Resenha "O Que Acontece No Escuro", de Davi Koteck
Resenha "O Que Acontece No Escuro", de Davi Koteck
Resenha "O Que Acontece No Escuro", de Davi Koteck
Num dos textos mais emblemáticos para pensar a estética contemporânea e sua
consolidação nas artes plásticas, na música e na literatura, Umberto Eco (1997) propõe a
presença obsidiante da “obra aberta” e suas múltiplas figurações, procurando observar a sua
capacidade de não esgotamento total diante das variantes de leitura (sociológica, filosófica,
psicanalítica, semiótica e teológica, por exemplo), em virtude de sua ambiguidade.
Para o semiólogo italiano, uma obra aberta deve ser compreendida enquanto objeto
artístico com uma faculdade inesgotável de proporcionar vieses analíticos, na medida em que,
no lugar de um “mundo ordenado segundo leis universalmente reconhecidas substitui-se um
mundo fundado sobre a ambiguidade, quer no sentido negativo de uma carência de centros de
orientação, quer no sentido positivo de uma contínua revisibilidade dos valores e das
certezas” (ECO, 1997, p. 47).
Nada mais justo recuperar o autor de Obra aberta para tecer algumas reflexões em
torno do primeiro livro do jovem escritor brasileiro Daniel Koteck. Com textos seus já
publicados na São Paulo Review (2019), Mallarmargens (2020) e Qualquer ontem (2019,
antologia), Daniel Koteck estreia com a coletânea de contos O que acontece no escuro (2019).
Mesmo se tratando de uma obra inaugural e com uma trajetória por trilhar, não se poderá
negar que o presente título vem preencher um significativo espaço de renovação e frescor que
a novíssima ficção brasileira tem imprimido nos últimos anos.
Ao lado de nomes emergentes e significativos, como os de Carol Bensimon (autora da
“Apresentação”), Cristina Judar, Daniel Galera (responsável pela exposição da badana
frontal), Felipe Franco Munhoz, Geovani Martins, Itamar Vieira Júnior, Jorge Ialanji
Filholini, Natália Borges Polesso e Veronica Stigger, dentre outros, Davi Koteck estabelece o
seu local de entrada nesse seleto grupo, investindo sobre o gênero conto.
Lidos em conjunto, são pequenas peças cujos eixos giram em torno de temas
contemporâneos viscerais, tais como o confronto com a solidão e a sensação de incompletude
diante de relações ocasionais (“Campos neutrais” e “Pedaço de madeira”), a saída da casa dos
pais e a formação da própria família (“Como se fumasse um cigarro”), o confronto com a
morte e a percepção da pequenez da vida (“Led Zeppelin para dançar diariamente”), a
compreensão do próprio corpo (“Para tão longo amor tão curta vida”), o alcoolismo (“Viver é
fácil de olhos fechados”), a mediocritas do cotidiano e seus efeitos na formação do indivíduo
(“No dia em que recolheram o Monza”), a hipervalorização de datas festivas e a futilidade dos
consumismos (“Antinatal”), os dilemas da adolescência, como a vida sexual, a gravidez
1
Doutor em Literaturas Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela Faculdade de Letras da UFRJ. Professor
Associado de Literaturas de Língua Portuguesa (Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa) do Departamento de Letras e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Literatura da UFSCar.
precoce e o aborto (“Use o assento para flutuar”), os conflitos deflagrados diante da
descoberta da doença (“Nine out often”), as relações afetivas entre pessoas com diferença de
idade (“Um pouco estranhos”), a separação dos pais pelo divórcio (“Mais traído do que
nunca”), as ambiguidades entre amizade e relação homoafetiva, ainda que momentânea (“E
ele sempre chegava”), a descoberta da homossexualidade do irmão (“O meu irmão”), a
sensação pendular de estar entre o delírio e a realidade (“O que acontece no fim”), a
orfandade (“O que acontece no escuro”), a solidão e a sensação de blackout (“O caminho de
casa nunca foi tão escuro quanto agora”).
Numa primeira leitura, é possível detectar a autonomia dos textos e sua independência
em relação aos demais. No entanto, a insistência num narrador autodiegético em todos eles
não deixa de abrir uma outra possibilidade de leitura na arquitetura de O que acontece no
escuro. Ainda que entenda a obra, tal como configurada desde a página frontal, como uma
recolha de contos do autor, fico a me interrogar se todas as experiências narradas por uma
primeira pessoa não poderão ser lidas como um grande mosaico de um mesmo “eu”, que, a
cada página e a cada trama, tem de se confrontar com choques inevitáveis de sua realidade
cotidiana.
Não à toa, todos esses eus protagonistas, volta e meia, esbarram em aventuras afetivas
e sexuais furtivas com jovens de mesmo nome – Ana, Flavia e Júlia reaparecem de um conto
para outro – do mesmo modo como algumas referências espaciais em comum são recuperadas
– as salas de aula da faculdade, as festas e os consultórios médicos para a recepção do
diagnóstico de alguma doença –, deixando no leitor muito mais uma sensação de continuidade
do que de arquitetura individual e desligamento. Mesmo assim, o mais interessante neste caso
é que os textos mantem a sua autossuficiência de universo distinto, tanto do conto antecedente
quanto do posterior.
Um dos pontos mais instigantes é a construção das personagens femininas, porque elas
tem uma função primordial nas tramas. São elas que deflagram a visível necessidade do(s)
protagonista(s) em exorcizar os fantasmas da solidão e da ausência, além de serem elas as que
conseguem compartilhar uma parcela das aventuras experimentadas. Ana, por exemplo,
aparece nos contos “Campos Neutrais”, “Pedaço de madeira” e “O que acontece no fim”;
Flávia surge em “Para tão longo amor tão curta a vida” e “O que acontece no fim”; Júlia em
“No dia em que recolheram o Monza”, “Como se fumasse um cirgarro só que ao contrário”,
“Um pouco estranhos”, “Ele sempre chegava” e “O caminho de casa nunca foi tão escuro
quanto agora”. Outras, com apenas uma aparição, não deixam também de exercer a função de
desencadear sentimentos cáusticos e corrosivos, como acontece com Laura, em “Led Zepelin
para dançar diariamente”; Lúcia, em “Use o assento para flutuar”; e Amanda, em “Nine out
often”.
Do mesmo modo, essa técnica de valer-se do outro para expor e expurgar sentimentos
e sensações de desassossego e, ao mesmo tempo, de necessário confronto também pode ser
constatada nas personagens com laços familiares, como ocorre com as figuras da mãe, em “O
que acontece no escuro”, e do pai, em “Viver é fácil de olhos fechados”, “Como se fumasse
um cirgarro só que ao contrário”, “Antinatal” e “O meu irmão”. Ao contrário das jovens com
quem desenvolve laços de afinidade e sintonia, os familiares são todos inominados, quase que
numa sugestão da pouca intimidade entre eles, com uma exceção, apenas, no conto “O meu
irmão”.
Aqui, é preciso estar atento para não cair numa armadilha em considerar tanto as
figuras femininas de maior, quanto as de menor aparição, como meras repetições entre si de
situações marcadas pelo desengano, pelo desencontro e pela transitividade do tempo. De
forma muito engenhosa, o autor vai alterando as cenas de encontro, de desenvolvimento de
relacionamentos e de desfechos entre ele e as jovens, não permitindo, na verdade, qualquer
tipo de reincidência, a ponto de as transformar em autênticas e “multíplices perspectivas”
(ECO, 1997, p. 40). Só assim, consegue explorar a possibilidade de entrada do seu receptor,
com “uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada,
uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de forma que a
compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva
individual” (ECO, 1997, p. 40).
Sem querer roubar o prazer da leitura, não resisto deixar dois exemplos sintomáticos, a
fim de confirmar a minha perspectiva de entender os contos, no seu conjunto, como pequenas
“obras abertas” (ECO, 1997). O inevitável atrito com a homossexualidade alheia concede ao
texto uma ambiguidade ímpar, nas duas vezes em que o tema surge em O que acontece no
escuro (2019).
Em “E ele sempre chegava”, a presença do amigo de Júlia expõe uma diferença
gritante entre este e o protagonista, ao ponto de suas orientações sexuais emergirem como
campos bipolares e incomunicáveis: “No que ele era colunista da Veja, eu, Adorno. Quando
ele dizia bossa nova, jazz. Phil Collins, Cohen. Karnal, Camus. Cerveja, eu, vinho. Ele gay e
eu, hétero” (KOTECK, 2019, p. 84).
A partir dessa diferença, a incomunicabilidade parece ser a única tônica possível, no
entanto, no lugar de apelar para uma certeza absoluta, o narrador-protagonista prefere deixar a
dúvida como forma de entender as ambiguidades humanas: “Ele pôs a mão na minha coxa e
meu pau começou a formigar” (KOTECK, 2019, p. 85).
O passeio de carro até à praia, do narrador autodiegético com o seu “quase” amigo,
pode ser lido, nesse sentido, como uma metáfora da própria trajetória pela qual o sujeito
precisa passar para compreender as sutis nuances que as sexualidades insinuam. Não à toa, o
protagonista, que nunca havia fumado, pede um cigarro e sorve quase todos até à chegada no
destino final. Exatamente ali, a beira-mar, as reticências surgem como instrumento funcional
para entender as volúveis fronteiras que o narrador considerava certas e intransponíveis:
Agora era mais tarde ainda, só eu e ele na praia, ele me olhava com os olhos
gordos e meu pau pulsava na calça como se bombeasse sangue pro resto do corpo.
Eu disse que era hora de ir, e ele ficou quieto mais uma vez. Deu dois passos pra
frente e me encarou bem de perto. Eu respirei fundo e senti o cheiro da Júlia,
nunca tinha percebido o quão parecido eram os olhos deles (KOTECK, 2019, p.
87).
Interessante observar que, como em outros contos, a percepção das coisas e do meio
dá-se não apenas pela visão, mas, sobretudo, pelo olfato, através do qual o protagonista
consegue um grau de apreensão e de convivência do/no mundo. É claro que tudo não passa de
pura insinuação, mas, por detrás da dissimulação, se é possível pensar numa fluida fronteira
entre a amizade e a homoafetividade dos dois rapazes, isso só se torna plausível, graças à
capacidade do autor em projetar uma “germinação contínua de relações internas” (ECO, 1997,
p. 64), de que o leitor necessita para chegar à sua conclusão.
Acredito que, aqui, reside a bem sucedida artimanha de Davi Koteck, porque consegue
sugerir sem explicitar, apenas indicando possibilidades de leitura para o desfecho da trama.
Ora se pode optar por uma inquestionável heterossexualidade do narrador e os reflexos da
ereção como uma reação em cadeia, ora não deixa de ser cabível o impasse em que ele
próprio se vê, ao notar a sua excitação não com Júlia, mas com um amigo dela.
É, portanto, a capacidade de desenvolver uma “percepção da totalidade dos estímulos”
(ECO, 1997, p. 64) o principal recurso desenvolvido pelo autor, ao longo desse conto. Mais
interessante se torna, porque, no seguinte, “O meu irmão”, novamente o protagonista precisa
se confrontar com a homossexualidade, mas não levando em conta as reações do seu próprio
corpo, mas no do seu irmão mais velho e com a mesma carga de insinuação, instando o leitor
a participar, “descobrir e escolher” (ECO, 1997, p. 64) a carga total de soluções plausíveis
para os impasses efabulados na trama.
A carga memorialística constitui uma tônica não apenas desse, mas de outros contos
de O que acontece no escuro (2019). Talvez, por isso, para tentar deixar essas lembranças na
órbita da impessoalidade, o irmão também é inominado, porque, muito mais importante que a
certeza do nome, é a dúvida salutar que a personagem instaura no universo familiar do
narrador.
Da ausência da mãe (terá sido aquela acidentada no conto homônimo “O que acontece
no escuro”?) à orfandade e, consequentemente, à mudança para um possível lar adotivo (ou
não), não há certezas expostas: “Depois, fomos morar com um homem mais velho que se
chamava de pai, embora meu irmão o chamasse sempre pelo primeiro nome” (KOTECK,
2019, p. 89). Igualmente, movido por uma tentativa de recuperação das ruínas de um passado
familiar, o narrador insinua o choque entre o pai e o irmão sem descrever qualquer detalhe
mais preciso sobre o embate: “Teve uma vez que chovia tão forte ao ponto de ouvir o barulho
das gotas. O homem mais velho abriu o quarto do meu irmão e disse que porra é essa, cara. O
resto da conversa não deu para escutar, porque o barulho da chuva martelando o telhado era
mais alto do que o eco da gritaria” (KOTECK, 2019, p. 89-90).
Ora, o autor consegue prender a atenção do leitor e inseri-lo nas soluções possíveis
para entender as razões da saída do irmão da casa. É o que ocorre quando este ressurge, numa
das visitas, acompanhado de Flávio, um homem “mais velho do que ele, mais magro do que
ele, e tinha a barba turva, cheia de redemoinhos”, e apresenta-o como “alguém muito especial,
e lembro de pensar se ele era mais especial do que eu, mesmo sabendo a resposta” (KOTECK,
2019, p. 91). Somente na última despedida, alguma certeza esboça-se:
Antes do funeral do meu irmão, meu pai ficou ajoelhado em casa, perto do
tanque. Dirigi até o cemitério em terceira marcha, e a lomba da rua pareceu uma
linha plana. Flávio estava ao lado esquerdo do caixão, usava um blazer preto
amassado, tinha os olhos gordos, a mesma falha na barba, o espaço que sobrava na
bochecha. Pus a mão nos ombros dele, dei um beijo seco na testa e senti na hora
um cheiro afogado de sabão em pó (KOTECK, 2019, p. 91).
KOTECK, Daniel. O que acontece no escuro. Porto Alegre: Editora Taverna, 2019.