Nicole Lazzari Garcia Desligamento
Nicole Lazzari Garcia Desligamento
Nicole Lazzari Garcia Desligamento
CENTRO SOCIOECONÔMICO
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
Florianópolis
2019
Nicole Lazzari Garcia
Florianópolis
2019
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,
através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Dedico este trabalho e esta nova conquista de
minha vida com muito amor à minha mãe e meu
pai, por sempre lutarem para garantir a minha
educação.
Encerrar mais esta etapa da minha vida não seria possível sem antes agradecer àquelas
pessoas que estiveram ao meu lado durante este processo, me apoiando e incentivando a
continuar trilhando esse caminho.
Mãe e pai, vocês são minha base, minha força, minha inspiração e têm todo o meu amor.
Se hoje eu concluo essa graduação, é graças a vocês. Obrigada por sempre me incentivarem a
continuar estudando e a me proporcionarem os meios para isso. Obrigada por encararem comigo
essa loucura de mudar de cidade e começar uma vida nova aqui, só para me apoiar. É tudo pra
vocês! E sempre será! Amo vocês infinitamente!
Agradeço ao meu irmão Gabriel, que mesmo distante consegue se fazer presente. Te
levo sempre comigo, onde quer que estejamos. És parte dessa conquista também. Te amo,
Gabito!
Ao Eduardo, meu companheiro, obrigada pela tua paciência! Obrigada por compreender
minhas ausências e incentivar meu crescimento. Teu apoio foi fundamental. Te amo!
Bruna, Gabi e Breno, meus amigos nessa trajetória, agradeço pela parceria e pela
companhia nos momentos finais de cansaço. Que possamos manter essa amizade por muitos
anos e que nos encontremos em nossas trajetórias profissionais. Guardá-los-ei no meu coração!
O meu muito obrigada também ao Edelvan e a Simone, meus supervisores de estágio,
que contribuíram imensamente na minha formação profissional. Vocês foram meus primeiros
exemplos profissionais e serei eternamente grata. Com vocês aprendi o que significa ser
assistente social, o que significa resistir e se posicionar diante de um contexto que não nos
possibilita grandes mudanças. Grata por ter aprendido tanto com vocês! Parabéns pelo trabalho
que desenvolvem e pelas pessoas que são!
Aos demais profissionais do meu campo de estágio, vocês também foram parte da minha
trajetória. Obrigada por todas as contribuições!
Agradeço à professora Heloisa, que prontamente aceitou participar como examinadora
deste trabalho. Agradeço também à professora Eliete, que não só está presente nesse momento
final, mas que também participou de grande parte da minha formação. Obrigada por me permitir
ser sua aluna, monitora e te acompanhar em sala de aula. És um exemplo de profissional e de
docente para mim. Minha gratidão por todos os ensinamentos e contribuições em minha
trajetória. Sentirei saudades!
À professora Andréa, obrigada por me orientar nesse momento tão importante. És minha
inspiração profissional também. Teu apoio e dedicação (e os puxões de orelha também) foram
fundamentais para que eu conseguisse acreditar que era capaz de construir esse trabalho. Te
levarei sempre comigo. Também sentirei saudades!
À Ligia, obrigada pela atenção e comprometimento com a revisão do meu trabalho.
E por fim, mas não menos importante, agradeço a todas as crianças e adolescentes que
conheci durante a realização do meu estágio e na construção dessa pesquisa. Vocês são parte
fundamental da minha formação e crescimento não só profissional, mas também pessoal.
Obrigada por permitirem me aproximar de vocês e conhecer suas histórias. E um agradecimento
ainda mais especial para as duas adolescentes participantes dessa pesquisa. Sem vocês nada
faria sentido. Desejo, do fundo do meu coração, que todas estejam bem seguindo seus caminhos.
Obrigada por tudo!
"A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes
presidenciais. [...] Disso eu quis fazer a minha poesia. Dessa matéria humilde e humilhada,
dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo
cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não tem voz".
Ferreira Gullar
RESUMO
Este Trabalho de Conclusão de Curso buscou aprofundar a discussão acerca dos processos
de desligamento obrigatório pela maioridade de adolescentes/jovens acolhidos/as
institucionalmente, bem como apresentar a percepção destes diante desse momento de
desamparo pelo Estado. O objetivo geral teve como base analisar as estratégias
institucionais utilizadas por um Serviço de Acolhimento Institucional no processo de
desligamento obrigatório, os desafios impostos no sentido de garantir os direitos previstos
nos marcos normativos e regulatórios vigentes no Brasil e as expectativas das adolescentes
institucionalizadas. A pesquisa de abordagem qualitativa tem como unidade de análise
empírica e delimitação geográfica o Abrigo Municipal de Coqueiros em Florianópolis, e
como procedimento de coleta de dados: a observação participante da pesquisadora durante
seu período de estágio na referida instituição; pesquisa documental em arquivos e
documentos privados do Serviço de Acolhimento; e realização de entrevista
semiestruturada com duas adolescentes acolhidas e com um profissional técnico da
instituição. Os achados da pesquisa sugerem, primeiramente, que a aplicação da medida de
proteção de Acolhimento Institucional é, por vezes, determinada a partir de conceitos
errôneos dos órgãos de justiça e proteção que interferem nas famílias e, ainda, que ao
acolher estas crianças e adolescentes o Estado também não consegue garantir os direitos
que julgou violados pela família. Quanto ao desligamento obrigatório pela maioridade, os
dados sugerem que as adolescentes participantes não se sentem preparadas para deixar a
instituição aos 18 anos e encarar a transição para a vida adulta. Esse momento é permeado
por inseguranças, angústias e medo do que está por vir, devido à falta de preparação
gradativa para a saída. Além disso, há fatores externos à instituição pesquisada que
interferem no resultado do atendimento oferecido, sendo o principal a falta de articulação
entre os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes. Nesse
sentido, entendemos que a expansão da modalidade de Serviço de Acolhimento em
República no país, destinada à jovens egressos dos Serviços de Acolhimento Institucional,
se constitui em uma das principais alternativas para fortalecer a autonomia e o sentimento
de confiança, proporcionando condições de transformar a realidade desses sujeitos.
BO Boletim de Ocorrência
CAPS-AD Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas
CAPSi Centro de Atenção Psicossocial para Crianças e Adolescentes
CEPSH Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
CF/88 Constituição Federal de 1988
CNAS Conselho Nacional de Assistência Social
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONEP Conselho Nacional de Ética em Pesquisa
CREAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social
CT Conselho Tutelar
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FINAF Fórum das Instituições de Acolhimento de Florianópolis
FUNABEM Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor
ICOM Instituto Comunitário Grande Florianópolis
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
LOAS Lei Orgânica da Assistência Social
NOB-RH Norma Operacional Básica de Recursos Humanos
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
OSC Organizações da Sociedade Civil
PAEFI Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos
PIA Plano Individual de Atendimento
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PNBEM Política Nacional de Bem-Estar do Menor
PNCFC Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária
POASF Programa de Orientação e Apoio Sócio Familiar
PPP Projeto Político Pedagógico
SAM Serviço de Assistência ao Menor
SEMAS Secretaria Municipal de Assistência Social
SGDCA Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente
SUAS Sistema Único de Assistência Social
TALE Termo de Assentimento Livre e Esclarecido
TCC Trabalho de Conclusão de Curso
TCLE Termo de Consentimento Livre Esclarecido
UBS Unidade Básica de Saúde
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 16
5.1.2 “Sentido obrigatório” da saída: O que é? Como? Quando? Para onde? .......... 82
1 INTRODUÇÃO
1
O Marco Regulatório do Terceiro Setor (Lei ordinária nº 13.019 de 31/07/2014) estabelece regime jurídico das
parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil para a consecução de finalidades de
interesse público e recíproco, mediante a execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em
17
A Lei nº 12.010/2009 (BRASIL, 2009a) surge como uma das demandas resultantes do
PNCFC, alterando o § 2°, do artigo 19 do ECA que prevê a permanência da criança ou
adolescente na instituição de Acolhimento por no máximo dois anos, exceto quando
comprovada necessidade que atenda ao seu interesse, devidamente fundamentada pela
autoridade judiciária3. Entre essas situações encontra-se aquela em que “não foi possível”
restabelecer os vínculos com a família de origem e/ou encaminhá-la para uma família substituta,
resultando em um longo período na instituição. Nesse caso, permanecem acolhidas até
completarem 18 anos4, quando são desligadas obrigatoriamente e precisam seguir com suas
vidas.
No processo de desligamento cabe à equipe técnica dos serviços de Acolhimento
Institucional planejar estratégias para com os acolhidos, a fim de possibilitar o desenvolvimento
e reconhecimento de sua autonomia, responsabilidades e ingresso no mercado de trabalho –
necessários na transição para a vida adulta. O objetivo principal é encontrar condições que
garantam o sustento e a qualidade de vida desses adolescentes ou jovens5.
Mesmo após o desligamento obrigatório é preciso que haja acolhimento e proteção para
que se sintam seguros e apoiados. A equipe técnica da instituição deve se empenhar para
construir estratégias de saída desses adolescentes desde o momento de sua chegada no
Acolhimento. Por meio do Plano Individual de Atendimento (PIA) é possível alinhar essas
ações a curto, médio e, dependendo da situação, longo prazo, construindo redes para além do
Acolhimento Institucional, auxiliando os jovens no desenvolvimento e fortalecimento cotidiano
do sentimento de confiança, autonomia e pertencimento a um grupo cultural mais amplo do que
o Acolhimento Institucional (MARTINEZ; SILVA, 2008).
Nessa direção, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004) e a
Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009b) preveem o acolhimento
em República para jovens entre 18 e 21 anos após o desligamento dos outros serviços.
Entretanto, não são todos os municípios que possuem esse equipamento, como é o caso de
Florianópolis.
3
Dentre as alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente que tratam do período de permanência nas
instituições de acolhimento, a mais recente (Lei nº 13.509/2017) estabelece 18 meses como tempo máximo, exceto
quando comprovada necessidade que atenda ao seu interesse, devidamente fundamentada pela autoridade
judiciária (BRASIL, 2017).
4
A medida protetiva de Acolhimento Institucional é direcionada a indivíduos de 0 a 18 anos de idade, podendo
ser estendida, em casos excepcionais, até 21 anos.
5
O termo “jovem” é utilizado quando nos referimos aos indivíduos com mais de 18 anos, de acordo com a Lei nº
12.852/13. Neste TCC, ao tratarmos das participantes, faremos referência ao termo “adolescentes”, pelo fato de
que ainda não tinham completado 18 anos durante o processo de coleta de dados.
19
6
Embora a terminologia “abrigo” tenha sido substituída, a instituição de acolhimento em que foi realizada a coleta
de dados deste trabalho é intitulada de “Abrigo Municipal de Coqueiros”. Dessa forma, o termo “abrigo” será
usado apenas nos casos em que fizer referência a esta instituição específica.
7
No caso do Abrigo Municipal de Coqueiros, o atendimento é exclusivamente feminino. Sendo assim, quanto à
flexão de gênero das palavras, ao fazermos referência às adolescentes acolhidas apenas nesta instituição,
utilizaremos o gênero feminino.
20
8
Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) número: 14154019.9.0000.0121.
22
ser criadas por suas famílias, consideradas “incapazes ou indignas”, seriam de responsabilidade
do Estado (RIZZINI, 1997, p. 26).
Rizzini (1997) também aponta que conforme a sociedade brasileira vivenciava um
período de crescente urbanização e industrialização, o pensamento social em relação ao
significado da infância era modificado. Por um lado, se fossem devidamente educadas, as
crianças simbolizavam o futuro da nação e, por outro, representavam uma ameaça à sociedade,
pois descobriam elementos de perversão e crueldade na alma infantil. Constrói-se então uma
visão ambivalente em relação a “criança em perigo” e a “criança perigosa”. A criança pobre e
abandonada, “filha da pobreza”, passa a ser tratada como um problema social.
A partir dessa dualidade é criado um mecanismo médico-jurídico-assistencial com o
objetivo de prevenir, educar, recuperar e repreender as crianças. A prevenção tinha o objetivo
de vigiar, evitando a perversão que contribuía para a degeneração da sociedade; a educação
tinha a função de educar o pobre, criando nele o hábito do trabalho e conhecimento das regras
do “bem viver”; a recuperação visava reeducar ou reabilitar a “criança perigosa” através do
trabalho, retirando-a da criminalidade e tornando-a útil para a sociedade; e a repressão tinha o
objetivo de conter a criança delinquente, impedindo que voltasse a causar danos, visando sua
reabilitação pelo trabalho (RIZZINI, 1997).
Esse mecanismo identificou nas crianças a possibilidade de transformar o Brasil, que
vivenciava um período de propagação do pauperismo urbano com o avanço das relações
capitalistas. Conforme Rizzini (1993, p. 19), “os ‘deserdados da fortuna’ constituíam
aproximadamente 70% da população urbana: eram os operários, camponeses, prostitutas,
marginais, mendigos, artistas, doentes, andarilhos, menores viciosos e setores pauperizados da
baixa classe média”. Então era extremamente necessário e urgente que essa urbanização fosse
controlada.
Era de responsabilidade da medicina identificar as possibilidades de recuperação da
criança e as formas de tratamento, e as primeiras intervenções com famílias pobres surgem a
partir da preocupação dos médicos em prevenir a delinquência infantil. Palestras, campanhas e
ações educacionais e moralizadoras, voltadas principalmente às mães e seus filhos, tinham o
intuito de evitar que essa criança “herdasse os males da sociedade” e dos seus pais, que
consistiam em degenerescências como alcoolismo, cocainismo e morfinismo. A população era
educada sobre as consequências desses vícios, em especial do alcoolismo, numa vertente de
“ortopedia social”. A filantropia prestava assistência aos pobres, e era de responsabilidade da
justiça regulamentar a proteção da criança e da sociedade garantindo a prevalência da educação
sobre a punição, e criando o hábito do trabalho (RIZZINI, 1997).
25
A preocupação com a infância nos meios médico e jurídico do início do século está
intimamente relacionada ao projeto de normalização da sociedade defendido por
representantes das elites intelectuais, econômicas e por autoridades do país. O que se
pretendia era eliminar as desordens de cunho social, físico e moral, principalmente
nos centros urbanos (RIZZINI, 1993, p. 19).
9
O Juízo de Menores, na pessoa de Mello Mattos, estruturou um modelo de atuação que se manteria no país até a
década de 1980, com diversas funções relativas à vigilância, regulamentação e intervenção direta sobre os
“menores”. Houve uma crescente demanda por internações de menores abandonados e delinquentes, inclusive
pelas classes populares, tornando-se uma alternativa de cuidados e educação para os pobres, particularmente para
as famílias constituídas de mães e filhos (RIZZINI, 2004).
26
“criança” era utilizado quando fazia referência aos filhos das “boas famílias”, aquelas
“adequadas” aos níveis de organização, instrução e economia.
Em 1941, a partir do Decreto nº 3.799, surge o Serviço de Assistência ao Menor (SAM),
o primeiro órgão criado com o objetivo de fiscalizar e orientar os serviços que
institucionalizavam os “menores”. “Seu sistema de atendimento baseava-se em internamentos
para os adolescentes autores de infração penal e patronatos para menores carentes
abandonados” (ROSA, 2001, p. 186).
Rizzini (2011, p. 281) complementa dizendo:
Por anos o SAM foi condenado por autoridades públicas, políticos e diretores que
propunham a criação de um novo órgão. Surge então, em 1964, a Fundação Nacional de Bem-
Estar do Menor (FUNABEM), que tinha como uma de suas obrigações implementar a Política
Nacional de Bem-Estar do Menor (PNBEM). O principal objetivo era se opor às diretrizes do
SAM, prevenindo a marginalização dos “menores abandonados”, zelando para que estes “não
viessem a se transformar em presa fácil do comunismo e das drogas, associados no
empreendimento de desmoralização e submissão nacional” (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 27).
Ainda nesse período criaram-se as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM)
com programas, pesquisas e atendimentos aos menores de 18 anos, favorecendo o aumento
da internação no país por meio de um modelo carcerário e repressivo.
Essas instituições foram criadas durante o período de Ditadura Militar no Brasil,
compreendido de 1964 a 1985, marcado pela extrema censura, repressão e torturas. Foi um
momento de grande industrialização e urbanização do país, culminando em desigualdades da
distribuição de renda e o aumento de crianças e adolescentes internados nas instituições.
Dessa forma, a institucionalização se dava, principalmente, pela criminalização e
judicialização da pobreza.
27
10
O Código Civil de 2002 alterou o termo “pátrio poder” por “poder familiar”, tendo em vista que o primeiro,
etimologicamente, remete a “pai”. A expressão “poder familiar” deixa mais claro que a criação e a educação dos
filhos competem ao pai e à mãe, em igualdade de condições, em respeito à Constituição Federal (JUS, 2015).
28
Conforme o Código de 1979, os “menores em situação irregular” eram aqueles que não
estavam no controle de suas famílias por diversos motivos: não tinham família; a família não
tinha condições de assumir funções de proteção e bem-estar; pela conduta considerada
antissocial; suas ações o colocavam em risco e incidiam sobre sua família ou terceiros; o
menor era portador de doença/dificuldade/deficiência e a família não queria ou não sabia
lidar; ou o jovem fez da rua seu local de moradia e trabalho. As crianças e adolescentes que
se encontravam em alguma dessas situações eram sentenciadas como “irregulares” e
colocadas em instituições de recolhimento, ressocialização ou guarda.
O Código de Menores não se dirigia ao conjunto da população infanto-juvenil, mas
sim a quatro categorias de “menores”: os irregulares (carentes), que se encontravam em perigo
moral, cuja família não pôde assumir as funções de proteção e bem-estar; os abandonados,
que pela falta ou ausência dos pais não possuíam representação legal; os inadaptados, que
viviam em famílias e comunidades “desajustadas”; os infratores, que cometiam ações que
colocavam em risco a segurança e a integridade de terceiros, da família e da sociedade, autores
de infração penal. Conforme Fuchs (2012, p. 13), os “menores infatrores” institucionalizados
pelo Estado viviam “num ciclo perverso de institucionalização compulsória — apreensão,
triagem, rotulação, deportação e confinamento”.
Pela ação tutelar do Estado sobre as famílias, o poder de decisão sobre o destino destes
“menores irregulares” estava concentrado nas mãos dos juízes, que poderiam intervir nas
situações, definindo desde a privação de condições essenciais à subsistência, até a autoria de
infração penal (RIZZINI; PILOTTI, 2011). Por mais subjetivo que fosse o entendimento do
juiz sobre as motivações para uma possível delinquência de uma criança ou adolescente, em
razão da conduta ou da conduta de sua família, já se considerava razão legal para a decisão
de institucionalização pautada na lógica de “prender para proteger” (HACK, 2016).
Embora esse Código tenha representado uma importante intervenção do Estado na
área da criança e do adolescente ao reconhecer a responsabilidade pública na garantia dos
direitos dessa população, por outro lado se sustentou no assistencialismo e na repressão, ao
passo que caracterizava a situação irregular pelas condições de vida de suas famílias. Assim,
as famílias estavam expostas à intervenção do Estado devido a sua condição de pobreza
(RIZZINI, 2004).
Essas noções de irregularidade começaram a ser questionadas na medida em que
crescia o debate sobre a infância e adolescência no Brasil. A conduta do Estado, considerada
arbitrária e repressiva, não sobreviveu à abertura democrática do país a partir dos anos 1980.
Tomou corpo a compreensão de que as discussões deveriam ser as causas estruturais do
30
princípios fundamentais desta Convenção, mesmo antes de ela ser efetivamente oficializada11,
dando origem aos artigos 227 e 22812 da CF/88 (RIZZINI; PILOTTI, 2011).
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente
de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I - a proteção à família, à
maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e
adolescentes carentes; III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV - a
habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício
mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme
dispuser a lei (BRASIL, 1988, grifo nosso).
11
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança foi aprovada na ONU somente em 20 de outubro
de 1989, mais de um ano após a promulgação da Constituição Federal do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
12
O artigo 228 trata de inimputabilidade penal dos menores de 18 anos.
13
A PNAS foi aprovada em 22 de setembro de 2004, por meio do Conselho Nacional de Assistência Social,
regendo-se pelos seguintes princípios: I – Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências
de rentabilidade econômica; II – Universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação
assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III – Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e
ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se
qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem
discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – Divulgação
ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder
Público e dos critérios para sua concessão (BRASIL, 2004, p. 32).
32
Segundo Costa (2007), é nesse artigo que o ECA garante direitos humanos fundamentais
para as crianças e adolescentes, visto que assegura o direito à sobrevivência por meio do direito
à vida, à saúde e à alimentação. Garante o desenvolvimento pessoal e social por meio do direito
à educação, esporte, lazer, profissionalização e à cultura. E ainda garante o respeito à
integridade física, psicológica e moral quando assegura o direito à dignidade, respeito, liberdade
e convivência familiar e comunitária.
O Quadro 1 faz um comparativo entre a Doutrina da Situação Irregular e a Doutrina de
Proteção Integral, e apresenta a mudança de paradigma instaurado com o Estatuto da Criança e
do Adolescente.
33
Foi elaborado no mundo jurídico, sem audiência Foi elaborado de forma tripartite: movimentos sociais,
da sociedade mundo jurídico e políticas públicas
Segrega e discrimina os “menores” em situação Resgata direitos, responsabiliza e integra adolescentes
irregular “em conflito com a lei”
Estabelece clara distinção entre os casos sociais e
Não distingue os casos sociais (pobreza) daqueles aqueles com implicações de natureza jurídica,
com implicação de natureza jurídica (delito) destinando os primeiros aos Conselhos Tutelares e os
últimos somente à Justiça da Infância e da Juventude
Fonte: COSTA (2006, p. 23)
Sendo assim, a proteção integral prevista no ECA objetiva o melhor interesse14 de todas
as crianças e adolescentes, e não mais entendendo-os como meros objetos de intervenção, como
nas doutrinas menoristas.
Com o advento do ECA, fica instituído que a pessoa com até doze anos de idade
incompletos é considerada criança, e considera-se adolescente aquela com idade entre doze e
dezoito anos. Para essa população se asseguram medidas de proteção que podem ser aplicadas
sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados “por ação ou omissão da sociedade ou
do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; em razão de sua conduta”
(BRASIL, 1990a, Art. 98). Quando verificada alguma dessas hipóteses, o ECA definiu, em um
primeiro momento15, oito diferentes medidas que poderiam ser aplicadas pela autoridade
competente:
Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade
competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I -
encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II -
orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e frequência
obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em
14
Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade (BRASIL, 1990a).
15
O Estatuto da Criança e do Adolescente passou por algumas alterações em seus artigos ao longo dos anos, que
serão apontadas no decorrer deste estudo. Neste momento, a referência é para a primeira redação da legislação.
35
16
Por ser o campo temático deste estudo, enfatizam-se as medidas de proteção e, em especial, as que se referem
ao Acolhimento Institucional, anteriormente denominado de “abrigamento”.
17
Somente em 2009, com a Lei nº 12.010/2009 (BRASIL, 2009), que as expressões “abrigo”, “abrigamento”,
“abrigados/as” ou “programa de abrigamento” foram substituídas por “Acolhimento Institucional”, “acolhidos/as”.
36
18
Importante pontuar que essa lei foi denominada “lei da adoção”, por trazer mudanças significativas nesse campo.
Entretanto, as alterações foram elaboradas dentro do princípio maior de regulamentar ações que garantam o direito
a convivência familiar e comunitária.
19
Ressalta-se que a medida de Acolhimento Familiar é uma modalidade de Acolhimento provisório tida como
prioritária ao Acolhimento Institucional, pois ocorre em residências de famílias cadastradas, selecionadas e
capacitadas por profissionais da área da Infância e Juventude. Essa modalidade tem por objetivo garantir a
construção de vínculos individualizados e a convivência familiar e comunitária para crianças ou adolescentes
afastados da família de origem, auxiliando no processo de retorno para família de origem ou encaminhamento para
adoção. Esta família acolhedora deve receber do Estado acompanhamento psicossocial e financeiro, para auxiliar
na superação das situações que levaram ao Acolhimento. Nos últimos anos, o número de munícipios brasileiros
que possuem o serviço de família acolhedora aumentou significativamente, porém ainda são poucos, o que faz
com que o encaminhamento para os serviços de Acolhimento Institucional seja a regra (INSTITUO FAZENDO
HISTÓRIA, 2019). O município de Florianópolis ainda não possui este serviço implantado, apenas o projeto de
lei aprovado. A temática de Acolhimento Familiar não será abordada neste trabalho por não ser o objeto de estudo.
38
20
Com a promulgação da Lei nº 13.509/2017, que altera novamente o Estatuto da Criança e do Adolescente, esse
período passa a ser de 18 meses.
39
ações articuladas envolvendo intersetorialmente todas as políticas públicas com uma única
direção: garantir a proteção integral a todas as crianças e adolescentes.
É nesse sentido que o CONANDA institui em 2006 a Resolução nº. 113, que detalha o
Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), apontado no artigo 86
do ECA – que trata da Política de Atendimento –, com o objetivo de sanar as dificuldades ainda
existentes na garantia da proteção integral das crianças e adolescentes brasileiras.
(BRASIL, 1993, Art. 1º), buscando romper com a tradição assistencialista e clientelista que
sempre permeou a área.
Na IV Conferência Nacional de Assistência Social21 realizada em 2003 se apontou a
necessidade de construção e implementação de um Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), com estruturas matriciais como a territorialização e hierarquização das atenções por
nível de proteção social. Deliberou-se pela divisão da proteção social em dois níveis: Proteção
Social Básica e Proteção Social Especial, sendo esta última subdividida em média e alta
complexidade; e a implantação do SUAS, visando efetivar a assistência social como política
pública e direito da população.
Em 2004 o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) aprovou a Política
Nacional de Assistência Social que estabeleceu as novas diretrizes para a organização do
SUAS, prevendo um sistema pautado na descentralização política e administrativa com a
participação da sociedade na sua estruturação e execução dos serviços, programas, projetos e
benefícios. Elas se organizam em diferentes eixos estruturantes: matricialidade sociofamiliar;
descentralização político-administrativa e territorialização; novas bases para a relação entre
Estado e Sociedade Civil; financiamento; controle social; desafio da participação
popular/cidadão usuário; política de recursos humanos; informação, monitoramento e avaliação
(BRASIL, 2004).
Para fins deste estudo, prioriza-se a discussão acerca da Proteção Social Especial de
Alta Complexidade por ser aquela referente à garantia da proteção integral (moradia,
alimentação, higienização e trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se encontram
em situação de risco pessoal e social por ocorrência de abandono, negligência, violência física
e/ou psíquica, violência sexual (abuso e/ou exploração), uso de substâncias psicoativas,
cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil,
fragilização ou rompimento dos vínculos familiares, entre outros, necessitando ser afastado do
convívio familiar, onde se enquadra a modalidade de Acolhimento Institucional enquanto
medida protetiva para crianças e adolescentes (BRASIL, 2004).
Diante da necessidade de padronização dos serviços assegurados pela PNAS para
garantir o acesso aos direitos socioassistenciais, o CNAS aprovou a Tipificação Nacional dos
Serviços Socioassistenciais (BRASIL, 2009b) que organiza e descreve os serviços, programas,
21
Ressalta-se que as conferências de assistência social são espaços de caráter deliberativo, realizadas nas três
esferas de governo (municipal, estadual e nacional), que devem oportunizar a participação popular por meio de
discussões e avaliações das ações governamentais, elegendo prioridades políticas para cada nível de governo e
responsabilidades para as diferentes organizações da sociedade civil que representam os usuários, trabalhadores e
as entidades de assistência social (BRASIL, 2019).
45
22
Art 19 § 2º: a permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não se
prolongará por mais de 18 (dezoito meses), salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse,
devidamente fundamentada pela autoridade judiciária (BRASIL, 2017).
23
Exceto em situações que isso seja contrário ao seu desejo ou, se houver claro risco de violência. (BRASIL,
2009c).
46
24
O Serviço de Acolhimento Institucional deve pensar, e prever em seu Projeto Político-Pedagógico, estratégias
para atendimentos às demandas específicas, preservando a diversidade cultural e oportunizando acesso e
valorização das raízes e cultura de origem das crianças e dos adolescentes atendidos, bem como de suas famílias
e comunidades de origem. O equipamento também deve respeitar as normas de acessibilidade, possibilitando o
atendimento aos usuários com deficiência (BRASIL, 2009c).
25
Deve ser viabilizado o acesso às atividades de sua religião, bem como o direito de escolher não participar de
atos religiosos ou de e recusar instrução ou orientação religiosa que não lhe seja significativa (BRASIL, 2009c).
47
Também afirma que o Serviço deve estar inserido em áreas residenciais, sem distanciar-
se do ambiente de origem dos/as acolhidos/as, ter estrutura semelhante ao de uma residência,
sem placas indicativas da natureza institucional, oferecer um ambiente acolhedor e condições
institucionais para um atendimento digno. Deve evitar nomenclaturas ou denominações que
remetam a aspectos negativos, estigmatizantes ou que reforcem práticas superadas,
despotencializando os/as usuários/as. O Serviço deve garantir atendimento personalizado e em
pequenos grupos, favorecendo o convívio familiar e comunitário das crianças e adolescentes
acolhidos/as e utilizando os equipamentos e serviços da rede disponíveis na comunidade
(BRASIL, 2009c).
O Quadro 3 apresenta a composição da equipe mínima profissional dos Recursos
Humanos dos Serviços de Acolhimento Institucional, em conformidade com as orientações da
NOB-RH/SUAS e do documento “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes”:
● Gestão do serviço;
● Elaboração, em conjunto com a equipe, do projeto político-pedagógico do serviço;
Principais ● Organização da seleção e contratação de pessoal e supervisão dos trabalhos
atividades desenvolvidos;
● Articulação com a rede de serviços;
● Articulação com o SGDCA.
EQUIPE TÉCNICA
● Formação mínima em nível superior26;
Perfil ● Experiência no atendimento a crianças, adolescentes e famílias em situação de
risco.
Quantidade 2 profissionais para atendimento a até 20 crianças e adolescentes
26
De acordo com a NOB-RH/SUAS, a equipe técnica de referência dos Serviços de acolhimento deve ser
formada por um assistente social e um psicólogo e suas respectivas atividades deverão respeitar as atribuições
privativas da profissão, definidas pelos respectivos conselhos profissionais (BRASIL, 2006c).
48
27
De acordo com as orientações técnicas, é desaconselhável que os cuidadores/educadores trabalhem em esquemas
de plantão (rodízio de 12 por 36 horas, por exemplo) devido a grande alternância de profissionais prestando os
cuidados. Sugere-se turnos de trabalho fixos diários, para que o profissional possibilite a estabilidade e organização
da rotina diária, desenvolvendo sempre as mesmas tarefas (exemplo: preparar café da manhã, almoço, jantar,
preparar para a escola, apoiar as tarefas escolares, colocar para dormir, etc.) (BRASIL, 2009c).
49
28
O Relatório Sinais Vitais (ICOM, 2016), é um diagnóstico social participativo realizado pelo Instituto
Comunitário Grande Florianópolis, que identifica áreas prioritárias e desafios para a comunidade, com o objetivo
de melhorar a qualidade de vida de um determinado município. A pesquisa em questão representa a edição de
2016: “Sinais Vitais Criança e Adolescente - Direito Deles, Transformação para Todos” (ICOM, 2016).
29
Dados acessados em 09/09/2019, nos relatórios de “Quantidade de entidades de acolhimento por Estado” e
“Quantidade de acolhidos por Estado”, disponível em: <http://www.cnj.jus.br/cnca/publico/#>
50
Responsabilidade
Instituições Sexo Faixa etária
legal
Abrigo Municipal de Coqueiros Governamental Feminino 07 a 18 anos
Casa de Acolhimento de Meninos Governamental Masculino 12 a 18 anos
30
As OSC são mantidas por meio de convênios com o Poder Público, com pessoas jurídicas e doações espontâneas,
campanhas de arrecadações e eventos beneficentes.
31
O Censo SUAS é um instrumento de monitoramento anual da rede socioassistencial, que reúne informações
disponibilizadas pelos próprios agentes dos serviços da respectiva rede, com o objetivo de produzir informações
que subsidiem o planejamento da execução da política de assistência social e aperfeiçoem o Sistema Único de
Assistência Social (BRASIL, 2018).
51
7% 1%
21%
30%
41%
Como recorte do objeto de análise desse TCC, trazemos adolescentes com idade a partir
de 16 anos, faixa etária em que as acolhidas já estão engajadas em atividades relacionadas ao
mercado formal de trabalho e começam a se preocupar com seu futuro após o desligamento do
Serviço de Acolhimento Institucional. De acordo com o Gráfico 1, 37% do total32 dos/as
adolescentes acolhidos/as nas instituições de Florianópolis se enquadram nesse recorte etário.
Atualmente existem três instituições, sendo duas governamentais e uma OSC, que realizam
32
Considerando 30% de 12 a 17 anos e 7% de 18 a 20 anos.
52
atendimento aos adolescentes até 18 anos em Florianópolis, cada uma com 20 vagas (Abrigo
Municipal de Coqueiros, Casa de Acolhimento de Meninos e Casa de Acolhimento Darcy
Vitória de Brito).
A pesquisa empírica realizada para a discussão proposta no TCC foi realizada no Abrigo
Municipal de Coqueiros. Assim, é pertinente trazer alguns apontamentos históricos e
metodológicos do seu funcionamento, que já iniciam os procedimentos de análise empírica,
tendo em vista que a organização e funcionamento do Abrigo de Coqueiros trarão elementos
concretos para analisar o objeto de pesquisa.
33
Torna-se importante ressaltar que parte as informações expostas neste subitem se encontram em documentos
institucionais do Abrigo Municipal de Coqueiros, de acesso da estudante pesquisadora durante seu período de
realização do estágio curricular obrigatório na referida instituição.
53
34
Conforme apontado anteriormente, a Proteção Social Especial de Alta Complexidade é aquela destinada à
garantia da proteção integral para famílias e indivíduos que se encontram “em situação de ameaça, necessitando
ser retirados do seu núcleo familiar e/ou comunitário” (BRASIL, 2004).
35
A cozinheira e auxiliar de serviços gerais são contratadas via empresa terceirizada, enquanto o restante dos
funcionários são contratados via concurso público, de forma a garantir a estabilidade do vínculo empregatício para
facilitar o desenvolvimento das relações de convívio e confiança entre as adolescentes e os funcionários
(FLORIANÓPOLIS, 2017).
36
Durante a finalização deste TCC (dezembro/2019), tomou-se conhecimento de que a equipe técnica da
instituição havia sido reformulada, estando com seu quadro pessoal completo. Entretanto, mantém-se as
informações obtidas durante a etapa de coleta de dados (agosto e setembro/2019) por estas influenciarem no
resultado final da pesquisa.
54
37
Sendo sua jornada de trabalho em escala de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso.
55
38
São estabelecidas, inclusive, rotinas de limpeza do ambiente, de lavagem de roupas e louças, de estudo, entre
outras.
56
Na busca por dados que possibilitassem a aproximação com a questão central, definiu-
se dois eixos de coleta de dados: o primeiro, a pesquisa empírica, contou com a entrevista
semiestruturada com duas adolescentes que se encontravam acolhidas na ocasião da pesquisa
de campo e com um profissional técnico do Abrigo Municipal de Coqueiros. Em relação às
adolescentes, por razões metodológicas, optou-se por entrevistar aquelas com idades entre 16 e
18 anos, independentemente do tempo de permanência no Acolhimento Institucional.
No segundo eixo buscou-se informações nos documentos institucionais do Abrigo
Municipal de Coqueiros, mais especificamente nos prontuários das adolescentes e no Processo
Judicial online de cada uma, a fim de complementar a pesquisa por dados sobre a trajetória das
entrevistadas e suas famílias. O prontuário é a denominação utilizada pela equipe do Serviço
de Acolhimento, para se referir a uma pasta física com arquivos pessoais. O Processo Judicial
online se configura por meio de um site oficial do Poder Judiciário onde é possível consultar a
situação dos processos em poder da justiça. Pelo fato de todos os acolhimentos e seus
desdobramentos serem notificados à Vara da Infância e da Juventude, todas as informações
judiciais ficam arquivadas nestes processos. Através de um Sistema de Automação da Justiça
(e-SAJ) é gerado um número de processo que disponibiliza o acesso às informações relativas à
sua tramitação no Tribunal de Justiça.
Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, somado ao fato de serem menores de
idade e em medida de proteção determinada por autoridade judicial, por questões éticas o
percurso metodológico desta pesquisa precisou ser avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
58
com Seres Humanos da UFSC, conforme determina o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa,
por meio da Resolução 510/2016 (BRASIL, 2016). A primeira versão do projeto de pesquisa
foi submetida ao CEPSH/UFSC no dia 02 de maio de 2019, tendo sua aprovação final em 06
de agosto do mesmo ano.
Deu-se início então à realização da metodologia. Em um primeiro momento foram
definidas quatro adolescentes que na época se encontravam acolhidas na instituição e possuíam
as características para participar. Contudo, na data proposta para o início da aplicação do
instrumental de coleta de dados – em razão do aguardo da autorização do CEPSH/UFSC – uma
das adolescentes havia sido transferida para outra instituição de Acolhimento do município, e
outra foi desacolhida. Dessa forma, a coleta de dados foi realizada com duas adolescentes, além
do profissional de Serviço Social.
Mediante autorização judicial emitida pela Juíza de Direito da Vara da Infância e da
Juventude – Comarca da Capital e pelo Coordenador da instituição de Acolhimento (também
responsável legal das adolescentes), as entrevistas com as acolhidas foram realizadas em
horários previamente agendados, de maneira a não comprometer suas rotinas diárias.
A pesquisadora compareceu à instituição em dois sábados do mês de agosto de 2019,
acompanhada da professora orientadora. As entrevistas foram realizadas individualmente, na
sala da equipe técnica da instituição, somente com a presença da pesquisadora, da professora
orientadora e da adolescente entrevistada. O roteiro de perguntas previamente elaborado
(APÊNDICE F) permitiu uma conversação livre, com informações aprofundadas e detalhadas,
objetivando “levantar motivações, crenças, percepções e atitudes em relação a certa situação
e/ou objeto de investigação” (MARTINS, 2008, p. 27). Cada entrevista com as adolescentes
durou cerca de 50 minutos, totalizando aproximadamente 100 minutos de conteúdo gravado.
Todas as conversas foram transcritas em 40 páginas de material, transferidos para um quadro
de análise de entrevista (APÊNDICE E).
Quanto a entrevista com o profissional técnico, também aconteceu no mês de agosto,
mediante agendamento prévio, em uma sala de atendimento privada da instituição, durante o
horário de trabalho do profissional. A partir de um roteiro previamente estabelecido
(APÊNDICE G), o conteúdo da entrevista gerou 40 minutos de gravação e 11 páginas de
transcrição, somando ao todo 51 páginas de relatos.
A pesquisadora também agendou com a coordenação da instituição dois dias no Abrigo
Municipal de Coqueiros para coletar as informações da pesquisa documental nos prontuários
físicos e Processos Jurídicos online. A coleta de dados foi realizada no mês de setembro, com
59
Para manter a privacidade das adolescentes sujeitos dessa pesquisa, cada uma foi
denominada a partir do nome de uma flor. Metáfora esta adotada em razão de que no processo
de vida de uma flor, a dialética da vida se faz presente no percurso. Além disso, como o
momento de mudança vivenciado pelas adolescentes devido à chegada da maioridade, as flores
escolhidas representam a força, a transformação, o crescimento, o renascimento, a resistência e
a adaptação.
Sendo assim, o conteúdo apresentado nesta análise está dividido de maneira a analisar
dois diferentes casos: Violeta e Íris.
Violeta, hoje com 18 anos, foi acolhida pela primeira vez no Abrigo Municipal de
Coqueiros em março de 2013, junto com sua irmã. A partir da pesquisa documental, construiu-
se uma linha do tempo da sua trajetória de vida antes do encaminhamento ao Acolhimento
Institucional, para melhor visualização e análise das informações (FIGURA 2).
Com base nos documentos encontrados, há registros de que a família era acompanhada
pelo Conselho Tutelar (CT) desde 2005 e que em 2006 este mesmo órgão encaminhou a família
61
para atendimento no Programa de Orientação e Apoio Sócio Familiar (POASF)39, hoje extinto.
Seis anos depois, em 2012, há registros do início do acompanhamento da família no serviço de
Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). Estes documentos de
2005 a 2012 aos quais a pesquisadora teve acesso, não detalham 40 os motivos pelos quais a
família iniciou o acompanhamento pelo Conselho Tutelar, tão pouco a razão para o
encaminhamento ao POASF e PAEFI.
As próximas informações encontradas datam de 2012, quando o CT recebeu uma
denúncia por meio do SOS Disque Denúncia41 de que a genitora de Violeta “comparecia
sempre embriagada à escola” aonde as filhas estudavam e que Violeta, na época criança,
possuía comportamento agressivo e hematomas nos braços, consequência de episódios de
automutilação com objetos cortantes (Conselho Tutelar). Não foram encontrados registros com
maiores informações sobre os encaminhamentos realizados posterior à essa denúncia.
As informações seguintes se referem ao ano de 2013, cerca de seis meses após a
denúncia pelo SOS, relatando dois episódios envolvendo a Unidade Básica de Saúde (UBS)
frequentada pela família de Violeta no espaço de tempo de dois meses. Relatos do CT afirmam
que a UBS os acionou solicitando auxílio. Na primeira situação, relatam que a genitora de
Violeta compareceu ao Grupo de Apoio Psicológico realizado na UBS acompanhada das filhas
(Violeta e sua irmã), entretanto os/as profissionais de saúde observaram que a genitora se
encontrava embriagada e agredindo-as fisicamente. O CT buscou as irmãs e acompanhou-as na
realização de boletim de ocorrência policial (BO), seguido de exame de corpo de delito.
Em atendimento com o CT as irmãs confirmaram as agressões da mãe e o uso diário de
álcool e drogas. Questionadas sobre a possibilidade de serem cuidadas por algum outro familiar,
indicaram um tio, mas em contato telefônico ele afirmou não ter condições de cuidar das
sobrinhas. Dessa forma o CT conversou com a genitora, que se comprometeu a realizar
tratamento no Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS-AD) assim
que conseguisse o benefício de transporte.
Aproximadamente dois meses após este fato a mesma UBS acionou novamente o CT
comunicando que o genitor de Violeta estava no local solicitando auxílio para as filhas, visto
39
Com a implantação do Sistema Único de Assistência Social em 2004 e posteriormente, com a Tipificação
Nacional dos Serviços Socioassistenciais em 2009, o POASF, integrante do Programa Sentinela, foi substituído
pelo Serviço de Enfrentamento a Violência, Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes,
integrante dos serviços do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS).
40
Essa tônica de “poucas ou nenhuma informação” é recorrente nos documentos físicos ou processos judiciários
online das adolescentes acolhidas. Assim, dificultando a reconstrução do itinerário da vida dessas adolescentes
para que possamos, com riqueza de detalhes, compreender as decisões tomadas pelas instituições do SGDCA.
41
O SOS Disque Denúncia é uma ferramenta para realização de denúncias de violações de direitos contra crianças
e adolescentes, administrada pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Florianópolis.
62
que a genitora não havia iniciado o tratamento e ele também não tinha condições de prestar os
cuidados necessários por também ser usuário de álcool. O CT buscou as adolescentes e realizou
outra tentativa de contato com o tio, mas este não alterou sua decisão inicial.
Sob a justificativa da “situação emergencial”, o CT encaminhou as irmãs para o
Acolhimento Institucional com a seguinte motivação exposta no documento enviado ao Abrigo
Municipal de Coqueiros: “criança e adolescente vítimas de negligência. Genitora usuária de
substâncias psicoativas e genitor alcoolista. Família ampliada não aceita cuidar das crianças”
(Conselho Tutelar).
As irmãs foram acolhidas em maio de 2013, primeiramente na Casa de Acolhimento do
Jardim Atlântico e em seguida no Abrigo Municipal de Coqueiros, inaugurado na semana
seguinte. O CT enviou relatório explicando o motivo da decisão do Acolhimento Institucional
à Vara da Infância e da Juventude cerca de 20 dias após o acolhimento.
O único documento que contém informações pertinentes sobre a trajetória da família da
adolescente Violeta é o relatório complementar enviado à Vara da Infância e da Juventude,
elaborado pelo CT, e ainda deixa a desejar por não detalhar as informações, ações e
encaminhamentos realizados desde o início do acompanhamento da família. Não há como saber
os motivos que levaram o CT a iniciar o acompanhamento e o encaminhamento a outros
serviços assistenciais, mas é possível perceber que somente a partir da denúncia pelo SOS
Disque Denúncia que ele julgou importante detalhar as informações.
Essa ausência de informações reflete a qualidade técnica dos documentos elaborados,
resultando na dificuldade em conseguir organizar os poucos dados, estruturá-los em uma linha
do tempo para melhor visualização e compreensão dos processos, para assim analisar os
determinantes que ocasionaram a medida de proteção de Acolhimento Institucional de Violeta
e sua irmã.
A família de Violeta foi acompanhada pelo CT por mais de oito anos, sendo este mesmo
órgão de proteção responsável pelo encaminhamento ao Acolhimento Institucional. As
informações apontadas pelo/a profissional de saúde da UBS são as mais detalhadas e
importantes, pois somente a partir dele que o CT toma uma atitude e se faz presente enquanto
órgão de proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Sabe-se que o CT é um órgão autônomo, não jurisdicional e administrativo, portanto
“integra o conjunto das instituições públicas municipais, sendo sua função executora no sentido
de prover o atendimento de direitos, não cabendo ao mesmo o julgamento e a solução de
conflitos de interesse e a aplicação da lei” (SILVA, 2011, p. 64). Assim, é ao Poder Judiciário
63
que o fato deve ser levado e onde as sanções serão aplicadas. Dessa forma, todos os
encaminhamentos e decisões do CT, devem ser comunicados ao Judiciário.
Conforme exposto no ECA, se o CT entender o afastamento do convívio familiar como
necessário, “comunicará incontinenti o fato ao Ministério Público, prestando-lhe informações
sobre os motivos de tal entendimento e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a
promoção social da família” (BRASIL, 1990a, Art. 136). No caso de Violeta e sua irmã o
Conselho comunicou ao Poder Judiciário os motivos que levaram a decisão do Acolhimento
somente 17 dias após elas já estarem acolhidas na instituição, não cumprindo com o que dispõe
a legislação.
Embora o relatório complementar seja o único documento que apresente algumas
informações sobre parte da vida de Violeta anterior ao Acolhimento Institucional, nas quase
sete páginas de história é possível encontrar a atuação do Sistema de Garantia de Direitos de
Crianças e Adolescentes, representado pelo Conselho Tutelar que iniciou o atendimento; pelos
serviços da assistência social aos quais a família foi encaminhada; pela educação, visto que a
denúncia provavelmente foi feita por um membro da escola, pois se refere a frequência da
genitora e ao comportamento de Violeta neste espaço; pela Unidade Básica de Saúde
frequentada pela família que acionou o CT; e pela Vara da Infância e da Juventude, enquanto
instância do Poder Judiciário acionada posteriormente, para deferimento do pedido de
Acolhimento Institucional.
Ainda que o SGDCA tenha sido acionado por meio das instituições e políticas públicas,
sua operacionalização não se efetivou. A Doutrina da Proteção Integral estabelecida pelo ECA,
juntamente com a lógica de atuação do SGDCA, prevê uma rede de atuação articulada e
integrada entre as políticas, programas e serviços públicos. “No âmbito das políticas sociais a
concepção de redes surge como uma possibilidade de superação da histórica fragmentação
presente na intervenção de diferentes áreas” (TEJADAS, 2009, p. 45). Não cabem mais ações
isoladas ou aquela antiga concepção de que as instituições conseguem responder sozinhas às
necessidades sociais.
A importância de uma rede de atuação articulada entre os órgãos do SGDCA implica na
efetividade da garantia de direitos de crianças e adolescentes. Conforme Carvalho (2012, p. 39)
“organizar um trabalho numa perspectiva de rede significa articular instituições, organizações
e pessoas em torno de uma questão social comum envolvendo o planejamento, a execução e a
avaliação dos resultados dessa integração.” Essa rede de atuação presente na configuração das
ações do SGDCA é indispensável para garantir proteção integral.
64
Não é mais preciso esperar que uma criança ou adolescente tenha seus direitos
violados para que - somente então - o “Sistema” passe a agir, não sendo também
admissível que esta atuação se restrinja ao plano meramente individual e, muito
menos, que a institucionalização, responsável por tantos malefícios, seja
considerada uma “solução”, tal qual ocorria no passado (DIGIÁCOMO, 2013, p.
1, grifo nosso).
De acordo com Azevedo e Guerra (1989, p. 41), a negligência “representa uma omissão
em termos de prover necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente” (grifo
nosso). Assim, ela se configura, por exemplo, “quando os pais (ou responsáveis) falham em
termos de alimentar, de vestir adequadamente seus filhos e quando tal falha não é resultado das
condições de vida além de seu controle”. Por esse motivo, Minayo (2001, p. 97) afirma que a
negligência é uma ação dificil de ser qualificada e quantificada, “sobretudo quando as famílias
estão em situação de miséria”.
A pesquisa “Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de
Acolhimento”, publicada em 2013 e realizada em 27 unidades de federação do Brasil, revelou
que entre os motivos do ingresso da criança ou do adolescente no Acolhimento Institucional,
em todas as regiões do país o motivo “negligência na família” se sobressai, representando
37,6% do total (ASSIS; FARIAS, 2013).
Se segundo a CF/88 o dever de assegurar direitos fundamentais as crianças e
adolescentes é de responsabilidade não só da família e da sociedade, mas também do Estado,
os casos de negligência familiar não poderiam ser considerados casos de negligência do Estado?
O ECA afirma, em seu artigo 23, que a condição de pobreza não configura razão legal
para a suspensão ou perda do poder familiar (BRASIL, 1990a). Diante da análise dos
documentos sobre a história de Violeta e sua família é possível perceber que ainda há resquícios
das práticas menoristas de culpabilização das famílias pela sua condição de vulnerabilidade,
executadas no antigo Código de Menores. Não querer cuidar e proteger seus membros significa
o mesmo que não poder cuidar e proteger?
Os órgãos e instituições que atuaram sob essa família, em especial o CT, desconsideram
as condições de violação de direitos de Violeta e sua irmã, e deixam de relacionar esse contexto
com a ausência de políticas públicas e a garantia de direitos previstos na CF/88 e no ECA.
66
• A voz de Violeta
Ao ser questionada sobre suas lembranças referentes ao momento em que foi acolhida,
Violeta afirma: “fiquei muito triste. Minha vontade era avançar na minha irmã.” Quanto a sua
preferência à sua casa ou ao abrigo, afirma preferir sua casa, por melhor que fosse o abrigo.
Sua resposta comprova que a medida de proteção de Acolhimento Institucional, ao passo
em que protege a criança ou o adolescente da violação de direitos a que foi submetido, também
viola o direito à convivência familiar e comunitária, tendo em vista que mesmo que o Serviço
de Acolhimento lhe proporcionasse melhores condições, Violeta afirma que preferia estar em
sua casa.
Para evitar essa institucionalização é necessário um conjunto de ações preventivas,
executadas por todos atores envolvidos no SGDCA. A convivência familiar e comunitária se
refere a possibilidade da criança ou do adolescente permanecer no meio à qual pertence e de
preferência, junto à sua família de origem (RIZZINI et al., 2006). Ou seja, as ações realizadas
devem ser pensadas de forma a priorizar o fortalecimento e a reintegração da família.
O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e
Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária organiza um plano de ação para garantir o
direito à convivência familiar e comunitária. No eixo relacionado ao “atendimento”, são
estabelecidas diretrizes para incluir as famílias em situação de vulnerabilidade em programas e
serviços de apoio sócio familiar como estratégia para a prevenção do rompimento do direito à
convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2006a).
No caso Violeta, dentre as ações dos atores do SGDCA não se constata a realização dos
encaminhamentos necessários aos serviços e programas de apoio sócio familiar para evitar a
institucionalização de Violeta e sua irmã. Ao deferir o Acolhimento Institucional, viola-se o
direito da convivência familiar, que também não é superado no cotidiano do acolhimento.
Quanto aos motivos que levaram ao Acolhimento Institucional, a Violeta conta:
Violeta: Eu vim pra cá porque minha mãe e meu pai eram alcoólatras. Minha mãe é
ainda e meu pai conseguiu parar. E eu vim pra cá praticamente pela minha irmã,
porque a minha mãe batia muito na minha irmã e minha irmã procurou o psicólogo
no postinho de saúde e nós viemo pra cá. Não pra cá né, pro outro abrigo, do Jardim
Atlântico. Aí quando abriu esse, nós viemo pra cá.
Pesquisadora: E como foi com o Conselho Tutelar? Te contaram para onde tu
virias?
V: Não, minha irmã já tava no carro, ai foram na minha casa e disseram que nós
ia pro Conselho Tutelar. Eu tava me arrumando pra ir pro colégio ai desci e fui pro
carro também.
P: Então disseram que você ia para o Conselho Tutelar?
68
V: Falaram pra minha mãe: “vamo leva elas pro Conselho Tutelar”.
P: Então lá do Conselho Tutelar te levaram para o abrigo, mas não te explicaram
pra onde você iria?
V: Não explicou nada (Violeta, grifo nosso).
Essas falas apontam para uma nova situação, pois do seu ponto de vista a culpada pelo
Acolhimento era sua irmã que contou ao psicólogo da UBS sobre a violência praticada pela
genitora. Nos documentos analisados pela pesquisadora não está descrito a busca espontânea
da irmã de Violeta pelo profissional da UBS. Segundo eles, em um primeiro momento o
profissional é quem observa a violência e relata ao CT, e em outra situação é o pai quem solicita
ajuda. Novamente os documentos possuem informações incompletas.
A irregularidade da atuação do CT novamente está presente quando Violeta conta que
ela ou sua família não foram informadas que seriam encaminhadas a uma instituição de
acolhimento. O ECA define os princípios que regem a aplicação das medidas de proteção, sendo
uma delas a obrigatoriedade da informação: “a criança e o adolescente, respeitado seu estágio
de desenvolvimento e capacidade de compreensão, seus pais ou responsável devem ser
informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como
esta se processa” (BRASIL, 2009a, Art. 100). Desconsiderar o interesse da criança ou do
adolescente e não comunicar os encaminhamentos que serão tomados contraria o princípio da
proteção integral.
Íris foi acolhida institucionalmente pela primeira vez em dezembro de 2012, juntamente
com sua irmã, em uma instituição de acolhimento do município de Florianópolis. Seu
acolhimento no Abrigo Municipal de Coqueiros se deu somente em 2014, após ter atingido a
idade limite de permanência na instituição anterior. A análise documental se refere a
documentos anteriores ao acolhimento nas duas instituições.
Para melhor compreensão dos fatos principais que levaram à decisão do Acolhimento
Institucional, construiu-se a seguinte linha do tempo (FIGURA 3):
69
realizadas de maneira pontual e não continuada. Mesmo que a genitora de Íris não
interrompesse o uso abusivo de drogas nos atendimentos iniciais, o acompanhamento deveria
ter continuado, visto que a família se encontrava em situação de vulnerabilidade. Mas ele de
fato começa somente quando a avó adoece. E se não houvesse uma “denúncia” sobre a situação,
o SGDCA teria atuado sob essa família?
Todos os órgãos e instituições envolvidos neste caso e que ocupavam (ou deveriam
ocupar) uma posição de defesa, garantia e promoção do direito de crianças e adolescentes, são
corresponsáveis pela institucionalização de Íris e pelo rompimento dos vínculos familiares.
Quanto a utilização do termo “negligência” pelo Ministério Público, os documentos
sugerem que este órgão se manifestou a partir de uma concepção errônea do conceito de
“negligência”, pois se refere não só aos genitores, mas também a avó. Os documentos mostram
que a situação de enfermidade a impossibilitou de executar os cuidados sempre realizados. Não
foi negligência ou abandono, mas sim impossibilidade.
É possível ainda sinalizar a utilização da negligência familiar como principal motivo
para o Acolhimento Institucional. O Estado, representado pelo SGDCA, não é considerado
enquanto instância garantidora de direitos em nenhum momento, por nenhum dos atores
envolvidos.
Teixeira (2013, p. 112) afirma que a política dirigida à família no Brasil, mesmo que
ofereça proteção, “o faz para que ela possa proteger seus membros, o que reforça as suas
funções protetivas e a dependência do indivíduo das relações familiares, fortalecendo o
familismo, ao invés de ser desfamiliarizante”.
O Estado não seria negligente ao deixar de prover o atendimento necessário à essa
família durante anos e contribuir para a institucionalização das crianças? As famílias têm sido
historicamente sobrecarregadas e unicamente responsabilizadas pela promoção do bem-estar
aos seus membros e a participação do Estado sequer é considerada.
Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que não haja o
desmembramento de grupos de irmãos, visando a preservação dos vínculos familiares
(BRASIL, 1990a). Sobre esta questão, ROCHA (2013, p. 7) afirma: “se as crianças vão sair de
sua família de origem, mesmo que por breve espaço de tempo, será mais fácil enfrentarem o
desconhecido juntas”. O encaminhamento ao Acolhimento Institucional de Íris e seus irmãos é
o desconhecido para eles naquele momento. Ao acolhê-los separadamente, viola-se novamente
o direito a convivência familiar e comunitária.
Após a análise dos documentos percebe-se a ausência de articulação do SGDCA
enquanto instrumento de promoção, proteção e defesa da efetivação dos direitos das crianças e
73
• A voz de Íris
[...] Eu morava com a minha avó, porque minha mãe usava muita droga, ela sempre
vivia em clínica de reabilitação e tal. Só que tipo, em 2010, ela veio morar com a
gente em Floripa, antes ela morava na Palhoça. Aí ela veio pra cá. Por um tempo ela
ficou de boa e tal, só que daí ela voltou a usar droga e eu sempre morei com a minha
vó. Aí ela (minha vó) ficou doente e em 2011 ela teve um AVC. Aí como a saúde dela
não era muito boa e tal, ela ficou pior e perdeu o movimento do lado esquerdo do
corpo. Aí a minha mãe já morava com a gente, mas a minha vó decidiu se mudar
porque não queria mais morar em Floripa, porque ela achava que os problemas da
minha mãe, relacionado com a droga, era por a gente morar nessa cidade. Aí a gente
se mudou pra Balneário Camboriú, meus irmãos também foram. Só que tipo, a gente
ficou lá um mês, ou dois. Não foi muito tempo, minha avó não gostava do lugar, a
gente tava longe da nossa família e aí a gente voltou pra Floripa. Depois que a gente
voltou de lá, uns seis meses depois, eu e meus irmãos fomos pra um abrigo porque
minha avó tava muito doente e minha mãe não tinha condição de cuidar da gente,
mentalmente falando. E ela tinha que cuidar da minha avó também. Aí a gente foi pro
outro abrigo (Íris).
Íris: Ah, o Conselho Tutelar foi lá em casa, por causa de denúncia. Aí a mulher do
Conselho foi lá. Só que tipo, a gente tinha uma vida boa, sabe? Uma situação
financeira boa, uma casa boa... Aí tipo, quando a conselheira chegou lá... É que tipo
assim, lá é perto de uma favela, mas não é na favela e nem é uma favela grande. Aí a
conselheira até estranhou, sabe? Achou que a casa ia ser de um jeito e não era do
jeito que ela achou. Aí quando ela chegou eu não tava em casa, e ela ficou esperando
um tempão eu chegar, porque eu tava no mercado. Aí eu cheguei, e a conselheira
falou: “ah, a gente vai levar vocês pra tomar sorvete”.
P: A conselheira convidou para tomar sorvete e em nenhum momento falou que
vocês seriam acolhidos?
I: Não, mas tipo, a gente já imaginava, né? Tipo, porque que o Conselho Tutelar vai
vir na minha casa? (Íris, grifo nosso).
Segundo Íris, sua família possuía boas condições financeiras e uma residência com boas
estruturas, mesmo que fosse próximo a uma favela. Do seu ponto de vista, esse fato causou
estranheza à conselheira tutelar que foi buscá-los.
E novamente constatam-se irregularidades na atuação do Conselho Tutelar. Conforme
a fala de Íris, em nenhum momento ela foi informada que estava indo para uma instituição de
acolhimento, entretanto a conselheira tutelar aproveitou para se aproximar dela e de seus
irmãos, convidando-os para tomar sorvete, para conseguir levá-los à instituição. Assim como
no caso de Violeta, contraria-se a legislação que torna obrigatória a comunicação dos
encaminhamentos que serão tomados para a família e inclusive, para as próprias crianças.
75
42
Ressalta-se que o termo evasão se refere ao ato de deixar a instituição sem comunicar os responsáveis, ou o ato
de não retornar à instituição após o horário combinado com os responsáveis. Quando isso acontece, é realizado
boletim de ocorrência junto à Polícia Civil, e notifica-se a Vara da Infância e da Juventude. Na maioria das vezes,
o retorno da criança ou adolescente que evadiu para o Serviço de Acolhimento, ocorre a partir da procura
espontânea destes pelo Conselho Tutelar, que encaminha novamente ao Serviço.
76
semana com eles. Além disso, a família a visita na instituição frequentemente e realizam
passeios juntos pelo bairro, fortalecendo o vínculo afetivo.
Quanto à jovem Íris, sabe-se que ela foi acolhida em outra instituição de acolhimento
de Florianópolis em 2012. A partir dos documentos analisados, entre 2012 e 2013 a avó de Íris
faleceu e os seus irmãos foram residir com o genitor (que não é pai de Íris) oito meses após o
acolhimento, quando lhe foi concedida a guarda dos filhos. Íris tinha autorização judicial para
frequentar a residência dos irmãos.
Depois que minha vó morreu, o pai da minha irmã e do meu irmão conseguiu pegar
a guarda deles, e eu continuei lá. Aí depois eu fugi e fui morar com a minha mãe. Isso
foi tipo em 2012, eu acho. Aí fiquei morando com ela um tempo, um ano ou dois e
depois eu vim pra cá [Abrigo Municipal de Coqueiros] (Íris).
O episódio de fuga a qual Íris se refere é exposto nos documentos como sendo em 2014,
vez em que ela evadiu da instituição e retornou ao convívio com sua mãe. Segundo relatos da
instituição, o fato de a genitora estar grávida e fazendo uso de drogas durante a gestação
motivou a fuga de Íris, “que queria interferir para persuadi-la a parar com o uso, em favor do
bem-estar do seu irmão em gestação” (Instituição de Acolhimento).
Em junho de 2014, há uma determinação do Ministério Público solicitando a busca e
apreensão de Íris ao Conselho Tutelar e o encaminhamento da mesma ao Abrigo Municipal de
Coqueiros, pelo fato de ter ultrapassado a idade limite de permanência na instituição em que
estava anteriormente acolhida.
Seu Acolhimento no Abrigo Municipal de Coqueiros se deu em julho de 2014. No
decorrer dos anos há registros da construção de um vínculo afetivo entre Íris e uma madrinha,
que favoreceu o desenvolvimento da jovem, possibilitando a participação em um ambiente
familiar e afetuoso.
Além disso, com o passar dos anos Íris foi desenvolvendo suas potencialidades e
conquistando seu espaço. Realizou acompanhamento psicoterapêutico durante alguns anos,
ingressou no mercado de trabalho através do Programa Jovem Aprendiz, conquistou uma bolsa
de estudos em uma escola privada do município, iniciou a elaboração de um livro, criou um
blog na internet e era atuante no Conselho Municipal de Direitos das Crianças e Adolescentes
de Florianópolis. Em 2016 Íris foi eleita delegada estadual e participou da X Conferência
Nacional de Direitos das Crianças e Adolescente, em Brasília.
Quanto a relação com a família, há registros de que Íris evadiu da instituição algumas
vezes, sendo uma delas para morar com a sua mãe. Sobre esse episódio e sua relação com a
genitora, afirma:
78
I: Eu fui morar com ela, fiquei sete meses morando com ela. Eu quase rodei de ano,
porque eu tinha bolsa, mas tava muito complicado, sabe? Mas aquele tempo foi bom,
sabe? Independente de ela usar droga, essa é a vida dela, sabe? Ela sempre me
tratou bem, se alguma coisa acontecesse comigo na rua, eu sei que ela sempre vai
ta aqui pra me proteger e tal, mas é só a incompatibilidade...
P: Então vocês tinham uma relação de afeto?
I:Mano, é que assim. A gente nunca teve relação de mãe e filha. Desde pequena eu
ficava com a minha vó. Minha vó pegou minha guarda quando eu tinha seis meses,
que foi quando minha mãe casou com o pai dos meus irmãos e minha avó achava que
lá não era um bom lugar pra cuidar de uma criança. E aí ela pegou minha guarda.
Então tipo, eu e minha mãe, a gente não teve aquela relação de tipo: ah, minha mãe
que me ensinou as coisas, os momentos bons foram com ela... não, tipo, foi tudo com
a minha avó, sabe? Eu aprendi a ler, aprendi a andar com ela, todos meus
aniversários quem fez foi minha vó. E ela sabe disso, que a gente nunca teve uma
relação de mãe e filha que nem ela tem com minha irmã e meu irmão. Então tipo, eu
não vejo ela como uma mãe, eu sei que ela me pôs no mundo, mas ela não representa
maternidade pra mim (Íris, grifo nosso).
Não sei, é.… é tipo, normal, sei lá... 18 anos, é muito estranho... Eu tô bem. Vou virar
gente, ter responsabilidades de gente, o que eu já tinha antes, né? Então não muda
nada. Tipo, ter 18 anos é ter 17 só que com um número a mais, não muda muita coisa.
Não é como se fosse “meu Deus, 18 anos!”, não é nada demais... É diferente por
causa das coisas que tão aí batendo na porta, vestibular e tal, né? Mas é legal (Íris).
Segundo Figueiró (2012), é compreensível que adolescentes nas mesmas situações que
Violeta e Íris apresentem sentimentos de angústia, medo, abandono, renovação do abandono e
revolta. O período de transição pode gerar insegurança e despreparo para lidar com o novo: a
passagem para a vida adulta. Domingues e Alvarenga (1997, p. 38) afirmam que os
questionamentos e sentimentos gerados neste momento são importantes, pois representam “a
busca do jovem do conhecer a si mesmo através da diferenciação do que foi e do que gostaria
de ser”.
Sem o apoio do poder público e do suporte familiar que não foi fortalecido, a falta de
segurança para seguir adiante e a ausência de suporte não só econômico, mas também afetivo
e social, se apresenta com o sentimento de desamparo e angústia ao se aproximarem do
momento de saída.
Deixar a instituição e completar 18 anos representa, nas falas das adolescentes, adquirir
mais responsabilidades. De acordo com Domingues e Alvarenga (1997, p. 43) “a forma mais
característica de reconhecimento da adolescência como despertar ‘consciente’ do sentido da
existência humana como devir histórico-social, [...] parece revelar-se nas formas típicas de
identificação com a noção de responsabilidade”.
Violeta e Íris percebem que precisarão desenvolver condições para a vida fora da
instituição, sendo as únicas responsáveis pela sua sobrevivência. Assim, sinalizam suas noções
de responsabilidade, como: ter uma casa, morar sozinha, fazer suas próprias coisas e passar no
vestibular, que interferem diretamente nas suas escolhas, desejos, ideias e atitudes. Muito além
de uma fase apenas definida judicialmente, a maioridade se expressa como momento de
reconhecimento próprio enquanto sujeito histórico, capaz de se inserir no “mundo adulto”,
assumir responsabilidades e conquistar o seu espaço.
Contudo, embora demonstrem sentimentos contraditórios de incerteza, felicidade e
angústia, nota-se que elas não relacionam a chegada da maioridade com a necessidade de saída
da instituição e todas as responsabilidades que essa independência acarretará. Isso também é
constatado pela fala do profissional técnico, quando questionado sobre como as adolescentes
encaram a proximidade do desligamento:
82
Comigo não, com as outras não sei... de vez em quando tem reunião, mas não falam
sobre isso, só sobre a convivência na casa. Pelo o que eu sei, depois que a gente faz
18 anos, pode ficar mais três meses aqui. Nesses três meses eles vão ajudando nós a
arrumar uma casa e depois que passa os três meses tem que sair (Violeta).
E Íris, questionada se tinha ciência de que precisaria sair ao completar 18 anos, afirma:
“Na verdade eu não preciso sair daqui, né? Nessa casa aqui eu posso ficar até os 21”.
Após esclarecermos que, perante a lei, o Serviço de Acolhimento atende crianças e
adolescentes de 0 a 18 anos e ao atingir a maioridade mas ainda não ter condições de garantir
84
Íris afirma que até o momento da realização da entrevista a equipe técnica ainda não
tinha conversado com ela sobre o processo de desligamento e se refere a falta de tempo como
motivo para não ter acontecido. “Elas ainda não conversaram comigo. Tipo, eu não tenho
tempo. Mas podiam ter conversado nos outros anos, não sei porque não fizeram” (Íris). Já
Violeta, diz: “Não faz diferença conversarem. Eu sei que não vou viver o resto da vida aqui
né, um dia vou ter que sair. Não faz diferença”.
Embora Violeta acredite que conversar com a equipe não mudará o fato de que um dia
ela precisará sair obrigatoriamente da instituição, entendemos que esse momento de preparação
gradativa é extremamente importante e deve começar logo cedo. Se as duas adolescentes
participantes estão acolhidas a cerca de seis anos e o vínculo familiar não foi reestabelecido,
sabia-se muito antes que elas permaneceriam no Serviço até a maioridade, e o que foi feito?
De acordo com as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes, “o desligamento não deve ser visto como um momento apenas, mas como
resultado de um processo contínuo de desenvolvimento da autonomia e como resultado de um
investimento no acompanhamento da situação de cada criança e adolescente” (BRASIL, 2009c,
p. 55). Assim, o subitem a seguir aborda exclusivamente as questões relacionadas à preparação
para o desligamento obrigatório.
A condição de “assistido” por vários anos dentro dos internatos que funcionam como
instituições totais ou “prisões”, na expressão de alguns alunos, não prepara o
indivíduo para enfrentar a vida fora, não só porque sai, na melhor das hipóteses, com
o 2º grau completo, como porque a grande maioria não tem um preparo profissional
(ensino profissionalizante) que os coloque em nível de competição com os colegas no
mercado de trabalho, como também pela falta de uma rede de relações sociais,
86
moradia, etc., que lhes deem um apoio necessário para que possam aprender aos
poucos as regras do convívio social. O próprio ato de desligamento é vivido por eles
como uma decisão das autoridades institucionais frente a qual têm que se submeter.
Na expressão de um dos nossos entrevistados, este ato se assemelha a libertação de
um preso (ALTOÉ, 1993, p. 64).
Íris e Violeta, questionadas se poderiam relatar como estava sendo a preparação para os
seus desligamentos, afirmam que não estava acontecendo. “Acho que não tá acontecendo”
(Íris). “Elas não chamam a gente. Nós que entramos [na sala da equipe técnica], pedimos
licença, e entramos pra falar com elas. Senão elas não chamam” (Violeta).
Embora afirmarem não vivenciar esse processo de preparação, foram questionadas sobre
informações relacionadas ao desligamento, por exemplo, como ele iria ocorrer, para onde elas
iriam e de que forma. Violeta afirma que a instituição vai ajudá-la a encontrar uma casa e em
seguida, ela terá que sair: E Íris alega: “Ah, acho que eu não sei tudo. Eu sei que tenho que
achar um lugar pra ir, uma casa, né? Óbvio. E não sei mais, acho que só em ter um lugar pra
ficar, seguro, já ia ser bom”. Novamente, comprovando que as adolescentes não tem noção do
que é feito porque não sentem que estão sendo preparadas para deixar a instituição.
Entretanto, a questão da moradia aparece nas duas falas como sendo a necessidade mais
importante para conseguirem deixar a instituição. A moradia é um ponto fundamental a ser
definido no processo de desligamento, visto que representa uma proteção e assegura um espaço
de privacidade onde poderá se alimentar, dormir e guardar seus pertences. “A moradia é um
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passo importante para o encaminhamento na vida social e permite ao ex-interno mobilizar mais
energia para o seu ingresso no mercado de trabalho” (ALTOÉ, 1993, p. 79).
Durante a entrevista com o profissional técnico diversos questionamentos foram feitos
a fim de identificar como acontecia (e se acontecia) essa preparação para o desligamento
obrigatório, visto que as adolescentes negaram este fato. Questionado como a instituição se
organizava para preparar as adolescentes, afirma:
Tem, nós temos um Projeto Político Pedagógico que foi construído de uma forma
muito rápida, logo no início do serviço, que não contempla. Nós temos esse
entendimento de que ele não contempla as necessidades do Serviço, nem tão pouco
alcança a magnitude de tudo que é feito aqui dentro. Mas existe, existe minimamente
um protocolo. Ele é meio que baseado nas Orientações Técnicas, porque existe um
norte do que deve ser feito. Retomando minha fala anterior, entendendo a
subjetividade de cada uma, de como vamos construir com cada uma. Tem perfis que
facilmente elaboram essa transição, tem outras que não. Também temos casos aqui
de que a própria adolescente, hoje jovem, não consegue se planejar, não consegue
vislumbrar uma possibilidade. E essa possibilidade tem que ser construída junto com
a jovem. Não vamos chegar e dizer assim: “tu vais morar com tal pessoa e vai embora
amanhã”, porque o que a gente pode transformar? Pode daqui a pouco ser uma
pessoa em situação de rua, pode estar sofrendo uma violência doméstica, acabar
numa casa de mulheres, então tem que ser construído junto com ela, tem que ser
participativo (Profissional técnico, grifo nosso).
construção e fortalecimento da autonomia, mas não informa as adolescentes do que está sendo
feito?
Como Íris e Violeta atualmente estão estudando e inseridas no mercado de trabalho
através do Programa Jovem Aprendiz, de fato ações foram feitas para que, aos poucos,
conquistem responsabilidades, compromisso e autonomia. Mas será que essa formação
oferecida às adolescentes garante uma remuneração que possibilite sua subsistência? Que
possibilite uma reserva financeira para cobrir gastos futuros com moradia, alimentação,
vestimenta, transporte, dentre outros?
Ao considerar que a independência financeira é uma das mais importantes questões que
permeiam o processo de desligamento e, portanto, imprescindível, destaca-se a necessidade de
pensar a educação e profissionalização das adolescentes para além de um curso técnico,
considerando também suas potencialidades e anseios. Muitas vezes as propostas de trabalho
oferecidas pelos Serviços de Acolhimento não condizem com os desejos e condições reais de
existência das adolescentes (FIGUEIRÓ, 2012).
Tendo em vista a realização de ações por parte da equipe do Serviço, Violeta, afirma
que a instituição já fez muito por ela, agora chegou sua vez de ir atrás dos seus sonhos. “Acho
que eles já me ajudam muito, né? Agora eu que tenho que batalhar e conseguir chegar onde
eu quero. Eles já me ajudaram muito, já ajudaram arrumando emprego agora só basta eu
querer, continuar e conseguir” (Violeta).
Íris, ao contrário, sente falta de ações mais pontuais por parte da equipe do Serviço:
“podiam conversar mais, dar um suporte maior, mostrar opções, uns bagulho assim, né? Que
começasse desde cedo. Ser abrigada te abre várias portas né… Aí não sei, mas acho que
poderiam ajudar mais sim, porque eles conhecem um monte de gente” (Íris).
Nesse sentido, há a necessidade de ações mais planejadas de toda equipe, inclusive dos
educadores que convivem 24h por dia com as acolhidas. Não somente a concretização dessas
ações, mas também a explicação do que é pensado e do que está sendo feito para com as
adolescentes. Em cada conversa, é importante retomar o que foi dito e enfatizar que as ações
estão sendo organizadas com vistas ao desligamento.
Discutir o assunto, mesmo que os adultos responsáveis não saibam dar todas as
respostas, indica que a instituição, de um modo geral, está implicada e também se
preocupa com o momento e que o adolescente não está sozinho na busca por soluções,
o que de alguma forma já transmite alguma confiança e suporte (ABREU, 2016, p.
66).
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encontraria uma maneira para viver sozinha, não acredita ser uma opção interessante, assim
como Violeta. Quando questionadas o que significava fazer 18 anos, as adolescentes não
demonstram medo ou despreparo para lidar com a idade, porém quando indagadas se estão
prontas pra sair, o discurso muda.
Os sentimentos de libertação e independência que vêm junto com a maioridade não
ultrapassam as angústias de se imaginar saindo da instituição e encarando a vida sozinhas. E é
por esses motivos que os adolescentes desligados da instituição obrigatoriamente pela
maioridade não devem ficar desamparados. Esses “devem dispor de serviços garantidos pelo
Estado que os ajude com o momento de transição e com o fortalecimento da autonomia na sua
nova vida” (FIGUEIRÓ, 2012, p. 56).
Quando perguntadas sobre os planos e projetos de vida, Violeta prontamente afirma:
Eu penso em casar. Mas também não quero ser tão rápida assim, né? Quero esperar
alguém certo. Não vou fazer que nem a primeira vez, vou pensar mais um pouco. E
tô querendo arrumar um emprego melhor e estudar à noite. Mas eu quero terminar
meus estudos, fazer o Ensino Médio e tem que ver o que eu vou fazer, né? Uma coisa
que eu goste. Mas sonho assim, eu tenho três: quero ser policial, servir o exército e
ser veterinária. E pra essas três coisas eu tenho que ter estudo. E tenho que batalhar
muito pra isso (Violeta).
E Íris:
Meu plano é ganhar na loteria e ficar rica. Não, tô brincando, eu penso tipo assim ó:
vou continuar no meu trampo, acabar o Ensino Médio, depois achar outros trampos,
depois não sei... fazer um cursinho ou bagulho assim, né? Acabar o Ensino Médio é
a prioridade das prioridades, depois passar num vestibular. Depois que eu fizer o
vestibular em dezembro e o meu curso do SENAI acabar em dezembro também, aí eu
vou começar a procurar um emprego de verdade, de oito horas, né? Aí quando eu
encontrar outro emprego, é tchau (Íris).
O desejo de Violeta de se casar e constituir uma família pode significar, segundo Abreu
(2016, p. 66 ), “não só a importância desse grupo propriamente dito e o desejo de reconstruir
as experiências perdidas, mas principalmente a possibilidade estabelecer vínculos estáveis e
positivos com as pessoas ao seu entorno e de se sentir novamente pertencente a um lugar”.
Nas duas falas a educação aparece como sendo importante para conquistar seus
objetivos fora da instituição, provavelmente devido ao fato de a estrutura socioeconômica atual
considerar a educação como base para a construção de um projeto de vida, exigindo do
adolescente o ingresso no mercado de trabalho por meio do estudo e da profissionalização.
Entretanto, o adolescente pertencente às camadas mais enriquecidas da sociedade possui
um modo de ser e existir extremamente diferente daquele adolescente das camadas menos
favorecidas. Para este último o ingresso no mercado de trabalho ocorre muito mais cedo, e sua
92
fase de adolescência é vivida muito mais rápida – podendo nem chegar a existir. As
possibilidades de conclusão da educação básica ou de ingresso na educação superior, por
exemplo, são poucas devido à necessidade do trabalho e sustento da família.
De acordo com Martinez e Silva (2008), se para os adolescentes e jovens em geral a
garantia do acesso à educação significa um instrumento necessário para o ingresso no mercado
formal de trabalho, “para os jovens dependentes de programas de proteção especial, a violação
desse direito radicaliza o processo de marginalização.” Ou seja, a própria política produziu –
ou ao menos reforçou – os processos de desigualdade social (MARTINEZ; SILVA, 2008, p.
116).
Assim como a educação, o trabalho também aparece nas falas das duas adolescentes.
Isso porque, na atual estrutura social, o trabalho permite que se defina enquanto ser produtivo
e assim, aceito socialmente. Conforme aponta Nérici (1967, p. 96), “é preciso não deixar de
levar em conta que uma das grandes lutas que o adolescente sustenta é fazer-se reconhecer
como um ser responsável, que já não é mais criança; e excelente meio para alcançar tal objetivo
é o trabalho”. O futuro que está sendo pensado pela equipe para essas adolescentes, é
compatível com os sonhos delas? Figueiró (2012, p. 97) discute que, quando a instituição
planeja um futuro que o/a próprio acolhido/a não escolheu, “contribui para a elevação do
sentimento de angústia com relação à sua saída definitiva da instituição”. E assim, não consegue
resgatar as perspectivas e desejos desse adolescente.
Quanto ao futuro planejado para Violeta, o profissional técnico comenta:
Ela quer ir morar sozinha, mas o problema dela é a escolaridade. Ela está no Ensino
Fundamental ainda, ela tem que concluir esse ano e aí acho que entrar no CEJA43,
que aí consegue um status de Ensino Médio, pelo menos, pra daí pensarmos em algo,
de ela conseguir morar sozinha. Eu acho que ela tem condição de manter uma vida
pessoal, mas a vida econômica não está muito boa ainda. Mas aí se tivesse o benefício
do aluguel social, já ajudaria (Profissional técnico).
Engraçado, sempre foi difícil falar sobre isso com ela, não sei o porquê. Acho que um
pouco é falha nossa, porque ela passa muito despercebida aqui. Ela está um pouco
nesse movimento de ficar um pouco invisível também. Eu acho que com a Íris a gente
falhou um pouco, ela meio que se tornou parte assim, sabe? Não sei, não sei uma
palavra certa. Ela se tornou um pouco invisível, não que ela passe despercebida,
porque a gente está sempre falando dela, perguntando dela e tal, mas essa coisa do
desacolhimento, eu não sei... Faz tempo que ela parou de demandar, ela não demanda
mais. Nesse movimento dela, da rotina dela, que ela já está há muito tempo, a gente
não vê ela quase. E isso é uma falha nossa, nós temos que procurar espaços de escuta,
de atendimento, eu faço minha mea-culpa com a Íris (Profissional técnico).
43
Centro de Educação de Jovens e Adultos (ensino supletivo).
93
Recomenda-se que o número de usuários por equipamento não ultrapasse seis. E ainda,
nos casos de imóveis alugados, que os custos da locação e tarifas adicionais possam ser
gradativamente assumidos pelos jovens, contribuindo para a construção de um senso de
administração financeira (BRASIL, 2009c).
Quanto à composição da equipe mínima do Serviço, esta deve compreender um
Coordenador e dois profissionais de nível superior, de acordo com os parâmetros estabelecidos
pela NOB-RH/SUAS, que define que a equipe de referência dos Serviços de Acolhimento deve
ser formada por psicólogo e assistente social (BRASIL, 2009c).
No entanto, este tipo de Serviço ainda não existe em todo o país e pouco se sabe sobre
sua existência, funcionamento e importância. A participante Violeta afirma que nunca ouviu
falar sobre República, e Íris já tem mais noção do que significa, e afirma: “Ah, é tipo um abrigo
dois. É um monte de gente que precisa de um lugar pra morar, por um preço mais barato”.
Após esclarecermos como funciona e qual o propósito da República, comenta: “Tá, então é
mesmo um abrigo dois. Igual aqui, só que a gente que tem que cuidar da casa então, não tem
a tia que faz a comida e a limpeza e tal, né?”. Compreendendo como seria uma República, as
adolescentes afirmam desconhecer algum Serviço deste tipo no município de Florianópolis.
Questionadas se a República se constituiria numa possibilidade para elas após o
desligamento, caso existisse em Florianópolis, Violeta diz que sim, que seria uma opção a mais
para lhe ajudar, enquanto Íris expõe: “Ia ser bom, né? Me ajudaria. Ah, mas na verdade não
sei”.
É de grande importância a existência da modalidade de República nos municípios
brasileiros, visto que embora represente mais uma institucionalização dos jovens, também se
constitui enquanto uma das únicas possibilidades para a construção de uma autonomia capaz
de garantir a subsistência desses indivíduos. O primeiro significado dado por Íris sobre a
República e a sua dúvida quando questionada se gostaria de morar nesse Serviço também
representa a pouca divulgação e reconhecimento desta modalidade.
Enquanto for pouco conhecido e divulgado, alcançará menos pessoas e continuará não
existindo. Existe uma legislação que prevê a construção e manutenção desse Serviço, portanto
este deve ser implantado e executado em todos os municípios que possuem adolescentes em
situações semelhantes às de Violeta e Íris.
É necessário que fora da instituição e desprovido da proteção ofertada pelo ECA, o
jovem egresso do Serviço de Acolhimento Institucional encontre políticas de atendimento que
ofereçam o suporte necessário para sua reconstrução num novo contexto, numa nova vida.
95
Frente a tudo o que foi exposto até aqui, destaca-se, em conjunto com o profissional
técnico do Abrigo Municipal de Coqueiros e participante desta pesquisa, as principais
implicações e desafios que perpassam o processo de desligamento obrigatório pela maioridade
das acolhidas na instituição.
Num primeiro momento, o profissional aponta para o sucateamento dos serviços
públicos como um fator importante que afeta o cotidiano do Serviço e, consequentemente, a
preparação gradativa para o desligamento obrigatório.
Por exemplo, hoje eu estou há mais de um ano e meio trabalhando sozinha, sem um
psicólogo e em muitos momentos, sem coordenação. E o que que acaba acarretando?
Eu fico com uma imensidão de coisas pra fazer e acabo negligenciando muitas coisas
que poderiam ter sido agilizadas e resolvidas se tivéssemos uma equipe completa,
com pessoas trabalhando efetivamente. Então tem essas questões do Estado que são
importantes, que interferem diretamente no resultado do nosso trabalho (Profissional
técnico).
o ponto chave, o início pra gente pensar o quanto que a gente poderia construir juntos
uma possibilidade pra aquela jovem em especifico (Profissional técnico).
Corroborando com a discussão feita no capítulo três deste TCC, o cotidiano do Serviço
de Acolhimento Institucional se articula com demandas urgentes que são consequências de uma
articulação falha com a rede socioassistencial, prejudicando a concretização do trabalho
desenvolvido. Segundo Boschetti (2009), a assistência social enquanto política de
universalização de direitos só será possível mediante a articulação com as demais políticas
sociais, caso contrário ficará focalizada e não propiciará a efetiva inclusão social.
Ou seja, o Serviço de Acolhimento não funciona por si só, é necessário um conjunto de
políticas atuando conjuntamente, assegurando os direitos das crianças e adolescentes e suas
famílias, com uma articulação estratégica que potencialize o atendimento às necessidades
desses usuários.
Dentre as dificuldades e desafios no processo de preparação para o desligamento
obrigatório, o profissional técnico expõe novamente a fragilidade do Serviço e a falta de
recursos humanos que interfere diretamente no atendimento que é oferecido às acolhidas.
Ainda, pontua que o Acolhimento Institucional não recebe da gestão a importância necessária.
O profissional técnico sugere ainda uma estratégia para fortalecer o trabalho em rede
que, segundo ele, não existe em Florianópolis. “Eu já, inclusive em reunião com o Juizado,
sugeri audiências concentradas, onde a Juíza pudesse convocar representantes de todos os
serviços e a gente pudesse sentar e discutir determinados casos e o que cada serviço, cada
secretaria, pode ofertar pra cada situação” (Profissional técnico).
A estratégia proposta pelo profissional técnico se constitui enquanto importante
instrumento não só para o desligamento obrigatório, como também para todos os momentos
vivenciados no cotidiano do Serviço. Se existe um Plano Individual de Atendimento para cada
acolhida, com estratégias e articulações para com as demais políticas públicas e direitos dos
adolescentes, porque as ações desenvolvidas são fragmentadas e não construídas de forma
articulada com todos os órgãos e serviços que executam esses direitos?
Juizado, todo mundo junto pensando quais as melhores estratégias para cada caso,
com certeza a gente daria mais suporte pra elas (Profissional técnico).
O Juizado entra com cobrança de relatório, é o que eles fazem pra basear as decisões
que eles vão tomar. A saúde e educação também não participam e a gestão também
não traz possibilidades pro desligamento. Acho que o principal desafio é esse, a gente
ter que fazer tudo sozinho e ainda sem equipe, né? Tendo que pensar tudo sozinho
(Profissional técnico).
Além disso, cita também as questões relacionadas a saúde mental das acolhidas, como
outra dificuldade vivenciada no cotidiano do Serviço e da preparação para o desligamento.
Penso que deveria ser assim: a menina entrou e já teria que ter um profissional
esperando por ela, mas a gente não tem nem isso. E até uma pessoa que pudesse dar
continuidade pro acompanhamento depois que saísse, que acompanhasse esse
processo de desacolhimento, porque a menina tem que promover dentro dela o
desligamento, o que é muito difícil. Você tem uma estrutura cuidando de ti, por pior
que seja, mas está cuidando de ti, e de repente você se percebe sem nada, é bem difícil.
Então se tivéssemos esse amparo da rede trabalhando junto por essa vida, faria mais
sentido (Profissional técnico).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a intenção de responder a questão central deste TCC: “como tem sido o processo
de preparação para o desligamento obrigatório de adolescentes/jovens em Acolhimento
Institucional com remotas possibilidades de reintegração na família de origem e/ou
encaminhamento para família substituta, tanto na perspectiva institucional quanto na percepção
das próprias adolescentes institucionalizadas?”, foram analisadas as estratégias institucionais
utilizadas por um Serviço de Acolhimento Institucional em Florianópolis no processo de
desligamento obrigatório, os desafios impostos no sentido de garantir os direitos previstos nos
marcos normativos e regulatórios vigentes no Brasil e as expectativas dessas adolescentes
acolhidas.
Para tanto, buscou-se conhecer as trajetórias de vida anterior e durante o Acolhimento
Institucional de Violeta e Íris, adolescentes participantes desta pesquisa, conhecer suas
expectativas e anseios em relação ao processo de desligamento obrigatório da instituição de
Acolhimento devido a maioridade e como percebem a oferta de alternativas deste Serviço para
esse momento. Por meio de pesquisa documental e entrevista com um profissional técnico da
instituição, foram identificadas as ações planejadas e realizadas para o processo de
desligamento obrigatório no cotidiano do Serviço de Acolhimento e como essa preparação está
metodologicamente estruturada.
A fim de alcançar esses objetivos propostos, o trabalho foi dividido em quatro capítulos,
além da introdução e das considerações finais. O segundo capítulo apresenta, a partir de uma
abordagem teórico-conceitual e sócio histórica, a política de atendimento à criança e ao
adolescente no Brasil, com ênfase na medida de proteção de Acolhimento Institucional. O
terceiro aborda a construção do SGDCA e sua importância enquanto órgão de promoção, defesa
e controle dos direitos das crianças e dos adolescentes, expondo a estrutura de funcionamento
do Acolhimento Institucional com base nos documentos que estabelecem suas diretrizes de
atendimento, enfatizando o município de Florianópolis e em especial, o Abrigo Municipal de
Coqueiros. O quarto capítulo inicia as aproximações com a análise empírica, discutindo sobre
as trajetórias de vida das participantes adolescentes antes e durante a aplicação da medida de
proteção de Acolhimento Institucional, com base na pesquisa documental e entrevistas. E no
quinto e último capítulo há a discussão sobre o desligamento obrigatório a partir das entrevistas
realizadas com as adolescentes e com o profissional técnico da instituição, com sequente
discussão dos resultados obtidos.
101
Não há como afirmar que o Serviço de Acolhimento em questão não executa uma
preparação gradativa para o desligamento obrigatório. O que se revela com esta pesquisa, é que
são poucas, ou mesmo nenhuma, as ações planejadas desde cedo para com as adolescentes e
suas vidas. Essa ausência de planejamento é resultado de um conjunto de fatores externos à
instituição, sendo o principal, a falta de um SGDCA que efetivamente funcione. Assim, a não
articulação entre as políticas públicas que atuam sob a mesma adolescente culmina num
atendimento emergencial, desqualificado e fragmentado.
Violeta e Íris não são as únicas a completarem 18 anos e a se encontrarem desamparadas
por um Estado que, mais uma vez, viola os seus direitos. A inexistência de Serviços de
Acolhimento em República, direito assegurado pela legislação, comprova essa violação. A
preparação para o desligamento e sua concretização se tornam cada vez mais difíceis quando
não se tem alternativas e possibilidades para ofertar a estes sujeitos.
O desligamento obrigatório realizado sem a necessária preparação, sem a aceitação da
adolescente e sem a certeza de que no cotidiano fora da instituição ela conseguirá viver uma
vida por conta própria e garantir sua subsistência, se constitui mais uma violação de direitos.
Por isso a importância de se construir estratégias de articulação intersetorial e de
acompanhamento a esses sujeitos.
É fundamental a existência de uma contrapartida do Estado nesse processo, garantindo
direitos por meio de políticas públicas para esses sujeitos que estão desamparados pelo Serviço
de Acolhimento e por uma legislação específica, mas que ainda se encontram em situação de
vulnerabilidade. O jovem “deveria encontrar nas políticas a salvaguarda dos seus direitos como
cidadão e, por conseguinte, a continuidade do serviço prestado anteriormente” (FIGUEIRÓ,
2012, p. 125).
Ademais, é imprescindível que haja projetos de Repúblicas – não só em Florianópolis,
mas nos diversos municípios brasileiros que ainda não o possuem – que visem o engajamento
do jovem com o seu próprio futuro e que proporcionem espaços em que eles possam discutir
suas trajetórias e perspectivas futuras, fortalecendo o sentimento de confiança e autonomia.
Espaços que deem voz a esses sujeitos que viveram anos de suas vidas sob interferência de
outros.
Sem a pretensão de esgotar as discussões sobre esse tema, este estudo pretende
contribuir para a discussão do desligamento obrigatório de adolescentes/jovens acolhidos/as
institucionalmente sem possibilidades de retorno à família de origem ou de encaminhamento
para família substituta, suscitando reflexões sobre a necessidade desse momento ser construído
gradativamente, com participação ativa do/a acolhido/a.
103
Destaca-se a importância desta pesquisa como uma produção bibliográfica que analisa
trajetórias de vida e dá voz aos participantes, reconhecendo-os enquanto sujeitos de direitos. A
realização de outros estudos que discutam sobre as condições de vida desses obrigatoriamente
egressos dos Serviços de Acolhimento, para avaliar a qualidade dos atendimentos oferecidos
para estes, são de extrema importância para se pensar novas propostas de atuação. A luta pela
melhoria dos serviços de atendimento às crianças e adolescentes em situação de risco deve ser
constante.
104
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das Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento. São Paulo: Fundação Oswaldo
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dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código
Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de
1o de maio de 1943; e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do
Brasil], Brasília, 2 set. 2009a.
BRASIL. Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014. Estabelece o regime jurídico das parcerias
entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, em regime de mútua
cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco, mediante a
execução de atividades ou de projetos previamente estabelecidos em planos de trabalho
inseridos em termos de colaboração, em termos de fomento ou em acordos de cooperação;
define diretrizes para a política de fomento, de colaboração e de cooperação com
organizações da sociedade civil; e altera as Leis nºs 8.429, de 2 de junho de 1992, e 9.790, de
23 de março de 1999. (Redação dada pela Lei nº 13.204, de 2015). Brasília, 2014.
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Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei
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111
Você foi convidado(a) a participar como voluntário da pesquisa que será realizada no
Abrigo Municipal de Coqueiros, intitulada: “ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E O
DESLIGAMENTO OBRIGATÓRIO: trajetórias, significados e perspectivas futuras
para as adolescentes”. Ela contará com a presença das pesquisadoras Profa. Dra. Andréa
Márcia Santiago Lohmeyer Fuchs — Docente do Departamento de Serviço Social da UFSC e
Nicole Lazzari Garcia, estudante de Serviço Social da UFSC. O coordenador da instituição está
ciente da pesquisa e concedeu autorização para a sua realização.
Para tanto, abaixo apresentaremos as principais ideias e propostas dessa pesquisa para
que você participante, possa conceder a necessária autorização.
INFORMAÇÕES GERAIS
1) Título da Pesquisa: “ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E O DESLIGAMENTO
OBRIGATÓRIO: trajetórias, significados e perspectivas futuras para as adolescentes”.
A pesquisa será realizada pela estudante Nicole Lazzari Garcia, sob orientação da professora
Dra. Andréa Márcia S. Lohmeyer Fuchs, para fins da realização do Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC).
2) Objetivo principal da pesquisa: “Analisar as estratégias institucionais utilizadas pelos
Serviços de Acolhimento Institucional em Florianópolis no processo de desligamento
obrigatório, os desafios impostos no sentido de garantir os direitos previstos nos marcos
normativos e regulatórios vigentes no Brasil e as expectativas dessas adolescentes
institucionalizados”.
3) Motivo para a realização da pesquisa (justificativa): O interesse pela realização desta
pesquisa ocorre, a partir da presença de muitos (as) adolescentes acolhidos (as)
institucionalmente que não possuem nenhuma perspectiva de retorno à família de origem ou
encaminhamento para família substituta. A medida protetiva de abrigo é direcionada a
indivíduos de 0 a 18 anos de idade, sendo assim, o desligamento institucional deve ocorrer
obrigatoriamente com a maioridade. Ao completar 18 anos, o adolescente não é mais protegido
pelo ECA, o que torna este momento ainda mais desafiador e conflitante, onde muitos se veem
desamparados perante sua nova realidade. Nesse processo de desligamento, cabe à equipe da
instituição de acolhimento planejar estratégias para com o jovem que possibilitem o
desenvolvimento e reconhecimento de sua autonomia, responsabilidades, ingresso no mercado
113
a) fui informado/a sobre a pesquisa: assunto, finalidade, como será realizada, quem
participará dela e quem estará realizando a pesquisa;
d) não terei benefícios diretos (como por exemplo receber dinheiro ou presentes) com a
minha participação na pesquisa, mas estarei contribuindo para que o trabalho
desenvolvido pelas instituições de Acolhimento Institucional possa melhorar sua
forma de atender crianças e adolescentes, bem como prepará-los para quando saírem
da instituição;
moral), durante o período que esse prejuízo existir, podendo solicitar indenização, de
acordo com a legislação vigente, desde que devidamente comprovada e documentada
a relação do prejuízo com a participação na pesquisa;
f) não terei nenhuma despesa com a minha participação na pesquisa, tendo em vista que a
pesquisadora fará a entrevista na instituição na qual estou trabalhando. Entretanto, caso
alguma despesa extraordinária e eventual venha a ocorrer, serei ressarcido(a)
financeiramente pelas responsáveis pela pesquisa;
h) poderei entrar em contato com as seguintes pessoas sempre que eu achar necessário:
_______________________________
Assinatura do(a) participante profissional da instituição
___________________________________
Assinatura da professora pesquisadora
________________________________
Assinatura da estudante pesquisadora
117
a) fui informado/a sobre a pesquisa: assunto, finalidade, como será realizada, quem
participará dela e quem estará realizando a pesquisa;
d) não terei benefícios diretos (como por exemplo receber dinheiro ou presentes) com a
participação do(a) adolescente/jovem sob minha guarda na pesquisa, mas estarei
contribuindo para melhor compreensão do trabalho em Acolhimento Institucional e a
importância de se preparar de forma a ajudar os adolescentes quando saírem da
instituição;
120
f) o adolescente/jovem sob minha guarda não terá nenhuma despesa com a sua
participação na pesquisa, tendo em vista que a pesquisadora fará a entrevista na
instituição a qual ele(a) está acolhido(a). Entretanto, caso alguma despesa extraordinária
e eventual venha a ocorrer, ele(a) será ressarcido(a) financeiramente pelas responsáveis
pela pesquisa;
_______________________________
Assinatura do(a) responsável legal e guardião dos adolescentes participantes
___________________________________
Assinatura da professora pesquisadora
________________________________
Assinatura da estudante pesquisadora
122
Você foi convidado(a) a participar como voluntário(a) desta pesquisa que será
realizada no Abrigo Municipal de Coqueiros, intitulada: “ACOLHIMENTO
INSTITUCIONAL E O DESLIGAMENTO OBRIGATÓRIO: trajetórias,
significados e perspectivas futuras para as adolescentes”. Estão com você as
pesquisadoras Profa. Dra. Andréa Márcia Santiago Lohmeyer Fuchs — Professora de
Serviço Social da UFSC e Nicole Lazzari Garcia, estudante de Serviço Social da UFSC.
O coordenador da instituição e seu responsável legal está ciente da pesquisa e concedeu
autorização para a sua realização.
Sendo assim, faremos uma leitura junto com você sobre as principais ideias e
propostas dessa pesquisa para que você entenda e possa nos conceder sua autorização.
INFORMAÇÕES GERAIS
c) meus dados pessoais serão mantidos em segredo durante toda a pesquisa e depois
dela terminar, e os resultados serão utilizados apenas para: o trabalho de conclusão
de curso (TCC) da pesquisadora; publicação de artigos sobre os resultados dessa
pesquisa, bem como a divulgação dos resultados dessa pesquisa em congressos e
seminários científicos;
d) não terei benefícios diretos (como por exemplo receber dinheiro ou presentes) com
a minha participação na pesquisa, mas estarei contribuindo para que o trabalho
desenvolvido pelas instituições de Acolhimento Institucional possa melhorar sua
forma de atender crianças e adolescentes, bem como prepara-los para quando
saírem da instituição;
f) não terei nenhuma despesa com a minha participação na pesquisa, tendo em vista
que a pesquisadora fará a entrevista na instituição na qual estou acolhido(a).
Entretanto, caso alguma despesa extraordinária e eventual venha a ocorrer, serei
125
j) este Termo de Assentimento foi elaborado em duas vias: uma ficando comigo –
enquanto adolescente participante - e outra com as pesquisadoras, sendo ambas
as vias rubricadas e assinada;
k) esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), órgão
responsável pela avaliação e acompanhamento dos aspectos éticos (cuida para
garantir a dignidade, os direitos, a segurança e o bem-estar de todos os
participantes da pesquisa) de pesquisas que envolvam seres humanos.
l) em caso de dúvidas com respeito aos aspectos éticos ou outras questões da pesquisa
que estou participando poderei consultar o:
PERGUNTA:
ENTREVISTADO RESPOSTAS
128
Atualmente estuda:
( ) Sim Onde: ___________________________________________________
Qual série?____________________ Horário: ___________________________
( ) Não
Outro: (Especificar)
Atualmente trabalha:
( ) sim Onde: ________________________________________________
Em caso afirmativo:
( ) Adolescente aprendiz, com carteira assinada
( ) Com carteira de trabalho assinada
( ) Sem carteira de trabalho
( ) não
Outro (especificar):
_______________________________________________________________
4. Você compartilhou esse desejo de “sair” com alguém aqui da casa? Se sim, o que essa
pessoa te disse?
6. Como você soube que, em tese, aos 18 anos precisaria sair do abrigo? (Explorar se soube
pela equipe técnica, por educadores, por outra acolhida...)
BLOCO 1 - IDENTIFICAÇÃO
Data da entrevista:______________
Nome do profissional:_____________________________________________
Gênero:____________________________________
Escolaridade: ______________________
Formação profissional: __________________
Cargo: _________________________________________________________
Tempo de trabalho no Abrigo: ______________________________________