SOUSA, E. Umbigos Enterrados
SOUSA, E. Umbigos Enterrados
SOUSA, E. Umbigos Enterrados
UMBIGOS ENTERRADOS
Corpo, pessoa e identidade
Capuxu através da infância COLEÇÃO
BRASIL
PLURAL
editora ufsc
UMBIGOS ENTERRADOS:
corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor
Luiz Carlos Cancellier de Olivo
Vice-Reitora
Alacoque Lorenzini Erdmann
EDITORA DA UFSC
Diretora Executiva
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www.editora.ufsc.br
Emilene Leite de Sousa
UMBIGOS ENTERRADOS:
corpo, pessoa e identidade Capuxu
através da infância
2017
© 2017 Editora da UFSC
Coordenação editorial:
Paulo Roberto da Silva
Capa:
Paulo Roberto da Silva
Editoração:
Roberta Gomes da Silva
Revisão:
Guilherme May
Ficha Catalográfica
(Catalogação na publicação pela Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa
Catarina)
Madrugada Camponesa
(Thiago de Mello)
Agradecimentos
Lista de figuras................................................................................... 15
Prefácio................................................................................................. 19
Prólogo...................................................................................................23
Apresentação......................................................................................25
Introdução............................................................................................29
Antonella Tassinari
1
São José é conhecido como o santo das chuvas, e o seu dia, 19 de março, funciona
como uma profecia a respeito do inverno. Ele antecipa a previsão de chuvas ao longo
do ano. Entre o povo Capuxu, como em quase todo o sertão, as imagens de São José
são roubadas das casas por vizinhos, parentes e amigos, com o intuito de que o santo
mande chuva. Só depois das chuvas o santo é devolvido ao seu dono. Essa questão será
tratada adiante, num capítulo sobre sistema de crenças, já que na maioria das vezes as
responsáveis por roubar o santo são as crianças.
Apresentação
2
O termo “sertão” é vastamente utilizado nesta obra, pelo fato de ser uma
categoria local, modo como o povo Capuxu se refere ao lugar onde habita e como
os que estão distantes se referem ao lugar para onde desejam voltar. Nesse sentido,
a nomenclatura “sertão” e “sertanejo” são utilizadas em obediência às categorias
nativas. Ademais, esta pesquisa se realizou na microrregião conhecida como “alto
sertão paraibano”, chamado pelos órgãos, institutos e ONGs que lá atuam pelo
termo técnico “semiárido”.
Apresentação 27
“Ô DE CASA” –
ITINERÁRIO METODOLÓGICO
Desde esse dia algo mudara entre nós dois. Ítalo não demonstrava
aborrecimento quando me via nem se mantinha distante. Até
passou a ficar por perto e a estar interessado nas coisas que eu
dizia ou fazia com as demais crianças.
Com o tempo, aproximou-se de mim e me ofereceu os seus
brinquedos, sinal maior de que eu havia sido aceita por ele.
No final da pesquisa seguíamos sempre juntos para o roçado, o
cipoal, o Rio Goiabeira. Brincávamos pelos cômodos da casa e
por toda parte do Sítio. Sempre juntos, Ítalo era uma espécie de
guia para mim e me acompanhava a todos os lugares enquanto
me explicava sobre as brincadeiras, os caminhos e atalhos, os
malassombros3, as crianças, o roçado... adotava sempre uma
postura de meu “secretário”, como dizia.
Assim eu soube que estava certa desde o início. Seria Ítalo, aquele
menino camponês de 5 anos, o meu informante qualificado.
Conforme demonstro no fragmento acima, simulando minha
ingenuidade em relação ao relógio imaginário de Ítalo, eu fui aceita
por ele. Só assim pude entrar no jogo, por ter me submetido a fazer
parte do imaginário do menino camponês. Mais ingênuo talvez
seja o antropólogo que creia manipular os nativos, pois são eles que
determinam posições para nós em campo e que controlam as nossas
impressões como queiram (BERREMAN, 1998).
Minha primeira dificuldade em campo foi aquela revelada
pelo fragmento de meu diário: a aceitação pelas crianças. No caso de
pesquisa com crianças, a entrada em campo é sempre mediada, porque
autorizada, pelos pais e adultos em geral da comunidade. Mas a aceitação
da pesquisa pelos adultos não significa o ser aceito pelas crianças – e
sem a aceitação de sujeitos não há pesquisa.
É importante ressaltar que as crianças camponesas Capuxu
foram meus principais sujeitos, uma vez que o intuito desta pesquisa é
compreender a produção da pessoa tendo como possível via de acesso
o corpo das crianças. Entretanto, não são as crianças os únicos sujeitos
da pesquisa, pois os processos de produção do corpo envolvem crianças,
jovens e adultos, homens e mulheres, sendo todos estes sujeitos de
pesquisa em potencial. Todavia, me esforço por tomar as crianças como
3
Opto pela grafia do termo sem o hífen (como geralmente é grafado) para respeitar a
pronúncia peculiar dos Capuxu, cuja sonoridade é dada pela junção das duas palavras
num termo só.
40 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
sujeitos principais de minha pesquisa, por acreditar que elas têm uma
agência em todo o processo de construção do corpo e da pessoa, que só
se torna perceptível para o antropólogo disposto a observá-las, ouvi-las,
interagir com elas. Entendo, pois, que em todo processo de construção do
corpo da criança há uma cooperação, uma ação conjunta entre aqueles
que são considerados responsáveis por produzir o corpo da criança e
a própria criança, dando sentido e atribuindo significado a essas ações
dos adultos, além das construções produzidas pelas próprias crianças ou
entre crianças.
Por meio das entrevistas e conversas informais, os sujeitos que
são considerados responsáveis por produzir o corpo da criança (sem
negar a agência da própria criança) foram ouvidos; isso diz respeito,
também, a toda a unidade doméstica: pais, irmãos, avós, tios, vizinhos,
padrinhos e amigos.
A partir dessas técnicas de coletas de dados e instrumentos de
pesquisa, penso ter dado conta do meu objetivo geral – o de verificar
como se dá a produção da pessoa Capuxu à luz da análise dos processos
de fabricação dos corpos das crianças – e pude compor uma etnografia
dessa construção da pessoa em seus vários aspectos. A observação em
campo deu ênfase a essas várias fontes de dados com base nas quais
construí uma etnografia de como, por meio da fabricação do corpo da
criança, nasce a pessoa Capuxu.
Nesse sentido, opto por tomar as expressões nativas “ô de casa” e
“ô de fora”, que dão acesso às casas Capuxu, lugar por excelência (mas
não único) para a construção dos corpos, como categorias analíticas
ou sociológicas, de modo que a primeira diz respeito à entrada do
pesquisador em campo e a segunda equivale à interação, à recepção das
crianças com relação ao pesquisador e suas representações sobre ele. A
primeira dessas categorias se trata de uma antropologia elaborada pelo
antropólogo sobre os nativos; a segunda, de uma espécie de antropologia
reversa (WAGNER, 2010), das crianças sobre o antropólogo.
Ora, se não se produz o corpo das crianças Capuxu apenas em
casa, mas por todos os espaços do Sítio Santana-Queimadas, minha
pesquisa itinerante percorre os espaços do Sítio por onde estão as
crianças, onde seus corpos se produzem e se deixam produzir, em busca
de desvendar o complexo processo de formação do corpo e da pessoa
Capuxu na infância.
A partir dessas experiências, convido o leitor a percorrer comigo
o caminho metodológico que me conduziu às crianças Capuxu, trajeto
este caracterizado por atalhos, cortado por rios e cipoais, cercado de
Capítulo 1 ■ “Ô de casa” – itinerário metodológico 41
4
Categoria nativa derivada do termo “mal-assombrado”, que diz respeito aos medos
das crianças. Foi profundamente analisada por Flávia Pires (2011), numa cidade a
poucos quilômetros do Sítio Santana. Adiante faremos uma análise dos malassombros
entre as crianças Capuxu.
48 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
5
Essa diferença fica evidente quando feita a distinção entre a escrita no diário de campo
ou caderno de campo, que se caracteriza pelas impressões e sentimentos do pesquisador
e pelos chamados “dados brutos” adquiridos em campo, como sensos, genealogias de
parentesco etc., e a escrita no gabinete, que se transforma em produto final da pesquisa,
conformada pelos rigores da academia. Esta última sofre uma vigilância epistemológica
ainda maior do que a escrita, também orientada e ensinada pela academia, que preenche
nossos cadernos e diários de campo.
50 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
6
Pires (2010) apresentou uma variação da língua do pê desconhecida para mim.
Nesta, o pê vem acompanhado também da vogal daquela sílaba; portanto, o exemplo
seria “po-vo, pe-cê, pa-vai, pu-bus, pa-car, pa-á, pa-guá, pa-pra, pi-mim?” Existem,
ainda, outras variações regionais que não serão aqui listadas.
Capítulo 1 ■ “Ô de casa” – itinerário metodológico 53
7
Pires (2011) analisou cuidadosamente as dificuldades dessa relação que se estabelece
entre pesquisadora-adulta e crianças em campo, expondo, por meio de sua própria
experiência, estratégias e modos diversos de proceder numa pesquisa com crianças.
56 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
62 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
unilateral somente dos adultos sobre elas, mas que é a interação entre
esses dois universos que eu submeto ao escrutínio.
Esta, porém, é uma pesquisa sobre infância e com crianças. Ela não
se restringe às crianças como sujeitos, mas toma-as como protagonistas
nos processos de produção do corpo. Entretanto, não fosse a minha
disposição em atentar para os adultos e idosos de modo geral, muitas
das questões que me coloquei não seriam respondidas.
Por isso, esta pesquisa reflete um mosaico de tentativas de
proceder em campo. Como num caleidoscópio, as imagens que consigo
vislumbrar nesta descrição metodológica contam histórias sobre como
utilizei entrevistas com adultos e conversas informais com crianças,
gravador para que estas cantassem, máquinas fotográficas para que se
aproximassem de mim, diários de campo e cadernos de campo para
registrar o que eu via.
Esta narrativa revela as estratégias utilizadas em campo: sobre
como utilizei as fotos das crianças tiradas há dez anos para me aproximar
dos jovens; chamá-las pelos apelidos para ter intimidade com elas;
saber quem eram cônjuges em potencial para respeitar os momentos
de constrangimento entre eles; usar a escola para ter acesso a todas de
uma vez e produzir em conjunto desenhos sobre eles, o Sítio, a família
e os animais.
Ela trata, ainda, de como nós construímos debates na escola sobre
o corpo, doenças, curas, ferimentos, dentes e umbigos e de como me
esforcei por perder o medo dos animais para me igualar a eles, disfarcei
meu conhecimento para que me mostrassem o Sítio e deixei que me
apresentassem tudo a partir de seus próprios olhos.
A descrição do Sítio Santana-Queimadas foi feita pelas crianças
por meio de um desenho que atravessava folhas e folhas de papel
pautado, coladas por nós com fitas adesivas. Ele foi transformado num
croqui, apresentado no capítulo sobre o Sítio, ilustrando sua descrição
espacial e simbólica.
Também numa tentativa de trazer referências do lugar de onde
eu etnografo, acrescentei alguns desenhos, especialmente aqueles que
representavam a casa e as estradas, porteiras, mata-burros e demais
espaços do Sítio. Outros desenhos foram inseridos para nortear a
discussão sobre os nomes dos animais e as relações que as crianças
desenvolvem com eles. Esses desenhos trazem os animais de estimação
das crianças e seus nomes.
Entendo, como Pires (2011, p. 43), que “o desenho é material
de pesquisa interessante para captar justamente aquilo que primeiro
64 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
vem à cabeça, aquilo que é mais óbvio para a criança. Porém é quando
combinado com a observação participante que os dois instrumentos
potencializam a sua utilidade. Os desenhos podem funcionar como um
guia para a observação participante”.
Assim, os desenhos foram importantes instrumentos através dos
quais orientei minha pesquisa, especialmente sobre os espaços do Sítio.
Em vez de estabelecer temas, pedi às crianças que desenhassem o que
quisessem, e estas optaram por representar graficamente os espaços
domésticos, onde permanecem a maior parte do tempo, e os demais
espaços do Sítio.
Na discussão sobre as casas do Sítio, optei por trazer a planta de
uma delas, de modo que o leitor possa entender aquilo que chamo de
casa e seus arredores, bem como de quintal, jardim, monturo e tudo
aquilo que diz respeito ao espaço doméstico.
No que diz respeito às genealogias, embora eu tenha realizado
um levantamento geral das famílias em Santana-Queimadas e detenha
uma vasta descrição das famílias e suas descendências, optei por
apresentar apenas os padrões matrimoniais, ou seja, os principais tipos
de casamentos que ocorreram e ocorrem entre o povo Capuxu. Essas
representações gráficas estão no quinto capítulo e são apresentadas à
medida que discorro sobre tais casamentos.
Capítulo 2
8
Inspirada em Norbert Elias (2000), chamo de outsiders aqueles povos que habitam os
sítios vizinhos ao Sítio Santana-Queimadas, os moradores da cidade de Santa Terezinha,
de Patos e, enfim, todos aqueles que convivem ou estabelecem relações cotidianas ou
extraordinárias com o povo Capuxu e que não são Capuxu.
66 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
9
Adoto a noção de territorialidade, centrada nas formas de uso, gestão da terra
e relação com ela ou na lógica de organização territorial e noções de apropriação do
espaço, mais do que a noção de terra. Essa distinção também me desloca das discussões
sobre a condição camponesa caracterizadas pela ênfase na terra para as discussões
sobre identidade e etnicidade cuja ênfase recai na demarcação de fronteiras com outros
grupos.
68 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
11
A quantidade de jovens Capuxu frequentando o ensino superior público nas cidades
mais próximas no estado da Paraíba também surpreende para uma comunidade rural.
À época desta pesquisa, eram em torno de 14, nos mais diversos cursos.
12
Primos legítimos são aqueles de primeiro grau. “Primo carnal”, nomenclatura mais
comum entre o povo Capuxu, é um termo popular que designa os filhos de “casamentos
trocados”, isto é, quando dois filhos de uma mesma família se casam com dois filhos
de outra família, sendo estes de sexos trocados; seus filhos serão considerados primos-
irmãos ou primos carnais.
70 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
havia sido atribuído, são dos anos de 1890, e eram filhos dos irmãos
baianos Salviano Alves da Costa e Vicente Alves da Costa, que teriam se
casado com as irmãs paraibanas Praxedes do Espírito Santo e Maria da
Conceição, respectivamente.
Entretanto, não há qualquer referência ou ligação identitária
dos Capuxu ao estado da Bahia; eles se consideram essencialmente
paraibanos. Esses casamentos teriam dado início à construção da
comunidade Capuxu. Seus filhos, considerados primos-irmãos ou
primos carnais, teriam casado entre si, o que configuraria o sistema
endogâmico de casamento até hoje em vigor, com casamento preferencial
entre primos carnais.
O povo Capuxu se denomina um povo cuja identidade não se
confunde com a de nenhum outro – nem com os habitantes das cidades
que os cercam, nem com os moradores dos sítios circunvizinhos, nem
com um grupo indígena, como especulam os outsiders. Essa é a principal
razão pela qual me dedico a compreender sua identidade a partir das
teorias de etnicidade.
Entendo que as teorias de campesinato não dariam conta,
por si só, desse grupo na configuração identitária que ele assume.
Entretanto, dialogo com as teorias do campesinato ao mesmo tempo,
por reconhecer que a identidade Capuxu está marcada pelo apego à
terra que atravessa o corpo na construção da pessoa e de sua identidade.
Por isso a importância de articular teorias do campesinato e teorias de
etnicidade: por acreditar que nenhuma das duas em si mesmas daria
conta do grupo que ora investigo.
Na discussão sobre a identidade Capuxu, opto por uma ênfase
na descrição centrada nas estratégias de socialização e coesão do grupo,
sem visar a uma discussão aprofundada dos conflitos. A principal
razão pela qual o faço é inteiramente ética. A maior parte dos conflitos
vivenciados pelo povo Capuxu é de caráter interno ao próprio grupo,
envolvendo apenas seus membros, e me foram confidenciados. Por
essa razão, e para que não corra o risco de tomar partido numa simples
descrição, opto por não mencionar os conflitos vivenciados no passado
e no presente pelo povo Capuxu.
Há também outra razão pela qual eu acredito que a omissão dos
conflitos não prejudicará a compreensão da construção identitária do
grupo: sendo estes internos, eles não contribuem para o fortalecimento
das fronteiras, não afetando as relações que se estabelecem entre o
povo Capuxu e os outsiders. Assim, não haveria razão para expor os
conflitos, uma vez que, não estando localizados nas fronteiras do grupo,
Capítulo 2 ■ Capuxu – de vespa a grupo social 71
13
A. D. Smith retoma o termo etnia para designar “um grupo social cujos membros
compartilham um sentimento de origem comum, reivindicam uma história e um
destino comuns e distintivos, possuem uma ou várias características distintivas e sentem
um senso de originalidade e de solidariedade coletivas” (apud POUTIGNAT; STREIFF-
FENART, 2011, p. 83).
Capítulo 2 ■ Capuxu – de vespa a grupo social 83
Isso se dá porque os traços étnicos nunca são evocados, atribuídos ou exibidos por
14
acaso, mas manipulados estrategicamente pelos atores sociais no decurso das interações
sociais – por exemplo, para exprimir a solidariedade ou a distância social, conforme
ocorre no povo Capuxu.
15
Assim como não pressupõem uma comunidade real de origem, os grupos étnicos
também não pressupõem uma atividade real comunitária. Eles existem apenas pela
crença subjetiva que têm seus membros de formar uma comunidade e pelo sentimento
de honra social compartilhado por todos os que alimentam tal crença (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 2011, p. 38).
84 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
16
“Alguém é um lue pelo fato de se crer e denominar-se lue e agir de modo a validar sua
lue-tude” (MOERMAN apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).
86 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
à identidade étnica sua dimensão englobante e torna-a pouco maleável com relação a
outras identidades de grupo (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011).
Capítulo 2 ■ Capuxu – de vespa a grupo social 89
18
Hoje a comunidade possui comunidades nas redes sociais, intituladas “Capuxu”, nas
quais contam histórias do povo e prestam homenagem a pessoas da comunidade.
Capítulo 2 ■ Capuxu – de vespa a grupo social 91
19
“Uma identidade étnica nunca é autoexplicativa. Não podemos dar conta do fato de
dizermos de alguém que ele é X (ou pelo fato de alguém dizer ‘eu sou X’) porque ele é
X” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 167). Assim temos a fórmula utilizada
por Moerman com relação aos Lues: não se trata de saber quem são os X, mas de saber
quando, como e por que a identificação “X” é preferida.
92 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
mesmo para São Paulo, o mais comum destino dos paraibanos em busca
de melhores condições de vida.
A distância espacial não faz com que os Capuxu que migraram
há mais de vinte anos e habitam outros lugares, vindo a sua terra uma
vez por ano e, em alguns casos, demorando a visitá-la durante anos,
deixem de ser reconhecidos como Capuxu, acionando os dispositivos
necessários para a manutenção da identidade.
Um desses dispositivos é o sentimento de pertencimento ao
povo, a relação que eles nutrem com a terra, demonstrada no desejo de
voltar a habitar o Sítio Santana-Queimadas como o maior sonho de suas
vidas. A distância, eles não se casam com estranhas e não dispensam a
possibilidade de se casarem com uma de suas primas. A cada ano eles
voltam a sua terra, para a festa da padroeira, para os festejos de fim de
ano, em datas comemorativas, como o dia das mães ou o aniversário de
um parente, para celebrar casamentos ou batizados, exercendo sempre
o papel de padrinhos e compadres.
Os Capuxu que habitam outros lugares que não o Sítio Santana-
Queimadas voltam sempre que solicitados, se adoece alguém da família,
quando todos se reúnem para ajudar, ou se morre um parente ou ente
querido. As ajudas financeiras também são enviadas à família. Nos anos
fatidicamente secos, manda-se sempre alguma quantia em dinheiro
para ajudar os pais a educar os irmãos mais jovens que lá ficaram, para
ajudar os irmãos a educarem os sobrinhos que crescem longe dos olhares
dos tios. A solidariedade para com seu povo e sua terra é a marca da
comunidade Capuxu.20
Assim, o elo com o lugar e as pessoas de lá não se quebra. O
vínculo com a comunidade permanece por meio de processos diversos
de pertencimento ao território. Os que lá habitam se utilizam dos
marcadores sociais ou sinais diacríticos para atualizar a sua etnicidade
junto ao grupo, mas os que estão distantes acionam outros dispositivos
pelos quais a identidade pode ser mantida mesmo a distância. Isso
prova que a identidade não é fixa, mas articulada e acionada a partir
de determinados critérios ou sinais, que podem ser mantidos e
fortalecidos, estando o indivíduo no Sítio Santana-Queimadas ou a
qualquer distância do seu território.
Cooperar com os que ficam, com os festejos locais, com as
20
Como em geral ocorre com os grupos étnicos, a comunidade Capuxu é dotada de
intensa solidariedade entre seus membros, e esse sentimento está no foco da percepção
do grupo a respeito de si mesmo.
Capítulo 2 ■ Capuxu – de vespa a grupo social 97
O SÍTIO SANTANA-QUEIMADAS:
“O UMBIGO DO MUNDO”
ler e interagir com o mundo, mais do que pelo simples fato de morar
no Sítio, creio ser importante uma apresentação geral do Sítio Santana-
Queimadas, onde habita o povo Capuxu.
Capuxu – s.m. bras. Zool. Inseto Himenóptero. Vespa social da família dos vespídeos,
21
102 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Há ainda campos de futebol, onde se desenrolam os treinos
nos fins de semana e o clássico entre o time do local – Fluminense
– e outros times dos sítios vizinhos, geralmente realizados em
datas comemorativas. Quanto a essas datas, ressaltamos o São João,
com apresentação de quadrilhas, forró e comidas típicas, e a festa
22
Esses dados foram coletados junto aos moradores mais velhos do Sítio Santana-
Queimadas, que me contaram a história da origem do Sítio e de seu povo.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 103
entre as crianças, desde cedo, é hábito andar pelos atalhos, por cipoais,
matagais ou roçados, que são sempre seus percursos preferidos.23
Ao que me consta, as estradas são monótonas demais, tendo
sempre a mesma paisagem, cortada pelo grande número de motos
ou carros que atravessam o Sítio. Alguns desses meios de transporte
pertencem aos moradores locais, mas a maioria é de veículos que
atravessam o Sítio Santana-Queimadas em direção ao Sítio Lameirão ou
a outros sítios circunvizinhos. Por isso, os moradores e as crianças em
especial adoram caminhar por roçados, onde sempre se pode encontrar
um bicho diferente, uma planta, uma flor ou qualquer coisa cuja aparição
nas estradas seria pouco provável.
Deve-se registrar, contudo, que a opção pelos atalhos por
dentro da mata só é preferência durante o dia; à noite ninguém
caminha pelos roçados ou plantações, e os atalhos são esquecidos.
Isso se deve ao fato de a maioria do povo demonstrar ter medo de
caminhar por dentro do mato a noite, sob o risco de se deparar
com algumas visagens, tochas, almas ou aparições de modo geral,24
sem falar do risco de aparecerem bandidos, os malfazejos, já que a
entrada principal do Sítio não está tão distante assim da BR-361, que
é bastante movimentada.
O Rio Goiabeira divide o Sítio Santana em três partes, que os
moradores denominam como “Parte 1”, a parte central, onde estão a
igreja e a casa paroquial, coração do lugar; “Parte 2”, ao lado da igreja,
onde estão algumas casas; e “Parte 3”, que seria a menos povoada. Além
do Rio Goiabeira, o Sítio conta com aproximadamente mais cinco
açudes. De 2011 a 2013, eles estavam vazios por causa da estiagem
prolongada. Em 2014, com as chuvas de inverno, eles voltaram a ficar
cheios.
23
Certeau (1994), ao tratar das enunciações pedestres e do caminhar, afirma que, se
existe uma ordem espacial que organiza e torna “legível” um conjunto de possibilidades
e proibições, o caminhante atualiza algumas delas, torna efetivas apenas algumas das
possibilidades fixadas pela ordem construída, fazendo-as tanto ser como aparecer.
Porém, também desloca e cria outras. Em suas idas e vindas, as variações e improvisações
de percurso privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos espaciais: “O caminhante
transforma em outra coisa cada significante espacial”. Ao criar atalhos ou desvios. o
caminhante seleciona seu percurso, seu trajeto, aumentando o número de possibilidades
e interditos.
Em toda a comunidade há apenas um evangélico; todos os outros habitantes do Sítio
24
são católicos. Eles são extremamente religiosos, razão da importância da análise das
almas e dos malassombros que será feita adiante.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 105
25
O Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) é uma das ações do Programa de
Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido da ASA. O objetivo
do P1MC é beneficiar cerca de cinco milhões de pessoas em toda a região semiárida
com água potável para beber e cozinhar, por meio das cisternas de placas. Juntas, elas
formam uma infraestrutura descentralizada de abastecimento com capacidade para 16
bilhões de litros de água. O programa é destinado às famílias com renda até meio salário
mínimo por membro, incluídas no Cadastro Único do governo federal e que contenham
o Número de Identificação Social (NIS). Além disso, é preciso residir permanentemente
na área rural e não ter acesso ao sistema público de abastecimento de água. Desde que
surgiu, em 2003, até o momento da pesquisa, o P1MC construiu 499.387 mil cisternas,
beneficiando mais de 2 milhões de pessoas. Para que esses resultados pudessem ser
alcançados, a ASA conta com a parceria de pessoas físicas, de empresas privadas, de
agências de cooperação e do governo federal.
106 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
26
O território se trata de uma representação coletiva, uma ordenação primeva do
espaço. A transformação do espaço em território é um fenômeno de representação pelo
qual os grupos humanos constroem sua relação com a materialidade. É importante
destacar que os atores sociais constroem um território onde as marcas da sua história
vão fixadas como marcas de sua identidade (MEDEIROS, 2006, p. 43).
A territorialidade é a “representação simbólica, afetiva, apropriação criando a
27
subjetividade, a identidade com aquele espaço” (BELEDELLI, 2005, p. 60). Por isso, diz-
se que o processo de territorialização constrói laços afetivos com a terra.
108 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
muito sobre a família rural. Para Woortmann (1983), o mato constituiria um ponto de
partida para pensar as demais dimensões do sítio. Confesso ser o mato uma importante
categoria analítica para pensar o sítio camponês, por ser o lugar de onde provêm a
madeira, a estaca, a lenha. Além disso, é um lugar habitado pelo sobrenatural, mas, no
caso Capuxu, penso que sua importância é menor frente à casa, ao roçado e às estradas.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 109
29
Achei curiosa a expressão utilizada pelo morador ao se referir ao sítio como “o
umbigo do mundo”, lugar onde tudo teve início, que está no centro de todas as coisas,
especialmente da história deste povo e sua comunidade. A expressão não pode deixar de
ser remetida aos vários umbigos deste povo enterrados nas porteiras e mourões do Sítio,
conformando a etnicidade Capuxu atrelada a uma territorialidade, à ocupação de um
lugar no mundo. Tudo isso torna o Sítio Santana-Queimadas, para o seu povo Capuxu,
“o umbigo do mundo”.
30
Tomo de empréstimo a expressão “a morada da vida” de Heredia ([1979] 1988), que
a ouviu de um pequeno produtor que se referira assim à terra. Entendo que, no caso do
povo Capuxu, o Sítio, o lugar onde habitam, se configura numa espécie de morada da
vida, de universo particular.
110 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
31
O mesmo sistema de vigilância foi detectado por Comerford (2003) entre os
camponeses da Zona da Mata de Minas Gerais.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 111
Assim é que os camponeses pensam a localização da casa como
uma referência espacial a partir da qual se projetam os ambientes
externos, que são correlacionados entre si. Desse modo, a casa representa
um marco de divisão e organização.
Cabe ao homem determinar a direção do trabalho que segue
da casa para o mato, ou seja, de dentro para fora, respeitando a lógica
que parte do conhecido e domesticado para o desconhecido e natural.
“A direção vai de dentro para fora, num movimento centrífugo que tem
na casa o núcleo organizador do processo de trabalho” (WOORTMANN;
WOORTMANN, 1997, p. 37).
Os autores partem da análise do lugar de trabalho, o sítio,
ele mesmo também resultado do trabalho, na dimensão espacial e
resultado de um processo histórico secular de interação do homem com
a natureza, na dimensão temporal.32
32
Atentemos para o fato de que, para Woortmann (1983), o sítio é considerado o lugar
de trabalho. Para os Capuxu, o lugar de trabalho é especialmente o roçado, embora tanto
a casa quanto os seus arredores sejam espaços de trabalhos desenvolvidos especialmente
por mulheres e crianças. Voltaremos a essa questão mais adiante.
112 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
33
Entende-se, pois, por grupo doméstico o conjunto de indivíduos que vive na mesma
casa e possui uma economia doméstica comum (TEPICHT, 1973; GALESKI, 1972).
O grupo doméstico é a unidade de residência e é dentro dele que tem lugar a reprodução
física e, em grande parte, social de seus membros (FORTES, 1958).
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 113
Eu mesma tive acesso a um quarto só para mim na casa onde fiquei hospedada
34
e percebia que os membros da família nunca entravam nele, pois tinham certo
constrangimento.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 115
destaca que a casa não é apenas a área coberta e com paredes; para aquele grupo, o
entorno fechado, denominado “terreiro”, também faz parte do corpo da casa.
Também Godoi (1999, p. 37) observou que “o muro e o quintal são dois espaços
36
sempre contíguos à casa de morada e podem ser pensados [...] como um desdobramento
projetivo da casa”.
116 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
as casas compreendem o espaço físico ocupado pela construção e pelo espaço livre a
sua volta, denominado “terreiro”. A parte coberta geralmente inclui sala, sala de jantar,
cozinha e um ou dois quartos de dormir.
38
Segundo Heredia (1988), o espaço do quintal ou muro é também chamado de
“terreiro” pelos moradores da Zona da Mata pernambucana: “o terreiro dos fundos da
casa está destinado fundamentalmente às aves domésticas e ao chiqueiro dos porcos; é
também ali que as cabras passam a maior parte do dia. Em algum setor desse espaço, as
mulheres lavam a louça e fazem a higiene das crianças” (p. 38).
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 117
é cuidado, limpo, ordenado, e às vezes mal se tira dele a relva que cresce.
O monturo é a verdadeira porta de saída desse complexo de ambientes
que os Capuxu denominam “casa”. Com efeito, as fronteiras da casa
Capuxu podem ser definidas pelos terreiros e monturos.
O entorno da casa está destinado quase sempre à produção
de alimentos para o consumo da família ou à produção animal. As
galinhas e pintinhos, os porcos, as hortas, os pés de frutas e os animais
de estimação têm lugar cativo nestes arredores. As áreas externas à casa
também são construídas, estão cercadas, divididas, classificadas com
cercas de madeira e porteiras, têm escadas de madeira que levam as
galinhas até o poleiro, mesmo se este consiste numa árvore. Por toda a
parte há vasilhas onde são colocados os alimentos e a água dos animais.
A casa e seu entorno conformam locais predominantemente
femininos.39 É que as tarefas do entorno da casa são desenvolvidas
especialmente por mulheres e crianças. É comum, entre os Capuxu,
que os homens vão para o roçado e as mulheres fiquem responsáveis
pela limpeza da casa e de seus arredores (terreiros e quintais também
são varridos), pela alimentação dos bichos, pela confecção do almoço,
pela retirada da lenha para fazer o fogo etc.40 Em todas essas atividades
as mulheres são ajudadas pelas crianças. Se é numerosa a sua prole, à
medida que esta cresce é possível que a mulher acompanhe o marido ao
roçado e deixe as filhas responsáveis pela casa e pelos irmãos menores.
Assim é que a casa Capuxu se estende para além da construção
de alvenaria e se transforma num complexo de espaços, cada um com
uma função, mas todos habitados pelos membros da família e pelos
animais domésticos. Nesse sentido, a casa é um marco referencial de
ordenamento espacial.
39
Também Ramos (2007), em estudo sobre os camponeses de Maquiné, observou que
“às mulheres, em geral, cabem as tarefas da casa e do quintal onde criam galinhas e
porcos, trabalham com vacas de leite e mantém uma horta” (p. 72).
Heredia (1988) observou que “a oposição casa-roçado delimita a área do trabalho e
40
Os roçados do povo Capuxu estão localizados a alguns metros
de suas casas, quase sempre cercados com arame farpado. Depois das
residências, o roçado é, de fato, o lugar mais importante para esse povo,
o lugar onde ele passa a maior parte do tempo – os homens em especial.
O trabalho no roçado, porém, possui um caráter familiar, já que quem
desenvolve as atividades ligadas a ele são os membros do grupo doméstico.
O roçado é o lugar, por excelência, do trabalho, onde o trabalho
investido sobre a terra legitima seu uso, pois é o trabalho o responsável
por transformar a terra em solo na construção do roçado, conforme
verificaram também Woortmann e Woortmann (1997).
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 119
41
Em geral estas são enxada, lavanca, cavadeira, foice, machado, picareta, enxadeco,
arado, cultivador e cavador.
42
Consoante Woortmann e Wootmann (1997) no interior da unidade familiar o
trabalho camponês é organizado segundo relações de hierarquia, de gênero e geração.
120 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
As casas estão construídas um pouco distanciadas das estradas
principais do Sítio, embora quase todas possam ser avistadas por quem
trafega pelas estradas. Em geral elas estão colocadas de frente para a
estrada ou com sua lateral disposta em direção à estrada principal do
sítio. Não há casos em que as casas estejam colocadas de costas para as
estradas principais.
Em alguns pontos as estradas são bifurcadas, permitindo ao
transeunte que siga um caminho em outra direção, com a garantia de que
o levará aos mesmos lugares. Em geral, os Capuxu optam por percorrer
os trajetos mais curtos, sempre tentando fugir do sol escaldante do
sertão paraibano.
Por outro lado, é possível percorrer atalhos por dentro dos
roçados, e uma das principais razões para a escolha dos roçados é que
neles pode-se encontrar alguma sombra útil enquanto se percorre uns
poucos metros que seja; tudo é válido para burlar um pouco o sol do
sertão, especialmente nos anos fatidicamente secos.
As estradas principais do sítio passam também pela frente e
pela lateral de alguns currais, roçados e plantações de modo geral. Pela
frente da igreja e da casa paroquial. Parte do trajeto da estrada principal
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 123
44
Ao se referir aos não lugares, Bauman (2001) afirma que esses espaços interditórios
foram desenhados para serem circundados, atravessados, razão pela qual estão repletos
de passantes, transeuntes. Nos não lugares, todos devem se sentir como se estivessem
em casa, mas ninguém deve comportar-se como tal, especialmente porque esses espaços
são engendrados para serem atravessados e deixados para trás o mais rapidamente
possível.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 127
Figura 11 – Desenho de Evair (10 anos) – além da casa, do porco e do açude, destacou
as estradas do Sítio com suas porteiras e mata-burros.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 129
130 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 13 – Antônio Victor (7 anos) – optou por desenhar o curral, sob o sol, com o
gado dentro. Passando em frente ao curral, o caminhão, com um homem de chapéu ao
volante.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 131
Figura 14 – Desenho de Maria Clara (6 anos) – destaca a casa, seu entorno com plantas
e flores, ela e sua mãe, além dos animais de estimação.
132 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 133
134 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 17 – Tales (8 anos) – desenhou a escola do Sítio, de onde parte o pau de arara que
leva os jovens para as escolas da cidade. Em frente à escola, um curral com um boi preso.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 135
Figura 18 – Maria Helena (9 anos) – fez o desenho que ilustra a capa deste livro. Ela
destacou a sua casa, o pé de goiaba, a gata Mari e a cadela Estrela, além do açude e dela
mesma à frente da casa.
136 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 19 – Ana Francielle (8 anos) – optou por desenhar sua família em frente à casa,
com a árvore ao lado. No desenho estão ela, seu pai, sua mãe e suas duas irmãs.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 137
138 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 139
Figura 22 – Maria Rita (6 anos) – além de desenhar a casa, a árvore, o sol e o açude,
destacou a galinha, o galo e os porcos, em vários tamanhos, que compõem a produção
animal da família.
140 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 141
Figura 24 – Erinaldo (7 anos) – optou por desenhar as estradas do Sítio sendo atravessa-
das por animais (porcos) e caminhões. Os vários modelos de caminhões revelam desde
o pau de arara, que leva os jovens para as escolas na cidade, até os caminhões-pipa, que
distribuem água durante a seca.
142 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 25 – Rita de Cássia (8 anos) – além de desenhar a casa e o poleiro sob a chuva,
desenhou abaixo o sol, sua gata Pretinha, as galinhas e mais um poleiro para estas.
Capítulo 3 ■ O sítio santana-queimadas: “o umbigo do mundo” 143
Figura 26 – Yasmin (5 anos) – optou por desenhar o roçado, que não aparece como um
lugar opressivo, mas próximo da casa, ambiente de conforto, e tomado por flores. Além
da casa, as árvores, o sol e uma lua crescente.
144 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 27 – Um mutirão constrói a casa dos pais de Flávio, o recém-nascido, que volta-
ram há pouco tempo de São Paulo. A casa está sendo construída no entorno da casa da
avó materna de Flávio.
e carros que ficam com seus pais e irmãos no Sítio, mandam comprar
animais para aumentar o rebanho, pagam gastos com o estudo dos
irmãos menores e, diante dessa teia de relações e favores, são tão donos
da terra quanto qualquer outro.
Os que estudam em cidades próximas não são vistos como
desertores ou como indivíduos que abandonaram o Sítio. Há uma
compreensão das razões pelas quais estes saíram. O estudo é sempre
muito valorizado e os jovens nunca são recriminados por isso,
especialmente se acessam o ensino superior, considerado um privilégio
para filhos de camponeses do sertão. Há status e prestígio em conseguir
formar um filho com o trabalho que se investiu na terra.
Aqueles que migraram também o fizeram por conta das
condições em que viviam na época. Estes, hoje em torno dos 30 a 40
anos, não cursaram o ensino superior: terminaram no máximo o ensino
médio e partiram em busca de trabalho em São Paulo, num movimento
fortíssimo de migração que caracterizou os anos de 1980.
Acredito que não haja grandes conflitos também porque quase
nunca se vende a terra. A regra é que ela seja sempre repassada,
transmitida enquanto houver alguém que se disponha a assumi-la.
E sempre há. Ademais, a terra no sertão da Paraíba é pouco valorizada
por conta das estiagens, então mesmo aqueles que construíram uma vida
distante de Santana-Queimadas não se interessam por entrar em conflito
com os parentes – quase toda a comunidade, diga-se de passagem, uma
vez que esta é endogâmica – e vender sua parte tão pouco valorizada no
mercado local.
No caso dos celibatários, estes acabam por permanecer na
casa dos pais e, à medida que os pais envelhecem, vão assumindo os
cuidados com a casa, o roçado e tudo o que lhes diga respeito quase
automaticamente, por serem jovens, terem mais força e disposição e por
não terem se casado. Assim, quando os pais morrem, sem esposas ou
maridos e filhos, permanecem na casa e vão tocando os serviços gerais
da vida camponesa. Quem não casa é mais do que herdeiro, porque
herdeiros todos são, mas quem não casa assume a terra.
O celibato disseminado entre o povo Capuxu se deve ao número
restrito de habitantes do Sítio, grande parte dos quais são idosos ou
crianças, e ao fato de que o sistema endogâmico os obriga a casar entre
primos, o que reduz consideravelmente as chances de casamento.
A estratégia do casamento entre primos também favorece a
herança. Se os dois que casam são da comunidade, não é preciso que
duas famílias cedam espaços de seus roçados para o novo casal. Por isso é
148 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
45
Enfatizo que Carminha está atrelada ao povo Capuxu por laços de afinidade, de
parentesco simbólico (sendo madrinha e tendo afilhados no local) e estabelece ainda
outro tipo de parentesco, aquele dado pela reciprocidade e ajuda mútua, pois tornou-se
Carminha, a não Capuxu, a principal cuidadora de dois dos mais importantes anciãos
da história da comunidade, que são tios de seu marido Eugênio, assumindo, assim, a
tarefa que era de responsabilidade da família.
46
Moura (1988) observou que “a separação física da família não corresponde à
separação social: quem é parente, ativa, à distância, essa condição” (p. 28).
154 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
sendo essa descendência passada tanto pela linha masculina como pela
feminina.
Embora o Capuxu faça da terra sua morada, a família e o trabalho
familiar também emconstroem o seu laço com a terra. Atentando para
o papel da consanguinidade dentro da família, percebo que a dinâmica
econômica da família Capuxu se pauta numa economia doméstica. Logo,
sendo o pai o chefe da família, este assume também a função de chefe
na forma como organiza a produção. Cabe aos filhos se subordinarem a
essa lógica, sendo dever deles cuidar da terra, que é um patrimônio de
valor moral. Aqui, as relações de parentesco, portanto, são inerentes à
lógica camponesa.
Assim se revela também a importância dos filhos e o papel
que ocupam na comunidade e no parentesco. A presença dos filhos
é fundamental para a reprodução do grupo camponês – enquanto
herdeiro que assumirá a terra – e da identidade Capuxu. Assim, os filhos
são necessários enquanto força de trabalho na família, mas também são
a garantia da manutenção da identidade através da consanguinidade.
Ademais, as crianças são as responsáveis por manter esse sistema
endogâmico de parentesco através das relações que estabelecem, desde
a infância, com seus cônjuges em potencial.
Desse modo, o casamento endogâmico prescritivo toma corpo
como forma de reprodução do grupo. Tal qual o parentesco não é uma
coisa em si, a endogamia tampouco o é; ela representa, nesse caso, a
internalização dos supostos de sua reprodução social. Se o sangue “é
bom” e se ele “puxa”, temos o mesmo sangue para toda a comunidade
pela repetição do casamento endogâmico, ao mesmo tempo em que
casar com primos é o mesmo que uma aliança entre herdeiros minando
a disputa pela terra, uma vez que se reduz o acesso à terra por parte
de pessoas de fora. Logo, o parentesco é não só uma estratégia de
manutenção da propriedade nas mãos do povo Capuxu como é também
a garantia da perpetuação não só do ethos, mas da identidade Capuxu.
Assim é que, entre o povo Capuxu, parentesco e identidade estão
emaranhados, formando um complexo conjunto de teias em que cada
fio nos conduz a uma nova discussão.
47
Parentela é o leque de possibilidades das relações bilaterais muito abrangentes.
Ego e seus irmãos são incorporados numa parentela que não pode ser a mesma para
quaisquer outros indivíduos, exceto para os primos duplos de Ego – primos cujos pais
sejam primos entre si.
48
“Descendência” é o termo utilizado para relações que se estendem a mais de duas
gerações, e “filiação” se aplica a família nuclear (pais e filhos). Relações parentais não
têm que ser estritamente biológicas: é o que se estabelece, por exemplo, entre alguns
homens Capuxu e as suas enteadas.
49
Existem dois princípios mentais subjacentes a cada grupo doméstico: a afinidade
e a filiação. O primeiro traduz a relação de parentesco estabelecida entre dois grupos
sociais distintos por meio do casamento entre dois membros, sendo um de cada grupo.
O princípio da filiação traduz uma relação consanguínea, agrupando as pessoas que
partilham de um mesmo patrimônio genético.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 157
51
A antropologia tem, ao longo do tempo, se dedicado ao estudo do casamento entre
primos cruzados, uma vez que este é mais recorrente. A categoria oposta a esta é a dos
primos paralelos que, nas sociedades em que se prescreve o casamento entre primos
cruzados, são considerados parentes, uma vez que os primos cruzados perdem o status
de parentes, possibilitando assim o casamento. Entre o povo Capuxu não há distinção
entre primos paralelos ou cruzados.
52
O primo de primeiro grau é também chamado de “primo legítimo” e diz respeito
aos filhos dos tios de Ego, tanto maternos quanto paternos. Os primos em segundo
grau são os primos dos pais de Ego em primeiro grau, isto é, são filhos dos tios-avós de
Ego, e portanto, primos em segundo grau de Ego, e assim sucessivamente, cada geração
equivalendo a um grau, de modo que os filhos dos primos legítimos de Ego (de primeiro
grau) serão seus primos em segundo grau e assim por diante. A contagem só é feita até a
terceira geração (ou terceiro grau); todos os outros são considerados “primos distantes”,
outra categoria nativa.
53
Klaas Woortmann (1990) observou também, entre sitiantes de Sergipe, a prática do
casamento trocado, isto é, a troca de irmãs ou o casamento de dois ou mais irmãos de
uma família com duas ou mais irmãs de outra. Os casamentos trocados também podem
ter sexos cruzados, como um casal de filhos que se casam com um casal de filhos de
outra família.
162 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Figura 32 – Representação de casamento entre primos carnais ou primos-irmãos.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 163
Nem todos os primos são carnais, pois não é regra que o casamento
seja sempre trocado, como aquele que deu origem à comunidade.
A partir de então, os casamentos teriam ocorrido no âmbito dessas duas
famílias, de irmãos baianos com irmãs paraibanas, que, com numerosa
prole, teriam casado esses primos carnais entre si. Até hoje a regra
endogâmica local exige que o casamento seja feito entre primos.
Sobre a obrigatoriedade da regra, não consta, ao menos
verbalmente, qualquer punição para os que não a cumpra. Entretanto,
o pesquisador atento percebe o deslocamento e a exclusão social que
sofrem aqueles que rompem a regra do matrimônio preferencial.
Pela prática da endogamia e de outras estratégias camponesas, os
Capuxu lograram minimizar os efeitos do parcelamento e permanecem
até hoje na condição de povo com uma identidade própria que se opõe
aos moradores de sítios em áreas vizinhas. De certa forma, o parentesco é
um idioma que fala da permanência na terra, além de ser um importante
mecanismo de produção de solidariedade e reciprocidade, fortalecendo
a coesão do grupo.
Dentre as 61 famílias formadas nos anos de minha pesquisa,
foram registrados apenas quatro casamentos para “fora do grupo”, ou
exógamos. Destes, um havia durado até a morte prematura da senhora,
que viera de fora morar junto ao seu marido e tivera dois filhos. Outros
dois casamentos resultaram em divórcios e/ou separações.54 Esses
acontecimentos serviram ainda mais para legitimar e fortalecer o
casamento preferencial do local, que prescreve a união entre primos.
Entre o povo Capuxu encontramos tanto o modelo de família
nuclear, formada por um casal e seus filhos, como o de família extensa,
que foi surgindo à medida que novos casais se formavam e não havia
moradias suficientes, de modo que estes se punham a morar junto aos
seus pais. Em geral essa situação é temporária; um dos pais dos noivos
sempre cede um “lugarzinho” para construir a nova casa do casal, em
geral perto de sua própria casa.
Os grupos de parentesco, no caso do povo Capuxu, sempre
compõem um grupo doméstico. Mais do que corresidentes, são
essas relações de parentesco que também determinam as relações
de vizinhança, outro aspecto típico do ser camponês. Já que muitas
das propriedades foram fragmentadas a partir da herança, os irmãos
São mais recorrentes, todavia, os casos em que mulheres Capuxu possuem filhos de
54
homens da cidade, não Capuxu, fora de relacionamentos formais, sem que esses filhos
sejam registrados pelos pais.
164 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
55
Margarida Maria Moura afirma que o casamento entre primos é uma forma de
exercer algum controle sobre a entrada de estranhos em determinada área rural
(MOURA,1988).
56
A migração, especialmente para São Paulo, também parece uma estratégia de
acomodação de todos os novos casais dentro das fronteiras do Sítio Santana-Queimadas.
Não fosse o celibato disseminado entre homens e a migração para a cidade grande,
sendo as famílias Capuxu tão numerosas em sua prole, não haveria terra para acomodar
a todos após o casamento, que passa a exigir uma nova casa e um novo roçado para
trabalhar. Nesse sentido, o casamento preferencial entre primos também é um modo de
economizar, já que por um só casamento consegue-se alocar em um espaço do Sítio os
filhos de duas famílias ao mesmo tempo.
166 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
57
A redução do número de filhos também parece uma estratégia de manutenção da
propriedade e de reprodução e manutenção social do grupo.
168 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
crianças crescem sabendo que seu destino está traçado nos limites do
Sítio Santana-Queimadas, lugar de onde, dentre seus primos, deverá
sair seu cônjuge. Para isso, relacionam-se desde cedo com seus cônjuges
em potencial. Não só o corpo, mas sua conduta e suas representações a
respeito de tudo são moldadas pelo discurso coletivo do grupo segundo
o qual “é mais seguro casar pra dentro”.
Na última década os Capuxu têm se debatido com essas questões
postas pelos outsiders de que “quem casa com primos tem filhos doentes”.
Essas reflexões não geraram ainda mudanças nos casamentos, mas
vislumbro desde já a possibilidade de que a endogamia se enfraqueça
a partir da expansão da doença e dos debates que se colocam para as
novas gerações de jovens Capuxu.
O próprio Lévi-Strauss (2003) discute a questão dos casamentos
consanguíneos, afirmando que o pensamento contemporâneo tem
repugnância em abandonar a ideia de que a proibição das relações entre
consanguíneos ou colaterais imediatos seja justificada por motivos de
eugenia.
Há alguns anos o povo Capuxu tem sido acometido por
uma espécie de “esclerose precoce”, assim definida por eles, e que
corresponderia nos termos médicos à esclerose múltipla. Não se sabe
exatamente quando isso teve início, mas sabe-se dela há pelo menos
quatro ou cinco gerações. A doença teria surgido acometendo os mais
velhos, que aos 40 ou 50 anos começavam a sofrer lapsos de memória,
a ponto de perderem-se no matagal, esquecendo o caminho de casa e
até mesmo o próprio nome, numa espécie de quadro demencial. Dentre
os sintomas dessa doença, eles ressaltam, ainda, o comportamento
“semelhante ao de um bebê”, inclusive em relação aos rituais de excreção,
e uma “tara sexual” que surpreendia a todos.
É recorrente, entre os acometidos pela esclerose, o uso de
palavrões obscenos, o despir-se em público, o olhar e as atitudes de
desejo sexual em relação aos outros. Eu mesma fui, algumas vezes,
orientada a manter-me distante de homens que se comportavam assim,
apresentando os sintomas dessa doença. Cada vez mais a esclerose
deixou de acometer os mais velhos, passando a surgir em jovens de 21
anos, que ficavam internados na capital sem melhoras evidentes, indo
até mesmo ao óbito.
Essa doença seria para os próprios Capuxu resultado da intensa
“mistura de sangue” que resulta de seus casamentos. No entanto, só
os jovens afirmam isso, ao passo que os idosos do local resistem às
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 169
58
Conforme demonstrou Margarida Maria Moura (2010) em interessante estudo sobre
o legado dos nomes na infância camponesa,bem como Ellen Woortmann (1995), sobre
compadres, padrinhos e nomes entre colonos do Sul e sitiantes do Nordeste.
59
Aracy Lopes da Silva (1986), num estudo dos nomes xavante, oferece-nos, contudo,
uma experiência diferente sobre o significado dos nomes entre eles e o seu peso
ontológico. A autora afirma que o fato de as crianças xavante não terem nome até muito
tarde não implica que os nomes sejam insignificantes, mas que “o nome é uma carga
demasiado pesada para o seu corpo frágil” (1986, p. 67).
174 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
60
O sistema onomástico Capuxu foi caracterizado desde a origem da comunidade pela
transmissão de nomes e sua repetição num curto estoque de possibilidades, conforme
revela a genealogia de parentesco do povo. Entretanto, nas últimas décadas esse sistema
passou por profundas transformações, modificando-se as regras de atribuição de nomes
e os sentidos dessas regras, conforme veremos adiante.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 175
61
Foi isso também que Harrison (1990) observou no estudo que realizou entre os
Manambu na Melanésia, onde se deve ter um enorme cuidado em escolher-se um nome
para a criança que não esteja já “em uso”: “todas as pessoas têm que ser completamente
individualizadas pelos seus nomes e não podem existir homônimos contemporâneos”
(p. 61).
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 177
62
Os sistemas onomásticos ameríndios endonímicos acentuam a conservação dos
nomes como uma espécie de patrimônio a ser transmitido entre gerações. Esses sistemas
valorizam tanto a transmissão “interna” de nomes que, mesmo quando se adquire o nome
fora do universo social, o objetivo é integrá-lo na transmissão intergeracional “dentro do
grupo” (cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2006 apud HUGH-JONES, 2006, p. 89).
178 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
63
Epônimo (aquele de quem a criança recebeu o nome) é diferente de nominador
(aquele que busca o nome para transmiti-lo à criança).
180 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
64
Faço aqui uma ressalva para o uso das nomenclaturas que elegi. Entendo que todo
nome é atribuído, seja ele transmitido (o que não deixa de ser uma atribuição) ou não.
Todavia, opto por distinguir, no rol de atribuições possíveis, aqueles que são atribuídos
por transmissão (ou herdados) daqueles que são atribuídos livremente, obedecendo a
outros critérios, como nomes de santos, de famosos etc.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 181
65
Os tecnônimos são conhecidos na antropologia, sobretudo, pelo uso inverso, em que
os parentes mais velhos são chamados pelos nomes dos mais jovens ou por referência a
eles (NEEDHAM, 1954).
182 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
escolhe o nome de alguém para colocá-lo num filho, esse nome muitas vezes tem a ver
com a admiração que se tem pela pessoa, pois os indígenas acreditam que o nome passa
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 183
a característica da pessoa para quem vai recebê-lo, ou que “a criança vai trazer aquele
dom da pessoa”.
184 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
67
Gilberto Freyre (2003) trata dos nomes tirados das folhinhas marianas sempre
presentes nas casas rurais. Segundo o autor, os nomes de santos impediam que o sétimo
filho de uma família virasse lobisomem, receio que acomete os moradores de algumas
áreas rurais.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 185
Maria Bernadete Menezes Costa e José Ferreira Neto, por sua vez,
designaram seus filhos da seguinte maneira:
Felicidade Ferreira Neta (único nome transmitido com
tecnônimo);
Wesley Costa Ferreira;
Wellington Costa Ferreira;
Yasmin Costa Ferreira (único nome não transmitido sem a
primeira letra W);
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 187
68
Opto pelo uso do termo “apelido” por ser uma categoria local, sempre que me referir
a codinomes ou designações.
190 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Outra expressão utilizada pelos Capuxu com menor frequência é “nome de casa”.
69
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 191
Pensar a importância do nome próprio e dos apelidos dentro e fora das fronteiras do
70
Sítio e o modo como eles mudam de sentido a depender do lugar onde é pronunciado
remete-nos à importância da territorialização para a questão dos nomes.
194 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
desígnio “Capuxu”, utilizado para todos que habitam aquele lugar. Também
os apelidos são permitidos, sem se tornarem agressivos ou ofensivos,
nas fronteiras do Sítio, lugar de intimidade onde são compartilhados a
identidade, o parentesco, os nomes próprios e os sobrenomes.
Assim é que, em se tratando dos Capuxu, a pessoa também é um
lugar. O lugar de um nome, talvez. Por essa razão, pode-se ouvir na cidade
“você vai nos Capuxu” ao se referirem às idas ao Sítio onde eles habitam.
Entendo que entre os Capuxu há modos de pertença ao espaço,
demarcados também por dinâmicas de nominação ou gestão onomástica,
dadas pela intimidade máxima entre aqueles que são da mesma área
de habitação ou lugar, valorizando os laços de proximidade além dos
identitários e, desse modo, intensificando a experiência pessoal. Isso
é tão verdadeiro que dois jovens cuja mãe Capuxu é falecida e o pai,
forasteiro, nunca morou na comunidade casaram-se com forasteiros,
saíram da comunidade, levaram consigo a aparência, o estereótipo e
os sobrenomes Capuxu mas não receberam nenhum apelido, embora
todos os jovens da mesma geração, com quem eles que cresceram juntos,
os tenham. A ausência de um apelido a circular nas fronteiras do Sítio
demonstra distanciamento social.
71
Assim, teríamos dois grupos de animais: os de pequeno porte e de dentro de casa,
cuja companhia constante seria das crianças (gatos, cachorros, galinhas, porcos) e os
196 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
ao afirmar que, na educação sexual das crianças da família caipira paulista, “meninos e
meninas aprendem o essencial com os animais” (2003, p. 49-50).
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 197
dizia, “mas vó, você disse que as galinhas eram minhas” e de fato
sua avó sempre dizia que todas as galinhas e pintinhos no terreiro
pertenciam a ela, cedendo aos pedidos insistentes da menina, que
queria ser dona daquela fazendinha.73 Depois de muito interceder
pela vida da galinha, predestinada a virar cozido no almoço de
domingo, a criança alegou: “Vó, a galinha é um ser humano!”.
Acostumada a ver na escola ou nos programas de televisão tantas
vidas serem defendidas com esse argumento, a criança não hesitou e
elevou a galinha à condição de humana. É assim que se relacionam
as crianças Capuxu com os bichos.
Se para as crianças Capuxu os animais são como seres humanos
(ou como pessoas), então eles são dignos de nomes também. Entendo
que a intenção aqui é, mais do que discutir nomes de bichos, aprender
daquilo que essa onomástica revela: das relações entre as crianças e eles,
das fronteiras na construção da pessoa e da produção do corpo dada
por meio dessa relação. Afinal, penso que há uma aprendizagem delas
através do corpo com os animais.
Qual a natureza dessa relação? De que modo a aprendizagem
corporal com os animais ajuda a produzir o corpo e a pessoa Capuxu?
Qual a importância dos nomes dos bichos para a construção da pessoa
Capuxu? As fronteiras entre a pessoa e a não pessoa passam pelos
nomes? Isso e tantas outras coisas podem nos ser reveladas pelo estudo
sistemático da onomástica dos animais.
Observo que boa parte da aprendizagem corporal das crianças
Capuxu se dá com os animais, de modo que a percepção do corpo da
pessoa ou de si mesmo pode se dar por meio da descoberta do corpo do
animal. O engatinhar, o morder-se, o lamber-se também são aprendidos.
Também o bebê deita imitando o cachorro, fecha os olhos apertados
imitando o gatinho e corre cambaleante tentando acompanhar as
galinhas. Dos animais, as crianças Capuxu aprendem ainda sobre o
73
É comum no universo camponês que desde cedo as crianças tenham suas próprias
fazendinhas, sendo donas de uma ninhada de pintinhos, uma cabra, um bezerrinho
ou qualquer outro filhote para dar início a sua própria criação, conforme observou
Godoi (2009): “Esta é constituída de um ou dois animais, de toda maneira de pelo
menos uma fêmea, para que a criança possa começar a constituir seu próprio
rebanho. As crianças, menino ou menina, desde muito pequenas são encorajadas a
cuidar dos animais. O ‘pai de família’ jamais se apropriará dos seus animais, somente
em caso de necessidade – pois as necessidades da família prevalecem sobre a dos
indivíduos – e, ainda nesses casos, essa apropriação toma a forma de empréstimo,
que o pai tem a obrigação moral de restituir” (p. 298).
198 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
É importante destacar que a expressão “estranhando” tanto pode ser utilizada para os
74
bebês que, ao se verem no colo ou nos braços de alguém não familiar, desatam em choro,
como para os animais que avançam ou acuam em direção ao estrangeiro.
200 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
75
Neste sentido, discordo da afirmação generalizada de Godoi (2009) de que “no sertão,
mesmo se os cães são considerados animais domésticos, eles não são companheiros
de brincadeira apreciados pelas crianças, como em outros lugares: este papel é dado
aos cabritos” (p. 297). Entre os Capuxu, o cachorro é um dos brinquedos favoritos das
crianças.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 201
regras, de significar o mundo e fazer uma leitura peculiar dele, que nossa sociedade,
especialmente urbana, despreza, é reconhecida em outros contextos sociais, como
nas sociedades indígenas e rurais do Brasil, conforme tem sido demonstrado em
várias pesquisas (COHN, 2002; TASSINARI, 2001; TASSINARI, 2007; SOUSA, 2004;
TASSINARI; COHN, 2009).
204 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
77
Segundo Mauss ([1969] 2003), a reciprocidade está baseada na dádiva, ato de dar
de forma generosa e gratuita, de receber e de retribuir, formando um processo de
solidariedade e fortalecendo a confiança, pois no ato de dar existe um simbolismo que
reforça valores morais, além dos valores econômicos envolvidos. É a reciprocidade que
fundamenta a vida social.
78
Em pesquisa de mestrado sobre a infância Capuxu, eu já havia observado a
importância das crianças para garantir a troca de alimentos na comunidade, sendo elas
as principais responsáveis por levar pratos preparados entre as casas de vizinhas, irmãs,
amigas ou comadres. Conforme a regra, a criança nunca volta de mãos vazias: leva um
prato e traz milho, feijão, frutas ou qualquer outro alimento ou prato com o qual a
206 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
caso, inverte-se o poder na relação, passando esse poder para aquele que
recebeu a dádiva, o qual assume a posição de decidir se retribui ou não
e quando retribuirá.
Coube a Caillé (1998) demonstrar em suas análises sobre a dádiva
que a obrigação de retribuir está presente concomitantemente com a
liberdade de retribuir ou não, retomando a ética da reciprocidade,
fundamental para estruturar relações de confiança.
É assim que analisamos o sistema de apadrinhamento Capuxu
como uma relação de reciprocidade que gera sociabilidade, fortalecendo
as relações de parentesco ou estabelecendo relações com pessoas de fora
da comunidade.
Mas o que está por trás deste sistema de apadrinhamento? Seriam
as crianças bens não materiais? Seria o apadrinhamento produtor de
relações de reciprocidade? De que maneiras se retribui a dádiva de ter
adquirido uma criança como afilhada? E de que maneira aquele que
“dá a criança” torna-se endividado com o que a “recebe”?80 O que isso
tem a ver com a produção da pessoa Capuxu? Uma descrição densa das
formas de apadrinhamento presentes na comunidade Capuxu, dos seus
rituais e das relações que elas estabelecem pode nos ajudar a elucidar
essas questões.
As terminologias “dar” e “receber” são nativas, sendo este o modo como comumente
80
81
Klaas Woortmann (1995) afirma que o Sítio é o “espaço de reciprocidade”, onde a
dádiva é a visita aos doentes ou favores prestados pelos vizinhos ou parentes. Conforme
o autor, o Sítio é ainda um “território de reciprocidade” por ser um território de
parentesco. Assim, ele se torna o lugar da troca.
É importante destacar que não há, no caso do apadrinhamento, uma transferência
82
de responsabilidade para com as crianças de pais para padrinhos – como ocorre com
a circulação de crianças –, mas o compartilhamento dessa responsabilidade, ficando o
econômico sempre a cargo dos pais. Nesses casos, interessa menos a questão econômica
que a responsabilidade e o caráter atribuídos à educação das crianças. Afinal, como
demonstrou Godoi (2009), “a sociedade camponesa é mais regida pela honra do que
pelo cálculo econômico”.
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 209
e aos padrinhos santos cabe intervir junto a Deus para socorrê-las nos
momentos de sufoco.
Há seis tipos de apadrinhamento religiosos envolvendo crianças
entre os Capuxu, o que demonstra a complexidade do sistema de
apadrinhamento.83 O emaranhamento de padrinhos e pedidos de
bênção84 no cotidiano do Sítio me deixava absolutamente confusa
quanto às relações de apadrinhamento, razão pela qual construí a
seguinte tipologia: padrinho/madrinha de apresentação; padrinho/
madrinha de vela; padrinho e madrinha de batismo (ou pia); padrinho/
madrinha santo; padrinho/madrinha de fogueira; padrinho/madrinha
de crisma.
A principal forma de apadrinhamento entre o povo Capuxu se dá
pelos batismos. Este é o apadrinhamento mais legítimo de todos. Ele é
formalizado pela igreja católica, que confere até mesmo um certificado
aos padrinhos. Entre o povo Capuxu, a maioria dos batizados ocorre na
igreja de Sant’Ana, no Sítio Santana, sendo raros os que são realizados
na igreja da cidade de Santa Terezinha. Em Santana, o pároco local ou
o padre do município, dependendo da disponibilidade dele, celebra o
batismo.
Esse ritual católico, religião da maioria dos moradores de
Santana, envolve três tipos de padrinhos, além dos principais, que são
os chamados “padrinhos de batismo” ou “de pia” (a expressão vem de
“pia batismal”), sempre um casal. A igreja determina que o homem e
a mulher a se tornarem padrinhos sejam casados de fato e de direito,
pela igreja, ou que não tenham nenhum tipo de relacionamento um
com o outro, não sendo permitido que se tornem padrinhos casais de
83
A importância do apadrinhamento no sertão pode ser verificada pela quantidade
de possibilidades de apadrinhamento que se tem. Além disso, sabemos que há várias
formas de apadrinhamentos políticos – fazendeiros que ajudam seus vaqueiros e
moradores, políticos que protegem coronéis e cabos eleitorais, senhoras esposas de
fazendeiros, coronéis e políticos que se relacionam ajudando as esposas de vaqueiros,
moradores e seus filhos, com doações de roupas velhas de seus próprios filhos, material
escolar, remédios ou levando para a cidade, hospitais e maternidade.
84
Pires (2011) observou com perspicácia no semiárido nordestino o pedir a bênção
como uma prática para toda a vida e voltada às pessoas mais velhas, pais e padrinhos.
Numa tentativa de associar o pedir a bênção e a religiosidade, a autora conclui: “Pedir
a bênção é algo que as pessoas fazem sem se dar conta. É parte do mundo como ele
é, parte da vida ordinária. Para ser gente propriamente, como fomos ensinados desde
criança pelas nossas famílias, é preciso pedir a bênção. Parece que certas práticas
religiosas foram incorporadas ao modo de ser cotidiano dos catingueirenses” (p. 157).
Penso que, entre os Capuxu, para ser pessoa propriamente é preciso pedir a bênção.
210 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
sobre a época de batizar a criança: é que boa parte dos padrinhos mora
fora da comunidade e às vezes até do estado, considerando que muitos
jovens Capuxu foram morar em São Paulo e, hoje, bem-sucedidos, são
escolhidos como padrinhos de muitas crianças. Nesse caso, o batismo
fica condicionado aos períodos festivos, de fim de ano (Natal e Réveillon)
ou dos meses de junho e julho (São João, São Pedro e Sant’Ana), quando
os Capuxu que moram fora tiram férias e podem vir visitar e batizar as
crianças.
Há ainda o chamado “padrinho (ou madrinha) de vela”. Este é o
responsável por segurar a vela, durante a celebração do batismo, no altar
ao lado dos pais da criança e dos chamados “padrinhos de batismo”. É
importante informar que os padrinhos de batismo são os únicos com
certificado instituído pela igreja, ficando um documento arquivado na
paróquia. Para isso, é necessário que os padrinhos passem por um curso
preparatório, que pode ser realizado em qualquer paróquia do país, e
apresentem o documento de certificação do curso no dia do batismo
para que fique arquivado na igreja onde ocorre o ritual.
O ritual do batismo na igreja é caracterizado por uma série
de símbolos: a criança usa vestes bancas, que simbolizam a pureza; é
batizada com água, que a purifica do pecado; é também ungida com
óleo, tendo o batismo dois rituais de unção: com a infusão na água e com
o óleo. Há, ainda, a vela acesa (a ser segurada pelo padrinho/madrinha
de vela), que servirá de guia, iluminando pais e padrinhos a ajudarem a
criança a traçar um caminho para Deus.87
Poderíamos dizer, grosso modo, que os padrinhos de apresentação
e de vela são assessórios durante o batismo, uma espécie de apa-
drinhamento complementar. Eles flutuam em torno dos padrinhos
principais, que são os de batismo ou de pia. Em todo caso, eles cumprem
uma importante função social, já que são considerados padrinhos para
o resto da vida e que, findo o ritual, a depender da distância entre a
moradia da criança e de seus padrinhos de batismo, uma relação mais
próxima pode se estabelecer entre ela e os padrinhos de apresentação ou
de vela, dada a convivência cotidiana.
Entre o povo Capuxu, de modo geral, é comum que se peça a bênção
aos padrinhos, mesmo quando se trata de adultos ou idosos, se ainda têm
padrinhos vivos. Aliás, mesmo após a morte dos padrinhos, os idosos se
de uma criança cristã – que nesse momento deixa de ser pagã –, mas também o começo
de um adulto, de um pai de família ou de uma dona de casa.
212 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
algum momento com a história de vida do santo a que foi dada como
afilhado, fazendo com que, por algum detalhe em comum, seus destinos
pareçam iguais. Aos padrinhos santos cabe a proteção de seus afilhados
e a intervenção direta junto a Deus nos momentos de perigo ou suplício
pelos quais estes venham a passar. Os afilhados, por sua vez, recorrem
sempre aos seus padrinhos santos como advogados perante Deus.
Passemos a uma análise dos chamados “padrinhos de fogueira”,
cujo ritual, praticado fora da igreja católica, como ocorre em relação aos
padrinhos santos, foi classificado aqui como religioso por dizer respeito
a santos como São João e São Pedro e por terem seus rituais realizados
nas noites em que se comemoram esses santos.
Figura 33 – Crianças brincam em torno das fogueiras e com suas brasas nas noites de
São João e São Pedro.
Esse tipo de apadrinhamento ocorre, por assim dizer, no final da
infância ou no início da adolescência, mais por iniciativa das crianças
do que dos seus pais, por haver uma forma lúdica no ritual, que se
manifesta no meio de uma festa, na noite ou na madrugada de São João
e de São Pedro, em volta da fogueira acesa nos terreiros das casas. Dessa
forma, o ritual é envolto de diversão e é de desejo das próprias crianças.
Há também um fator importante a ser mencionado: esta é a única
ocasião em que é dado à criança o direito de escolher seu padrinho ou
214 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
madrinha, que pode ser alguém com idade igual ou pouco maior que a
sua, de modo que as crianças e adolescentes terminam por reforçar os
laços de amizade por meio do batismo de fogueira.
Também por isso percebemos que o mais comum é uma divisão
dos gêneros: as meninas optam por terem madrinhas de fogueira e os
meninos optam por terem padrinhos de fogueira. Ambos procedem
à escolha pelo critério do nível de amizade. Assim, crianças maiores,
a partir de 9 ou 10 anos de idade, já são envolvidas nesse ritual,
escolhendo seus padrinhos e participando do ritual sob a observação
divertida dos adultos nas noites de festa. São também os adultos que
corrigem quaisquer deslizes durante o rito, em que se haja omissão ou
equívoco de alguma palavra ou gesto, afinal, no passado, também os
adultos tiveram seus batismos de fogueira.
Vejamos a descrição do ritual. Durante a noite de São João ou
São Pedro, em que se comemora o dia desses santos, após escolher seu
padrinho de fogueira e fazer o convite, tendo aceitado o padrinho, os
dois devem pôr-se de pé, cada um de um lado da fogueira, de frente
um para o outro. É importante, pois, que as chamas da fogueira (sua
labareda) esteja baixa, do contrário os dois podem se machucar, já que,
em seguida, dão-se as mãos cruzadas e esticadas por cima da fogueira
(usam-se pequenas varinhas retiradas da mata nos casos em que a
fogueira seja grande em diâmetro, impossibilitando que as mãos se
alcancem, ou nos casos em que a labareda esteja alta demais, podendo
queimar as crianças).
Uma vez ligados por cima da fogueira, sejam por suas próprias
mãos ou pelas varinhas que se tocam, os dois, padrinho e afilhado,
passam a girar em volta da fogueira na mesma direção, em passos lentos,
e o pretendente a afilhado deverá pronunciar os seguintes versos:
pernambucana, que “uma das comemorações mais respeitadas pelo grupo é a festa
de São João, também denominada ‘festa do milho’, porque marca o início da colheita
216 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
do milho, e para a qual se preparam comidas com base nesse vegetal. Nesta festa, as
relações entre os membros do grupo são solidificadas quando os habitantes estabelecem
relações de compadrio denominadas ‘de brincadeira’. As pessoas mais próximas tornam-
se compadres de São João apenas nesse dia, efetivando a relação frente à fogueira que se
acende como parte das celebrações. Apesar de não serem chamados de compadres na
vida diária, nesta ocasião manifestam-se e tornam-se explícitas as relações de afinidade
já existente entre as pessoas” (p. 48).
89
Heredia (1988) observou que “os laços de vizinhança reforçam-se com laços de
parentesco e muitas vezes com relações de compadrio. Neste último caso, os laços
de vizinhança e de parentesco são ainda fortalecidos. O compadrio adquire grande
importância devido à grande quantidade de filhos em cada família, razão pela qual,
frequentemente, pode-se ser compadre da mesma pessoa várias vezes. Aqui, como em
outras áreas camponesas, é hábito dar um afilhado para receber outro em troca” (p. 47).
Capítulo 4 ■ Parentesco, onomástica e sistema de apadrinhamento 217
mas, por outro lado, ela também gera o compadrio nos casos em que os
casamentos não se efetivaram.
Essa recorrência da escolha de padrinhos que já são parentes
funciona como uma espécie de estratégia que visa reforçar os laços de
solidariedade e coesão da comunidade, além de gerar reciprocidade.
Por isso, reforço a tese de que os sistemas de parentesco, nominação e
apadrinhamento são importantes mecanismos de produção da pessoa
e de solidariedade e reciprocidade social, cimentando a coesão da
comunidade, por meio do reforço dos laços internos e, esporadicamente,
da construção e do reforço de laços com os outsiders.
Interessante é que essas formas de apadrinhamento garantem, de
certa forma, uma espécie de mobilidade, permitindo que as crianças
transitem entre casas e famílias, obtendo uma segunda casa e uma
família à parte, e que possam circular pela vida social Capuxu e pelo
sobrenatural com alguma proteção (dos padrinhos santos). Ora, que
elementos estão por trás dessa rede de conexões entre famílias, cuja
matéria-prima é a própria criança?
É importante dizer que as crianças Capuxu são também as
responsáveis por levarem recados e informações às casas da comunidade,
já que elas têm acesso a todas as casas do local. As crianças circulam com
facilidade e, com elas, circulam as informações, os recados, as notícias dos
acontecimentos mais recentes. Além disso, elas são também as responsáveis
por realizar trocas de comida, pratos preparados pelas vizinhas ou comadres
e enviados de umas às outras ou alimentos de modo geral, frutas etc. com
que se queira presentear alguém da comunidade. São sempre as crianças
que tecem essas redes de trocas, porque são mais ágeis e rápidas, já que
insistem em “andar sempre correndo”, seja a pé, de bicicleta ou até mesmo
apostando corridas atléticas com seu cãozinho vira-lata.
Ademais, o sistema de apadrinhamento reforça os laços da
comunidade Capuxu. Cria redes de parentesco onde não havia,
fortalece as amizades entre compadres, a solidariedade entre afilhados e
filhos e garante que a criança esteja amparada socialmente, em qualquer
situação. Afinal, é dever dos padrinhos assumir os afilhados como filhos
em caso de tragédia e morte dos pais.
Outro aspecto deveras importante é que todas as formas de
apadrinhamento passam pelo corpo. O corpo está no centro de todos
os rituais de apadrinhamento: naquele em que a criança é apresentada
nos braços do padrinho de apresentação; naquele em que é ungida,
benzida pelo sinal da cruz feito na testa, e tem parte do corpo imerso
na água pelos padrinhos de pia ou de batismo; naquele em que tem seu
218 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
91
Schildkrout (MÜLLER; HASSEN, 2009), estudando as crianças hausa, concluiu que
elas não são meros aprendizes de como ser adultos, visto que a diferença drástica de
gêneros entre adultos não aparece entre as crianças. Christina Toren (1993), estudando
as crianças de Fiji, mostrou como não há um continuum entre a experiência da criança
e a do adulto que prove que aquela é um mero aprendiz. Pelo contrário, há uma grande
contribuição da criança na constituição de significados, na renovação da cultura e na
222 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Pensar a produção da pessoa Capuxu por meio da fabricação dos
corpos na infância nos remete a um conhecimento geral da infância tal
qual experimentada na comunidade. Isso nos ajudará a compreender
o lugar da criança nessa cultura, os principais aspectos da infância
camponesa, os usos do corpo como meio de expressão maior para as
crianças pequenas e os modos de vesti-lo ou (des)cobri-lo. Através
de uma compreensão geral da infância Capuxu, será possível então
compreender os mecanismos pelos quais se produz o corpo da criança
com fins de constituir a pessoa Capuxu, estando essa construção da
pessoa associada a um ethos e a uma identidade.
Para dar conta dessa infância, eu retomarei alguns aspectos que
são frutos de minha pesquisa de mestrado (SOUSA, 2004), realizada
com o povo Capuxu entre os anos de 2002 e 2004, que objetivava verificar
a vivência da ludicidade pelas crianças Capuxu que desenvolviam
trabalhos agrícolas no roçado. No final da pesquisa, cheguei a uma
tríade que revelava que a experiência com a ludicidade, o trabalho e a
aprendizagem ocorria ao mesmo tempo e todas elas tinham como fio
condutor a socialização das crianças.
226 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
92
Esses resultados encontram-se em Sousa (2004). Alguns dos subitens deste capítulo
são novas versões dos resultados apresentados na minha dissertação de mestrado.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 227
definiu o ethos camponês como “uma articulação entre meios de vida socialmente
determinados e uma identidade culturalmente construída” (p. 301).
228 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
O primeiro dos aspectos para o qual volto a atenção é a aproxi-
mação das crianças de ambos os sexos com as mulheres da comunidade.94
A infância Capuxu traz em si a marca efeminada da comunidade,
uma vez que a relação entre crianças e mulheres está na base da infância.
Durante a infância, as crianças Capuxu estão na maior parte do tempo
cercadas pelas mulheres da comunidade: irmãs mais velhas,95 mães, tias,
avós, madrinhas etc. O lugar das crianças é o lugar ocupado pelas mulheres.
As tarefas das crianças são determinadas pelas mulheres. São elas
que definem quem dos filhos buscará o leite, quem levará a água ao
roçado, quem prenderá os bichos e quem colocará água para a lavagem
da roupa. Cabe também às mulheres definir os horários de acordar,
adormecer, alimentar-se e banhar-se.
No passeio das crianças são sempre as mulheres que lhes fazem
companhia. À casa de um amigo distante, à igreja, ao rio – por onde
94
Margaret Mead (2003), pesquisando a relação do gênero no comportamento social
dos indivíduos em três povos nativos da Nova Guiné, observou entre os Arapesh a
convivência acentuada das crianças de ambos os sexos com suas mães. Essa convivência
era explicada como tendo por intuito moldar e condicionar cultural e socialmente a
criança Arapesh a ser uma pessoa dócil, tranquila, maternal etc.
Pires (2011) observou também em Catingueira que as irmãs mais velhas usavam
95
os irmãozinhos bebês como brinquedo, eram responsáveis por passear pela cidade
mostrando-os, bem como eram as principais responsáveis por pajeá-los.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 229
Nunes (2009) observa que a maioria dos estudos sobre socialização ignorava
96
que cuidar das crianças não era tarefa somente para os pais. As fontes etnográficas
evidenciavam uma enorme participação de crianças maiores nos cuidados para com as
menores (p. 55).
230 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
97
Pires (2011) relata uma experiência similar em Catingueira. Conforme a autora,
“quando uma pessoa está provisoriamente sozinha – no caso de viagens dos membros da
casa – ou quando mora só (caso raríssimo), ela vai sempre contar com a companhia de
uma criança que vem à noite simplesmente para dormir em sua casa” (p. 101). Também
a autora foi muitas vezes agraciada com uma companhia infantil para que não dormisse
sozinha no locus da pesquisa.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 231
As crianças Capuxu, frequentemente descalças, percorrem
os espaços do Sítio a qualquer horário e em qualquer tempo estival
ou hibernal, no sol ou na chuva. Seminuas permanecem desde cedo,
ao meio-dia, à tardinha e até quase meia-noite, a correrem em suas
brincadeiras.
Assim como se verifica com os espaços, os horários da infância
campestre são distintos dos horários na cidade. Na cidade, especialmente
nos grandes centros urbanos, a violência torna todas as condições de
liberdade adversas à vivência plena da infância, uma vez que são as
condições que determinam essa vivência ou não. As crianças não podem
correr livres ou montar os seus brinquedos na estrada. Não percorrem,
sozinhas ou apenas em companhia de outras crianças, todos os espaços
do lugar onde vivem. Não podem brincar até a entrada de um novo dia.
Essa segurança da ludicidade e da infância liberta das crianças
camponesas é fortalecida ainda mais pelo sistema endogâmico da
comunidade. Por meio desse sistema constituem todos uma única
família. Assim, não há nada que preocupe os pais se seus filhos
percorrem sozinhos os espaços do Sítio, onde todos são mais do que
conhecidos ou amigos – são parentes.
234 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
98
Maurice Merleau-Ponty (1999), ao tratar do corpo como expressão e fala, afirma:
“Sempre observaram que o gesto ou a fala transfiguravam o corpo, mas contentavam-se
em dizer que eles desenvolviam ou manifestavam uma outra potência, pensamento ou
alma. Não se via que, para poder exprimi-lo, em última análise o corpo precisa tornar-se
o pensamento ou a intenção que ele nos significa. É ele que mostra, ele que fala (p. 267).
99
Nunes (2009), argumentando em favor das imagens nas pesquisas sobre crianças,
afirma que “estas são mais gestos do que fala” (p. 20).
100
Segue a regra infantil para nomear os dedos da mão: dedo mindinho, seu vizinho,
maior de todos, fura-bolo e cata-piolho.
236 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
das amas negras na sua constituição. Cabe a esse autor a descrição minuciosa desse
contato,. que resultou, dentre outras coisas, no reduplicar de sílabas e no uso recorrente
do diminutivo na linguagem das crianças dos tempos de engenho.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 239
que se vê em Daniela (5) ao falar com sua irmã Denise (3): “minha
filhinha novinha”. O diminutivo, tão presente na fala mansa e arrastada
do sotaque Capuxu, nos encanta a todos. Pois não se arrasta o falar das
crianças tal qual o dos adultos? No seu sotaque, no diminuto vocabulário
de palavras minguadas, na diminuição de palavras, na reduplicação de
sílabas e na falta dos erres, as crianças Capuxu estabelecem relações
com as demais e com os adultos, expressando seus sentimentos e
pensamentos, revelando o que há no cerne da meninice camponesa.
Tanto dengo só é mesmo interrompido em casos extremos
de brigas e discussões. Nesses momentos vem à tona uma parte do
vocabulário Capuxu que não é tão corriqueira, mas, mais do que
incomum, é proibida.
Refiro-me aos insultos e palavrões. A celeuma é o momento em
que o xingar das crianças eclode numa série de palavrões conhecidos
de todos na comunidade, mas permitidos somente aos adultos. Nem
preciso dizer que são usados pelos adultos na frente das crianças, sendo,
assim, acrescentados ao vocabulário infantil.
Os palavrões menos vulgares associam as crianças aos bichos.103
São os mais arrogantes, por compará-las a animais tidos comumente
como idiotas e irracionais, como “burro”, “jumento”, “cavalo” e “besta”.
Com entonação pesada e pronúncia acentuada, as crianças xingam-se
mutuamente em meio a um desentendimento. No entanto, não estão os
insultos necessariamente associados ao desentendimento. Uma pergunta
ou um equívoco cometido por uma das crianças durante uma brincadeira
pode fazer cair sobre ela uma enxurrada de palavrões ou insultos.
Esses insultos, quando não se associam aos animais, fazem-
no em relação à discriminada profissão dos “profissionais do sexo”,
especialmente entre as meninas, que deslancham numa torrente de
classificações para as demais crianças com ofensas cujo sentido nem
elas mesmas entendem. Nesse caso, porém, o que de fato importa não é
o sentido que têm as palavras – como “puta”, “rapariga”, “quenga” –, mas
a função de xingar e ofender que lhes cabe. Isso as crianças entendem
perfeitamente.
Figura 37 – Crianças Capuxu exibem suas melhores roupinhas durante a noite da Festa
de Sant’Ana, em espaços externos à igreja, ao longo da missa. Na madrugada, já cansadas
das brincadeiras, adormecem nos espaços arranjados para elas na casa paroquial.
Tais situações, contudo, são raras. Lugar-comum na infância
Capuxu é a calcinha de algodão, que cobre a nudez das meninas
pequenas durante o dia e a noite, e os shorts de malha, que protegem o
sexo dos meninos.
Há que se falar, ainda, dos modos de se vestir. Afinal, o vestir-
se requer também uma destreza corporal que as crianças demoram
a adquirir. Quando bebês, são cuidadosamente vestidas pelos mais
velhos, pais ou irmãos. Quando engatinham ou sentam, já reconhecem
suas peças de roupas e tentam vesti-las, enfiando-as pela cabecinha ou
pelos pés, mas sem obter sucesso.
Quando já andam e possuem a coordenação motora mini-
mamente treinada, as crianças insistem em vestir-se sozinhas, com
o intuito de garantir e demonstrar sua autonomia. Em face disso, é
comum aparecerem com calcinhas ou cuecas ao avesso, camisetas,
saias ou shortinhos tortos no corpo ou vestidos ao contrário, nas vezes
raras em que os usam. Em geral, corre sempre um adulto, ao perceber
o acidente, para socorrer a criança, mas não sem antes rir de suas
tentativas de vestir-se sozinha. Com efeito, são as irmãs quem vestem
as crianças e demonstram grande zelo e apreço ao fazê-lo. Afinal, são
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 243
importante é que seus pés estarão protegidos da terra quente, ainda que
sobre das sandálias um dedo mindinho.
104
Antônio Candido (2003), ao estudar a vida familiar do caipira paulista, destaca a
companhia constante das crianças junto aos seus pais com fins de aprendizagem: “Desde
pequenos os filhos acompanham os pais, familiarizando-se de maneira informal com
a experiência destes: técnicas agrícolas e artesanais, trato dos animais, conhecimentos
empíricos de vária espécie, tradições, contos, código moral” (p. 249).
105
Como demonstraram Woortmann e Woortmann (1997), o trabalho camponês
é entendido como processo, incluindo as ideias que o antecedem e o constroem,
transcendendo aquelas abordagens que, a partir da lógica econômica, partem do
trabalho realizado.
Paulilo (1987) dedicou-se a estas duas categorias analíticas por meio das quais se
106
Conforme Maya (2005), o trabalho infantil também tem como objetivo instruir a
107
é encarada como trabalho e é esse trabalho familiar que ocupa grande espaço nessa
área. Desde bem pequenas realizam as tarefas ao lado dos mais velhos: ajudam suas
mães nas atividades domésticas e seus pais em serviços variados. Além de ser visto
como fundamental, o trabalho é valorizado e internalizado dentro da dimensão do
querer, do gostar...” (p. 77).
248 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Miranda (2009, p. 12) analisa o lugar das crianças na construção étnica do povo
110
111
Conforme Seeger et al. (1979), a produção física de indivíduos remete a produção
social da pessoa. Entretanto, o corpo não é o único instrumento pelo qual a sociedade
atua sobre os indivíduos; outros instrumentos contribuem para construção da pessoa,
entre eles os complexos de nominação e as teorias sobre a alma.
O antropólogo Maurice Leenhardt descreveu um encontro com um mestre do
112
discurso ritual na Nova Caledônia que demonstrou o conhecimento de seu povo sobre
a noção de espírito; apesar disso, até então ele ignorava a existência do corpo (LIMA,
2002). Essa perspectiva é surpreendente para “nós”, já que a posição do mestre traz à
tona a dicotomia tão presente e naturalizada no mundo ocidental, base do discurso
cristão, que consiste da divisão entre corpo e alma.
254 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Logo, a maioria das almas que aparecem são aquelas que precisam,
dizem os adultos, “pedir rezas”.113 Se conseguirem a quantidade de
rezas suficientes para serem perdoadas de seus pecados, pode ser que
consigam entrar no céu, objetivo maior de todo cristão. Exatamente por
isso é que as almas parecem optar por “pedir reza” principalmente às
crianças, já que elas têm crédito com Deus por serem consideradas mais
puras e ingênuas do que os adultos.
As noites do Sítio Santana-Queimadas são, pois, repletas de
gritos estridentes ou de um silêncio ensurdecedor, nos casos em que as
crianças se escondem embaixo de lençóis em suas redes, transpirando
de tanto calor, mas sem nunca os retirar para dar uma espiadinha do
lado de fora. Embaixo dos lençóis elas se sentem seguras.
As almas aparecem sempre de roupa branca, geralmente um
vestido, se for mulher, e calça e camisa branca, se for homem. Têm
sempre a aparência exata de quando morreram: cabelos branquinhos e
ralos, rostos enrugados, mãos e pés envelhecidos. Elas aparecem sérias,
nunca sorridentes ou serenas, e se aproximam lentamente. Às vezes vêm
com velas acesas nas mãos, às vezes somente caminhando lentamente
em direção à criança.
Não posso deixar de mencionar que, de todas as crianças com
quem conversei, nenhuma delas chegou a ouvir o pedido de qualquer
alma para que rezasse. “É que não dá tempo”, explicou-me o pequeno
Capuxu. “Nós grita tanto que elas vão-se embora”. É assim que nunca
nenhuma criança pôde ter certeza da real intenção das almas que lhes
aparecem pelos cantos da casa, mas dizem-lhes os adultos, para acalmá-
las, que “era só para pedir rezas”.
Por via das dúvidas, passam as crianças a orações intermináveis
antes de dormir. Com ou sem terços em suas mãozinhas, uma avalanche
de ave-marias e pai-nossos é proferida, sempre com bastante fé,
joelhinhos aos pés da cama, dedinhos das mãos cruzados e olhos bem
fechados, tudo em nome da alma de finado fulano ou finada fulana,114
na esperança de que as almas não voltem mais para fazer pedidos.
Os adultos em geral dizem que as almas que aparecem visam pedir rezas. Já as crianças
113
se dividem: as menores dizem que elas vêm “só pra assombrar a gente”, e as maiores
reproduzem aquilo que dizem e lhes ensinaram os adultos – “é por causa das rezas”.
114
Utilizar o termo “finado” ou “finada” antes do nome do morto é uma forma de
respeito que os camponeses prezam muito. Ademais, para as crianças, esse tratamento,
por demonstrar respeito à alma do defunto, pode mantê-lo longe de visitas noturnas e
pedidos de rezas. É também comum pronunciar, após “finado fulano”, a expressão “Deus
o tenha em bom lugar”.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 257
115
Roberto DaMatta (1997) fez uma interessante análise da morte e seus fenômenos,
defendendo que as aparições dos mortos não se trata apenas de uma questão de
sobrevivência da alma, mas que revelam a cosmovisão de uma sociedade relacional, isto
é, que acredita mais nas relações sociais do que nos indivíduos que lhes dão forma e vida.
O autor afirma que “vivemos em um universo onde os vivos têm relações permanentes
com os mortos e as almas voltam sistematicamente para pedir e ajudar, para dar lições
de humildade cristã aos vivos, mostrando sua assustadora realidade” (p. 146).
258 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Catingueira os sonhos de aviso. Segundo a autora, “as botijas de ouro são um tema muito
interessante de pesquisa e podem render contribuições para o estudo da economia, do
cangaço, da religião, do parentesco e da família na região do semiárido nordestino” (p. 111).
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 259
Se a casa foi abandonada, não terá portas, janelas nem, em geral,
mobília. São o lugar perfeito para as almas, que já não precisam mesmo
de mobília. Para as crianças, depois dos cemitérios, casas fechadas ou
abandonadas são os lugares preferidos para morarem as almas.
O fato é que as crianças evitam, como podem, as casas
malassombradas. Apesar de sua insistência em transformar todos os
espaços em lugar para brincadeiras e do potencial que uma casa desse
tipo teria, especialmente para as meninas brincarem de rancho ou de
casinha, ninguém aventa essa possibilidade. Está fora de cogitação querer
frequentar casas abandonadas e fechadas ou estabelecer brincadeiras de
esconde-esconde, toca ou de qualquer tipo nos seus arredores ou no seu
interior, particularmente se já passa do entardecer.
Além das casas, as estradas do Sítio à noite também são lugares
profícuos para o aparecimento de almas ou visagens. As crianças não
costumam, por isso, caminhar pelas estradas à noite; se o fazem, buscam
sempre ir na companhia de alguém, a largos passos, olhando para trás
para se certificar de que nenhuma alma as persegue.
262 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
118
De acordo com Leach, a redundância é uma das características do mito. Sobre
isso, arguí: “Por força da redundância, o crente pode sentir que, mesmo quando os
pormenores variam, cada versão alternativa de um mito confirma a sua compreensão e
reforça o significado essencial de todas as outras versões” (DAMATTA, 1983, p. 58).
119
Conforme demonstraram Codonho (2007) entre as crianças Galibi-Marworno,
Florestan Fernandes (2004) sobre as trocinhas do Bom Retiro e Goulart de Faria (1999)
sobre a importância dos parques, defendida por Mário de Andrade para as crianças
perpetuarem esse tipo de repertório.
Conforme Freyre (2003, p. 230), as histórias de mal-assombro de origem portuguesa
120
Leach, estudando a estrutura do mito, afirma que “todas as sociedades humanas têm
121
mitos nesse sentido e, normalmente, os mitos aos quais se dá maior importância são
aqueles que têm menos possibilidade de realização” (DAMATTA, 1983, p. 57).
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 265
pode ser descrita por qualquer criança: “barba bem grande e rabo, olhos
grandes e verdes, orelha grande, boca pra dentro, dente pra fora”.
O velho do Buguerego é mesmo o terror das crianças Capuxu.
A sua presença é sempre noturna, e o indesejado visitante, tal qual o
papa-figo, traz consigo a sacola na qual levará as crianças escolhidas,
uma a cada vez.
Evitar o ritual antropofágico do velho do Buguerego, que se
alimenta exclusivamente de crianças, é uma tarefa que exige um bom
comportamento, conforme as normas paternas acima de tudo. A magia
dessas figuras folclóricas sempre causa nas crianças os efeitos que os
conselhos e pedidos paternos já não conseguem alcançar: impeli-
las ao bom comportamento e à obediência geral. Vale ressaltar as
modificações que essas versões sofrem de lugar para lugar, que são de
caráter superficial, permanecendo a essência da lenda.
Outra crença conhecida entre as crianças é a de que no sertão “não
se pode chamar palavrão com as coisas da natureza, porque por tudo Deus
castiga. A seca já é castigo de Deus. Por isso, o sertanejo tem que rezar
muito para Deus se apiedar e mandar chuva, porque Deus fica furioso
com as maldades dos homens e não manda chuva”. Assim me contou um
menino Capuxu. Talvez por essa razão haja tantas missas na igreja de
Sant’Ana, tantos grupos de oração na casa paroquial, tantas novenas no
mês de maio, tantas fogueiras para São João, Santo Antônio e São Pedro.
Mas nem só de punições e pavores vivem as crianças Capuxu, pois
nem só de papa-figos e velhos do Buguerego se fala no Sítio Santana;
fala-se também em Papai Noel, sempre que finda o ano.
A escola tem uma contribuição fundamental para a crença das
crianças nesse último personagem. A cada fim de ano, as crianças
expõem em redações e bilhetinhos – a pedido das professoras – os
presentes que desejam ganhar do Papai Noel. As professoras recebem de
seus pais a quantia referente aos pedidos dos filhos e viajam até a cidade
para comprá-los em segredo, guardando-os na escola para o último dia
de aula, pouco antes do Natal.
Com a árvore de Natal armada e a ornamentação pronta, é na
escola que os presentes aparecem na manhã do último dia de aula,
tendo sido deixados lá na noite anterior pelo “bom velhinho”. Tamanha
surpresa enche de ânimo o rostinho das crianças, que defendem com
veemência a existência do Papai Noel caso algum cético ouse questioná-
la. Tão forte é a crença das crianças que temo mesmo que esses escritos
caiam nas mãos de uma dessas inteligentes criaturinhas, destruindo os
sonhos vividos a cada Natal.
266 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
122
Estudando a estrutura do mito, Leach aponta o seu aspecto binário como
fundamento, uma vez que as oposições binárias são intrínsecas ao próprio pensamento
humano. Por meio da equação “p é o que não-p não é”, o autor explica como o mito
está constantemente estabelecendo categorias opostas do tipo “morte/vida”, “bem/mal”,
“certo/errado”, “natural/sobrenatural” etc. (DAMATTA, 1983, p. 57).
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 267
123
Também Guimarães Rosa, no romance Miguilim, conta: “eles guardavam os
umbiguinhos secos de todos os meninos, os dos irmãozinhos, das irmãs, o de Miguilim
também – rato nenhum não pudesse roer, caso roendo o menino então crescia para ser
só ladrão” (GUIMARÃES ROSA, 2011, p. 48).
Ainda em Miguilim (GUIMARÃES ROSA, 2011, p. 60) há o registro dessa crença:
124
“entre chuva e outra, o arco-da-velha aparecia bonito, bebedor; quem atravessasse debaixo
dele – fú! – menino virava menina, menina virava menino: será que depois desvirava?”.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 269
125
Conforme Margarida Maria Moura (1988), “a religião do camponês baseia-se na
dívida para com a divindade de forma tão direta e intensa que a desconfiança de que
o sobrenatural desconhece um pedido feito a ele pode levar o crente a castigá-lo de
alguma forma. No meio rural brasileiro são conhecidos casos de imagens de santos
castigadas, sofrendo sanções pela omissão de algo solicitado” (p. 21).
272 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Julie Delalande (2001), em sua obra “La cour de récréation”, dedicou-se à análise
126
dos recreios durante sete anos com crianças de 4 aos 8 anos de idade e concluiu que
o pátio da escola é um espaço de perpetuação de uma cultura infantil lúdica, com
conhecimento de regras, técnicas e simbolismos que são compartilhados entre crianças
apenas, excluindo os adultos. Esse espaço seria também, por excelência, um espaço de
socialização entre crianças com uma autonomia relativa quanto aos adultos, isto é, um
espaço de construção da identidade infantil.
Capítulo 5 ■ A criança, a infância Capuxu e a construção da pessoa 273
com uma participação efetiva nos rituais, seja, pelo menos, por ser a
responsável por transmiti-lo ainda na infância ou quando adulta, às
próximas gerações.
Em alguns casos as crenças infantis não fazem parte do universo
de crenças geral da comunidade, ou seja, não dizem respeito a crenças
compartilhadas pelos adultos. Isso nos remete à discussão sobre as culturas
infantis e a autonomia do universo infantil. Autores como Cohn (2002,
2005), Codonho (2009), Fernandes ([1946] 2004), Hardman (1973),
Hirshfeld (2002) e Tassinari (2007, 2009) abordaram a ideia das culturas
infantis bem como a da autonomia do universo infantil em diferentes
contextos. A crença na possibilidade das crianças de construírem mundos
próprios, com suas próprias regras, tem sido entendida como uma
“autonomia do universo infantil” ou como “culturas infantis”.
Segundo Clarice Cohn (2000), a partir de 1960 mudam as noções
de cultura, sociedade e ação social. Revendo a sociedade e o papel
dos indivíduos nela, as crianças deixam de ser percebidas como seres
treinando para a vida adulta e passam a ter papel ativo na definição de
sua própria condição. Se a criança atribui significados, resta descobrir a
partir de que sistema simbólico ela o faz. A partir dessa discussão, pode-
se dizer que os estudos antropológicos são afetados em três aspectos:
a) a criança passa a ser vista como ator social; b) a criança é concebida
como produtora de cultura; c) passamos à definição da condição social
da criança (COHN, 2005).
Em sua análise das trocinhas, Florestan Fernandes ([1946]
2004) conclui que, assim como os conhecimentos e crenças dos
adultos são transmitidos para as crianças, esse caminho se torna de
mão dupla, pois as aquisições infantis por meio da socialização entre
pares permitem que as crianças levem aos adultos informações por
eles desconhecidas.
Hardman (1973) defende a possibilidade de estudar o universo
infantil em seus próprios termos, especialmente as tradições que
circulam de criança a criança, para além da influência do círculo familiar
e do mundo adulto.
Hardman e Hirshfeld (2002) analisam um movimento infantil de
criação de uma cultura própria, com regras próprias por meio das quais
ocorre a aprendizagem. Através de suas habilidades cognitivas, segundo
Hirshfeld, especializadas para esse fim e conquistadas justamente nessa
fase da vida, as crianças ajudam a moldar também o mundo adulto,
criando, sustentando e distribuindo formas culturais e vivendo também
em suas próprias construções, fabricadas no convívio com outras
274 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
a uma série de processos que lhe darão forma útil à vida no campo, um
corpo forte, corajoso e habilidoso que configura a pessoa Capuxu.
A respeito da classificação das comidas, ver adiante a seção sobre dieta alimentar.
127
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 283
Figura 39 – O enterro do umbigo de Flávio. Sua avó de posse do umbigo e seu tio com a
ferramenta, além do cachorro da família.
pois, ainda que não fale, há algum tipo de aprendizagem e interação por
parte da criança e há uma aceitação dessas práticas. Com o passar do
tempo, a participação da criança será fundamental, sem a qual não há
produção do corpo e da pessoa.
Assim, por mais que nos primeiros anos de vida impere a
vontade do adulto que manipula e molda o corpo do bebê, tal vontade
é compartilhada e legitimada pela comunidade, que aprova todas as
práticas corporais que tornam a criança no adulto Capuxu. À medida
que cresce, a criança deverá tomar parte desse processo, interagindo e
cooperando para que o seu corpo esteja pronto quando adulto. Por isso
digo que as crianças Capuxu fazem parte dos dois processos produtivos
na comunidade: da produção agrícola e da produção corporal (e,
consequentemente, da pessoa).
Apesar das transformações por que têm passado esses processos
ao longo do tempo, algumas técnicas corporais continuam sendo postas
em prática pelo povo Capuxu. Boa parte das representações sobre o
corpo se mantém, razão pela qual as práticas permanecem.
Antes de iniciar a descrição dos processos pelos quais se produz
o corpo da criança Capuxu, faz-se necessária uma breve explicação.
Distinguirei aqui os chamados processos de produção do corpo dos
processos de cura do corpo. Tal distinção não é comum, visto que a
maior parte da literatura sobre corpo inclui atividades que produzem o
corpo e atividades que o curam sob a mesma nomenclatura de processos
de produção ou fabricação do corpo.
Embora eu entenda que, de certa maneira, os processos de
produção do corpo incluem os de cura, há uma linha tênue que os
separa em termos das práticas do povo Capuxu. Por essa razão, opto por
separá-los em termos de descrição, como um procedimento didático e
analítico, por verificar que os primeiros são mais invasivos do que os
segundos.
Ao analisar os processos e técnicas que diziam respeito ao corpo
da criança Capuxu, me dei conta de que, apesar de os processos de
cura do corpo fazerem parte dos processos de produção deste, havia
uma distinção, quase imperceptível, pois os processos de cura, embora
tratem da produção do corpo, fazem-no de outra maneira, havendo
uma variação na técnica de acordo com o seu intuito – a formação do
corpo em si ou sua reordenação, sua cura.
Ambas as técnicas nos modos de fabricar ou curar o corpo são
parecidas em sua forma, mas diferem em seu conteúdo. A semelhança
das formas é que parece confundir o pesquisador, de modo que foram as
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 287
de ela já estar completa para produzir outra vida, embora o seu corpo
continue mudando após a menarca. A partir dela, acredita-se que o corpo
da menina passe a ter formas arredondadas e ela vá apresentando um
corpo “bem-feito”, que significa bonito, de formas perfeitas (diz-se que
uma mulher é “bem-feita de corpo”). Essa expressão é fundamental para
uma comunidade que acredita que o corpo pode ser feito, produzido até
possuir formas, posturas e condutas perfeitas.
A menstruação é vista como o canal através do qual se expelem
da mulher todas as mazelas, tudo o que sobra dela, o que “não presta”,128
ao mesmo tempo em que, exatamente por isso, é símbolo de saúde e
fertilidade, uma vez que despeja tudo o que é “ruim” do corpo da mulher
e torna-a fértil, apta a reproduzir-se.
As meninas Capuxu têm menstruado cada vez mais cedo em
relação às suas mães, tias e avós. Diz-se que antigamente as mulheres
menstruavam mais tarde, perto dos 15 anos; hoje em dia, crianças a
partir de 10 ou 11 anos sofrem a menarca. Segundo as mulheres, isso
ocorre por conta da alimentação, que mudou muito com o consumo
dos chamados “brebotos”,129 porcarias que teriam alterado o corpo da
mulher e estariam acelerando a menarca.
Durante a menstruação, algumas atividades podem ser, se não
evitadas, pelo menos realizadas com cautela, especialmente as que
exigem que se pegue em peso, como carregar baldes e latas de água.
Existe uma semelhança entre os cuidados a serem adotados durante a
menstruação e algumas medidas a serem adotadas durante a gravidez,
como veremos adiante. Há também uma dieta específica, já que
alguns alimentos podem tornar o sangue malcheiroso, como os ovos.
Considera-se o sangue menstrual forte e fedido, e alguns alimentos
pioram o seu odor. Alimentos considerados “carregados”, pesados, como
carne de porco, buchada, sarapatel e vísceras de animais de modo geral,
devem ser evitados. Aconselhava-se a não lavar os cabelos nem molhar
a cabeça durante o período menstrual, mas hoje em dia esse costume
tem sido abandonado.
O povo Capuxu também acredita que, embora os humanos não
possam identificar quando uma mulher está menstruada, os animais
podem. Assim, pelo faro os animais conseguem perceber o sangue
menstrual que abandona o corpo da mulher. Por isso, afirma-se que,
Também Rosa (2011) observou entre os Kaingang que o sangue menstrual era
128
quando uma mulher está menstruada, se ela cruzar com algum cachorro
na estrada ou em qualquer outro lugar, ainda que existam muitas outras
pessoas por perto, ele deverá segui-la por causa do cheiro do sangue
menstrual. Caso a mulher menstruada passe por uma vaca ou boi, é
provável que o animal a ataque. O sangue exalado pela mulher atrai os
animais, como o sangue de qualquer outro animal do mato.
No que diz respeito à concepção, a gravidez entre o povo Capuxu
é geralmente planejada, já que ainda se seguem os padrões de namoro,
noivado e casamento entre primos. Assim que se casam, geralmente
após longos anos de namoro e noivado (pois a relação entre primos
começa desde a adolescência), há uma cobrança para que venham os
filhos, à qual o casal cede sem relutar. A maioria das mulheres não se
protege, razão pela qual os filhos aparecem rapidamente e as famílias
são numerosas. Se se protegem, optam pelos anticoncepcionais
adquiridos na farmácia da cidade de Santa Terezinha. Ultimamente
as mulheres têm deixado de engravidar de maneira seguida, tendo
dois ou três filhos, no máximo, com intervalos maiores entre um e
outro. Recentemente, uma mulher da comunidade passou quase 12
anos tentando engravidar do segundo filho sem nunca conseguir. Isso
era raro em se tratando do povo Capuxu, mas as taxas de fertilidades
estão cada vez mais baixas.
O filho é esperado e desejado, sendo sempre concebido como
uma bênção de Deus, e quase nunca se tem-se apenas um. Por isso, se
demora a engravidar do primeiro filho após o casamento, a mulher já
passa a ser alvo de rezadeiras, benzedeiras e de todas as mulheres da
comunidade, que se unem para oferecer algo que faça a nova esposa
engravidar rapidamente: chás, rezas etc.
Para engravidar há sempre chás e garrafadas feitas de ervas
que prometem limpar os ovários, acabar com quaisquer cistos ou
impedimentos. Há também práticas que são feitas durante a relação
sexual para garantir a fecundação do óvulo: posições que são mais
seguras, como o homem deitado sobre a mulher durante a ejaculação,
por exemplo. Para garantir a gravidez pode-se, ainda, logo após a relação,
amarrar as pernas da mulher para o alto ou simplesmente deixá-la de
pernas para cima para “pegar”, como eles dizem, pois, caso a mulher se
levante depois do ato, pode ser que o esperma desça e não a fecunde,
que ela não “pegue bucho”.
Como interdição maior não é aconselhável que se tenha relações
em pé, pois o bebê pode ser gerado nas trompas. É também possível
tentar escolher o sexo do bebê: caso se deseje um menino, o homem
290 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
130
O mesmo foi observado por Anne-Marie Losonczy (2011) sobre os Embera e afro-
colombianos do Alto-Choco, na Colômbia.
131
Também entre os Kaingang o silêncio aparece como elemento importante para a
formação “do corpo da criança na barriga da mãe” (ROSA, 2011).
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 291
132
Codonho (2007) observou entre os Galibi-Marworno que o corpo da criança também
é gerado a partir dos alimentos que a mãe ingere durante a gravidez e a amamentação.
292 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
133
Entre os Capuxu prevalece a ideia de que a criança nasce “molinha” e de que seu
corpo deve ficar “durinho” com o tempo. Eles entendem que é bonito um bebê durinho
e se admiram daqueles que se tornam durinhos mais cedo. Cohn (2000) observou
algo parecido entre os Xikrin, para quem a pele da criança ao nascer é mole e precisa
endurecer com o tempo, pois isso a tornaria mais sensível às doenças e aos espíritos.
Para os Capuxu, uma criança mole também está mais suscetível a adquirir doenças do
que uma criança durinha, pois esta lhes parece possuir um corpo mais forte. Também
entre os Kaingang há uma preocupação para que o corpo da criança fique duro. Para
isso, ela é amarrada com vários panos de algodão, conforme observou Limulja (2007).
134
Foi isso também que observaram Melatti e Melatti (1979) entre os Marubo: “A pessoa
convidada a colocar os primeiros cordões na criança, parente ou não, põe-na de bruços
e lhe força as barrigas das pernas para dentro; estica-lhe as pernas; aperta-lhe as coxas;
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 293
comprime-lhe as nádegas com as duas mãos; tudo isso para transmitir-lhe as formas de
seu próprio corpo. Acredita-se que a criança adquirirá as qualidades de bom trabalhador
da pessoa que lhe amarra os cordéis” (p. 293).
294 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
135
Limulja (2007) também observou que entre os Kaingang a placenta, considerada
companheira do bebê, é enterrada próximo à casa, num lugar onde nenhum animal
possa mexer, do contrário a vida da mãe e a da criança podem correr risco. Depois do
nascimento dos bebês na maternidade, o cordão umbilical e a placenta têm sido jogados
fora, e a mãe não consegue mais realizar o resguardo após o parto porque no dia seguinte
está de pé, voltando para a aldeia. Os Kaingang dizem que, por conta disso, a criança
já chega na aldeia doente, e não há remédio que o resolva por conta de tantas doenças
que elas desenvolvem. Atualmente também entre os Capuxu a placenta é largada na
maternidade. Para os Galibi-Marwornos enterra-se a placenta perto de casa para evitar
que a mãe engravide no período de 6 meses a 1 ano. Porém, primeiro espera-se a morte
da placenta, conhecida como “a última criança”, por dois dias. Durante esse período
ela fica guardada em um pote tampado e, depois de morta, é enterrada (CODONHO,
2007).
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 295
296 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
corpo, tenha formas bonitas. Assim, como a criança nasce com a cabeça
“molinha” e com a moleira aberta, caso o formato de sua cabeça não
pareça harmonioso ou não agrade aos pais é possível moldá-la com o
uso de uma pequena touca de tecido elástico. Se a touca, apertada, for
usada correta e insistentemente, é possível atribuir uma nova forma à
cabeça da criança, para que tenha a cabeça bonita, perfeita. Isso vale
também para os casos em que as crianças sejam puxadas a fórceps, o
que, segundo os Capuxu, deforma as suas cabeças.
Já as unhas do recém-nascido só podiam ser cortadas pela
primeira vez depois do batismo. Hoje não se cortam as unhas do bebê
antes de um mês de vida, mas o batismo tem ocorrido cada vez mais
tarde. Para resolver o problema das unhas – afinal as crianças podem
machucar-se, arranhando-se com suas próprias unhas –, caso estejam
grandes demais (e como as luvas incomodam os bebês, especialmente
num lugar tão quente como o sertão), deve-se soprá-las, como fez Régia
em relação ao seu filho Flávio. Ao soprar as unhas do recém-nascido, a
parte crescida delas que passa da ponta dos dedos cai. Essa técnica parece
mais segura do que correr o risco de machucá-los caso tentassem cortá-
las com pequenas tesouras ou alicates. O sopro faz com que as unhas
caiam e voltem a crescer. Também os cabelos dos bebês recém-nascidos
caem e renascem naturalmente, como as penugens dos pássaros, mas
para isso nem é preciso soprá-los.
O primeiro corte de cabelo da criança é feito apenas depois de
seis meses, mas nesse caso não há nenhuma recomendação em relação
à mecha retirada pelo corte: pode-se guardá-la de lembrança ou
presentear os padrinhos com ela. No caso de a criança ser menina, uma
das primeiras providências é furar-lhe as orelhas. Para isso, usam-se o
gelo e o próprio brinco, que deve ser de ouro, do contrário pode causar
alguma inflamação. Os brincos de ouro para as meninas são o primeiro
presente das madrinhas. Entende-se que, por ser ainda molinho o corpo
do bebê, a melhor situação para alterações e intervenções desse tipo é
a de recém-nascido, em que o corpo continua sendo feito e pode ser
moldado.
Os rituais que envolvem o umbigo caracterizam um processo
mais longo, marcado pela dedicação e pelo cuidado da mãe em fazer o
filho ter um umbigo perfeito. Afinal, se o umbigo ficar aberto demais,
grande, “espichado para fora” ou deformado, só de vê-lo saberão que a
mãe não cuidou bem dele para que sarasse e ficasse perfeito. Assim, a
primeira precaução para sarar e desinflamar o umbigo era colocar sobre
ele óleo de rícino e azeite.
298 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
criança, que era usada por ela mesma, e dizia-se que, quando uma criança era muita
agitada e corria de um lado para outro, era porque havia perdido seu umbigo e estava à
procura dele.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 299
importante que ele funcione como uma espécie de elo entre a criança e
o seu lugar de morada.137
Outra razão para os cuidados com o umbigo está no fato de que
seu corte – realizado com tesoura ou pavio de lamparina – representa
uma separação que deve ser compensada com medidas de precaução,
como observou Van Gennep (2011). Conforme o autor, os ritos que
envolvem corte, como os de umbigo e cabelo, são de separação ou
segregação.
Penso que o rito de segregação do corte do cordão umbilical entre
os Capuxu é compensado com um rito de agregação e acolhimento da
criança. Ela é primeiramente separada para depois ser unida, agregada
à mãe, à família e ao grupo Capuxu por meio da terra. A terra é o elo, o
vínculo, aquilo que os conecta. É que o corte do umbigo separa a criança
da mãe e, consequentemente, de sua família, seu povo, sua identidade.
Enterrar o umbigo perto da casa, na sua comunidade, deve vinculá-la
novamente. Assim, ela é inscrita e inserida no espaço cultural da família
e se torna uma pessoa Capuxu.
O povo Capuxu vive mais do que “na terra”; eles vivem “da terra”,
especialmente a do Sítio Santana-Queimadas, que representa para eles
“o umbigo do mundo”. Por isso a terra está no centro de tudo, é o eixo da
manutenção da condição camponesa, âncora do modo de vida. A terra
representa, assim, um lugar de vida e de morte. Assim como nela tudo
nasce, floresce, frutifica, para ela vai também tudo o que morre.
É importante destacar que as atenções dispensadas ao cordão
umbilical e à placenta se constituem como práticas recorrentes em
diferentes sociedades e podem sinalizar a importância simbólica que
possuem ao serem alvo de vários cuidados para garantir a saúde e o
comportamento da criança.138
Entre os Kaingang, o cordão umbilical deve ser enterrado perto de uma planta forte
137
para que, dessa forma, a criança também cresça forte, conforme Limulja (2007, p. 58).
Sobre a importância do corte do cordão umbilical entre os Piro (grupo da família
138
Aruák), Peter Gow (1997) afirma que é preciso compreender a ideia desse grupo a
respeito do que deve ser o “feto”. Assim, para os Piro, “a criança recém-nascida é uma
unidade completa de ‘bebê’ + cordão umbilical + placenta” (p. 48). É preciso, então,
que alguém corte o cordão umbilical, que divida o corpo do recém-nascido em dois,
separando-o de si mesmo. Nas palavras do autor, é no ato de cortar o cordão umbilical
que “está contida toda a ontologia dos Piro” (p. 48), e para entendê-lo é preciso conhecer
os dois modos como os Piro se reconhecem como humanos. Assim, chamam a si mesmos
de yine (“humanos”) e se chamam entre si de nomolene (“meu parente”). Os dois termos
são coextensivos, pois ser humano é ser parente de outros humanos. Entretanto, para
300 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
cortar o cordão umbilical, é preciso que se encontre um yine que não seja nomolene.
Essa é uma ocasião complexa, pois a pessoa que realiza o ato divide o recém-nascido em
dois: um humano e um outro (a placenta); é por meio dessa operação que a criança pode
se tornar completamente humano (GOW, 1997).
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 301
Apesar da distinção nativa, opto por tratá-las todas como “criança”, pois o uso
139
nos pés sujos e se põe a andar vagarosamente. Faz pausas, olhando para
os pés em busca de alguma ameaça. Atravessa todo o terreiro, indo para
a lateral da casa, onde está o curral. Em breve percorrerá aquele trajeto
correndo e de pés descalços como as demais crianças, quando o seu
corpo já estiver pronto: pernas ágeis e pés calejados.
Uma importante característica da formação do corpo é
o nascimento dos primeiros dentinhos, momento de alegria e
comemoração. Ele comprova que o corpo da criança segue em sua
produção da maneira esperada e se torna, com o passar do tempo, o
corpo perfeito. Por essa razão, o nascimento dos primeiros dentinhos
é motivo de orgulho dos pais, e estes transferem seu orgulho para a
criança. Assim, a criança é convidada a mostrar os dentinhos a todos
que a visitam ou a cercam cada vez que nasce um deles.
Geralmente, ao nascer, a criança Capuxu não possui um quarto,
de modo que ela dormirá no quarto dos pais até que se torne criança
pequena e passe a dividir o quarto com os irmãos. Isso é válido para
as casas cujos quartos são mais numerosos – a maior casa de família
Capuxu tem quatro quartos, e a maioria possui três ou dois quartos.
No caso das casas menores, de até dois quartos, mas com filhos
que ultrapassam esse número, é possível dormir na sala, numa rede,
ou na cozinha, onde preferirem. Porém, a sala é geralmente o lugar
escolhido para quem dorme de rede. Em todo caso, seja em outro
quarto ou na sala, a criança pequena nunca dorme sozinha. Se for o
caso de os quartos não abrigarem a todos os irmãos, ela tem prioridade
no quarto, sendo sempre o conforto deixado aos filhos mais novos; se
tiver que dormir de rede na sala, certamente uma criança maior lhe fará
companhia e cuidará do seu sono.
São raros os casos em que uma família Capuxu tenha apenas um
filho. Eles são tidos uns após os outros e de maneira numerosa. Todavia,
lembro-me de ouvir, de onde estava hospedada, gritos e discussões
numa casa próxima, na qual os pais possuem apenas uma menina de 11
anos que, apesar da idade, insistia em dormir com eles na mesma cama.
Nesse caso, a comunidade, sabendo disso, desaprova a educação dada
à menina e estranha que ela deseje dormir com os pais com essa idade
, atribuindo isso ao mimo exagerado dado a ela, típico dos pais que só
possuem um filho.
A presença de uma criança maior junto às menores, sejam elas
crianças pequenas ou simplesmente crianças, se dá pelo fato de que a
partir dessa idade elas começam a manifestar os primeiros medos de
malassombro, almas e assombrações em geral. É raro uma criança que
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 307
para que passe o seu corpo sem riscos de ferimento. O mesmo se dará
em relação às porteiras. Há porteiras que são desmontáveis. Estas são
feitas de madeira com estacas que são encaixadas e desencaixadas
para que se possa acessar o roçado ou um curral. A partir dos 5 anos
uma criança já tem forças suficiente para desmontar a porteira que lhe
atravessa o caminho.
Se são fixas as porteiras e muito pequenas as crianças, estas não
podem alcançar os fechos daquelas ou não dominam ainda a técnica
para abri-las, por falta de força ou destreza. A melhor maneira, então,
é saber contornar o obstáculo, aprendendo a escalar a porteira de
madeira por um lado, equilibrar-se em cima dela e descer pelo outro
lado, deixando para trás o obstáculo.
Se a criança pequena segue à frente, ela subirá na porteira, mas será
surpreendida pela chegada das crianças maiores, que abrirão a porteira
com os pequenos sentados sobre ela. Divertem-se ainda mais as crianças
se seus irmãos ou amigos mais velhos passam a sacudi-la ou a balançá-la
de um lado para o outro com o intuito de fazê-las cair. Manter-se em cima
da porteira sem perder o equilíbrio requer uma destreza que se aprende
gradativamente e que é desejo de todas as crianças.
O mesmo equilíbrio é requerido para manter-se em cima de um
animal – um cavalo, jumento ou égua que segue a galope enquanto
as crianças tentam a todo custo se segurar sem selas e arreios. Se são
pequenas, montarão bodes e cabras, que são animais de pequeno porte,
até atingirem o equilíbrio e a habilidade requeridos para a montaria.
A técnica da montaria é primordial para a vida no sertão.
O primeiro treino do corpo para montar acontece sobre o
lombo dos irmãos mais velhos. Essa é uma das brincadeiras favoritas
das crianças: brincar de cavalinho montadas sobre as costas de um
dos irmãos enquanto este percorre a casa. Começa-se devagar, para
que a criança perca o medo, depois cada vez mais rápido, erguendo-se
levemente o corpo enquanto a criança tenta se segurar nas roupas ou
nos cabelos do irmão, rindo euforicamente ou gritando. Assim vai se
produzindo o corpo que montará os diversos animais do Sítio Santana-
Queimadas.
Em seguida, as crianças passam a montar cada vez que alguém
aparece em um cavalo selado, jumento ou égua. A cada oportunidade de
praticar num animal que seja considerando “manso”, para que a criança
não incorra em perigo, ela é estendida para que aquele que monta dê
uma voltinha com ela no colo sobre o animal, “para ir perdendo o
medo”, como dizem.
310 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
mato, abaixa a calcinha dela e a coloca de cócoras; ela deve mesmo assim
fazer xixi em seus pés e sujar a sandália. Com o tempo, terá habilidade
para tirar toda a roupa, caso se encontre vestida, e fazer xixi de cócoras
sem que nada se suje – nem a roupa, nem as sandálias. Por enquanto,
voltará para as brincadeiras sempre de pés molhados de xixi e alguma
marca na calcinha ou na roupa. Na vida sertaneja quase tudo exige mais
habilidade corporal do que na cidade, onde artefatos visam tornar tudo
à nossa volta confortável e prático. Por isso, os Capuxu dizem que não se
produzem na cidade corpos como em Santana-Queimadas.
“O corpo do povo da cidade é diferente”, argumenta Carminha.
“Pode prestar atenção que eles não sabem montar, passar numa cerca de
arame, pegar numa enxada como nós... Não sei... Acho que é por causa
da comida que o povo da cidade come, que não tem, assim, a mesma
força que a gente”, ele diz, desconcertada, quase pedindo desculpas pela
sinceridade. Carminha acaba de me dizer que os nossos corpos receberam
treinos diferentes dos deles e que nós não somos aptos à vida no sertão.
Enquanto isso, eu, ela e Eudvan, seu filho caçula, caminhamos
para o poço situado no roçado de onde se retirará água. Carminha não
carrega latas como de costume porque elas já estão no roçado, ao lado
do poço. Lá prende as latas numa corda que desce até o poço e depois
puxa a corda, trazendo a lata cheia com muito esforço. Faz isso com
as duas latas. Em seguida, pega um taco de madeira roliça, preparada
para isso, coloca-a sobre as costas, firmando-a aos ombros com as duas
latas penduradas nas extremidades, e voltamos para casa. Ela caminha
durante o trajeto com força e determinação e ainda consegue conversar
comigo sem perder o fôlego. Eudvan pedia: “Deixa eu ajudar, mãe”. Ela,
aborrecida por ele interromper a conversa, dizia: “Não, meu filho. Você
ainda é muito pequeno. Deixe você crescer um pouquinho. Você vai ter
a vida toda pra fazer isso daqui”, olhando para mim e piscando, com
um sorriso. Eudvan segue de testa franzida e cabisbaixo, certamente
pensando quanto falta para ele “crescer um pouco”.
À medida que crescem, o corpo das crianças vai mudando e as
intervenções sobre eles também. Uma das mais observadas e citadas
por eles mesmos é a famosa mudança dos dentes. Ela parece ter um
significado essencial para os Capuxu. Ao nascer, a criança perde parte
do umbigo e este há de ser modificado; depois, perde as unhas que foram
sopradas e, em seguida, seu cabelo cai e renasce, como eles dizem. Em
torno dos 7 anos a criança se despede de mais uma parte do seu corpo;
esta parece a última vez em que o corpo dá sinais de mudança a partir
de uma perda ou troca: a troca dos dentes de leite.
312 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
O dente de leite pode ser mantido mole na boca até que caia
naturalmente ou pode ser arrancado com uma linha de costura presa à
raiz e puxada pela mãe. Os Capuxu afirmam que não são todos os dentes
que trocam, mas só alguns, os da frente. Quando descobrem um dente
mole, as crianças costumam tocá-lo o tempo inteiro com a pontinha do
dedo, balançando-o para lá e para cá, apesar dos pedidos insistentes dos
pais para que não façam isso. Então, retiram o dedinho da boca e, com ela
fechada, balançam o dentinho com a ponta da língua. Tudo isso é o desejo
de que o dente caia naturalmente, sem ser puxado, o que causa nervosismo
em algumas crianças. Segundo elas mesmas me disseram, elas não
concebem que um dente seja arrancado, puxado da boca, sem dor. Assim,
elas o movimentam para que ele caia o mais rápido possível, pois, se os
adultos observam que ele está demorando muito a cair e decidem puxá-lo,
colocam a criança entre suas pernas e puxam o dente com os dedos com
toda força ou com a linha de costura de supetão. Algumas crianças gritam
e esperneiam, precisando serem seguradas; outras vão tranquilamente e
não demonstram medo, mas, de modo geral, todas tentam evitar o ritual,
causando a queda do dente de maneira quase natural.
Uma vez caído o dente, diz-se que a criança tem uma porteira na
boca ou uma cancela, aquele espaço vazio entre os outros dentes por onde
“dá pra passar uma boiada”. Depois disso, era costume a criança ir até a frente
de casa e lançar o dente sobre o telhado, dizendo os seguintes versinhos:
“Mourão, mourão, tome este dente podre e me dê um são”, esperando que o
novo dente nascesse certinho e não torto. Para ter um dente novo perfeito,
era preciso pronunciar os versos. Antropóloga inconveniente que sou,
questionei Amanda sobre os versos: “Mas este dente nem era podre, só de
leite”. Ela foi taxativa: “Pois é, mas só tem esses versinhos. Ninguém nunca
inventou outros”. O argumento de Amanda me convenceu.
O problema é que, depois de participar do Programa Um Milhão
de Cisternas, a prática de jogar o dente em cima da casa foi interrompida,
pois a cisterna capta a água da chuva por uma calha colocada no telhado,
de modo que os dentes iriam para as cisternas. Depois disso, as crianças
passaram a enterrar os dentes, afirmando que era mais seguro. Voltamos,
talvez, ao princípio de que a terra atravessa a existência Capuxu, em
sua pessoa, em seu corpo, em sua identidade. Em tudo o povo Capuxu
busca manter-se conectado com a terra, especialmente naquilo que diz
respeito ao corpo.
Muitas outras técnicas são utilizadas para preparar a criança para
a fase adulta. Uma das mais curiosas diz respeito ao tão conhecido xixi
na cama ou na rede. As crianças, quando abandonam as fraldas, passam
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 313
perguntei a D. Leda como ela gostaria de ser tratada e ela optou pelo termo “rezadeira”,
que é como passo a tratá-la deste ponto em diante.
316 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
levada pelos pais às casas dos doentes onde deveria rezar. Após longas
caminhadas a pé ou “em lombos de jumentos”, ela lembra que chegava
exausta ao seu destino; então, tratavam de colocá-la em uma rede para
que dormisse, e só depois de um longo descanso ela dava início às rezas.
O caso de D. Leda, que se tornou rezadeira na infância, é uma
exceção. Embora as crianças Capuxu sejam extremamente religiosas,
sempre estejam em contato com o sobrenatural mediante a crença
nos malassombros, sejam concebidas como público preferido para os
contatos com os mortos e estejam envolvidas com as atividades da igreja
desde tenra idade, não é comum que assumam o papel de rezadeiras,
motivo pelo qual a história de D. Leda é curiosa. Ela conta que com
apenas 1 ano de idade, em 1960, ela se ajoelhou e rezou toda a novena
do coração de Jesus. Alegando sempre que “a reza não é minha, é
de Deus. A reza é santa, enviada, ela é um instrumento de Deus”, D.
Leda se tornou uma rezadeira de renome, sendo procurada por todo o
povo Capuxu e também por pessoas dos sítios vizinhos e das cidades,
por autoridades políticas e locais. Hoje, D. Leda reza para todos que
solicitarem, inclusive a distância, para aqueles que moram em Santa
Terezinha, Patos ou em São Paulo e até mesmo para pessoas que não
conhece, se for um pedido de algum Capuxu.
Além de rezadeira desde criança, D. Leda exerceu também o
ofício de parteira, tendo sido uma das mulheres da região “que mais
colocou crianças no mundo”, como conta, orgulhosa. Assim, tendo vasta
experiência adquirida ao longo dos anos e sendo dona de um dom, como
reconhece, herdado pelo seu bisavô, D. Leda tornou-se a mais famosa
rezadeira Capuxu. Ela e mais duas outras mulheres da comunidade são
responsáveis por tentar curar os corpos adoecidos ou amolecidos (sem
força), que caiam em desordem, estejam em sofrimento ou corram o
risco de extinguir-se.
Embora o povo Capuxu procure os médicos nas cidades
próximas, isso só é feito em último caso, se a doença parece grave ou se
coloca a vida do paciente, seja adulto ou criança, em risco. Consultas de
rotina não são realizadas, nem preventivas. O normal é que se busque
o médico apenas se a pessoa não consegue curar-se com a ajuda de D.
Leda e suas rezas, dos chás, alimentos e ervas da comunidade.
Não apenas as rezas, os chás ou as ervas são considerados cura-
dores. Como a fraqueza, a indisposição para o trabalho ou a preguiça são
consideradas doenças ou desordens do corpo, elas podem ser resolvidas
não apenas com reza, se a fonte desses sintomas for o mau-olhado, como
podem também ser curadas com alimentos que prometem devolver a
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 317
À medida que crescem, as crianças se tornam magras, e não há
nenhum registro de criança obesa entre os Capuxu. As brincadeiras
sob sol a pino, a correria pelos espaços do Sítio, as tarefas domésticas
e o trabalho no roçado não permitem que as crianças engordem – é o
que dizem os Capuxu. Todavia, a essa altura ser magro não parece um
problema, já que o porte de quase todos os membros da comunidade é
de magreza.
Também as crianças assumem, vez por outra, os processos de
cura de seu próprio corpo ferido, se as mazelas são aparentes. Assim,
picadas de insetos que causem pequenas pintinhas vermelhas na pele,
ou mesmo as feridas mais graves e dolorosas, com cascas e purulentas,
recebem das próprias crianças um cuidado curativo: o fazer rodinha.
Com as pontas dos dedos elas circundam levemente a ferida, umas nas
outras e em si mesmas, tendo aprendido a técnica geralmente com as
próprias crianças. Eu mesma fui algumas vezes convidada a proceder
ao ritual curativo, sendo ensinada pelas crianças a circular com a ponta
do dedo indicador as feridas causadas pelos machucados constantes que
resultam das brincadeiras ou das atividades agrícolas ou domésticas.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 319
prolongada é vista como doença. Assim, eles dizem da criança que ela
está mole, molenga, sem força, que pode ser verme ou mau-olhado. Nos
dois casos, ela pode ser levada para a rezadeira.
D. Leda me diz que, quando ela reza em crianças para “tirar
quebrante”, ou seja, romper o mau-olhado, ela sente uma força negativa
saindo da criança e passando para ela. Por isso, ela fica indisposta,
cansada e desanimada, sentindo todos os sintomas que a criança tinha.
Por essa razão, ela precisa procurar outra rezadeira para retirar dela o
mau-olhado que foi transferido ou rezar nela mesma.
As pessoas podem colocar mau-olhado ou quebrante numa
criança por diversas razões: porque ela é bonita demais, gordinha demais,
inteligente demais, corajosa demais – todas qualidades apreciadas pelos
Capuxu. Podem fazê-lo por inveja, intencionalmente, ou sem querer,
sem maldade, mas, de tanto se impressionar com a criança termina por
colocar quebrante.
É interessante dizer que, além de em pessoas, o mau-olhado
também pode ser colocado em lugares, objetos e comidas. Desse modo,
alguém pode colocar mau-olhado na casa de outrem por esta ser bonita,
espaçosa, confortável, bem organizada. Nas casas Capuxu encontramos
sempre quadros nas paredes com os seguintes dizeres: “Não me inveje.
Não sou rico. Apenas trabalho”.
Pode-se colocar mau-olhado em alguma roupa, acessório e
sapato que está sendo utilizado por alguém ou até mesmo na comida.
Especialmente as crianças, se veem partir-se a sandália que leva aos
pés ou rasgar-se a roupa, dirão que alguém “botou olhado” nesses
objetos porque sentiu inveja ou desejou ter um. Se, ao comer, a comida
cai no percurso entre o talher e a boca, provavelmente alguém olhava
desejando a comida e terminou por colocar mau-olhado nela. Se em
uma casa os eletrodomésticos começam a queimar ou louças caem e
quebram, as mulheres Capuxu dirão que colocaram mau-olhado em
sua casa. Entretanto, as rezadeiras só costumam orar em pessoas; se há
desconfiança de algum mau-olhado na casa, elas se deslocam até lá para
retirá-lo benzendo a casa, mas não costumam orar em comidas ou nos
demais objetos.
Para a retirada do mau-olhado, que é a principal razão pela
qual D. Leda é procurada, ela usa três galhinhos de plantas comuns.
A criança é sentada em um tamborete e D. Leda, de pé, começa a sacudir
os galhos diante da criança, fazendo no ar um sinal da cruz. Eis uma das
principais rezas para a cura do mau-olhado:
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 323
Curiosa para saber das crianças como eram as rezas, ouvi de uma
menina uma descrição interessante dos sujeitos e do ritual: “As crianças
daqui pegam muito mau-olhado,142 por isso que tem que chamar as
rezadeiras.143 Elas vêm com galhinhos de ramo e sussurram umas coisas
que ninguém entende. Quando a criança começa a bocejar, demonstra
que tinha mau-olhado, e o galhinho vai morrendo, murchando, pegando
o mau-olhado todo pra ele”.
A descrição da menina Capuxu revela o modo como as crianças
percebem o ritual. D. Leda achou interessante essa descrição e me explicou
que as crianças bocejam porque é mesmo enfadonho ouvir alguém
rezando baixinho em pé diante de você, sacudindo os galhinhos. Ela disse
também que os galhinhos murchavam porque eram sacudidos no ar e
iam, pela força do vento, perdendo a vida, e não porque recebessem mau-
olhado. O mau-olhado, na verdade, era transferido para ela mesma, que
precisa buscar outra rezadeira para rezar nela ou rezar em si mesma.
Além das próprias mãos e dos três galhinhos de mato, D. Leda
utiliza-se de outros instrumentos, a depender do problema a ser
solucionado. Em alguns casos, ela pode fazer uso de agulha, especialmente
nos casos de carne triada (isto é, machucada), toalha e copo d’água (caso
se trate de uma dor de cabeça provocada pelo sol).
Uma das coisas que D. Leda mais se orgulha de curar é o cobreiro
das crianças. O que eles chamam de “cobreiro” é herpes-zoster, uma
Velho (1995) distingue mau-olhado e olho mau ou ruim: “No caso do mau-olhado
142
Todo o corpo da criança Capuxu é fabricado. É preciso força,
agilidade, habilidade e mais uma série de atributos para a vida no
sertão, como a coragem. Produzir um corpo corajoso é fundamental. A
coragem, aqui, tem o sentido de ausência de preguiça,144 pois o corpo do
Melatti e Melatti (1979) observaram que entre as crianças Marubo são aplicadas
144
145
Sobre a transmissão de saberes, segundo Woortmann e Woortmann (1997),
repassar o saber no campesinato é tão central para a condição de pai como transmitir
a terra. Transmitir o saber é também transmitir valores, a construção de papéis sociais
e hierarquia, pois tal saber é um saber-fazer e está subordinado ao chefe de família,
governador do trabalho e, assim, governador desse fazer-aprender.
332 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
146
Para Ingold, a compreensão do mundo não pode existir sem o vivido, de modo que o
contato e a interação com o ambiente são a garantia para a compreensão dos modos de
ser no mundo. Ele nos convida a voltar do racionalismo/intelectualismo extremo para a
empiria, orientados pela nossa própria intuição.
336 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
que seu espaço físico/geográfico oferece. A prova disso é que elas estão embasadas nas
estações do ano, nos rios na época da cheia, se eles não são perenes, e na mata, na época
da seca.
338 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
148
Sobre a relação entre a alimentação e a aprendizagem, Cohn (2000) observou entre
os Xikrin que as crianças não devem comer a cabeça do peixe sob pena de terem a
audição (o ouvido) prejudicado e não conseguirem aprender/saber/entender algo, haja
vista que o ouvido é fundamental para os Xikrin no que diz respeito ao conhecimento.
As crianças sabem tudo porque ouvem tudo. Para os adultos, comer a cabeça de
qualquer caça dificulta o aprendizado. Por isso, os Xikrin manuseiam artefatos como
a pena de um pássaro nos ouvidos e na boca das crianças que não consigam falar com
desenvoltura. Eles tratam do ouvido e da boca como essenciais para a aprendizagem e
por isso conferem a eles grande importância.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 341
e uma fralda amarrada nele para que ela não bata o queixo. A fralda
amarrada fará com que a criança permaneça sentada com a postura
ereta. Como o bebê é considerado molinho, até 6 ou 7 meses a postura
pode ser moldada de modo que ele tenha uma “coluna boa”. Antes
mesmo que ande é possível levá-lo a qualquer lugar montado em algum
animal, caso já consiga sentar-se.
Para ensinar o bebê a andar, é possível amarrar uma cordinha,
fralda ou tecido nas suas mãozinhas e levá-lo, passo a passo. Também é
possível manter alguém atrás, apoiando-o para que não caia, e alguém à
frente, a lhe mostrar um brinquedo ou objeto colorido que lhe interesse.
Assim a criança deve treinar os primeiros passos.
Os animais também são fundamentais para ensinar as crianças
a levantar do chão e ensaiar os primeiros passinhos. Se ainda não tem
força suficiente para erguer-se sozinho, nem equilíbrio, o bebê Capuxu
lançará mão do cachorro e se apoiará nele para levantar-se. Apalpando
o seu corpo, dará voltas em torno dele, ora se desequilibrando, ora se
segurando com muito custo em qualquer parte do corpo do animal.149
Desse momento de aprendizagem nascerá uma das mais fortes relações
do povo Capuxu: a relação entre as pessoas e seus animais.150
Para apender a nadar, as crianças se utilizam de troncos de
bananeiras, sempre em companhia de adultos. Assim, podem se segurar
nos troncos e bater os pés enquanto atravessam açudes ou nadam pelo
rio. O tronco de bananeira funciona à guisa de boia, não permitindo que
afundem. As crianças nadam muitas vezes assim, aprendendo a bater os
pés e só em seguida movimentando os braços e abandonando o tronco.
Também requer técnica a caça das rolinhas, um pássaro muito
comum utilizado como mistura nas refeições. As crianças caçam
rolinhas munidas de suas balinheiras (estilingues) com pequenas
pedras ou por meio de armadilhas, como arapucas confeccionadas
por elas e seus pais e colocadas pela mata. Para usar o estilingue é
preciso ter boa pontaria, saber posicionar-se silenciosamente para
Evans-Pritchard (2002) observou entre os Nuer que “logo que as crianças estão
149
cultural separando homens e animais em seu lar comum, mas sim a absoluta nudez dos
Nuer em meio ao gado e a intimidade de seu contato com este apresenta um quadro
clássico do estado selvagem” (p. 50).
342 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
151
Conforme Woortmann e Woortmann (1997), no modo de vida camponês o trabalho
está relacionado com a terra, com a autoridade do pai e com o sustento da família, além
de não haver separação entre a terra, o trabalho e a educação de seus filhos. A família
utiliza o trabalho das crianças, pois este é visto como uma ajuda e como uma forma
de educação, garantindo assim sua formação e preparação para lidar com o modo de
vida rural. Dessa forma, a infância está associada à formação do trabalhador que se
concretiza por meio da ajuda, momento de aprendizado e preparo para a reprodução
da sua condição de vida. Tal socialização está interligada pela aprendizagem e pelo
conhecimento das técnicas, constituindo uma maneira de as crianças internalizarem as
normas sociais e morais do grupo de que participam, preparando-as para o futuro.
152
De acordo com Heredia ([1979] 1988), os roçados significam um processo de
socialização dos membros da unidade familiar. Essa socialização refere-se tanto à
aprendizagem e ao adestramento das técnicas como à formação de comportamentos
adequados ao trabalho agrícola. Constitui também uma forma de internação das
normas do grupo, preparando-os fundamentalmente para a unidade que cada um
deles constituirá no futuro. O roçado funciona com o trabalho de todos, garante
as necessidades básicas da família. Já os roçadinhos, cuidados pelos filhos cumpre o
papel do aprendizado das técnicas de cultivo e onde acontece de forma prática essa
socialização. Portanto, o roçadinho representa uma forma de treinamento no trabalho
agrícola, sendo um processo de aprendizagem deste trabalho que é efetuado sob a
orientação e com a contribuição do pai.
344 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
153
Garcia Jr. (1983), ao analisar as relações no interior da unidade de produção
familiar em Pernambuco, observa que, mesmo existindo uma hierarquia masculina
responsável pelo sustento da família, o trabalho de todos os membros da família é
requisitado constantemente no roçado, de onde provém o alimento para o consumo.
Nesse local, o trabalho das crianças é considerado ajuda ao pai, o qual determina a
necessidade de solidariedade dos filhos – ajuda que também é requisitada pelos espaços
de responsabilidade da mãe. Na compreensão do autor, o roçado constitui o ambiente de
socialização das crianças, onde, a partir dos 10 anos, já podem assumir responsabilidades
sobre as atividades agrícolas e botar seu próprio roçadinho. Dessa forma, a infância está
associada à formação do trabalhador, que se concretiza por meio da ajuda, momento de
aprendizado e preparo para a reprodução da condição de vida.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 345
154
Lia Fukui (1979), ao analisar as relações de parentesco e família entre os sitiantes
tradicionais do interior de São Paulo e do sertão da Bahia, a partir de um olhar externo
sob a divisão das tarefas na roça, identifica a organização no interior da unidade familiar,
pautada na relação de trabalho e na reprodução social ao ritmo tradicional da roça. Na
organização para o trabalho, as crianças assumem um papel de ajuda, ao mesmo tempo
em que esta consiste em uma forma de aprendizado do valor do trabalho. Desde os
4 anos, as crianças iniciam seu processo de aprendizagem e de ajuda à família, sendo
que a atribuição das tarefas varia de acordo com o grau de força e de aprendizado. Por
volta dos 9 anos, a criança tem condições de assumir responsabilidades e atuar em todas
as tarefas, com condições iguais ao adulto. “Aos 13, 14 anos, espera-se dos jovens um
comportamento realmente de adulto” (p. 154).
346 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
155
Cândido (2003) estudou o modo de vida de um agrupamento de caipiras no município
de Bofete (SP), nos anos de 1948 e 1954, fornecendo elementos sobre os processos de
socialização da infância no meio rural. Nessa comunidade, desde pequenos, os filhos,
ao acompanharem os pais, se familiarizavam com a experiência acumulada sobre as
técnicas agrícolas e artesanais, o trato dos animais e os serviços domésticos. Assim, o
trabalho da criança, além de representar uma ajuda para garantir o sustento da unidade
familiar, era reconhecido como momento de formação e preparação para a reprodução
do modo de vida caipira.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 347
Evans-Pritchard (2002) observou sobre os Nuer que “as primeiras tarefas da infância
156
dizem respeito ao gado. Crianças muito pequenas seguram as ovelhas e cabras enquanto
as mães ordenham; e quando as mães ordenham vacas as crianças carregam as cabaças,
puxam os bezerros para longe dos ubres e amarram-nos em frente das vacas” (p. 48).
348 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
capaz de lidar com a terra e suas plantas, a vida no campo e seus bichos,
não se produzem pessoas, mas animais, afinal o que diferencia um
Capuxu de um animal é a capacidade para o trabalho – embora parte
desses animais desenvolva alguma espécie de trabalho.
Afora o trabalho no roçado, orientado pela dinâmica dos ciclos
agrícolas, é preciso dominar os animais. São dedinhos que aprendem a
ordenhar nas pequenas cabras ou que jogam os milhos para as galinhas
ao som de um “ti-ti-ti”, mãozinhas que tangem as galinhas para o poleiro
e intentam contá-las, mãos capazes de levar o jumento arrastando-o pela
cordinha sempre à frente e amarrá-lo a qualquer árvore. A comunidade
Capuxu requer das crianças não apenas que os dominem, mas que
cuidem deles: mãos capazes de proceder a um curativo com spray de
rifocina sobre a orelha machucada ou a patinha do cão, ou com um
esparadrapo se um corte abriu a pele e o pelo na barriga ou em um dos
seus membros.
Muitas tarefas pertencem exclusivamente às crianças. São elas
que disciplinarão o corpo e o domesticarão para a vida e a labuta no
campo. Todas essas atividades, ou todo o trabalho-aprendizagem,
moldam o corpo da criança, tornando-a pessoa Capuxu. No entanto,
devemos esclarecer que não se trata aqui apenas de preparar a criança
para o futuro, numa espécie de noção de infância atrelada a um devir,
um vir-a-ser, sem significado nela mesma. Não se trata de um aprender
para o futuro, mas, sobretudo, de participar para aprender, para saber-
fazer, agora, e ser aceito pelas demais crianças e por toda a comunidade,
para no futuro assumir a terra, a propriedade e perpetuar a identidade
Capuxu.
Essas tarefas essencialmente infantis, como colocar água na
bacia para a mãe que lava roupa, desligar ou ligar o poço que libera
a água, colocar água e comida para os animais domésticos, varrer
terreiros, tanger os bichos para o curral ou para fora do monturo,
contar as galinhas no poleiro, procurar os ovos perdidos pelo matagal,
dentre outras, compõem as atividades que prepararam o corpo da
criança Capuxu para assumir um número cada vez maior de tarefas, em
quantidade e em importância. Todas elas desenham as formas do corpo
Capuxu como o deseja a comunidade.
Também para tarefas essencialmente femininas existem técnicas:
para lavar roupas de cócoras às margens do açude; para varrer o terreiro
com uma vassoura feita das palhas retiradas do matagal, permanecendo
abaixada por muito tempo até que a tarefa esteja concluída; para cortar
a lenha para o fogo do almoço; para carregar a lata d’água na cabeça
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 349
sem que seja preciso segurá-la – e, por incrível que pareça, aquele
cuidado com a água no depósito termina por forjar um andar gracioso;
para voltar do açude trazendo o irmão menor escanchado em um lado
do quadril, uma trouxa de roupas sobre a cabeça e uma lata d’água
pendurada em uma das mãos.
Afinal, a pessoa Capuxu, além de protegida pelos santos e pelos
benzimentos das rezadeiras do lugar, é portadora de um nome herdado
na genealogia local, apadrinhada por humanos e santos, detentora de
uma forte relação com a natureza e o sobrenatural é também portadora
de um corpo cujas habilidades lhe permitem sobreviver sob o sol
causticante, (sempre representado no desenho das crianças) à estiagem
e às intempéries da natureza.
Sseu corpo pouco ereto é capaz de escapar às folhas urticantes, aos
espinhos, aos gravetos estalados em lanças, aos cipós que o envolvem,
às plantas rasteiras que enlaçam seus pés, à poeira que lhe reveste os
pés e lhe sobe à face provocada por qualquer animal que passe a galope.
Tudo isso se dá pois a caatinga se impõe, tenaz e inflexível, como disse
Euclides da Cunha (2002).
Há um paradoxo corporal notório entre o povo Capuxu,
como em qualquer outro corpo dos seres que habitam os sertões.
Sua aparência é de corpo frágil, postura desengonçada e membros
desarticulados. É um corpo que, antes de qualquer coisa, acocora-
se. É o corpo permanentemente fatigado. O seu caminhar não
traça trajetória retilínea e firme, mas se caracteriza pelo gingado
apreendido pelos traços geométricos das trilhas sertanejas, em que
é preciso desviar do toco, abaixar-se dos cipós e arbustos e erguer os
pés sobre a relva alta.
O sertanejo é treinado através da vida no campo para sobreviver
ao inóspito. Por isso, torna-se, antes de tudo, forte. Assim é que o corpo
se transforma se chega a notícia da vaca caída na estrada, exaurida de
fome e sede, e o sertanejo abandona a rede que lhe acolhia o corpo
quente ou o chão frio de cimento da sala e põe-se rapidamente de pé,
ágil e veloz, a caminho do animal. A apatia abandona o corpo e a força
o ocupa. Assim é se monta o cavalo em disparada em busca da novilha
que se perdeu, se descobre próxima aos seus pés uma cobra peçonhenta
e se dedica a matá-la, quando tem que cortar a lenha e seu corpo assume
uma postura ereta, de braços e troncos fortes a erguer e abaixar a foice
sobre as toras de madeira.
Porém, se chega o entardecer e o final da labuta daquele dia,
permite-se caminhar em desalinho para casa, passos lentos, cabisbaixo.
350 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
relação com o sobrenatural. Por isso, não tomei a escola como locus
privilegiado de análise.
Entretanto, lá me encontrava com as crianças, conversava com
elas e de lá seguíamos rumo aos diversos espaços do Sítio para as mais
diversas experiências. A escola Capuxu não produz um corpo diferente
ou oposto daquele que se produz pelos demais espaços do Sítio. Muito
pelo contrário, como observei em minha dissertação de mestrado
(SOUSA, 2004), a escola dialoga com o roçado, sendo esta uma das
relações mais importantes estabelecida pela escola. Ela dialoga, ainda,
com a família e com a igreja.
A escola Capuxu está realmente inserida na vida do povo Capuxu.
A aprendizagem adquirida na escola se desloca entre os ensinamentos
formais, previstos pelo projeto político-pedagógico, e as necessidades
da vida camponesa. É uma educação adequada, adaptada à vida em
Santana-Queimadas.
Lá se comemora o Dia do Agricultor levando-se as crianças
para plantarem uma horta; discute-se poluição levando as crianças
até os açudes ou ao Rio Goiabeira; comemoram-se as festas juninas
com quadrilhas na casa paroquial; aprende-se sobre plantas levando
as crianças até os roçados mais próximos; aprende-se a contar
contabilizando a própria produção animal da família; e aprende-se
sobre os animais levando-as até os currais.
A aprendizagem Capuxu está completamente imersa na realidade
local. Por isso, a escola se apresenta como um espaço para a construção
do corpo não muito diferenciado dos demais espaços do Sítio, uma vez
que, de tempos em tempos, a escola está lá: em roçados, currais, rios,
açudes e plantações.
Até a alimentação da escola é a mesma que prevalece nas mesas das
famílias Capuxu. Em nada a escola se desvincula da vida camponesa. Ela
está colocada no coração do Sítio, situada próxima aos açudes, riachos,
matagais, currais e casas. Está à margem da estrada principal, por onde
circulam pessoas, animais, imagens de santos, novenas, procissões. Em
tudo a escola está inserida.
Também em seus espaços se produz um corpo útil à vida no
campo. Suas crianças-alunas, com seus corpos marcados pelas quedas
na areia, pelo trato com os bichos, pela marca da corda nas mãos, pelo
piso de casa, que lhes arranhou o joelho, por bicadas de galinhas, entre
outros, treina o corpo para a leitura e a escrita, mas sem nunca o dissociar
da aprendizagem útil para a vida no campo. O Grupo Escolar Porfírio
Higino da Costa se configura num espaço profícuo para a produção do
356 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
O xerém e o cuscuz de milho também são alimentos comuns a todos,
inclusive crianças, especialmente porque, acompanhados de leite, podem
ser servidos para as que ainda não têm a dentição completa. A presença
do milho é sempre muito forte na dieta. O cuscuz é feito do milho ralado,
pisado na mão de pilão ou moído no moinho, um artefato presente em
quase todas as casas das famílias Capuxu. Ele pode ser servido com leite e
manteiga ou com ovos ou carne, acompanhado de coentro, cebola e tomate.
As crianças adoram acrescentar ao cuscuz com leite o açúcar.
Terezinha. Ela está fixada próxima à porta da cozinha do Grupo Escolar Porfírio Higino
da Costa e está em vigor desde 2012.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 361
Figura 45 – Várias comidas à base de milho: broas, canjica com canela, angu, bolo de
milho e quarenta, importantes alimentos da dieta Capuxu.
O rubacão também é um prato muito comum no cotidiano do
Sítio por aliar dois dos principais alimentos de sua dieta: o feijão e o
arroz.159 O rubacão é também conhecido como baião de dois, prato em
que o feijão e o arroz são cozidos juntos, com carne de charque ou de
sol, queijo de coalho etc. Essas comidas são, em geral, produzidas no
fogão a lenha, pois eles acreditam que a comida fica mais saborosa do
que se preparada no fogão a gás.
Aliás, o queijo de coalho é feito no próprio Sítio, nas cozinhas,
e é um alimento presente em praticamente todas as casas. Faz-se
queijo de coalho inclusive quando, nos anos bons de inverno, o leite
é muito e pode correr o risco de estragar. Para que isso não ocorra,
coloca-se o soro no leite e passa-se ao processo de produção do
queijo de coalho. Todos os derivados do leite são importantes para
a dieta dos Capuxu, incluindo aí a manteiga da terra ou a manteiga
de garrafa.
sendo constituído por feijão, arroz e milho (no caso dos Capuxu, o terceiro elemento
seria representado pela farinha ou pelo cuscuz).
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 363
temperos, que podem ser gergelim, castanha de caju, leite de coco, erva-doce, cravo,
canela, gengibre, pimenta-do-reino entre outros.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 365
162
DaMatta (1984) já havia sugerido que a farinha seria o cimento que liga os demais
elementos no prato do brasileiro. Entre os Capuxu esse papel de cimento, de elo a ligar
alimentos, pode ser dado à farinha ou ao cuscuz.
O modelo alimentar é constituído das características alimentares e nutricionais
163
“confusão”, “bagunça”. No entanto, teve sua origem nas garrafadas feitas com ervas,
raízes e caules de plantas diversas para os mais diversos fins.
Capítulo 6 ■ A produção da pessoa Capuxu... 367
165
Rodrigues (2006) comentou os rituais de desmame entre as crianças hopi,
demonstrando que a transição do seio para alimentos sólidos varia de sociedade para
sociedade: “As crianças hopi recebem pequenos pedaços de alimentos previamente
mastigados por vários membros da família e que são postos em sua boca, cedo
aprendendo a sugar milho, carne e frutas” (EGGAN, 1965 apud RODRIGUES, 2006, p.
66).
Evans-Pritchard (2002) observou costume semelhante entre os Nuer, afirmando que
166
167
Pires (2010) e Benjamin (2010) se dedicaram a uma análise do emprego do dinheiro
pelas crianças numa cidade pequena do sertão da Paraíba. Elas observaram que as
crianças também priorizam os alimentos e analisaram suas escolhas a partir de duas
categorias nativas: os brebotos e burigangas, definidas pelas autoras como comidas de
crianças. Brebotes é uma expressão regionalista que define uma comida gostosa, mas de
baixo valor nutritivo. Burigangas seria uma variação de bugigangas: objetos ou coisas
sem valor. Entre os Capuxu é comum o uso do termo breboto como uma variação de
brebote, mas não fiz registros do uso do termo buriganga.
370 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
que se colocam para elas: isso tanto pode dizer respeito a escalar uma
porteira quando não se tem força suficiente para abrir seu fecho como a
enterrar os dentes de leite quando uma cisterna vinculada ao telhado as
impede de jogá-los lá.
Assim, penso que o arsenal teórico escolhido para esta pesquisa
permitiu lançar luz sobre o empreendimento antropológico que
ensejei realizar: o de investigar a produção da pessoa Capuxu a
partir da fabricação de corpos na infância. Além disso, acredito que
empreendimentos como este podem trazer contribuições às pesquisas
sobre infância, demonstrando como a análise de um povo centrada nas
crianças anuncia relevantes aspectos sobre a vida do povo em geral. Esta
análise da infância Capuxu não revela um universo infantil deslocado
dos adultos, mas reflete um contexto em que as crianças participam da
vida social de forma mais ampla.
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388 Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância
Estado da Paraíba
Prefeitura Municipal de Santa Terezinha
Secretaria de Educação, Cultura, Esporte e Turismo
Cardápio Mensal – Escolas Rurais 2012
Macarrão Sopa de
Salada de Baião de
com legumes
frutas com Café com leite três
2 sardinha
mel Quarenta Abóbora Carne de soja
Suco de
Biscoito cozida Bolacha
fruta
Arroz com
Macarrão purê de batata Farofa de Sopa de
com e frango feijão verde com legumes Vitamina de
3 sardinha Salada verde cuscuz, ovos e fruta
charque Carne soja
Suco de (alface e Bolacha
fruta Suco de fruta Bolacha
tomates
picados)
Arroz de
Macarrão Sopa de leite, carne
Salada de
com molho legumes charque,
frutas Café com leite
4 soja e batata-doce,
com mel Quarenta Carne soja
almôndegas salada verde
Biscoito Bolacha (alface e
Fruta
tomates)
Todos os legumes e verduras são planejados de acordo com a época do ano e a safra para
garantia da qualidade do produto.
Os produtos devem ser armazenados da melhor maneira possível para serem consumidos
nos dias estipulados no cardápio.
Este livro foi editorado com a fonte Minion Pro e Roboto
Slab. Miolo em papel pólen soft 80 g; capa em cartão supremo
250 g. Impresso na Gráfica e Editora Copiart em sistema de
impressão offset. Tiragem: 500 exemplares.
A Coleção Brasil Plural tem como objetivo dar
visibilidade às pesquisas realizadas pelo Instituto
Nacional de Pesquisa Brasil Plural (INCT/CNPq).
Busca retratar as diferentes realidades brasileiras em
toda a sua complexidade e contribuir para a elaboração
de políticas sociais que levem em consideração as
perspectivas das populações e comunidades estudadas.
Além disso, visa formar pesquisadores e profissionais
que atuem com essas populações.
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