Artigo Abril Nepa UFF 2023
Artigo Abril Nepa UFF 2023
Artigo Abril Nepa UFF 2023
RESUMO:
Este trabalho apresenta, num primeiro momento, uma breve reflexão sobre a relevância da
efabulação do tema da violência e de seus respectivos ecos, seja na tônica da representação de
abusos das mais diversas ordens, seja na efabulação da dinâmica dos seus efeitos colaterais.
Em seguida, propõe-se uma leitura do mais recente romance da escritora portuguesa Tânia
Ganho, Apneia (2020), destacando as representações de violências e abusos contra
personagens femininas e infantis. Para tanto, tomaremos como suporte teórico alguns
pressupostos de pensadores das Ciências Humanas, como Hanna Arendt (1985), Judith Butler
(2021), Marie-France Hirigoyen (2010) e Zygmunt Bauman (2008).
Palavras-chave: Violências. Abusos. Representações ficcionais. Novíssima ficção
portuguesa. Tânia Ganho.
ABSTRACT:
This work presents, at first, a brief reflection on the relevance of fabulating the theme of
violence and its respective echoes, whether in terms of the representation of abuse of the most
diverse orders, or in the fable of dynamics of its side effects. Then, a reading of the most
recent novel by the Portuguese writer Tânia Ganho, Apneia (2020), is proposed, highlighting
the representations of violence and abuse against female and child characters. To do so, we
will take as theoretical support some assumptions of Human Sciences thinkers, such as Hanna
Arendt (1985), Judith Butler (2021), Marie-France Hirigoyen (2010) and Zygmunt Bauman
(2008).
Keywords: Violences. Abuses. Fictional representations. Brand new Portuguese fiction.
Tânia Ganho.
Ela caiu em si e abraçou-o. Seria assim que se criavam pessoas neuróticas, pensou,
pessoas que se habituavam a viver imersas na violência? Pessoas para quem era
normal a bofetada psicológica seguida de um gesto de carinho? O seu cansaço
deixava-a sem filtros.
Tânia Ganho. Apnéia, p. 466.
1
Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa) pela Faculdade de Letras da UFRJ. Professor Titular de
Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras da UFSCar. Bolsista Produtividade do CNPq.
Presidente da ABRAPLIP – Gestão 2022-2023.
Abordar a violência nunca foi uma tarefa tranquila e de fácil desenvoltura. Mesmo
com todas as fortunas críticas disponíveis nas mais diversas áreas das Humanidades, essa
questão sempre suscitou dificuldades, para não dizer repulsas, sobretudo quando, no momento
de analisar uma determinada obra literária sobre este viés, os atos efabulados são dirigidos a
personagens representativas ora de classes sociais desfavorecidas, ora de grupos étnicos
demarcados por uma segregação injusta, para além daquelas que trazem à cena as questões de
gênero nos seus mais diferentes matizes (mulheres, personagens lgbtqia+ e crianças, por
exemplo).
Para mim, especificamente, um professor e pesquisador homossexual, cisgênero e
oriundo do Rio de Janeiro, cidade por demais conhecida pela turbulência urbana (como toda
grande metrópole, aliás, acaba se destacando), já tive a oportunidade de presenciar diversas
cenas de violência, vivi de perto muitas delas, sofri buyling e vi-me, não poucas vezes, no
meio do escárnio coletivo seja no trabalho, seja na rua ou mesmo no ambiente familiar. Em
outras palavras, a violência não me é estranha, ainda que, em muitas situações, sobretudo na
atualidade, eu ainda me surpreenda com a capacidade humana de exercer a intolerância e a
truculência sobre o outro, por motivos mais banais.
Ainda que já tenha visto, vivido e, mais atualmente, lido sobre o tema, por causa do
trabalho de investigação sobre a novíssima ficção portuguesa, alguns títulos não deixam de
me inquietar, sobretudo pela forma como conseguem efabular situações tão incompreensíveis
e as dimensionar no universo da criação literária. Nesse sentido, se a ficção brasileira
contemporânea constitui um manancial onde abundam exemplos e casos muito bem
conseguidos – quem não se recordará de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins; de Histórias
de amor (1997), de Rubem Fonseca; ou, ainda, de Nossos ossos (2013), de Marcelino Freire;
ou mesmo Marrom e amarelo (2019), de Paulo Scott, para além de outros títulos que fazem
com que Tânia Pellegrini aponte a maneira “inegável que a violência, por qualquer ângulo que
se olhe, surge como organizadora da própria ordem social brasileira e como um elemento
constitutivo da cultura”, daí que “como consequência, a experiência criativa e a expressão
simbólica, como acontece com a maior parte das culturas de extração colonial, estão
profundamente marcadas por ela” (PELLEGRINI, 2008, p. 179)? –, não menos a ficção
portuguesa nascida a partir dos anos 2000, ou seja, florescida no século XXI, traz no seu bojo
exemplos paradigmáticos dessa percepção de uma presença inevitável da violência no
cotidiano sócio-afetivo.
Ao abordar o romance português das últimas décadas, Miguel Real, talvez, um dos
mais atentos leitores da novíssima ficção portuguesa, chama a atenção para a relevância da
violência, enquanto instrumento importante no constructo ficcional de um autor como
António Lobo Antunes. No entanto, não deixa de ser curioso o fato de o mesmo crítico não
dar uma atenção especial ao tema, diante das possibilidades que o(a)s autore(a)s
portuguese(a)s do século XXI podem oferecer.
Num breve olhar, não são poucos os casos em que a violência emerge como um
demarcador sócio-cultural no contexto português. Já mesmo nos anos posteriores à Revolução
dos Cravos, três exemplos podem ser apontados como obras de destaque pela forma como
revelam as reações de seus/suas protagonistas diante de cenas de truculências, abusos e
hostilidades. No meu entender, Ema (1984), de Maria Teresa Horta, sobressai pela forma
como expõe as violências perpetradas dos homens sobre as mulheres, de forma repetida de
geração em geração. Mas, ao contrário de sua homônima oitocentista – Emma Bovary –, a
Ema de Maria Teresa Horta não toma cianureto ou ameaça se matar. Ela mata o seu agressor,
o seu marido. Ou seja, ao contrário de sua avó e sua mãe, ela é uma mulher que mata, em
defesa do seu próprio corpo, de sua liberdade e de sua vida. Também A costa dos murmúrios
(1988), romance de Lídia Jorge, por demais abordado pela crítica sob este viés, expõe uma
série de brutalidades no cenário das guerras de libertação em Moçambique, para além do
próprio corpo da protagonista (Evita/Eva Lopo), que incide como uma voz resistente aos
desmandos machistas. Por fim, Ursamaior (2000), de Mário Cláudio, debruça-se sobre e
efabula um assassinato ocorrido no Porto, reiterando a violência urbana e as suas
reverberações dentro do sistema carcerário, com uma cena antológica de um estupro coletivo
num presídio masculino.
Se, como nos faz crer Isabel Cristina Rodrigues (2014), a novíssima ficção portuguesa
mantém uma relação de aproximação e, ao mesmo tempo, de afastamento com a tradição
literária alicerçada em nomes como José Saramago, António Lobo Antunes, Agustina Bessa-
Luís, dentre outros, criando uma espécie de espaço “entre-dois” (RODRIGUES, 2014, p.
106), então, gosto de pensar que, na esteira daquela violência já encenada em décadas
anteriores, alguns/algumas autores(a)s da atualidade parecem beber nessa mesma fonte,
exacerbando e levando até às ultimas consequências não apenas os distintos modos como a
hostilidade se espalha e se mantém, mas também os diferentes medos sentidos por quem sofre
a agressividade.
Assim, não será à toa que alguns títulos, na esteira daquilo que Miguel Real (2012) irá
designar como uma prática cosmopolita do romance português atual – qual seja, de uma
ficção que não se restringe ao universo e aos leitores portugueses, mas extrapola as fronteiras
geográficas com uma amplitude na abordagem dos principais temas da atualidade – irão
reiterar esse modus operandi nos mais variados cenários ficcionais. Romances, como O
coração dos homens (2006), de Hugo Gonçalves, surpreendem pelo despojamento com que
descreve cenas explícitas de violência misógina e machista. Confesso que este texto já me
pegara desprevenido pela forma avant la lettre com que lida com a “masculinidade tóxica”2,
termo delineado nos últimos anos, e que surge nas suas páginas, reconfigurando as múltiplas
masculinidades abarcadas no mundo atual. Aliás, a violência machista e misógina será
igualmente um dos aspectos efabulados no romance Deus Pátria Família (2021), sobretudo,
na composição de uma das personagens, um serial killer com um perfil específico de vítima:
mulheres jovens em situação vulnerável são assassinadas e abandonadas com vestes que
remontam aos ofícios religiosos. E ele próprio, o criminoso, sofrera no passado com a
violência física perpetrada pelo amante da mãe e com a pedofilia de um padre que deveria
zelar pela sua estabilidade e educação.
De igual modo, valendo-se da abjeção como um dos elementos da construção
actancial, Gonçalo M. Tavares investe nos espaços hospitalares confinados, em Jerusalém
(2004), e evoca com pertinência as barbáries cometidas pelo regime nazista sobre os judeus e
o horror ostentado por agentes médicos sobre seres humanos indefesos. Também João Pinto
Coelho, em Perguntem a Sarah Gross (2015), não poupa os detalhes traumáticos causados
pelos campos de concentração e pela perseguição aos judeus executados pelos nazistas,
sobretudo, às mulheres que tiverem de conviver dia após dia com os seus torturadores.
Outro romance que também evoca as atrocidades dos regimes ditatoriais é As longas
noites de Caxias (2019), de Ana Cristina Silva. Nele, a autora volta-se para a recuperação de
tempos de autoritarismos e impressiona pelo rigor com que investe na efabulação da tortura e
dos agentes femininos da PIDE, responsáveis pela sua manutenção com requintes de
brutalidade, sobre mulheres perseguidas pelo Estado Novo Salazarista. E se as décadas
anteriores ao 25 de Abril de 1974 fornecem matéria para as narrativas preocupadas em
perceber as atrocidades cometidas sobre os menos favorecidos e os silenciados, não menos os
tempos democráticos parecem ter aliviado a cota de violência sobre a mulher e sobre as
crianças. Nesse sentido, A construção do vazio (2017) e As crianças invisíveis (2019), de
Patrícia Reis, pintam cenários familiares, onde sobejam os abusos contra menores e as mais
variadas formas de violência de gênero.
2
Conceito definido por María López Villodres (2019) como uma espécie de masculinidade hegemônica, que se
impõe pela agressividade na resolução dos problemas e pela invulnerabilidade em relação às mulheres e às
dissidências sexuais. Tal postura reitera uma hierarquia do patriarcado, cujos sentimentos dos homens são
reprimidos como uma forma de legitimização do poder.
Como se pode perceber, diante desse breve quadro, a ficção portuguesa do século XXI
longe está de ser entendida como um conjunto despreocupado com as questões sociais mais
prementes. E, nesse elenco de possibilidades, bem recentemente, uma obra chamou a minha
atenção não só pela ousadia em abordar temas tão sensíveis e complexos, como a violência de
gênero, o abuso sexual de menores e a pedofilia, mas também pelos mecanismos articulados
na trama narrativa para prender a atenção do leitor, fazendo-o seguir adiante até o fim do
volume, ainda que, muitas vezes, a repulsa venha à tona diante das sequências narradas.
Refiro-me ao impactante romance Apnéia, de Tânia Ganho3.
Trata-se, na minha perspectiva, de uma daquelas obras que, nos moldes explicados por
Roland Barthes, só é possível “ler levantando a cabeça” (BARTHES, 1988, p. 40), tal a
confluência de reflexão e interrogação que suscita no leitor. Ao final, as sensações de
desgaste, impotência e incômodo vão se intercalando à medida que as ideias vão confluindo e
a dinâmica narrativa ganha compreensão no universo do leitor. Mas, o que há de tão
surpreendente nas quase 700 páginas desse denso e longo romance?
Em primeiro lugar, acredito que a forma como a narrativa se estrutura, com capítulos
relativamente curtos, na medida em que, na sua grande maioria (com exceção de alguns
pouquíssimos capítulos), procuram não ultrapassar uma média de cinco a seis páginas no
máximo, contribui para a assimilação das situações descritas ao longo da trama. Isto porque
somos levados a entrar aos poucos e de forma muito gradativa nos espaços privados da célula
familiar composta por Alessandro, um empresário italiano que se casa com Adriana, uma
jovem artista plástica portuguesa, que se encontra num momento de conclusão do seu
mestrado com um estudo comparativo entre literatura e artes plásticas. Da união matrimonial
dos dois, nasce Edoardo, uma criança que, com o decorrer do tempo, vai desenvolvendo
traumas, em virtude dos gestos de impaciência, intolerância e violência do pai. Toda o enredo
envolve o período de sua infância até a adolescência, momento em que são revelados os
segredos que traumatizam o jovem e como este se revolta contra o pai e acaba se
aproximando mais da mãe.
3
Nascida em Coimbra, Tânia Ganho é Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, tendo trabalhado
durante vários anos em legendagem para televisão e cinema. Foi assistente convidada na Universidade de
Coimbra, onde leccionou tradução literária, área a que se dedica há mais de 20 anos. Traduziu autores como
Hervé Le Tellier, Angela Davis, Siri Hustvedt, Maya Angelou, Leila Slimani, Chimamanda Adichie, Amor
Towles, David Lodge e Alan Hollinghurst, entre muitos outros. É autora dos romances A vida sem ti (2005),
Cuba Libre (2007), A lucidez do amor (2010), A Mulher-Casa (2012) e Apneia (2020), com o qual se destacou
como finalista do Prémio Livro do Ano 2020, da Editora Bertrand, e do Prémio Fernando Namora 2021. Tem
vários contos publicados na revista Egoísta.
Numa das cenas inicias, o narrador descreve um desentendimento entre o casal por
causa da maneira como Alessandro se refere aos pais idosos, desejando que sofram um
acidente e morram, para que ele não precise tomar conta deles. Sem acreditar no que ouvira,
Adriana exige do marido uma retratação e este, por sua vez, num rompante, grita-lhe uma
série de impropérios e sai com o filho pequeno no colo, sem dar qualquer notícia à mulher.
Nessa sequência, o leitor percebe que não está diante de uma história comum de mais um caso
de briga de casal. Na verdade, ao devassar a privacidade da casa dos dois, o narrador parece já
dar pistas das aproximações que pretende desenvolver com a personagem feminina:
Ora, já nesta sequência inicial, é possível detectar algumas pistas sobre a construção
das personagens e das situações que envolvem a violência4 de Alessandro sobre Adriana e,
posteriormente, sobre Edoardo. Ao longo de todo o romance, ficamos diante de uma
personagem feminina temerosa de se colocar contra o marido, a ponto de desenvolver
pensamentos de autodepreciação, como se estivesse levando tudo para um ponto de exagero e
paranoia, além de reforçar os gestos de importunação, desvalorização e desrespeito do marido
sobre a sua condição de mulher e de mãe. Não me parece à toa, por exemplo, que a
palmadinha no braço transmita a sensação de que o homem a considera inferior, daí a sua
sensação de se sentir um cão.
Não serão poucas vezes, portanto, as devassas do narrador sobre os pensamentos e as
perspectivas de Adriana, em que ela própria põe em dúvida as suas reações e os seus temores,
tentando minimizar e adiar o inevitável. Por mais que a focalização na heterodiegese aponte
4
De antemão, adianto que a noção de violência aqui adotada vai ao encontro da definição esboçada por Carme
Alemany, para quem, “as violências contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas
englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública,
sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos, com a finalidade de intimidá-las, humilhá-las, atingi-las na sua
integridade física e na sua subjetividade” (ALEMANY, 2009, p. 271). Dentre as variadas maneiras de
manifestação da violência, para além das citadas, ainda incluo a violência de gênero.
para uma possível neutralidade na forma de narrar, sugerindo aquela “distância crítica do
antigo realismo” (PELLEGRINI, 2008, p. 190), o romance de Tânia Ganho não cai na
armadilha de uma não identificação com a matéria narrada, posto que, na cena acima, a
maneira como o narrador vai se aproximando de Adriana e imprimindo nas instâncias
actanciais os seus medos, as suas dúvidas e, acima de tudo, as suas ansiedades, revela-se
como um narrador observador extremamente sensível com a matéria moldada pela
efabulação.
“À distância do futuro, tudo parece um prenúncio” (GANHO, 2021, p. 45), declara a
voz narrante, antes de revelar mais uma das insensibilidades do marido. Antes mesmo do
casamento, ao sofrer um acidente em casa, bater a cabeça e quase desmaiar, Adriana fica
surpresa com a indiferença de Alessandro e com a sua forma imperturbável de não parar o que
estava fazendo e socorrer a companheira. Num primeiro momento, Adriana recusa-se a
perceber que todas essas pistas escondem uma natureza perversa, violenta e implacável: “Os
sinais estavam todos lá. [...] Adriana vira os sinais – os símbolos – e decidira não lhes dar
importância. Rotulara-os de excentricidades e idiossincrasias, stresse e ciúmes. Existe um
rótulo complacente para tudo aquilo que queremos justificar” (GANHO, 2021, p. 46-47).
Ao vasculhar meticulosamente as cenas privadas da vida familiar, o narrador vai
descortinando um cenário onde a “violência perversa” – ou seja, aquele tipo de agressividade
que se instala “quando o afetivo falha, ou então quando existe uma proximidade
excessivamente grande com o objeto amado” (HIRIGOYEN, 2010, p. 21-22) – se instaura e
contamina a trajetória de mãe e filho. Isto porque se o movimento perverso reside na total
falta de afetividade e sintonia entre Alessandro e Adriana, por outro lado, é o amor
incondicional desta por Edoardo, seu filho, que a fará se movimentar, mais adiante, de forma
destemida.
Todo o declínio afetivo surge metaforizado na imagem da planta, do hibisco deixado
no pórtico da casa da Atalaia, espaço destinado à vida em família das três personagens, e
quando este começa a espelhar os vestígios de que o casamento já não sustentava o frescor
dos anos iniciais. As relações com a vizinhança são reduzidas aos gestos mínimos de
educação e bom convívio, no entanto, o narrador é enfático ao decretar: “talvez o ar do seu
casamento já estivesse tão estagnado e fétido, que contaminasse o espaço em redor”
(GANHO, 2021, p. 22).
Acompanhando as mudanças espaciais do casal, o hibisco sugere uma espécie de
metáfora daquilo que um dia cresceu e que cedeu ao sufocamento do cotidiano. Ainda que a
planta não tenha florescido, a ponto de se conseguir identificar a sua espécie, o fato de se
indicar uma flor que necessita de cuidados, sobretudo, por causa de temperaturas frias capazes
de lhe causar danos irreparáveis, não me parece uma informação gratuita5, afinal, na trama, o
hibisco parece absorver e manifestar a frigidez das relações afetivas de Adriana e Alessandro.
Mesmo com todos os cuidados desta, em limpar as folhas do vaso e regar a terra, a planta não
resiste às investidas das obras da casa e morre asfixiada:
Quando finalmente pintaram a fachada, o hibisco que talvez nem fosse um hibisco
e que já era maior do que Edoardo, morreu, asfixiado por uma camada de tinta
branca e cinzenta, porque os pintores lavavam as trinchas na torneira mesmo ao
lado. Para Adriana, a morte do hibisco foi o símbolo e o prelúdio da morte do
seu casamento (GANHO, 2021, p. 41; grifos meus).
5
Segundo Márcia Vizzotto e Marina Couto Pereira (2008), o hibisco necessita de uma série de cuidados, seja
para uso ornamental, seja para uso medicinal. As duas espécies são distintas e exigem do seu cultivador atenção
e observação no plantio e na manutenção. Mais informações, consultar o artigo em destaque.
Se o fato de a protagonista cultivar o hábito de atividades esportivas (Adriana corre e
nada, e motiva o filho a praticar os mesmos esportes) leva o narrador a se valer da imagem
para comparar e desenhar as diferenças entre ela e o marido, não podemos deixar de observar
que o fato de não dominar uma espécie de respiração contribui para pensarmos as razões da
estruturação do romance, afinal, os capítulos pequenos não poderiam ser entendidos como
breves respirações ou tentativas destas, num cotidiano marcado pelo assombro, pelo medo e
pela asfixia? Ao mesmo tempo, parece que cada cena contida nas partes de curta extensão
guarda um bocado da violência suportada até às últimas consequências pela mulher.
Nesse sentido, o leitor consegue vislumbrar gradativamente a trajetória de uma mãe
subjugada por um “homem de poder, propenso ao secretismo” (GANHO, 2021, p. 24) e ele
próprio parece também sentir os efeitos colaterais dessa respiração ofegante e entrecortada.
Mas, para além desta possibilidade de leitura e compreensão da estrutura romanesca, não será
a tentativa de Adriana em controlar a sua respiração, seja na natação, seja na corrida, uma
forma de vencer a apneia imposta pelo desgaste de todo o processo de separação? Não à toa, é
o próprio narrador que adverte: “Um processo de guarda nos tribunais portugueses é uma
corrida de fundo” (GANHO, 2021, p. 313).
Gosto de pensar que cada cena narrada nos capítulos de Apneia encerra uma breve
asfixia que o leitor vai devassando junto com o narrador. Assim, é o próprio cansaço de
Adriana diante do cansativo comportamento de Alessandro que também vai tomando conta do
narrador que, de maneira constante, se aproxima da protagonista e desvela o seu cotidiano,
passo a passo.
Deste modo, parte por parte, o leitor vai acompanhando o longo e desgastante percurso
de uma mãe com seu filho:
a) os sentimentos de remorso e a expectativa de uma separação amigável, alimentados
pela complacência desmedida de Adriana:
Até um dia fazerem as pazes, pensou, até ele a perdoar por ter pedido o divórcio. No
fim de contas, a culpa era sua. Ela abandonara-o, destruíra a fachada perfeita que ele
tanto se empenhara em construir. Ferira-lhe o orgulho, cabia-lhe a si apaziguá-lo. A
fúria dele era compreensível (GANHO, 2021, p. 57);
O que mais a chocava aos sábados, depois de Edoardo ter passado uma semana
inteira com o pai, era a violência. A violência das palavras e gestos do filho e, por
reflexo, dos seus. Ao fim de umas horas a ouvir acusações descabeladas em que,
na boca de Edoardo, Adriana sentia a intensidade do ódio de Alessandro, dava por
si a enervar-se e a ter de sair da divisão onde estivessem, para respirar fundo e não
gritar com ele, repetindo para si própria: «Ele não tem culpa, ele não tem culpa,
ele não tem culpa.» Nesses dias, tinha vontade de sair porta fora e fugir. Vontade
de dizer a Alessandro: Toma, fica com o miúdo, não aguento tanta violência
(GANHO, 2021, p. 184-185).
O pai fundira-lhe o medo do “outro”, dos negros, ciganos, árabes, dos pobres, sem-
abrigo, plantando nele as sementes do racismo, da xenofobia. Destruindo a
simplicidade com que, antigamente, Edoardo olhava para as pessoas e as descrevia
como brancas, beges ou castanhas, de cabelo amarelo, vermelho ou preto, e todas as
cores eram banais, sem conotações nem preconceitos (GANHO, 2021, p. 387-388).
j) os medos sofridos pelo filho, diante da insensibilidade do pai, que o coloca para ver
filmes violentos e decora o seu quarto com figuras assustadoras, que amedrontam Edoardo
desde a mais tenra idade, além de uma crueldade explícita ao trazer uma pizza para dentro do
quarto do hospital, logo depois da operação do filho, com a nítida intenção de provocação:
– Se já não jogas ao GTA – perguntou-lhe ela, desconcertada –, o que é que se passa
em casa do teu pai, para voltares assim, tão violento?
Edoardo encolheu os ombros, baixou os olhos (GANHO, 2021, p. 497).
Se todas as citações acima indiciam uma violência pulverizada nos mais diversos
graus (a psicológica sobre Adriana e Edoardo, além da de gênero e a sexual; a propagação de
discursos de ódio contra moradores de rua, homossexuais, árabes e ciganos) de maneira
concreta e direta, sobre os corpos das personagens, não podemos deixar de considerar também
um outro tipo de violência sentida por eles. Esta, menos explícita, mas igualmente nefasta nos
seus efeitos, encontra-se nos tribunais e nos meandros judiciais. Trata-se, no meu entender, de
uma espécie de violência institucional e institucionalizada, que dá aos homens plenos poderes
de isenção sobre a agressividade cometida e impõe às mulheres e às crianças situações
penosas e constrangedoras:
Assim que a porta se abre, ao fundo do corredor sombrio, ouvem o choro de
Edoardo, entrecortado por soluços, ganhando volume a cada passo. Levantam-se
os três de um salto e, aflita, Adriana olha para a advogada e para o irmão,
interrogando-se em voz alta: «Que aconteceu?!» Aproximam-se do limiar, no
instante em que o menino, escoltado pela funcionária de capa negra, entra na
salinha, destroçado. Precipita-se para a mãe, fungando:
– Eles torturaram-me, mamma, não acreditaram em mim! –, arquejando, chora de
raiva. – Trataram-me como se eu fosse mentiroso! (GANHO, 2021, p. 641).
As cenas narradas em Apneia, por mais impactantes que possam parecer, destacam-se
e chocam, não exatamente pela situação per se, mas porque não estão distantes de uma
realidade vivida por pessoas que dependem da boa vontade dos agentes judiciários, e nem
sempre podem contar com as respectivas paciências. Em entrevista a Paulo Nóbrega Serra, é a
própria autora que alerta para este detalhe. Ao ser arguida sobre o tempo de coleta de dados
no Tribunal de Família e Menores de Lisboa e no Ministério Público, além de outros órgãos,
Tania Ganho sublinha: “A pesquisa ocupou-me mais tempo que a escrita. Só escrevo quando
consigo pôr-me na pela das minhas personagens, ter a certeza do que pensam, sentem, fazem”
(apud SERRA, 2021).
Talvez, por isso, por tentar se aproximar dessa realidade, a esperança no final do túnel
não poderia ficar ausente. Na verdade, o encontro com a promotora pública, responsável por
investigar a ausência de pagamento de pensão para o filho e a sua descoberta do abuso
perpetrado por Alessandro sobre Edoardo, constitui um caso à parte na trama narrativa
(“Meses mais tarde, pensaria novamente: Bem-haja quem trabalha com zelo na justiça”;
GANHO, 2021, p. 616).
Graças a ela, a protagonista pode vislumbrar um outro horizonte possível. No entanto,
se atentarmos para as cenas efabuladas nos espaços dos tribunais, não será difícil perceber os
mecanismos de entrave e de agressão performatizados pelos sujeitos de toga. Aqui, vale a
pena recuperar o pensamento de Hannah Arendt, quando, ao dissertar sobre as diferentes
formas de domínio do homem sobre outros homens (e, por conseguinte, sobre as mulheres),
assinala as origens desta forma predatória de controle no poder absoluto exercido em
diferentes momentos pelos Estados-Nações europeus. Ao identificar o domínio do homem
sobre todas as coisas, ela é cirúrgica ao declarar:
Hoje devemos acrescentar a mais nova e talvez a mais formidável forma desse
domínio: a burocracia ou o domínio de um intrincado sistema de órgãos na qual
homem algum pode ser tido como responsável, e que poderia ser chamado com
muita propriedade o domínio de Ninguém. (Se, de acordo com o pensamento
político, identificarmos a tirania como um tipo de governo que não responde por
seus próprios atos, o domínio de Ninguém é claramente o mais tirânico de todos,
uma vez que não existe alguém a quem se possa solicitar que preste contas por
aquilo que está sendo feito. É esse estado de coisas tornando impossível a
localização da responsabilidade e a identificação do inimigo, que figura entre as
mais; potentes causas da inquietação rebelde que reina em todo o mundo, de sua
natureza caótica, e de sua perigosa tendência a descontrolar-se (ARENDT, 1985,
p. 20-21).
Ainda que a ênfase da filósofa alemã esteja direcionada à “violência nos domínios da
política” (ARENDT, 1985, p. 19), o seu ensaio abre um caminho interessante de reflexão para
a obra em análise, na medida em que os movimentos de Adriana nos tribunais de justiça, a
forma como a burocracia atravanca o seu futuro e o do seu filho e os mecanismos que apenas
reforçam a perspectiva dominadora de Alessandro não deixam de se enquadrar neste
“domínio de Ninguém”, onde a voz da mulher, a perspectiva da mãe e o sofrimento da
criança, a maior vítima da violência perpetrada por um pai possessivo e predador sexual, são
relegados a papéis pejorativos e negativos, afinal, a mulher é sempre a agente do descontrole,
e a criança mostra-se incapaz de dizer a verdade.
É preciso, no entanto, compreender que Apneia não promove uma demonização dos
agentes da justiça, antes, procura acompanhar de perto as angústias e os medos daqueles que
dependem de um processo burocrático lento e insensível diante das necessidades dos
indivíduos. Estes acabam pagando um preço muito alto devido à demora de soluções práticas
e efetivas. Nesse sentido, o medo propicia a presença e confirma um espaço ocupado pela
violência.
Ao analisar os medos presentes no mundo contemporâneo, Zygmunt Bauman é preciso
e cirúrgico ao declarar que “O que mais amedronta é a ubiquidade dos medos; eles podem
vazar de qualquer canto ou fresta de nossos lares e de nosso planeta” (BAUMAN, 2008, p.
11). No caso de Apneia, o medo emerge de dentro do próprio seio familiar, e este, por sua vez,
se encontra marcado pela quebra e pela ruptura da estabilidade. Ainda assim, é preciso
compreender que o romance não lança uma campanha negativa em relação ao processo de
divórcio. O problema ocorre quando, por detrás da separação, se oculta a mácula da violência,
seja ela física e/ou psicológica, alimentada e favorecida pela lentidão dos processos judiciais.
Recorro, novamente, a Bauman, porque, em Medo líquido, o sociólogo polonês
descreve de forma exata algumas situações efabuladas na trama de Tânia Ganho. Segundo ele,
Os perigos dos quais se tem medo (e também os medos derivados que estimulam)
podem ser de três tipos. Alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de
natureza mais geral, ameaçando a durabilidade da ordem social e a confiabilidade
nela, da qual depende a segurança do sustento (renda, emprego) ou mesmo da
sobrevivência no caso de invalidez ou velhice. Depois vêm os perigos que
ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição na hierarquia social, a
identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a
imunidade à degradação e à exclusão sociais (BAUMAN, 2008, p. 10).
Ora, ao verificar os passos da trama de Apneia, não será difícil perceber que os três
medos acima delineados se encontram na estrutura romanesca. Se, por um lado, o discurso de
ódio de Alessandro sobre árabes, ciganos, moradores de rua e negros, insufla um medo
desproporcional e injustificado em Edoardo, a ponto de ele repetir para Adriana o mesmo
conteúdo, e esta ter de reensinar o filho a saber compreender e respeitar a diferença, não
entendo tal articulação da personagem como um medo do outro ou uma ameaça sobre o seu
corpo e a sua propriedade. Na verdade, este é instaurado pelas atitudes de um marido
possessivo, “um predador sexual” (GANHO, 2021, p. 636), muito inteligente e perspicaz, a
ponto de ocultar uma faceta da própria mulher e dos seus pais.
Também o medo diante da ameaça de Alessandro sobre a durabilidade e a confiança
de Adriana e Edoardo na ordem social mais ampla leva a mãe a insistir na interferência
positiva da justiça, recorrendo ao Ministério Público, a fim de garantir os direitos da criança
não só à pensão alimentar, mas, sobretudo, à segurança no direito de ir e vir, sem sobressaltos
ou temores. Graças a essa atitude, vem a revelação impactante de uma violência levada até às
últimas consequências: Alessandro é um pedófilo, e abusa do filho, sempre que este se
encontra sob sua guarda.
Por conseguinte, é o próprio medo do perigo e da ameaça de Alessandro sobre o lugar
no mundo ocupado por Adriana e Edoardo que leva mãe e filho a se refugiarem na ilha 6,
almejando afastar-se completamente do espectro de um marido violento e vingativo.
Interessante observar que, diante da força truculenta do ex-marido, Adriana opta por um
caminho adverso ao adotado por Alessandro. Enquanto este se refere à ex-esposa com termos
depreciativos e de baixo calão, manda-lhe e-mails agressivos, fala mal de si para o filho e
procura coloca-lo sempre contra ela, criando situações falsas de despreparo emocional e
abandono, Adriana opta por aquilo que Judith Butler irá chamar de “não-violência”
(BUTLER, 2021, p. 13).
Não são poucos os momentos em que o narrador expõe as diferenças de
comportamento entre Alessandro e Adriana. Enquanto o primeiro opta pela agressividade
desmesurada, a segundo resiste com um silêncio firme e contundente:
Nesse instante, Adriana tomou consciência de que Edoardo ocuparia o lugar que
ela deixara vago na casa da Atalaia. Edoardo substituí-la-ia, preencheria a sua
função: a de espelho do pai. Alessandro já começara a sujeitá-lo aos seus jogos
6
Ainda que a narrativa não indique exatamente o nome da ilha, Tânia Ganho revela a sua inspiração na Ilha de
Berlenga, na costa portuguesa, na altura da cidade de Peniche. Como a própria autora sugere, essa ilha
inominada, onde Adriana conhece Duarte, é o “espaço onde o tempo se suspende e onde Adriana consegue
respirar, deixar para trás a violência da sua relação com Alessandro” (apud SERRA, 2021).
mentais, como a sujeitara a ela, só que, agora, o faria a um ritmo mais intensivo. O
primeiro passo seria convencer o filho de que o pai era a vítima, manipulá-lo para
que sentisse pena. O segundo seria persuadi-lo de que a culpada pelo sofrimento
do pai era a mãe.
A santificação do pai ocorreria em simultâneo com a demonização da mãe.
(GANHO, 2021, p. 62).
Num meio social em que tantos casais pagavam fortunas para assegurar que os
filhos fossem bilíngues, trilíngues, Alessandro esforçava-se por reduzir o filho ao
monolinguismo, matar a língua materna, matar a mãe (GANHO, 2021, p. 386).
7
Termo condicionado popularmente à condição da mulher, mas que, na verdade, camufla um discurso machista,
misógino e preconceituoso, que, de acordo com Aline Gouveia, constitui uma “construção social inserida dentro
de uma lógica de relação de poder” (GOUVEIA, 2023).
com todas as energias possíveis, mesmo reconhecendo, tal como o narrador faz questão de
sublinhar, que “Um divórcio litigioso é uma carnificina” (GANHO, 2021, p. 177).
Mas, para além desta reação, Adriana é uma personagem artista, é a pintora capaz de
representar a si própria em posições de nudez, completamente despida de qualquer obstáculo,
e é também a escritora pesquisadora, na preparação de uma dissertação de mestrado sobre
pintura, literatura e autorretrato, em obras de autoras e artistas plásticas. Na minha
perspectiva, todo o seu exercício reflexão sobre mulheres que se autorrepresentam em tempos
de violência sobre elas cometida constitui uma forma de Adriana compreender a sua própria
identidade e os percalços de sua trajetória como mãe e mulher. Escrever sobre mulheres que
se autorretratam não deixa de ser uma forma de escrever sobre si própria.
Não será por acaso, portanto, que o romance de Tânia Ganho traz um elenco
considerável de artistas notáveis, tais como as escritoras Anne Sexton, Sylvia Plath, A. S.
Byatt e Rebecca Solnit; as pintoras surrealistas Leonora Carrington (com Down Below, “um
texto autobiográfico em que a pintora relata o esgotamento nervoso que sofreu quando o seu
companheiro, Max Ernst, foi enviado, pela segunda vez, para um campo de concentração, e
ela acabou por ser encarcerada num manicómio em Espanha”; GANHO, 2021, p. 364) e
Dorothea Tanning (com o quadro “Aniversário”, de 1942, obra em que “se auto-representa
com os seios expostos, envergando uma saia que parece feita de folhas e gravetos, mas que,
ao perto, se vê que são corpos femininos desnudos”; GANHO, 2021, p. 193).
Além destas, a fotógrafa Francesca Woodman; a pintora Frida Kahlo (“Interessava-lhe
a forma como Kahlo canalizara para a pintura as suas dores e sofrimento,
emergindo, não como uma vítima vulnerável, mas como uma sobrevivente intrépida. Com o
coração partido e a coluna fracturada, soubera reinventar-se”; GANHO, 2021, p. 200); a
performer Marina Abramovic (com Rhythm O, conhecida apresentação de 1974 em que a
artista “permaneceu imóvel durante seis horas, de tronco nu”; GANHO, 2021, p. 217); as
escritoras norte-americanas Siri Hustvedt (com o seu livro de memórias, The shaking
woman, de 2010) e Meg Wolitzer.
Artista reconhecida nacional e internacionalmente, Adriana estabelece um jogo
especular com a sua própria criação, na medida em que a sua exposição em Sydney chama-
se “O Eu Narcísico”. Gosto de pensar, nesse sentido, que, se por um lado a relação com
Duarte apazigua o sofrimento e o desgaste passado com Alessandro, por outro, é na arte que
ela encontra o verdadeiro ponto de equilíbrio, refúgio e, ao mesmo tempo, catarse. Não por
acaso, na esteira de uma declaração de Paula Rego recuperada em pensamento, ela “gostaria
de examinar, através do meio mais explícito da escrita, o medo e o sentimento de luto e
expropriação inerente a um divórcio. Queria fazer alquimia: transformar a dor em literatura”
(GANHO, 2021, p. 348).
Do mesmo modo que as artistas por ela estudadas, Adriana também “escrevia para
sentir que recuperava o controlo de sua narrativa, que se lhe escapava a cada audiência em
tribunal, a cada promoção da procuradora, a cada despacho do juiz” (GANHO, 2021, p.
348). Para escrever sobre si própria é necessário observar com atenção àquelas que vieram
antes dela e expuseram, a partir de diferentes manifestações artísticas, os sofrimentos e as
violências impelidas sobre elas. Ela não seria a primeira, mas, a partir do conhecimento de
si própria transformado em escrita, parece que a protagonista quer deixar registrada a
memória da sobrevivência.
Enquanto Alessandro insufla o medo do corpo do outro, como se este fosse um
agente deturpador da harmonia e da estabilidade social, Adriana aprende com o seu próprio
corpo e com a arte reconhecer as diferenças e assumir uma autonomia, gestos reprimidos
pela agressividade do ex-marido. Talvez, por isso, ela procura ensinar o filho a gostar-se do
que vê diante do espelho:
A pintura ajudou-a a perder a vergonha, era um exercício de despudor a que se
forçara, no início, como a natação. Na piscina, tinha de percorrer uns metros entre
os balneários e o tanque de água, de fato de banho, de pele exposta, sob a luz forte
e impiedosa do dia ou do néon, sob os olhares dos outros utentes, homens,
mulheres, gente feia, gente bonita, gente. Para pintar, despia-se, esquadrinhava o
seu reflexo no espelho, despojava-se do preconceito e do medo. Com o tempo, a
nudez na pintura e na piscina tornou-se natural, perdeu a mácula.
Gostar do seu corpo fora um processo, um lento processo de reaprendizagem que,
agora, ela tentava transmitir ao filho. Ensinava-o a gostar, também ele, do seu
corpo. Para isso, tinham ambos de se libertar do olhar clínico e impiedoso de
Alessandro (GANHO, 2021, p. 477).
Ora, gosto de pensar, neste sentido, que a construção de Adriana como uma
personagem artista aponta para um caminho alternativo e possível diante de cenários violentos
e despóticos. Isto porque a sua reação, seja pela arte, seja pelo silêncio, não entrando no
mesmo caminho de mentiras e vingança de Alessandro, pode ser entendido como uma
autêntica expressão da “força da não-violência” (BUTLER, 2021), tal como o mais recente
ensaio de Judith Butler nos adverte. Partindo, portanto, daquela premissa de que “quando
qualquer um de nós comete atos de violência, está, nesses e por esses atos, a construir um
mundo mais violento” (BUTLER, 2021, p. 27), Adriana repudia a truculência e a
agressividade de Alessandro e aposta numa educação ética, baseada no afeto, na segurança e
na firmeza.
A casa da Atalaia bem como os tribunais por onde esta passa com o filho podem ser
lidos como um “campo de força da violência”, nos moldes descritos por Judith Butler, afinal,
[...] quando o mundo se apresenta como um campo de força de violência, a tarefa
da não-violência consiste em encontrar maneiras de viver e de agir nesse mundo,
de tal modo violência seja limitada ou aperfeiçoada, ou a sua direção contrariada,
precisamente nos momentos em que parece saturar esse mundo e não oferecer
qualquer saída. O corpo pode ser o vetor dessa viragem, mas também o discurso,
as práticas coletivas, as infraestruturas e as instituições (BUTLER, 2021, p. 20).
Concluo, portanto, com a certeza de que estamos diante de mais uma obra que
confirma aquelas “novas identidades de escrita” (SILVA, 2016, p. 6), que a novíssima ficção
portuguesa faz nascer no cenário literário de língua portuguesa do século XXI. E com essa
mesma sensação contraditória, mas extremamente saudável, de “aceitação e recusa”, de
“terror e piedade”, retomo Roland Barthes (1988) para pensar que só é possível ler Apneia, de
Tânia Ganho, levantando a cabeça, graças à tradução ficcional operada pela escritora
portuguesa de temas absolutamente necessários ao nosso cotidiano, ao nosso tempo, ainda que
sobrecarregada de situações extremas.
Como bem nos assinala o narrador, Apneia, de Tânia Ganho, é um romance sobre a
“arte de sobreviver”, por isso, torna-se urgente não esquecer, mas lembrar e alertar sobre a
matéria. E a obra em questão constitui uma sinalização positiva para todos, não apenas aos
que sofrem com diferentes tipos de violência, mas também aos que assistem: é possível
resistir com a não-violência, é possível sobreviver sem perder a esperança.
Referências:
ALEMANY, Carme. Violências. Tradução de Naira Pinheiro. In: HIRATA, Helena et al.
(orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora da UNESP, 2009, p. 271-276.
BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2008.
BUTLER, Judith. A força da não-violência. Tradução de Hugo Barros. Lisboa: Edições 70,
2021.
GANHO, Tânia. Apneia. 3ª. ed. Lisboa: Casa das Letras, 2021.
GOUVEIA, Aline. Mulher é, de fato, o sexo frágil? Especialistas analisam máxima patriarcal.
Correio Brasiliense, 08/03/2023. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2023/03/5078763-mulher-e-de-fato-o-sexo-
fragil-especialistas-analisam-maxima-patriarcal.html Acesso em 29 de maio de 2023.
VILLODRES, María López. Sete exemplos de masculinidade tóxica que você reconhecerá no
seu dia a dia. El País, Brasil, 22/01/2019. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/22/estilo/1548175107_753307.html Acesso em 26 de
maio de 2023.