, de cunho industrial. Até 1907, entretanto, a
mostração consistia a tônica do que era, de fato, mostrado aos seminais espectadores, geralmente em um único
plano. Esse público via uma “encenação e apresentação de eventos dentro de cada plano (filmagem)”, já que
nesta fase ainda não era comum, segundo Gunning, a manipulação dos planos para “contar uma história
(montagem)” (COSTA,F.C., 2005, p. 24). A noção de “modo de representação primitivo”, em Noel Burch
(COSTA,F.C., 2005, 2005), liga-se a filmes marcados por traços como: “composição frontal e não centralizada
dos planos, posicionamento da câmera distante da situação filmada, falta de linearidade e personagens pouco
desenvolvidos”, além de “planos abertos e cheios de detalhes, povoados por muitas pessoas e várias ações
simultâneas” (COSTA,F.C., 2005, p. 23).

91
trabalho mecanizado, para se pôr em condições de enfrentá-lo. Mas, ao
mesmo tempo, a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu
lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação
das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais
perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de
trabalho. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.112-113).

Adorno e Horkheimer45 entendiam que o conteúdo do lazer cinematográfico


assemelhava-se às operações padronizadas do trabalho do capitalismo industrial. Conforme
escrevem, havia uma reprodução de etapas serializadas, advindas do mundo do trabalho, nos
momentos de lazer. A leitura que esses filósofos fazem do lazer vai considerá-lo um puro
exercício de ócio, marcado pela impossibilidade de gerar no público as condições adequadas à
promoção de esforços intelectuais.
Ademais, Adorno (1995), em seu célebre texto “Tempo livre”, dirá que os instantes
liberados do trabalho foram capturados pelas instâncias mais perversas do capital. Por esse
lado, ao consumir produtos da indústria cultural, justamente durante as horas de descanso, o
indivíduo ficaria à mercê do capital. Ao divertir as massas, a cultura a elas destinadas, longe
de beneficiar as classes dominadas em prol da emancipação do pensamento, promoveria, na
verdade, as condições ideais de sua alienação.
Ao contrário das noções que tomam o lazer como ócio e meio de alienação, o
sociólogo Joffre Dumazedier (1999) defende que essa prática social, antes de se vincular à
ociosidade, é um atributo do mundo do trabalho ocidental e moderno, um fator indissociável
da realidade produtiva do capitalismo do século XX. Embora faça uma associação entre as
ordens do capital e o lazer, o autor não supõe que esse último termo seja mais uma ferramenta
de dominação das massas pelo Capitalismo. “O lazer não é a ociosidade, não suprime o
trabalho; o pressupõe. Corresponde a uma liberação periódica do trabalho no fim do dia, da
semana, do ano ou da vida de trabalho” (DUMAZEDIER, 1999, p. 28).
Em seus estudos, Dumazedier vai abordar o lugar ocupado pelo trabalho e o exercício
de outras atividades nas sociedades dos períodos arcaico e pré-industrial. Aponta que nestas
fases não havia propriamente momentos destinados ao lazer. As ociosidades dos filósofos
gregos ou dos fidalgos do século XVI, diz o autor, eram prerrogativas de:

(...) privilegiados da sorte, cultos ou não, [que] faziam pagar sua ociosidade

45
Fazemos remissão a tais autores e à noção de “indústria cultural” pela necessidade de retomar a literatura que
aborda o cinema como um dos mais significativos exemplos dos meios de comunicação de massa, cujo
aparecimento e consolidação se dão de forma vertiginosa na primeira metade do século XX.

92
com o trabalho dos escravos, dos camponeses ou dos valetes. Esta
ociosidade não se define em relação ao trabalho. Ela não é um complemento
nem uma compensação; é um substituto do trabalho (Ibidem, p.27).

Assim, o conceito de lazer não se aplica, para o sociólogo, a essas duas etapas
históricas da humanidade ocidental, quando, num primeiro estágio, a festa englobava o
trabalho e o jogo, e quando, numa segunda fase, antes da revolução industrial, o corte entre
trabalho e repouso não era nítido. Para haver lazer, Dumazedier (1999) conclui que são
necessárias duas condições encontradas apenas nas sociedades industriais e pós-industriais:

a) As atividades da sociedade não mais são regradas em sua totalidade por


obrigações rituais impostas pela comunidade. Pelo menos uma parte destas
atividades escapa aos ritos coletivos, especialmente o trabalho e o lazer. Este
último depende da livre escolha dos indivíduos, ainda que os determinismos
sociais se exerçam evidentemente sobre esta livre escolha. b) O trabalho
profissional destacou-se das outras atividades. Possui um limite arbitrário,
não regulado pela natureza. Sua organização é específica, de modo que o
tempo livre é bem nitidamente separado ou separável dele. (Ibidem, p. 28).

O cinema se expandiu como diversão e alvo de curiosidades burguesas, na Europa e


nos EUA, e, logo depois, no Brasil. Do mesmo modo, encarnou nos hábitos das pessoas, na
figura de uma prática de lazer moderna, ligada intrinsecamente às atividades e sociabilidades
das classes trabalhadoras. Dados indicam que na Europa, por exemplo, na passagem do século
XIX para o XX, o público das projeções cinematográficas encontrou no tempo liberado pela
redução do trabalho nas fábricas (via instauração das jornadas de oito horas) a possibilidade
de fazer uso de suas horas livres, preenchendo-as com este lazer.
Adotando a noção de horas livres, vinculada às sociedades modernas do capitalismo
industrial, é válido salientar que esse tempo liberado só pode, de fato, se relacionar com a
ideia de lazer se o aproveitamento dos momentos dispensados for assumido como uma
“atividade [primeiramente] individual livre de constrangimentos” (YURGEL, 1983, p. 18).
Isto é, para se efetivar o lazer, esses momentos de liberdade devem ser preenchidos com
atividades que carreguem o “sentido de opção individual, de volição, de “liberdade de
escolha” (Idem).
Pierre Sorlin (2001), sociólogo que estuda o cinema à luz da história do lazer, também
reforça essa questão. Para ele, na América e na Europa, o tempo social foi ordenado a partir
do trabalho e, em consequência disso, a noção de lazer sofreu historicamente com conotações
negativas, a tal ponto de até hoje haver expressões no senso comum que a associam à

93
completa falta do que fazer ou a uma lamentável preguiça. Nesse eixo, ele lembra o exemplo
da expressão “the ladies of leisure”, cunhada pelos ingleses, cuja tradução literal é “as
mulheres do lazer”, mas, pejorativamente, carrega o sentido de “as mulheres que não fazem
nada” (SORLIN, 2001, p.23).
Sorlin ainda diz que o lazer como “estado de disponibilidade” e “combinação de
momentos de relaxamento e distração” é uma ideia nova (Idem). O lazer deixa de ser visto
como uma espécie de inatividade ou, pejorativamente, como um tempo sem compromisso
com o labor, para ser considerado parte constitutiva da existência. Não se apresentará mais
pela forma de um simples parênteses na existência ativa dos indivíduos. Para o autor, tal
mudança de perspectiva, ocorrida principalmente em meados do século XX, deve-se, entre
outros fatores, ao fato de que as altas classes sociais, influenciadas ou totalmente imersas em
uma ética protestante, acharam, naquela época, justificativas bem plausíveis para suas viagens
e distrações. Sem remorsos, passaram a atribuir os momentos de lazer à necessidade de zelar
pelo bem-estar de sua saúde e o enriquecimento cultural e espiritual de suas vidas (Idem).
O que aqui colocamos em jogo são os próprios sentidos burgueses de liberdade de
escolha e de busca pela elevação do ser, que espreitam a ideia de lazer. A questão do acesso
aos lazeres pagos, da ligação imediata entre “liberdade” e “lazer”, da inscrição do lazer e seus
produtos na esfera do capitalismo etc pode ser problematizada se a contemplamos em vista
dos contextos de países com herança colonial, como o Brasil, que, no final do século XIX e
nas primeiras cinco décadas do século XX, viveu a sedimentação de suas indústrias culturais e
o consumo de massa.
No Rio de Janeiro, por exemplo, o contingente de trabalhadores braçais da República
Velha e da fase imediatamente posterior a ela provavelmente não teve acesso tão rápido às
salas de cinema que se estruturavam na Avenida Central e em bairros como Tijuca e
Copacabana, por exemplo (e aqui já listamos o cinema como um típico lazer urbano).
O cinematógrafo, em terras cariocas, não se configurou imediatamente como um
divertimento popular de frequentação em grande escala pelas pessoas. Destacamos que a ideia
de “divertimento popular” se vincula ao lazer voltado para camadas desprovidas de status
social ou boas condições de vida. O que se coloca em questão é que, ao contrário de um
público estritamente popular, teria sido, na verdade, a classe burguesa a primeira grande
plateia do cinema, pelo menos no Rio de Janeiro. Esta, sim, dona de uma real possibilidade de
livre escolha, fez uso de suas horas livres ocupando-as com a espectação cinematográfica, o
que, segundo intuímos, corrobora as impressões de Sorlin (2001): o lazer tem raízes burguesas
94
e o cinema, como um lazer, também aí se ancorará.
Sobre essa prerrogativa dos ricos em relação aos primeiros espetáculos de cinema,
avizinhamos uma lembrança de Pierre Sorlin (2001) e o contexto carioca acima analisado. O
autor menciona um dado curioso levantado por Charles Musser, quando este examina as
práticas de espectação entre os norte-americanos endinheirados. Musser percebeu a existência
de práticas de distinção social entre as classes altas no ato de ir ao cinema. Uma delas era
caracterizada pela reserva de sessões de projeção, que, de maneira especial, ficavam restritas
aos ricos. Apenas os seus pares tinham acesso à exibição das películas, em regra,
documentais. No entanto, com a chegada do filme narrativo, o anonimato e a mistura
superaram a exclusividade procurada pela burguesia, que se tornou ela mesma,
espontaneamente, parte integrante do grande público cinematográfico.

Charles Musser, dans son étude sur le comportement des riches Américains,
explique que, durant la première décennie du XX siècle, ces gens, soucieux
de ne pas se mêler au peuple, payaient très cher des séances spéciales
organisées dans des lieux prestigieux et consacrées à des documentaires
scientifiques ou géographiques. Après 1910, séduits par les films narratifs
qui passaient dans les salles ouvertes au grand public, ils se mêlèrent à la
foule anonyme, faisant ainsi de chaque cinéma un lieu de rencontre entre
classes différentes (SORLIN, 2001, p. 28) 46

Margeando esse exemplo, conforme vimos, foi um grupo social seleto quem
inicialmente fez do cinema um entretenimento caracteristicamente moderno no Brasil. À
época da passagem de século, o cinema – recentemente chegado na forma de exibições de
filmetes em salas mais ou menos arranjadas – traduziu-se como uma experiência da “moda”,
especialmente burguesa. Foi ao se solidificar, ganhando fôlego nas décadas de 1920, 1930 e
1940, que ele se democratizou entre as gentes e os espaços. Em seguida, nos anos vindouros,
estabeleceu-se através de várias nuances e modelos como um magistral equipamento urbano e
uma forma de lazer cotidiana.
É dessas etapas de sedimentação e auge do cinema no Rio de Janeiro que não podemos
excluir a participação efetiva das classes menos abastadas. Os operários e os moradores dos
subúrbios não se separam da imagem e da noção de público cinematográfico. Esse público de

46
“Charles Musser, no seu estudo sobre o comportamento nos ricos americanos, explica que durante a primeira
década do século XX, as pessoas, preocupadas em não se misturar com o povo, pagavam bem caro por sessões
especiais organizadas em lugares de prestígio, dedicados a documentários científicos ou geográficos. Depois de
1910, seduzidas pelos filmes narrativos que passavam na salas abertas para o grande público, elas misturaram-se
com a multidão anônima, fazendo de cada cinema um ponto de encontro entre diferentes classes” (Tradução da
autora).
95
espectadores ampliou-se para além da burguesia e espalhou-se para além dos centros da
cidade. É o que adiante iremos perscrutar mais detalhadamente.

2.3. A Belle Époque cinematográfica carioca


Depois de ter percorrido no exterior todos esses caminhos vinculados a inovações
tecnológicas, processos da sociedade industrial (trabalho industrial/liberação periódica do
trabalho) e seminal formação de uma mass culture, o espetáculo cinematográfico, junto de
todos os seus aparatos técnicos, chegou ao Brasil. No contexto da cidade do Rio de Janeiro, o
cinema, representado por um aparelho chamado omniógrapho, foi revelado a alguns
convidados e jornalistas durante uma sessão realizada em um prédio da Rua do Ouvidor.
Segundo Vicente de Paula Araújo (1976, p. 76), há uma curiosidade que ronda essa
primeira “sessão de cinema” carioca. Nenhum dado da época aponta quem foi o comerciante
responsável pela importação da máquina e exibição no número 57 da Rua do Ouvidor. Para o
autor, essa lacuna pode ser o sinal da estratégia encontrada pelo desconhecido empresário
para escapar da obrigação de pagar pelo uso da máquina patenteada. Araújo cita um
comentário do historiador de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, publicado no jornal O
Estado de São Paulo, que explicita bem a possibilidade do omniógrapho ter sido uma
reprodução, como muito existiam espalhadas pelo mundo, do cinematographo dos Lumière:
“É possível que na corrida para a exploração comercial da projeção de imagens animadas os
Lumière tenham sido, no Brasil, antecedidos por qualquer franco-atirador rival” (SALLES
apud ARAÚJO, 1976, p. 74).
A realidade do setor de entretenimento na cidade era então composta por inúmeras
práticas e comércios da diversão empreendidos à maneira dos donos, às vezes sem muitos
recursos e com caráter informal. Os cinematógrafos aí se somaram. Entretanto, no Brasil, o
mercado do cinema parece ter tido uma nuance um pouco diferente daquela experimentada na
Europa e nos EUA, nos primeiros anos da cinematografia mundial. Aqui, nos primórdios
dessa indústria, parece não ter acontecido uma rápida correspondência entre os espetáculos de
imagem em movimento e fatores como grande público, classes trabalhadoras, consumo de
massa.
Não é arriscado propormos que a cultura do cinema no Rio de Janeiro nasceu atrelada
à ascensão de uma classe burguesa, beneficiada pela urbanização gentrificada47 da antiga

47
A noção de gentrificação vem do termo inglês gentrification, o qual, para a Sociologia Urbana, significa um
tipo de enobrecimento urbano, fruto dos investimentos (estatais ou não) em determinadas localidades.
96
capital. Os negócios do cinema voltaram sua atenção para um público mais pobre,
caracteristicamente operariado, apenas em meados do século XX, apesar de alguns autores
como Alice Gonzaga (1996) notarem a existência de espetáculos de imagem em movimento
em locais mais desprovidos de sofisticação, tais como feiras, galpões e saletas simples já nos
primeiros anos do século supracitado.
O cinema parece ter funcionado, de algum modo, como plataforma para a constituição
de uma seminal burguesia brasileira, que, pouco a pouco, à medida que era forjada, ia se
acostumando com a aceleração dos fluxos materiais e sensoriais típicos da modernidade tardia
que aqui se consolidava, mas tudo só bem depois das metrópoles europeias e estadunidenses
terem experimentado a complexificação da vida inscrita em relações genuinamente
metropolitanas.
Nesse ponto, é sempre válido citar a tradição de sociólogos como Georg Simmel
(1973) e Robert Erza Park (1973), para quem, no âmbito de um pensamento crítico acerca do
fenômeno urbano, a cidade deve ser vista como cadinho do crescimento capitalista, sistema
que, tentacularmente, agiu sobre os laços sociais mais tradicionais, esgarçando-os, embora
estivessem há muito, já na passagem de século, em ponto de fragilização.
O “bombardeio de estímulos” (Singer, 2004, p. 96) do estágio da Modernidade entre
os séculos XIX e XX reprocessou a vida mental dos indivíduos, sujeitos, então, aos riscos do
mundo novo que chegava acompanhado pelo desenvolvimento de uma partilha cada vez mais
intensa do espaço com estranhos, mas que, surpreendentemente, continha um fator de
segregação em sua base. É um contexto, conforme Park (1973), marcado pela impossibilidade
de interpenetração entre os grupos urbanos que aí se formavam, embora tenhamos hoje a
sólida noção de que alguns espaços erguidos na cidade sempre tenderam, em níveis e
finalidades variados, à reunião e à mistura profícua de heterogeneidades.
Na visão de Robert Erza Park:

Os processos de segregação estabelecem distâncias morais que fazem da


cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se
interpenetram. Isso possibilita ao indivíduo passar rápida e facilmente de um
meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa, de
viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de
outras formas amplamente separados. Tudo isso tende a dar à vida citadina
um caráter superficial e adventício; tende a complicar as relações sociais e a
produzir tipos individuais novos e divergentes. Introduz, ao mesmo tempo,

Geralmente, a gentrificação abre caminho para processos de valorização e especulação imobiliárias nos espaços
das cidades. No Capítulo 4 deste trabalho, desenvolvemos com maior profundidade este termo.
97
um elemento de acaso e aventura que se acrescenta ao estímulo da vida
citadina e lhe confere uma atração especial para nervos jovens e frescos. O
atrativo das cidades grandes é talvez uma consequência de estímulos que
agem diretamente sobre os reflexos. Enquanto tipo de comportamento
humano, pode ser explicado, numa espécie de tropismo, como a atração de
uma mariposa pela chama (PARK, 1973, p. 62).

Nesse cenário, ocorreram a profusão de imagens em circulação, o aumento dos


espetáculos, a emergência do cinema como experiência e lazer citadino marcante, o boom
tecnológico das formas de mobilidade urbana e a reestruturação do dia a dia no ambiente
moderno frente a situações de choques e excitações. Essa etapa – que no Brasil se deu com
uma diferença de praticamente meio século em relação às configurações de algumas
metrópoles e centros urbanos nos EUA e na Europa – desenhou, em algum grau, o tipo de
indivíduo dali nascente, o tipo de espectador, transeunte e consumidor dos produtos culturais
(entre eles, o cinema) que a cidade abrigou em suas ruas.
Mas a situação socioeconômica e cultural do Brasil – e, mais especificamente, do
sudeste brasileiro –, durante as duas primeiras décadas do século XX, era a de uma vagarosa
retirada de cena das condições praticamente rurais, de heranças coloniais e lusitanas ainda
extremamente próximas, até então proeminentes. De fato, quando o cinema apareceu nas
cidades um pouco mais avançadas do Brasil, por aqui não havia um ritmo industrial
consistente, um eixo comercial vigoroso ou uma face caracteristicamente urbana tão tangível
em comparação ao que já existia nesses termos em muitos lugares do mundo ocidental.
Em relação a essa entrada do cinema no país, há dados que indicam que a prática de
assistir a filmes em locais de frequentação pública não experimentou desde pronto uma
adesão unânime das camadas da intelectualidade brasileira, o que, de alguma maneira, reforça
a sua aderência forte aos hábitos essencialmente burgueses, para só depois se tornar um
divertimento de massa e de setores cults. Ismail Xavier (1978) comenta a respeito da reserva
em relação ao cinema, nutrida por parte de alguns intelectuais.
Ao abordar diretamente a questão da crítica cinematográfica em revistas culturais do
período do Modernismo Brasileiro, o autor explica que havia uma distância bem clara entre os
projetos ideológicos da intelligentsia brasileira e o cinema. Tratado pelos intelectuais como
fundamentalmente um divertimento popular, a instituição “cinema” e seus produtos não
obtinham grandes espaços em meio à órbita da crítica artística (XAVIER, 1978, p. 141).
Podemos concluir que todas as ressalvas elaboradas nesse sentido faziam parte de uma etapa
na qual a desconfiança da elite erudita em relação ao cinema respondia as preocupações

98
desses atores com a construção da Cultura Brasileira, uma entidade que se procurava
encontrar e soerguer nas primeiras décadas do século XX. A não ser que o cinema se
vinculasse à cultura genuinamente nacional, as bases para a sua estima entre os intelectuais
estaria ameaçada48. Xavier coloca que:

No Brasil, país periférico e importador de filmes, a marginalidade de um


precário cinema nacional, desdobrado em efêmeros ciclos regionais, fornecia
um objeto de atenção extremamente rarefeito e distante dos padrões da
cultura erudita. Diante dele, para os jovens preocupados com a cultura
nacional, uma opção teria sido assumir a liderança de um melhor
equacionamento do problema da colonização cinematográfica e buscar a
definição de um cinema integrado na cultura brasileira (Ibidem, p. 149).

Além de não ter se formado, no Brasil, como uma experiência notadamente erudita,
não podemos constatar também o seu peso popular, na acepção de uma prática cultural do
povo, comum a operários e realmente democrática. A bem da verdade, em meados dos anos
30 não havia propriamente uma larga massa consumidora de bens culturais no país. Vale notar
que a sociedade brasileira até 1930 estruturava-se basicamente sobre os alicerces de uma
economia agrária, com algum avanço industrial animado pela 1° Guerra Mundial49.
Portanto, com algumas exceções, o cinema não poderia mesmo, de início, ter sido um
efetivo e amplo divertimento popular, já que de fato alguns acontecimentos importantes para a
colocação definitiva do país na fase moderna (como o início dos investimentos de capital nas
atividades produtivas, o crescimento industrial, a explosão demográfica e a ocupação efetiva
do solo urbano) só se evidenciaram a partir da terceira década do século XX, quando a
estrutura social brasileira passou a contar também com os estímulos advindos dos reflexos da
Crise de 1929 dos EUA (ABREU, 2008).
Dito de outra forma, a prática do lazer cinematográfico esteve, em geral, muito mais
próxima da burguesia – consumidora de filmes importados e algumas fitas nacionais exibidas
em salas espalhadas pela cidade recém-urbanizada – do que de uma população de
trabalhadores ou de pessoas mais pobres – tal como parecem ter sido os frequentadores dos
primeiros nickelodeons estadunidenses. No entanto, nos subúrbios ao norte e ao extremo norte

48
Não obstante, tanto Ismail Xavier (1978) quanto Anita Simis (1996) reforçam que personalidades da cultura
brasileira, tais como Olavo Bilac, Artur Azevedo e Oswald de Andrade consideravam o cinema um exemplo
válido e muito representativo do tipo de arte e linguagem estética capazes de serem produzidas naquele período
(SIMIS, 1996, p. 21).
49
Há de destacar-se que o Rio de Janeiro, entre 1914 e 1918, era o maior centro fabril do Brasil. Seu crescimento
industrial foi beneficiado pela luz elétrica proporcionada pelo início das operações da Light. (ABREU, 2008, p.
80).
99
do Rio de Janeiro, que eram ocupados à época por classes médias e um proletariado com
condições financeiras melhoradas, aos poucos, o cinema constituiu-se, sim, como uma
diversão popular, o que contraria de cheio a visão de que esse lazer urbano esteve a todo o
momento sob as graças da burguesia que flanava elegantemente pela Avenida Central, hoje
Avenida Rio Branco50.
Quando, no início do século XX, a urbanização da então capital brasileira fez com que
surgissem, com ânimo, espaços de convivência para a população burguesa (inspirada por um
espírito civilizatório “smart e chic”), os cinematógrafos pulularam em vários lugares do Rio
de Janeiro. Aliadas a demais divertimentos como esquetes de mágica, concertos, exposições
de bonecos de cera, jogos de azar etc, as projeções cinematográficas aconteciam em espaços
circunstanciais e provisórios, a exemplo do Salão de Novidades Paris no Rio (localizado na
Rua do Ouvidor e gerido pelo entusiasta das artes do espetáculo, Paschoal Segreto), parques e
teatros (GONZAGA, 1996; ARAÚJO, 1976).
A espectação51 cinematográfica alcançou um lugar de visibilidade no cenário urbano
na figura de uma atividade muito disputada pelo high society e as classes médias
(GONZAGA, 1996). Ir ao cinema tornou-se sinônimo de smartismo52, dentro das expectativas
das plateias, não somente em termos de status social, mas também em relação ao aspecto de
novidade e de mostra do mundo que o cinema englobava. Esse público contou com grande
oferta de telas e poltronas decorrente do boom de inaugurações de casas de projeção
cinematográfica no Rio de Janeiro.
Em apenas quatro anos, entre 1907 e 191153, foram abertos 144 cinemas na cidade.
Esse número impressiona se tomarmos como contraponto o contexto atual de um pouco mais
de um século depois: no primeiro semestre de 2013, no Brasil inteiro, foram inauguradas 83

50
Os dados que reforçam essa hipótese sustentam todo o mote do Capítulo 3, que virá a seguir.
51
Preferimos o uso do termo “espectação” a “espectatoriedade”, já que o segundo termo contém o sufixo “dade”,
o qual parece adjetivar e encaminhar a palavra para sentidos de “situação”, “estado”. Não acreditamos que haja
um “estado de ser espectador”, pois, em nossas análises, ser espectador é um vetor dentre outros ligados à ação,
às práticas desempenhadas no urbano, e às sociabilidades. Nesta aplicação terminológica, levamos em
consideração os caminhos efetivados rumo ao cinema e o seu entorno, que incluem, em algum grau, o desejo
pelo cinema (equipamento) e tudo o que ele oferece (letreiros, pessoas, ambientes sensórios etc). Espectação,
aqui, abrange a questão da frequentação, da experiência com os espaços construídos do cinema, e do espaço
coletivo urbano onde a sala de exibição se coloca. Destarte, não tomamos como análise apenas a
vidência/audiência de filmes no interior dos cinemas, mas toda a esfera que engloba um “fazer parte” da
ambiência cinematográfica.
52
“Smartismo” vem da expressão “ditadura do smartismo”, que se liga à ideia do “Rio, civiliza-se”, noções
comuns ao contexto da Belle Époque carioca do início do século XX. Como abordei em trabalho anterior: “Essas
expressões, cunhadas pelo cronista Figueiredo Pimentel (SEVCENKO, 1995, p. 38), celebravam um tipo de
postura condescendente à época, quando boa parcela da população foi conquistada pelo cosmopolitismo,
espalhado solenemente pela cidade” (FERRAZ,T., 2009, p. 46).
53
Neste período, o filme brasileiro ocupava 50% do mercado de exibição (GONZAGA, 1996, p. 105).
100
estabelecimentos de exibição cinematográfica, em um universo de 2.571 salas54. Há 100 anos,
era, contudo, uma outra época, quando se consolidava um perfil de mercado exibidor bem
diferente do que é praticado contemporaneamente.
O início do século XX, para o setor cinematográfico brasileiro e carioca, foi período
marcado por muitas aberturas de cinemas, mas, do mesmo modo, agitado por uma grande
fragilidade do negócio de casas exibidoras. Paralelamente às recorrentes inaugurações, muitos
fechamentos ocorriam. Nessa mesma fase, entre 1907 e 1911, houve o encerramento das
atividades de 98 salas. Em 1907, existiam 36 cinemas no Rio; em 1911, 70. Isto é, muitas das
144 inauguradas não sobreviveram nem cinco anos. É interessante notar que em tal
circunstância o crescimento e o aquecimento do comércio da exibição davam-se de forma
bem rápida. Em 1906, por exemplo, antes do boom iniciado em 1907, havia somente nove
cinemas em funcionamento na cidade (FERRAZ,T., 2009; 2012; GONZAGA, 1996).
Os primeiros circuitos exibidores cariocas estabeleceram-se, ponto a ponto, com mais
força, em localidades como Centro (com destaque para a Avenida Central), subúrbios da
Central do Brasil e da Leopoldina, zona norte (com destaque para a Tijuca), e, em menor
escala, em bairros da zona sul55.
Os cinemas dessa primeira fase do mercado de exibição do Rio de Janeiro
caracterizavam-se em grande medida por oferecer ao público uma atmosfera insalubre, com
pouco conforto. Entretanto, alguns empresários do setor tentavam prover com luxo e melhores
comodidades as suas instalações, promovendo nas salas de espera concertos de pequenas
orquestras, que distraiam com música os espectadores antes das sessões, e mesmo dotando a
sala de exibição de tetos que se abriam durante as sessões, para refrescar o recinto nos calores
do verão carioca etc.
Esses cinemas tinham ainda particularidades na forma como apresentavam os filmes,
sincronizando as imagens das fitas e o áudio de gramofones e pianos ou deixando a cargo de
cantores-atores, presentes dentro da sala de cinema, a execução das músicas que
54
Fonte: Sala de Imprensa do site da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Disponível em:
http://www.ancine.gov.br/sala-imprensa/noticias/balan-o-do-primeiro-semestre-de-2013-apresenta-n-meros-
animadores-para-o-cine. Última visualização: 25 de novembro de 2013.
55
Segundo dados de Alice Gonzaga (1996), há quatro indicações de práticas cinematográficas que ocorreram na
zona sul até 1907: Copacabana Animatógrafo (armado em 1899 na atual Praça Serzedelo Correa, com uma única
exibição ao ar livre); vários cinematógrafos instalados ano a ano, entre 1899 e 1915, um em substituição ao
outro, com projeções ao ar livre e depois em um salão construído na Praça Duque de Caxias, no Catete (atual
Largo do Machado); Cinema Rink Santos Dumont (inaugurado em 1903, em Botafogo, mas com apenas uma
única exibição); Restaurant Parque Leme (que durou apenas um mês, com atividades entre fevereiro e março de
1906, no Leme). Entre 1907 e 1911, dos 100 cinemas inaugurados no Rio de Janeiro, apenas 14 localizavam-se
na zona sul, sendo que alguns apresentaram apenas uma exibição ao público, já que integravam os pavilhões da
Exposição de 1908, que ocorreu na Urca.
101
acompanhavam as cenas. Essa foi uma prática comum do primeiro cinema antes da chegada
da fita sonora, tanto no Brasil, como no resto do mundo. Rosenfeld (2009) afirma que para o
cinema mudo as apresentações musicais eram de extrema importância. A música tocada tinha
a finalidade de tornar o ambiente da sala e a sessão cinematográfica mais palatáveis para a
plateia. O autor explica que não foi por causa de pretextos artísticos que as peças musicais de
pianistas e orquestras eram executadas no momento das projeções.

Alega-se, por exemplo, que a música, no início, não veio satisfazer um


impulso artístico, mas a simples necessidade de encobrir o ruído do projetor,
visto que naquela época “pré-histórica” do cinema não havia ainda paredes
entre o aparelho projetor e a sala de espetáculos. Com efeito, esse ruído
desagradável perturbava consideravelmente o prazer visual. Por conseguinte,
os proprietários de cinema recorreram desde o início a pianistas e logo em
seguida a orquestras (também a órgãos especiais), neutralizando o som
desagradável por um som mais agradável. Realmente, o ruído do projetor se
afigurava não só desagradável e perturbador, mas acentuava, de modo
drástico, o desumano e mecânico do espetáculo, criando assim uma sensação
de extremo desconforto e mal-estar. O ruído mecânico do projetor ressaltava
o efeito fantasmagórico da imagem de duas dimensões, a agitação de
sombras irreais na tela que imitavam a vida de seres humanos,
tridimensionais (ROSENFELD, 2009, p. 123-124).

Além das peculiaridades relacionadas à música dentro das salas que, como vimos,
proporcionava ambiências específicas, ao atenuar os barulhos mecânicos ou os “choques”
(SINGER, 2004) e sustos provocados pela imagem em movimento projetadas em telas (em
salas escuras), havia ainda as flicagens das fitas, que embaraçavam a visão dos espectadores.
Outro aspecto que igualmente marcou os traços dos primeiros cinemas da cidade do Rio de
Janeiro fugia de ordens técnicas, dizendo respeito ao arranjo espacial das salas, e,
indiretamente, às classes sociais do público. Queremos notar que havia uma usual divisão da
plateia em setores nobres, com seus camarotes de ingressos mais caros, e setores populares,
áreas com ingressos mais baratos, onde muitas vezes o espectador assistia ao filme em pé.
Foi com essas particularidades que, enfim, o equipamento urbano de lazer
cinematográfico estreitou relações com as classes menos abastadas, que passaram a frequentar
as salas exibidoras menos valorizadas (também decorrentes do boom de aberturas ocorrido
entre 1907 e 1911) e também as áreas diferenciadas a elas destinadas dentro desses
estabelecimentos.
As regras de cunho “aristocrático” que equalizavam as posturas e as vestimentas
usadas pelas pessoas nos espaços nobres de exibição do Rio, de acordo com a autora Alice

102
Gonzaga (1996), eram diversas vezes quebradas nas sessões de filmes frequentadas por
indivíduos mais pobres. Isso, à época, deu espaço para considerações preconceituosas em
relação a tais espaços, conforme destaca uma nota de “O Rio nú”, a que tivemos acesso via a
obra de Alice Gonzaga: “As mulatas e creoulas continuam a se staffar no estabelecimento da
Avenida, que se chama, immodestamente Cinematographo Parisiense. As coitadas têm agora
um ponto de rendez-vous” (GONZAGA, 1996, p. 87).
Esse excerto parece ser mais um dos indicativos acerca do tipo de público que, de fato,
consumia a exibição cinematográfica nos primórdios do cinema no Rio de Janeiro: a
burguesia nascente (e não, como podemos por hora supor, o conjunto da população). É
também a partir dessa constatação que colocamos à prova a ideia do cinema como um “lazer
popular” das primeiras décadas de sua introdução na capital da Velha República.
Mais extrações de textos jornalísticos da época, recolhidos por Vicente de Paula
Araújo (1976), parecem apoiar essa hipótese. Na revista Fon-Fon de 29 de janeiro de 1910,
um artigo caracterizava o refinamento do público do cinema Rio Branco:

O cinema Rio Branco continua a trilhar a senda gloriosa que lhe tem sido
apanágio, desde a sua inicial abertura. O seu capricho de sempre apresentar
novidades, confeccionando programas onde cada número é um sucesso real,
oferece agora à sua clientela chic – Sonho de Valsa – o vaudeville que mais
estrondoso aplauso obteve numa carreira triunfal através do mundo
(ARAÚJO, 1976, p. 322).

Outro fragmento da mesma revista, em edição de 28 de janeiro de 1911, mencionava:

Kinema Kosmos – O cinematógrafo implantou-se incontestavelmente em


todas as principais cidades do mundo, tornando-se o divertimento predileto
do público. No Rio de Janeiro, o cinematógrafo já faz parte dos hábitos da
população, e pode-se dizer até dos hábitos elegantes, pois as soirées da moda
e as primeiras exibições constituem quase uma obrigação na roda chic. Ora,
tal divertimento já pela frequência da boa sociedade, já pela afluência dos
habitués, exige luxo e conforto (Ibidem, p. 358).

No entanto, segundo já comentamos, há registros de que o mercado de exibição,


animado pelo espírito empreendedor que aproveita todas as possibilidades de market share,
recorreu à abertura de salas voltadas para públicos mais modestos ou a iniciativas que não
subtraíram de imediato os frequentadores mais pobres. Inclusive, no caso da Avenida Rio
Branco (antiga Avenida Central), alguns empresários valeram-se de um fenômeno: a curiosa
diferenciação entre os transeuntes que andavam pelos lados opostos da via. Conforme nota
publicada na Revista Fon-Fon, em 24 de agosto de 1912: “(...) a população modesta, a gente
103
descalça e mal vestida, procura sempre o lado dos cinemas; a parte elegante e chic, só vai pelo
outro lado e quando se dirige para o oposto é para ir... aos cinemas” (GONZAGA, 1996, p.
105).
Sobre isso, Alice Gonzaga observa que:

Na medida em que parcelas da população sinalizavam mais diretamente


certos atributos e distinções – por exemplo, os burgueses passaram a andar
do lado par da Avenida e os pobres do lado ímpar –, os cinemas procuraram
soluções compatíveis com a geografia social da cidade. Configurou-se uma
divisão entre salas, e áreas, “aristocráticas” e populares. Nas primeiras o
traje social, paletó e gravata para homens, e toilettes, chapéu, luvas e demais
acessórios para mulheres, era obrigatório. Nas segundas dispensava-se a
regra; em realidade, quase todas as regras (GONZAGA, 1996, p. 86).

Com esses predicados gerais, comumente encontrados em salas de exibição de vários


bairros cariocas do Centro aos subúrbios, o primeiro circuito exibidor do Rio de Janeiro
estabeleceu-se. Porém, não demorou muito para o mercado em crescimento amargar uma
crise a partir de 1912. Entre os anos de 1910 e 1912, uma série de acontecimentos como
greves e incêndios também influenciou a vida das salas de cinema (Ibidem, p. 96). Aos
poucos, algumas reintroduziram espetáculos de palco em suas programações, recorrendo,
assim, a duas atividades: exibição de filmes e apresentação de peças teatrais. Isso fez com que
tais espaços fossem classificados como cine-teatros. Já outros cinemas, em meio à crise,
fecharam as portas e simplesmente desapareceram do cenário do lazer cinematográfico da
cidade.
Apoiando-se em dados referentes à indústria cinematográfica nacional, a autora Anita
Simis (1996) dá pistas acerca do desenrolar desta crise; mas antes ela chama atenção para a
lógica incorporada pelo mercado no momento da introdução mais regular das salas de cinema
no país, período corrido entre 1908 e 1913.

Havia uma solidariedade de interesses entre a produção nacional e a exibição


devida em grande parte ao fato de que, muitas vezes, os exibidores, além de
serem importadores dos filmes estrangeiros, eram também produtores de
filmes. Ou seja, com a estabilização do comércio cinematográfico, a decisão
comercial entre produzir filmes ou comprá-los no estrangeiro não
desmereceu a produção doméstica (...) (SIMIS, 1996, p. 71).

As bilheterias do filme brasileiro obtinham êxito, era mais fácil adquirir tanto
máquinas de filmar, quanto rolos de filmes virgens. Porém, a crise – que, ao contrário do que
afirma Alice Gonzaga, de acordo com Anita Simis não começa em 1912, mas em 1914 –
104
desenrolou-se por conta de um:

(...) declínio da produção nacional de filmes, relacionado com a provável


dificuldade de importação de filmes virgens, dada a alta do câmbio, a crise
enfrentada pelo setor exibidor, em parte também produtor, e, principalmente,
pelo fato de que Hollywood já ensaiava a grande revolução econômica do
cinema americano, a qual traria profundas consequências para países como
Brasil (SIMIS, 1996, p. 73).

O mercado, pós-crise, só revigorou-se por volta de 1920. E nesse estágio a realidade já


se mostrava um pouco diferente. No lugar da antiga prática de compra de filmes impressos, os
exibidores passaram a alugar as fitas, transação que geralmente era acordada com
distribuidores estrangeiros e representantes de empresas, em sua maioria, estadunidenses.
Sobre esta situação, que segue até a década de 1920, Simis também comenta:

Estas distribuidoras, que detinham a exclusividade de distribuição dos filmes


americanos e passaram também a monopolizar, mediante convênios, a
importação de filmes europeus, eliminando seus concorrentes (...)
estabeleceram um vínculo com os exibidores alicerçado em função do
cinema estrangeiro. (...) A reorganização do mercado rompeu a solidariedade
produtor/exibidor, ao mesmo tempo que estabeleceu uma aliança entre
exibidores e distribuidores (Ibidem, p. 75-77).

Alice Gonzaga, igualmente, menciona essa retomada, dando ênfase ao mercado de


exibição carioca:

O circuito voltaria a crescer, só que mais lentamente. Por volta de 1920


contavam-se cerca de 70 salas em funcionamento na cidade. Esta seria uma
base mais duradora, pois muitos desses cinemas permaneceriam abertos por
décadas. Dos remanescentes do circuito original, uma parte atrelou-se de
1910 em diante à estratégia de palco e tela (GONZAGA, 1996, p. 98).

Na década de 1920, a entrada contínua de companhias cinematográficas norte-


americanas no Brasil acelerou o processo que conferiu ao cinema brasileiro um refinamento
capitalístico das atividades do mercado, que até então eram seminais em todo o país, exceto
uma ou outra experiência mais organizada de negócios voltados para a produção, a
distribuição e a exibição de filmes. Universal, Fox, United Artists, Metro-Goldwyn-Mayer,
First National, Warner Brothers, Columbia e R.K.O firmaram acordos com empresários
brasileiros a partir do final dos anos 1910 (GONZAGA, 1996) e, ao longo das décadas
seguintes, os braços da indústria do cinema no Brasil lidaram com mudanças cavalares, se
105
consolidando em moldes empresariais.
Nesse contexto, apareceu no Rio de Janeiro a figura do empresário Francisco Serrador,
responsável pela idealização da Cinelândia56, uma área do Centro que a partir de 1925 passou
a abrigar um dos maiores polos exibidores da cidade por quase 80 anos. O nascimento dessa
extensão urbana voltada especificamente para o lazer ocorreu segundo interesses das majors57
do cinema estadunidense atuantes no Brasil (FERRAZ,T., 2009; 2012).
Assim como Serrador, Vital Ramos de Castro e outros empreendedores do setor
buscavam em viagens aos Estados Unidos e na comunicação com empresas deste país os
modelos para a construção de seus “palácios do cinema” (GONZAGA, 1996, p. 130), ou seja,
prédios imponentes, com ampla capacidade de público, que por conta de sua grandiosidade
tiveram destinos não tão rentáveis comercialmente e foram apelidados de “elefantes brancos”
quando começaram a perder os elevados números de frequentadores de décadas ulteriores.

Se, como lembra Pedro Lima, os cinemas da década de 10 não passavam de


uma sala de visitas com cadeiras de madeira ou palhinha, na década seguinte
o luxo e a suntuosidade dos ambientes criaram o ritual que antecede a
apresentação do espetáculo cinematográfico, reforçando o clima de sedução:
soa o gongo, a sala escurece lentamente e as cortinas se abrem. O filme
vinha complementar o espetáculo que começava na arquitetura do cinema. O
culto do divertimento se estabelecia entre nós. (...) Francisco Serrador, com
sua Companhia Cinematográfica Brasileira, forma um truste, comprando
salas de exibição em todo o país e, em 1925, inaugura a primeira de suas
luxuosas casas na Cinelândia – uma sofisticação que atingirá agora as
diversas classes sociais, relegando a produção de fitas nacionais a um
segundo plano, o da produção de documentários e jornais (SIMIS, 1996, p.
77-78).

Aproximadamente no início da década de 1930, um pouco depois do estabelecimento


da Cinelândia na Praça Marechal Floriano, houve a chegada da fita sonora ao cinema, fato que
resultou em uma profunda transformação na cadeia cinematográfica de todo o mundo.
Consequentemente, no que se refere ao mercado exibidor, o advento do cinema sonoro
interferiu na estrutura das salas do Rio de Janeiro.
O luxo dos mármores, gessos, cortinas e tapetes volumosos, que passou a compor a

56
Na área ocupada pela Cinelândia, existiu o Convento da Ajuda, que fora demolido em 1911. Francisco
Serrador Carbonell, um italiano que já vivia no Brasil há algum tempo, relacionado ao comércio de lazeres,
comprou o terreno em 1917. A partir daí, traçou o plano que deu origem à Cinelândia, ao redor da Praça
Floriano, onde na época já havia o Teatro Municipal, a Biblioteca Nacional e o Palácio Monroe (demolido em
1976), entre outros prédios históricos do Centro.
57
Major (GONZAGA, 1996; ALMEIDA e BUTCHER, 2003; PEREIRA e VIEIRA, 1982; FERRAZ,T., 2009;
2012) é um termo usual do mercado cinematográfico, aplicado para indicar grandes empresas que englobam
tanto a produção, quanto a distribuição das obras.
106
decoração dos movie palaces, correspondeu também à necessidade de equipar os prédios dos
cinemas com materiais que permitissem uma acústica adequada à difusão do som das
produções fílmicas da fase pós-implantação do movietone. Conforme colocamos em trabalho
anterior58, animados pela chegada do som e por meio de alterações vultosas nos aspectos
físicos de algumas salas, os rituais construídos pelos espectadores em suas idas ao cinema
também se transformaram em grande medida. Novas posturas e disponibilidades do público
dentro e fora do cinema mostraram-se condizentes às mudanças de ambiência oferecidas pela
sala de exibição, fato que se verifica no período de implantação do cinema sonoro e ainda na
fase seguinte, que se estende até a década de 1940.

2.4. Cinemas cariocas em meados do século XX


Renato da Gama-Rosa Costa (2000) identifica que até meados do século XX os perfis
de sala de cinema existentes no Rio de Janeiro corresponderam a tipos de arquitetura e
arranjos espaciais bem definidos, distribuídos por cinco fases:

(...) de 1896 a 1907, período que abrange as primeiras salas da Rua do


Ouvidor até a inauguração da Av. Central; de 1907 a 1925, com a
inauguração da primeira sala na Av. Central, o Cinematógrafo Chic, até a
abertura da primeira sala da Cinelândia, o Cinema Capitólio; de 1925 a
1928, período que abrange a inauguração das salas da Cinelândia; de 1928 a
1936, com o surgimento das primeiras salas a se utilizarem da linguagem
déco, como o Cinema Pathé Palácio, até a inauguração do Cine Metro; e,
finalmente, de 1936 a 1941, período maduro do cinema, enquanto
arquitetura, que abrange a abertura do primeiro cinema da cadeia Metro até
às salas da Praça Saenz Peña, mostrando que o cinema havia conquistado
espaço em toda a cidade, com exemplos marcantes em Madureira, Méier,
Catete, Copacabana etc. (COSTA,R., 2000, p. 119).

Dando sequência à ordenação temporal sugerida por Renato da Gama-Rosa Costa,


recorremos a outros dados que do mesmo modo indicam que na década de 1940 (até o final da
década de 1950) os movie palaces se consolidaram no cenário urbano carioca como opções de
lazer cinematográfico (FERRAZ,T., 2009; 2012; GONZAGA, 1996; VIEIRA e PEREIRA,
1982). Com interiores dotados de salas de espera aconchegantes, estruturas e mobiliários
trabalhados em detalhes de mármores e veludos, poltronas acolchoadas e, em certos casos,
com ar refrigerado, esses cinemas ofereciam ao público bombonières bem servidas e um

58
“Esta nova ambientação penetrava os hábitos dos espectadores, acrescentando mais componentes à espectação
cinematográfica. Lanterninhas, luzes que diminuíam perto de começar o filme e salas de espera convertidas em
bares [e cafés] foram exemplos dessas mudanças” (FERRAZ,T., 2009, p. 91).

107
atendimento mais destacado, realizado por lanterninhas alinhados e comodoros que
recepcionavam os frequentadores logo na entrada.
Suas arquiteturas eram luxuosas e imponentes e muitos desses cinemas tinham
fachadas e estruturas art déco. Conforme vimos acima, esse padrão de sala tornou-se ideal
para receber o movietone, já que o filme sonoro precisava de uma arquitetura que privilegiasse
o tratamento acústico do espaço. O ritual de ida ao cinema passava agora pela sensação de
experimentar um ambiente de luxo e sofisticação, requinte e conforto de “sonhos aveludados”
(VIEIRA e PEREIRA, 1982), bem aos moldes do que Simis (1996) considera ao mencionar a
expressão “culto do divertimento” quando se refere ao cinema e ao público.
João Luiz Vieira e Margareth Pereira (1982) atribuem essa mudança de perspectiva da
sala de cinema a alguns fatores, entre eles, a chegada do padrão Metro-Goldwyn-Mayer ao
Rio de Janeiro. O advento da cadeia de cinemas da MGM foi um marco para a vida social e
urbana desta cidade. Foi também um divisor de águas para os gestores das demais companhias
exibidoras, que se moldaram à estandardização das salas segundo o padrão Metro. No entanto,
antes da construção de cinemas no Brasil, a Metro já tecia estratégias no mercado
cinematográfico brasileiro, promovendo suas empresas satélites no braço da distribuição ou
organizando por aqui consórcios com agências ligadas à exibição (FERRAZ,T., 2009; 2012;
GONZAGA, 1996; SIMIS, 1996).
Quando a MGM resolveu aportar de vez no mercado brasileiro de exibição, o
primeiro cinema que construiu, em 1936, foi o Metro-Passeio, no Centro do Rio. As
inovações técnicas para projeção dos filmes acompanharam a introdução da corporação no
país e, pela primeira vez na história das salas de cinema cariocas, a plateia experimentou o
frescor de uma refrigeração que dava conta realmente do calor do Rio de Janeiro. Inaugurava-
se, aí, “o ar de montanha do Metro”, jargão utilizado pelos frequentadores e pela publicidade
da época para qualificar o ar-condicionado dos cinemas MGM.
O Metro-Tijuca foi inaugurado em 1941 e logo se tornou o cinema mais sofisticado
da Tijuca, bairro da zona norte carioca, cujo ponto central, a Praça Saens Peña (e seus
arredores imediatos), na segunda metade do século XX ganhou a fama de Segunda Cinelândia
Carioca59. Durante aproximadamente meio século, essa região abrigou uma dezena de
cinemas de rua, geralmente dispostos no mesmo perímetro urbano. A “Praça” contava com
cinemas como o Olinda (que chegou a ser o maior cinema da América Latina, com 3.500
59
A fama do bairro como Segunda Cinelândia Carioca, e principalmente da Praça Saens Peña, que compartilhou
este título, parece ter sido deflagrada nos anos 50 e 60 do século XX, segundo apontam os dados de pesquisa
etnográfica realizada por mim entre 2007 e 2009 (FERRAZ, T., 2009; 2012).
108
lugares), América, Tijuca Palace, Eskye, Carioca, o próprio Metro, entre outros.
Mais tarde, uma semana depois da inauguração do Metro-Tijuca, o bairro de
Copacabana recebeu uma sala Metro com “ar da montanha”.

No Rio de Janeiro, a cadeia de cinemas que a Metro-Goldwyn-Mayer fez


construir para exibir as suas produções com exclusividade, fez com que o
comércio cinematográfico sofresse um forte impacto e que, junto ao público,
se estabelecessem padrões e necessidades novos que reforçavam não apenas
a reprodução continuada dos seus filmes como também consagrasse uma vez
mais a noção já cristalizada de que cinema americano era o verdadeiro
Cinema (VIEIRA e PEREIRA, 1982, p. 59).

O Metro levou tanto para Tijuca, como para Copacabana e Centro um padrão de
qualidade e um modo específico de assistir a filmes, com sofisticação e atendimento
personalizado, que se traduziam também nos aspectos físicos dos seus cinemas, nas
particularidades arquitetônicas e no design interior e exterior de seus prédios. Precursor de
letreiros dispostos perante a rua, o Metro apostava na iluminação da fachada através da luz
neon, que foi um sinal de modernidade na ocasião. Isso colaborava para que os nomes dos
filmes exibidos ficassem em evidência a quem passasse em frente aos cinemas da cadeia. Pelo
fato de geralmente60 exibirem suas próprias produções, os cinemas da Metro-Goldwyn-Mayer
usavam a exposição do título dos filmes na fachada como forma de associá-los à marca
MGM, cativando o público e o atraindo para dentro de suas salas (COSTA,R., 1998).
A arquitetura seguia à risca a tendência do art déco estadunidense, que prezava uma
imagem de cosmopolitismo sofisticado, com tratamento especial da iluminação e das fachadas
cheias de detalhes simétricos e linhas aerodinâmicas, além da palavra Metro exposta na
vertical e em luz neon. O padrão Metro de qualidade se tornou inconfundível: os três cinemas
da marca no Rio compartilhavam o mesmo sistema operacional para projeções, acústica e
refrigeração de salas e foyers, seguindo a standartização típica de alguns cinemas norte-
americanos dessa fase (ELIAS, 2010; GONZAGA, 1996; VIEIRA e PEREIRA, 1982;
COSTA,R., 1998). Esses aspectos confirmam a ideia de “dominação ideológica” da MGM,

60
Até a década de 1960, os cinemas da Metro exibiam exclusivamente produções dos estúdios da MGM. Havia
exceção apenas para as produções brasileiras, as quais os cinemas da Metro eram obrigados a exibir, de acordo
com leis e decretos de cota de tela para o cinema nacional. Essas medidas legais de proteção ao filme brasileiro
tiveram início em 1932, com o Decreto n° 21.240, que previa a obrigatoriedade de exibição de um filme longa
metragem nacional por ano nas salas de cinemas, de um filme nacional complementar para cada produção
estrangeira e de taxas sob o valor dos ingressos da bilheteria, a ser revertida para a educação do país (RAMOS e
MIRANDA, 2000). Com o tempo, as leis de cota de tela foram-se adaptando ao mercado e incorporaram novas
medidas. Depois da década de 1960, os cinemas da MGM, já sob administração da Cinema International
Corporation (CIC), passaram a exibir produções de outras companhias, tais como filmes da Universal Pictures.
109
noção cunhada pelos autores João Luiz Vieira e Margareth Pereira (1982).

Ao controlar seus próprios cinemas, a MGM deu um novo passo no sentido


de dominar todas as etapas da indústria cinematográfica (...). A uma
estandardização da linguagem do filme, corresponde também uma
estandardização da linguagem da sala. Os cinemas da MGM, embora
projetados por arquitetos no Brasil (ainda que estrangeiros, vivendo no
Brasil), são completamente supervisionados por técnicos americanos. Em
todos os níveis, a Metro buscou definir junto ao público uma forma
específica de consumir filmes, identificada com a sua própria marca
(VIEIRA e PEREIRA, 1982, p. 59).

Ao lado de Metro Passeio, Metro-Tijuca, Metro-Copacabana, outros cinemas como


Carioca, São Luiz, Roxy, Rian, Miramar, Imperator e Olaria, por exemplo, fizeram parte de
uma geração, cuja mentalidade envolvida nas práticas de lazer cinematográfico parecia dar
importância tanto aos filmes quanto a aspectos como conforto e fascinação em relação às
instalações de alguns prédios da exibição.
Certamente, excetuavam-se desses casos os cinemas poeirinhas, que reuniam atrativos
que passavam ao largo da sofisticação (e até da salubridade), mas, mesmo assim, mantinham
um público cativo. Acreditamos que por parte dos proprietários de grandes e luxuosas salas –
donos de mais recursos financeiros do que os empresários dos poeiras – havia a preocupação
em equipar os cinemas com componentes que valorizassem as matrizes sensoriais dos
espectadores (tato, visão, audição, olfato, sensações térmicas etc).
Com o tempo, as dinâmicas relacionadas à localização do lazer cinematográfico na
cidade, às edificações dos cinemas em vista das transformações urbanas, aos tipos de
produção fílmica exibida e à atividade de espectação renderam novos aspectos às salas
exibidoras. Apareceram na janela exibidora outros padrões de cinemas, a exemplo das salas
mais compactas fixadas em galerias, que apresentavam um menor número de poltronas e não
tinham, em regra, grandes foyers.
Tais mudanças, somadas ao início do desaparecimento de movie palaces e cinemas
mais modestos (poeirinhas) das ruas e praças de bairros cariocas, guardam ligações intrínsecas
com as transformações do cenário urbano, principalmente depois dos anos JK (1956-1961):
especulação imobiliária, necessidade de haver estacionamentos próximos aos locais de
entretenimento, extrema motorização da cidade, escalada da violência urbana. A década de
1960 trouxe em seu bojo tabelamentos dos preços dos bilhetes de cinema no Brasil, crise em
Hollywood, sedimentação da TV no mundo, ascensão da indústria de “filmes de arte” e
europeus. São fatores concernentes às políticas da comunicação e aos desenvolvimentos
110
midiáticos, que igualmente atingiram, direta e indiretamente, os circuitos exibidores
cinematográficos, influenciando os arranjos técnicos e arquitetônicos da sala de cinema no
Rio de Janeiro, no Brasil e em boa parte das metrópoles mundiais (ACCIAIUOLI, 2012;
BIVER, 2009; BUSCHMANN, 2013; CLADEL et al, 2001; GONZAGA, 1996).

2.5. Domingos Vassalo Caruso: o “bemfeitor61 dos subúrbios”


Na época em que a Cinelândia foi erguida, o Rio de Janeiro passava pela gestão do
então prefeito Carlos Sampaio (1920-1922), que empreendeu o desmonte do morro do Castelo
em prol da valorização dos terrenos de uma das mais importantes áreas do Centro. A região
englobava os bairros do Castelo e da Misericórdia, “duas áreas residenciais proletárias, que
haviam sobrevivido à Reforma Pereira Passos, mas que, desde aquela época, tinham seus dias
contados” (ABREU, 2008, p. 77).
A iniciativa abriu espaço para que ali fossem abrigadas as instalações da Exposição
Internacional, que consistia em uma série de edifícios, muitos com arquitetura pujante,
erguidos por ocasião das comemorações do 1° Centenário da Independência do Brasil. O
contexto era o de uma ordenação urbana elaborada segundo interesses imobiliários, ativada
por reformas das zonas antes nitidamente destinadas à moradia das classes pobres e que agora,
como já havia acontecido na história da cidade na fase de Pereira Passos, deveriam ser
definitivamente excluídas do cenário urbano.
Nesse ínterim, os subúrbios do Rio de Janeiro recebiam, conforme vimos em capítulo
anterior, influxos populacionais, mas sem contar, em sua totalidade, com muitas benfeitorias
governamentais. Esse panorama perdurou até por volta de 1930, como coloca Abreu:

Resumindo, o período 1906-1930 caracterizou-se pela expansão notável do


tecido urbano do Rio de Janeiro (...). (...) os subúrbios cariocas e fluminenses
cada vez mais se solidificaram como local de residência do proletariado, que
para aí se dirigiu em números crescentes. Ao contrário da área nobre,
entretanto, a ocupação suburbana se realizou praticamente sem qualquer
apoio do Estado ou das concessionárias de serviços públicos, resultando daí
uma paisagem caracterizada principalmente pela ausência de benefícios
urbanísticos (ABREU, 2008, p. 82).

Diante dessas novas reformas citadinas que proporcionaram, em grande medida,


vantagens para a ocupação de áreas centrais da cidade, os subúrbios, por sua vez, parecem ter

61
Aqui escolhemos utilizar a grafia errada do termo benfeitor, “bemfeitor”, para manter a palavra tal ela como
aparece nas revistas de época consultadas, as quais batizaram Domingos Vassalo Caruso com o apelido. Nota-se
que as regras da Língua Portuguesa daquele momento permitiam essa ortografia.
111
ficado desguarnecidos de obras que efetivassem de fato a sua estruturação como polos
urbanos bem equipados. O estudo de Alice Gonzaga (1996) aponta que para driblar esse
“descuido estatal” alguns atores da iniciativa privada passaram a empreender ações efetivas
com esse sentido urbanizador nessas regiões.
Os bairros situados ao longo da linha da Leopoldina, por exemplo, contavam menos
ainda com conveniências urbanas em comparação aos bairros estabelecidos à beira da Estrada
de Ferro da Central do Brasil. Em presença dessa situação, é que se destacou a figura de
Domingos Vassalo Caruso, personalidade que, na história da Zona da Leopoldina, foi uma
peça essencial para a ocupação das ruas dos bairros leopoldinenses e também para a
configuração de um circuito exibidor na região.

A omissão do poder público deu ensejo a outras iniciativas particulares,


como a do exibidor Domingos Vassalo Caruso. Graças a determinados
“conhecimentos”, a zona da Leopoldina, sua área de atuação comercial
básica, conseguiria equiparação com os subúrbios mais adiantados da época,
Méier e Madureira. Por seu intermédio, procedeu-se à abertura de ruas,
instalação de iluminação pública e até mesmo cobertura asfáltica, o que
certamente valorizava os negócios e principalmente os cinemas. À
semelhança da Cinelândia e das homenagens que foram rendidas a Serrador
– a quem aliás devia o prosseguimento no ramo cinematográfico –, embora
em escala bem menor, a população circundante acabaria beneficiando-se dos
melhoramentos e reconhecendo o gesto, alcunhando Caruso carinhosamente
de o “bemfeitor dos subúrbios” (GONZAGA, 1996, p. 117).

Domingos Vassalo Caruso veio morar no Rio de Janeiro ainda criança, vindo pequeno
de Juiz de Fora. Sua família tinha procedência de Veneza e era muito pobre. A neta de
Domingos Vassalo Caruso, Lilian Caruso, disse-me em entrevista que o avô e o seu tio-avô,
Luiz, chegaram a dividir o mesmo par de calçados quando crianças: “A mãe deles mandava
eles venderem pastel na linha do trem. Eles não tinham sapato: um dia um irmão ia com o pé
direito, outro dia, com o pé esquerdo do sapato. Eles revezavam”.
Segundo um guia de bairros sobre a história de Ramos, Olaria e Penha, a relação de
Domingos Vassalo Caruso com o cinema foi algo construído ainda em sua juventude. Na
ocasião da primeira experiência de exibição cinematográfica na região da Leopoldina, no
Largo da Penha, em 1906, Caruso esteve lá presente. O evento foi, na verdade, uma sessão
única de cinema, feita ao ar livre, bem em frente à Irmandade da Igreja de Nossa Senhora da
Penha, por iniciativa de Paschoal Segreto, o mesmo dono do Salão Paris no Rio, localizado no
Centro e reconhecido como um dos espaços mais importantes da fase de implantação do lazer
cinematográfico na cidade. Foi durante a sessão da Igreja da Penha que o cinema “causou
112
tamanho impacto no jovem morador Domingos Vassalo Caruso, que junto com seu avô, o
velho Braz, decidiu trazer a novidade para a Leopoldina” (FRAIHA e LOBO, 2004, p. 41).
Anos depois, em 1919, Domingos Vassalo Caruso concretizou seu sonho e comprou o
Cinematógrafo Ideal, um cinema que já funcionava na Rua Uranos, em Ramos, desde 1914.
Sob sua gestão, a casa passou a se chamar Cinema Elegante.
Há registros que indicam que o empreendedor começou a consolidar, logo em seguida
à compra do Ideal, a sua trajetória de grande atuação no mercado exibidor carioca, fortemente
concentrada na Zona da Leopoldina. No entanto, esses dados históricos acerca da trajetória de
Domingos Vassalo Caruso e de sua família, no setor da exibição são esparsos e não trazem
muitas provas concretas. As fontes de dados sobre os comércios e sociedades desse
empresário são poucas e resumem-se a alguns documentos do Diário Oficial, a trechos da
pesquisa de Alice Gonzaga (1996), e a excertos dos periódicos Cinearte, Cine Repórter, Cine
Magazine, Correio da Manhã e O Globo, aqui consultados direta e indiretamente. Os relatos
da neta de Domingos Vassalo Caruso, Lilian Caruso, uma das entrevistadas dessa tese,
também não foram suficientes para nos aprofundarmos nas pesquisas sobre o papel que esse
homem teve no circuito de cinemas na região da Leopoldina.
Entre os elementos coletados, destaca-se a informação de que o comerciante chegou a
exercer funções em variadas atividades empresariais nos subúrbios do Rio, além de ter
trabalhado para a polícia. Conforme coloca Alice Gonzaga, embora suas datas contrariem os
relatos de Lilian Caruso e os apontamentos do guia organizado por Fraiha e Lobo (2004),
Caruso:

(...) chegou ao bairro de Olaria em 1909. Dedicando-se “com sincero


enthusiasmo a tudo quanto se relaciona com o progresso dos subúrbios da
zona leopoldinense”, metia-se nos mais diversos “meios commerciaes e
associativos”. Foi durante longo tempo tesoureiro da guarda noturna do 22°
Distrito Policial, posição que provavelmente o capacitou a solicitar favores
para a sua área de atuação. Entrou para o ramo exibidor por volta de 1919,
quando montou num galpão da estrada Maria Angu, atual rua Alfredo
Barcelos, o primeiro Cine Olaria. Na inauguração, por conta de um
velhíssimo projetor, que estragou a sessão, teve que devolver o dinheiro dos
ingressos, pensando em abandonar a atividade. Serrador soube do caso e lhe
ofertou outra máquina, para que prosseguisse. Pouco depois já tinha capital
suficiente para abrir ou comprar outros cinemas (Oriente, Elegante, Penha
Paraíso) e tornar-se secretário da Aliança dos Exibidores, na gestão de
Generoso Ponce (GONZAGA, 1996, p.142-143).

Como secretário da Aliança dos Exibidores, instituição que na revista Cine Magazine

113
aparece com o nome de Syndicato Cinematographico de Exhibidores, Domingos Vassalo
Caruso envolveu-se com outros comerciantes de filmes. No final dos anos 20, o empresário
juntou-se aos exibidores Francisco da Silva Frota e Generoso Ponce para a criação do
consórcio Frota, Ponce, Caruso & Cia.
Ele também se ligou a Luiz Severiano Ribeiro, dando início a um caminho de parceria
entre as empresas Caruso e Severiano Ribeiro. De acordo com o 10° Ofício de Notas, houve,
em 1928, a venda e a cessão de direitos de 50% da firma de Domingos Vassalo Caruso a Luiz
Severiano Ribeiro. A negociação tornou o empresário cearense Severiano Ribeiro sócio do
irmão de Domingos Vassalo Caruso, Luiz Vassalo Caruso, que, conforme indicam as
pesquisas, também ficava à frente dos comércios cinematográficos da família (GONZAGA,
1996, p. 197). Nitidamente, parece ter havido entre os dois uma divisão do Rio de Janeiro em
áreas de atuação. Caruso ficava concentrado nos subúrbios (estritamente na Zona da
Leopoldina) e Severiano Ribeiro, na zona sul e demais regiões como a Grande Tijuca, na zona
norte.
Sobre a sociedade Caruso-Severiano Ribeiro62, Gonzaga aponta que:

Por conta desse bom relacionamento, inclusive, haveria no futuro um acordo


de cavalheiros entre Caruso e Severiano, pelo qual este se comprometeria a
não explorar cinemas na zona da Leopoldina e o primeiro a não interferir em
interesses do cearense. Do acerto resultaria inicialmente a venda dos
interesses de Domingos na Caruso & Irmãos, arrendatária, ao final dos anos
20, dos cinemas Velo e Vila Isabel. (GONZAGA, 1996, p. 142 -143).

Ao que tudo indica, como secretário do Sindicato dos Exibidores, Caruso angariou
uma boa projeção nos círculos do cinema no Rio de Janeiro, a ponto de seus cargos nessa
instituição serem noticiados, à época, na imprensa, conforme mostra uma notinha publicada
em 1933 na revista Cinearte, periódico de Mario Behring e Adhemar Gonzaga: “Domingos
Vassalo Caruso, bemfeitor dos suburbios, é o delegado eleitor do Syndicato dos exhibidores”
(DOMINGOS VASSALO CARUSO... , 1933, p. 5). Um excerto da Cine Magazine, de 1934,
no qual o assunto era a inauguração desta mesma associação de comerciantes de filmes,
aponta Caruso como um notável interlocutor da classe:

A noticia da creação de um syndicato cinematográfico de exhibidores não

62
Os acordos entre as duas companhias só seria quebrado anos mais tarde, depois da morte de Domingos na
década de 1950, quando seu filho Nelson Caruso passou a tocar a rede de cinemas Caruso. Veremos mais
detalhes sobre a fase da atuação de Nelson Caruso na rede de cinemas da família nas páginas seguintes e no
Capítulo 3.
114
interessa apenas a essa classe mas também ao publico, que nelle terá uma
fonte permanente de consultas. Dahi o nosso empenho em ouvir os diretores
dessa instituição, em sua sede, recentemente instalada numa sala situada no
ângulo esquerdo do 5° andar do edifício Odeon. Quando ali estivemos,
estavam reunidos os diretores srs. Julio Marc Ferrez, presidente em
exercício; Domingos Vassalo Caruso, secretario geral; Eugenio Alves Cotia,
sub-secretário; Luiz Gonçalves Ribeiro, tesoureiro; Antonio Moreno,
conselheiro; sr. Oscar Maia de Azevedo, patrono do departamento jurídico,
Antonio Pinto da Rocha e muitos outros sócios, acompanhados de suas
famílias. Num requinte de gentileza, o secretario geral, sr. Domingos
Vassalo Caruso mostrou ao nosso companheiro os vários serviços, entre os
quaes está o de registro dos films lançados em “première”, que é feito pelo
moderno systema de fichas. Informou o sr. Caruso que o objetivo visado
pela creação dessas fichas é elucidar os seus agremiados de todos os detalhes
que necessitarem relativamente a cada film lançado nesta cidade
principalmente aos “sócios correspondentes”, que são todos os exhibidores
cinematográficos localisados fora desta capital, e que, por essa circunstancia,
têm, muitas vezes, dificuldades desse gênero. (...) O serviço de secretaria
também é perfeito e mostra a atividade do novel syndicato. (O SYNDICATO
CINEMATOGRAPHICO..., 1934, p. 5).

Abordando questões acerca do regime de trabalho dos funcionários de cinemas no


horário noturno, esta mesma edição da Cine Magazine expõe como Domingos Vassalo Caruso
colocava-se como empresário do setor, fazendo coro às vozes dos empresários. Há no texto a
sugestão de que o exibidor parecia estar preocupado com a lucratividade dos negócios diante
das exigências de uma nova lei federal, que prezava pela garantia de uma espécie de adicional
noturno e obrigatoriedade de descanso para os operadores e demais empregados dos cinemas:

Relativamente á nova lei sobre o horário de trabalho dos empregados em


casas de diversões, disse-nos o sr. Caruso que a mesma tem provocado
constantes reuniões dos sócios do syndicato, isto com o intuito de encontrar
a forma precisa para dar a essa lei o necessário cumprimento, visto que ella
determina certo desequilíbrio financeiro, principalmente aos exhibidores
estabelecidos fora do centro da cidade. Eu, por exemplo, diz-nos o nosso
interlocutor, que tenho as minhas casas localizadas na zona da Leopoldina,
onde com raras excepções dou espetáculos que sejam a noite, me encontro
ameaçado do aumento de despesa que provoca a execução dessa lei,
aumento que nem todas as casas suportam, visto que os salários dos
empregados ajustados por semana, ou por mez, têm de abranger todo anno,
em virtude dos cinemas constituírem um ramo de diversões com caracter
permanente e sofrendo todavia na ocasião do verão, o decréscimo de
frequência e relativa diminuição de renda. Como ninguém ignora, os
cinemas não fecham, como acontece com os theatros, que se organizam para
temporadas, ajustando os seus auxiliares de acordo com essas temporadas.
Foi isso, parece que essa lei para os cinemas deveria ser mais equitativa (...)
(Idem).

Seu nome aparecia em revistas especializadas no ramo cinematográfico e até seu


115
aniversário era digno de ser noticiado em colunas, tal como aparece em uma edição de
novembro de 1947, na Revista Cine Repórter63:

Figura 6 - Nota sobre o aniversário de Domingos Vassalo Caruso, na Revista Cine Repórter, de
novembro de 1947

Diante desses elementos, podemos verificar que a exibição cinematográfica no Rio de


Janeiro, e, mais especificamente, a sua introdução nos subúrbios da Leopoldina,
correspondeu, de fato, a ordenações do capital. Isso não afasta a constatação de que a abertura
de cinemas, ancorados em práticas e estratégias quase estritamente empresariais, colaborou
como forte vetor na ocupação urbana e criação de hábitos de lazer entre os indivíduos
transeuntes e moradores de diversas áreas da cidade, sobretudo na Leopoldina. O mundo dos
sonhos cinematográficos parece sempre ter sido acoplado ao mundo dos negócios. Domingos
Vassalo Caruso, exímio comerciante do setor, não seria, portanto, uma exceção, ainda que
tenha carregado o título de “bemfeitor dos subúrbios”, alcunha que, em uma primeira leitura,
parece não se vincular à voracidade de interesses comerciais sob a égide da indústria cultural.
A família Caruso especializou-se no mercado de exibição e seus membros deram
continuidade aos negócios ainda por mais algumas décadas, mesmo depois da morte do
entusiasta Domingos, aos 72 anos, em setembro de 1957, conforme noticia uma publicação da

63
Há outros registros em comemoração ao aniversário de Domingos Vassalo Caruso na Cine Repórter, como por
exemplo um que saiu na edição n.° 663 de 1948: “Festeja a sua data natalícia dia 3 o sr. Domingos Vassalo
Caruso, grande exibidor cinematográfico na capital do pais, onde conta com grande círculo de amigos, não só
nos meios sociais, mas no grêmio cinematográfico carioca”. O Jornal Correio da Manhã, a exemplo de sua
coluna A Vida Social (edições entre 1930 e 1938), também costumava dar espaço para o aniversário do
empresário, destacando geralmente a sua atuação na Leopoldina.
116
Revista Cine Repórter:

Figura 7 - A Revista Cine Repórter, em 5 de outubro de 1957, noticiou a morte de Domingos Vassalo Caruso

Na década de 1950, Nelson Caruso fez alianças comerciais com Lívio Bruni, outro
proeminente exibidor que também atuou no setor de comercialização de filmes nos subúrbios
cariocas. É desse período, inclusive, a quebra de acordos entre a família Caruso e o grupo
Severiano Ribeiro, o que ocasionou o avanço dos herdeiros de Domingos Vassalo Caruso
rumo o mercado de salas de cinema da zona sul.
A partir dessa época, as características do mercado exibidor carioca mudam
drasticamente, até porque a cidade ganhou também novas nuances em sua organização
socioespacial e outras formas de arranjo urbano. Nos subúrbios, e mais precisamente nos
bairros da Leopoldina, o mercado exibidor já era, há tempos, uma realidade significante, com
singularidades que valem ser notadas.
Até fenecerem por completo, já no final do século XX, os prédios dos cinemas
animaram a vida que era tecida coletivamente em frente e no entorno das paradas de trem dos
bairros leopoldinenses. Um esvaziamento cultural e uma deterioração crescentes dos
subúrbios ferroviários da Leopoldina tornaram-se a tônica ostensiva das décadas de 1980,
1990 e dos anos 2000. Conforme presumimos, conectaram-se aos destinos dos cinemas de rua
da região.
117
Hoje, mesmo ausentes, esses equipamentos urbanos de lazer cinematográfico ainda se
encontram sob o abrigo das memórias de antigos frequentadores, que fizeram desses espaços
coletivos, essencialmente, cinemas de estação. É partindo dessas reminiscências acerca das
experiências de espectação, que os acontecimentos relativos a tais salas de exibição, em
profícua associação com a configuração do espaço urbano da Zona da Leopoldina ao longo da
segunda metade do século XX, merecem ser relatados.

118
Capítulo 3
Os “cinemas de estação” e os primeiros cinemas de shopping: uma
etnografia de lembranças

Os relatos históricos acerca do mercado exibidor suburbano da Leopoldina nas


primeiras décadas do século XX são notoriamente parcos. A pesquisa etnográfica e a procura
em arquivos e material bibliográfico realizadas para este trabalho demonstraram que, de fato,
há poucos registros sobre os cinemas que existiram defronte às estações de trem
leopoldinenses até aproximadamente o final dos anos 30. Essa constatação se coloca ainda
mais evidente se compararmos o volume de dados referentes à fase seminal dos cinemas da
Leopoldina e os inventários já produzidos ao longo do tempo, nos âmbitos acadêmico e
jornalístico, em relação às casas exibidoras localizadas no Centro, na Tijuca, na Zona Sul, e,
até mesmo, nos subúrbios da Central do Brasil, como Méier e Madureira. No entanto, a
precariedade de registros oficiais ou livros que versem sobre as primeiras experiências de
exibição – em salas estruturadas, cine-teatros, galpões ou ao ar livre – não comprometem a
breve, mas profunda série de indicações de que as atividades de exibição fizeram parte dos
lazeres dos moradores dos bairros da Leopoldina; isto é, há indícios de que as pessoas dessa
região procuravam as telas com alguma assiduidade no início do século passado.
A primeira apresentação de imagem em movimento de todo o subúrbio do Rio de
Janeiro, segundo relatos coletados em diferentes fontes (GONZADA, 1996; FRAIHA e
LOBO, 2004), aconteceu justamente na Zona da Leopoldina. O Outeiro da Penha foi o local
onde, em 1906, o comerciante de filmes Paschoal Segreto promoveu uma exibição ao ar livre,
que transformou a área externa da igreja em palco de projeção de filmetes. Na plateia desta
“primeira sessão”, para a qual não há dados acerca da obra que fora mostrada, estava
Domingos Vassalo Caruso, um menino que anos mais tarde haveria de se tornar o maior
empreendedor de cinema na região leopoldinense, contribuindo, da mesma forma, para o
desenvolvimento urbano da área, conforme vimos no capítulo anterior.
O evento cinematográfico ocorrido na Igreja da Penha inaugurou uma tímida fase de
aparecimentos de equipamentos de exibição na Leopoldina, mesmo não existindo, nesse caso,
nenhuma relação ou causalidade aparentes entre as salas que surgiram nas décadas de 1910,
1920 e 1930 e a sessão organizada por Paschoal Segreto no pátio da paróquia.
É importante notar que essa movimentação em torno da experiência com a imagem em

119
movimento nos subúrbios (tanto na Zona da Leopoldina quanto na região da Central e noutras
partes ao norte e ao extremo norte) se deu na mesma época em que eram erguidos os cinemas
da Rua do Ouvidor e da Avenida Central (hoje, Avenida Rio Branco), ligados ao primeiro
circuito de exibição do Centro. Tal evidência mostra que as áreas suburbanas do Rio de
Janeiro não escaparam do avanço que o cinema empenhou cidade afora.
Oito anos depois da exibição do Outeiro da Penha, o primeiro espaço voltado para a
projeção de filmes da Zona da Leopoldina abriu as suas portas. Estruturado como um cinema
propriamente dito, com cadeiras, bilheteria e tela fixa, o Cinematógrafo Ideal surgiu em 1914,
no bairro de Ramos, passando em 1919 para as mãos de Domingos Vassalo Caruso, que o
renomeou de Cinema Elegante. Anos mais tarde, em 1928, o Cinema Elegante passou a se
chamar Cinema Ramos, fechando em 193364. Ficava localizado bem em frente à ferrovia.
Nesse período, não havia separações definidas entre as vias de passagem de transeuntes e os
trilhos ferroviários, o que, de certa forma, podia integrar mais diretamente (e com muitos
riscos de acidentes) os aparatos urbanos – tais como trechos de pedestrianismo, prédios
comerciais e moradias – e as estruturas que formavam a linha e a estação de trem.
Entre 1906 e 1916, cerca de 50 cinemas do total de equipamentos de exibição do Rio
de Janeiro circunscreviam-se ao mercado cinematográfico suburbano. Mas nesse período
foram poucos os cinemas que se mantiveram abertos por muito tempo em bairros suburbanos
como São Cristóvão, Engenho de Dentro, Engenho Novo, Bangu, Méier, Piedade, Madureira
e Santa Cruz. Isso confirma que o mercado de cinema nos subúrbios, embora não tenha sido
promissor, pulsava entre aberturas e fechamentos e acompanhava o perfil do setor
cinematográfico de toda a cidade, que também registrava alto grau de efemeridade na vida de
seus negócios. Entre os bairros que experimentaram o abre-e-fecha de estabelecimentos do
filme, não constam localidades inseridas na Zona da Leopoldina (GONZAGA, 1996).
Portanto, cremos que não foi nesta região onde o setor de exibição suburbano começou a
sedimentar a sua trajetória, ainda que o lance inicial tenha sido dado por Paschoal Segreto, por
meio da projeção cinematográfica que promoveu à beira das escadarias da Igreja da Penha.
Por conseguinte, as inaugurações foram muito tímidas na região da Leopoldina nesse
tempo. Os indícios apontam apenas mais uma abertura de casa exibidora, que teria aparecido

64
Há vários registros de cinemas com nome de Ramos nos excertos de jornais consultados e na obra de Gonzaga
(1996). O primeiro Ramos, que funcionou nos números 28 e 32 da Rua Uranos, entre 1928 e 1933, já havia sido
Cinema Ideal e também Cinema Elegante. O proprietário era Domingos Vassalo Caruso. Em 1934, aparece outro
Cinema Ramos, também na Rua Uranos, mas agora no número 1.009. Este cinema fechou em 1969 e era da
mesma família Caruso, conforme veremos a seguir neste capítulo. Já em 1981, o então Cinema Rosário, que
ficava na Rua Leopoldina Rêgo, em Ramos, ganhou o nome de Cinema Ramos.
120
naquele cenário em 1915 ou 1916, logo depois do surgimento do Cinema Ideal, com o nome
de Cinema Brasil. A falta de precisão não se restringe ao ano de inauguração; o endereço
também é desconhecido, mas há pistas de que ele funcionava entre Olaria e Ramos. Exceto
por um pequeno registro no livro de Alice Gonzaga (1996, p. 290), não há dados mais
concretos que comprovem a sua existência. Nada foi encontrado: nem através das lembranças
de antigos frequentadores ainda vivos, nem por meio do registro jornalístico com que tenha
me deparado.
Dentro deste universo de cinemas suburbanos que despontaram até mais ou menos o
ano de 1916, mais da metade cerrou as portas com menos de três anos de funcionamento.
Tratava-se de casas de projeção muito simples, com duração efêmera ocasionada pela
precariedade mercadológica ou pelas inadequações prediais. A inconstância dos cinemas era
um fator bem comum, à época, a todo o setor cinematográfico carioca, não importasse a
região. A breve vida das salas desse primeiro circuito, notadamente desorganizado em termos
empresariais, é algo observado na obra de Alice Gonzaga (1996) como um sintoma da
profícua efervescência pela qual passavam os negócios da exibição do Rio de Janeiro.
A ruína do primeiro circuito exibidor carioca no começo do século “atingiu
indistintamente o centro e o subúrbio” (Ibidem, p. 98). Mas com a reorganização do mercado
por volta de 1920 o número de salas de exibição parece ter se equilibrado em toda a cidade e,
em dez anos, foram abertos cinco cinemas na região da Leopoldina: Cinema Olaria, Cinema
Oriente, Cine Teatro Penha, Cinema Ramos e Cinema Paraíso. Nessa ocasião, ainda
amargando um período de recuperação após o grande colapso da cinematografia em 1912,
uma estratégia encontrada pelos comerciantes do lazer foi continuar aliando, de forma
esporádica, espetáculos de palco (como esquetes teatrais, por exemplo) e programação
cinematográfica. Dados indicam que esta iniciativa possibilitou tanto a continuidade dos
cinemas suburbanos da Leopoldina e da Central no período pós-crise, quanto a sua
sedimentação como equipamentos proeminentes no ambiente urbano dos arrabaldes.

Nos subúrbios isto significou um último alento para os grupos de amadores.


Na impossibilidade de arcar com as despesas de uma companhia
permanente, os modestos exibidores franqueavam seus palcos aos esforçados
entusiastas, o que acabou por consagrar definitivamente os cinemas como
principal ponto de reunião dos bairros (Idem).

Neste período de entrada do cinema na realidade parcamente urbana dos subúrbios


cariocas e de introdução do lazer cinematográfico nos bairros localizados ao longo da
121
Leopoldina, havia em Olaria uma estrada de chão chamada Mariangu, que ficava perto de um
porto homônimo, o Porto de Mariangu65. Antes mesmo da chegada da ferrovia, este porto era
a principal forma de comunicação entre os arrabaldes da região e o Centro do Rio 66. Portanto,
a área já possuía certo destaque à altura da inauguração da estação de Olaria, em 1917, na
medida em que era um ponto de confluência de pessoas e coisas a chegar e a partir. Uma de
minhas interlocutoras, Dona Aidê, hoje com 85 anos, residiu nessa área portuária quando era
criança, quase adolescente. Mas na última infância de Dona Aidê, a Leopoldina Railway já
estava presente em Olaria, bem próximo ao porto.

Vivi perto do Porto de Mariangu com uns 12 anos. Eu morava com um tio
que era pescador, na colônia de pesca, em casa de madeira. Não era palafita,
era de madeira. Era como um mangue, mas limpo. Ali tinha também o
matadouro da Penha e um curral. Já tinha a linha do trem, e as pessoas
desciam até uma fazendinha, que era uma fazenda grande, e deixavam o
gado lá. O trem era da linha da Leopoldina, na época em que ele ainda fazia
transporte de carga. Dali, nós morávamos perto do porto, mas já tinham
essas ruas que tem hoje, que saiam todas no porto. Havia já a Rua Pirangi,
que saía na estação de Olaria, que não era na época estação de Olaria, tinha
nome de uma pessoa, não lembro qual.

Atualmente, a Estrada de Mariangu chama-se Rua Alfredo Barcelos, mas teve ainda
outro nome: Rua Senador Antônio Carlos. Foi nessa via que, em 1920, surgiram dois cinemas
vizinhos nas imediações da estação ferroviária de Olaria. Em abril, no número 371 da rua, o
Cinema Olaria começou a funcionar sob a gestão do consórcio Elísio, Caruso e Motta. Cinco
anos depois, o empreendimento passou para o comando único de Domingos Vassalo Caruso,
que já fazia parte da composição acionária do consórcio Elísio, Caruso e Motta. Logo em
seguida, em 1926, o cinema encerrou as atividades de projeção.
Já em setembro do mesmo ano, foi construído o Cine Oriente em uma área que ocupava
os números 385 e 387 daquela rua. Com 800 poltronas, o empreendimento era administrado
por um consórcio que também tinha Domingos Vassalo Caruso como um dos acionistas. A
sociedade Paiva, Caruso & Cia geriu o equipamento de lazer até 1924. Neste ano, na esteira
do mesmo destino do Cinema Olaria, o Oriente foi incorporado pela família Caruso, que o
administrou sozinha até 1951. O cinema funcionou até o início da década de 1960, quando
fechou. Entre 1951 e 1962, a gestão final do equipamento foi realizada pela Cinemas Unidos

65
O porto de Mariangu ficava na Praia de Ramos, à época conhecida como Praia do Apicú ou Praia de Mariangu
conforme destacamos na página 4 do Capítulo 1.
66
Sobre a história da configuração dos bairros da Leopoldina, rever o Capítulo 1.
122
S.A., entidade na qual os Caruso também tinham participação acionária (GONZAGA, 1996;
FRAIHA e LOBO, 2004). O número de poltronas já se encontrava bem reduzido no momento
de sua falência; os derradeiros 499 assentos do Oriente, contra os 800 lugares iniciais, podem
indicar que de alguma forma os empresários ainda tentaram mantê-lo aberto, diminuindo os
ônus financeiros, possivelmente advindos da perda de público e também dos gastos com
manutenção, através da subtração de cadeiras.

Figura 8 - Cinema Oriente, década de 1920 (GONZAGA, 1996, p. 144)

Em uma conversa que tivemos em sua casa, em Olaria, da qual também participou o
pesquisador e professor da Universidade Federal Fluminense João Luiz Vieira, Dona Aidê
lembrou que ia aos cinemas da vizinhança com outras crianças moradoras da colônia de
pescadores que habitava. Frequentava-os também acompanhada das crianças que moravam
nas ruas “de dentro” do bairro. Conforme foi se recordando desta fase, o Cinema Oriente
ganhou destaque em sua fala:

A Rua Piragi ia até o outro lado, até onde tem o Cinema Oriente. Tem um
depósito do Severiano Ribeiro lá hoje, mas eu não sei se ainda tem aquilo lá,
mas o prédio está lá. A fachada está lá, mas eu quase não passo mais por ali.
Nós íamos todos os domingos. As crianças que se davam bem na escola,
todo domingo ia ver os filmes. Quem tirasse nota baixa não podia ir. Os pais
levavam os filhos. Aí vinham quatro, cinco, seis crianças, todos juntos.
Devia ser meio dia e meia, uma hora, a sessão, assim logo depois do almoço.
123
A gente atravessava a linha e não tinha nem muro, nem grade. Não tinha
divisão: era aquele trilho com pedra, como é hoje, apesar de que hoje tem
muro alto. Por dentro do cinema, eu não me lembro bem como era, mas era
como se fosse um galpão grande e alto. Mas a gente, criança, né, acha tudo
grande, mas vendo fotos dá para ver que era grande sim. As portas são altas.
Ali era o cinema. Eram cadeiras de madeira. Não tinha conforto, mas para a
gente era maravilhoso... Tinham aqueles capítulos de filmes e depois a gente
ia embora para casa. Não tinha outra distração (D. Aidê).

Luiz Antônio é outra pessoa que tem recordações do Cinema Oriente. Da infância ao
final da adolescência, ele morou no conjunto residencial do IAPI da Penha e nesse tempo,
entre 1950 e 1975, frequentava assiduamente vários cinemas da Zona da Leopoldina com os
amigos e a irmã. Luiz Antônio mora desde 1975 em Belém do Pará, cidade localizada na
região norte do Brasil, mas se lembrou especificamente do Oriente (e igualmente do Cinema
São Geraldo, que abordaremos mais adiante) como um dos cinemas poeiras da região da
Leopoldina.

Frequentávamos o São Geraldo e o Oriente, junto à estação de Olaria, que


projetavam predominantemente filmes de faroeste, e mesmo filmes mudos e
seriados. Se não me engano, o Olaria antes se chamava Cine Oriente. Depois
recebeu esse novo nome. Era um dos “poeiras” da região (Luiz Antônio).

Pela memória deste interlocutor, o Cinema Oriente antes teria recebido outro nome,
mas esse é um fato que não se confirma nos registros de Alice Gonzaga (1996) e em outras
entrevistas e fontes que consultamos, como, por exemplo, as edições antigas do Jornal do
Brasil – periódico que, aliás, pouco trazia dos cinemas da Leopoldina na sua seção 67 diária de
informações sobre os filmes em cartaz na cidade do Rio de Janeiro.
Na verdade, o Cinema Oriente tornou-se com o passar do tempo um depósito do
Grupo Severiano Ribeiro, tal como declarou D. Aidê. Nos dias atuais, o prédio parece estar
abandonado. O casarão, que até a década de 1960 abrigava sessões cinematográficas e
espetáculos de palco e tela (GONZAGA, 1996, p. 144), ainda hoje tem mantida, de forma
bem aparente, a sua arquitetura art nouveau. Para quem hoje vê o prédio do antigo cinema
Olaria da calçada, a percepção de que a fachada encontra-se muito mal conservada é evidente.

67
Foram consultadas pelo menos três edições de cada ano do Jornal do Brasil, publicadas entre 1931 e 1962, já
que o arquivo online do JB, disponibilizado pela Biblioteca Nacional, só oferece aos pesquisadores exemplares
de datas a partir de 1930. Em nenhum dos jornais consultados o Oriente constava como opção de cinema na
programação da seção cultural. Fonte: Jornal do Brasil – News Archive. Disponível em:
www.jb.com.br/paginas/news-archive/. Última visualização em 19 de dezembro de 2013.
124
Figura 9 - Local onde havia o Cinema Oriente, já nos dias atuais (Fonte: Blog Turma de Olaria)

Apesar da atual inatividade do prédio do Cinema Olaria para fins cinematográficos ou


culturais, a sua imagem é algo intacto na memória de Carlos Alberto, antigo frequentador do
cinema e amigo de infância de Luiz Antônio, com quem também conversei. No relato de
Carlos Alberto, verifica-se a força dos aspectos arquitetônicos e do universo de sonho que o
cinema englobava no passado. Seu depoimento até nos remete, de certa forma, ao conceito de
“heterotopia”, de Foucault (2001). No Capítulo 2, vimos que a sala de cinema pode ser
pensada como um local que, ao despontar em meio ao vai-e-vem urbano, funda novos
espaços-tempos através de suas particularidades internas (e externas), tendo em vista que as
heterotopias “(...) são justamente lugares ‘outros’, que contestam, invertem ou desafiam os
posicionamentos (emplacements) de uma sociedade. A heterotopia é uma espécie de utopia
realizada, uma tópica divergente que se atualiza efetivamente e concretamente” (CAIAFA,
2013, p.259).
Como comenta Carlos Alberto:

Oriente era meio oriental, nos projetava para algo que não conhecíamos,
longe, distante... Sua fachada lembra uma meia flor de lótus, uma vitória-
régia. Suas cores, seu mobiliário antigo... O Oriente era um trem-fantasma
dos cinemas, uma viagem ao desconhecido, afora aquele pedaço de rua, um
desvio ao nada, aquelas lojas de móveis decadentes, era do outro lado do
mundo. Para a turma do IAPI, lado de lá, era terreno desconhecido a ser
desvendado.

125
Um dado que chama atenção na fala deste entrevistado é a imediata associação feita
entre a localização do cinema – que, de acordo com o que deduzi após ouvi-lo, na época de
funcionamento ficava do lado mais “desenvolvido” do bairro de Olaria – e as recordações dos
desbravamentos que ele realizava na área quando era menino. Toda a sua a aventura urbana
pela vivência dos locais perto de si, através de mobilidade a pé, tinha como pano de fundo a
presença do bonde, além da linha e da estação ferroviária.
Cinema, trem e bonde, neste momento, aliam-se numa tríade propulsora de viagens.
Nota-se o valor deste “dar-se conta” da existência de outros mundos, os quais, com sorte,
eram introduzidos, experimentados, verificados por meio do letreiro do cinema, do cartaz do
filme, do próprio filme, de uma calçada ou muro novos, de passeios de bonde ou da
observação das chegadas e partidas do trem na estação. Conforme diz Caiafa: “(...) é essa
experiência de outros mundos, essa operação de diferenciação que produz vida social, que é
intensificada nas cidades” (2007, p.120). É justamente nesses encontros com outrem onde o
indivíduo pode ser levado “até a borda de si mesmo” (Ibidem, p.121), como escreve Caiafa a
partir do texto “The conscience of the eye”, de Richard Sennett.
Nas lembranças de Carlos Alberto, durante as suas andanças de infância na Zona da
Leopoldina o cinema incluía-se no horizonte, que, pouco a pouco, se descortinava:

Garoto, fui até a Invernada de Olaria, ao Morro do Cruzeiro, tudo a pé! Era o
outro lado do mundo de um menino assustado e lá estavam alguns cines
afora... é... lembrarmos que naquele lado passava o bonde da Light, um
transporte que já destoava dos modernos ônibus. O bonde era o sonho de
qualquer criança. Andar nele era garantia de vento na cara, gente
interessante, os nomes e números, os lugares que alcançavam... O mundo era
imenso e eu não via nem um naco dele, essa é a verdade, a minha
particularmente (Carlos Alberto)

Voltando ao início do século XX, fase de um então acanhado cenário exibidor na


Leopoldina, vale citar que em 1923 apareceu a primeira sala de exibição do bairro da Penha: o
Cine Teatro Penha. Sua abertura só ocorreu quase duas décadas depois que Paschoal Segreto
promoveu, na principal igreja da região, a Igreja da Penha, o que hoje pode ser considerada a
primeira experiência de projeção e espectação de filme desse arrabalde carioca. Entretanto,
mesmo tendo para si a marca de subúrbio pioneiro na mostra de imagens em movimento, a
Penha só passou a contar com sessões periódicas, realizadas em um equipamento
cinematográfico estruturado propriamente como cinema, depois da abertura do Cine Teatro
Penha. O local foi erguido pela ação de um grupo de comerciantes denominado Frota, Ponce,

126
Caruso & Cia, que juntos fundaram esta casa de exibição na Rua Nicarágua, número 114,
colado à linha do trem. Na ocasião, o cinema foi inaugurado com 673 lugares (GONZAGA,
1996, p. 296).
Como os dados sobre as localizações desses cinemas muitas vezes são esparsos e de
conteúdo ambíguo, ele pode ter funcionado também em outro trecho da mesma rua. Um dos
programas do Cine Teatro Penha, pista cedida pelo informante Alcyr, ex-morador da região,
aponta essa incongruência de informações:

Figura 10 - Programa do Cine Teatro Penha cedido por Alcyr, ex-morador de Brás de Pina

Nesse caso, Domingos Vassalo Caruso continuou com a prática de compra das
participações dos sócios nos negócios e, assim, se tornou o único dono do Penha em 1929. No
entanto, em 1952, tal como ocorreu com as demais casas cinematográficas de Caruso, o
cinema foi integrado à empresa Cinemas Unidos S.A.
O Cine Teatro Penha parou suas atividades em agosto de 1969, quando virou uma loja
de ferragens. O ex-programador da Geração Paissandu, Fabiano Canosa, teve ligações com

127
este cinema na juventude: “O Penha era próximo de onde eu morava, na Rua Nicarágua. Na
verdade, minha tia morava lá e eu passava as férias lá. Sempre ia ao Penha nas férias, vivia lá.
Tenho lembranças tenras desse tempo”. O entrevistado Carlos Alberto também tem o Cine
Teatro Penha na memória: “não esqueço o pequenino Cine Penha, poeira decadente, já
naquela época”.
Já o ator Jorge Curvello, que morou nos subúrbios da Leopoldina entre 1950 e meados
dos anos 60, falou-me sobre o Penha, ressaltando que este cinema era um equipamento de
certo luxo. Depois da conversa que tivemos por telefone, o interlocutor ainda me enviou uma
lista com a sua classificação pessoal dos cinemas da região, segundo as qualidades de cada
um, tudo com base em suas recordações. Ele comenta: “Classifico luxo para os mais
arrumados, com portaria decente e bombonière, ingressos mais caros, e poeira para salas de
projeção sem conforto e ingressos mais barato”.
O último empreendimento cinematográfico de Domingos Vassalo Caruso na década de
1920 foi o Cinema Paraíso, inaugurado em 1928, no bairro de Bonsucesso, no número 66 da
Praça das Nações. O cinema ficava onde hoje há o prédio da Universidade Salgado de
Oliveira (Unisuam). Esta casa de exibição fechou em 1969 e em seu lugar levantaram o teatro
da faculdade.

Figura 11 - Ao fundo, o Cinema Paraíso, na Praça das Nações, em Bonsucesso, 1929


(Fonte desconhecida)

Nesse mesmo período, embora não represente o surgimento de um novo cinema, cabe
ressaltar que o cinema Elegante, existente desde 1919, tornou-se Cinema Ramos em 1928. A
mudança de nome, às vezes, confunde a contabilidade do número geral de equipamentos de

128
exibição que área da Leopoldina reuniu nos anos 20.
Dos cinemas inaugurados entre 1920 e 1930, somente dois sobreviveram por mais
tempo, permanecendo abertos até 1969: o Cine Penha e o Cinema Paraíso. Foi principalmente
nas décadas de 1930, 1940 e 1950 que o equipamento coletivo de lazer sala de cinema se
afirmou de vez no contexto urbano dos bairros ferroviários da Leopoldina. São desta época os
cinemas Ramos (de 1934 a 1969, na Rua Uranos), Santa Cecília (de 1937 a 1967, em Brás de
Pina), Cine Teatro Brás de Pina (de 1937 a 1967, virando Cinema Lux em 1960), Rosário (de
1938 a 1981, funcionando até 1992, na Rua Leopoldina Rego, com o nome de Cine Ramos),
Santa Helena (de 1942 a 1967, em Olaria, passando a se chamar, em 1967, Cinema Olaria, e
fechando em 1996), Cine São Geraldo (de 1949 a 1991, em Olaria) e Cinema Bonsucesso (de
1952 a 1967).
O Cinema Ramos foi aberto em 1934, segundo consta na obra que Alice Gonzaga
(1996) lançou com base em pesquisas realizadas pelo conservador-chefe da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna, Hernani Heffner, ao lado de outros pesquisadores. Destaco, no
entanto, que este equipamento chamado Cinema Ramos especificamente, ao qual o livro de
Gonzaga (1996) se refere, não é o mesmo Cinema Ramos que existiu entre 1928 e 1933 no
número 32 da Rua Uranos. Ou seja, não tinha relação alguma com o Cinema Ramos do final
dos anos 20, cujo nome anterior fora Cinema Elegante.
A curiosidade desta observação reside no fato de que além da coincidência de se
chamarem Ramos, ambos os cinemas foram geridos por Domingos Vassalo Caruso e, além
disso, as duas casas se estabeleceram na mesma calçada da rua, compartilhando o mesmo lado
da linha do trem. Entretanto, enquanto uma encerrava as atividades, praticamente um ano
depois a outra era inaugurada, mas em um trecho mais adiante da Rua Uranos, no número
1.009. Este Cinema Ramos mais novo sobreviveu até 1969. Quando fechou, já era
administrado pela Cinemas Unidos S.A. Ao longo do seu período de funcionamento, o cinema
teve o número de poltronas reduzido paulatinamente: dos 1.093 assentos inaugurais, apenas
700 lugares estavam disponíveis para os frequentadores no final dos anos 60.

129
Figura 12 - Estação de Ramos. Ao lado direito, em destaque, vê-se parte da arquitetura do extinto Cinema
Ramos: curvas art déco (Fonte: Blog Foi um Rio que passou)

Figura 13 – Extinto Ramos, pela plataforma da estação. No local, há uma igreja protestante
(Fonte: Arquivo pessoal)

Mais um fato curioso circula em torno das histórias dos cinemas leopoldinenses que
tiveram o nome “Ramos”. Em consulta aos arquivos da Revista Cinearte, encontrei uma nota
130
sobre a inauguração de um determinado cinema batizado como “Ramos”, o que tornou a
investigação bem mais confusa.

Figura 14 - Fragmento da Revista Cinearte, de 15 de março de 1940.

O que intriga nesta informação “Inaugurou-se o Cinema Ramos, em Ramos, da


Empresa Domingos Vassalo Caruso” é que ela aparece na edição de 15 de março de 1940 do
periódico e, por causa disso, não se relaciona cronologicamente com a trajetória de vida e
morte de nenhum dos cinemas Ramos existentes na região. A nota foi publicada sete anos
depois do fechamento do primeiro Cinema Ramos (anteriormente chamado Cinema Elegante),
seis anos após a abertura do segundo Cinema Ramos e simplesmente 41 anos antes do
surgimento do terceiro Cinema Ramos, que só ocorreu em 1981, depois que o Cinema
Rosário mudou de nome, configurando, na verdade, o mesmo equipamento. Talvez a nota da
Cinearte diga respeito a alguma reinauguração do segundo Cinema Ramos, mas não foi
possível comprovar se houve ou não uma reinauguração à época: não há dados empíricos,
nem relatos de interlocutores que nos dê pistas para elucidar o teor desta publicação.
Nas falas dos entrevistados mais velhos, que iam com frequência aos cinemas da Zona
da Leopoldina nos anos 50, 60 e 70, poucas vezes o Cinema Ramos (de 1934) é confundido
com os demais “Ramos”, seja com aquele que outrora chamou-se Elegante, seja com o Ramos
que renomeou o Rosário. A identificação do Cinema Ramos é clara nas vozes desses
interlocutores, pois esse equipamento possuía certas particularidades hoje muito ressaltadas
pelos antigos visitantes.
Jorge Curvelo lembra bem dessa sala de exibição, que se diferenciava por seu apelo
popular, pelos preços acessíveis e por um perfil mais poeira, já que as cadeiras eram de
131
madeira, sem estofados, e o ambiente, calorento no verão.
Jorge comenta em pormenores como o cinema funcionava:

O cinema Ramos era o preferido da população que curtia filmes de ação


como os de faroeste, aventuras na selva e outros do gênero. Era o preferido
do pessoal de menor posse, que se vestia menos exigente, que gostava de
gritar durante a sessão, de aplaudir ao final e sair comentando. O cinema
Ramos funcionava de segunda a domingo, mudando filme na quinta-feira.
Os de segunda a quarta sendo mais classe B e quase sempre em preto e
branco, não havendo séries antes do filme principal. A frequência nestes dias
era menor. Nas quintas e domingo, a casa lotava e era o dia de mais venda na
pequena bombonière que ele tinha na entrada. Era chique comprar balas,
drops, bombons, e chicletes e não havia a pipoca. Às quintas-feiras e aos
domingos havia fita em série, filmes curta de aventura, como Flash Gordon,
Jim das Selvas... e outros heróis que atraiam os seguidores. Nos demais dias,
era jornal da semana e trailer antes do filme. O Ramos era o cinema dos
filmes classe B. O cinema Ramos não tinha cadeira estofada, era de madeira
escamoteável, fazia muito calor no verão, mas nos banheiros havia respeito e
uso para própria finalidade somente.

Ele também conta sobre um fato marcante que viveu nesse cinema:

Eu e uma colega minha vizinha fomos assistir ao filme “O príncipe ladrão”,


ela vestindo um vestido de tafetá cor de rosa feito naquele dia pela manhã.
Chegamos, compramos ingresso, entramos e sentamos para ver o filme. O
cinema Ramos era um bloco fechado, sem saída de emergência a não ser
uma porta lateral sempre fechada. Estava no meio da fita em série e aquela
máquina antiga fez arrebentar o filme e queimar o celuloide, mas na tela o
efeito foi de fogo e alguém gritou isso, bastando para todo o cinema se
levantar e tentar sair em correria pela porta da frente, atropelando uns aos
outros e machucando gente. Eu saí ileso, mas minha amiga saiu toda
esfarrapada e o vestido dela ficou imprestável. Eu fiquei para ver “O
príncipe ladrão” e ela voltou aos prantos para casa.

Na safra dos cinemas abertos na década de 1930 na Zona da Leopoldina, o Cinema


Santa Cecília é um caso de destaque, a começar pela sua inauguração, que fora realizada com
grandes pompas, contando, inclusive, com a presença de representantes do governo do
prefeito Olímpio de Melo, político que estava à frente do município naquela fase. A
solenidade, realizada em fevereiro de 1937, teve como uma das marcas mais fundamentais a
comemoração da implantação da rede de iluminação pública na Rua Itabira, em Brás de Pina,
onde o cinema começou a operar também pelas mãos do empresário Domingos Vassalo
Caruso.
Uma nota da revista Cinearte comenta a abertura da casa:

132
Realizou-se a inauguração do Cinema Santa Cecilia, em Braz de Pinna,
subúrbio da Capital Federal. Estiveram presentes no acto autoridades
municipaes e federaes, tendo o prefeito sido representado pela deputada
Bertha Lutz, políticos locaes, director da Cia Imobiliaria Kosmos, de Braz de
Pinna, representante do inspector geral de Illuminação, directores do
Syndicato Cinematographico, da Associação Brasileira Cinematographica, a
maioria dos directores das empresas distribuidoras de films e vários
exhibidores. Falaram diversos oradores, tendo a deputada Bertha Lutz
alludido ao nome Santa Cecilia dado à nova casa de espectaculos, por ser
esta santa a padroeira da Música, da Arte e ainda da localidade de Braz de
Pinna. Por último falou o empresário Domingos Vasallo Caruso,
congratulando-se com a Inspectoria de Illuminacao Publica, por ter irmanado
com a sua obra, a inauguração da illuminacao publica no grande trecho da
antiga estrada Rio-Petropolis, hoje Rua Itabira, de Penha Circular, até Braz
de Pinna. O mais importante é que a inauguração foi feita com o grande film
Bonequinha de Seda. Actualmente, os films brasileiros até cinemas já
inauguram (REALIZOU-SE A INAUGURAÇÃO..., 1937, p. 50).

A Revista Cinearte frisa questões notáveis como a ação da iniciativa privada na


dotação de benfeitorias na infraestrutura do espaço público e a inauguração de um cinema
com a exibição de filme brasileiro na noite de estreia. O Cinema Santa Cecília participou
desse contexto. Mas apesar de ter sido uma peça importante para o desenvolvimento local, seu
prédio ficou sem nenhuma atividade por muitos anos desde o seu fechamento em 1967. Em
1983, por exemplo, uma relação dos cinemas suburbanos então fechados na época, publicada
pelo Jornal Brasil (VALPORTO e GOMES, 1983, s/p), aponta a situação de abandono do
cinema, cuja construção ostenta até hoje a rica arquitetura art déco original. O prédio ocupa
toda a esquina da Rua Itabira com a Rua Oricá. Atualmente, há uma Igreja Universal no local
antes voltado para a exibição cinematográfica.

Figura 15 - Cinema Santa Cecília em Brás de Pina (Fonte: Fotolog Saudades do Rio)

133
Ainda em Brás de Pina, mas sob a direção de outro exibidor, Antônio Vaz Teixeira, foi
erguido, em 1937, o Cine Teatro Brás de Pina (GONZAGA, 1996, p. 304), na Rua Bento
Cardoso, número 793. Este cinema mantinha a estrutura baseada em uma prática do mercado
cinematográfico de décadas anteriores: a divisão da sala em dois ambientes: plateia e balcão.
Os dois andares do cinema totalizavam 1.102 lugares. Em 1960, a Cinema Lux S.A. começou
a gerir a casa, fechada em 1967 para dar lugar a um supermercado. Agora há no local uma
igreja pentecostal Nova Vida, mais um caso de apropriação de prédios cinematográficos por
entidades de fins religiosos.
É interessante observar que os dois cinemas de Brás de Pina ficavam bem próximo um
do outro, em frente à linha e à estação de trem do bairro. A proximidade dos dois
equipamentos está na memória de Glória, uma mulher de aproximadamente 60 anos, que
passou a infância e adolescência no bairro:

Antes de fazer 15 anos, eu já frequentava cinema. Eu morava em Brás de


Pina. Na época, na minha lembrança, tinham dois cinemas, os dois na
mesma rua: um numa esquina, e um na outra. Eram o Santa Cecília e o Brás
de Pina. Então eles ficavam competindo, sabe... Na minha concepção de
hoje, adulta, eu entendo que eles ficavam competindo um pouco na
programação. Tanto que a gente ficava assim: ah, hoje a gente vai no Santa
Cecília, amanhã vamos no Brás de Pina.

O caso do Cinema Rosário, aberto em 1938, por Domingos Vassalo Caruso, também é
notável porque este cinema funcionou durante muitos anos na região da Leopoldina, fazendo
parte das atividades de lazer de muitos moradores. Dona Aidê, que hoje mora em Olaria,
embora tenha vivido também em Bonsucesso e na Tijuca, lembra ter frequentado o Rosário
durante a sua mocidade:

Eu ia no Rosário, que eu achava o máximo. As luzes naturais


acompanhavam a música, era muito bonito. Eu gostava das músicas porque
eram alguma coisa do tipo foxtrot. Eu ia mais ao Rosário depois que eu já
era mocinha. Eu ia a pé para ele, quando morei em Bonsucesso. Vinha para
cá, para o Rosário eu ia muito a pé.

134
Figura 16 - Estação de Ramos e Rosário ao fundo, no canto direito, com cocar art déco que ostentava o
nome do cinema (Fonte: Blog Turma de Olaria)

O cinema permaneceu ativo até o início da década de 1990, apesar de ter recebido
outro nome em 1981, quando começou a ser chamado de Cinema Ramos. A partir de então,
pôs-se como a terceira casa de exibição na história da Leopoldina batizada homonimamente
ao bairro de Ramos. Neste ano, ele se tornou propriedade da Atlântida Cinemas S.A., que
tinha Luiz Severiano Ribeiro como sócio majoritário (MELO, 2012).
Os dados indicam que antes de integrar o circuito do grupo Severiano Ribeiro, o
cinema, ainda com a denominação “Rosário”, era um poeirinha: não ostentava luxo, seus
assentos eram de madeira e a tela era um pouco menor do que os demais cinemas da área.
Contudo, sua arquitetura sempre foi exuberante, toda em estilo art déco. Ainda hoje a fachada
pode ser vista por quem passa pela Rua Leopoldina Rego, em frente ao número 52. A sua
qualificação como um poeirinha é uma condição que parece ter sido modificada na medida
em que o tempo passou, pois nas falas dos espectadores ele é destacado justamente por causa
do conforto que oferecia.
O Rosário/ Ramos povoa as reminiscências de muitas pessoas com quem conversei.
Para Luiz Antônio, o cinema tinha uma aura especial: “(...) era belo e amplo prédio em estilo
art déco, em frente à linha do trem, na estação de Ramos. Belíssimas luminárias internas, com
jogos de cor que nos encantavam no início das sessões”. O aspecto das luzes decorativas que
mudavam de tonalidade e a música que tocava conforme esse jogo de luzes é um fator que o
tornou inconfundível para quem lá ia assistir a filmes. É o que sinaliza também Jorge
Curvello:
135
Este era o cinema preferido das moças de família, dos casais, dos amantes de
filme de romance, épico, bíblico, policial, filmes considerados classe A da
época. Era o cinema mais bonito, mais confortável, com poltronas estofadas,
banheiro grande separado para homens e mulheres, bombonière na entrada,
sala de espera confortável e tinha um peculiar... As paredes todas eram
decoradas com colunas imitando copos em forma de flor, mudando de cor ao
início de cada sessão, acompanhando uma melodia tocada em piano muito
bonita e animada. Aquilo era a marca registrada do cinema Rosário!

As impressões de Jorge Curvello sugerem muito sobre o perfil do Rosário. Podemos


dizer que o cinema se colocava no ambiente daquele circuito de salas de exibição
leopoldinenses com um certo “ar burguês”. Em contraponto, alguns dados afirmam que o
equipamento se voltou para a exibição de filmes de conteúdo pornográfico. Uma matéria
publicada no Jornal do Brasil aponta a existência de uma fase pornô no Rosário/Ramos.
Percebe-se que esse tipo de programação foi iniciada somente na época em que o Rosário
passou a ser Cinema Ramos, ou seja, depois da sua gestão ter ido para o controle da Atlântida
Cinemas S.A., nos anos 80.

O Cine Ramos, por exemplo, inaugurado em 1938, mantém preservadas as


características art-déco de arquitetura e de decoração, com mármores belgas,
espelhos de cristal, o cinema hoje condenado a uma programação de filmes
pornô (SHILD, sem data).

Tal mudança talvez só tenha mesmo ocorrido nos últimos tempos, logo antes do
fechamento do cinema, até porque, nas falas dos entrevistados – que têm em sua maioria mais
de 50 anos de idade –, o Rosário/ Ramos sempre surge associado a outros sentidos, os quais
não cruzam, de modo algum, com a pornografia.
É o que sinaliza Carlos Alberto. Ele conta uma curiosidade interessante relacionada às
atrações do cinema, colocando-o em pé de igualdade com outros equipamentos culturais do
entorno:

O Rosário, em Ramos, para quem puder vasculhar a sua história, ainda hoje,
de pé, é lindo por dentro, parece um cine-teatro. Creio que o foi na
inauguração e por vários anos... Pixinguinha, por ter vivido em Ramos,
tocou, se não estou enganado, no Cine Rosário... Havia apresentações
teatrais, musicais... Para referência, é lembrarmos do Social Ramos Clube, a
elite da Zona Leopoldinense, também em Ramos.

Nas rememorações do interlocutor Jorge Curvello, o Rosário:


136
(...) também funcionava como o cinema Ramos De segunda a domingo,
trocando filme na quinta feira, mas ali não havia séries e se ia bem vestido.
As mulheres usando seus melhores vestidos e os homens ternos, isso nos
anos 50. Depois modernizando, mas sem perder a classe. O Rosário tinha
uma sala grande com cadeiras estofadas em vermelho, tapete no corredor
principal. Para refrigerar, havia portas laterais que ficavam abertas depois
que escurecia e havia ventiladores nas paredes. Não havia o ar refrigerado
comercial nestes anos.

Jorge me disse que o Rosário/Ramos era um “cinema lançador”, ou seja, um cinema


que trazia os filmes mais recentes dentro das novidades da cinematografia mundial,
sobretudo, norteamericana. Os “lançadores” opunham-se aos cinemas de reprise, que eram
casas mais simples, voltadas para uma programação focada em séries (trechos de filmes ou
programas exibidos por capítulo, a cada dia ou semana) e filmes de “segunda linha”, aqueles
que já estavam fora do circuito de lançamento há algum tempo.
Os cinemas do subúrbio carioca em geral, segundo um imaginário que pude constatar
entre pessoas que não viveram a fase profícua do circuito exibidor suburbano, muitas vezes,
são classificados na memória destes indivíduos como “cinemas de reprise”. Relatos como o
de Jorge Curvello mostram que os cinemas da Leopoldina também trabalhavam com estreias,
mesmo se elas ocorressem com algum atraso em relação às avant première organizadas em
cinemas da Tijuca ou do Centro do Rio de Janeiro, por exemplo.
Foi no Rosário/Ramos que Curvello pode assistir a filmes como “Ben Hur”, “Os 10
Mandamentos”, “O ídolo vivo”, “Scarface”, “Flechas de fogo”, “O que teria acontecido a
Baby Jane”, conforme me falou. Apesar disso, ele não esconde a sua preferência pelo Ramos
mais antigo quando se recorda dos afetos que nutria pelas salas de exibição daquela região.
Comparando-a com o Rosário/Ramos, ele comenta:

O ingresso do Rosário, eu acho que era entre CR$3 e CR$5, não tenho mais
lembrança. Eu gostava do Rosário, mas o meu preferido era o Cine Ramos
porque eu adorava filmes de faroeste com índios e de contos das mil e uma
noites. Isso no cine Ramos era uma constante.

A título de curiosidade, o pesquisador e professor da Universidade Federal


Fluminense, João Luiz Vieira, um dos interlocutores colaboradores deste trabalho, viveu
experiências em cinemas leopoldinenses durante a sua infância e adolescência, pois fora
morador de Olaria. Ele se lembra de ter ido a sessões no Rosário. Ademais, quando realizou
ao lado de Margareth Pereira o estudo “Espaços do Sonho: cinema e arquitetura no Rio de
137
Janeiro” (VIEIRA e PEREIRA, 1982), em suas coletas de dados fotografou o cinema. Cedeu-
me, em um de nossos encontros, as três fotos que encontrou em seus arquivos da época.
Na primeira fotografia podemos perceber o espaço interno do Rosário/Ramos e as três
grandes luminárias verticais que existiam nas duas laterais. Havia um teto trabalhado em
gesso branco, seguindo a tendência art déco.

Figura 17 - Luzes laterais da sala de exibição do Rosário/Ramos (Fonte: Arquivo pessoal do


pesquisador João Luiz Vieira)

Vemos na segunda foto a sala de exibição já escurecida, com alguns feixes iluminados
que pareciam cair em forma cascata devido ao efeito produzido pelos pontos de luz que saíam
dos orifícios da ornamentação do teto.

Figura 18 - Interior do Rosário, já em sua fase como Cinema Ramos (Fonte: Arquivo pessoal do
pesquisador João Luiz Vieira)

138
O próprio João Luiz aparece numa das fotografias acompanhado de Margareth Pereira
e um senhor desconhecido. Nesta terceira imagem, um símbolo na entrada do cinema chama
atenção: é o logotipo do Grupo Severiano Ribeiro, que integrava o consórcio da Atlântida
Cinemas S.A.

Figura 19 - João Luiz Vieira e Margareth Pereira na entrada do Rosário/Ramos (Fonte: Arquivo pessoal
do pesquisador João Luiz Vieira)

Quando o cinema Rosário, já sob a nomenclatura de Cinema Ramos, encerrou as suas


atividades, o prédio foi ocupado por uma boate, a Trigonometria Dance, que fazia muito
sucesso no subúrbio carioca nos anos 90, e, logo depois, uma casa de bingo tomou conta do
lugar. Uma reportagem relativamente recente publicada no website do jornal O Globo, em 13
de fevereiro de 2011, lamenta a falta do cinema, destacando que a despeito de estar
abandonado desde 1992 o prédio é uma construção tombada pela Subsecretaria Municipal de
Patrimônio Cultural.

O subúrbio enfrenta uma grande carência de atrações culturais e os cinemas


de rua, que sempre foram boas alternativas de entretenimento, continuam
fora de cena. O Rosário, em Ramos, desativado em 1992, é um exemplo
disso. Seu prédio, construído em 1938, foi tombado em 1997 pela
Subsecretaria Municipal de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana,
Arquitetura e Design. Apesar disso, está abandonado. Pichações tomam
conta das paredes do edifício, localizado na Rua Leopoldina Rêgo 52. Em
1981, a sala de exibição chegou a mudar de nome para Cine Ramos. Mais
tarde, o imóvel virou a boate Trigonometria e, por último, abrigou o Bingo
Leopoldina. A frase da fachada, “Cinema é a maior diversão”, ficou na
saudade das pessoas que assistiram a filmes no local, em sessões muitas
vezes lotadas. O espaço acomodava 1.384 poltronas. (MOURA, 2011).

139
Figura 20 - Visão atual do prédio do Cinema Ramos, antigo Rosário, hoje abandonado
(Fonte: Arquivo pessoal)

Figura 21 – Extinto Rosário frontalmente (Fonte: Arquivo pessoal)

140
Figura 22 – Antiga bilheteria do Rosário, forjada em ferro (Fonte: Arquivo pessoal)

Na década de 1940, novos cinemas surgiram ao longo da Linha da Leopoldina. Em


Olaria, o Santa Helena, também de propriedade de Domingos Vassalo Caruso, abriu em 1942
com 1.327 assentos. A estreia do cinema mereceu destaque de uma página inteira na revista A
Cena Muda.

Figura 23 - Página da Revista A Cena Muda sobre a abertura do Olaria (Fonte: A Cena Muda, 1942)
141
Na pequena reportagem da revista, cujo texto logo acima se encontra indecifrável, são
colocadas a importância e a qualidade do equipamento:

Em dias da semana passada inaugurou-se em Olaria, o “Cine Santa Helena”,


nova e confortável casa de exibições dos subúrbios da Leopoldina,
incorporada à linha da firma Caruso Filhos, tendo o filme “Balalaika”
servido para a estreia. “A Cena Muda” se fez representar na pessoa do seu
redator-chefe, obtendo excelente impressão do novo cinema, instalado em
edifício construído especialmente para este fim (O CINEMA NOS
SUBÚRBIOS, 1942, p. 21).

Dona Aidê viveu esta época bem de perto e discorre sobre as recordações que tem do
Santa Helena:

Eu vi construir o Santa Helena (...). Naquela época, para o Rosário e para o


Santa Helena, nós íamos a pé. Depois os meus filhos também iam. “Cada
coração, um pecado” foi um filme que eu não esqueço. O Santa Helena era
mais trabalhado por ali. Era tipo casa de família, ocupava quase a esquina
toda. Em cima, tinham uns apartamentos e é assim até hoje. Nem sei o que
tem naquele prédio mais.

Na década de 1960, houve um incêndio no prédio e uma reforma o recuperou. Em


1974, a casa de exibição mudou de nome para Cinema Olaria. A respeito dessa mudança, os
entrevistados Jorge Curvello e Luiz Antônio classificaram o cinema em relação às suas
qualidades de antes e depois da renomeação.
Para Curvello, o Santa Helena foi um cinema de luxo, mas na fase como Olaria a casa
teria passado para a categoria poeira. Já para Luiz Antônio, sendo Santa Helena ou Olaria, o
cinema sempre funcionou como um equipamento de exibição intermediário em termos de
conforto e programação.
Jorge, morador da Vila da Penha, guarda lembranças do local: “Eu ficava em filas
imensas no Olaria!”. Da mesma forma, a interlocutora Cecília, que ia ao Cinema Santa Helena
na década de 1970, quando ainda morava na região, comenta:

Eu morava do outro lado da linha do trem e passava por cima do trilho para
atravessar, porque era comum. O cinema Santa Helena era muito bom e
depois ele virou cinema Olaria. Ficava na Rua Uranos e eram mais quatro
quarteirões até lá. Eu ia a pé.

Também conversei com o marido de Cecília, Luiz, que confessou nunca ter sido um
grande fã de cinema, ao contrário da mulher, que pouco a pouco foi se tornando uma cinéfila.
142
O casal hoje mora no bairro do Flamengo, na Zona Sul. Os dois se mudaram da Zona da
Leopoldina na década de 1990.
Embora Luiz não tenha ido a muitas sessões do Olaria, pois preferia “jogar bola e
soltar pipa” na infância e na adolescência, ele ainda se recorda do que havia nas vizinhanças
do cinema há quase meio século. Oferece, inclusive, uma pista sobre o que pode ter levado a
casa exibidora a fechar:

No início da década de sessenta, ali era o entreposto de leite e o cinema


ficava na esquina. Os fundos dele, eu acho, ou quase todo ele dava com a
linha do trem. Era um cinema bom e virou Olaria. Depois que eles
reformaram o Olaria, a escada tinha uns degraus, a recepção era grande...
Mas a violência espantou as pessoas. A região ficou degrada, na década de
oitenta já...

Figura 24 - Cinema Olaria, antigo Santa Helena (Fonte: Blog Turma de Olaria)

O local foi inteiramente desativado em 1997 e virou um galpão para depósito de


material do Grupo Severiano Ribeiro. O prédio chegou a ficar à venda por R$ 5 milhões, um
valor que pode ser considerado baixo se comparado aos preços geralmente cobrados pelas
imobiliárias por grandes imóveis da Zona Sul e em alguns bairros da Zona Norte. Não se sabe
se o custo do prédio tinha ligação com o estado da construção ou com a pauperização de seu
entorno, hoje composto por um comércio sem muita pujança e moradias que eram, há pouco
tempo (antes da supervalorização dos imóveis cariocas por causa das expectativas da Copa do
Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016), ocupadas por pessoas pobres ou de classe

143
média baixa.
A despeito de já ter passado de carro pelo bairro de Olaria em ocasiões anteriores ao
início de minha pesquisa, as condições urbanas do bairro me alarmaram quando fiz pela
primeira vez a coleta de dados no meu trabalho de campo, em 2011. À altura, constatei que,
de fato, a área perto do extinto Cinema Olaria não se aproxima em nada da imagem que eu
havia criado na minha mente quando examinei as fotos antigas do cinema ou quando escutava
as histórias que os interlocutores me contavam em entrevistas realizadas por telefone, e-mail
ou, presencialmente, em outros locais.
Nas ruas do entorno do cinema, durante a tarde que lá passei, havia poucos pedestres.
Um fluxo médio de carros e caminhões dava o contexto do vai-e-vem de automóveis, ônibus e
pedestres feito na Rua Leopoldina Rêgo, em frente à estação de trem de Olaria. De lá, é fácil
visualizar a Igreja da Penha que desponta bem no alto. É um marco físico que pode ser
avistado de muitos pontos de toda aquela região, servindo para nos localizarmos: estamos na
Zona da Leopoldina.
Nitidamente, dá para entender que o bairro de Olaria é dividido em dois blocos –
assim como os seus vizinhos imediatos, Ramos e Penha, e os mais distantes, Bonsucesso e
Brás de Pina. Há um pedaço tangenciado pela Rua Leopoldina Rêgo. Há outro pedaço, do
lado contrário da linha do trem, onde o trecho da avenida que margeia a ferrovia recebe o
nome de Travessa Etelvina. Os pedestres podem fazer a migração de uma parte para a outra
do bairro usando uma passarela subterrânea, escura, mas ocupada por alguns camelôs.
O comércio da área mostra-se pouco vigoroso, ao contrário do ambiente de forte veia
comercial que geralmente se impõe perto das estações de trem de bairros circunscritos ao
longo da linha da Central do Brasil, tal como Madureira, por onde passo todos os dias, quando
vou ensinar na universidade em que trabalho. Em Olaria, entretanto, a estação é cercada por
um comércio tipicamente local, “de bairro”: chaveiro, pastelaria, padaria, boteco, barbearia.
Pela aparência, todos parecem existir ali há décadas. Entre eles, nenhum vestígio de
equipamentos culturais. Naquele dia, no ponto de ônibus que há bem na entrada da estação
férrea, havia poucas pessoas à espera da condução. Algumas vans e kombis pararam e seus
trocadores interceptaram os pedestres, gritando, em curtas frases, os nomes de destinos e
trajetos que o veículo faria.
Foi para tentar desfazer-se do prédio do extinto Olaria, marco citadino apagado em
meio ao contexto urbano de um bairro depauperado, que até aproximadamente junho de 2012
o anúncio da venda do cinema encontrava-se nos classificados do site d’O Globo, Zapping
144
Imóveis. Entretanto, na última consulta que fiz à página do jornal na Internet, em 2013, a
oferta não constava mais lá. Sem mencionar a pouca exuberância comercial e cultural da área,
o anúncio descrevia o edifício de três mil metros quadrados em pormenores, chamando a
atenção dos compradores em potencial para as possibilidades de uso do prédio, sem
mencionar, no entanto, a sua oportuna utilização como cinema:

Prédio Inteiro - OLARIA, RIO DE JANEIRO – RJ - Excelente prédio de


3000m² de área construída no terreno de 2.854m² de área, onde funcionou o
cinema Olaria (antigo Santa Helena). Composto por várias lojas, salas e o
cinema com duas frentes de rua, totalmente livre de inquilinos, onde hoje
funciona o centro de manutenção do grupo Severiano Ribeiro.
Documentação livre e desimpedida de ônus. Ideal para construção de culto
religioso, hipermercado, agência de automóveis ou sede de empresa bem
próximo à estação de Olaria. Imóvel constituído de 42 RGIS que
possibilitam o comprador vender separadamente lojas, sobrados, salas,
apartamentos e o lojão onde era o cinema. Obs: Ocupa um quarteirão inteiro
junto à linha do trem e a vários prédios residenciais, alguns inclusive bem
recentes (PRÉDIO INTEIRO..., 2012).

O anúncio também trazia imagens do interior do antigo cinema, nas quais se revelam a
decadência e o abandono do lugar:

Figura 25 - Antigo Olaria (Fonte: Zapping Imóveis, O Globo online, 2012)

145
Figura 26 – Interior do extinto Olaria na época do anúncio de sua venda (Fonte: Zapping Imóveis, O
Globo online, 2012)

Figura 27 - Olaria hoje: fachada descaracterizada (Fonte: Zapping Imóveis, O Globo online, 2012)

Mesmo com a venda do antigo Olaria sendo anunciada em classificados em 2012, desde
aquele mesmo ano já havia rumores de um projeto da Prefeitura do Rio de Janeiro para a
reabertura do espaço como centro cultural e sala de cinema. A Riofilme, órgão da Prefeitura
do Rio de Janeiro voltado para o desenvolvimento da indústria audiovisual carioca, e a
Subsecretaria de Patrimônio Cultural da Secretaria Municipal de Cultura68 previam retomar as

68
Essas entidades vêm fazendo estudos de viabilidade econômica e social sobre a possibilidade de reativação de
outros cinemas abandonados da cidade, já tendo colocado em prática algumas iniciativas. É o exemplo do
Imperator, um cinema que ficou durante muitos anos fechado no Méier, bairro do subúrbio carioca da Central do
Brasil, e que fora reaberto no mês de junho de 2012, como centro cultural, casa de shows e duas salas de cinema.
146
atividades do extinto Olaria69.
O Cinema São Geraldo foi outro equipamento coletivo de lazer do bairro de Olaria.
Ficava localizado do lado oposto do Cinema Olaria, do “outro lado da linha do trem”, como
costumam falar os moradores. A casa de projeção de filmes foi construída em 1949
(GONZAGA, 1996, p. 310), mas, desta vez, o empreendimento não fazia parte do império
Caruso: era um negócio da pequena exibidora Empresa Cinematográfica São Geraldo Ltda,
comandada por um casal de espanhóis que atuava na área. Com apenas 381 poltronas, “o São
Geraldo era mais pequenininho”, conforme afirma D. Aidê, que não chegou a frequentá-lo
muito na década de 1950, embora se recorde da existência da sala.
Luiz César também se lembra das visitas que fazia ao São Geraldo quando era criança:

No São Geraldo, tinha domingueira, com dois filmes... Eram filmes de


mocinhos e índios, e torcíamos pra cavalaria, isso ninguém pode negar: nós
éramos uns incautos. Havia o canastrão Audie Murphy, que foi soldado na
Segunda Guerra e defendeu um tanque de guerra. Virou herói e virou
mocinho Hollywoodiano.

Em 1991, o equipamento encerrou suas atividades de exibição, como cinema de


programação pornô. Écio, que morou em Ramos, mas circulava pelos cinemas de todos os
bairros da Leopoldina, vivenciou essa época decadente, já próxima ao fechamento:

Tinha o São Geraldo, mas sobre esse é melhor nem comentar [risos]. O São
Geraldo era o vulgarmente conhecido como poeirinha. A principal
característica dele era que só passava filme pornográfico, isso na década de
80. Eu sei, porque ele permitia a entrada de menores. Na verdade, não
permitia, na verdade você pagava o ingresso e entrava. Eles não estavam
nem aí! Eu vi filmes tenebrosos ali! Ficava do lado da estação, mas já em
Olaria.

Pelo que tudo indica, o São Geraldo, poeira por vocação, ficou marcado na memória
de algumas pessoas por dois viés: cinema para se assistir a filmes faroeste ou cinema voltado
para o público cativo dos filmes pornográficos. Na conversa com Luiz, marido de Cecília, a
fase pornô distingue o cinema dos demais equipamentos de exibição que ele se lembrava à

69
No Capítulo 4, abordo as atuais questões ligadas aos projetos de reabertura de salas de cinema nos subúrbios
do Rio de Janeiro, no âmbito da Riofilme. Do mesmo modo, trabalho mais detalhadamente as informações sobre
as ações da Rede Cinecarioca que, também sob o escopo desta empresa da Prefeitura do Rio, tem como um dos
focos a recuperação de cinemas fechados. O Cinema Olaria chegou a ser englobado em uma lista provisória de
equipamentos que seriam reabertos, segundo me indicou, em entrevista cedida em 2012, o próprio diretor-
presidente da Riofilme, Sergio Sá Leitão. Entretanto, até a finalização da coleta de dados desta pesquisa, uma das
responsáveis pela área de Planejamento e Gestão da Rede Cinecarioca da Riofilme, Marcia Mansur, me
informou que o Olaria, por enquanto, não está nos planos de reativação de cinemas pelo município.
147
medida que falávamos: “Tinha um poeirinha safado ali, que só passava filme de sacanagem.
Era o São Geraldo!”.
Depois do fim do São Geraldo, houve em seu local uma casa de shows chamada
Kremlin, que não teve sucesso a ponto de se manter aberta ao público por mais tempo. Hoje,
uma parte do prédio está abandonada; na outra parte, funciona uma farmácia, que divide
parede com um botequim muito maltratado. Em umas das visitas que fiz à região, pude
constatar como a antiga construção do São Geraldo está descaracterizada. Em quase nada
lembra que ali já funcionou um cinema.

Figura 28 - São Geraldo já na fase pornô (Fonte: Arquivo O Globo)

Figura 29 - Atual aparência do prédio do São Geraldo, em Olaria (Fonte: Arquivo pessoal)
148
Na década de 1940, outros cinemas surgiram na Zona da Leopoldina, alguns com
pouca expressão, como umas salas de exibição de filmes 16 mm e o Cinema Aleluia, do qual
não se tem muitos subsídios de pesquisa. Este cinema teria funcionado entre 1943 e 1946 na
Rua Cuba, no bairro da Penha (GONZAGA, 1996, p. 307), mais distante da linha do trem,
numa área estritamente residencial. Porém, não foi citado em nenhuma entrevista que fiz com
antigos frequentadores de cinemas leopoldinenses, o que pode sugerir sua fraca relevância
dentro do circuito.
Já ao contrário do Aleluia, o Cinema São Pedro, que é de 1949, teve muita importância
na região. Ele também se situava na Penha, na Estrada de Brás de Pina, número 2, em frente à
linha do trem. Fechou em 1974, sendo, então, demolido para dar lugar a um estacionamento.
Era um empreendimento de Domingos Vassalo Caruso e, como ocorreu com os demais
negócios do comerciante, foi incorporado à Cinemas Unidos S.A, em 1951.

Figura 30 - Cinema São Pedro, provavelmente em 1949. Nota-se a proximidade com a linha do trem
(Fonte: Blog Saudades do Rio).

O São Pedro foi um cinema grande para a época: oferecia ao público 2.530 lugares.
Mesmo com a retirada de 381 poltronas no ano de 1969, a percepção de imponência que o
cinema gerava em seus frequentadores não se perdeu. Glória, que morava em Brás de Pina e
hoje reside em Copacabana, comenta sobre a grandiosidade do São Pedro:

Eu ia também aos cinemas da Penha, no São Pedro. Lembro que ele era um
cinema maior. Tinha mais conforto do que os nossos de Brás de Pina. No
meu imaginário de criança, adolescente, era um cinema que a gente
149
consideraria maior, comparado aos de Brás de Pina. O São Pedro era maior.

Já o aposentado Jorge, que mora na Vila da Penha, lembra:

O São Pedro lá na Penha era também grande. Era um cinema assim com
aquelas pilastras, aquele espaço para você entrar. Parecia que estava
entrando numa acrópole, para encontrar os deuses ali, e tinha um ritual, que
era importante, tá? No início e no fim, você era a todo o momento preparado
e ficava com isso na cabeça: “eu vou ao cinema”. Antes de entrar, já tinha
aquele visual, aquele design: “vou entrar num templo”. Tinha um respeito
para entrar ali. Como se fosse entrar naquelas catedrais. Aí você chegava,
tinha a bilheteria, tinham os cartazes, e o que me seduzia era a questão do
design, porque trabalhei nessa área. Eram bem elaborados os cartazes.
Tinham um grafismo interessante. Até entrar dentro do cinema, tinha tudo
isso. Um amigo meu até falava em adentrar e não “entrar”. Ir entrando e
absorvendo o ambiente... O cheirinho de pipoca... Tinha toda uma questão de
movimento, aqueles cheiros. O cheiro de pipoca eu tenho como lembrança
olfativa, o cheiro do ar condicionando também, porque nas casas não tinha ar
ainda.

Luiz Antônio, que durante a infância morou no IAPI da Penha, guarda os aspectos
glamorosos como a principal imagem do São Pedro:

Era clássico e luxuoso o cinema São Pedro, na Penha, com suas


monumentais colunas bordô formando uma semicircunferência à entrada.
Local de exibição de clássicos a exemplo de “Os Dez Mandamentos”, de
Cecil B. de Mille, com a venda de pulseiras douradas com pingentes
inscritos com os Dez Mandamentos em sua requintada bombonière. Também
exibia nas matinês de domingo desenhos animados e filmes de Tarzan.

Carlos Alberto engrossa os comentários sobre este equipamento: “O São Pedro era de
uma enormidade impressionante, os leões, a entrada, 1.200 lugares, tela grande. Era
cinemascope, dizia-se na época. Os grandes lançamentos neste cinema eram um
acontecimento para a Leopoldina”.
Nessas circunvizinhanças, apareceram ainda cineminhas que contrastavam com os
palácios da exibição locais por conta do menor tamanho de suas instalações. Além disso, por
serem salas de bitola 16mm se diferenciavam dos cinemas do circuito de Caruso, cujos
projetores eram de 35mm. Este tipo de bitola ganhou mais proeminência no circuito exibidor
carioca a partir de 1947, embora a comercialização de filmes e projetores com o formato já
ocorresse pelo mundo desde 1938. Há provas de que existiu um bom número de salas 16mm
no Rio de Janeiro, embora as informações sobre elas sejam escassas.

150
Não se sabe praticamente nada sobre as cerca de 60 salas de 16mm que
funcionaram de forma regular e com fins nitidamente comerciais abertas
entre 1947 e 1959. Os registros não passam em sua maioria de nomes
fugidios, desconhecendo-se muitas vezes a localização exata, o proprietário e
as características do espaço. Um aspecto aqui, outro ali, retirados do fundo
da memória, compõem a tosca imagem que sobreviveu. Os chamados
cineminhas, embora populares e particularmente frequentados na infância
pela geração que anda agora na casa dos 50 anos, não se mostraram fatos
dignos de nota ou lembrança. Uma indicação, talvez, de que não possuíam
qualquer traço mais saliente. (GONZAGA, 1996, p. 223).

Na Zona da Leopoldina, há o registro de cinco cinemas com esse perfil. O Bim-Bam-


Bum, que funcionou entre 1947 e 1954, na Penha, é o único para o qual há dados precisos.
Sabe-se que ele ficava na Rua Costa Rica, número 86, e oferecia ao público 500 poltronas
(GONZAGA, 1996). Luiz Antônio e Carlos Alberto deram pistas sobre as salas 16 mm da
Leopoldina, com destaque para o cineminha Bim-Bam-Bum.
Luiz Antônio relatou que frequentava este cinema:

Quando eu era ainda menino passei a frequentar, primeiramente, por ser


mais barato e próximo de casa, o Bim-Bam-Bum. Era uma cineminha de
fundo de quintal, tela ao ar-livre ou galpão, onde salvo engano, levávamos
cadeiras ou bancos de casa, em sessão única em determinados dias da
semana, no início à noite, onde eram projetadas velhas películas de cinema
mudo e faroestes.

Os outros 16 mm leopoldinenses teriam sido o Cineminha São Joaquim (que seguiu


aberto entre 1948 e 1950, em Brás de Pina) e mais três, cujos insignificantes registros não
falam sobre os anos de fechamento, embora Gonzaga (1996) indique que eles permaneceram
ativos por toda a década de 1950. São eles: Cine Boy e Cine Nice, ambos inaugurados em
1953, na Penha, e Cinema Cinco Irmãos, que fora aberto em 1954, no bairro de Bonsucesso.
Na década de 1950, houve um boom com sete inaugurações de cinemas nos bairros da
Zona da Leopoldina. O Cine São Jorge foi erguido em 1951, em Bonsucesso. Sobre ele não há
muitos dados, mas se conhece que a casa de projeção cinematográfica era do exibidor M.
Gonçalves de Souza (GONZAGA, 1996, p. 312). Já em 1952, nascem o Carmoly, na Penha, o
Cinema Mauá, em Ramos, e o Bonsucesso, no bairro homônimo.
O Carmoly durou até 1978. Foi um empreendimento pequeno de apenas 276 lugares,
gerido pelo consórcio formado por alguns comerciantes, entre eles, Lívio Bruni (GONZAGA,
1996). À exceção dos cinemas São Jorge e Carmoly, o Cinema Mauá teve, até fechar em
1974, grande proeminência na área, muito pelo fato de ter sido um dos únicos cinemas das

151
redondezas dotado de ar refrigerado.
Os relatos de alguns entrevistados, mesmo aqueles que não moraram no subúrbio,
reconhecem a estima que as pessoas alimentavam por este cinema da Zona da Leopoldina.
Eles dizem que o interior do Mauá se diferenciava dos demais espaços internos dos cinemas
da região porque a sala de exibição trazia no teto decorações bem peculiares, marcas
inesquecíveis do local, que hoje é uma agência da Caixa Econômica Federal.
D. Aidê, moradora de Olaria, comenta:

O Mauá tinha poltronas e o Rosário ainda era cadeira de madeira. O Mauá


eles achavam que era o mais luxuoso e o melhor. Tinham umas nuvens de
gesso, luxuosas, no teto. Eu tinha até medo. Da primeira vez que eu fui lá,
essas nuvens eram azuis, tinham umas luzinhas e, quando acendiam, o teto
ficava igual ao céu. Mas era bruto, não era uma coisa assim... Dava a
impressão de que iam cair. Era formado em gesso e por cima era azul e
tinham luzes que acendiam. Eu achava que aquilo ia despencar um dia.
Podia nem ser de gesso, mas a aparência era de gesso. Foi o último cinema
que eu vi construir aqui na região.

Já o cinéfilo Lahire, morador de Copacabana, e que nunca residiu no subúrbio, fala:

Eu lembro do Cine Mauá da época em que eu trabalhava na Light. Ficava em


Ramos. Eu nunca fui lá assistir a filmes, mas um dia um técnico da Light me
levou para conhecer o cinema porque ele sabia que eu gostava. Pedimos
licença, entramos e não estava na hora de começar a sessão, mas já tinha
gente lá dentro arrumando o cinema. Então, eles me levaram na sala de
projeção, que era uma sala imensa, e me lembro do teto, que era todo de
nuvens com estrelas. E o porteiro me disse: “se você chegasse aqui de noite,
daria para ver as luzes”. Tinha a cortina, luz, e tal, parecia que você estava
vendo o céu. Eram tintas especiais que faziam com que parecesse o céu de
verdade, ficava fluorescente. Era tão bonito... O Cine Mauá virou Caixa
Econômica.

Do mesmo modo, Luiz Antônio comenta:

O Mauá era a nossa mais luxuosa sala de exibições da região: acarpetado,


poltronas acolchoadas, ar-refrigerado intenso... Encantava-nos com seu teto
imitando nuvens em alto relevo, salpicado de estrelas, que no início das
sessões assumiam cores variadas, com suas estrelinhas piscando.

A voz de Jorge Curvello reforça, igualmente, a presença das nuvens do Mauá. Ademais,
esse entrevistado cita o Mauá como o mais caro entre todos os cinemas da Leopoldina, local
onde os homens só podiam entrar de calça comprida até a década de 1960, quando os hábitos,

152
segundo ele, tornaram-se mais despojados.

Este [Mauá] veio bem depois. Chegou com inovações mais avançadas, era
mais amplo, estofado, com tapete e sua marca registrada eram aquelas
nuvens de matéria leve, presas no teto estrelado que ao começo da sessão
iam mudando de dia para noite, mostrando as estrelas e dando coloração de
sol poente nas nuvens. Não me recordo da música que tocava nele para a
mudança das cores e quase todos cinemas tocavam música antes de começar
a sessão. Mesmo assim, nunca chegou a ser o preferido dos moradores e era
o filme que levava a ele a frequência. O ingresso sempre foi mais caro que
os outros e nele somente entrava com calça comprida até a modernização
dos anos 60 do meio para diante. Em todos os cinemas se notava
comportamento adequado a cada um, sem vandalismo ou abuso. O palavrão
era coisa feia e a decência do ser humano era muito exigida, fosse adulto ou
criança. Dentro do cinema se aturava beijo na boca e braço passado pelo
ombro, mas avanços somente bem escondido ou a lanterninha funcionava em
cima. Tempos que não voltam mais... (Jorge Curvello).

As nuvens do Mauá despertavam o encanto dos espectadores que habitavam uma


cidade, cujos cinemas, àquela altura, já tinham passado (ou ainda passavam) ao menos por
quatro perfis, em algum grau associados: os cine-teatros; os “elefantes brancos” (GONZAGA,
1996, p.127) da primeira era da Cinelândia (anos 20); os movie palaces simples e enormes,
como o Cinema Olinda, da Tijuca; os movie palaces luxuosos, como o Cinema Carioca,
também na Tijuca, e o São Luiz, no Largo do Machado; e o padrão Metro, com as suas
modernidades e o foco no conforto. O fato de um cinema da Zona da Leopoldina ter em seu
interior ornamentos e jogos de luzes especiais o colocava no mesmo patamar de outros
exemplos de casas do circuito de salas exibidoras cariocas, aderindo, assim, ao conjunto geral
do que fora experimentado na cidade em termos de arquitetura e decoração de cinemas.
O Mauá, segundo dados de Gonzaga (1996), foi um empreendimento dos sócios Júlio e
Luciano Ferrez, que também foram donos do cinema Paratodos, no Méier, bairro do subúrbio
da Central do Brasil. Esse verdadeiro cenário construído no interior do Mauá pela ação desses
empresários fez com que o cinema se destacasse “por ser o mais significativo exemplar de
cinema atmosférico de todo o circuito carioca. O teto simulava o céu com nuvens em
profundidade” (Ibidem, p. 186).
Guardadas as proporções tecnológicas, tudo isso aconteceu muito antes da existência de
recursos de imersão visual e interação direta com nosso sistema sensorial oferecidos em salas
de cinema 4D e IMAX por exemplo, isto é, tecnologias que hoje compõem as recentíssimas
formas de assistir a filmes. Tais cinemas investem mais nos efeitos que despertam o lado
sensorial mais breve e raso dos espectadores, ligado aos sentidos básicos do corpo humano,
153
do que, propriamente, na exibição no filme. No Mauá, que se inseria ainda em uma fase de
nulos avanços do “mundo digital”, mesmo com a ambientação do espaço de forma a torná-lo
mais “sensório”, o filme e os encontros proporcionados por ele ainda eram, frente às
comparações com os dias atuais, a razão de ser do equipamento coletivo.
É pertinente frisar que o Mauá, com todas as suas peculiaridades, pode ter ido na
contracorrente do que era comumente praticado naqueles tempos pelo mercado exibidor em
relação aos perfis de salas. Na década de 1950, as realidades fundiária e imobiliária do Rio de
Janeiro modificaram. O aumento dos preços dos pontos nobres e dos terrenos vazios
localizados em áreas interessantes (para quaisquer tipos de negócios), assim como o
aparecimento paulatino de arranha-céus e a cada vez mais intensa orientação da economia (e
da cidade) para o setor de serviços fizeram com que os exibidores procurassem alternativas
para sediarem seus empreendimentos. Quase não se investia mais em abertura de cinemas em
prédios erguidos com a finalidade de, unicamente, serem ocupados pelo cinema. Avanços e
mudanças estruturais foram sentidas e seguidas até mesmo pela família Caruso, que também
chegou a agir em demais zonas da cidade, além do subúrbio da Leopoldina.

Tanto os prédios quanto os cinemas, em sua maioria, adotaram a


contraditória estética modernista, tornada moda por conta do advento da
nova capital federal. O monótono e rígido racionalismo dos traços de
fachada, em que predominavam as superfícies lisas e o rebatimento simétrico
das linhas, supostamente uma invenção niveladora das diferenças (e por
consequência das diversas classes), redundou em milhares de unidades de
fachadas chapadas e pouca variação decorativa. O avanço da tecnologia e
dos materiais empregados nas construções acabaria contribuindo para a
adequação das salas ao novo espírito. Neste sentido, o Caruso-Copacabana,
inaugurado em fevereiro de 1954, pode ser considerado o modelo do período
(...). Este padrão, um decalque despojado do anterior, aplicou-se inicialmente
apenas à zona sul. Nos subúrbios ainda se construíam palácios
cinematográficos em grande estilo (...) (GONZAGA, 1996, p. 205).

No mesmo período, em 1953, apareceu no cenário da Zona da Leopoldina o Cine


Central, localizado na Avenida Lobo Júnior, na Penha. Não há dados muito concretos, mas ele
foi um cinema pequeno, com 200 lugares. Na obra de Alice Gonzaga (1996), há a indicação
de que a casa foi de Armando Nesse, empresário do setor, mas logo se integrou ao circuito
que Lívio Bruni fundou em 1956: a Cine Distribuidora Lívio Bruni S.A.
Tal como Domingos Vassalo Caruso, Luiz Severiano Ribeiro e os irmãos Ferrez, Lívio
Bruni consta na lista dos importantes exibidores da história do cinema carioca. Agiu nos
subúrbios do Rio de Janeiro e chegou a ser sócio de Nelson Caruso, então herdeiro de
154
Domingos Vassalo Caruso e Luiz Vassalo Caruso70, irmãos pioneiros no mercado exibidor da
Leopoldina, falecidos na década de 1950 (GONZAGA, 1996). Em uma das páginas do
Correio da Manhã, em 1938, assim como ainda aparece em demais publicações71, vê-se a
proeminência dos nomes dos Caruso, família de exibidores digna de notas na imprensa até por
ocasião de suas comemorações de aniversário.

Figura 31 – Família Caruso e suas aparições nos jornais (Fonte: Correio da Manhã, 1938, p.6).

Bruni e os Caruso eram acionistas no consórcio Cinemas Unidos S.A., mas os dados
mencionam que por volta de 1956 algumas negociações tornaram Bruni sócio majoritário do
grupo que possuía cinemas por todo o Rio de Janeiro. Neste mesmo ano, o empresário criou a
Cine Distribuidora Lívio Bruni S.A. Todavia, há poucas informações sobre quem eram todas
as empresas a ele associadas e, do mesmo modo, escassa documentação acerca das fontes do
capital que ele injetava para realizar as suas transações e expandir o seu império. Os acordos
comerciais de Bruni com outros proprietários modificavam-se com frequência, gerando um
emaranhado de associações, arrendamentos e sociedades72.

70
A história de Nelson Caruso, hoje já falecido, foi contada muito brevemente por sua filha, Lilian Caruso, uma
das pessoas entrevistadas para este trabalho.
71
Sobre a exposição da família Caruso nos jornais, o Capítulo 2 faz um apanhado de algumas publicações.
72
As fontes que mais detalham esses laços atados ora entre os Caruso e Bruni, ora entre os Caruso e Severiano
Ribeiro, ora entre Bruni e outros negociantes são o livro de Alice Gonzaga (1996), o Correio da Manhã e a
Revista Cinearte, além do Diário Oficial. Não cabe no escopo deste trabalho investigar e analisar
pormenorizadamente a constituição de tais sociedades, mas damos pistas ao longo do texto sobre o nome dos
donos de cada cinema e seus possíveis acionistas. Nenhum entrevistado, com exceção de Lilian Caruso e João
Luiz Vieira, deu ênfase aos aspectos de ordem empresarial dos cinemas da Leopoldina.

155
A falta de pistas concretas em relação às práticas do mercado exibidor, em suas
parecerias, compras e vendas – dos empresários exibidores entre si ou deles com o setor da
distribuição – não é, de fato, uma novidade para as pesquisas que se detêm nesse campo de
investigação. Também não é uma prerrogativa dos comércios de Bruni, nem dos Caruso. Em
1933, uma coluna da Revista Cinearte mostra, logo após uma publicação sobre Domingos
Vassalo Caruso, uma nota maliciosa, que sugere a fama deste setor da indústria
cinematográfica no Rio de Janeiro: a de lidar por intermédio de ações com tendência à
obscuridade:

Figura 32 - Notas que citam Caruso e Severiano Ribeiro (Fonte: Cinearte, 1933, p. 5)

Malgrado a incipiência de dados sobre especificamente as sociedades entre os


exibidores e seus consórcios atuantes na Zona da Leopoldina, sabe-se, ao menos, que também
por lá Lívio Bruni foi um nome forte no mercado. O peso de sua figura em toda a cidade é
fato conhecido; conseguia estabelecer vínculos com distribuidoras e abria concorrência aos
monopólios de demais empresas, como a Severiano Ribeiro.

(...) muitas vezes saiu da condição de gerenciador para a de co-arrendatário


ou arrendatário. Facilitavam este tipo de ação as dificuldades dos novos
pequenos exibidores suburbanos, que, após grandes esforços, eram obrigados
a repassar o que haviam construído. Por exemplo, Armando Nese montou o
Cine Carmoly, localizado na Penha, em 1952. Logo o vendeu para Mário
Diniz. Investiu em seguida no recém-construído Mello-Penha, deixando-o
156
mais adiante. Reabriu o Central (Penha), largou-o e retornou ao Carmoly por
volta de 1957. Nas circunstancias cada vez mais adversas do mercado,
muitos desses empresários acabaram negociando com Lívio Bruni, como fez
Nesse, dando origem ao seu autoproclamado “gigantesco “circuito”. O
crescimento da cadeia certamente deu à C.D.L.B [Cine Distribuidora Lívio
Bruni S.A] cacife suficiente para impor às distribuidoras americanas e não
americanas as mesmas regras utilizadas por Severiano Ribeiro no trato com
Warnere & cia. (GONZAGA, 1996, p. 218)

Nesse tempo quando o mercado efervescia com a miríade de acionistas no comando das
salas exibidoras suburbanas, o Cinema Leopoldina e o Cine Mello-Penha foram inaugurados
respectivamente em 1954 e 1956. O Cinema Leopoldina, uma propriedade da empresa
Cinema Lux S.A, foi um típico cinema poeira. Ocupava uma área grande da Rua Ibapina, via
que margeia a linha do trem entre Penha e Olaria. Tinha uma estrutura farta em poltronas, que
somavam 1901 lugares. Simples e despojado, contrastava em muitos aspectos com
equipamentos mais elegantes da região, como o Rosário, por exemplo. Fechou em 1975 e no
local existe atualmente uma Igreja Nova Vida.
O Leopoldina era muito frequentado por moradores do conjunto habitacional do IAPI da
Penha; entre essas pessoas, esteve Luiz Antônio, que ainda guarda os detalhes de suas
experiências no local:

Aí então íamos ao gigante Leopoldina, hoje transformado em caça-níqueis


de uma dessas igrejas pentecostais. Cinema de boa programação, mas
desconfortável, com suas poltronas de madeira e seu extremo calor por conta
de sua cobertura de amianto e sem forro. No Leopoldina, ainda não tendo 14
anos e, portanto, proibido oficialmente, eu assisti à primeira sessão de
cinema noturna, acompanhando minha irmã e seu namorado, tendo o
impacto visual, de enredo e tudo mais, assistindo “Il Gattopardo” de Luchino
Visconti, com Burt Lancaster, Claudia Cardinali, Alain Delon e outros
monstros sagrados. Inesquecível! (Luiz Antônio).

As vivências de Cecília em relação ao Leopoldina também ficaram marcadas pela


espectação de filmes históricos da cinematografia mundial. Além do mais, tal como ocorrera
com Luiz Antônio, as memórias da entrevistada ligadas ao Cinema Leopoldina envolvem a
lembrança da companhia de familiares nas sessões:

O Leopoldina era meio rosa... No Cinema Leopoldina, na Rua Uranos, que


era um cinema grande, todos os anos eu ia assistir “Paixão de Cristo” no
cinema. Eu ia com a minha irmã, minha tia e meu primo. Eu vi “A noviça
rebelde” no Cinema Leopoldina... O Cinema Leopoldina era na Rua Uranos
e eu morava do outro lado da linha do trem... Passava por cima do trilho,
então. (Cecília).
157
Já o Cine Mello, que ficou mais conhecido pelo público como Mello-Penha, era um
empreendimento dos sócios Álvaro da Costa Mello, Paulo da Silva e Armando Nesse e, como
outros cinemas da área, integrou também o circuito de Lívio Bruni. O cinema seguiu em
atividade até 1972, com 1.544 assentos. Localizava-se na Estrada Vicente de Carvalho,
número 1.385, já na Penha Circular (GONZAGA, 1996) e mais distante da linha do trem. O
espaço virou um supermercado, que estagnou e também fechou.
Jorge, morador da Penha, traz na memória fatos de sua infância relacionados ao Mello
Penha:

Havia o Mello aqui na Penha, que era grande, e tinha o Carmoly, que era um
poeirinha lá do outro lado, aqui na Praça do Carmo. Uma das passagens que
eu me lembro do Mello é que eu ia com os meus pais. Quando você ia ao
cinema era um evento, porque as pessoas se vestiam bem, era como ir ao
teatro, tinha um ritual de ir a um bom cinema. Eu ia com meu pai, minha
mãe e veio um cara com bicicleta e me atropelou. Deu um problema, uma
confusão... Naquele tempo não é como agora. E aí fomos ao cinema... Ir ao
cinema era uma coisa... O cinema Mello fazia as pessoas gostarem: era
muito grande, exteriormente era enorme, arquitetura, fachada. Todos eles
eram templo. O cinema era suntuoso.

Sobre o Mello-Penha, Luiz Antônio comentou que o cinema fez parte de um cenário de
boom de inaugurações do setor imobiliário, então associado ao mercado de exibição
cinematográfica. Na opinião de Luiz Antônio, o binômio empresarial agiu com força “nesse
outro bairro de classe média alta da Leopoldina”, qualificação que usou durante a entrevista
quando mencionou o bairro da Penha-circular, o qual, conforme vimos no Capítulo 1,
configura um bairro à parte da Penha, embora próximo dela.
O Paranapanema foi o último cinema a ser aberto na década de 1950 naquelas
redondezas. Surgiu mais precisamente em 1958, em Olaria, e segundo indica Gonzaga (1996,
p. 317), ele operou no circuito exibidor leopoldinense por apenas dois anos. Nenhum
interlocutor o citou em nossas conversas.
Pelo que se pode notar nas falas dos entrevistados, todos esses cinemas dos anos 50, em
graus variados, mostraram proeminência no espaço urbano dos bairros da Zona da
Leopoldina, região que se modernizava a passos comedidos em relação ao restante da cidade.
Vale lembrar dois pontos notáveis ligados ao momento histórico dessa época: a Avenida
Brasil acabara de ser inaugurada naquele instante, em 1946; trechos novos da autovia iam
aparecendo ao longo dos anos seguintes. Margeando alguns bairros da Zona da Leopoldina, a

158
rodovia pode ter alterado as formas de acesso e saída dos arrabaldes, até então alcançados
com mais ocorrência por trem e bondes. A Avenida Brasil introduz de vez a mobilidade
rodoviária naquelas redondezas.
O segundo apontamento pertinente é o fato do Rio de Janeiro viver, na década de 1950,
uma etapa de efervescência da então capital federal, imersa em pleno contexto de mudanças
fundamentais, como os planos de avanço de JK e a chegada da TV ao Brasil. Tudo isso
influenciou, mesmo indiretamente, os tipos de organização espacial da Zona da Leopoldina.
Outras apostas urbanas, outras soluções citadinas; eixo reorientado, de onde não se exclui a
relevância e o lugar que o lazer cinematográfico passaria a ocupar na região.
Na esteira de mudanças, a fase seguinte, anos 60, foi a última época para qual há
registros de abertura de salas de cinema na área da Leopoldina73. Foram erguidos apenas mais
três equipamentos de exibição cinematográfica: Mello Bonsucesso, em 1960, Cine Rio
Palace, em 1962, também em Bonsucesso, e o brevíssimo Aymoré, fundado em 1967 e
fechado em 1968, na Penha.
A respeito do Mello Bonsucesso, Luiz Antônio aborda algumas questões:

Inaugurado na febre imobiliária dos anos 60, do maior grupo empreendedor


da região, que inundou Bonsucesso com seus confortáveis prédios de
apartamentos e lojas, quase convertendo a região numa Tijuca. O Mello de
Bonsucesso tinha sala de porte médio, confortável, com programação de
rotina.

O Mello Bonsucesso findou suas atividades em 1972, virando um supermercado; já o


Cine Rio Palace, da firma Esplendor Filmes, tornou-se uma boate em 1972, mas hoje no
espaço há um conjunto de lojas, sem muita pujança, à exceção do tímido comércio de bairro
que lá subsiste.
O movimento em torno da abertura do Cine Rio Palace é um caso explícito de
sociedade entre o setor imobiliário, voltado para a construção e venda de salas comerciais, e o
setor exibidor. Em uma antiga edição do Jornal do Brasil, há um anúncio da construção do
empreendimento que na época, depois de ser inaugurado, abrigaria o cinema. O perfil
arquitetônico da fachada de cinema lá proposto não foi de todo mantido quando o Rio Palace
fora de fato inaugurado. Contudo, a publicidade, que queria vender salas no Centro

73
Depois disso, o mercado exibidor da Zona da Leopoldina estagnou e jamais um cinema de rua fora inaugurado
por lá, com exceção do Cinecarioca Nova Brasília, aberto em 2011, no Morro do Alemão. Sobre ele, falarei no
Capítulo 4. Os cinemas dos shopping centers que atendem os subúrbios da Leopoldina, mas não necessariamente
se localizam no coração dos bairros da área.

159
Empresarial de Ramos, já dava pistas do que viria a ser o Cine Rio Palace. O anúncio não dá
apenas um foco especial à presença, ilustre, do futuro cinema (o que talvez seria, para os
capitalistas, uma garantia certa de transeuntes e potenciais consumidores para suas lojas): ele
prevê, inclusive, a feição do equipamento exibidor na figura que estampa. O ar de
modernidade das figuras (carro à porta, roupas cosmopolitas dos personagens, o detalhe da
tecnologia Cinemascope no letreiro do cinema etc) são aspectos a serem registrados.

Figura 33 - Anúncio de empreendimento, três anos antes da inauguração do Cine Rio Palace (Fonte:
Jornal do Brasil, 1959).
160
A presença do Cine Rio Palace como uma das atrações do Centro Comercial de Ramos
realmente se efetivou três anos depois da publicação desse anúncio, em 1962. Em uma das
conversas que tive com o pesquisador João Luiz Vieira, foi levantada a hipótese de que este
cinema, pensado para ser um equipamento de lazer inserido em um complexo comercial,
antecipou, em algum grau, em plena Zona da Leopoldina, um fenômeno que o mercado
exibidor e a cidade do Rio de Janeiro experimentariam somente décadas mais tarde: as salas
de cinema de galeria. Anteriores aos cinemas de shopping center, os cinemas de galeria, que
aparecem no cenário carioca a partir da década de 1960, foram uma solução encontrada pelos
empresários para obterem maior rentabilidade na equação entre metro quadrado/ número de
filmes em cartaz/ capacidade de lotação ou, até mesmo, para driblarem a falência total de seus
negócios.
Eram salas menores que ocupavam geralmente o térreo ou o subsolo de galerias, sobre
as quais, por sua vez, havia prédios residenciais ou comercial (FERRAZ,T., 2012;
GONZAGA, 1996). Não chegando a se classificar como um cinema de galeria, o Cine Rio
Palace esteve na vanguarda de um perfil de negócio que viria a ser implantado com mais força
em outros bairros, como Tijuca, Copacabana e Botafogo, por exemplo.
Cecília se recorda do Rio Palace e de duas características marcantes deste cinema que
teve aproximadamente 2.100 poltronas: a localização e o tamanho da tela que a deixava
impressionada.

Tinha um cinema muito bom que eu ia, era o Cinema Rio Palace que ficava
dentro de uma galeria, Rua Cardoso de Moraes, 400. O Rio Palace era a
maior tela da América Latina. Está fechado... Eu ia muito na década de
1970... A tela do Rio Palace era absurda de tão grande.

No diálogo que tive com o marido de Cecília, Luiz, fiquei sabendo que ele também
chegou a ir neste cinema quando jovem. A partir da experiência deste entrevistado, podemos
inferir que mesmo com um toque de modernidade, o cinema Rio Palace, na figura de seus
funcionários, mantinha com a comunidade do entorno, pelo menos no caso de Luiz, uma
relação própria dos cinemas de bairro menos cosmopolitas, nos quais gerentes e bilheteiros
tinham o poder de deixar algum conhecido entrar sem pagar a entrada. Luiz também
menciona o Rio Palace colocando-o em meio às lembranças de outros cinemas do circuito da
Leopoldina.

No Rio Palace, o Seu Cruz dava ingresso. Eu soltava pipa ao lado do cinema
161
e os filmes, alguns, eram em preto e branco. Na Penha, os cinemas eram
referência. A gente dizia: “vou ali ao lado do cinema”... O Cine Leopoldina
era meio rosa, o Rosário era meio art déco... Só o Rio Palace que ficava
dentro de galeria.

Já o relato de Luiz Antônio, reforça rapidamente um ponto: a curta vida do Rio Palace.
Mesmo como um cinema inaugurado para ser o equipamento de lazer de um centro comercial,
sobreviveu por menos de dez anos. O que sobressai daí é justamente o insucesso de ambos:
cinema e complexo de lojas. Luiz Antônio, assim, comenta: “Havia o gigante, luxuoso e
efêmero Rio Palace, numa galeria de lojas, equivalentes aos atuais shopping centers,
construída entre Ramos e Bonsucesso, e que não vingou, nem a galeria nem o cinema.”.
Dos cinemas de rua abertos na Zona da Leopoldina entre as décadas de 1910 e 1960,
poucos seguiram em atividade até os anos 80 ou 90. Apenas o Cine São Geraldo, o Cinema
Ramos (antigo Rosário) e o Cinema Olaria (antigo Santa Helena) duraram mais tempo, o que
indica um arrefecimento absoluto do papel das salas de rua na região.
Segundo as localizações que pude checar, já que houve mudança na numeração de
algumas ruas, os cinemas da Zona da Leopoldina eram, na maioria das vezes, estabelecidos
bem em frente às estações de trem ou em extensões imediatas a ela, podendo ser avistados por
quem estivesse dentro da estação ferroviária. Não há dados precisos que expliquem a relação
intrínseca entre o cinema e a estação férrea; a proximidade não se estabeleceu, no caso da
Leopoldina, por conta de planejamentos estratégicos, mas porque houve arranjos urbanos que
assim operaram essa arrumação entre aparatos territoriais e equipamentos de forma específica.
Como destaca Lins (2012), é ao longo desses trechos imediatamente próximos à estrada de
ferro e às estações que comumente se desenvolvem os núcleos de comércio e serviços dos
bairros ferroviários.
Nas regiões da Zona da Leopoldina74 não parece ter sido diferente. A vivacidade do
comércio e dos equipamentos de uso coletivo deu-se no entorno das estações do trem,
enquanto os domicílios se espalharam para “dentro” dos bairros. Contudo, não se pode deixar
de lado a presença do bonde em meio a esse ambiente de comércios, residências e mobilidade.
O bonde também costurou os bairros, proporcionando determinadas ocupações, à sua
maneira, conforme vimos no Capítulo 1.
Jacobs e Lins (2010) apontam que nas regiões em torno de vias férreas tende a
74
Um ponto que diferencia a região da Leopoldina dos bairros cortados pela linha da Central do Brasil é
justamente a integração dos comércios com as partes interiores dos bairros. Na Zona da Central, muitos bairros
sempre tiveram núcleos comerciais e culturais também em áreas que se distanciavam, em alguma medida, da
estação de trem.
162
predominar um padrão de ocupação espacial marcado pela segregação. Divididos em dois
blocos territoriais, isto é, os dois lados apartados pela linha férrea, os bairros ferroviários
carregariam o destino de abrigarem “vias de fronteiras” (JACOBS apud LINS, 2010, p.151)
ou “fronteiras de vácuo” (LINS, 2010, p.153). Segundo os autores, tratar-se-ia de locais onde
a existência de muros, bordas de segregação ou barreiras geralmente provocam uma difícil
interação espacial.
No caso dos bairros da Leopoldina, o cinema pode ter contribuído, em algum grau,
para superar a separação entre os "lados" dos bairros — na medida em que esse processo
parece ter ocorrido também nessa região que cresceu, caracteristicamente, em torno da
ferrovia — funcionando como um fator de integração e comunicação.
Acreditamos que os cinemas de estação — como denominamos aqui esses cinemas
que se localizavam bem em frente ou nas proximidades imediatas às estações de trem —
ajudaram na elaboração de laços entre os moradores e transeuntes por darem sentido às ruas
fronteiriças.
Um texto escrito por Henrique Dias da Cruz, sob a encomenda do Departamento de
Imprensa e Propaganda getulista, em 1942, já ressaltava a importância da presença da sala de
cinema nesses lugares.

Depois do futebol, o cinema é a diversão predileta do carioca, tanto seja ela


da cidade ou dos subúrbios. E estes já possuem salas de projeção magníficas,
instaladas com todo o conforto, com luxo, mesmo. Rara a localidade destas
paragens que não tenha um cinema. Na zona da Leopoldina há um, pelo
menos, em cada estação. Em Olaria, agora, se levantou um muito luxuoso,
embora aí já existissem dois, como acontece em Ramos (CRUZ, 1942, p.
63).

Os estudos de Alice Gonzaga também ressaltam que:

(...) a famosa Leopoldina Railway (...) transformou-se com o tempo em uma


espécie de linha auxiliar da Central. Com traçado à direita desta, próximo do
contorno da baía, em direção à serra do Mar, engendrou núcleos
populacionais menos exuberantes, porém de identidade mais arraigada. A
chamada zona da Leopoldina e seus subúrbios, entre eles, destacadamente,
Bonsucesso, Olaria e Penha, seria um importante espaço para uma estreita
ligação entre cinema e comunidade (GONZAGA, 1996, p. 49).

A partir das conversas com antigos moradores da Zona da Leopoldina e


frequentadores dos cinemas da área, pude ver que o fato de haver, por exemplo, um cinema
como o Rosário em certo pedaço do bairro de Ramos dava motivos para pessoas do lado
163
oposto atravessarem a estação.
Écio, que ia aos cinemas de estação em sua juventude, já na década de 1980, comenta:

Lá perto de casa, eu saía pela Rua Paranhos, virava à direita, seguia ladeando
o muro, até a Rua Delfim Carlos e aí seguia e atravessava a Paranapanema e
ia até a Rua Uranos, onde tinha o Cine Olaria, que parecia um palácio, um
prédio espetacular. Esse cinema era tão importante! Tinha outro pertinho que
era o Rosário. O Rosário eu lembro que foi o cinema onde eu assisti ET. Vi
o ET no Rosário... O Rosário era do outro lado da estação de trem, do outro
lado de onde eu morava, então o ônibus nem fazia esse circuito, a gente
andava, atravessava a estação e ia andando para ir ao Rosário. O Olaria, aí
não, o Olaria era do lado onde eu morava.

Glória, que passou infância e adolescência em Brás de Pina, faz coro a esta percepção:

Na Leopoldina, do lado direito do trem, vindo do Centro para o subúrbio, era


o lado mais residencial, onde a gente tinha as brincadeiras de criança, de
brincar na rua, de andar de bicicleta, de soltar pipa, jogar bola de gude. Mas
ir ao cinema estava mais do outro lado da linha de trem, então era realmente
sair com esta intenção, atravessar com esta intenção, porque o jovem não
tinha muito o que fazer do outro lado, os pais até tinham: ir a uma loja de
ferragens, fazer uma compra, uma coisa assim, que até tinha como fazer do
lado residencial, mas menos. O comércio estava muito perto dos cinemas,
tinham lojas de ferragem, de construção, lojas de bairro. Fechavam domingo
as lojas.

As itinerâncias, os destinos e as apropriações destas partes suburbanas da cidade


atravessadas pelo trem contaram com um elemento agregador: os prédios dos cinemas.
Acredito que eles tiveram, portanto, um papel importante na ocupação dos espaços, nos
trajetos desempenhados e até na formação da topografia das áreas marcadas, em alguma
medida, pela divisão que a via férrea pode provocar.
Contra o esvaziamento urbano, esses “marcos referenciais” (LYNCH, 1997)
participaram da criação de espaços de sociabilidade que, mesmo sendo reconhecidamente
familiares em alguns momentos, já que se tratava de cinemas de bairro e não de cinemas
centrais (como os da Cinelândia, no Centro do Rio), possibilitavam a circulação das pessoas,
potencializando o contato com a alteridade, o convívio entre estranhos ou moradores.
Jorge, morador da Vila da Penha, observa:

A gente se falava, era outra época. Fiquei na fila do Ramos diversas vezes
também, lá do outro lado já. Eu ia a todos, todos... O apelo do filme era mais
forte, compreende? Não tinha, vamos supor, assim, bairrismo. O que
prevalecia era o filme. Se o filme era bom, a pessoa saía e andava por ali,
164
encontrava o cinema para ver o filme.

Rosário/Ramos, Leopoldina, Santa Helena/Olaria, São Pedro, entre outros, como


cinemas de estação da Leopoldina, colaboravam para a presença sempre renovada de pessoas
na rua, que podiam ir de um lado da estação para outro – o que provocava encontros e
produzia cenários de heterogeneidade. Tudo isso com a referência de um filme ou do lazer
cinematográfico por si mesmo como motivador de encontros com outras pessoas, de
passagens e pequenas viagens dentro do próprio lugar.
Em muitos relatos de entrevistados o que observei foi o destaque dado à forma de
acesso aos cinemas de estação. A maioria comentou que ia aos cinemas a pé, fazendo seus
trajetos cortando os bairros sem o uso dos transportes públicos e, já em fase de motorização
da cidade, do carro. Apesar dos cinemas estarem em frente às estações férreas ou bem perto
delas, ninguém comentou ter ido a algum daqueles cinemas através do trem. Em alguns casos,
até dizem que costumavam pegar o bonde, mas a escolha pela mobilidade via pedestrianismo
é quase unânime entre eles. Entretanto, o cinema e a estação de trem funcionavam como
marcos referenciais um para o outro.
A entrevistada Cecília dá pistas sobre a proximidade dos equipamentos de exibição
entre si, que, embora fosse de alguns quilômetros, não impossibilitava a escala do pedestre:
“Numa distância de aproximadamente 4 km, tinha São Pedro, Leopoldina, São Geraldo, Santa
Helena, Rio Palace, Rosário. Esse circuito eu fazia todo a pé”.
Luiz também ressalta algo nesse sentido:

As pessoas que iam ao cinema, por exemplo, no Centro da cidade, na Tijuca,


porque lá tinha um comercio para ver e tal, era de ônibus... Mais do que de
trem. Não usavam o trem. As pessoas que usavam cinema ali na região da
Leopoldina eram as pessoas que moravam ali mesmo... Ninguém ia de trem
para o cinema. Tinha até uma rede de ônibus que era Bonsucesso-Brás de
Pina que o pessoal usava bem.

O relato de Jorge Moreira é curioso, pois revela que nos circuitos produzidos pelas
pessoas de rua em rua nos bairros da Leopoldina, tudo com a motivação dos filmes em cartaz,
desenhava-se também a partir de um modo específico do suburbano viver a sua região e a
cidade em geral:

O cara que mora na Zona Sul é muito limitado ao quadrado dele, ao


quarteirão onde ele mora. Conhece Ipanema, mais um pouco de Copacabana,
aí conhece Nova York, Londres... Mas o suburbano, não. Ele sempre foi
165
mais atirado. É como um imigrante dentro de sua própria cidade. Circula
mais. Suburbano saía do subúrbio para assistir filme não apenas aqui na
região, mas para ver filmes na Zona Sul, no Centro, não ficava preso. Eu ia a
filme em Caxias, em Nova Iguaçu, numa boa. Não tinha esse bairrismo. Aí
era, sei lá, “Marcelino, pão e vinho”, e onde estava passando? Em Olaria?
Ok. Vou lá. É em Madureira? Ok, vou lá. Pegava bonde, lotação, trem... A
locomoção era muito pela vontade de ver o filme. Isso é uma característica
das pessoas do subúrbio.

Os fechamentos dos equipamentos de lazer cinematográfico na Leopoldina vieram


acompanhados do sucateamento da ferrovia e ainda do empobrecimento da região.
Diferentemente do que se passou com o mercado exibidor no restante da cidade – que tentou
resistir dividindo os grandes palácios cinematográficos em duas ou três salas ou abrindo salas
de galeria, e assim permanecendo mais tempo em atividade (até meados dos anos 2000) – os
cinemas dos bairros ferroviários foram subtraídos das ruas com maior força já a partir da
década de 1980.
Alguns ainda continuaram em funcionamento por mais alguns anos com programação
pornô, como ocorreu com o Cinema São Geraldo (fechado em 1991) e o Cinema
Ramos/Rosário (fechado em 1992). Durante o período de funcionamento dos cinemas pornôs,
os cinemas de rua, de estação em estação, pareciam ainda se conectar à cidade como agentes
de atração e promotores de encontros motivados pela espectação cinematográfica.
Écio, antigo morador da Leopoldina, comenta a esse respeito: “Acho que na época
tinha a efervescência em torno desses cinemas, né... Acho que era um polo de atratividade de
pessoas, das pessoas no bairro, para um determinado ponto da cidade”.
Não há mais vestígios que indiquem qualquer presença do audiovisual
cinematográfico nas calçadas dos bairros da Leopoldina, exceto no que se refere ao
Cinecarioca Nova Brasília e ao Microcine Brasil, que veremos no capítulo a seguir.
A constatação desta ausência ficou clara nas entrevistas, como na conversa com Joana
D’Arc, que se refere a algum cinema extinto de Ramos, cujo nome não soube indicar:

O cinema na rua é uma coisa que já te chama. Minha relação com os prédios
que antes eram cinema é de tristeza... É lamento, é quase que uma frustração.
Tem um prédio aqui que eu vi, que tinha sido um cinema, e parece que a
fachada dele é tombada, ou algo assim. Quando me contaram que era um
cinema, eu fiquei pasma, porque você não diz que aquilo ali um dia foi um
cinema! Tamanho o abandono daquele prédio, sabe!

Magno, que na época de nossa entrevista, há dois anos, tinha 23 anos de idade, foi um
dos meus interlocutores mais novos. Ele também destaca o apagamento dos cinemas da
166
região:

É difícil falar extremamente dos cinemas, porque eu confundo com o que é


hoje, mas a torre do Olaria sempre me lembrou um moinho de vento. O
prédio marcava um bairro que não tem arquiteturas tão especiais. Na minha
memória, tem mais a fase sem cinema. Para mim, o cinema era grande, mas
não lembro de todo o cinema, porque eu era criança e tudo era grande, era
bonito, agradável. Eu vi bem os novos usos. Não lembro dele fechando. Hoje
ele é usado como depósito do Severiano Ribeiro, o segundo andar já
funcionou como sala de lojas, não sei se era uma xerox. Tinha a parte de
baixo, mas a parte de cima eles alugavam para lojas, tinha um corredor.
Sempre tive um sonho de que ele se tornasse um centro cultural particular,
com eventos culturais, como um Sesc de Ramos. Achei que o cinema Olaria
poderia ter um pouco disso.

É de se notar que os cinemas de estação desempenharam o papel de “marcos visuais”,


isto é, elementos urbanos pontuais para as trajetórias realizadas pelas pessoas nas ruas, de
acordo com a concepção do historiador José D’Assunção Barros (2007), apoiado no urbanista
Kevin Lynch (1999). O primeiro autor reforça a importância que essas “landmarks” têm na
elaboração das identidades locais nas cidades.

Os marcos visuais seriam “chaves de identidade” para a construção mental


da forma urbana, permitindo precisamente a leitura e orientação da estrutura
espacial. Apenas para dar um exemplo, as duas torres gêmeas da cidade de
Nova York constituíam um poderoso marco visual até antes do atentado de
setembro de 2001. Com a sua destruição, a imaginação urbana do nova-
iorquino se viu seriamente abalada com a impressão de uma perda de
identidade. A característica do marco visual é a sua singularidade e o seu
contraste em relação àquilo que o cerca (BARROS, 2007, p. 97).

Os prédios do cinema, considerados aqui como “monumentos” (RODRIGUES, 2001;


LE GOFF, 1985; HUYSSEN, 2000), i s t o é, “tudo aquilo que pode evocar o passado,
perpetuar a recordação” (LE GOFF, 1985, p.1), imbricavam-se ao imaginário das pessoas
e à construção mental que elas faziam dos lugares suburbanos. Tais monumentos – estruturas
que hoje comportam outras atividades, não ligadas à arte ou ao lazer – são elementos
simbólicos de uma era solidificada na(s) memória(s) coletivamente construída(s), que
remetem a um determinado período, a elementos simbólicos e a um modus vivendi
representativos de uma fase de cunho monumental da cultura midiática do século XX, quando
eram erguidos os palácios destinados às práticas de exibição e espectação de filmes.

O monumento é, portanto, um legado à memória coletiva, um legado “criado


pela mão do homem” e por ele edificado para carregar consigo toda uma
167
carga de concepções que o farão símbolo de uma mensagem que quis ser
passada, de um aviso ou de uma instrução que se desejou transmitir. A
categoria concreta, empírica do monumento não se limita, então, ao objeto,
uma vez que ele leva uma carga simbólica, abstrata ― sua monumentalidade
―, a qual tem por função trabalhar sobre o imaginário social. (...) O
monumento encerra em si uma monumentalidade, a qual, por sua vez, é
transcendente, pois ela não é só mais um objeto presente no espaço urbano;
ela é ideia, concepção, crença: objetivo simbolizado em objeto-símbolo, mas
capaz de viajar no imaginário. Os monumentos diversos (esculturais: em
homenagem a pessoas e a fatos históricos; ou arquitetônicos: edifícios,
torres, praças, avenidas e planos urbanísticos inteiros) são a própria
espacialização de uma ideia, de uma concepção de mundo que procura tanto
sua autoafirmação quanto a subjugação de outras ideias e concepções
destoantes (RODRIGUES, 2001, p.4).

As salas de cinema estiveram fortemente comprometidas com a constituição de redes


de sociabilidade e afetividades (e poderes), sendo, portanto, vetores presentes na construção
de uma memória coletivamente construída, mesmo após o seu desaparecimento. Essa força
aparece em falas de pessoas como Jorge Curvello para quem a vivência do circuito exibidor
da Leopoldina, como espectador cinematográfico, influenciou em suas escolhas profissionais:

Realmente foi bom viver aquela época de sonhos e fantasias dada pelo
cinema. Através deles éramos James Dean, Elizabeth Taylor, Rock Hudson,
Gregory Peck, Marlon Brando, Greta Garbo, jovens, homens e mulheres se
espelhando nos astros e estrelas ou em seus personagens para viver seu dia a
dia. Foi em um cinema que dei meu primeiro beijo de língua, que conheci a
vontade de ir conhecer o mundo fora do Brasil e até de ser o ator que hoje
sou, mesmo sem fama ou mídia, mas realizado.

Outro aspecto interessante que circula em torno das experiências dos entrevistados são
as recordações das artimanhas e alternativas que alguns encontravam para conseguir entrar
nos cinemas e assistir a sessões de filmes. Quando crianças e jovens, membros de famílias
pouco abastadas encontravam formas curiosas para obterem o dinheiro dos ingressos. O jeito
dado para terem em mãos seus bilhetes, driblando os poucos recursos, indica como aquele
tipo de lazer possuía proeminência entre as suas atividades. Pelo cinema do domingo,
vendiam de tudo, até de maneira divertida. Tais lembranças, geralmente, são evocadas com
emoção e orgulho por Jorge Curvello, Luiz Antônio e Carlos Alberto:

Era o tempo de vender garrafa vazia ou metais para conseguir o dinheiro


para o ingresso, de tomar sorvete depois em uma confeitaria, comentando os
nossos heróis, de falar das garotas que gostávamos, de mentir de nossos
avanços, nunca perder um bom filme, fosse ele onde estivesse sendo exibido
e nem sempre perto de casa. Éramos cinéfilos e não sabíamos (Jorge
168
Curvello).

Aqueles fantásticos tempos nos quais não dispúnhamos de televisão e toda a


fantasia de imagens que tínhamos, além das revistas em quadrinhos, eram da
telas de cinema! Lembro que em tempos mais difíceis de dinheiro, eu ia
vender revistas usadas, que minha avó lia com sofreguidão. Fantasma,
Mandrake, Sobrinhos do Capitão, Ferdinando etc. Ela trazia aos domingos
para nós e na semana seguinte vendíamos na feira livre do IAPI, sempre aos
domingos para apurar algum dinheiro para irmos ao cinema de tarde. Se
apurássemos bem, havia sempre algum amiguinho, sócio convidado na
empreitada, íamos aos cinemas mais caros da região: São Pedro, Mauá,
Rosário, Santa Helena, ou mesmo ao gigante, boa programação, mas
desconfortável, Leopoldina, com poltronas de madeira e muito calor! Baixa
arrecadação na feira, poeiras! Bim-bam-bum, São Geraldo, Oriente etc (Luiz
Antônio).

Eu garoto, no Iapi da Penha, vendia revistas na feira, gibis, fazia pipas que
vendia em casa. E vendia com Araúna, filho de pastor batista, refresco,
limonada e mate gelado nos campos da Boiada, campo do Fortaleza...
Ganhávamos um bom din-din, após o que, à tarde seguia para os cinemas.
Confesso, o São Geraldo, o preferido, devido aos filmes seriados: Escorpião
Negro, um dos preferidos! A gurizada acompanhava os seriados como hoje
os adultos acompanham telenovelas. Já narrei um alarme falso de fogo no
São Geraldo? Algum gozador gritou e lá fomos todos aturdidos para fora do
poeira e retornamos logo a seguir, lépidos (Carlos Alberto).

Os cinemas de estação, na figura potente de cinemas de bairro, se apagaram quando


novas formas de acesso ao audiovisual cinematográfico começaram a despontar na cidade.
Fecharam todos. A espectação cinematográfica mudou de lugar e outros tipos de
equipamentos de lazer vieram a sediar os cinemas. Em meio a isso, deu-se início à era dos
shopping centers, cujas primeiras salas, pequenas, e, depois, os complexos de exibição
cinematográfica, com salas maiores, já não poderiam ser adentradas com o dinheiro aferido na
venda de gibis ou limonadas pelos meninos da vizinhança. O cinema deixou de ser o vizinho
amigo, perto do portão de casa, em frente à linha do trem.
Assim, a era dos shopping centers, que começa, no Rio de Janeiro, a partir de 1975,
com a inauguração do Shopping da Gávea75, marcou um novo lugar para a ida ao cinema na
cidade. Associados ao fenômeno do videocassete, com suas sessões domésticas, os
movimentos de espectação elitizaram-se no final dos anos 1970 e durante as décadas de 1980

75
No Rio de Janeiro, os primeiros shopping centers a surgir foram o Shopping da Gávea, em 1975, e o Cassino
Atlântico, em 1979 (que se caracterizavam mais como centros de compras semi-fechados do que como Shopping
center propriamente dito). Logo em seguida, surgem o Rio Sul, em 1980, e o Barra Shopping, em 1981, que
efetivam de vez a reprodução de uma cidade, com serviços, lazer e opções de consumo, em seu interior cercado e
isolado espacialmente das áreas de fato públicas da urbe.
169
e 1990. Assistir a filmes tornou-se, em grande medida, uma atividade realizada em núcleos
apartados da rua e demais áreas públicas.

O hábito de ver filmes também se transferiria quase que inteiramente para o


ambiente doméstico. As consequências não poderiam deixar de ser uma
extinção progressiva dos cinemas populares e um encolhimento do setor (...).
A lógica do processo, entretanto, era outra. Como as bilheterias não
mostraram sinais de recuperação aos níveis da época de ouro, enveredou-se
pelo caminho da elitização do lazer cinematográfico, garantindo-se um
consumidor mais fiel (GONZAGA, 1996, p. 245).

Apostando em um tipo de privatismo espacial, os centros de compras e lazer, isto é, os


shopping centers, passam a oferecer serviços pautados pela segurança, garantia de
estacionamento e diferenciação do público (com a manutenção muitas vezes de um status quo
que exclui as camadas pobres e miseráveis destes ambientes). E foi neles que a sala de cinema
encontrou novo destino.

Nos últimos anos, a expansão do circuito exibidor brasileiro esteve


estritamente relacionada ao crescimento dos shopping centers. Os dois
setores se modernizaram e foram alvos de investimentos estrangeiros que
contribuíram para estabelecer um novo padrão para o consumidor
(ALMEIDA e BUTCHER, 2008).

Diante de alguns cinemas de rua remanescentes (salas de circuitos “alternativos” que


surgiram nos anos 1980, 1990 e início do século XXI, como o Grupo Estação76, por exemplo),
a sala de exibição comercial ganhou novas feições quando os modelos multiplex (geralmente
complexos que têm entre cinco, oito, até 14 salas de exibição) e megaplex (complexos com
mais de 15 salas) aportaram em solo carioca entre a década de 1990 e os dias atuais. Neste
caso, houve uma reconfiguração tanto da estrutura das salas como dos rituais de espectação
cinematográfica que passaram a contar com novas tecnologias de exibição (som e imagem),
de serviços (hoje, por exemplo, há os terminais de autoatendimento para compra de ingressos,
que também pode ser realizada pela Internet), e dispositivos que deram novo rosto a
elementos constitutivos dos cinemas, tais como as telas de plasma que anunciam as atrações e
horários, em vez dos tradicionais cartazes, letreiros e displays de papelão que antes eram
destinados a esta finalidade.

76
Grupo exibidor que começou a atuar no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, bem próximo à
estação de metrô do bairro. Hoje, também tem salas de cinema em bairros como Barra da Tijuca, Catete,
Ipanema e Leblon. Atualmente, conta com apoio do Sesc, que dá nome às salas do circuito Estação.
170
Além disso, a falta de arquitetura própria (já que se inserem dentro de shopping
centers) e a aposta ao máximo em conforto, como, por exemplo, o proporcionado pelas
poltronas acolchoadas, namoradeiras e as mais recentes chaises77, redimensionaram a
estrutura dos equipamentos de exibição, agora dotados do perfil multiplex.
Seguindo tendências de mercado, a trajetória da sala de cinema no contexto da Zona
da Leopoldina não escapou daquilo que em diversos momentos de um trabalho anterior
(FERRAZ, T., 2009; 2012) sugiro ter sido uma espécie de “sequestro” dos cinemas pelos
shopping centers. Mas antes dos primeiros cinemas de shopping da Leopoldina, após o
fechamento de todos os cinemas de estação na década de 1990, os bairros de Bonsucesso,
Ramos, Olaria, Penha, Penha Circular, Vila da Penha e Brás de Pina ficaram sem telas: nem
mesmo shopping center havia em toda aquela área nos anos finais do século XX.
Moradores de toda uma região contavam apenas com cinemas de rua que subsistiam
em bairros suburbanos não tão próximos, como Méier e Madureira, por exemplo, com as salas
ainda ativas na Tijuca e no Centro, ou mesmo com os cinemas localizados na Barra da Tijuca
e em bairros da zona sul, os quais requeriam um passeio mais longo para quem morasse na
Zona da Leopoldina. Ir ao cinema a pé, como muitos faziam décadas antes nos arrabaldes
leopoldinenses, tornou-se impossível.
Alguns shoppings suburbanos, como os pioneiros Norte Shopping, no bairro não
ferroviário do Caxambi, e o Madureira Shopping, eram alternativas para quem residisse na
Leopoldina e quisesse ir ao cinema. No Norte Shopping, em 1989, foram inauguradas duas
salas de exibição pelo Grupo Severiano Ribeiro, ambas com capacidade para 240 pessoas
(GONZAGA, 1996, p. 331). Os cinemas do Madureira Shopping chegaram à Zona da Central
do Brasil em 1995. Por lá, o Grupo Severiano Ribeiro abriu quatro salas, cada uma com a
média de 180 poltronas.
Há também o Shopping Nova América, que funciona nas estruturas reformadas da
antiga fábrica Nova América, em Del Castilho, perto de Inhaúma, região suburbana hoje
cortada pela Linha 2 do Metrô Rio. A estação do metrô Del Castilho tem saída direta para o
interior do Shopping Nova América, onde funcionam sete salas multiplex da Kinoplex,
empresa do Grupo Severiano Ribeiro.
Magno, um dos interlocutores, mencionou que vai aos cinemas que funcionam lá
dentro, além de frequentar os cinemas de rua que ainda existem no bairro de Botafogo, na
77
Namoradeiras e chaises são poltronas de cinema mais confortáveis. Possibilitam muitas vezes uma maior
proximidade entre os frequentadores, já que os “braços” que separam os assentos podem ser levantados.
Algumas, principalmente as chaises, são reclináveis e têm maior largura, além de suporte para os pés.
171
Zona Sul carioca. Sobre os cinemas de shopping, ele comenta:

Como toda a Zona da Leopoldina, os espaços de entretenimento são poucos,


só shopping mesmo. Não há teatros nas ruas, shows ao ar livre... As únicas
coisas são as bibliotecas municipais. Fica-se restrito aos shoppings e alguns
lugares que têm bar. Na Penha, tem a rua do reduto do entretenimento, mas
fica nisso, bar, que não é muita coisa... Para cultura, o espaço é ainda menor.
O único cinema de rua que eu vou hoje é em Botafogo. Todos os cinemas
em que vou são multiplex, no shopping. Vou no Nova América, que tem
ligação com o transporte. Talvez no Cinemark de Botafogo também, onde eu
vou às vezes. Acho que para nossa sociedade, talvez mais pra outras pessoas
do que pra mim, o cine no shopping tem mais atrativos: é seguro, não pega
chuva, tem certeza de que tem lugar para comer, mas tenho atração pelo
cinema de rua, porque dá para ir andando. E cinema de shopping tem sempre
que ir por meio de transporte e isso é frio. E ir a pé, hoje não se vai mais à pé
no cinema, ele se isolou um pouco. Mas tem vantagens também... Só que
gosto do calor da rua, dessa vivência de passar e ver a fachada com a
proposta do filme. Isso só existe no Odeon e em Botafogo, que dá pra ver
qual filme que está passando.

A entrada efetiva dos cinemas de shopping na realidade leopoldinense ocorreu


somente a partir de 2001 com a chegada de oito salas, já no perfil multiplex, da rede
multinacional Cinemark. Os cinemas abriram no Carioca Shopping, que fica no bairro da Vila
da Penha, vizinho à Penha, na Zona da Leopoldina, um bairro de classe média do subúrbio
que hoje, segundo o interlocutor Jorge Moreira, é "a Tijuca dos anos 50”. De fato, a Vila da
Penha é um bairro que consta entre os vinte bairros mais desenvolvidos da cidade, de acordo
com o Índice de Desenvolvimento Humano Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). A Vila da Penha apresenta um IDH de 0,90978, o que, segundo o IBGE, é um
patamar muito elevado, já que o órgão classifica como IDHs mais promissores aqueles que
atingem valores acima de 0,800.
Os cinemas do complexo Cinemark Carioca, neste bairro, foram as primeiras salas que
esse grupo exibidor fundou no subúrbio do Rio de Janeiro79. Os cinemas têm tudo o que um
multiplex oferece ao público: foyer padronizado com bombonière (chamada pela empresa de
“snack bar”) repleta de combos de mega-pipocas e copos gigantes de refrigerantes, falta de

78
Essa taxa a qual tive acesso, relativa ao intervalo de 2010 a 2013, faz com que a Vila da Penha ocupe o 20°
lugar na lista dos maiores IDHs cariocas, estando na frente de locais como Santa Teresa, Catete, Centro, Vila
Isabel, por exemplo. A Tijuca, local que Jorge Moreira comparou com a Vila da Penha, está na 18° posição. Os
demais bairros da Leopoldina aparecem no ranking do IDH a partir da 40° posição (Fonte: Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: www.ibge.gov.br).
79
Além das oito salas no Carioca Shopping, o grupo Cinemark possui salas no Botafogo Praia Shopping, em
Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, e nos Shoppings Dowtown e Village Mall, ambos na Barra da Tijuca,
Zona Oeste. O Village Mall é atualmente o Shopping carioca voltado para a venda de marcas de luxo.
172
arquitetura própria e as instalações ficam bem perto da praça de alimentação.
O foco na padronização das características dos cinemas é um dado claro no texto
institucional da rede na Internet:

(...) O snack bar oferece produtos variados, desde pipoca e refrigerante de


diferentes tamanhos até guloseimas, como balas e chocolates. As salas
possuem telas gigantes, de parede a parede, sistema de som digital,
isolamento acústico, poltronas reclináveis com braços móveis e suporte para
copos nos assentos (Fonte: CINEMARK BRASIL INSTITUCIONAL) 80.

Quando fui entrevistar o interlocutor Jorge, que mora na Vila da Penha, visitei o Carioca
Shopping e pude perceber que o seu complexo de cinemas não se diferencia em nada dos
multiplex da marca Cinemark situados nos outros shoppings. Enquanto conversávamos, em
meio aos intensos barulhos da praça de alimentação, ele se recordou das sensações que tinha
quando ia ao Mello-Penha, por exemplo, para passar pela experiência de espectação, que, em
suas palavras, traduzia-se como um verdadeiro “ritual”. Os cheiros da pipoca, do ar
condicionado, as luzes que iam se apagando gradativamente antes do filme, as vinhetas dos
complementos que eram exibidos antes do filme principal, as notícias do Canal 100. Um
pouco nostálgico, Jorge não deixou de estabelecer uma comparação com o que ocorre
atualmente nas idas aos cinemas de shopping:

Hoje o filme começa de supetão! Não tem aquele approach, aquela


preparação para a pessoa se envolver... Não tem a tela abrindo, o que era
emocionante para a pessoa ficar esperando a cortina abrir, a luz se apagar...
Você ficava imerso nessa atmosfera, que você vivenciava, tempo a tempo, a
cada momento, cada coisa. Quando chegava o filme, você já estava
preparado. Os cheiros de pipoca, o ar condicionado, que a gente não estava
acostumado. O problema todo o cinema dentro do prédio... O que acabou
com a sala de cinema foi também a geração shopping center. As igrejas
evangélicas, o metrô, a violência, a TV... Era outra época, ninguém furava
fila, havia o respeito.

Perguntei a Jorge se ele costumava frequentar os cinemas de shopping, como os que


existem no Carioca Shopping, onde ocorreu a nossa conversa. Ele me respondeu:

Sim, eu vou ao cinema de shopping, mas é outro contexto, é outra


experiência. Hoje em dia antes de ver o filme, ele já está em DVD, tem os
piratas, a Internet. Então é outra coisa. Mas eu vou, é outra coisa. Mas se eu
acho que o cinema pode voltar fora do shopping, muita coisa está mudando

80
Fonte: CINEMARK BRASIL INSTITUCIONAL. Site da rede Cinemark. Disponível em:
www.cinemark.com.br . Última visualização: 26 de dezembro de 2013.
173
na cidade. Se você me perguntar se eu acho que volta, pode ser que sim.
Acho que pode voltar.

Outro exemplo de cinemas de shopping que atendem, por causa de certa proximidade
geográfica, os moradores da Leopoldina são os que se encontram dentro do Shopping Via
Brasil81, no Irajá. O centro comercial foi inaugurado estrategicamente perto da Avenida Brasil
e da Avenida Presidente Dutra, duas vias de imensa importância para a circulação rodoviária
do Rio de Janeiro. O acesso ao shopping é mais fácil para quem vai até lá de forma
motorizada. Como está à beira de autovias, quem tiver a disposição de sair de um dos bairros
vizinhos para chegar até lá a pé, pode se deparar com uma aventura, cuja caminhada, quiçá,
não será tão saborosa. Quando lá tentei chegar, fui de táxi o que facilitou a minha chegada. O
Via Brasil, tal como o Carioca Shopping, foi erguido em 2011. Seu complexo de cinemas é
operado pela empresa Cinesystem, que mantém seis salas de cinema digitais, no perfil
multiplex, sendo duas delas preparadas para a exibição de filmes 3D; tudo nesses cinemas
também é padronizado e o foco, como ocorre comumente nos multiplex, são filmes mais
comerciais.
A questão da fraca presença do audiovisual cinematográfico nas ruas dos bairros da
Leopoldina, conforme indicam os dados, se relaciona à pauperização que lugares como Penha,
Vila da Penha, Penha Circular, Brás de Pina, Olaria, Ramos e Bonsucesso sofreram nas
últimas 50 décadas. A falta de opções de lazer, o contexto do multiplex e a decadência urbana
da região leopoldinense do Rio de Janeiro são sentidos pelos moradores e ex-moradores com
os quais conversei. Todos, de forma unânime, em algum momento de nossas conversas
falaram sobre um “tempo que não volta mais”, de “outra realidade do subúrbio”, do “avanço
da violência” e do “esvaziamento cultural da Leopoldina”. Muitos não escondem sua
nostalgia ao se lembrar de épocas em que a pé ou usando o bonde podiam chegar aos cinemas
localizados há algumas quadras de casa.
Ao contrário dos multiplex dos shopping centers que desde os anos 2000 servem os
bairros da Leopoldina de maneira bem esparsa, os extintos cinemas de estação
desempenharam – com as suas nuances comerciais, perfis exibidores e arquiteturas – um
papel de destaque nos trechos ao redor das estações de trem da maioria desses bairros.
Até se confinar dentro dos espaços fechados de compras e lazer, os cinemas
lançadores, poeiras e pornôs da Leopoldina emblematizaram toda uma região que, há bastante

81
Fonte: Site do Shopping Via Brasil. Disponível em: http://www.shoppingviabrasil.com.br. Última
visualização: 29 de dezembro de 2013.
174
tempo, no contexto urbano carioca, vive processos muito particulares de ocupação espacial. O
cinema acompanhou tais processos através de sua própria transformação e parece ter morrido
ao mesmo tempo em que as ruas da Leopoldina perderam seu vigor urbano de outrora. O
cinema ocupou os espaços e foi resistente até os anos 90 com as suas casas exibidoras e os
confusos jogos empresariais do mercado de exibição suburbano; acima de tudo, pode
combater seus desgastes por meio da frequência fiel dos espectadores: trabalhadores da
região, classe média alta composta por pequenos comerciantes, crianças e toda a sorte de
pessoas que transitavam pelos núcleos dessas localidades à beira da ferrovia.
E se a estrutura física dos equipamentos de exibição cinematográfica foi apagada das
calçadas, os filmes, pelo que parece, continuam sendo mostrados e vistos. O olhar ainda se
deixa contaminar pelas telas grandes. Não sucumbiu completamente à TV ou aos pequenos
plasmas dos smartphones. Depois de fenecer no entorno da linha férrea, o cinema encontra
hoje meios de renascer nessas localidades, talvez com outros rostos.
É sobre a força contemporânea do cinema no subúrbio da cidade e as alternativas para
que ele seja reativado no espaço urbano da Zona da Leopoldina que irei perquirir adiante,
sabendo que, por justamente não viver do consenso, o cinema “retorna dos mortos e enfrenta a
nulidade da produção geral” (DELEUZE, 1992, p. 91), ainda que possa recair em novas
armadilhas.

175
Capitulo 4
Os lugares do cinema na Zona da Leopoldina hoje: um cenário de
mudanças

4.1. Outros espaços para o cinema


Conforme vimos no capítulo anterior, com a entrada deste século outros lugares
surgiram para a prática da espectação cinematográfica no subúrbio da Leopoldina, que amarga
a ausência praticamente total de salas de cinema em suas ruas, salvo o cinema que hoje há no
Complexo do Alemão. Não é preciso caminhar muito pela região para perceber que as
poltronas afastaram-se do vai-e-vem dos pontos ao redor das estações de trem.
Na mesma trajetória seguida por demais recantos suburbanos, na Leopoldina os novos
locais da exibição restringiram-se ao shopping center da Vila da Penha. Os cinemas existentes
dentro de shoppings de subúrbios não-leopoldinenses como Irajá, Del Castilho, Caxambi e
Madureira82 (além daqueles abrigados em centros comerciais de localidades nas zonas norte,
oeste e sul) também passaram a ser opções para os moradores das adjacências.
Para longe das calçadas, a ida ao cinema se deslocou espacialmente; com a supressão,
em grande escala, de tais equipamentos das ruas em bairros leopoldinenes, as experiências
ligadas a este lazer coletivo foram tragadas pelas mutações do mercado exibidor, assim como
ocorreu em diversos lugares do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo, através de um
fenômeno transnacional de fechamentos de cinemas de bairro (e de salas de pequenas cidades
e províncias) e erguimento de complexos multiplex em quarteirões ou shopping centers.
Dito de outra maneira, foi o próprio espírito do lazer cinematográfico, genuinamente
ligado às ruas da urbe, que mudou quando o cinema migrou para dentro dos shoppings,
“enclaves privados e fortificados [que] cultivam um relacionamento de negação e ruptura com
o resto da cidade” (CALDEIRA, 2000, p. 259), no qual o convívio passa, em todas as
instâncias, pela conquista do consumidor, tendo o lucro como alvo.
Com garantia de estacionamento – cujas vagas são pagas e, às vezes, muito
dispendiosas aos visitantes – e projetos arquitetônicos que atendem os padrões internos da
edificação dos shopping centers, os complexos multiplex surgiram e se consolidaram
vigorosos no Rio de Janeiro sem se atrelarem aos espaços abertos e públicos da cidade. A
maioria dos multiplex cariocas se localiza dentro desses núcleos de compras e lazer, o que
marca bem, em nosso contexto urbano, a sua diferença em relação aos cinemas de rua que

82
Shopping Via Brasil, Shopping Nova América, Norte Shopping e Madureira Shopping.
176
antes funcionavam como marcos visuais das calçadas, muitas vezes, de maneira imponente.
Diferenciam-se também dos diversos exemplos de multiplex cultivados em realidades de
cidades como Londres e Paris83, onde o fato de haver apostas na padronização e na reunião de
três ou mais salas em um mesmo equipamento, não significa necessariamente que o complexo
exibidor estará apartado das calçadas.
No rol de tais mudanças e especificidades concernentes aos mais recentes conjuntos de
salas cariocas, o que está em jogo é uma série de adaptações da atividade de ir ao cinema e da
espectação cinematográfica a novas maneiras de viver os acontecimentos que envolvem uma
espécie de abreviação da experiência. Retomamos aqui a noção de "gesto brusco" de Walter
Benjamim em sua crítica aos novos padrões perceptivos e subjetivos que advieram com a
modernidade. Caiafa (2000), no contexto de sua análise das relações entre arte e técnica na
virada do milênio, escreve a partir de Benjamin:

O “gesto brusco” é aquele “que retira a tudo sua densidade [e] atinge em
cheio a dimensão da experiência. O eclipse da narração, que Benjamin
tematiza em “O narrador”, é uma figura dessa desqualificação da
experiência. Com o gesto brusco, tudo passa imediatamente à consciência
(processo que Benjamin chama “vivência”) e ali se esgota. (CAIAFA, 2000,
p. 18).

Inspirando-se no texto de Benjamin, a autora argumenta que a arte não se realiza na


relação de consumo em que a questão é saciar, esgotar ou, em suma, abreviar, eliminando a
duração necessária à experiência de fruição. À luz dessas indicações, analisa a questão da
interatividade na literatura, nas artes visuais e nos media, as especificidades da imagem
cinematográfica, o contraste entre cinema e televisão, entre outros problemas
contemporâneos.
Parece-nos que as qualidades da ocupação espacial e da sociabilidade acarretadas pelo
cinema de shopping se realizam, em alguma medida, nas malhas de uma dimensão abreviada,
onde um gesto brusco subtraiu algo à experiência de assistir a um filme ao lado de estranhos.
Como indico em texto anterior, a vivência do espaço se encontra demarcada por "rápidas
83
Nessas cidades europeias, os dois curtos exemplos que existem em meio a tantos outros são complexos
multiplex localizados nas ruas e não em shopping centers. Realmente, a solução shopping center nessas duas
cidades não foi, com o passar dos anos, muito bem sucedida. O comércio de rua ainda mantém seu fôlego e
penetra áreas onde também há residências, seguindo uma tendência de organização mais heterogênea do espaço
urbano. Guardadas as particularidades dos diferentes tipos de configuração espacial citadina, é interessante
observar que os multiplex também seguem em pleno funcionamento nas ruas. Em ambos os casos, a
efervescência urbana já possibilita naturalmente uma reunião derivada de equipamentos. É o que ocorre com os
grandes complexos de cinemas dispostos ao redor da Leicester Square, em Londres, operados por cadeias como
Vue e Odeon, e com os cinemas multiplex da rede MK2, que se espalham em ruas de vários pedaços de Paris.
177
satisfações e saciedades":

Tudo parece tender para ações muito rápidas, práticas e eficientes, a começar
pela venda de bilhetes em telas digitais. Compreendemos que à medida que o
cinema passa a ser apenas mais um artefato de consumo dentro de um
templo de vendas, ele deve ser rapidamente abreviado, superado, para dar
lugar ao consumo de mais artigos. (FERRAZ, 2009, p. 281-282).

No cinema de shopping, o ato de espectação cinematográfica acontece associado e por


vezes até subordinado às possibilidades de consumo que esse equipamento oferece. Esse
consumo dos acontecimentos que envolvem a experiência de espectação cinematográfica
(deslocamento das pessoas até o cinema, escolha do filme e compra do bilhete, encontros,
entradas e saídas da sala de exibição e outros gestos) ocorre no contexto de algumas
mudanças que a contemporaneidade anuncia e demanda.
Conforme mostram os dados, os equipamentos coletivos de lazer da Zona da
Leopoldina passaram por mudanças estruturais desde a década de 1980, quando podemos
datar o começo do desaparecimento completo dos cinemas de estação suburbanos. Esses
equipamentos foram deslocados, reinventados, desabrigados, reelaborados ou desativados em
decorrência de imperativos estatais e mercadológicos e de novas posturas e soluções
encontradas por indivíduos. Este cenário nos sugere que houve uma aguda mudança de
paradigma do lazer cinematográfico, a qual vem se desenrolando desde meados do século
passado por meio de rupturas de vários aspectos inseridos no bojo de uma tradicional
associação: sala de cinema e cidade.
É pertinente ressaltar que as transformações citadinas foram sentidas nos espaços de
convivência voltados para os lazeres urbanos. Adaptações até mesmo do gosto próprio
público, cada vez mais cooptado por medias como TV e Internet, é algo que não foge de ser
constatado. O espectador foi reorientado. Suas preferências voltaram-se para outros tipos de
experiência com o espaço e a comunicação. As produções de sociabilidade, no mesmo trilho,
não escaparam de um processo midiático cujos imperativos já não correspondem mais ao
mercado meramente local ou a símbolos de um tempo moderno.
O ponto de tensão, assim, é: o cinema, como um associado da arte e do pensamento,
impulsionou-se, em diversos momentos, estética e historicamente, contra os imperativos de
poderes que oprimem o homem e ameaçam a potência criadora dos viventes. Mas o cinema,
como um aparato moderno fruto dos entrelaçamentos entre a cultura, a tecnologia e o capital,
também preza a alimentação de suas sólidas raízes no âmbito comercial, campo que lhe acena

178
desde a sua aparição no contexto dos espetáculos de imagem em movimento e do trompe
l’oeil. Amiúde, ele até se alia à “espiritualização forçada da diversão”, atividade que, nas
palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p.134), apoia as fusões entre a cultura e o
entretenimento, marca bem característica dos mecanismos da noção de indústria cultural por
eles pensada.
Nesse domínio, é necessário, então, conformar-se com os determinismos
mercadológicos que usualmente espreitam as atividades cinematográficas e com o fato
“irrevogável” do enfraquecimento das salas de cinema de rua, porque já não se ajustam mais
tão facilmente às exigências do capital? É mister salientar que as salas de cinema –
equipamentos culturais de ordem urbana, aparatos territoriais das ruas e dispositivo dado à
construção de laços com a arte e o sonho – foram, pouco a pouco, enamorando-se por
ambientes que não justificam integralmente os caminhos que este equipamento de exibição
percorreu até o início deste século. Anuncia-se uma espécie de traição de suas vocações
transformadoras e noéticas, relegando o cinema ao posto de apenas mais um dispositivo que
funcionará, nas dinâmicas urbanas, em prol da dimensão do consumo e da “mass-midialização
embrutecedora, à qual são condenados hoje em dia milhares de indivíduos” (GUATTARI,
1992, p. 15).

Certains salles de cinéma peuvent prendre en charge une partie du rôle


normalement dévolu à la cité: l’agora. La salle doit pouvoir combattre l’exil
des spectateurs et des cinéastes, et permettre le retournement de la
consommation passive en activité de goût. Le cinéma est plus qu’un loisir:
une experience de vie capable de produire de la transformation. (CRETON,
1994, p. 192).84

No caso dos bairros ferroviários, a ausência dos cinemas, espaço de experimentação da


existência ao lado dos outros, é nítida. As marcas identitárias dessas regiões do Rio de Janeiro
já não contam mais com os cinemas, que outrora funcionavam como marcos citadinos
notáveis nas calçadas. As arquiteturas proeminentes, os cartazes de filmes bem à vista dos
transeuntes e os letreiros que acentuavam os horários das sessões e os filmes da vez deixaram
de ser vetores arraigados à vida ao longo da ferrovia. Em seu lugar, os multiplex mais
distantes tornaram-se opções para quem deseja ter contato com o cinema na grande sala.

84
“Certas salas de cinema podem assumir um papel normalmente atribuído à cidade: a Ágora. A sala precisa ser
capaz de combater o exílio dos cineastas e dos espectadores, e permitir a reversão do consumo passivo em
atividade de gosto. O cinema é mais do que um lazer: é uma experiência de vida capaz de produzir a
transformação.” (Tradução: Robert-Jan Bartunek e Talitha Ferraz).
179
O entrevistado Écio menciona algumas mudanças que vieram com os multiplex
instalados em shopping centers:

Sabe o que é estranho no cinema de shopping? Os cinemas são ótimos, são


confortáveis e tal. Muito estranho é que o shopping faz com que você viva a
experiência do shopping e não a do cinema. Então você vai ao shopping,
você come no restaurante do shopping, que está lá dentro, estaciona o carro
dentro do shopping, isso circunscreve a sua experiência. E dentro no
shopping você não vê o cinema, né? Você vê a tela. Você não tem o prédio
do cinema. Isso pra mim foi uma perda grande, porque os cinemas tinham
muita personalidade. Era muito diferente. Você podia ver ET no Olaria, ou
ET no Rosário e eram dois filmes diferentes, seria sempre dois filmes
diferentes. A vivência desta experiência é que era diferente. Isso não é
nenhuma nostalgia, eu acho que era mais bacana, e os argumentos para
defender o cinema exclusivamente em shopping eu acho que são argumentos
frágeis: violência, carro poder ser estacionado. Eu acho que o cinema de
bairro favoreceria pelo menos as primeiras experiências.

O que restou da presença do cinema nos subúrbios, em face do padrão multiplex que
percorre o Brasil e o mundo, encontra-se ligado a um viés meramente empreendedor da
exibição cinematográfica, inscrito nas racionalidades de uma vasta cadeia industrial
(mundializada), na qual a sala de cinema não constitui, por certo, o principal canal de
distribuição no que concerne às possibilidades de rentabilização. A sala de cinema coloca-se
como mais um elemento da composição que o mercado busca para fazer a venda do produto
fílmico.
Nos atuais modos internacionalizados de venda desses produtos, as formações de
estratégias para a construção de elos entre as comunidades locais e os tradicionais espaços de
espectação se desarticulam a grandes passos. Essa questão supera até mesmo o “problema
multiplex” e também passa a ser encarada diante de toda uma transformação da exploração
cinematográfica, que vem se reorganizando, sem fim, desde a consolidação e o apogeu da TV,
dos canais a cabo e via satélite, vídeo, DVD, Internet etc: novas plataformas que dão acesso
ao audiovisual.
A crescente “dissociação entre o filme de cinema e a sala de cinema”, em benefício
das necessidades da cadeia industrial, e a atual função do equipamento urbano cinema frente
às galopadas do “filme em domicílio” são observadas por Creton (2001):

La salle demeure le premier espace d’accueil et valorisation du film de


cinéma, indispensable pour que le cinéma existe, pour que sa singulaité et sa
valeur d’exception soient préservées. Elle constitue, certes, un espace de
rentabilisation première (três variable) du film, mais sa fonction se réduit
180
pour l’essentiel à la création d’un capital symbolique et de notoriété destiné
à se rentabiliser tout au long d’une chaîne de valorisation sur de nombreux
supports. Malgré la reprise de la fréquentation après une longue phase de
dégradation, la salle reste três largement minoritaire face à l’extension qui si
poursuit des autres pratiques, notamment de télévison-audiovisuel à
domicilie (CRETON, 2001, p. 77).85

Portanto, talvez não seja arriscado pensar que o multiplex de shopping centers não
objetiva a sedimentação do público de maneira integrativa ou uma fidelidade aos espaços dos
bairros. A promoção de uma identidade urbana via espectação cinematográfica, como parece
ter ocorrido entre as décadas de 1940 a 1980 por meio das afinidades entre rua/ bairro/ sala de
cinema/tipo de público não se evidencia, por exemplo, nos casos onde a sala de cinema já não
encontra mais fôlego para se manter soberana frente aos demais aparatos e locais que
trabalham com imagens em movimento no contexto urbano.
Do mesmo modo, se aposta agora na busca incessante pela “evolução”86 e nas
novidades oferecidas pelas tecnologias de imersão nos filmes, sempre prontas a serem
ultrapassadas pelas mais recentes práticas do “veja mais, ouça mais, sinta mais”87. Em
seguida, os espectadores são entregues aos corredores dos shoppings, centros comerciais que,
conforme o próprio nome indica, têm como razão primordial a prática de venda de
mercadorias, status e, mais recentemente, sensações. O shopping se realiza pela “vocação
pedagógica de formação de consumidores” (CRETON, 2001, p.79). Com isso, qualquer
proposta de formação de plateia cinematográfica, no caso dos cinemas de shopping, só se
efetivará em respeito aos dogmas dessa pedagogia e desde que não ofereça riscos que
contradigam os pretextos comerciais.
Analisando esse cenário contemporâneo em que predominam as relações de consumo
e explorando as consequências para a produção da subjetividade, Suely Rolnik afirma que
vivemos um momento de identidades globais flexíveis. A subjetividade hoje consome “kits

85
“A sala é o primeiro espaço de recepção e valorização do filme de cinema, indispensável para que o cinema
exista, para que sua singularidade e seu valor de exceção sejam preservados. Ela constitui, decerto, um espaço de
rentabilização inicial (muito variável) do filme, mas essa função se reduz essencialmente à criação de um capital
simbólico e de notoriedade destinados a se rentabilizarem totalmente ao longo de uma cadeia de valorização em
vários suportes. Apesar da retomada da frenquentação depois de uma longa fase de degradação, a sala ainda
continua em uma posição largamente minoritária em face do avanço de outras práticas, notadamente da
televisão-audiovisual em domicílio.” (Tradução: Robert-Jan Bartunek).
86
Um dos slogans da empresa Severiano Ribeiro, que gere a marca Kinoplex, presente no subúrbio do Rio de
Janeiro, é “Evolução é a nossa tradição”. Disponível em: www.kinoplex.com.br. Última visualização: novembro
de 2011.
87
Slogan que a marca UCI usa para apresentar suas salas IMAX, que prometem aos espectadores uma
“experiência máxima do cinema”, apostando em avanços na tecnologia usada na tela, nas imagens 3D, no áudio
e em geometrias que garantem a imersão do espectador no filme. Disponível em: www.ucicinemas.com.br/imax .
Última visualização: junho de 2012.
181
perfis-padrão de acordo com cada órbita do mercado.” (ROLNIK, 1997, p. 1). E acrescenta:

(...) estas mudanças implicam a conquista de uma flexibilidade para adaptar-


se ao mercado em sua lógica de pulverização e globalização; uma abertura
para o tão propalado novo: novos produtos, novas tecnologias, novos
paradigmas, novos hábitos etc (...). Abertura para o novo não envolve
necessariamente abertura para o estranho, nem tolerância ao desassossego
que isto mobiliza e menos ainda disposição para criar figuras singulares (...).
(ROLNIK, 1997, p. 20).

Esse diagnóstico une-se à ideia de que ultimamente, na contemporaneidade,


compartilhamos emoções e sensações de maneira coletiva em espaços “metatópicos”, ligados
a uma audiência dispersa que se vincula virtualmente a partir de aparatos tecnologicamente
evoluídos, isto é, “espaços da exibição mútua (...) [que] nos põem em relação com centros
privilegiados de criação estilística, comumente situados em nações e ambientes ricos e
poderosos” (TAYLOR, 2008, p.567). Grosso modo, o tipo de construção identitária que daí
advém conecta-se aos desígnios de grandes corporações, que persuadem e cooptam as
autodefinições que os sujeitos farão de si próprios tendo em vista o mundo que os cerca.
Isso parece querer dizer que hoje a busca pela autenticidade e o ver e ser visto se
amparam no espaço comum e no “sentimento comum” (Idem), mas remetem a estruturas não
exatamente ligadas à tradição ou ao reconhecimento de laços de grupos primários, como
família e vizinhança, por exemplo; ao contrário, ligam-se ao mercado, à cultura de consumo
mais estrita. Na época moderna do século XIX – e aqui, tratando-se do Brasil, podemos
incluir ainda boa parte do século XX –, também já existiam espaços destinados ao
compartilhamento de ações, expressões, culturas, identidades e lazeres, mas, na esfera de
análise de Taylor (2008), tais espaços modernos eram tópicos: “todos os participantes estavam
no mesmo lugar, no campo de visão uns dos outros.” (p. 566).

A moderna sociedade de consumo é inseparável da construção de espaços de


exibição: espaços tópicos, palácios do consumo, similares às arcadas
parisienses do século XIX de que tratou Walter Benjamin e os centros
comerciais gigantescos dos nossos dias; e também espaços metatópicos que
nos ligam por meio de mercadorias a uma existência superior imaginária em
outro lugar. (TAYLOR, 2008, p. 567).

Somos levados a pensar, deste modo, que as salas de cinema de rua de antigamente e
as atuais formas de experiência com a exibição cinematográfica (que não precisam
necessariamente de uma sedimentação em territórios marcados identitariamente por grupos

182
sociais, tal como ocorria com os cinemas de bairro) apesar de serem, ambas, exemplos de
“espaços de exibição”, fazem parte de duas perspectivas diferentes da relação dos sujeitos
com o local/espaço, outros indivíduos e centralidades socioculturais.
Observamos, por outro lado, que no cenário exibidor suburbano também há, nos dias
de hoje, além do privatismo dos multiplex de shopping centers, outras experiências de
exibição e espectação. É o caso, por exemplo, dos cineclubes que se espalham pela região
tanto na Leopoldina, quanto em bairros da Zona da Central do Brasil. Em regra, esses
cineclubes têm por princípio a formação de gosto e crítica em suas plateias.
Para a entrevistada Joana D’Arc, moradora de Ramos, o acesso ao audiovisual nos
subúrbios é deficitário, mas os cineclubes são uma alternativa importante ao desaparecimento
dos cinemas na Leopoldina:

A alternativa para essa falta de cinema é cineclube ou reuniões que as


pessoas costumam fazer, sabe... Tem gente que junta amigos e vai ver em
casa DVD. Já é alguma coisa. Não é ir a um cinema, mas pelo menos é
alguma coisa. O subúrbio perdeu mais, eu acho que, assim, muitas das vezes
o cinema é o primeiro contato que aquela pessoa tem com a arte, né? E com
a cultura... Então você não tem acesso a um teatro, mas tem acesso ao
cinema, poxa vida! Você pode vir a formar um pensamento crítico através do
cinema. Isso tudo se perdeu aqui, esse contato com a arte. (Joana D’Arc)

Muitos desses cineclubes contavam, até aproximadamente 2012, com a contribuição


do Governo Federal, que apoiava a formação de circuitos cineclubistas através do programa
Cine Mais Cultura, hoje parcialmente inativo, embora existam pressões de ativistas
cineclubistas para que seja logo retomado. O programa oferecia nacionalmente aportes (telas,
projetores digitais, filmes em DVD e auxílios administrativos) aos participantes da rede
cineclubista contemplados como pontos de cultura pelo Ministério da Cultura.
O Cineclube Sem Tela, das ONGs Observatório de Favelas e Redes da Maré, recebeu
durante alguns anos a ajuda do Cine Mais Cultura para a realização de sessões na Favela da
Maré, próximo a Bonsucesso. As exibições ainda acontecem em escolas e em lonas culturais
da favela com o apoio de voluntários e funcionários das ONGs.
Em Bonsucesso, ainda há outro exemplo promissor: uma sala de cinema para
aproximadamente 100 pessoas, chamada Microcine Brasil. O cinema é gratuito, tem sessões
de filmes brasileiros programadas a cada semana e também são promovidos festivais e
mostras de filmes brasileiros de temáticas sociais, geralmente com palestras após as exibições.
O público-alvo é composto principalmente por crianças e adolescentes do ensino público da

183
Zona da Leopoldina.
Sem contestar a sua orientação não-comercial, a pouca opção de horários das sessões
oferecidas pelo Microcine e o seu viés estritamente cineclubista o afastam do perfil usual de
uma sala de cinema, conforme coloca a entrevistada Joana:

Falta um tino de mercado. A impressão que se tem é que o pessoal daqui não
se interessa. E se interessa, e muito, mas não tem acesso. A opção que temos
hoje é o cinema de shopping. Ali em Bonsucesso, tem o Instituto Cultural
Cinema Brasil. Eles têm um projeto bacanérrimo, mas eles fazem exibição
apenas para crianças, em horários fechados, e o cinema só funciona para o
público nos fins de semana. É uma pena! É um projeto incrível, mas por que
não abrir o cinema durante a semana para todo mundo? É um cinema,
entendeu? O catálogo já é atrasado, coisas que eu já vi duas, três vezes,
entendeu? Eles têm um espaço fabuloso... É fantástico, mas eles não têm
esse tino. Aí você pensa: caramba, as pessoas não têm acesso!

O Microcine é, em suma, um projeto social. Faz parte do Instituto Cultural Cinema


88
Brasil , que é um ponto de cultura beneficiário do Governo Federal e já fora um dos
cineclubes favorecidos pelo Cine Mais Cultura. Seus organizadores dizem que o
empreendimento, com início em 2005, foi uma resposta à falta de cinemas no subúrbio
leopoldinense89.
De fato, o Microcine procura preencher a lacuna que existe no acesso ao audiovisual
na região, cujas localidades, além de viverem experiências impulsionadas pela ação de
organizações não-governamentais amparadas ou não pelo governo, têm recebido a atenção de
órgãos governamentais no que diz respeito ao incremento do lazer cinematográfico no espaço
urbano, conforme veremos a seguir.

4.2 Ocupar o espaço através do cinema


4.2.1. O Cinecarioca Nova Brasília no Complexo do Alemão
Na nova face da exibição em bairros ferroviários, que tiveram parte de seu território
favelizado ao longo do século passado, há iniciativas para democratizar o acesso ao
audiovisual em comunidades. É o caso do Cinecarioca Nova Brasília, situado na favela de
Nova Brasília, dentro do conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na Zona da
Leopoldina. Inaugurado pela Prefeitura do Rio em dezembro de 2010, este equipamento de
exibição é a primeira sala de cinema em favela do mundo, com projetor 3D, sistema surround,

88
Disponível em: http://www.iccb.org.br/index.html . Última visualização: 4 de janeiro de 2014.
89
Disponível em: http://www.microcine.com.br/ . Última visualização: 8 de dezembro de 2011.
184
servidor Adobe, 90 poltronas acolchoadas e mais lugares para cadeirantes.
Podemos dizer que o Cinecarioca é a única sala de cinema de rua hoje em
funcionamento em toda a região da Leopoldina, com sessões diárias90, ainda que, neste caso,
esteja distante da linha do trem, o que não o faz ser um cinema de estação tal como os que
existiram ao longo da ferrovia no passado.

Figura 34 - Cinecarioca Nova Brasília (Foto: Arquivo próprio)

O cinema faz parte do projeto Cinecarioca, que representa um investimento da


Prefeitura em áreas prejudicadas pela ausência de equipamentos de exibição cinematográfica.
Com gestão da Riofilme, empresa municipal vinculada à Secretaria Municipal de Cultura,
responsável pelo fomento do audiovisual na cidade91, o projeto tem a finalidade de
democratizar o acesso ao equipamento urbano cinema na zona norte carioca (incluindo nesse
recorte os subúrbios e algumas favelas).
Para promover a desconcentração do circuito exibidor, ampliando as possibilidades de
frequentação do público, indo além das habituais salas de cinema em shopping centers e em

90
O Microcine, em Bonsucesso, também poderia se configurar como um cinema de rua da Leopoldina mas, ao
contrário do Cinecarioca, ele não segue uma programação diária regular que o caracterize como cinema. É um
equipamento de exibição que carrega traços de cineclube (formação de plateia, não-alinhamento a cadeias de
distribuição comercial, perfil não-lançador etc).
91
Segundo o site da Riofilme, a empresa atua “nas áreas de distribuição, apoio à expansão do mercado exibidor,
estímulo à formação de público e fomento à produção audiovisual, visando o efetivo desenvolvimento da
indústria audiovisual carioca.” (Fonte: Site da Riofilme. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/riofilme/conheca-a-riofilme . Última visualização: 10 de janeiro de 2014).
185
bairros da zona sul, o programa visa à construção de salas exibidoras em bairros culturalmente
desassistidos, os quais, em regra, foram historicamente abandonados pelo mercado exibidor e
por iniciativas públicas nesse setor. Um ponto importante é o oferecimento de ingressos a
valores módicos. Não se exclui ainda, em linhas gerais, a relação essencial desse projeto com
as formas de ocupação urbana realizadas pelo poder público nos espaços citadinos.

O programa CineCarioca é uma iniciativa pioneira que visa ampliar o acesso


da população carioca ao cinema e estimular o hábito de assistir filmes. A
rede CineCarioca implementa cinemas de alto padrão de qualidade com salas
de projeção 3D, a preços acessíveis, em áreas onde há pouca oferta de
equipamentos culturais. A gestão dos espaços é concedida a empresas
exibidoras através de licitação pública. A rede CineCarioca se constitui em
um espaço de garantia dos direitos culturais e integra a política da RioFilme
de democratização do acesso a bens culturais através dos cinemas de bairro.
Como equipamento dedicado ao lazer, à arte e ao pensamento, o cinema se
desdobra na reestruturação urbana do entorno e funciona como âncora na
construção de uma paisagem mais justa e dinâmica. (RIOFILME)92

A sala é gerida pela empresa exibidora Cinemagic, que fora licitada pela Prefeitura do
Rio para operar o cinema por cinco anos. Mantém-se aberta através de subsídios
governamentais do município, que garantem ingressos a preços populares. O Cinecarioca
Nova Brasília oferece bilhetes a R$4,50 (que é o valor da meia entrada, mas todos, no final
das contas, pagam mesmo a metade do preço cheio) e se caracteriza por ser um “cinema
lançador”, exibindo filmes estrangeiros e também brasileiros recém-lançados.

92
Fonte: Site da Riofilme (Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/riofilme/cine-carioca . Última
visualização: 30 de janeiro de 2014).
186
Figura 35 - Poltronas e tela do cinema vistas da sala de projeção (Foto: Arquivo próprio)

O cinema é hoje um concorrente de peso para o multiplex que há no Shopping Nova


América, o mais próximo complexo de salas para quem mora exatamente naquelas
adjacências. Todavia, ao contrário do Cinecarioca Nova Brasília, que se localiza numa praça,
e na escala do pedestre, os cinemas do Nova América só são acessados por esses moradores
por meio do uso de kombis, ônibus ou carros (e metrô, se estiverem fora da favela) que os
levem ao shopping, já que o centro comercial fica em uma via afastada de quem, porventura,
prefira fazer uma caminhada.
Conforme me contou o gerente do Cinecarioca, Wellington Cardoso, a garantia de
acesso ao pedestre é uma marca importante deste equipamento. O cinema também chegou
naquela área como um entrante que atualmente representa, em algum grau, uma ameaça às
TVs domésticas:

O pessoal do cinema do Shopping Nova América fica bem preocupado


conosco porque as pessoas vêm aqui primeiro para depois, se aqui estiver
com tudo esgotado, irem para lá. As pessoas preferem vir ao cinema a ficar
em casa vendo a TV. Aqui é uma forma de trazer a família, ter diversão, é
uma forma de arte, cultura... É geladinho, tem a pipoca... Todos os artistas
que vem aqui nas pré-estreias adoram vir para cá também.

O público de espectadores do cinema é formado especialmente por moradores da


favela de Nova Brasília, onde exatamente está o prédio do Cinecarioca, e do Complexo do
Alemão em geral, embora não se restrinja apenas a eles. Muitas pessoas que residem na
Baixada Fluminense e em bairros ao redor do Complexo do Alemão frequentam o
187
Cinecarioca Nova Brasília. Preço acessível e proximidade de casa são os fatores de maior
destaque para a fidelização do público, de acordo com Wellington. Frequentemente, ir ao
cinema ali é como passar de um cômodo a outro dentro da própria casa:

Tem famílias que saem do cinema às 22h50 e dizem que parece que estão
saindo da sala para o quarto para logo irem dormir depois do filme, porque,
de fato, estão do lado de casa. As pessoas vem de chinelo, bermuda, vem à
pé... É muito gratificante escutar isso e fazer parte desta transformação
(Wellington)

A favela de Nova Brasília – compreendida pelo vasto Complexo do Alemão, que


reúne mais 14 comunidades – localiza-se na região da Zona da Leopoldina. Em 2010, foi
invadida pelas forças policias e desde 2012 no local há Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs). O Complexo do Alemão – cujas comunidades ainda não foram totalmente
“pacificadas” – ganhou notoriedade na mídia após o sequestro e a morte do jornalista Tim
Lopes, em 2002, por uma facção do narcotráfico lá atuante. Também foi muito destacado na
imprensa e na mídia em geral quando houve a veiculação ao vivo na TV, principalmente pela
Rede Globo, da tomada de parte de seu território pelas Forças Armadas e polícias, em 2010,
por conta do “processo de pacificação” que se iniciava.
O local ainda chegou a ser retratado em uma novela, da mesma Rede Globo, “Salve
Jorge”, que ficou no ar entre 2012 e 2013. O começo da trama, inclusive, remonta ao processo
de expulsão dos traficantes de drogas e à “conquista” do Estado, o que anos antes fora
transmitido ao vivo pela TV Globo; tudo isso esteve entre os motes para ambientar a vida das
personagens do núcleo pobre do folhetim, que lá residiam.
De fato, segundo indicam os relatos de Wellington e outros entrevistados que tocaram
no assunto da “pacificação”, a ocupação do local pela polícia, face do Estado nesse caso,
melhorou em alguma medida as condições, antes tétricas, de criminalidade e insegurança
enfrentadas pela população. Entretanto, isso não extinguiu, mais do que é suposto, algumas
relações perniciosas conservadas, há muito, entre a polícia e os criminosos, nem a violência
praticada contra os moradores e menos ainda a ocorrência de venda de drogas.

188
Figura 36 - Uma das entradas da favela de Nova Brasília que dá acesso ao cinema
(Foto: Arquivo próprio)

Foi tendo esse contexto como cenário, que apareceu o cinema popular Cinecarioca
Nova Brasília, em um lugar da favela de Nova Brasília onde, curiosamente, houve no passado
experiências de exibição de filmes:

Já existiu um cinema aqui na década de 70. Era um cinema bem popular.


Ficava bem aqui na Praça do Terço e aí acabou o cinema porque era
itinerante. Era uma tela e as pessoas traziam as cadeiras e passavam vários
filmes da época, tudo a céu aberto. Souberam desta ideia e levaram para a
prefeitura. A primeira ideia foi baseada nisso. O Sergio Sá Leitão então
acolheu a ideia e resolveu construir o Cinecarioca. A construção é da
Secretaria de Habitação, que depois passou o prédio para a Riofilme, que
realizou todo o aparato de finalização e agora a gestão é deles junto com a
Cinemagic. (Wellington).

Já no primeiro ano de funcionamento do cinema, 2011, 74 mil ingressos foram


vendidos. Desses espectadores, muitos nunca tinham ido a um cinema antes, segundo
indicação dada pelo diretor-presidente da Riofilme, Sérgio Sá Leitão. Em 2012, foram
vendidos 91 mil ingressos e a Prefeitura, ao lado da Cinemagic, chegou a estudar a expansão
do cinema, o que, de fato, não acontecerá por enquanto. No entanto, haverá uma reforma em
breve no local: a primeira obra de melhoria em três anos de funcionamento do equipamento.
Sobre isso, Wellington comenta:

Quando o cinema foi inaugurado, nenhuma empresa queria assumir.


Imagina: colocar um equipamento desta magnitude numa comunidade que
era hiper violenta... O pessoal falou que as secretarias estavam loucas por
colocar um cinema desta qualidade aqui. Diziam que as pessoas iam

189
apedrejar, tacar fogo. E vamos passar agora pela primeira reforma em três
anos. Em cinemas de shopping, por exemplo, a gente tem que fazer reformas
trimestralmente. A própria comunidade ajuda a cuidar do cinema. A
comunidade entende que o cinema é um patrimônio nosso, de todos. Muita
gente que vem de fora imagina que o cinema é uma coisa ao ar livre e
quando chegam veem um prédio e ficam sem palavras.

É notável que o fato de lidar com pessoas mais pobres faz deste equipamento de
exibição um exemplo de integração entre esses indivíduos e a grande tela. Conforme o próprio
Wellington relata mais a frente, muitas vezes os moradores dessa região não vão ao cinema
em shopping por conta dos altos preços praticados, dificuldade de acesso etc. Nesta
perspectiva, com a existência de um cinema local criam-se afetos em torno da sala,
produzindo laços de sociabilidade que acabam por trabalhar sentidos como “comunidade”,
“pertencimento”, “cultura local”, “cidadania” e “promoção cultural”.
Em minha própria vivência como cineclubista, quase nove anos atrás, quando atuava
como voluntária no cineclube Sem Tela do Observatório de Favelas, pude perceber a
deficiência de moradores de favelas – tanto no Complexo da Maré, como no Complexo do
Alemão, localidades onde fazíamos sessões itinerantes – em relação à prática de espectação
cinematográfica em equipamentos coletivos urbanos. Não é inovador dizer que muitas
pessoas que residem em comunidades favelizadas e em áreas de penúria social, material e
cultural nunca tenham ido ao cinema, dos mais velhos às crianças. Há ainda aqueles que não
assistem a filmes em uma sala de exibição convencional há décadas. Wellington também faz
uma análise sobre essa situação:

O que vale a pena ressaltar é que o cinema, na verdade, dentro da


comunidade é uma ferramenta muito importante para ajudar a culturalizar a
comunidade. É impressionante que em pleno século XXI existam crianças
que nunca tinham ido ao cinema, né... 3D... Teve gente que veio aqui e que
não ia ao cinema desde a década de 70. Para você ver... Teve um casal que
veio aqui, que mora no final do Beco Santo Antônio, a história deles é
interessante: o último filme que eles viram no cinema foi um do Mazzaropi.
Porque, na verdade, o cinema é caro e aqui se torna barato e acessível. Essa é
a diferença. A gente acolhe também as pessoas que vêm. Não deixamos a
pessoa ficar perdida. A gente identifica a pessoa, quando ela vem de fora
principalmente porque moramos aqui e conhecemos, e vemos no que
podemos ajudar.

De acordo com o secretário de cultura da cidade do Rio de Janeiro, Sérgio Sá Leitão,


que ainda também preside a Riofilme, a inauguração do cinema proporcionou a superação de
três barreiras que separavam os moradores do Alemão e adjacências do audiovisual
190
cinematográfico: preço (capacidade de pagar pelo lazer cinematográfico em salas de cinema);
mobilidade (entraves no acesso às salas de cinema da cidade, principalmente aos multiplex
dos shopping centers dos subúrbios, fenômeno da segregação socioespacial); informação
sobre cinema (escassez, entre as populações mais pobres, de informações sobre os filmes em
cartaz).
Isso se organiza, em linhas gerais, no mesmo patamar de hierarquização de elementos
(concernentes ao que rege as ambições, alcances e disponibilidades dos espectadores em
potencial) que Creton (1994) chama de “determinantes de frequentação”, ou seja,
características que influenciarão a decisão das pessoas na concretização, ou não, da ida ao
cinema:

Les principales contraintes qui prèsent sur la fréquentation sont: la


disponibilité du spectateur (celle qu'il se donne, ou peut se donner, dans un
certain contexte); les conditions d'accesibilité du spectacle en salle, qui
comprennent aussi les contraintes liées aux situations professionnelles et
familiales; la concurrence des activités substituables (CRETON, 1994, p.
186)93.

Destacando que hoje a vida dos filmes em salas de cinema é algo muito breve, o autor
explica que todas essas condicionantes devem computar igualmente uma problemática
essencial: a gestão do tempo. A acessibilidade leva em consideração o tempo de acesso e a
comodidade do espectador em vista do espetáculo cinematográfico em determinada sala; já a
disponibilidade do público, dependerá do tempo que cada indivíduo tem liberado para a
atividade de espectação cinematográfica; por fim, as atividades substitutivas, isto é, as
alternativas à ida ao cinema (TV, teatro, museus, eventos esportivos etc), concorrem usando o
poder se suas atratividades e durações pelas quais podem conquistar o espectador de cinema
em potencial ou perdê-lo para a grande tela.

93
“As principais limitações apresentadas à frequentação são: a disponibilidade do espectador (que se dão em
determinado contexto); as condições de acessibilidade do espetáculo em sala, que incluem limitações ligadas a
situações profissionais e familiares; a concorrência com atividades substitutivas.” (Tradução da autora).

191
Figura 37 - Arbitragens sob as restrições de tempo (Fonte: CRETON, 1994, p. 187)

Aplicando esse quadro à realidade do Cinecarioca, não é apressado concluir que este
equipamento nasceu em salvaguarda, principalmente, da determinante de acessibilidade, já
que é um cinema popular, a preço módico, localizado nas malhas urbanas mais imediatas das
casas da comunidade do Alemão, atendendo os moradores e visitantes da área sem obrigá-los
a depender exclusivamente do carro para acessá-lo. Com isso, o tempo de acesso e a
comodidade são quesitos que se cumprem de maneira otimizada.
Além disso, a superação do déficit informativo acerca dos filmes mais novos na cartela
da indústria do cinema não deixa de ser um artifício que coloca o Cinecarioca Nova Brasília
em um lugar de proa da popularização do lazer cinematográfico, atingindo em cheio as
demandas da frequência, até então reprimidas naqueles arredores.

Figura 38 - As informações sobre o funcionamento do cinema também são disponibilizadas de forma


simples, além do uso dos tradicionais cartazes (Foto: Arquivo próprio)
192
Ainda sob este ângulo, o Cinecarioca Nova Brasília é um equipamento que abrange
basicamente a vizinhança, o que proficuamente o aproxima da ideia de “cinema local” ou
“cinema de proximidade”, caso sigamos a tradução linear do conceito “cinéma de proximité”
(BAUDRY,O., 2001; CRETEON, 1994; 2001; SAUVAGET, 2001). De acordo com Olivier
Baudry (2001), esse tipo de cinema tem por natureza uma dupla noção:
proximidade/localidade geográfica e psicológica:

Le cinéma de proximité participe d’une ‘forme’ urbaine, avec laquelle il


cherche à composer. Mais il a aussi, au-delà de la question réglementaire et
esthétique, um intérêt objectif à bien s’implanter, comme une plante
cherchera à prendre racine dans un sol nourricier. C'est plus q’ue la simple
conséquence de son appartenance à um centre-ville, synonyme de densité et
de continuité. La même approche peut em effet se retrouver dans les
contextes urbains moins densité et de constitués: quartiers périphériques,
zones résidentielles, limites de bourgs... Il s’agit dans ce cas de reconnaître
que le cinéma est partie integrante d’un tissu urbain avec lequel s’établissent
des échanges fonctionnels et symboliques. À l’échelle urbaine, les espaces
d’accueil du cinéma agissent alors comme des élements de liaison au
contexte, et non comme des facteurs de différenciation et d’autonomisation
par rapport à celui-ci. (BAUDRY,O., 2001, p. 123)94.

Outro autor que trabalha com a noção de “cinema local”, chamando atenção para a
recenticidade teórica do conceito, é Daniel Sauvaget (2001). A sua preocupação é entender a
inserção do “cinema local” na vida de cidades cada vez mais impelidas a lidar com soluções
urbanas baseadas na acessibilidade motorizada e na dispersão. De acordo com o pesquisador,
se hoje for possível estabelecer alguma oposição entre os modelos de sala de cinema
contemporâneos, ela se referirá ao que separa os multiplex dos “cinemas locais”. Observando
o valor que a localidade/proximidade dos serviços tem atualmente na vida urbana e o papel
que os equipamentos de proximidade desempenham no dia-a-dia citadino (partilhando,
satisfatoriamente, os anseios de quem planeja os espaços e neles mora), Sauvaget comenta:

94
“O cinema local/de proximidade participa de uma “forma” urbana com a qual ele quer compor. Mas ele tem
também, além das questões regulatória e estética, um interesse objetivo de se estabelecer, tal como uma planta
procura fincar raízes numa terra nutrida. É mais do que sua simples pertença a um centro da cidade, sinônimo de
densidade e de continuidade. A mesma ligação pode, com efeito, se dar em contextos urbanos menos densos e de
constituições do tipo: áreas periféricas, zonas residenciais, limites das cidades... Neste caso, trata-se de
reconhecer que o cinema é parte integrante de um tecido urbano com o qual ele estabelece uma troca funcional e
simbólica. Na escala urbana, os espaços de acolhimento do cinema agem como elementos de ligação com o
contexto, e não como fatores de distinção e empoderamento sobre ele. (Tradução: Robert-Jan Bartunek e Talitha
Ferraz).
193
Cette idée de cinéma de proximité, non dans un sens spatial mais dans un
sens de desserte qualitative du territoire, est une notion résurgent s'appuyant
sur des pratiques réelles auxquelles manque peut-être une théorie
suffisamment élaborée. Elle n'est pas un retour à l'ancien cinéma de quartier,
ni un projet d'équipement propre aux quartiers 'en difficulté' (quelques
expériences menées dans ce sens se sont révélées des échecs.). Le critère de
proximité, on le sait, est une valeur clé dans nos sociétés modernes malgré
les grandes facilités de déplacement qui les caractérisent. C'est une notion
encore peu élaborée et conceptualisée, en matière de service. Cependant, les
équipements et les services de proximité sont réclamés par les habitants des
grandes agglomérations comme par ceux des zones rurales et cette demande
est prise en compte par les aménageurs. Les urbanistes sont eux aussi
troublés par cette espèce de modernité dont les symboles sont l'automobile,
les réseaux rapides et l'étalement urbain, un modèle de développement fondé
sur l'acessibilité plutôt que sur la proximité (SAUVAGET, 2001, p.167).95

Em uma conversa que tive com a funcionária da área de Planejamento e Gestão da


Rede Cinecarioca da Riofilme, Marcia Mansur, ela citou justamente a proficuidade do aspecto
“proximidade” no caso do Cinecarioca Nova Brasília. A técnica reforçou aquilo que Sergio Sá
Leitão, presidente desta empresa pública, apontou anteriormente, ou seja, os três fatores dos
quais o Cinecarioca se ocupa em benefício da prática de espectação:

O Cinecarioca no Alemão junta três fatores. O da proximidade, que evita o


deslocamento e o impacto da passagem, aquilo de ter que ir ao shopping. O
fato de ser um cinema de rua torna ele mais aberto, amigável para chegar, e
não ter que entrar no shopping etc. Outro fator é o preço, que é R$ 4,50,
porque na verdade todo mundo paga meia. Custa R$9, mas morador paga
meia, estudante paga meia. E são os moradores do entorno que pagam meia,
então não existe muito como precisar, não se leva documento que comprove
a residência. Atrai todo o público de Bonsucesso e de toda a área ali no
entorno. Com a pacificação, ele é um programa que é viável para a família.
Porque se você vai num final de semana em outro cinema, com cinco
pessoas, no mínimo, gastará R$ 100. E tem a terceira questão é que ele
funciona com uma divulgação boca a boca. A comunicação se faz ali
mesmo. Muita gente vai ao cinema lá sem saber o que está passando. É um
programa.

95
“Esta ideia do cinema de proximidade, não num sentido espacial, mas num sentido de ligação qualitativa do
território, é um conceito ressurgente que se apoia em práticas reais que talvez não tenham uma teoria
suficientemente elaborada. Ele não é uma volta ao velho cinema de bairro, tampouco um projeto de equipamento
próprio aos bairros "em dificuldade" (algumas tentativas neste sentido têm se mostrado falhas). O critério de
proximidade, se sabe, é um valor crucial em nossas sociedades modernas, apesar da grande facilidade de
deslocamento que as caracterizam. É uma noção ainda pouco elaborada e conceituada em termos de serviço.
Porém, os equipamentos e os serviços de proximidade são reivindicados pelos habitantes das grandes
aglomerações urbanas e pelos habitantes das zonas rurais e essa demanda é levada em consideração pelos
planejadores. Os urbanistas também se preocupam com este tipo de modernidade, cujos símbolos são o carro, as
redes de alta velocidade e a expansão urbana, um modelo de desenvolvimento fundado na acessibilidade mais do
que na proximidade.” (Tradução: Robert-Jan Bartunek e Talitha Ferraz).
194
O Cinecarioca, um exímio “cinema local”, atuou como um importante vetor na
arrumação urbana de onde fora erguido. A sala de exibição conectou-se às modificações
físicas empreendidas na morfologia do local, participando da solução citadina encontrada
pelas esferas estatais na organização do espaço segundo os programas de impacto social em
vigor.
Wellington conta que no terreno que abrange a área do cinema, onde também fica uma
Praça do Conhecimento96, havia casas; porém, seus moradores tiveram de sair rumo a outras
habitações:

O fato engraçado é que aqui tudo eram casas. Foram desapropriadas e


algumas pessoas tiveram suas casas compradas e outras foram realocadas
para os apartamentos da Minha Casa Minha Vida e estão muito felizes hoje,
a verdade é essa.

O gerente do Cinecarioca ao mesmo tempo relata que depois das obras gerais feitas na
localidade e da construção do cinema, a área foi rapidamente valorizada em termos
imobiliários.

Figura 39 - O cinema, ao fundo, na área onde há também a Praça do Conhecimento


(Foto: Arquivo próprio)

96
Praça do Conhecimento é um projeto da Prefeitura do Rio que funciona em comunidades pacificadas e alguns
bairros da cidade como um polo de inclusão digital e acesso à Internet e a diferentes formas de tecnologia. As
ações são voltadas para os moradores de tais localidades e constituem uma série cursos, oficinas, mostras etc,
com cunho educacional, artístico e cultural. Fonte: Site Praça do Conhecimento (Disponível em:
http://www.pracadoconhecimento.org.br/#/pracaconhecimento/projeto. Última visualização: 29 de janeiro de
2014).
195
O reflexo dessa valorização é facilmente percebido nos preços dos imóveis que
restaram em volta do cinema, cujos valores somam cifras altas para a realidade imediata de
pobreza que continua a assolar, a despeito dos planos governamentais, tanto o Complexo do
Alemão, quanto outros pedaços da Zona da Leopoldina (e demais favelas e subúrbios
cariocas):

Tem uma casa aqui atrás do cinema que está valendo 100 mil reais.
Valorizou muito os imóveis. É muito gratificante a nossa valorização, né,
conforme suburbanos e favelados. E ter esse privilégio de ser honrado com
uma estrutura dessas, você não vê uma comunidade que recebeu tantas obras
quanto o Complexo do Alemão. (Wellington)

A partir desses dados – sem desconsiderar a impressão de melhoria das condições


locais, que surge na voz de muitas pessoas, a exemplo de Wellington –, arriscamos dizer que
todo esse aspecto de “valorização” e “revitalização” se remete a uma conjuntura particular de
gentrificação97, intrinsecamente ligada aos influxos que o Rio de Janeiro vem recebendo por
ocasião da extensa agenda dos jogos esportivos mundiais que ocorrerão na cidade até 2016.
Os aumentos expressivos no âmbito das precificações do setor imobiliário são sentidos
também nas áreas mais pobres da cidade que, por sua vez, passou a ser organizada em função
da onda de melhoramentos e repaginações urbanos, de onde emergem tanto as práticas de
preços elevados em aluguéis e contratos de venda de imóveis, como também o uso da força

97
O conceito de “gentrificação” teve origem na década de 1960, com a socióloga britânica Ruth Glass, e seus
estudos foram consolidados com maior densidade pelo geógrafo, também britânico, Neil Smith, para quem o
processo de gentrificação esconde mais aspectos do que a aparente ideia de renovação urbana. A ação do capital
e do Estado é apontada pelo autor, que ainda cita a mídia como uma das principais propulsoras dos sentidos
elogiosos da “gentrificação”. “Na mídia, a gentrificação tem sido apresentada como o maior símbolo do amplo
processo de renovação urbana que vem ocorrendo. Sua importância simbólica ultrapassa em muito sua
importância real; é uma pequena parte, embora muito visível, de um processo muito mais amplo. O verdadeiro
processo de gentrificação presta-se a tal abuso cultural da mesma forma que ocorreu com a fronteira original.
Quaisquer que sejam as reais forças econômicas, sociais e políticas que pavimentam o caminho para a
gentrificação, e quaisquer que sejam os bancos e imobiliárias, governos e empreiteiros que estão por trás do
processo, o fato é que a gentrificação aparece, à primeira vista (…) como um maravilhoso testemunho dos
valores do individualismo, da família, da oportunidade econômica e da dignidade do trabalho (o ganho pelo
suor).” (SMITH, 2007, p. 18). Aplicando o termo ao nosso texto, em linhas gerais, entendemos que a noção
envolve o sentido de enobrecimento de uma determinada parte do espaço urbano, como se verifica, em parte, no
exemplo do Alemão e em demais áreas do Rio de Janeiro por onde empreendimentos do PAC ou do Porto
Maravilha têm passado. Nesses locais, desenvolvem-se grandes obras, com forte avanço imobiliário e garantia de
participação do capital privado (multinacional) aliado ao Estado. Essa área “gentrificada” passa, assim, a ser
equipada com novos aparatos urbanos e demais itens, tais como diferentes tipos de comércio (que já não seguem
mais o perfil do comércio de bairro tradicional), ou apenas se mantém residenciais. Promove-se através de ações
diretas e indiretas, sob a máxima da “revitalização”, o êxodo de antigos moradores, que são convidados a
ceder/vender suas casas para que o avanço das obras se efetive. Há também quem se retire porque já não
consegue mais arcar com os altos custos que a vida na zona renovada exige de seus habitantes. É comum que
emigrem junto deles as práticas de sociabilidade até então desempenhadas nesses locais.
196
por parte da polícia, em incontáveis situações, na remoção de moradores resistentes às ações
deliberadas do Estado.
Na favela de Nova Brasília, nos arredores do Cinecarioca, mora quem pode pagar por
casas que se valorizaram desde 2011. Os antigos moradores que não puderam lá permanecer,
de algum modo, deram lugar a uma nova realidade de habitação98. Os benefícios (maior
visibilidade da comunidade em relação ao resto da cidade, inauguração de equipamentos
culturais, mobiliário urbano recuperado etc) desta forma de “revitalização” e gentrificação
que houve nas adjacências do Cinecarioca Nova Brasília não escondem o fato das remoções,
embora não tenhamos recolhido dados suficientes (por não se tratar do foco desta pesquisa)
que embasem com precisão as condições atuais de quem foi indenizado pela entrega de suas
casas em prol das obras do Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC) 99 e do Morar
Carioca100 ou de quem foi realocado em casas do Minha Casa Minha Vida101.
A sedimentação do equipamento de lazer cinematográfico nesta favela ocorre
paralelamente à efetivação de uma política de ocupação permanente do território pela polícia;
funciona, em algum grau, ancorada na prestação de um serviço público de segurança.

98
O sentido de habitação de que falamos pressupõe a construção de um meio sociocultural para si, em vista da
partilha do espaço com outrem, para além dos sentidos mais rasos do “morar”. Por essa razão, o drama das
remoções afeta não apenas as condições materiais dessas pessoas, mas todo um círculo social e afetivo que elas
construíram, muitas vezes durante toda a vida, com a vizinhança.
99
O “Programa de Aceleração do Crescimento” (PAC) surgiu no segundo mandato do governo Lula, em 2007,
com o objetivo de promover grandes investimentos em infraestrutura urbana, social, energética e logística do
país por meio de grandes obras em todo o Brasil, além de medidas na área econômica em prol da desoneração
tributária, do crescimento do PIB e da geração de empregos entre outros pontos-chave. Em 2011, o programa
entrou em sua segunda fase, dando continuidade aos empreendimentos no âmbito do crescimento econômico e
da estruturação de áreas estratégicas para o governo. (Fonte: Site do PAC- Ministério do Planejamento
Disponível em: http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac . Última visualização: 27 de janeiro de 2014).
100
O Programa “Morar Carioca” é uma medida de planejamento urbano da Prefeitura do Rio de Janeiro que
prevê a urbanização de todas as favelas da cidade até 2020, com foco na inclusão social e na proteção ambiental
das áreas assistidas. Outra meta é a realização de obras em infraestrutura, melhorias paisagísticas e habitacionais
nesses locais. O programa conta com a parceria dos governos federal e estadual e de entidades privadas e não-
governamentais. Segundo informa o site do projeto: “O programa faz parte do legado da Prefeitura para
realização das Olimpíadas e tem como meta investir R$ 8 bilhões (…). Resultado da experiência acumulada pela
Prefeitura em áreas carentes, o Morar Carioca é um plano municipal de integração de assentamentos precários
informais. (…) As obras de urbanização do Morar Carioca serão executadas de acordo com o porte e a condição
de cada comunidade. Nas áreas enquadradas como urbanizáveis, estão previstas implantação de redes de
abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial, iluminação pública e pavimentação.”. No
mesmo texto, a Prefeitura informa que as áreas consideradas não urbanizáveis ou que apresentam riscos ao uso
residencial enquadram-se no âmbito do Minha Casa Minha Vida; seus moradores, desta forma, são cadastrados
para serem, em seguida, assentados em habitações providenciadas por este programa federal. (Fonte: Site da
Secretaria Municipal de Habitação – Morar Carioca. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/smh/exibeconteudo?article-id=1451251. Última visualização: 27 de janeiro de
2014).
101
O “Minha Casa Minha Vida” é um programa habitacional do governo federal que conta com a parceria de
estados e municípios brasileiros, além de empresas e entidades não-governamentais, na promoção do acesso da
população de baixa renda à casa própria. (Fonte: Site Caixa Econômica Federal. Disponível em:
http://www.caixa.gov.br/habitacao/mcmv/ . Última visualização: 27 de janeiro de 2014).
197
A entrevistada Marcia Mansur, técnica da Riofilme, comenta nesse sentido:

O projeto do Cinecarioca nasce em conjunto com o Morar Carioca e em


conjunto com a pacificação, que são instâncias separadas da prefeitura,
porque nem todo projeto do Morar Carioca está ligado à pacificação. Mas,
quando está, no caso, por exemplo, do Alemão, a implantação do
Cinecarioca fez parte da entrada do Estado para ofertar mais do que
segurança. Só abre salas em áreas pacificadas, mas o Cinecarioca vem para
ofertar cultura, equipamento cultural.

Portanto, não custa salientar que a existência do cinema no Complexo do Alemão se


valeu de ações que se amparam no advento de uma perene presença de autoridades policiais
na região. Se por um lado o cinema fincou raízes na área por conta de um projeto de
“democratização cultural”, por outro lado, mesmo indiretamente, ele é integrante de todo um
processo de reapropriação, por parte do Estado, de um pedaço da cidade que até 2010
encontrava-se sob outra dinâmica de forças: a dos conflituosos amálgamas entre o
narcotráfico, as milícias e a polícia.
Os últimos desdobramentos no setor da segurança pública, num recorte temporal de
cinco anos atrás para cá, excedem os limites deste trabalho, mas podemos inferir que nos
jogos de poder agora em voga no Complexo do Alemão, talvez os mesmos atores continuem
com participações ativas na vida das comunidades, ainda que seus níveis de força tenham sido
arrefecidos, no caso do tráfico, ou majorados, no caso dos contingentes policiais totalizados
pela figura da UPP.
É válido observar com maior acuidade a abertura de um cinema, em uma comunidade
com um inegável histórico crítico de violência, justamente no momento de intensos
investimentos do Estado via braços de controle e segurança. Nota-se claramente, no caso do
Complexo do Alemão, que o foco de poder estatal (irremediavelmente apoiado numa sedutora
construção discursiva midiática voltada para a criação de verdades sobre o passado, o presente
e o futuro do local) corporificou-se em ações e presenças concretas no território favelizado,
munindo-se, aí, de “instrumentos de intervenção material” (FOUCAULT, 1979, p. 182).
Trata-se, então, de pensar esta corporificação, em forma de exercícios e intervenções
nítidas no espaço reapropriado, não como uma sujeição das práticas sociais já efetivadas no
local às dominações de um Estado e de uma polícia. Antes, nos referimos aos desdobramentos
capilares da “retomada” do Alemão a partir da análise do poder “em sua face externa, onde
ele se relaciona direta e indiretamente com aquilo que podemos chamar provisoriamente de
seu objeto, seu alvo ou campo de aplicação, que dizer, onde ele se implanta e produz efeitos
198
reais” (Ibidem, p.183). Ou seja: entendemos por “efeitos reais” experiências como a deste
cinema e outros atos de intervenção estratégica (diretas e indiretas) na comunidade, que, a seu
modo, acabam por se relacionar com as extremidades e as ramificações do poder. No
horizonte da concepção do Cinecarioca Nova Brasília, visualizamos, assim, mecanismos
inscritos no seio de “formas e instituições mais regionais e locais” (Ibidem, p.182) das
práticas de poder em exercício.
O que queremos demonstrar é que o surgimento da sala de cinema na favela
“pacificada” teve como pilar para a sua concretização o contexto de controle estatal e policial
daquela comunidade. Isso se confirma, por exemplo, ao analisarmos a rede de discursos que
se construiu em torno do equipamento na ocasião de sua inauguração. O uso da palavra
“pacificação” e “ocupação” (militar e cultural), por exemplo, foi conditio sine qua non para as
alocuções proferidas pelos representantes dos governos estatais e municipais durante a
inauguração do Cinecarioca.
Aludindo ao cinema recentemente inaugurado à época, em 2011, o prefeito Eduardo
Paes comentou em entrevista durante a abertura do equipamento:

As forças policiais devolveram a paz para essa comunidade e a prefeitura


não vai descansar enquanto não trouxer todos os outros serviços. Temos
previstos um investimento de R$ 150 milhões para a construção de 15
creches, duas escolas, três clínicas da família, além de obras de
pavimentação urbana e iluminação. O tratamento será igual ao do Leblon. -
disse. Ele entregou uma placa de homenagem ao secretário estadual de
segurança, José Mariano Beltrame, e ao governador Sergio Cabral, entregue
para o comandante da Polícia Militar, coronel Mario Sergio Duarte. -
Gostaria de agradecer ao governo do estado e, em particular, ao secretário
Beltrame, por ter devolvido os espaços públicos para a cidade. Isso permitiu
atuarmos em áreas que antes não pertenciam à prefeitura do Rio - disse
Eduardo Paes. (MANDARIM, 2011)102.

A presença de membros do governo em solenidades de abertura de salas de cinema na


Leopoldina, segundo vimos em capítulos anteriores, não é prerrogativa dos tempos atuais. Já
no período em que Domingos Vassalo Caruso, o bem feitor dos subúrbios, como ficara
conhecido, dominava o mercado exibidor da área, a ida de políticos, secretários e funcionários
da municipalidade e de esferas estatais e federais às comemorações pela estreia de filmes ou
cinemas acontecia com certa frequência.

102
Fonte: MANDARIM, Elena. Complexo do Alemão ganha sala de cinema. JusBrasil, 2011. Disponível em:
http://gov-rj.jusbrasil.com.br/politica/6424120/complexo-do-alemao-ganha-sala-de-cinema. Última visualização:
9 de janeiro de 2014.
199
Entretanto, no caso atual do Cinecarioca Nova Brasília, a aparição de um desses
representantes em especial nos dá pretextos para refletirmos sobre uma conexão não comum
até então: o laço entre cultura/cinema/exibição e polícia/braço armado do Estado: para além
de quaisquer outros gestores, no evento de abertura do cinema do Alemão, o Secretário de
Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, foi um visitante de destaque. Na ocasião,
ele fez coro ao apreço pelo vínculo entre UPP e cultura: “A cada UPP instalada eu reafirmo
que é necessário levar os outros serviços, como cultura, educação e saneamento. São eles que
sedimentam o poder público e legitimam a paz.” (MANDARIN, 2011)103.

Figura 40 - O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao lado do secretário estadual de Segurança, José Mariano
Beltrame, na primeira sessão do Cinecarioca, em 2011 (Fonte: Site da Prefeitura do Rio de Janeiro)104

Em fotografias oficiais da solenidade de abertura do Cinecarioca Nova Brasília, é


comum encontrar o secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, assim como o
ex-comandante geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, coronel Mário Sérgio, e
outros membros das forças militares pacificadoras. Nas demais fotos de divulgação, é
interessante observar também como a presença massiva de carros da polícia militar, policiais
e soldados do exército é algo evidente.

103
Fonte: MANDARIM, Elena. Complexo do Alemão ganha sala de cinema. JusBrasil, 2011. Disponível em:
http://gov-rj.jusbrasil.com.br/politica/6424120/complexo-do-alemao-ganha-sala-de-cinema . Última
visualização: 9 de janeiro de 2014.
104
Fonte: Site da Prefeitura do Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=1406195 . Última visualização: 9 de janeiro de
2014.
200
Figura 41 - Presença do exército na inauguração do cinema (Foto: Shana Reis) 105

Figura 42 - Policiais e soldados em meio ao público durante a inauguração do cinema


(Foto: Severino Silva/ Agência O Dia)106

105
Fonte: Site Imprensa RJ/ Governo do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=344791 . Última visualização: 9 de janeiro de
2014.
106
Fonte: Site R7. Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/criancas-do-complexo-do-
alemao-assitem-pre-estreia-do-filme-rio-20110325.html. Última visualização: 9 de janeiro de 2014.
201
Figura 43 - Carros da PM na rua que dá acesso ao cinema (Foto: Shana Reis) 107

Tais imagens são relativas ao ano de 2011, quando o Cinecarioca passou a existir no
Complexo do Alemão. Porém, de fato, esta presença policial não se extinguiu com o passar
dos anos. Quando estive no Cinecarioca Nova Brasília em janeiro de 2014, na ocasião da
última experiência de trabalho de campo e partilha com os entrevistados, notei que na rua pela
qual se tem acesso à praça onde está a sala de exibição, viaturas da PM e homens da UPP do
Alemão são já componentes da paisagem. Ocupavam a área munidos, logicamente, de suas
grandes armas; colocavam bem à vista as suas ferramentas de trabalho, deles inseparáveis em
qualquer pedaço do Rio de Janeiro mesmo quando não há operações conflituosas.
Contudo, segundo a minha breve percepção do cenário, os policiais pareciam estar
bem integrados ao ambiente da comunidade, sem apresentar nenhum caráter mais hostil, pelo
menos na cena que presenciei durante o dia. Os moradores que por ali circulavam também
não demonstravam nenhum estranhamento em relação àquele contingente “fortemente”
armado em plena luz de um forte sol do verão carioca, nos arredores de uma praça de
aparência tranquila.
De todo o modo, sem hesitação, as benesses suscitadas por um cinema que promove a
construção de sociabilidades e a ocupação do espaço urbano por meio da espectação
cinematográfica são inegavelmente manifestas. Mas na medida em que o cinema for saindo
do estágio de experimentação – abrindo espaço e servindo de exemplo para outras
experiências parecidas – e conforme o período relativamente recente da pós-implantação da

107
Fonte: Site Imprensa RJ/ Governo do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=344791 . Última visualização: 9 de janeiro de
2014.
202
UPP for sendo superando, uma conduta interessante será estarmos atentos e nos ocuparmos de
uma investigação que dê conta da seguinte questão: até que ponto há nesse processo
associações – contingentes ou não – entre a materialização do Cinecarioca e a realidade de
“retomada” do Alemão pelas ações/presenças policiais/estatais? Seria essa sala de exibição
uma pequena peça ou ramificação regional de um exercício de poder que, por outro lado,
transcorre também a partir de uma face violenta? Mais do que respostas, as novas
ponderações dependerão da observação do processo de sedimentação do cinema e da UPP,
que, por hora, não se encontra de todo finalizado.

4.2.2. Promessas de reabertura


No âmbito do programa Cinecarioca, por iniciativa da Riofilme/ Prefeitura do Rio e
operação cotidiana de empresas exibidoras, bem aos moldes da lógica da parceria público
privada, está programada uma série de reaberturas de cinemas de rua suburbanos – não apenas
na Zona da Leopoldina, mas também em bairros da Zona da Central do Brasil –, que
sucumbiram à onda de fechamentos ocorrida na década de 1990 e nos primeiros anos do
século XXI.
De acordo com informações coletadas na entrevista feita em 2012 com o diretor-
presidente da Riofilme, Sérgio Sá Leitão, atualmente também secretário de Cultura do
município do Rio, estudos de viabilidade são permanentemente realizados em parceria com a
Subsecretaria de Patrimônio Cultural, da Secretaria Municipal de Cultura, outro órgão da
Prefeitura do Rio de Janeiro. Análises de cerca de 100 imóveis localizados nos subúrbios
cariocas já estiveram na pauta de discussão dessas entidades. O objetivo desses diagnósticos é
identificar quais prédios de extintos cinemas podem voltar a ser, a longo prazo, cinemas
subsidiados pelo setor estatal, aos moldes da gestão do Cinecarioca. Na maioria das vezes, é
dada prioridade a imóveis fechados, sem funcionamento qualquer.
Na época quando conversei com Sérgio Sá Leitão, a Riofilme havia elaborado um
trabalho que destacava sete imóveis entre muitos ex-equipamentos de exibição da zona norte
carioca. Destes sete prédios de extintos cinemas elencados, apenas quatro – Olaria/Santa
Helena, Guaraci, Vaz Lobo e Madureira – tinham reais possibilidades de receber tratamentos
em termos de recuperação patrimonial e de infraestrutura para, em seguida, serem reabertos
no mercado de exibição carioca em poucos anos, de acordo com a previsão do diretor-
presidente da Riofilme. O Rosário/ Ramos estava presente na lista dos sete prédios estudados.
Entretanto, segundo Sergio Sá Leitão, esta sala ainda não constava, àquela altura, no grupo
203
dos quatro cinemas à espera urgente de reativação, embora houvesse circulado na imprensa,
no início de 2013, a notícia categórica sobre a sua reabertura.
No Jornal O Globo, chegou a ser publicada em junho de 2012 uma reportagem em que
era anunciado como certo o ressurgimento dos cinemas Madureira, Vaz Lobo, Guaraci e
Olaria. Todos eles foram relevantes salas de exibição localizadas, respectivamente, nos
bairros de Madureira, Vaz Lobo, Rocha Miranda e Olaria, no subúrbio carioca. A matéria
revela que o investimento total da Prefeitura nos quatro projetos de reativação seria de R$26
milhões.
Sobre especificamente o Olaria, que no texto era o único da Leopoldina prestes a abrir,
o texto informa em aspas de Sérgio Sá Leitão, presidente da Riofilme, sobre um projeto que
transformaria o cinema extinto em centro cultural. Esse dado não pôde ser confirmado nesta
pesquisa, pois não encontramos nenhuma pista acerca de tal projeto e ele também não fora
mencionado pelos entrevistados.
Na continuação da reportagem, alguns relatos de Luiz Severiano Ribeiro indicam o
interesse da iniciativa privada em manter a relação com o equipamento em parceria com o
poder público:

Pensamos em doar o Cine Madureira para o poder público. Já com o Olaria,


faríamos algum projeto em conjunto com a prefeitura – afirma Luiz
Severiano Ribeiro, presidente do Grupo Severiano Ribeiro. – Os imóveis
estão vazios e fechados. Um final feliz seria bom para a cidade, que ganharia
novos espaços exibidores, e para a empresa, que tem raízes cariocas.
Pretendemos inclusive concorrer nas licitações para operar os cinemas no
futuro. (RIBEIRO, S., 2012)108

Três meses antes da publicação acima em O Globo, o jornal O Dia escolheu como
tônica para a matéria “Um final feliz para cinemas de rua: Município reabrirá até o fim do ano
sete espaços fechados em Ramos, Madureira, Rocha Miranda, Engenho Novo, Méier,
Cachambi e Vaz Lobo” a esperança da volta do Rosário à sua função como cinema. A
reativação do extinto e abandonado Rosário, antigo Ramos, aparece na reportagem como algo
garantido e iminente:

Não é ficção: antigos ‘palácios’ da sétima arte que há mais de década


estavam fechados, sete cinemas de rua do subúrbio carioca serão reabertos

108
Entrevista concedida ao repórter Rafael Soares para o Jornal O Globo. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/cultura/prefeitura-vai-revitalizar-cinemas-da-zona-norte-5172758. Última visualização:
29 de janeiro de 2012.
204
até o fim do ano. O roteiro é de final feliz para moradores de Ramos, onde
voltará a entrar em cena o Cine Rosário, Madureira (Cine Alfa), Rocha
Miranda (Guaraci), Engenho Novo (Cine Santa Alice), Méier (Cine Bruni),
Cachambi e Vaz Lobo — os últimos dois com cinemas que levam o nome
dos bairros. A pedido da RioFilme, empresa da prefeitura que promove o
desenvolvimento da indústria audiovisual, a Subsecretaria de Patrimônio
Cultural da Secretaria Municipal de Cultura já está em fase de estudo de
viabilidade econômica para reativação dos espaços. Assim que forem
reabertos, os cinemas serão operados por uma empresa particular do ramo.
(UM FINAL..., 2012)

No escopo desta investigação, não cabe analisar a pressa jornalística em passar


adiante a informação trabalhada em forma de notícia, mas há de se notar que nenhum dos
cinemas leopoldinenses acima listados pelas reportagens como casas exibidoras prestes a
reinaugurar saíram da situação de inação. Nem o ressurgimento dos leopoldinenses Olaria e
do Rosário, nem o ressurgimento dos demais cinemas de bairros localizados em outros
subúrbios, como o da Central do Brasil (nesse caso, exceto o Imperator, que fica no Méier, e
foi, sim, reaberto) deixou de ser uma obra em potencial da Prefeitura. O lapso jornalístico que
aí reside talvez se vincule à pura exigência da “pauta quente”, com pouco tempo de
checagem, ou às declarações apressadas dos entrevistados à época da apuração.
A técnica Marcia Mansur, que lida diretamente com esses projetos na Riofilme,
explicou que o processo de reinauguração de cinemas suburbanos abandonados reúne etapas
complexas, que envolvem outros órgãos e dependem, inclusive, de negociações com os donos
dos imóveis. Ou seja: quaisquer afirmações categóricas nesse sentido podem cair no vazio, já
que não se pode garantir quando exatamente esses cinemas serão reabertos, a não ser que
todos os acordos e reformas já estejam em fase de consolidação.

Para esses cinemas serem reabertos a prefeitura precisa desapropriar o


imóvel, torná-lo de utilidade pública e aí, então, se vai para uma negociação
de preço com o proprietário. A procuradoria da Prefeitura costuma chegar a
bons acordos para ambos os lados, com preço de mercado etc. Uma vez feito
isso, a Riofilme tem condições de publicar um edital, que tem que prever
duas ações: uma que é de restauro e revitalização, que só ocorre para bens
tombados e envolve o patrimônio, depende da avaliação do Conselho
Municipal de Patrimônio e outro edital que é o edital voltado para o exibidor,
para a seleção de exibidor. Então, o modelo é esse. (Marcia Mansur)

Os últimos dados coletados com a Riofilme indicam que o Rosário está hoje na lista
dos próximos cinemas a serem retomados, embora não haja uma data definida por conta das
burocracias e etapas supracitadas. No caso do Olaria, que antes integrava as listas informadas

205
pelo presidente da Riofilme e a imprensa, não há planos.
Na entrevista com Marcia Mansur, percebe-se que o reaparecimento do Rosário requer
antes uma intervenção urbana de grandes vultos, sobretudo na reformulação dos acessos ao
pedaço do bairro de Ramos onde fica o prédio, justamente no trecho imediato à ferrovia. A
área atualmente encontra-se desorganizada, com muita poeira e barulho ocasionados pelas
obras da Transcarioca; entretanto, mesmo em fases anteriores à construção desta via expressa,
a circulação ali já era um pouco prejudicada pelo fluxo dos carros e ônibus que rodam na Rua
Leopoldina Rêgo. Para, por exemplo, passar ao outro lado da linha de ferro, indo, assim, para
a paralela Rua Uranos, há uma passagem subterrânea, bem escura, mas não tão vazia porque
alguns camelôs montam nela as suas barracas. O local durante o dia não parece oferecer
grandes perigos, mas à noite talvez seja mais delicado por ali transitar.
A questão da infraestrutura urbana do entorno do Rosário é um fator que, na análise
técnica da entrevistada, será essencial para atrair o público, consolidar a ocupação do cinema
e impulsionar a região ao redor do equipamento. Com esse ponto de vista, ela comenta:

No caso do Rosário, a gente acha que tem que ser feita uma passarela. É
muito perto da estação, de um comércio do outro lado, mas deve-se passar
por uma passarela subterrânea que pode afastar as pessoas. Então, uma
passarela superior pode ser uma alternativa para funcionar. É uma zona que
tem muito público circulando, um público potencial, não é um lugar ermo.
(Marcia Mansur)

Diante do contexto de parceria entre a Riofilme e empresas do setor de exibição na


reabertura e inauguração de salas de exibição nos subúrbios, mediante editais de licitação para
a operação e a gestão cotidianas dos cinemas, algumas linhas teóricas servem para
analisarmos mais densamente os moldes em que se dão tais enlaces.
Assim, recorremos, por exemplo, a Milton Santos (2003), autor que considera que as
macroempresas (e, neste caso, também as médias empresas) ganham importância na regulação
do conjunto do espaço em nossa sociedade. Para ele “a tendência é a prevalência dos
interesses corporativos sobre os interesses públicos, quanto à evolução do território, da
economia e das sociedades locais” (SANTOS, 2003, p. 107).
Tal asserção não se aplica somente ao fato imediato da operação de um equipamento
cultural público ser feito por uma empresa privada, mas com verba pública, tendo alto grau de
inserção no espaço local, o que até seria o fator de “menor” efeito; além disso, esse ponto de
vista é válido para pensarmos, com um olhar mais abrangente, como o aparelhamento urbano

206
(infraestrutura, cultura e lazer, mobilidade etc) e a gestão, segundo um modelo aliado ao
mercado, dos espaços de uma determinada área pauperizada são conduzidos justamente
durante o processo de ocupação territorial (policial e estatal) de partes dos subúrbios cariocas.
Daí, tiramos que as mudanças significativas empreendidas com fins capitalistas no
espaço urbano – promovidas por várias instâncias, entre elas, as corporações – se relacionam
fundamentalmente com: 1) os objetivos de crescimento econômico do PAC; 2) os jogos
mundiais esportivos a serem realizados no Rio (e todos os impactos na estruturação da cidade
para cumprir com as exigências de comitês esportivos nacionais e mundiais); e 3) as
dinâmicas comerciais que envolvem governantes e agentes do capital imobiliário/ empreiteiro
na “revitalização” e criação de novos espaços citadinos.
Em outras palavras, é clara a percepção de que o papel central da cultura e suas
atividades/equipamentos passa a ser atravessado pelos fluxos dos interesses do capital que
rege as ordenações às quais o Rio de Janeiro se curva na tentativa de se adequar ao modelo de
desenvolvimento econômico criativo tão propalado e aplaudido pelas gestões governamentais
atuais (tanto federal, quanto estadual e municipal).
É pertinente, assim, evocarmos brevemente nessa perscrutação as noções de “cultura
do consumo”, “economia criativa” e “indústria criativa” para melhor calçar as nossas
observações sobre os projetos da Prefeitura do Rio em prol da retomada de salas de cinema
suburbanas. Pela designação de tais termos, é possível encontrar meios para verificar o que
vem a ser “cultura” na concepção da Prefeitura, já que seus significados, de alguma maneira,
se comunicam com os sentidos explicitados na autodescrição da atual da Secretaria Municipal
de Cultura (SMC):

A SMC atua para consolidar o Rio como um dos principais polos culturais da
América Latina, elevando a contribuição do setor para o desenvolvimento da
cidade e estimulando a qualidade e a competitividade da produção cultural
carioca (PREFEITURA DO RIO). 109

As palavras “desenvolvimento” e “competitividade” inserem-se, com força, nas


preocupações que circulam em torno das noções acima mencionadas. Assim, para auxiliar a
nossa observação, lembramos que na base da relação entre economia e cultura, como já bem
definiu Don Slater (2002, p.57), está a “cultura do consumo” que, como um termo
contraditório e diversamente problematizado por diversos estudos da Antropologia à

109
Site da Prefeitura do Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Cultura. Disponível em:
http://www.rio.rj.gov.br/web/smc/conheca-a-secretaria . Última visualização: 27 de janeiro de 2014.
207
Sociologia, passando pela Economia, se coloca, diversas vezes, em contraponto à cultura,
porque na “cultura do consumo”:

(…) valores e mercadorias são fabricados e calculados em relação ao lucro,


em vez de surgirem organicamente de uma vida individual ou comunal
autêntica. O consumismo representa sobretudo o triunfo do valor econômico
sobre todos os outros tipos e fontes de valor social. Tudo por ser comprado
vendido. Tudo tem seu preço. (Ibidem, p. 67).

Sob esta perspectiva, na esfera da rentabilização da cultura e nas malhas dos


mecanismos que buscam torná-la competitiva, projetos culturais como iniciativas de
reabertura de salas de cinema, por exemplo, são submetidos em primeiro plano aos interesses
do capital para só depois, de fato, responderem ao que realmente devem se ater: o social. Até
que ponto tais reaberturas não se envolvem, na verdade, com a dotação da cidade de recursos
culturais que atendam os novos perfis que o Rio de Janeiro deve seguir para, cada vez mais, se
enquadrar no sentido de “cidade-commodity”, isto é, a cidade-mercadoria, cujos todos os
aspectos da configuração de seu tecido urbano precisam ser lucrativos e estarem em
consonância com os desejos de investidores?
Nesses termos, vale retomar as ideias de Lefebvre (2012), ressaltadas no começo deste
trabalho, para questionar: a cidade e seus projetos assim organizados fazem mais jus ao “valor
de troca” do que ao “valor de uso” (LEFEBVRE, 2012)? Um cinema reaberto irá provocar a
construção de uma apropriação diferenciada dos espaços de seu entorno, historicamente
prejudicados pela pauperização e abandono, ou se aliará aos perfis serializados e banalizados
do mercado exibidor hegemônico, sendo mais um exemplo de salas “des-localizadas”, como
os multiplex de shopping, que descarregam de significados e afetos as práticas de espectação e
as sociabilidades ou que, no caso específico da Zona da Leopoldina, guardam em si os meios
de enfraquecimento da imagem do cinema de bairro outrora cultivado nas fases de ouro dos
cinemas de estação suburbanos? Servirão apenas para as contabilidades gerais, como
equipamentos moldados para a efetivação de uma cidade competitiva?
Com apoio nas ideias de Félix Guattari (1992) acerca da corporeidade dos espaços,
podemos adicionar mais um ponto ao nosso exame: os espaços construídos das cidades, e aí
incluímos o equipamento sala de cinema de rua, vão além das estruturas visíveis e funcionais;
são máquinas de sentido, portam universos incorporais que podem trabalhar em dois sentidos:
por aquele que se associa a um esmagamento uniformizador ou por aquele que age pela re-
singularização libertadora da subjetividade individual e coletiva (GUATTARI, 1992, p.160).
208
Assim, há de se verificar se os planos de reabertura de equipamentos de exibição nos
subúrbios vêm reforçar as cotações do mercado ou, em lugar disso, se incumbem da tarefa de
livrar o equipamento sala de cinema do consenso mercadológico da cidade-commodity.
Nessa discussão, então, é importante voltar às noções correlatas “indústria criativa” e
“economia criativa”, explicando-as. Relativamente jovens, datadas da década de 1990, as duas
expressões nascem da necessidade contemporânea de debater com maior ênfase os enlaces
entre a dimensão cultural e a economia. Na revisão teórica sobre os termos realizada pelo
autor Paulo Miguez (2007), a “economia criativa” refere-se aos:

(…) bens e serviços baseados em textos, símbolos e imagens e refere-se ao


conjunto distinto de atividades assentadas na criatividade, no talento ou na
habilidade individual, cujos produtos incorporam propriedade intelectual e
abarcam do artesanato tradicional às complexas cadeias produtivas das
indústrias culturais. Suas múltiplas imbricações e importantes implicações
fazem com que a questão ultrapasse o campo da cultura e invada outras áreas
do conhecimento, especialmente a economia e a gestão (MIGUEZ, 2007,
p.97).

Somada à primeira ideia, a expressão “indústria criativa” pode ser compreendida como
um recente setor da economia, que teve o seu campo de atividades ampliado devido à
disseminação das indústrias culturais clássicas, através de novas formas de distribuição e do
avanço das tecnologias. Miguez (2007) menciona que a melhor definição encontrada até hoje
para a “indústria criativa” fora formulada em 1997 pelo grupo Creative Industries Task Force,
vinculado ao Ministério da Cultura britânico:

(...) as indústrias criativas são aquelas indústrias que têm sua origem na
criatividade, habilidade e talento individuais e que têm um potencial para
geração de empregos e riquezas por meio da geração e exploração da
propriedade intelectual. Isto inclui propaganda, arquitetura, o mercado de
artes e antiguidades, artesanatos, design, design de moda, filme e vídeo,
software de lazer interativo, música, artes cênicas, publicações, software e
jogos de computador, televisão e rádio (BRITISH COUNCIL apud
MIGUEZ, 2007, p. 102).

Avizinhando-se dos ensejos da “indústria criativa”, os planos de reabertura de salas de


cinema pela Prefeitura do Rio fazem parte de um amplo entendimento sobre a cultura como
algo passível de ser incorporado no seio das relações entre o setor público e o setor privado,
de forma a potencializar as chances de lucratividade que as atividades culturais “criativas” são
capazes de gerar (e, aqui, não excluímos o legítimo retorno dos lucros para o social e o local,

209
a curtos ou longos prazos).
Este enfoque leva em consideração o aspecto de que uma íntima relação com o
mercado irá, sem dúvida, estabelecer que quaisquer ações no âmbito cultural vão operar em
consonância com a máxima da competitividade. Essa máxima não esconde o fato de que
mercadorias podem sucumbir à emergência de outras mercadorias “inovadoras” ou
“superiores”, já que os interesses do capital se fundam no esgotamento do desejo e na rápida
substituição dos objetos (materiais ou simbólicos) que circulam no sistema da troca
capitalista. Portanto, as dinâmicas que se dão em torno da sala de cinema, nesse caso, podem
simplesmente voltar a passar por um completo esvaziamento, caso os ventos do mercado
soprem para outras áreas.
Em contrapartida, reconhecemos que o projeto do Cinecarioca, tendo como exemplo o
Imperator e o Nova Brasília, já em atividade, prevê a seguridade dos cinemas por meio de
recursos subsidiados pela Prefeitura, na figura direta da Riofilme; também é evidente que o
projeto consegue cultivar uma comunicação com os públicos locais, apesar da política
fetichista da atual gestão da cidade, baseada no marketing e na noção de cidade-commodity,
que procura transformar cada medida e ação numa vitrine de governo.
As promessas de reabertura de extintos cinemas suburbanos, e mais especificamente
do Rosário, que consta na pauta da administração municipal, podem se valer da retaguarda
oferecida pela Prefeitura. Além disso, há condições concretas para a existência de certa
liberdade no uso de tais equipamentos por parte dos frequentadores, por conta da proximidade
comunitária que a Prefeitura busca manter como essência dos cinemas locais já inaugurados.
Atrelado a isso, citamos o autor Paulo Filipe Monteiro (1993) que, em outro contexto
de análise, menciona que o público sempre dará seus sentidos às coisas das artes, apesar dos
fortes laços que as produções artísticas costuram com o mercado. Numa livre aplicação de seu
texto sobre o mundo das artes, em nosso exame sobre equipamentos urbanos cinematográficos
– que não deixam, por sua vez, de trabalhar com objetos artísticos – fazemos coro à ideia de
que:

Tudo depende, evidentemente, é da forma como encaramos o mercado.


Normalmente, quando se fala da mercantilização das artes, é no sentido
pejorativo: é porque se considera que as artes caíram na lama das convenções
burguesas e das especulações financeiras. No mercado, diz-se, as pessoas se
relacionam com as artes por razões de convenção burguesa, de prestígio, ou
de investimento ecómico; e assim o mercado destrói o sentido das artes. Mas
também podemos ver o enorme mercado das pessoas que se relacionam com
as artes como uma instância que não destrói o sentido: que o multiplica. A
210
perda da partilha colectiva de um sentido dado a uma obra não será
substituída pelo acto, colectivamente partilhado, de lhe dar sentidos, ainda
que mais ou menos individuais? (MONTEIRO, 1993, p. 4).

Em meio a todas essas discussões, o que não pode ser negado é o risco desta rica
possibilidade de reaparecimento do dispositivo sala de cinema de rua (na figura de um local
alternativo à prática de espectação em locais “standartizados” e restritos a centros comerciais)
ser relegada, ao final de tudo, aos determinismos do mercado, que comumente abocanha as
resistências do âmbito cultural. Uma vez que os planos de reinauguração ou construção de
novas salas de cinema nos subúrbios do Rio de Janeiro configuram-se como parte integrante
das políticas culturais (que hoje consideram em alta estima a lógica do capital, com vistas à
rentabilização comercial dos seus empreendimentos), é pertinente analisar esse quadro com
apoio naquilo que Agamben (2009) nota ser uma marca da contemporaneidade e do
capitalismo em nossa época: a “proliferação dos dispositivos”.
Conforme vimos em outro capítulo, na concepção de Agamben (2009), do corpo a
corpo entre viventes e dispositivos surgem os sujeitos. Atrelado a isso, ele defende que na
contemporaneidade estamos diante de uma proliferação sem precedentes de dispositivos, que
são, em seu turno, responsáveis por uma incessante captura dos viventes, já que, antes de
tudo, os dispositivos são “uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal
[são] também uma máquina de governo.” (AGAMBEN, 2009, p.46).
O que diferencia, na visão do filósofo, os dispositivos atuais dos dispositivos
tradicionais, além do seu acelerado crescimento em números, é que estes últimos, de fato,
geravam novos sujeitos, ainda que tais novos sujeitos encontrassem a “própria verdade na
não-verdade do Eu pecador repudiado” (Ibidem, p.47). Revisitando Foucault, Agamben nos
diz que isso era o que ocorria na sociedade disciplinar, ou seja: um período quando sujeitos
consistentes emergiam a despeito de se vincularem a uma produção de subjetividade ao
mesmo tempo “cindida” e “dona e segura de si”, que se mostrava “inseparável da ação
plurissecular do dispositivo penitencial, no qual um novo Eu se constitui por meio da negação
e, ao mesmo tempo, assunção do velho” (Ibidem, p. 46).
Entretanto, nos tempos de agora, que “superaram” a sociedade disciplinar, levou-se a
um grau extremo aquilo que Agamben chama de “mascaramento que sempre acompanhou a
identidade pessoal” (2009, p.42); tendo em vista a atual proliferação dos dispositivos e seus
contatos cada vez mais imediatos com os viventes, em lugar dos sujeitos consistentes, o que
surge hoje são sujeitos espectrais e toda uma vacuidade oferecida pela dessubjetivação que daí

211
se levanta.
Sobre isso, ele explica que:

O que define os dispositivos com os quais temos que lidar na atual fase do
capitalismo é que estes não agem mais tanto pela produção de um sujeito
quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um
momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de
subjetivação, e o Eu penitencial se constituía, havíamos visto, somente por
meio da própria negação; mas o que acontece agora é que processos de
subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se
reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo
sujeito, a não se de forma larvar e, por assim dizer, espectral. Na não-verdade
do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade (AGAMBEN, 2009, p.
47).

Uma das saídas para o impasse, nas palavras do autor, seria recorrer à profanação de
tais dispositivos, isto é, a um ato, tal como no sentido religioso, que correspondesse à
dessacralização daquilo que é separado numa esfera não-humana e, assim, consagrado. É
justamente pelo procedimento de seleção e sacralização que os dispositivos em excesso
capturam o desejo do homem, interrompendo o processo de subjetivação que leva os viventes
a se conhecerem como “entes” e a constituírem um mundo (Ibidem, p. 44), dada a
espectralidade que se insinua e avança durante todo o processo. Por assim dizer, a
“profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício [ou seja,
o dispositivo que realiza e regula a separação] tinha separado e dividido” (Ibidem, p. 45).
Para que as recentes possibilidades de retomada da exibição cinematográfica em
bairros suburbanos (em nosso caso, nos bairros Leopoldinenses) se aproximem mais de um
sentido de profanação do dispositivo sala de cinema e da produção efetiva de subjetividades
criadoras é oportuno o exercício da restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e
separado, ou ainda poderá vir a sê-lo, pelos dispositivos proliferados e nas produções que, na
verdade, não correspondem à formação de sujeitos e identidades reais.
Paralela a essa linha de pensamento, mas ancorada numa concepção de subjetividade
que difere um pouco da produção subjetiva ligada à relação entre viventes e dispositivos, a
estrutura de pensamento de Guattari é, da mesma forma, uma aliada para esse momento. É
necessário ir ao encontro das exposições deste autor acerca das conexões entre a “cidade
subjetiva”, seus componentes e os sujeitos, elementos que a seguir se definem.
Nos espaços construídos das cidades, as edificações onde há mostra de filmes e prática
de espectação cinematográfica vinculam-se à vida das pessoas e compõem com os demais

212
aparatos urbanos. Quando se sedentarizaram, ainda no início do século XX, em prédios
próprios à finalidade de exibição, perfis arquitetônicos passaram a pulular de rua em rua,
estabelecendo contatos com os passantes e provocando a paisagem com fachadas que
escondiam – com qualidades que hoje, para nós, soam até mesmo auráticas – um universo
onírico revelado por feixes de luz. São impressões, afetos e laços que, em algum grau, ainda
sobrevivem, não obstante o recorrente do sequestro das salas exibidoras para dentro dos
shoppings, conforme se acostumou a ver no Brasil.
É conveniente, decerto, meditar: os equipamentos coletivos urbanos cinematográficos
parecem se assemelhar ao que Félix Guattari nomeia “componentes maquínicos” das cidades.
Por esse ponto de vista, os edifícios não se resumem apenas à sua ordem material, ao
concreto, aos ferros e vidros que o dão forma; ao contrário, sua consistência “(...) envolve
dimensões maquínicas e universos incorporais que lhe conferem sua autoconsciência
subjetiva.” (GUATTARI, 1992, p. 160).
Se através dessa perspectiva dá-se abertura para considerar a sala de cinema um
aparato construído das ruas, que funciona na forma de componente maquínico da cidade,
compreende-se que ela agirá na formação de subjetividades, mesmo parcialmente,
modelizando focos de subjetivação.

São as peças das engrenagens urbanísticas e arquiteturais, até em seus


menores subconjuntos, que devem ser tratadas como componentes
maquínicos. Porém, se é verdade que esses componentes maquínicos são
antes de tudo produtores de subjetividade, é porque eles são mais do que
uma estrutura ou mesmo um sistema em sua acepção comum. Convém
especificá-los enquanto sistemas autopoiéticos, tal como os qualifica
Francisco Varela que, aliás, assimila esse tipo de sistema às máquinas. (...)
Pode parecer paradoxal deslocar assim a subjetividade para conjuntos
materiais, por isso falaremos aqui de subjetividade parcial; a cidade, a rua, o
prédio, a porta, o corredor... modelizam, cada um por sua parte e em
composições globais, focos de subjetivação. (GUATTARI, 1992, p.160-
161).

Guattari fornece dois bons exemplos à sua explicação, úteis para a compreensão dos
conceitos em nossa investigação. Diz que o agoráfobo é afetado pelo lugar por onde caminha,
o olhar dos demais ao seu redor e o próprio ato de circular, ou seja, todo o ambiente ao seu
redor fomenta a sua agonia; igualmente, o autor comenta a respeito da aflição sentida quando
se entra em uma escola primária: a angústia “transuda das paredes” (Ibidem, p.162).
Evocamos essas partes da obra de Guattari (1992) para observar que tanto a
ambiência, quanto os aspectos materiais de determinado local vêm a nós através de um
213
conhecimento “pático” (na terminologia de Viktor Von Weizsaker, segundo lembra Guattari),
isto é, um modo de conhecer o mundo que “não procede de uma discursividade concernente a
conjuntos bem delimitados, mas antes por agregação de Territórios existenciais” (Idem). Aí
associada, a subjetividade, que para Guattari é coletiva porque sempre estará inscrita no
registro social, abrange mais do que as cadeias significantes da linguagem, as funções de
significação. Assim,

(...) não se poderá mais falar do sujeito em geral e de uma enunciação


perfeitamente individuada, mas de componentes parciais e heterogêneos de
subjetividade e de Agenciamentos coletivos de enunciação que implicam
multiplicidades humanas, mas também devires animais, vegetais,
maquínicos, incorporais, infrapessoais. (Idem)

Na sua proposta transdisciplinar de restauração da cidade subjetiva – cujos espaços, na


contemporaneidade, parecem ter se padronizado, tornando-se intercambiáveis e equivalentes
(GUATTARI, 1992, p. 169) – Guattari olhará para essa megamáquina produtora de
subjetividade individual e coletiva, conferindo um olhar especial ao papel que os espaços
construídos citadinos e os seus elementos exercem sob a existência humana, arrolando nesse
bojo elementos de ordens imateriais, imaginárias, fluxos midiáticos e tudo o que na cidade é
posto a circular.
Ao antecipar tantos aspectos heterogêneos, ele postulará, em seguida, que os arquitetos
das cidades devem se posicionar quanto ao gênero de subjetividade que ajudam a engendrar
(Ibidem, p. 163).

Irão no sentido de uma produção reforçada de uma subjetividade do


“equivaler generalizado”, de uma subjetividade padronizada que tira o seu
valor de sua cotação no mercado dos mass-mídia, ou colocar-se-ão na
contracorrente, contribuindo para uma reapropriação da subjetividade pelos
grupos-sujeitos, preocupados coma re-singularização e a heterogênese? Irão
no sentido do consenso infantilizador ou de um dissenso criador? (Idem).

O que Guattari põe em pauta é o próprio comprometimento do arquiteto, de modo que


as escolhas que irá fazer estejam em alerta quanto à grande possibilidade de sucumbirem aos
imperativos e coações de determinadas forças esmagadoras (embora com elas sempre se
estabeleça algum nível de comunicação), a fim de que “uma assunção estética” e “uma
responsabilidade ético-política” não sejam preteridas.
É a necessidade de uma “re-finalização ético-estética” que, para além dos problemas

214
arquiteturais, “será encontrada em todos os níveis da atividade humana” (Ibidem, p. 164).
Com isso, cremos que a mesma preocupação pode ser estendida aos debates acerca do
posicionamento que, frequentemente, os demais planejadores das cidades precisam assumir.
Nesse grupo, podem ser incluídos os profissionais da esfera estatal que elaboram projetos de
equipamentos culturais, tais como os cinemas que se espera reabrir ou inaugurar em parceria
com a iniciativa privada.
A sugestão que Guattari nos deixa chama atenção para os perigos dos engajamentos
que desconsideram a articulação ético-política entre três dimensões ecológicas, base da
ecosofia: ambiental, social e da subjetividade humana (GUATTARI, 1990; 1992).

Na falta de uma consideração suficiente das dimensões de ecologia


ambiental, de ecologia social e de ecologia mental – que reagrupei sob a
rubrica geral de uma ecosofia –, é a humanidade e mesmo o conjunto da
biosfera que se encontrariam ameaçados. (...) A valorização das atividades
humanas não pode mais ser fundada de forma unívoca sobre a quantidade de
trabalho incorporado à produção de bens materiais. A produção de
subjetividade humana e maquínica é chamada a superar a economia de
mercado fundada no lucro, no valor de troca, no sistema dos preços, nos
conflitos e lutas de interesses (GUATTARI, 1992, p.164).

Com o cinema em favela e as promessas de reabertura de alguns cinemas de estação


da Zona da Leopoldina quer-se produzir espaços que substancialmente se afastem do modelo
dos cinemas confinados em shopping centers, regidos pela unanimidade do mercado? A
aposta das políticas culturais nesse setor será no oferecimento do lazer cinematográfico como
um consenso associado ora aos interesses do capital imobiliário, ora à tomada territorial da
força policial? São perguntas que colocamos a contextos muito recentes.
Como se dará o escape das armadilhas que levam à “dessubjetivação” (AGAMBEN,
2009) e à submissão a forças opressivas é o que deverá ser observado para sanar as
elucubrações nesse sentido. Portanto, para tal, propomos uma atitude de dilatação do
pensamento sobre o presente, de modo que alarguemos a percepção (e os afetos criadores),
indo além da espectação imediata dos clarões que a nossa época nos apresenta. Convém não
se deixar cegar: colocar-se no encalço das sombras do presente, procurando enxergar e
examinar a obscuridade dos dias hodiernos, assim como quando forçamos a visão e a mente
logo que adentramos uma sala de cinema a meio breu, com o filme já iniciado. Afinal, “(...)
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62).

215
Conclusão

Quando finalizava este trabalho, fui surpreendida pela notícia de que a Unidade de
Polícia Pacificadora do Parque Proletário, no Complexo do Alemão, havia sido atacada por
homens fortemente armados que, segundo reportagens publicadas110 pela imprensa,
participam de facções do narcotráfico atuante na região. Nos confrontos, uma jovem policial
foi atingida por um tiro e morreu. Um soldado da PM e dois moradores ficaram feridos. Nos
dias posteriores, a Secretaria de Segurança Pública determinou uma contraofensiva. Em busca
dos criminosos que atingiram a UPP e as vítimas, as polícias militar e civil começaram, então,
a fazer operações em 12 comunidades cariocas onde age a facção que comanda o comércio de
entorpecentes do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro, em Ramos e na Penha. Resultado
da ofensiva: mais execuções. Desta vez, morreram moradores da Favela do Juramento (nas
proximidades do Complexo do Alemão). Alguns não tinham sequer passagem anterior pela
polícia.
Tais fatos compõem uma conjuntura na qual o extremo horror acomoda-se entre as
pessoas e, frequentemente, compromete a fertilidade sociocultural da região, esterilizando,
além de vidas, as potências de uma solução urbana humanamente digna. Sabemos, porém, que
os enfrentamentos cotidianos de que os direitos humanos e a valorização da vida se ocupam,
decerto, não se restringem à Zona da Leopoldina e às suas favelas: as fragilidades nesses
âmbitos se espraiam por toda a cidade, mesmo em áreas ricas com arquiteturas fortificadas,
por mais enclausuradas que sejam.
É com esse horizonte em vista que podemos recapitular, a título de conclusão, alguns
aspectos levantados ao longo deste trabalho em relação à trajetória da sala de cinema
enquanto equipamento coletivo urbano promotor de encontros, memórias e tessitura de laços
de sociabilidade entre as pessoas. É diante da realidade presente que refletimos sobre as
perspectivas de retomada do lazer cinematográfico em cinemas de rua na Zona da Leopoldina,
analisando-as como expectativas que caminham em direção à efetivação, apesar da miríade de
etapas, muitas vezes morosas e obstruídas, concernentes ao mercado exibidor, seus

110
Informações obtidas no site de O Globo Online (SOLDADO DA UPP... O Globo online, Rio de Janeiro, 2
fev. 2014. Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/soldado-da-upp-do-parque-proletario-morta-em-tiroteio-
11482067. Última visualização em 3 de fevereiro de 2014) e no site do Jornal O Dia (ALVES et al. “PENSEI
QUE IA MORRER ALI MESMO”, DIZ PM FERIDO EM ATAQUE NO PARQUE PROLETÁRIO. O Dia
online, Rio de Janeiro, 4 fev. 2014. Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-
04/pensei-que-ia-morrer-ali-mesmo-diz-pm-ferido-em-ataque-no-parque-proletario.html.Última visualização em
3 de fevereiro de 2014).
216
investimentos e parceiros público-privados.
A aposta da Prefeitura do Rio em novos equipamentos de exibição ou em reaberturas
de cinemas como o Ramos e o Olaria leva em consideração, explicitamente, a garantia de
segurança. Oferecer o lazer cinematográfico em um território controlado, a salvo dos assaltos
aos transeuntes, das interferências do narcotráfico e das relações de poder extraoficiais
conduzidas pelos traficantes, é uma condicionante essencial para a concretização dos projetos.
Conforme contou, no Capítulo 4, a interlocutora Marcia Mansur, funcionária da
Riofilme, a Rede Cinecarioca tem por princípio básico operar apenas em localidades
pacificadas (no caso das favelas que podem, um dia, receber cinemas aos moldes do
Cinecarioca Nova Brasília) ou estruturalmente “seguras”. Esse programa de incentivo à
democratização do audiovisual cinematográfico em áreas mais pobres do Rio é de cunho
estatal, mas também prevê atender ao interesse do capital, tanto no sentido da viabilidade
econômica dos cinemas, quanto no das capacidades e condições urbanas gerais das
imediações dos prédios onde existiram as extintas salas, que recentemente estão à espera de
reinauguração. E, nos eixos dessa política, entre os itens que carecem de contemplação para
que haja a atração de empresários dispostos a gerir os cinemas está, sem hesitação, a
segurança.
Portanto, parece interessante reforçar nessa fase conclusiva a importância de haver um
acompanhamento crítico e uma observação atenta das dinâmicas que fazem parte do cenário
sociocultural, político e econômico da Zona da Leopoldina contemporaneamente. No fundo
deste panorama, atuam um Estado e uma “nova” forma de governo que organizam o território
– em prol do marketing, em benefício do mercado – e decidem sobre as populações com o
auxílio da mão forte da polícia (no caso específico de que podemos falar com maior liberdade,
isto é, o Rio de Janeiro no contexto atual) e, noutro braço, com o uso de mecanismos
socioculturais de caráter “apaziguador”, sutis em sua forma de contato e ação, mas igualmente
comprometidas com a mesma racionalidade.
É fato conhecido que a racionalidade com que lidamos atualmente não mais se
restringe, há muito tempo, à razão estatal e à soberania do príncipe/governante (FOUCAULT,
2008b), que tiveram por missão o governo das gentes em vista de uma única finalidade: a
própria razão estatal e a manutenção do Estado (o que fora experimentado no mundo
ocidental até aproximadamente meados do século XVIII). No sentido dado por Foucault
(2008b), a partir da Modernidade, uma nova arte de governar surge, trazendo consigo outra
racionalidade: aquela de raiz economicista, que apregoa a necessidade de um estado de ações
217
mais limitadas, onde a economia e a lógica do mercado se assentem e progridam. Não foi o
anúncio sobre eclosão do fim do Estado, mas o seu comprometimento em larga escala com a
razão de uma economia política. Os aparatos estatais, entre eles, a polícia 111, e a forma (arte)
de governar (a governamentalidade) não deixaram, assim, de serem contaminados pela
máxima econômica que quer para si a gestão de tudo o que há sobre a Terra. Na
contemporaneidade, isso se intensifica com a emergência do neoliberalismo, onde mais
explicitamente ainda a disciplina passa à segurança e ao controle.
Por fim, é pertinente ter no horizonte esse arsenal de aspectos genealógicos propostos
por Foucault (2008b; 1979) para pensar o Estado nas minúcias de suas técnicas, métodos e
tecnologias ao longo de tantos séculos. Com isso, ganhamos fôlego para sugerirmos a
trabalhos futuros uma ponderada avaliação do que recentemente se desenvolve nos territórios
organizados (social e culturalmente) em presença da articulação entre o Estado, os interesses
do capital e a política de segurança pública em vigor no Rio de Janeiro (estado e município).
Apesar de evidenciarmos um campo minado por forças que ainda merecem maiores
exames, e malgrado as últimas desventuras e os prognósticos urbanos que eventualmente são
previstos para algumas partes da Zona da Leopoldina, o cinema mantém as suas tentativas de
soerguimento na região. Talvez, ele encontre animação em sua força histórica, que começou,
outrora, justamente em conexão com a produção de sociabilidades e a configuração do espaço
urbano dos bairros fixados à beira da linha férrea.
A partir dos dados coletados e apresentados, acreditamos que as salas de cinema de
rua exerceram um papel formidável na ocupação dos subúrbios cariocas da Leopoldina
durante a primeira metade do século passado, permanecendo com igual importância nas
décadas posteriores como aparatos urbanos de destaque e notável frequentação.
Influenciaram, a seu modo, tanto os arranjos da paisagem de cada bairro – através das
peculiaridades de suas arquiteturas, expostas principalmente nas imediações da linha
ferroviária –, como até mesmo as motivações das pessoas na constituição de seus circuitos e
usos daqueles pedaços da cidade. Segundo demonstram as lembranças relatadas por alguns de

111
Para Foucault, a figura da polícia se insere no coração e na condição de existência do urbano, confundindo-se,
inclusive, com ele. Para o autor, que parte de estudos sobre a polícia escritos por Nicolas Delamare, a cidade só
foi fundada porque houve uma instituição que “urbanizou” o território, transformando-o, de fato, em cidade,
através da regulamentação urbana, da conservação e do zelo do bem público e da “bondade da vida”
(FOUCAULT, 2008b). Foucault, nessa atribuição, se refere ao que a polícia significou em um dado momento
histórico, que remonta aos séculos XVII e XVIII, isto é: “aquilo de que a polícia deve se ocupar é o viver e o
mais que viver, o viver e o melhor viver” (FOUCAULT, 2008b, p.450). A polícia teria sido assim uma
instituição que nos séculos XVII e XVIII fez do reino e “do território inteiro uma espécie de grande cidade (...)
com base no modelo de uma cidade e tão perfeitamente quanto uma cidade” (Ibidem, p. 452).
218
seus antigos espectadores, os cinemas de estação foram, sem dúvida, fatores inseridos na
costura de laços afetivos entre esses transeuntes.
No primeiro capítulo, após verificarmos as diferentes abordagens da noção de
subúrbio segundo autores como Lewis Mumford (1998) e Henri Lefebvre (2012), realizamos
uma revisão teórica acerca das nuances, muito particulares, que esse conceito ganhou no
contexto de urbanização do Rio de Janeiro, na primeira metade do século passado. Adotamos
o ponto de vista do geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes (2011) que, com base em estudos
anteriores desenvolvidos na Geografia e na Sociologia urbanas, acredita ter ocorrido no Rio
de Janeiro um “rapto ideológico” da categoria subúrbio. Isto é, houve uma livre adaptação,
por parte dos planejadores e gestores da cidade, de um conceito já existente, fazendo com que
uma noção local do termo nascesse ancorada nos interesses claramente segregacionistas dos
planos urbanísticos do Estado e atores privados a ele conectados.
Assim, ao observarmos os modelos seguidos na urbanização das cercanias localizadas
ao longo da Estrada de Ferro Leopoldina Railway, notamos que o cinema nasceu nessas
regiões arraigado a uma lógica de formação dos bairros intrinsecamente ligada à preocupação
estatal de delimitar o território carioca dividindo-o em áreas destinadas a ricos e outras,
destinadas a pobres. Nesse bojo, os cinemas que pulularam por bairros leopoldinenses, ainda
na primeira metade do século XX, foram se caracterizando desde o início como cinemas
locais, frequentados principalmente por moradores das adjacências.
A iniciativa privada que se colocou muito atuante no aparelhamento dos espaços e na
estrutura imobiliária da Leopoldina teve um papel de destaque também na produção das
esferas do lazer. Os cinemas eram peças notáveis dessa esfera e, diante disso, seus
proprietários souberam conquistar um lugar de proa para seus equipamentos e circuitos na
configuração urbana geral dos arrabaldes. Um exemplo disso, reportado no Capítulo 2, foram
os impulsos que o mercado exibidor ajudou a dar no aparelhamento das ruas ao redor dos
cinemas de estação. Uma figura acentuada, que daí se levanta, foi o empresário Domingos
Vassalo Caruso, o “bem feitor dos subúrbios”, cujas iniciativas tiveram continuidade com sua
família até o momento em que a partir da década de 1960 o mercado se transforma um pouco
e entram em cena outros capitalistas como Luiz Severiano Ribeiro (que antes disso já
mantinha acordos com os Caruso na base acionária de alguns cinemas da Leopoldina) e Lívio
Bruni, com novas maneiras de gestão dos negócios da exibição cinematográfica.
A própria noção “cinema de estação” é uma expressão cunhada objetivamente neste
trabalho para designar e classificar o tipo especial de “cinema local” ou “de proximidade”
219
(BAUDRY,O., 2001; CRETEON, 1994; 2001; SAUVAGET, 2001), que se desenvolveu no
subúrbio carioca da Leopoldina, valendo-se de um peculiar posicionamento no território dos
bairros de Bonsucesso, Olaria, Ramos, Penha, Vila da Penha e Brás de Pina. As localizações
desses equipamentos os atrelavam nitidamente às estações férreas de cada um dos bairros
supracitados. Imediatamente em frente às paradas do trem ou nos arredores próximos a elas,
tais cinemas fecundaram, por quase um século, as dinâmicas de sociabilidade ali produzidas e,
não menos do que isso, desempenharam uma preponderante presença nas formas de ocupação
desses pedaços, nos usos da rua, nos trajetos executados pelas pessoas e, aliado a tudo isso,
nas próprias ações compartilhadas entre estado e capital privado com vistas à orquestração das
vias e aparatos urbanos.
Podemos inferir, portanto, que a localização dos cinemas de estação se tratou de um
posicionamento estratégico tanto no sentido geográfico, como salas exibidoras locais
estabelecidas de forma focal defronte às estações de trem, quanto na acepção sociocultural,
tendo em vista a sua participação densa na vida da comunidade e nos âmbitos
mercadológicos, urbanísticos e políticos das produções citadinas ali executadas até o
fechamento irrestrito desses cinemas no final do século passado.
Especialmente no terceiro capítulo, seguindo a inspiração etnográfica que guiou os
métodos desta pesquisa, busquei trazer para o texto as vozes dos interlocutores com quem
conversei ao longo de quatro anos de investigação, incluindo nessa narrativa alguns relatos de
campo referentes às minhas idas aos bairros, quando pude verificar o ambiente atual de
completa inatividade dos cinemas de estação. A partir das lembranças de antigos
frequentadores é possível perceber que salas exibidoras da Leopoldina estavam conectadas
aos circuitos realizados pelos transeuntes em suas pequenas viagens ao longo das regiões
recortadas pela linha do trem.
Hoje, porém, o lazer cinematográfico deixou de ter ligação imediata com as ruas dessa
área e com a via férrea, pelo menos no que concerne à exibição comercial. Por meio de
observação participante e por conta do que foi dito nas conversas com quem viveu a fase
áurea dos cinemas de rua (e agora presencia, mesmo indiretamente, a sua ausência),
detectamos uma espécie de apagamento social do equipamento “cinema de estação”. Além de
fazer parte da reordenação do mercado cinematográfico, este fenômeno também pode estar
relacionado às novas soluções dadas à distribuição dos equipamentos culturais na cidade
(lazer que migrou, incontestavelmente, para dentro de shopping centers) e aos investimentos
em tipos de deslocamento de pessoas no território ligados à motorização urbana ostensiva.
220
Ao consideramos as novas formas que a espectação cinematográfica assumiu no bairro
– as iniciativas de promoção da espectação cinematográfica em cineclubes e cinemas
populares alavancados pela Prefeitura e, por outro lado, os cinemas de shopping – verificamos
no Capítulo 4 que em cada caso se estabelecem relações diferenciadas entre os equipamentos
culturais – considerando, nesse caso, os cinemas como medias e dispositivos urbanos – e o
seu entorno.
Aqui, aproveitamos para ressaltar um tema discutido no Capítulo 1: para cada época,
haverá diferentes tecnologias e modos de percepção que o homem fará sobre si e outrem.
Perante isso, comentamos logo no início do trabalho alguns aspectos concernentes às
corporeidades dos espaços construídos e aos amálgamas sociais e mecânicos que pressupõem,
no seio de cada tecnologia de época, a arrumação concomitante entre máquina e enunciação
(CRARY, 2012, p.37). Dito de outro modo, as conexões entre aspectos de naturezas e ordens
variáveis, em face dos dispositivos urbanos, implicam a formação de diversas afinidades entre
a configuração espacial das cidades, as pessoas e as mídias que preponderam a cada
momento, em cada lugar. Uma multiplicidade de compartilhamentos das vivências nesse
ambiente pode ser testemunhada tendo essa perspectiva teórica em vista.
Em outra parte do texto, vimos que, caracteristicamente, a localização no interior
dos shopping centers da maioria dos cinemas hoje em funcionamento nos subúrbios parece
não garantir uma proximidade com outros referenciais de bairro, no caso da Zona da
Leopoldina. É notável como vários moradores com quem conversei revelam uma sensação de
perda diante desse cenário em que as salas de exibição de rua não são mais uma opção.
Concluímos que essa “sensação de perda” está associada àquilo que Maciel (2010, p. 192)
entende por “processo social da invisibilidade de sujeitos e práticas suburbanos”, na medida
em que o apagamento material e simbólico das salas de exibição no contexto global da cidade
reforça a trajetória de abandono que tais bairros sofreram no que concerne à infraestrutura
urbana e ao acesso de seus moradores a equipamentos culturais.
De certo modo, concebemos que o histórico pejorativo que, no senso comum e nas
atividades de inúmeros gestores públicos, contaminou a imagem dos bairros suburbanos da
Leopoldina (e, de igual maneira, alguns bairros do subúrbio da Central) fundou uma visão
reducionista recorrente dessas áreas em relação a demais zonas da cidade. Raramente, o
profícuo passado do extinto circuito exibidor da Leopoldina é mencionado. Daí nasce a
necessidade de ir ao encontro das experiências reativadas pela memória dos interlocutores.
Suas sensações ligadas ao desaparecimento dos cinemas de estação permitiram que nos
221
debruçássemos sobre os objetos de suas perdas, antevendo que, em algum grau, os seus
significados para a vida das pessoas e os locais onde habitam são ainda assaz potentes e
podem, hoje, dar consistência aos projetos que se desenham.
No cerne desses projetos em perspectiva de concretização, cremos que as ligações
entre o Estado e a iniciativa privada na inauguração e reabertura de salas de cinema nos
subúrbios do Rio constituem um laço irrevogável. Discorremos no final deste estudo a
respeito dos usos dos espaços a partir da intervenção estatal e a operação de serviços culturais
por empresas privadas. Além disso, perquirimos brevemente, em um tom ensaístico, a
qualidade das combinações entre ocupação territorial, cultura, polícia e capitalização dos
espaços do Rio de Janeiro, tendo em vista o aparelhamento da cidade para a Copa do Mundo
de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Em última análise, apontamos que o cinema, enquanto
equipamento de lazer coletivo urbano, e o fomento da prática de espectação cinematográfica
participam, mesmo timidamente, das estratégias dos atuais planos públicos para a organização
e o controle (policial) do espaço da Leopoldina.
Outras sociabilidades, outros caminhos e novos públicos surgem. A presença de
atividades de cineclubismo, ainda que esparsas, e a tendência profícua dos cinemas em
favelas, como o Cinecarioca Nova Brasília, apontam para outras possibilidades de espectação
cinematográfica em contraste com o modelo dominante do cinema de shopping. A experiência
de cinema popular nos bairros leopoldinenses traz o filme, a arte e o pensamento
cinematográfico para perto do vai-e-vem da rua, para as provocações dos encontros com
outros e estranhos.
O cinema na Leopoldina se encontra, em alguma medida, ao abrigo das tentativas de
assimilação da exibição cinematográfica aos espaços de consumo estandardizados. Nesse
mesmo horizonte, as promessas de reabertura acenam positivamente, gerando a expectativa de
que alguns cinemas de estação voltarão a funcionar (remodelados) verdadeiramente em prol
das pessoas e da vida urbana dos bairros. Com otimismo, somos impelidos a considerar que
atrás do apagamento cultural e das violências reais e simbólicas transcorridos na Zona da
Leopoldina, há ainda algo a ser visto. Que a sala de cinema esteja entre os vetores que
promovam outra etapa, em benefício das sociabilidades e soluções do espaço urbano dessa da
região.

222
Referências Bibliográficas

Livros, capítulos de livros e trabalhos acadêmicos

ABEL, Richard (coord.). Encyclopedia of early cinema. Abingdon, Oxon: Routledge, 2005.

ABREU, Maurício de. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IPP, 2006.

ACCIAIUOLI, Margarida. Os cinemas de Lisboa: um fenômeno urbano do século XX.


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Arquivos consultados

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ)

Acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio)

Arquivo do Instituto Pereira Passos (IPP-Rio)

Biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (CFCH-UFRJ)

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de


Janeiro (IFCS-UFRJ)

Biblioteca da Cinematek (Cinemateca de Bruxelas)

Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa)

Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro

Deutsches Filminstitut Fimmuseum (Museu do Cinema de Frankfurt)

The Cinema Museum of London (Museu do Cinema de Londres)

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