Atlantida Um Mito Platonico

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SSPG Editora Perry Rhodan

Filosofia da Astronáutica
e Ficção Científica
Esta coluna trata de temas ligados ao ramo da astronáutica e estudo
da vida extraterrestre em contexto com situações e obras marcantes da ficção
científica, em especial da série Perry Rhodan.

Atlântida: um Mito Platônico


Prof. Dr. Edgar Indalecio Smaniotto

“Para nós, modernos, Platão, com o relato de Atlântida e de sua guerra


contra Atenas, inventou um gênero literário ainda bem vivo, pois se trata de
ficção científica.”
Pierre Vidal-Naquet

Atlântida, o continente perdido, submerso nas águas do Oceano Atlânti-


co devido à corrupção de seus habitantes, é um dos mitos mais persistentes e
continuamente revisitados da Humanidade. Filósofos, esoteristas, escritores de
ficção científica, ufólogos, antropólogos, arqueólogos e aventureiros utilizaram
ou fizeram referência a Atlântida em seus escritos, quando não se aventuraram
na busca para provar a existência do mítico continente.
Seus restos arqueológicos por vezes estariam localizados em meio ao
Oceano Atlântico ou em Portugal. Quem sabe, sob o gelo da Groenlândia, ou
na Islândia? Poderiam os picos do continente perdido serem as Canárias ou
os Açores? Talvez seja a Antártida, o antigo continente? Ou o continente ainda
exista em outra dimensão? Teriam seus habitantes utilizado discos voadores
para escapar do cataclismo? Seriam os atlantes antigos magos cujo conheci-
mento foi legado a diversas ordens místicas? Ou seria apenas uma obsessão
de loucos e charlatões?
Pouco importa a resposta que damos a essas e outras questões; seja
como for, Atlântida existe como parte do inconsciente coletivo ocidental, como
um símbolo permanente, tenha existido ou não tal civilização, e assim sempre
permanecerá. Na série Perry Rhodan, temos Atlan, personagem cujo nome
é uma homenagem ao antigo continente. Atlan, o atlante! Soaria bem, mas
não! Atlan é um arcônida, membro do povo alienígena de um império galáctico
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que colonizou um continente existente entre a Europa e a América — o nome


Atlântida teria derivado desse alienígena. Atlântida se foi, mas Atlan se tornaria
o segundo personagem mais importante do universo ficcional de Perry Rho-
dan. Voltaremos a Atlan em outro momento, pois tudo começou com Platão.
Platão1 (428-347 a.C.), em dois de seus diálogos2, Timeu3 e Crítias4,
narra a história de um antigo continente — Atlântida. De acordo com a nar-
rativa de Platão, atlantes e atenienses teriam se enfrentado em uma época
tão antiga que os próprios atenienses teriam há muito tempo esquecido dos
fatos ocorridos.
A história de Atlântida nos diálogos platônicos é narrada por Crítias a
partir do relato de seu avô, também chamado Crítias, que havia escutado a
história de Sólon (um dos sete sábios). Crítias tinha dez anos quando escutou
a história de Atlântida como contada por seu avô homônimo. Por sua vez, essa
história havia sido relatada a Sólon por um velho sacerdote egípcio, já que os
próprios helenos tinham perdido conhecimento de suas antigas tradições.

De fato, relatam nossas crônicas como, de uma feita, vossa cidade des-
truiu uma grande potência que invadira insolentemente a Europa e a
Ásia, proveniente das bandas do Oceano Atlântico... Maior, toda, ela,
do que a Líbia e a Ásia reunidas (Platão: Timeu, 24e).

No relato platônico, Atlântida é um império em expansão, que ameaçava


as nações da Europa:

Nessa ilha atlântica formou-se um grande e portentoso império sob a


direção de reis que não apenas dominavam toda a ilha, como inúmeras
ilhas da redondeza e parte do continente. Além disso, para dentro do
estreito, do lado de cá, eram donos de toda a Líbia, até o Egito, e da
Europa até a Tirrênia (Platão: Timeu, 25 ab).

1 Fundador da Academia, discípulo de Sócrates, ao contrário do mestre, se ocupou em escrever


sua filosofia. Os diálogos platônicos são tão importantes para as discussões posteriores em
filosofia que Alfred North Whitehead (1861-1947) afirmou que “Toda a filosofia ocidental não
passa de notas de rodapé das páginas de Platão”. Pode haver exagero nessta frase, mas ela tem
um eco de verdade, pois não se pode fazer filosofia sem ler Platão.
2 Platão escrevia seus textos como se fossem diálogos, em que seu mestre Sócrates era quase
sempre o personagem principal ou um dos principais interlocutores. O diálogo, muitas vezes,
tinha o nome do interlocutor que estabeleceria a discussão com Sócrates.
3 O Timeu trata apenas inicialmente sobre Atlântida, e, ao longo desse diálogo, passamos a
conhecer a cosmologia e a cosmogonia platônicas.
4 Como referência neste artigo, utilizo a tradução de Carlos Alberto Nunes, considerada a melhor
tradução para o português no Brasil. Nunes é médico, membro da Academia Paulista de Letras e
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Além de traduzir as obras completas de Platão,
Nunes também traduziu o teatro completo de Shakespeare e A Ilíada e a Odisseia, de Homero.
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Esse poderoso império, que pretende expandir suas conquistas, se vê


diante dos atenienses, que, comandando todos os helenos, acabam por ven-
cer os atlantes. Mas o golpe final não é dado pelos atenienses, mas por uma
decisão de Zeus em destruir o continente:

Houve uma fase de violentos tremores de terra e de inundações, e, no


espaço de uma noite e um dia funestos, num abrir e fechar de olhos,
todo vosso poderio militar foi tragado pela terra, vindo também a ilha
Atlântida a desaparecer nos abismos do mar (Platão: Timeu, 25 cd).

Mas o Timeu não é apenas o relato das façanhas dos antigos atenienses
contra os atlantes, seu objetivo é narrar a cosmologia platônica, tema principal
desse diálogo. Será em outro diálogo, Crítias, que a narrativa platônica sobre
Atlântida será retomada. Se no Timeu o continente perdido aparece em uma
pequena parte do diálogo (20d-26d), no Crítias ela é o tema principal.
Enquanto no Timeu temos o relato da guerra entre os atlantes e os pro-
toatenienses, no Crítias Platão apresenta a descrição elaborada do continente
perdido e sua sociedade. Ficamos sabendo que a guerra entre atenienses e
atlantes teria ocorrido nove mil anos antes do relato platônico, portanto cerca
de onze mil e quinhentos anos antes de nossa era.
Platão descreve a ilha como um “sistema de cinturões alternados de mar
e de terra, no qual os maiores envolviam os menores, a saber: dois de terra
e três de mar, que ele torneou igualmente, a partir do meio da ilha, a igual
distância um do outro, deixando-os intransponíveis para o homem” (Platão:
Crítias, 113d).
A ilha Atlântida, localizada para além das Colunas de Héracles (Gibraltar),
ou seja, no Oceano Atlântico, apresentava grandes riquezas:

A começar pela perfuração de minas e a extração dos metais nelas


contidos, sólidos ou fusíveis, principalmente o que lhe só é conhecido
de nome, mas que outrora era mais do que isso, o oricalco5, extraído da
terra em vários pontos da ilha, e que, depois do ouro, era o metal mais
apreciado dos homens. Ademais, produzia também a ilha abundância de
madeira para obras de carpintaria, bem como oferecia pasto suficiente
para animais domésticos e selvagens (Platão: Crítias, 114e).

O relato de Crítias continua, com ele enfatizando as riquezas disponíveis


aos atlantes:

Além disso, todos os perfumes encontrados presentemente em outras


localidades, quer provenham de raízes, quer de ervas e de madeiras ou
5 Esse é um metal lendário.
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de essências de sucos extraídos de flores ou de frutos, tudo nela dava


admiravelmente, assim como os frutos cultivados e os secos, tanto os
de que nos alimentamos como os que servem para completar as refei-
ções e a que damos o nome genérico de legumes, todos esses frutos
de casca grossa que nos fornecem bebidas, alimentos e perfumes e
nos ensejam distração e deleite, sempre difíceis de armazenar e os que
usamos depois das refeições, para alívio e satisfação dos que comem
em excesso (Platão: Crítias, 115 ab).

Além das riquezas naturais, Crítias descreve as belas construções, obras


de engenharia, o palácio real, a Acrópole, o templo principal, os arsenais,
os navios, sempre evocando a grandeza e potência dos atlantes. Até nossos
tempos, são essas descrições grandiosas que tantos autores recorrem como
principal elemento em suas retomadas fictícias ou hipóteses paracientíficas
acerca de Atlântida. Crítias também descreve a potência militar dos atlantes:

Cada comandante tinha por obrigação fornecer para os efetivos de


guerra a sexta parte de um carro de combate, a fim de perfazerem um
total de dez mil carros; e mais: dois cavalos com seus cavaleiros; uma
parelha de cavalos sem carro, com um combatente armado de escudo
pequeno e um auriga para os cavalos, postado sempre atrás do comba-
tente; depois, dois hoplitas, arqueiros e fundibulários em igual número;
combatentes de pedras e de dardos, três de cada, e quatro marinheiros
para completar a tripulação de mil e duzentos navios. Tal era a organi-
zação militar da cidade real (Platão: Crítias, 119bc).

Em seguida, Crítias passa a narrar a organização social, política e religiosa


dos atlantes. Até que, ao final do texto, ele relata a decadência dos atlantes,
pois “se alterou o elemento divino que existia neles”. Fica-se entendido que
essa decadência levou os atlantes ao imperialismo e à guerra de conquistas, até
serem repelidos pelos atenienses e castigados por Zeus, que, com terremotos
e inundações, em um único dia afundou o continente.
Para Pierre Vidal-Naquet (2008), a Atlântida de Platão, com o gigantismo
de seu exército e de sua marinha, “evoca o gigantismo análogo do exército
de Xerxes” (p. 36). Assim, os atenienses não apenas impediram que os persas
conquistassem a Grécia vindos do Oriente, como em tempos antigos, já esque-
cidos, impediram que uma potência ocidental, Atlântida, ocupasse a Grécia e
todo o Oriente, inclusive o Egito.
No relato de Platão, Atlântida tem uma função filosófica específica, é
o relato de decadência e corrupção que advém com a expansão imperialista;
assim como o Império Persa da época de Platão, derrotado pelos atenienses,
foi-se também o império dos atlantes. Punidos pelos deuses devido à sua cor-

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rupção, são completamente destruídos por um maremoto. Para Platão, uma


cidade deve limitar seu número de habitantes, ter divisão clara de funções,
evitar a corrupção, e esse modelo é apresentado no livro República. Os atlantes,
em toda a sua glória, se esqueceram dessas lições e, portanto, sucumbiram.
Essa é a lição que o filósofo e pedagogo Platão deseja ensinar aos atenienses.
Nos próximos artigos desta série, procuraremos acompanhar como o
mito de Atlântida, utilizado por Platão com claros fins filosófico-pedagógicos,
é retomado até os dias de hoje, inclusive na série Perry Rhodan. Podemos,
como quer Pierre Vidal-Naquet — citado na epígrafe deste texto —, afirmar
que, com o relato de Atlântida, temos o início da ficção científica.

Referências Bibliográficas:

PLATÃO. Diálogos Vol. XI: Timeu, Crítias, O 2º Alcibíades, Hípias Menor. Trad.
Carlos Alberto Nunes. Belém / Pará: Universidade Federal do Pará, 1986 (Co-
leção Amazônica. Série Farias Brito).
VIDAL-NAQUET, Pierre. Atlântida: Pequena história de um mito platônico. Trad.
Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

Para citar este texto:


SMANIOTTO, Edgar Indalecio. Atlântida: um mito Platônico.
In: Perry Rhodan [O Castelo de Murcon], Vol. 05, Episódio 904.
Belo Horizonte, MG: Editora SSPG, novembro de 2016.
(Ciclo Os Castelos Cósmicos). pp. 69-73.

Edgar Indalecio Smaniotto é filósofo, mestre e doutor em Ciências Sociais. Professor universitário,
desenvolve pesquisas relacionadas à eugenia, ficção científica, transumanismo, defesa, educa-
ção e histórias em quadrinhos. Autor de artigos e ensaios em periódicos e anais acadêmicos, do
livro “A Fantástica Viagem Imaginária de Augusto Emílio Zaluar: ensaio sobre a representação
do outro na antropologia e na ficção científica brasileira” (Corifeu, 2007), escreveu ensaios
para as coletâneas de contos: “UFO: Contos não identificados” (Literata, 2010); “Zumbis: Quem
disse que eles estão mortos” (All Print, 2010), “Time Out – Os Viajantes do Tempo” (Estronho,
2011), “Mr. Hyde” (All Print, 2014), e foi convidado especial no Anuário Brasileiro de Literatura
Fantástica 2010 (Devir, 2011). Membro da Associação Brasileira de Antropologia – ABA; da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC; da Associação de Pesquisadores em
Arte Sequencial – ASPAS, do Centro de Educação Transdisciplinar – CETRANS, Grupo de Pes-
quisa Social – UNESP, Sociedade Planetária e do Clube de Leitores de Ficção Científica – CLFC.

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