Marques Gutierrez
Marques Gutierrez
Marques Gutierrez
14545
*
Renato Francisco Rodrigues Marques
Gustavo Luis Gutierrez**
Marco Antonio Bettine de Almeida***
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo investigar e delimitar formas de interação e disputas sociais presentes no movimento
paralímpico brasileiro, relativos aos processos de classificação de atletas, com base em conceitos de Pierre Bourdieu. A
metodologia utilizada fundamentou-se em entrevistas semiestruturadas com quatro atletas (com deficiência física ou visual,
praticantes de diversas modalidades: natação, goalball, rugby e basquete em cadeira de rodas) e quatro dirigentes (2 atuantes
em funções técnicas e 2 em funções administrativas do Comitê Paralímpico Brasileiro). A análise de dados apoiou-se no
método Discurso do Sujeito Coletivo e suas ferramentas metodológicas (expressões-chave; ideias centrais; ancoragens;
instrumentos de análise de discurso). Destacam-se como resultados: os protocolos de classificação, assim como a atuação e
formação de novos classificadores, são motivo de tensões sociais neste espaço; Os classificadores exercem importante poder
simbólico no subcampo; Demais agentes, como treinadores e atletas, têm suas possibilidades de ascensão diminuídas por
condições sociais desfavoráveis..
Key-words: Paralímpico. Classificação. Pierre Bourdieu
INTRODUÇÃO
classificação. Deste modo, estudos sobre meios
de socialização presentes neste ambiente são
modos de melhor entendê-lo e prepará-lo para
O esporte e a teoria dos campos de Pierre que seja adequado e sirva como meio de
Bourdieu
inclusão social de pessoas com deficiência.
O esporte paralímpico é uma das formas de Como forma de análise sociocultural sobre o
manifestação do esporte adaptado que, segundo esporte paralímpico no Brasil, este trabalho foca
Goodwin et al. (2009), pode ser um componente sua atenção na classificação de atletas e nas
facilitador para a inclusão social, pois possibilita relações e disputas sociais que a permeiam. Em
ao atleta fazer parte de um grupo com pessoas pesquisas de cunho sociocultural, insere-se a
nas mesmas condições e ter seus feitos necessidade de adoção de referenciais teóricos
valorizados por critérios esportivos e não apenas que delimitam diretrizes de trabalho e critérios
pela superação da deficiência. Porém, por se de análise. Este trabalho toma a obra de Pierre
tratar de um ambiente de alto rendimento, o Bourdieu como suporte metodológico em
limiar entre o sucesso e o fracasso é muito Sociologia do Esporte.
tênue, sendo dependente de configurações Sua Teoria dos Campos serve como
específicas como, por exemplo, os sistemas de arcabouço científico para intervenções ligadas às
*
Doutor. Professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo,
Ribeirão Preto-SP, Brasil.
**
Doutor. Professor Titular da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas-SP, Brasil.
***
Doutor. Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP,
Brasil.
relações entre sujeitos que disputam o poder e (aprendizado e conhecimento formal – ligado,
acesso a bens de disputa em determinados entre outras formas à escola e transmissão
setores da sociedade. Organiza as análises sobre doméstica de conhecimento) e simbólico
suas ações, posicionamentos e inter-relações, e (específico de cada campo é determinado pelo
se configura como uma ferramenta metodológica que o habitus e costumes daquele espaço
que auxilia em processos de apropriação de indicam como algo a ser valorizado. Por
conhecimento relacionado a certos objetos, exemplo, no campo esportivo tem-se como uma
como o esporte, por exemplo. das formas de capital simbólico o mérito
A obra de Bourdieu sugere a ocorrência de esportivo de um atleta) (BOURDIEU, 1989).
um jogo de dominação existente em todas as Além disso, Pierre Bourdieu apresenta, com
áreas da sociedade. Tal premissa se dá pela certa especificidade em relação a outros autores
distribuição desigual de bens e ao acesso das ciências sociais, um conceito muito
diferenciado a eles, de acordo com a posição que importante, a ideia de habitus que se coloca
cada agente ocupa no espaço social. Essa como uma estrutura estruturante, ou seja, que
diferenciação é percebida a partir da norteia as formas de ação dos sujeitos (praxis),
consideração de que existem campos sociais de mas que é estabelecido de acordo com as leis do
disputas, ou seja, espaços sociais de posições em campo e os caminhos específicos para a disputa
que os sujeitos buscam reconhecimento pela e aquisição de capital (BOURDIEU, 1983,
posse de formas de capital de modo específico 1996). Nessa estrutura, tem-se que as disputas
nesse ambiente. Um campo social se conforma, ocorrem entre agentes posicionados em
para Bourdieu (1983), por meio da definição dos diferentes grupos sociais, que são determinados
objetos de disputas e dos interesses específicos pela quantidade ou tipo de capital que possuem.
relativos a seus objetos, que só são Cada grupo tem seu habitus próprio, que
compreendidos por quem faz parte desse espaço. justifica suas ações e norteia as práticas dos
No campo, os agentes disputam o direito da agentes na busca por aquisição de capital
violência simbólica, ou seja, o poder de orientar (BOURDIEU, 1996). Ao adquirir certa quantia
a conservação ou mudanças dos critérios de de capital que justifique reconhecimento social,
distribuição de capital simbólico. Tal privilégio o agente pode ser aceito em outra esfera desse
é decorrente da posse anterior deste tipo de campo, podendo até mudar de grupo, estando
capital e do consequente reconhecimento como sujeito a um novo habitus.
sujeito de destaque social (BOURDIEU, 1989).
Dessa forma, cada campo específico se faz O esporte paralímpico no Brasil
relativamente autônomo, ou seja, embora sofra O movimento paralímpico brasileiro
certas influências do meio social que o cerca, mantém um modelo organizativo de modo
tem suas regras e história próprias. Tem-se como semelhante à estrutura de gerência internacional.
exemplo a existência do campo do esporte, no As entidades no Brasil têm procurado trilhar
qual os sujeitos lutam pelo reconhecimento caminhos estabelecidos por órgãos
esportivo, poder econômico e político dentro dos internacionais, seja incorporando as orientações,
princípios e critérios criados por seus agentes. seja buscando acompanhar as evoluções nos
As diferentes espécies de capitais, como diferentes campos de conhecimento que essa
trunfos em um jogo, são os poderes que definem área envolve. Embora algumas organizações
as probabilidades de ganho em um campo esportivas sejam filiadas ao Comitê Paralímpico
determinado. Cada campo ou subcampo Brasileiro (CPB), as entidades têm certa
(espaços que respeitam as normas do campo, autonomia organizativa e podem coordenar e
mas também apresentam certas particularidades avaliar a participação de atletas brasileiros em
dentro dele) têm uma espécie particular de competições internacionais ligadas às suas
capital. Têm-se, como capitais, quatro formas modalidades ou deficiências (SENATORE,
essenciais que norteiam as disputas e que se 2006).
inter-relacionam: capital econômico (quantidade O CPB é filiado ao Comitê Paralímpico
de dinheiro do agente), social (referente ao seu Internacional (IPC) e atua como elo entre
círculo social e relações interpessoais), cultural associações, governos, instituições
devem ser analisados os habitus dos agentes disso, características histórico-culturais dos
(BOURDIEU; CHAMBOREDON; indivíduos também devem ser levadas em
PASSERON, 2002; SOUZA; MARCHI JR, consideração para a compreensão de seu
2010). discurso. Quanto às características dos
Nesse sentido, a análise de referencial indivíduos entrevistados, destacam-se: Sujeito 1
teórico e o apontamento de algumas estruturas (S1): Professor universitário. Atua junto ao CPB
organizacionais do esporte paralímpico dão em processos de classificação de atletas. Não-
conta dos dois primeiros passos indicados deficiente; Sujeito 2 (S2): Professor de
pelo autor. Quanto à análise específica dos Educação Física. Atua em função administrativa
agentes, além de dados secundários obtidos na no CPB. Não-deficiente; Sujeito 3 (S3): Ex-
literatura, obteve-se coleta de informações em atleta. Campeão paralímpico. Atua em função
campo, por meio de entrevistas com atletas e administrativa no CPB; Sujeito 4 (S4): Ex-atleta.
dirigentes atuantes no movimento paralímpico Campeão paralímpico. Atua em função
brasileiro. administrativa no CPB; Sujeito 5 (S5): Atleta
Como sujeitos da investigação foram com deficiência visual da modalidade natação.
escolhidos quatro dirigentes do Comitê Participa de competições em âmbito nacional e
Paralímpico Brasileiro (CPB), sendo dois não está contemplado pelo benefício Bolsa-
envolvidos em questões técnicas e dois em um atleta; Sujeito 6 (S6): Atleta com deficiência
âmbito administrativo, e quatro atletas visual da modalidade goalball. Participa de
paralímpicos, com diferentes tipos de competições em âmbito nacional, já atuou pela
deficiência e atuantes em diversas modalidades. seleção brasileira adulta da modalidade e recebe
Os critérios para seleção dos sujeitos deram-se, apoio financeiro de entidade especializada em
no caso dos dirigentes, com base na proximidade educação de pessoas com deficiência visual;
de cada um deles com o tema proposto, na Sujeito 7 (S7): Atleta com lesão medular,
posição de administração, gerência e liderança tetraplégico, da modalidade rugby em cadeira de
frente ao movimento paralímpico brasileiro. rodas. Participa de competições em âmbito
Quanto aos atletas, foram escolhidos os sujeitos nacional, atua na seleção brasileira adulta da
que participem de competições regulares e modalidade e é contemplado pelo benefício
organizadas por órgãos oficiais, com deficiência Bolsa-atleta; (S8): Atleta com lesão medular,
visual (DV) ou física (DF). A escolha de paraplégico, da modalidade basquetebol em
sujeitos pertencentes a grupos diferentes se cadeira de rodas. Participa de competições em
justifica na premissa de Pierre Bourdieu ligada à âmbito estadual. Não é contemplado com
desigualdade social, disputa por capitais e nenhum tipo de auxílio financeiro.
diferentes habitus dentro dos campos. O fato de A coleta de dados foi obtida pela análise das
coletar discursos de dirigentes e de atletas, busca respostas provenientes de entrevistas
considerar tal diversidade e desvendar pontos de semiestruturadas, aplicadas pessoalmente pelos
vista específicos sobre o objeto que estejam pesquisadores aos sujeitos, com uso de aparelho
carregados da marca cultural e disposição para gravador de voz digital e posterior transcrição
atuação social dos agentes envolvidos. das respostas. Quanto aos dirigentes (S1, S2, S3 e
O número de sujeitos respeitou o critério de S4), como atuam em esferas diferentes dentro da
saturação, indicado como o momento da administração do esporte paralímpico, cada
pesquisa qualitativa em que o conhecimento entrevista acabou direcionada para o tema de
formado pelo pesquisador conseguiu especialidade de cada um, como permite o método
compreender a lógica interna do grupo ou utilizado. Por esta razão, nota-se predominância de
coletividade em estudo, ou seja, quando os citações ao Sujeito 1 (S1), visto ser o entrevistado
dados coletados começam a se repetir e mostrar- com atuação mais próxima ao ambiente da
se maduros (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). classificação de atletas. Para este trabalho serão
Para compreender a essência do habitus de apresentados apenas os dados ligados à discussão
um agente é preciso, em uma lógica própria da sobre classificação de atletas.
teoria de Pierre Bourdieu, considerar o espaço Quanto aos procedimentos de organização
social e a posição ocupada pelo mesmo. Além de dados, foi utilizado o método Discurso do
Sujeito Coletivo (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005), atletas). Todos os sujeitos envolvidos assinaram
que se baseia na construção de um discurso que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
sintetiza a percepção dos sujeitos frente ao tema previamente aprovado pelos Comitês de Ética
tratado. Tal procedimento se utiliza de algumas citados.
figuras metodológicas que, encadeadas e A partir do material coletado, juntamente
relacionadas, distribuem e ordenam as com informações relativas à literatura, a última
informações. Tais ferramentas são as etapa, de discussão dos dados, deu-se em um
expressões-chave (ECH), as ideias centrais (IC) diálogo entre aspectos ligados ao objeto de
e as ancoragens (AC). As ECH são pesquisa, provenientes deste estudo de campo e
trechos/pedaços literais do discurso que revelam de referencial teórico, baseado em categorias
a essência do depoimento. Trata-se do conteúdo próprias da obra de Pierre Bourdieu. As
discursivo que corresponde à questão da conclusões acerca dos resultados da pesquisa
pesquisa. Têm a utilidade de apontar qual esfera foram pautadas na realidade descrita pelos
de análise está sendo abordada pelo sujeito, sujeitos (que oferece vantagens ligadas à
facilitando uma primeira classificação das vivência e proximidade dos mesmos aos dados e
respostas. As IC representam o tema do fatos ocorridos e identificados), confrontada
depoimento, os conteúdos a serem destacados e com dados coletados oriundos de referencial
apontados como relevantes para a discussão, teórico.
pois direcionam para a ocorrência e forma dos
eventos analisados. As AC compõem o Análise e discussão de dados. O espaço social da
posicionamento social e político que o sujeito classificação de atletas no esporte paralímpico
não descreve objetivamente, mas que está brasileiro
implícito como conteúdo carregado em sua fala. Nesta seção são expostos os resultados das
Aponta informações importantes sobre a ideia entrevistas realizadas, como propõe a
do entrevistado (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). metodologia já mencionada, em forma de texto
Deste modo, após a transcrição das corrido, com menções aos sujeitos abordados.
entrevistas, as ECH foram destacadas e em um Juntamente, é realizada uma discussão e
segundo momento, transportadas para reflexão, com base em dados da literatura a
Instrumentos de Análise do Discurso (IAD), no respeito dos temas destacados na investigação.
qual foram apontadas as IC e AC referentes às Em relação ao espaço da classificação de
respostas dos sujeitos. Em um terceiro e último atletas no Brasil, S1 apontou que hoje em dia
momento, com base em análise das IC e AC, as existem poucos classificadores formados. A
respostas foram agrupadas de modo a terem maioria dos indivíduos que atuam nessa área foi
sentidos homogêneos, para que fosse construído treinada no exterior, visto que os processos de
um discurso do sujeito coletivo (DSC) capacitação e treinamento de classificadores no
(LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005). país são recentes. Este é um dado preocupante,
As entrevistas foram realizadas em locais visto o crescimento do movimento paralímpico
previamente combinados com os sujeitos. Como no Brasil apontado por S2:
os indivíduos fazem parte do movimento
paralímpico brasileiro, esta pesquisa foi [...] vamos levar aí que em um universo
submetida e aprovada pela Comissão Científica a gente tem os atletas de alto
da Academia Paralímpica Brasileira, que rendimento aí, altíssimo rendimento,
auxiliou na viabilização de contato, permissão hoje nós temos dez mil atletas
praticando, competindo no Brasil, de
de coleta de dados e autorização a respeito dos
altíssimo rendimento, se você colocar
locais de execução, e pelos Comitês de Ética em que tem mil atletas no altíssimo
Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, da rendimento... (S2).
Universidade Estadual de Campinas, sob Parecer
nº 356/2010 (entrevistas com dirigentes). e da Para ser classificador em determinada
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de modalidade é necessária a realização de cursos
Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, específicos, além de estágios em campeonatos,
sob Parecer nº 631/2011 (entrevistas com supervisionados por classificadores mais
experientes (CASTELLANO, 2001). Foi esse quadro, segundo S1, que motivou a
Geralmente, esses sujeitos são médicos, criação do curso de formação do CPB.
fisioterapeutas, ex-atletas e outros profissionais Nota-se, nesse discurso, que a criação do
ligados ao esporte e dotados de conhecimentos curso demonstra uma intenção do CPB de
sobre cinesiologia e deficiência (PACIOREK, entrada na disputa por esse capital simbólico,
2004), além de certo domínio da língua inglesa. por meio da mudança de valoração do mesmo.
Segundo S1, há atualmente um processo, Com o oferecimento de uma formação de modo
coordenado e ministrado pelo CPB, de formação sistemático e científico, o CPB transforma a
de novos classificadores no Brasil. Já foram, ou compreensão sobre essa forma de bem no
estão sendo preparados, cursos para diversas subcampo, mudando, inclusive, os caminhos
modalidades (é importante destacar que tanto a para que os sujeitos o alcancem. Dessa maneira,
formação, quanto atuação de classificadores, consegue maior domínio sobre as formas de
respeitam uma modalidade específica em que o distribuição e posse desse capital. Fica explícita
sujeito se especializa). A intenção do CPB é a tentativa de entrada do “novo” (CPB),
formar classificadores para atuarem tentando ocupar o lugar do “velho”
internamente no país, tanto na função de (classificadores mais antigos) no espaço social,
classificação, quanto no auxílio a equipes e sendo essa uma das características de disputa em
atletas em processos de treinamento (S1). Estes campos sociais, como cita Bourdieu (1983).
cursos são realizados por meio de convênios Tweedy e Vandlandewijck (2011) apontam a
com universidades do país, o que é apontado por necessidade de maiores estudos sobre
S1 como uma iniciativa inovadora, tanto no classificação, visto a natureza empírica de
Brasil quanto no mundo, o que, segundo S4, muitos dos procedimentos utilizados até hoje
contribui em manter o Brasil como vanguarda por classificadores mais experientes, o que,
administrativa do esporte paralímpico. O mesmo segundo os autores, deixa muitos dos resultados
dirigente aponta que o país, por meio do CPB, questionáveis. Tal apontamento fortalece a
tem posição de destaque internacional, contando necessidade de realização dos cursos de
com representantes em diversas comissões do formação.
Comitê Paralímpico Internacional (IPC). Segundo S1 é grande a importância, para a
delegação de um país, de ter em seu quadro um
Eu acho que hoje o Brasil, no que diz classificador conhecido internacionalmente, pois
respeito ao Comitê Paralímpico, tem isso dá legitimidade aos questionamentos sobre
uma posição de destaque no cenário resultados da classificação. Implicitamente neste
internacional. A gente hoje tem o
espaço, isso mostra que o país tem uma
representante no comitê executivo do
IPC, nós temos três representantes nos
formação e atuação profissional sistematizada e
comitês do IPC (S4). bem orientada neste sentido. O conhecimento
sobre os conteúdos e procedimentos que envolve
Segundo S1, anteriormente aos cursos, a os processos de classificação configuram-se
formação de classificadores ocorria com base como um capital simbólico valorizado neste
empírica, com os conhecimentos e experiências espaço social.
transmitidos de classificador para classificador, Por essas razões que S1 coloca a
de modo informal. Nesse processo, o mesmo importância de uma boa formação regional e
sujeito afirma que esse conhecimento acabava nacional do classificador e uma posterior
sendo uma forma de poder, o que pode ser experiência internacional do mesmo. Nota-se
traduzido como um capital simbólico no que essa preocupação com intercâmbios
subcampo. Isso pode ser afirmado, pois os internacionais é compartilhada com alguns
classificadores mais experientes exerciam certo autores, sendo bem explícita por Castellano
controle sobre a atividade, não compartilhando, (2001), que afirma que existe a necessidade de
de forma pública, os conteúdos referentes à sua tais trocas de informação para a melhoria dos
área de atuação. Isso lhes conferia um caráter de processos de formação e atuação.
indivíduos indispensáveis e líderes no processo. Embora os protocolos sejam passíveis de
algumas formas de aplicação, ou filosofias,
como cita S1, que se diferenciam de acordo com Tweedy, Willians e Bourke (2010) apontam
o organizador do processo, os classificadores, que, de fato, existe a necessidade do
em si, não têm autonomia de interpretação, visto desenvolvimento de processos que tornem a
que devem seguir a forma de atuação indicada classificação mais objetiva, diminuindo as
pelo órgão que o formou e o contrata. Castellano chances de erros com base na subjetividade ou
(2001) discorda desta posição de S1. Para a procedimentos não tão eficientes. Os autores
autora, o sistema de classificação, sugerem mudanças nos protocolos de análise da
historicamente, dá margens a avaliações capacidade muscular, por exemplo, como uma
superficiais e à tomada de critérios individuais das possíveis alterações na classificação
de acordo com o órgão e estilo de formação de funcional.
cada classificador. Assim, segundo a autora, a Os atletas S6 e S8 apontam que o resultado
subjetividade não mora apenas na capacidade de da classificação pode ser mascarado pelo
interpretação do indivíduo que realiza a avaliado, seja não descrevendo com precisão o
avaliação, mas na forma de atuação que o órgão que está enxergando (DV) ou não
formador adota, ensina e exige dos sujeitos. desempenhando com total magnitude suas
Os atletas S6 e S7 concordam e ecoam o potencialidades funcionais (DF). Tais fatos,
posicionamento de Castellano (2001) e apontam somados à subjetividade inerente ao processo,
que, embora existam protocolos de classificação, permitem que certos atletas façam algumas
ainda assim, a subjetividade é um fator presente sugestões frente a possíveis mudanças de
no resultado do processo. Ou seja, a percepção e protocolos.
competência do avaliador pode influenciar a S6 faz comentários sobre a classificação
classificação do atleta. médica para atletas com DV. Afirma que a
avaliação clínica não contempla a real
Classificação funcional é um processo capacidade do sujeito e nem sempre demonstra
que sempre será polêmico, pois é aplicabilidade prática e funcional na atividade
praticamente impossível determinar esportiva.
com objetividade e precisão a condição
funcional dos atletas [...] Existe um Os classificadores quase não vão a
universo de possibilidades funcionais campeonatos. Eles fazem a
de atletas dentro da mesma classe. Por classificação e por lá ficam. Não
exemplo, existem muitos tipos entram na parte esportiva [...] Eu acho
diferentes de atletas com o mesmo que alguns testes têm que ser
índice. [...] dentro das possibilidades, o repensados [...] Às vezes vejo coisas
processo atual ainda é muito subjetivo que não me ajudam na prática (S6).
(S7).
S7 e S8 julgam os protocolos insuficientes e
Quanto à classificação médica, para atletas
com análises pouco objetivas e imparciais. S8
com DV, S6 aponta os erros de diagnósticos e
aponta que sente falta de um acompanhamento
processos pouco precisos de avaliação como
de classificadores no dia a dia do atleta. S7
consequência da subjetividade.
aponta a necessidade de considerar a
Julgam a classificação muito boa. Mas
sensibilidade do atleta na avaliação e a
eu não concordo. Existem muitos aplicabilidade do biofeedback:
equívocos em relação aos resultados
das classificações. [...] Existem atletas A sensibilidade é importante, pois é sua
que são deficientes visuais, mas relação com o mundo. Você consegue
enxergam muito além da classe em que perceber o espaço à sua volta de
são colocados. E já pessoas com baixa maneira diferente (S7).
visão, algumas bem acentuadas, serem Segundo o atleta esta técnica permite
excluídas considerando que não eram analisar os impulsos nervosos oriundos da
elegíveis. Eu acho que o método de
musculatura, principalmente relativos à
classificação é muito falho [...] As
falhas acontecem tanto na esfera sensibilidade. Os sistemas de classificação são
nacional quanto internacional (S6). constantemente reavaliados e questionados na
classificadores, expressa destacável violência alguns dos entrevistados, a tomada de certa posição
simbólica, visto que além de executarem as de vanguarda do setor de classificação no Brasil em
avaliações, ainda controlam tais protocolos. Deste relação ao resto do mundo, quanto à formação e
modo, assumem certa posição de poder frente à meios de atuação de classificadores, assim como na
organização paralímpica e todos seus agentes, que busca por sua qualificação e atuação mais próxima
têm suas formas de atuação dependentes e a treinadores, equipes e atletas.
influenciadas pelos processos de classificação, e A pesquisa qualitativa aponta para
dificuldades de ascensão social limitada por categorias e objetos destacados pelos agentes
condições muitas vezes externas ao subcampo no subcampo e procura expressar o sentido de
paralímpico, como a perspectiva de carreira de seus discursos e ações. Deste modo, a
treinadores e a educação formal de pessoas com investigação sobre o habitus dos diferentes
deficiência. Tal poder se deve ao fato de a grupos se apresenta como trabalho constante.
classificação de atletas ser considerada, Com base nos dados apresentados, sugere-se para o
sociologicamente, uma forma de controle social desenvolvimento do movimento paralímpico
que delimita a estrutura e o processo de brasileiro e diminuição de algumas diferenças
operacionalização do esporte paralímpico (WU; sociais deste espaço, a continuidade de iniciativas
WILLIAMS; SHERRIL, 2000). ligadas à melhoria dos processos de classificação,
De forma geral, a entrada de sujeitos neste assim como de capacitação e orientação de novos
grupo de maior poder em relação à classificação se classificadores, treinadores e atletas, objetivando
dá com base em aquisição de capital cultural (entre aproximar seus trabalhos e facilitar uma interação
outras formas, expresso pelo Ensino Superior mais produtiva entre os diferentes grupos no
formal) e simbólico (domínio sobre processos e subcampo. Além disso, programas de incentivo à
protocolos). contratação de treinadores e a necessidade de
É possível pontuar duas tendências ligadas à políticas públicas de melhoria em condições de
formação de classificadores no Brasil: uma educação formal de pessoas com deficiência.
próxima a certa democratização do conhecimento Aponta-se como possibilidade de trabalhos
específico, na qual são oferecidos cursos a um futuros: a investigação relativa ao discurso e
público em especial, o que pode representar uma habitus de outros agentes deste espaço, como
mudança no modo de transmissão de capital treinadores esportivos, por exemplo, além de
simbólico neste meio, por meio de cursos de abordagens sobre temas amplos como a carreira
formação; e outra ligada a certa limitação, pelos profissional dos treinadores e as perspectivas e
pré-requisitos exigidos (habitus) para que o sujeito processos de educação formal para pessoas com
se torne um classificador. É citada ainda, por deficiência. .
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(desdobramentos). 2. ed. Caxias do Sul: EDUCS, 2005. Aceito em 21/11/2012
Endereço para correspondência: Renato Francisco Rodrigues Marques, Escola de Educação Física e Esporte de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Avenida Bandeirantes, 3900, CEP:
14040-907, Monte Alegre, Ribeirão Preto, SP., Brasil. E-mail:
renatomarques@usp.br