Shaking Woman
Shaking Woman
Shaking Woman
Siri Hustvedt
Quarta capa
“Siri Hustvedt, uma de nossas melhores romancistas, vem explorando há tempos o cérebro
e a mente, com brilho. Mas recentemente sua investigação assumiu um aspecto mais
pessoal: dois anos depois da morte do pai, ao discursar em público para homenageá-lo, ela
sofreu convulsões súbitas. Seria “histeria”, “reação de conversão” ou um ataque de
epilepsia “concomitante”? A mulher trêmula é a história – provocativa e bem humorada,
enciclopédica mas acessível – de sua tentativa de encontrar uma resposta à questão.
Combina uma história extraordinária de duas faces: a odisséia das descobertas da própria
Hustvedt, e o ponto em que cérebro e mente, neurologia e psiquiatria, se encontram na
neuropsicanálise. A odisséia não a curou, nem chegou a uma conclusão – mas a erudita
obra de Hustvedt aprofunda a reflexão sobre as relações entre corpo e mente.”
OLIVER SACKS
“Já conhecemos Siri Hustvedt como escritora esplêndida. A novidade é que a vida
conspirou para levá-la a buscar um conhecimento profundo da neurociência. Em seu
admirável novo livro, em parte memória, em parte mistério, ela explica a inesperada
sucessão de eventos e oferece ao leitor uma série de fatos valiosos, bem como sua
perspectiva pessoal para o cenário neurocientífico. Sem surpresa, este livro constitui uma
deliciosa leitura.”
Quando falava num evento em homenagem ao pai, em 2006, Siri Hustvedt sofreu um
ataque violento, do pescoço para baixo. Apesar da tremedeira nos braços e nas pernas, ela
continuou falando com clareza e conseguiu terminar o discurso. Foi como se ela se
repartisse em duas pessoas: uma oradora calma e uma descontrolada. Os ataques se
repetiram. A mulher trêmula acompanha a busca de Hustvedt por um diagnóstico, o que a
levou ao âmago dos processos de reflexão de diversas disciplinas científicas, cada uma
capaz de oferecer uma perspectiva distinta para seus paroxismos, mas nenhuma solução. No
decorrer de sua busca ela mergulha em questões fundamentais: qual a relação entre cérebro
e mente? Como lembramos? O que vem a ser o eu?
Durante as investigações, Hustvedt passou a participar de um grupo de discussão no qual
neurologistas, psiquiatras, psicanalistas e estudiosos do cérebro trocam ideias para
desenvolver um novo campo: a neuropsicanálise. Ela se apresentou como voluntária para
dar aulas de redação a pacientes psiquiátricos da clínica Payne Whitney da cidade de Nova
York, e pesquisou precedentes na história médica capazes de esclarecer as origens e viradas
em nossas teorias sobre o problema da mente-corpo. Em A mulher trêmula, Hustvedt
sintetiza sua experiência e pesquisa num mistério envolvente: Quem é a mulher trêmula?
No final, a história que ela conta se torna, nas palavras de George Makari, autor de
Revolution in Mind, “um momento de brilhante iluminação para todos nós.”
Siri Hustvedt nasceu em 1955 em Northfield, Minnesota. Mudou-se para Nova York em
1978 e doutorou-se em literatura inglesa pela Universidade Columbia em 1986. Publicou
quatro romances: The sorrows of an American, What I loved, The enchantment of Lily Dahl
e The blindfold, além de dois volumes de ensaios, A plea for Eros e Mysteries of the
rectangle. Mora atualmente no Brooklyn com o marido, Paul Auster.
Agradecimentos
Este livro começou com a palestra que dei no hospital Presbiteriano de Nova York, como
parte de uma série de conferências promovidas pelo programa de Medicina Narrativa da
Universidade Columbia. Rita Charon, diretora do projeto, convidou-me a participar. Seu
entusiasmo e a generosidade em relação ao que eu tinha a dizer funcionaram como um
catalisador vital para este livro. Frequentei por dois anos o grupo de discussão de
neuropsicanálise (que já foi dissolvido) coordenado por Jaak Panksepp e pelo falecido
Mortimer Ostow, que não só me apresentou para o vasto campo da pesquisa
neurocientífica, como permitiu que eu acompanhasse (e por vezes participasse) dos
complexos debates que abrangiam a integração das duas disciplinas, que possuem
vocabulários inteiramente diferentes. As palestras sobre neurociência, organizadas pela
fundação de Neuropsicanálise do instituto Psicanalítico de Nova York, foram cruciais para
ampliar minha compreensão e orientar leituras. Gostaria de agradecer a Dahelia Beverle,
minha supervisora na clínica psiquiátrica Payne Whitney de Nova York, onde trabalho
como voluntária, dando aulas de redação aos pacientes internados. Os participantes do
curso forneceram esclarecimentos valiosos sobre o sentido pessoal de suas doenças, e sem
eles este livro não poderia ter sido escrito. Agradeço também a Mark Solms, George
Makari e Asti Hustvedt pela leitura cuidadosa e pelos comentários sobre os originais de A
mulher trêmula. E, finalmente, sou grata a meu marido, Paul Auster, não somente pela
leitura do texto, como também pela paciência. Durante anos ele tolerou com boa vontade
minha imersão apaixonada no problema do cérebro e da mente, ouvindo quando eu pensava
em voz alta (por vezes durante horas) sobre as diversas questões abordadas nesta obra.
Obras de Siri Hustvedt
Romances
The Blindfold
The Enchantment of Lily Dahl
What I Loved
The Sorrows of an American
Não ficção
Poesia
Reading to You
A mulher trêmula
Ou
Siri Hustvedt
Senti uma Fenda na Mente –
Como se meu Cérebro rachasse –
Tentei uni-lo – ponto a ponto –
Mas não consegui que firmasse.
EMILY DICKINSON
A mulher trêmula
Ou
Os médicos vivem intrigados com convulsões como a minha há séculos. Muitas doenças
fazem a gente tremer, e nem sempre é fácil separar uma da outra. A partir de Hipócrates,
realizar um diagnóstico significa reunir um conjunto de sintomas sob o mesmo nome. A
epilepsia é a mais famosa das doenças que causam tremores. Se eu fosse paciente do
médico grego Galeno, que atendia ao imperador Marco Aurélio e cujos copiosos escritos
influenciaram a história médica por centenas de anos, teria diagnosticado uma doença
convulsiva, mas descartaria a epilepsia. Para Galeno, a epilepsia não somente provocava
convulsões no corpo inteiro, como interrompia “funções fundamentais”: consciência e fala.1
Embora o antigos gregos acreditassem que os deuses e espectros provocavam tremores, em
sua maioria os médicos encaravam o fenômeno como ocorrência natural; só após a
supremacia do cristianismo os tremores e o mundo sobrenatural foram embrulhados numa
intimidade desconcertante. Natureza, Deus e o demônio podiam arruinar seu corpo, e os
especialistas em medicina lutavam para distinguir as diversas causas. Como separar um ato
da natureza da intervenção divina ou da possessão demoníaca? Os paroxismos de Santa
Teresa de Ávila, seus desmaios, visões, agonias e arrebatamentos eram viagens místicas em
direção a Deus, mas as moças de Salem tremiam e se contorciam por malefícios das bruxas.
Em A modest inquiry into the nature of witchcraft [Uma pesquisa simples sobre a natureza
da bruxaria], John Hale descreve os ataques das crianças atormentadas e depois acrescenta
explicitamente que seus sofrimentos terríveis estavam “acima da intensidade que um ataque
epiléptico ou uma doença natural poderiam provocar”.2 Se meu episódio de tremedeira
tivesse ocorrido durante a caça às bruxas de Salem, as consequências teriam sido
pavorosas. Sem dúvida eu parecia uma mulher possuída. Mais importante, porém, se
aceitasse as crenças religiosas da época, como provavelmente faria, a estranha sensação de
que uma força externa penetrara em meu corpo para provocar tremores teria bastado para
me convencer de que fora mesmo enfeitiçada.
Na cidade de Nova York, em 2006, nenhum médico sadio me recomendaria consultar um
exorcista, e mesmo assim as confusões nos diagnósticos são comuns. As referências para
analisar doenças convulsivas podem ter mudado, mas a compreensão do que aconteceu a
mim não era nada simples. Eu poderia ir ao neurologista para saber se sofria de epilepsia,
embora minha experiência anterior na enfermaria do hospital Mount Sinai houvesse
provocado desconfiança em relação aos médicos encarregados de investigar o sistema
nervoso. Eu sabia que, para receber o diagnóstico de epiléptica eu precisava sofrer pelo
menos dois ataques. Acredito que tenha tido um ataque genuíno antes da enxaqueca
impossível de tratar. O segundo me pareceu suspeito. Os tremores ocorreram dos dois lados
do corpo – e eu continuei falando durante o episódio. Quanta gente fala durante um ataque?
Além disso, eu não havia sentido nenhuma aura, nenhum sinal de que um evento
neurológico se aproximava, como ocorre comigo com frequência nas enxaquecas, e o
ataque começou e terminou durante o discurso sobre meu falecido pai. Por causa do meu
histórico, sabia que um neurologista diligente pediria um EEG, ou eletroencefalograma. Eu
teria de passar um tempo sentada com eletrodos melecados presos no crânio, e meu palpite
era que o médico não encontraria nada. Claro, muito gente sofre de ataques que não
aparecem nos testes padronizados, obrigando o médico a realizar exames adicionais. A não
ser que eu continuasse tremendo, talvez não fosse possível realizar um diagnóstico. Eu
flutuaria no limbo de uma moléstia desconhecida.
Depois de eu passar um tempo remoendo a tremedeira, uma possível resposta surgiu. Não
veio aos poucos, mas de repente, como uma revelação. Sentada em meu lugar costumeiro,
na conferência mensal sobre neurociência, lembrei da rápida conversa com uma psiquiatra
que sentara atrás de mim num encontro anterior. Eu havia perguntado a ela onde trabalhava
e o que fazia. Contou que trabalhava em hospital, numa equipe que atendia basicamente
“reações de conversão”. Segundo ela, “os neurologistas não sabem o que fazer com esses
pacientes, então mandam para mim casos de somatização.” Podia ser o meu caso! Pensei
num ataque histérico. A palavra antiquada praticamente desapareceu do discurso médico
corrente, sendo substituída por transtorno dissociativo ou de conversão, mas, pulsando sob
os novos termos, o nome antigo assombrava feito um fantasma.
Quando usam a palavra histeria em jornais e revistas, o redator quase sempre registra que
ela deriva do termo grego para “útero”. Sua origem como problema puramente feminino
relacionado aos órgãos reprodutivos serve para alertar os leitores que a palavra reflete um
preconceito antigo contra as mulheres, embora sua história seja bem mais complicada do
que indica a misoginia. Galeno acreditava que a histeria era uma enfermidade própria das
mulheres solteiras e viúvas, privadas das relações sexuais, mas não loucura, pois não
envolvia obrigatoriamente danos psicológicos. Doutores no passado sabiam muito bem que
ataques de epilepsia e histeria se assemelhavam, e que seria essencial distinguir um do
outro. Como sabemos, a confusão nunca desapareceu. O médico Antonius Guainerius, no
século XV, acreditava que os vapores emanados pelo útero causavam a histeria, e que se
poderia distinguir a histeria da epilepsia porque a histérica lembraria de tudo que ocorreu
durante o ataque.3 O grande médico inglês Thomas Willis, no século XVII, descartou o
útero como órgão responsável e localizou tanto a histeria quanto a epilepsia no cérebro.
Mas o conceito de Willis não predominou em sua época. Havia quem afirmasse que as duas
não passavam de manifestações diferentes da mesma doença. O médico suíço Samuel
Auguste David Tissot (1728-1797), que entrou para a história da medicina por causa da
imensa popularidade de seu tratado sobre os perigos da masturbação, sustentava que as
duas moléstias eram distintas, apesar do fato de serem epilepsias originadas no útero.4
Desde os tempos antigos até o século XVIII, a histeria foi considerada uma doença
convulsiva que se originava em algum ponto do corpo – no útero, encéfalo ou mesmo num
membro – e que as pessoas acometidas por ela não eram insanas. Arrisco afirmar que um
dos doutores citados acima, caso tivesse testemunhado meu discurso convulsivo, poderia
ter diagnosticado histeria. Minhas funções superiores não foram interrompidas; eu me
lembro de tudo a respeito do ataque; e, claro, eu era uma mulher com um útero
potencialmente vaporoso ou perturbado.
Vale indagar quando a histeria se tornou uma doença associada com exclusividade à mente.
No discurso cotidiano usamos a palavra histeria para indicar a excitabilidade ou emoção
excessiva de uma pessoa. Remete no geral a uma mulher descontrolada, a gritar. Contudo,
qualquer que fosse o problema com minhas pernas, braços e torso, a mente estava em
ordem e eu segui falando normalmente. Não sofria de histeria neste sentido. Hoje o
transtorno de conversão é classificação como transtorno psiquiátrico, e não neurológico, o
que explica a conexão que fazemos com problemas mentais. No DSM, agora em sua quarta
edição, o transtorno de conversão se inclui entre os transtornos somatoformes –
perturbações do corpo e das sensações físicas.5 Entretanto, nos últimos quarenta anos o
termo e a classificação da doença mudaram várias vezes. No primeiro DSM (1952), foi
chamado de reação de conversão. O DSM-II (1968) o agrupou nos transtornos de
dissociação e o identificou como neurose histérica, tipo conversão. Em 1968, pelo jeito, os
autores pretendiam recuperar as raízes da doença, reintroduzindo o termo histeria.
Dissociação é uma palavra de sentido amplo, usada de modos diferentes para indicar
alguma forma de distanciamento ou ruptura da personalidade usual. Por exemplo, quando
uma pessoa passa por uma experiência extracorpórea, dizem que ela está dissociada; um
sujeito atormentado pela sensação de que ele ou o mundo não são reais também é chamado
de dissociado. Quando lançaram o DSM-III (1980), a palavra histérica desapareceu, a
definição mudou para transtorno de conversão, um problema somatoforme, cujo nome não
mudou no DSM-IV. O manual corrente da Organização Mundial da Saúde, o CID-10
(1992), contudo, difere. Ali recebe o nome de transtorno dissociativo (de conversão). Soa
confuso, e é mesmo. Ocorre entre autores de textos diagnósticos psiquiátricos uma óbvia
insegurança a respeito do que fazer com a histeria.
Eles concordam em termos gerais, no entanto. Os sintomas da conversão com frequência
imitam sintomas neurológicos: paralisia; convulsões; dificuldade para andar, engolir ou
falar; cegueira ou surdez. Quando o neurologista os investiga, porém, não consegue
encontrar nada que normalmente causaria esses problemas. Por exemplo, se um
neurologista estivesse passando e fizesse um EEG enquanto eu tremia na frente da árvore,
as convulsões histéricas não seriam registradas, mas os tremores epilépticos sim,
provavelmente. Ao mesmo tempo, histéricos não são fingidores. Não conseguem evitar o
que acontece com eles e nem fingem estar doentes. Ademais, os sintomas cessam
espontaneamente, muitas vezes. A advertência importante é, como explicitam os autores do
DSM, “é preciso ter cautela”.6 Em outras palavras, se eu tivesse consultado um psiquiatra,
ele deveria ser cauteloso comigo. Uma moléstia neurológica não identificada poderia se
ocultar sob meus sintomas, sem aparecer nos exames. Ele deveria perceber que meus
tremores eram atípicos da epilepsia antes de fazer um diagnóstico. O problema vale para os
dois casos. Carl Basil, farmacologista da Universidade Columbia relata a história de um
paciente que viu seu local de trabalho incendiar-se e “de repente ficou paralítico do lado
direito, como se tivesse sofrido um derrame”.7 De fato, o sujeito sofrera uma “reação de
conversão”, que desapareceu com seu choque. O enigma se complica inclusive pelo fato de
as pessoas que sofrem de epilepsia estarem muito mais propensas a sofrer ataques histéricos
do que os indivíduos não epilépticos. Segundo os autores de um estudo que li, entre 10% e
60% das pessoas com PNES (psychogenic nonepileptic seizures - ataques não epilépticos
psicogênicos no DSM – ou convulsões dissociativas para o CID-10) sofrem de epilepsia
comórbida.8 Este contemporâneo dilema de identificação se assemelha bastante às
dificuldades que os médicos encontraram durante muito tempo para separar epilepsia de
histeria. A pergunta sempre foi: uma mulher treme; por quê?
No final do século XX, durante vários anos, os clínicos abusaram da expressão “sem causa
orgânica”. A histeria era uma enfermidade psíquica sem causa orgânica. As pessoas
sofriam de paralisia, cegueira e convulsões sem nenhuma causa orgânica? Como assim? A
não ser que a gente creia na vinda de espectros, espíritos ou demônios, do céu ou do
inferno, capazes de assumir o controle sobre o corpo de uma pessoa, como argumentar que
não se trata de um fenômeno físico, orgânico? Até o DSM atual admite o problema,
declarando que a diferença entre o mental e o físico é “um anacronismo reducionista do
dualismo corpo/mente”.9 A separação existe entre nós, no Ocidente, desde Platão, no
mínimo. A ideia de que somos compostos por duas partes em vez de uma, e que a mente
não é matéria, continua fazendo parte do conceito que muita gente faz do mundo. Sem
dúvida a experiência de viver em minha própria cabeça possui uma qualidade mágica.
Como vejo, sinto e penso, e o que exatamente é minha mente? Seria a mente o mesmo que
o cérebro? Como pode a experiência humana se originar em matéria branca e cinzenta? O
que é orgânico e o que é inorgânico?
No ano passado ouvi um homem contar no rádio sua vida com o filho esquizofrênico.
Como muitos pacientes, o filho tinha dificuldades para tomar os medicamentos com
regularidade. Depois das internações ele regressava para casa, parava de tomar o remédio
receitado e a doença voltava. Ouvi a mesma história dos pacientes que eu ensinava no
hospital, mas as razões para abandonar os medicamentos eram diferentes. Um paciente
engordou terrivelmente por causa de um antipsicótico, e se sentia mal por isso; outro se
sentia morto por dentro; outro, furioso com a mãe, parava a medicação por birra. O pai
entrevistado no rádio fez questão de explicar: “A esquizofrenia é uma doença orgânica do
cérebro.” Entendi o motivo para afirmar isso. Sem dúvida os médicos dos filhos lhe
disseram, ou ele leu artigos sobre a doença que se referiam a ela dessa maneira, o que o
reconfortava, fazia com que não se sentisse responsável pelo sofrimento do filho, enquanto
pai, e que o ambiente no qual o filho vivia não poderia ser responsável pela doença. O
mistério genético da esquizofrenia talvez um dia seja solucionado, mas por enquanto
permanece ignorado. Se um dos gêmeos idênticos apresenta a doença, há 50% de chances
de que ela se manifeste no outro. A porcentagem, embora alta, não é determinante. Outros
fatores interferem, como os ambientais, que vão de poluentes atmosféricos à negligência
dos pais. Como ocorre com frequência, as pessoas preferem respostas fáceis. No ambiente
cultural de hoje, uma doença cerebral orgânica soa reconfortante. Meu filho não é louco; o
cérebro dele apresenta problemas.
Mas não existem saídas fáceis para a armadilha psique/soma. Peter Rudnytsky,
proeminente estudioso de psicanálise, discute o caso de Otto Rank, psicanalista do círculo
de Freud que provavelmente sofria de psicose maníaco-depressiva. Ele ressalta que hoje
sabemos ser a doença “orgânica”, e por isso as mudanças de humor de Rank não podem ser
consideradas uma falha em seu “caráter”.10 A psicose maníaco-depressiva, também
conhecida como transtorno bipolar, ocorre em famílias, e seu componente genético é
aparentemente bem maior do que no caso da esquizofrenia. Mesmo assim, Rudnytsky
insinua haver estados não orgânicos que podem ser atribuídos a falhas de caráter. Isso
levanta uma questão: O que é o caráter? Não seria o caráter a soma de nossas partes, e essas
partes não são orgânicas? Caso contrário, o que é psíquico e o que é somático?
O problema é que a expressão doença cerebral orgânica não significa muita coisa. Não há
lesões ou lacunas no tecido cerebral dos esquizofrênicos ou maníaco-depressivos, nenhum
vírus que devora seus córtices. Ocorrem alterações na atividade cerebral que podem ser
detectadas pelas novas tecnologias de escaneamento do encéfalo. Entretanto, também
ocorrem alterações cerebrais quando estamos tristes, felizes ou libidinosos. Esses estados
humanos são todos físicos. Além disso, o que é uma doença, exatamente? No Campbell’s
psychiatric dictionary, encontrei esta citação da Philosophy in medicine, de Culver e Gert:
“enfermidade e doença mantêm uma estreita relação, mas as doenças são ontologicamente
mais robustas do que uma simples enfermidade.”11 Uma doença, em outras palavras, tem
mais substância, mais essência do que uma enfermidade. Não faz muito tempo, uma amiga
mostrou-me um livro chamado Living well with migraine disease and headaches
[Convivendo melhor com doenças como a enxaqueca e a dor de cabeça]. Espantei-me. Nas
andanças iniciais de um neurologista a outro, a enxaqueca nunca era chamada de doença.
Obviamente alcançara novo status, adquirira uma existência mais “robusta” desde 1982.
Seria o transtorno de conversão um fenômeno psíquico, ao contrário da esquizofrenia ou da
psicose maníaco-depressiva? A psique é diferente do cérebro?
Sigmund Freud foi o primeiro a usar o termo conversão, no livro escrito com Josef Breuer,
Estudos sobre a histeria (1893): “Se, para sermos breves, adotarmos o termo “conversão”
para designar a transformação da excitação psíquica em sintomas somáticos crônicos, que é
tão característica da histeria [...]”12 O que Freud quis dizer com isso? Acreditava que a
excitação psíquica era uma entidade não biológica? Freud era um homem formado pela
filosofia e ciência de seu tempo. Como estudante de medicina, além das matérias
necessárias para obter o diploma, assistiu aulas adicionais de filosofia e zoologia. No verão
de 1876, Freud recebeu uma bolsa para visitar a Estação Zoológica Experimental de
Trieste, onde se dedicou a dissecar enguias para conhecer sua estrutura histológica e
procurar seus órgãos sexuais, que ninguém fora capaz de localizar, no caso. Parece que a
estrutura gonadal das enguias interessava os estudiosos, desde Aristóteles. Os resultados de
Freud foram inconclusivos, mas sua pesquisa deu mais um passo na jornada que acabaria
encontrando a resposta à questão. Depois de cursar três anos de faculdade de medicina, ele
escolheu a neurologia como interesse principal e passou seis anos estudando as células
nervosas no laboratório de fisiologia de Ernst Wilhelm von Brücke. Concentrou-se no
material visível do sistema nervoso. O primeiro livro publicado por Freud foi A
interpretação das afasias: um estudo crítico. A afasia – palavra deriva do grego
“impotência de falar” – refere-se a problemas de linguagem em pacientes que sofreram
danos cerebrais. Qualquer aspecto da linguagem pode ser afetado. Alguns pacientes
compreendem as palavras, mas não conseguem gerá-las. Alguns não entendem o que lhes
dizem, ou não conseguem apreender sentenças inteiras. Outros sabem o que querem dizer,
mas não conseguem articular os fonemas necessários. Embora não tenha recebido muita
atenção na sua época, boa parte do que Freud sustentou no estudo continua sendo válido.
Ele insistia que os processos cerebrais, embora pudessem ser localizados – certas partes do
cérebro se responsabilizariam por diferentes comportamentos humanos, como a linguagem
– eles não eram estáticos, mas constituíam uma série de reações químicas dinâmicas do
cérebro. Trata-se de uma verdade inquestionável. Seu posicionamento sobre a conexão
entre corpo e mente era sutil. Freud não foi nem reducionista nem dualista: “O psicológico
é, portanto, um processo paralelo ao fisiológico, um concomitante dependente.”13 Freud
continuou sendo materialista durante a vida inteira. Não tratou de noções nebulosas sobre
alma, espírito ou psique, desvinculadas dos processos físicos. Um dependia do outro. Ao
mesmo tempo, seguindo Kant, ele não acreditava que fosse possível conhecer a coisa-em-
si. Nosso acesso ao mundo ocorre apenas por meio da nossa percepção, argumentou.
Mesmo assim, vivo encontrando gente que trata Freud como se ele fosse quase místico, um
homem cujas ideias não guardam relação com as realidades físicas, uma espécie de monstro
de miragem que sabotou a modernidade enfiando um monte de besteira na cabeça de um
público crédulo, até que seu pensamento foi finalmente espatifado pela nova psiquiatria
científica baseada nas maravilhas da farmacologia. Como um cientista atraiu tal reputação?
Pouco tempo depois de publicar os Estudos sobre a histeria, Freud dedicou-se ao que mais
tarde chamaria de Projeto para uma psicologia científica, tentativa de associar suas
descobertas a respeito do funcionamento da mente com o conhecimento de neurologia,
criando um modelo biológico baseado na matéria cerebral – os neurônios. Após um período
de escrita febril, ele se deu conta de que não conhecia o suficiente sobre os processos
neurais para elaborar tal mapa, e deixou o Projeto de lado. O pai da psicanálise fez então a
inevitável opção de buscar uma explicação apenas psicológica para a mente, embora jamais
tenha abandonado a ideia de que em algum momento do futuro cientistas seriam capazes de
vincular seus conceitos a funções específicas do cérebro. Em sua história da psicanálise,
Revolution in Mind, George Makari apresenta uma avaliação eficaz do problema enfrentado
por Freud e muitos outros estudiosos de neurologia, psicologia e biofísica: “Não se pode
afirmar categoricamente que um nervo abriga uma palavra ou uma ideia.”14 Freud tinha
uma ideia a respeito de como esta conexão funcionava, mas não como provar que estava
certo.
Vamos dizer que depois de minha visita imaginária ao neurologista não apresentar nada de
interessante, eu decidi consultar um psicanalista. Embora a psiquiatria americana tenha sido
fortemente influenciada pela psicanálise no passado, as duas disciplinas se distanciaram,
especialmente a partir dos anos 1970. Muitos psiquiatras ignoram quase tudo ou tudo sobre
a psicanálise, que foi sendo cada vez mais marginalizada culturalmente. Um grande número
de psiquiatras americanos de hoje deixam boa parte da conversa aos assistentes sociais e se
limitam a receitar medicamentos. A farmacologia domina. Mesmo assim, ainda há muitos
psicanalistas praticantes espalhados pelo mundo, e a disciplina me fascina desde que
comecei a ler Freud, aos dezesseis anos. Nunca tinha sido analisada, mas em determinados
momentos da vida pensei em me tornar analista, e para tanto precisava primeiro ser
analisada. Fiz psicoterapia uma vez, por pouco tempo, e me ajudou muito, mas acabei
percebendo que uma parte de mim temia uma análise. O medo é difícil de articular, pois
não sei bem de onde vem. Sinto vagamente que existem recônditos da minha personalidade
onde reluto penetrar. Talvez seja a parte de mim que treme. A intimidade do diálogo entre
analista e paciente também me amedronta muito. Com franqueza, dizer tudo que me passa
pela cabeça soa terrível para mim. Meu analista imaginário é homem. Escolho um homem,
pois ele seria uma criatura paternal, um eco do meu pai, que pode ser o espectro envolvido
em meus tremores.
Depois de escutar minha história sem dúvida o analista tentaria descobrir mais a respeito da
morte de meu pai e do relacionamento que mantive com ele. Minha mãe entraria na
conversa também, e com certeza meu marido, minha filha, minhas irmãs e todas as pessoas
importantes de minha vida. Falaríamos, e por meio do diálogo nós dois tentaríamos
descobrir por que o discurso que fiz na frente do pinheiro incluiu uma tremedeira de
arrasar. Claro, seria preciso esclarecer que falar não era o meu problema. Mesmo durante o
ataque permaneci fluente. Minha patologia se encontrava em outro lugar, sob ou ao lado da
linguagem, dependendo da metáfora espacial. O termo psicanalítico para minha dificuldade
seria repressão. Eu teria reprimido algo, que acabou assomando do meu inconsciente como
sintoma histérico. Meu dilema pareceria clássico a um analista freudiano, aposto. Eu
contaria a meu analista fantasma que não era epiléptica, fato confirmado em consulta a um
neurologista, e dali em diante ele não dedicaria muito tempo a refletir sobre meu cérebro.
Embora os neurônios fascinassem Freud, o analista os descartaria e se concentraria em me
ajudar a trazer minha história à tona, para juntos procurarmos um modo de recontá-la de
forma a me curar do sintoma. Eu também passaria pela transferência. Por intermédio do
amor, que poderia se transformar em ódio, indiferença ou medo, eu transferiria a ele as
emoções que sentia em relação a meu pai, minha mãe ou minhas irmãs, e o analista, por sua
vez, passaria pela contratransferência, configurada de acordo com sua história pessoal.
Desenvolveríamos a compreensão das ideias, bem como das emoções. No final – deve
haver um final – teríamos construído um relato sobre meu pseudoataque, e eu estaria
curada. Eis, pelo menos, uma narrativa ideal da análise, que é uma forma peculiar de relato.
O próprio Freud registrou a originalidade da empreitada em Estudos sobre a histeria:
Enquanto cientista, Freud sentia certo incômodo por soar como um autor de ficção. Com o
passar do tempo, seu pensamento sobre o aparato psíquico mudaria, evoluindo, mas ele
jamais seria capaz de vincular as teorias ao sistema nervoso, onde os processos se
originavam, como bem sabia. A afasia era uma doença com uma base fisiológica
identificada. Dano a partes específicas do cérebro causavam problemas de linguagem.
Quando Freud escreveu sobre a afasia, os cientistas Paul Broca, francês, e Carl Wernicke,
alemão, já haviam divulgado seus estudos inovadores, que localizavam os centros da
linguagem no hemisfério esquerdo do cérebro. A histeria, contudo, era uma doença sem
lesões cerebrais. Freud conhecia e havia traduzido trabalhos do eminente neurologista
francês Jean-Martin Charcot, com quem manteve contato pessoal, estudou e de quem sofreu
uma profunda influência, havia deixado isso bem claro. Atuando no hospital Salpêtrière,
em Paris, Charcot, assim como inúmeros médicos antes dele, esforçou-se para distinguir
ataques epilépticos do que chamou de “histero-epilepsia”. Como epilepsias genuínas
podiam ocorrer sem lesões cerebrais, fato descoberto graças a autópsias, Charcot passou a
distinguir uma doença da outra por parâmetros clínicos, observando cuidadosamente seus
pacientes. Ele classificou doenças como histeria, que não eram causadas por leões
anatômicas, como “neuroses”. Considerava a histeria uma doença neurológica orgânica,
defendia sua origem hereditária e disse que não era exclusiva das mulheres. Os homens
também podiam ser histéricos.
Charcot interessou-se pelos aspectos psicológicos da histeria quando notou que um susto
forte ou emoção intensa poderiam ter vínculos com os sintomas. Nesses casos, Charcot
acreditava, o choque criava uma autossugestão, uma forma de autohipnose no paciente
exterior a sua consciência. Por exemplo, um dos pacientes do neurologista, diagnosticado
como portador de histeria traumática masculina, era ferreiro e sofrera uma queimadura na
mão e no antebraço. Semanas depois passou a ter contraturas na mesma parte do corpo. A
teoria dizia que o trauma poderia criar uma ideia que atuava no sistema nervoso já
vulnerável da pessoa, para produzir o sintoma: ataque, paralisia, incapacidade de andar,
ouvir ou ver; ausências ou sonambulismo. Além disso, o médico poderia produzir o mesmo
sintoma hipnotizando o paciente e sugerindo-lhe que a mão estava paralisada. A
autossugestão e a sugestão hipnótica ativavam as mesmas áreas fisiológicas, sendo duas
formas do mesmo processo. Para Charcot, o fato de uma pessoa poder ser hipnotizada
significava que ele ou ela era histérico. Apesar do interesse por traumas, Charcot manteve-
se comprometido com uma explicação fisiológica da histeria.16
Pierre Janet, filósofo e neurologista, jovem colega de Charcot, foi mais longe que seu
mentor na exploração dos aspectos psíquicos da histeria. Sustentava, como havia feito
Charcot, que um choque – acidente de carruagem, por exemplo – era capaz de deflagrar a
histeria, mesmo que a pessoa não sofresse danos físicos na batida. Bastaria, na opinião de
Janet, que o sujeito pensasse que “a roda passou por cima de sua perna”, para paralisar o
membro inferior.17 Janet foi o primeiro a usar o termo dissociação em relação à histeria. Ele
a definia como uma divisão entre “os sistemas de ideias e funções que constituem a
personalidade.”18 As ideias, segundo Janet, não eram pensamentos desvinculados do corpo,
e sim parte dos sistemas psicobiológicos que incluíam emoções, memórias, sensações e
comportamentos. Numa série de conferência realizadas por Janet em Harvard, em 1906, ele
argumentou que a histeria era definida pela “sugestão”, que seria “uma ideia forte demais,
capaz de atuar no corpo de maneira anormal.”19 A horrível ideia de um acidente de
carruagem se dissociava dentro da pessoa: “As coisas acontecem como se uma ideia, um
sistema parcial de pensamentos, se emancipasse, tornando-se independente e capaz de se
desenvolver por conta própria. O resultado é, por um lado, seu desenvolvimento exagerado,
e por outro, que a consciência deixa de a controlar.”20 A histeria, portanto, é uma divisão
sistêmica que permite a uma parte negada do eu se mover sem controle.
Janet conta a história de Irene, uma jovem pobre de vinte anos que assistiu a morte lenta e
sofrida da mãe a quem muito queria, por tuberculose. Depois de várias semanas ao lado
dela, no leito, Irene percebeu que a mãe não respirava mais e tentou reanimá-la. Durante o
esforço o corpo da mãe caiu no chão, e Irene precisou usar toda a sua força para colocar o
corpo de volta na cama. Após o enterro da mãe, Irene passou a reviver a morte em transes,
revendo seus horrores em detalhe, ou repetindo tudo seguidamente. Depois de reencenar o
episódio ela regressava à consciência normal e se comportava como se nada tivesse
acontecido. Os parentes de Irene estranharam que a jovem parecesse não dar importância à
morte da mãe. Na verdade, dava a impressão de ter esquecido tudo. A própria Irene se
mostrou surpresa e perguntou quando e como a mãe havia morrido. “Eu não consigo
entender uma coisa”, disse. “Por que eu não sofro por causa de sua morte, se gostava tanto
dela? Não consigo pranteá-la; sinto que sua ausência não significa nada para mim, como se
estivesse viajando e fosse voltar logo.”21
O trecho me intrigou. Eu me perguntei se havia em mim um vazio similar. Deveria ter
sentido mais a morte de alguém que eu amava muito? Por muitos meses depois de sua
morte, sonhei que meu pai ainda estava vivo. Estava enganada a respeito de sua morte; ele
não havia morrido coisa nenhuma. Irene viu a mãe falecer, ao lado da cama, sem poder
fazer nada. Quando meu pai estava morrendo, passei horas com ele, numa poltrona ao lado
de sua cama. O oxigênio o ajudava a respirar, e não conseguia mais se levantar sem ajuda.
Quando os pulmões falharam, os médicos o reviveram, fazendo um orifício no peito para
enchê-los de ar. Eu me lembro do furo. Eu me lembro de seu rosto acinzentado no hospital
em Minneapolis, da luz fluorescente feia no quarto pequeno, do senhor idoso do leito ao
lado a gemer, atrás da cortina divisória. Eu me lembro quando meu pai voltou para o lar de
idosos, sorrindo ao entrar no pequeno quarto na cadeira de rodas, dizendo: “É bom voltar
para casa, mesmo que não seja realmente sua casa.” Ele e eu conversamos muito nos dias
anteriores à sua morte, sobre vários assuntos, e enquanto falávamos eu me dizia para
esperar sua morte, para me preparar. Ele tinha 81 anos e vivera muito. As pessoas não
vivem para sempre. Todos nós morremos. Eu me dizia as platitudes habituais, pensava que
as histórias que contava a mim mesma funcionavam, mas agora desconfiava que talvez
estivesse errada.
Janet cunhou uma frase, la belle indifférence, que ainda é usada. Em geral a definem como
uma estranha ausência de preocupação com sua própria doença, especificamente ligada ao
transtorno de conversão ou histeria. Um exemplo dado num manual para candidatos à
especialização em psiquiatria é revelador: Após a morte da mãe em seu país natal, o
México, um homem que residia nos Estados Unidos ficou cego de repente. Não
identificaram nenhuma causa física, e ele não parecia preocupado pela falta de visão. Sua
atitude indiferente a uma condição tão dramática sugere que ele possa ser um paciente de
conversão.22 No caso de Irene, a indiferença se relacionava com o próprio evento
traumático. Seria este o meu problema? Por que não sofri mais, se o amava tanto? Janet
teria dito que a dor se ocultou dentro de mim. Freud teria visto meu problema como uma
maneira eficiente de me proteger com o que eu não conseguia admitir. O tremor histérico
servia a um propósito útil, o encobrimento.
No entanto, uma curiosa indiferença também é notada em paciente neurológicos que
apresentam lesões visíveis no cérebro. Pessoas com síndrome de Anton, surgida após a
ocorrência de um evento neurológico devastador, como o derrame, perdem a visão mas
afirmam que conseguem enxergar. Anton faz parte de um fenômeno muito maior, chamado
anosognosia – negação da doença. Todd Feinberg, no livro Altered Egos, descreve o caso
de Lizzy, uma mulher que sofreu derrames nos lobos occipitais do cérebro, onde se situa o
córtex visual primário, e ficou completamente cega. “Ela negava a doença, mais tarde a
admitia”, escreveu Feinberg, “mas nunca agia como se a deficiência visual tivesse alguma
importância. Ela conversou durante a entrevista como se não tivesse nenhum problema na
vida.”23 Lizzy oscilava entre saber e não saber que estava cega, mas sua atitude não mudava
quando demonstrava saber da cegueira. Pelo jeito, ela não se importava. Duas pessoas
perdem a visão. Numa delas, o córtex visual está intacto; na outra, sofreu danos. Uma delas
é caso psiquiátrico, a outra, neurológico, mas ambas manifestam uma estranha falta de
aflição por sua deficiência. Existiria alguma ligação entre essas indiferenças? Não estão
ambas, de algum modo, dissociadas do que ocorreu com as pessoas? Suas atitudes similares
poderiam ser consideradas repressão, para usar um termo psicanalítico? Seria a indiferença
psicológica no primeiro caso, mas neurológica no segundo? Claro, nem todas as pessoas
que sofrem lesões no córtex visual primário e perdem a visão negam a cegueira; apenas
algumas pessoas. E nem todas as pessoas que sofrem do transtorno de conversão
apresentam la belle indifférence. Mas Irene, a mexicana fictícia, Lizzy e eu talvez tenhamos
algo em comum: um problema que causa sofrimento. Irene ficou tão traumatizada com a
morte da mãe que um fragmento de seu eu repetia as circunstâncias do falecimento
seguidamente, enquanto outra parte nada sentia. Apresentava eu também um tipo de dupla
consciência – uma pessoa trêmula e outra tranquila?
Cerca de seis meses depois do episódio da tremedeira dei uma palestra no Hospital
Presbiteriano de Nova York, parte da série de conferências do programa de Medicina
Narrativa da Universidade Columbia, coordenado por Rita Charon. Além de médica,
Charon tem PhD em literatura. Sua missão é trazer o relato de volta à prática médica. Sem a
narrativa, argumenta, a realidade do sofrimento de uma pessoa específica se perde,
prejudicando a medicina. A distinção entre história e anistória é um de seus focos: “O
conhecimento não narrativo tenta iluminar o universal pela transcendência do particular; o
conhecimento narrativo, ao observar de perto seres humanos individuais lidando com as
condições de suas vidas, tenta iluminar aspectos universais da condição humana pela
revelação do particular.”24 Em minha palestra descrevi o ataque durante a homenagem, na
frente do pinheiro, e usei três profissionais imaginários – um psiquiatra, um psicanalista e
um neurologista – para ilustrar como um único evento paroxístico permite diferentes
interpretações, dependendo do campo de especialização. O ponto de vista especializado
inevitavelmente informa a percepção. E lá estava eu fazendo um novo discurso, desta vez
perante psiquiatras, psicanalistas e doutorandos em medicina, e descrevia minha
tremedeira. Antes da conferência um pensamento me veio à mente: E seu eu tremer de
novo? Na hora de começar, senti as mãos tremerem. Aquilo era familiar, nem pensei muito
no assunto. Quanto mais eu falava, mais relaxava. A confissão da tremedeira tinha um
propósito, e todos entendiam isso. A palestra foi boa. Meses depois, apresentei uma versão
resumida da mesma num seminário de literatura em Key West, na Flórida. Antes desta
segunda apresentação, eu havia participado de diversos debates públicos sem tremer nada.
Na data em questão havia quatro palestrantes, contanto comigo. Um romancista popular
famoso, que comparecera ao programa The Oprah Winfrey Show, falou antes de mim. Fez
uma palestra comovente sobre seu trabalho em penitenciárias femininas. A apresentação foi
triste, mas teve um final feliz. Apesar das manipulações grotescas por parte das autoridades
penitenciárias para oprimir a manifestação das mulheres para quem o romancista lecionava,
seus esforços foram bem sucedidos. As pessoas aplaudiram intensamente, de pé, por um
longo tempo. Então chegou minha hora de descrever as aventuras pelos campos da mente,
incluindo as aulas de redação a pacientes psiquiátricos no hospital. Não sentia nervosismo
nenhum, embora soubesse que minha palestra, comparada com a anterior, poderia parecer
hermética. Não pairavam dúvidas sobre minha sinceridade, porém, e eu considerava
benéfico o que tinha a dizer. Caminhei até o palco, e no instante em que pronunciei a
primeira palavra, aconteceu outra vez. Estava tremendo na frente de centenas de pessoas.
Segurei na tribuna, mas os braços, torso e pernas balançavam tanto que não havia como
disfarçar. Consegui terminar o primeiro parágrafo quando ouvi alguém dizer na primeira
fila: “Ela está tremendo.” Depois, outra pessoa: “Acho que ela sofreu um ataque.”
Apoiando as mãos com força nas laterais do púlpito de madeira, enquanto os espasmos
terríveis prosseguiam, disse à plateia para ter paciência comigo, que eu discutiria os
tremores mais adiante, durante a palestra. Como da primeira vez, minha voz não foi
afetada, mas passei a falar mais depressa, torcendo para conseguir chegar ao final da fala,
quando esperava que os tremores cessassem. Meu marido (que não comparecera à
cerimônia da árvore) me contou depois que nunca tinha visto nada parecido. Apesar de eu
ter descrito o primeiro ataque a ele, não dava para avaliar a intensidade, por um relato. Ele
queria subir ao palco, me pegar nos braços e me carregar para fora dali.
Contudo, conforme eu discorria sobre o assunto, os tremores começaram a diminuir; não de
pronto, mas aos poucos. Gradualmente os movimentos convulsivos cessaram. No final da
palestra eu havia voltado ao normal. Os presentes aplaudiram, compreensivos. Um
neurologista, um psiquiatra e um psicoterapeuta vieram conversar comigo no final, e para
meu imenso alívio não ofereceram seus serviços, e sim comentários sobre o conteúdo da
conferência. Outras pessoas me procuraram para me elogiar pela “coragem”. Eu não me
sentia corajosa. O que deveria fazer? Não precisava de ambulância. Confiara que o tremor
passaria no final da minha fala. As únicas opções eram continuar falando ou deitar no chão
e admitir a derrota. Uma amiga que fora minha professora na Universidade Columbia
quando eu fazia meu curso de graduação, e que também participava do seminário, disse foi
como ter visto um médico e um paciente no mesmo corpo. De fato, eu havia sido duas
pessoas naquele dia – uma oradora razoável e uma mulher durante um ataque de
tremedeira. Demonstrei, inteiramente contra minha vontade, a patologia que estava
descrevendo.
Passei as horas seguintes exausta, vacilante. Sentia dor nos membros, como num caso de
gripe, e um pouco de tontura. Mas, acima de tudo, sentia medo. E se isso continuasse
acontecendo? Eu me perguntei se os ataques teriam sido provocados por eu mencionar meu
pai, ou se teria bastado apenas saber antecipadamente que eu falaria sobre ele. Neste caso,
por que não tremi na conferência de Medicina Narrativa? Por que senti tanta calma depois
dos dois episódios? A recepção calorosa ao romancista popular teria gerado uma noção
subliminar de que meus comentários seriam decepcionantes, após uma narrativa tão bem
sucedida? Teria ficado acordada até muito tarde na noite anterior, ou tomado café demais
pela manhã? Eu havia comparecido a uma conferência sobre ataques de pânico proferida
por um farmacologista, na qual ele deixou claro que a vulnerabilidade pode ser criada por
determinados comportamentos. Fumantes, por exemplo, são mais propensos ao pânico do
que os não fumantes. Eu havia abandonado o tabaco anos antes, mas a cafeína era
estimulante, poderia ter gerado predisposição aos ataques, no meu caso. O autodiagnóstico
de transtorno de conversão não resolvia meu problema, o que era frustrante. Aproximava-se
o momento de nova palestra. Eu havia sido convidada para falar sobre um tema
completamente diferente no museu do Prado, em Madri, dentro de uma série de
conferências sobre antigos mestres e modernismo. O ensaio já estava escrito, e a
apresentação em PowerPoint, preparada. Talvez eu fosse desabar de novo. Tremer sempre
que falasse em público. Precisava de ajuda, mas não de personagens saídos da minha
imaginação. Liguei para um amigo psiquiatra, em quem confiava, e pedi que recomendasse
um profissional sério e capacitado. Num e-mail ele sugeriu que eu poderia ter uma versão
da síndrome do pânico, em vez de histeria. Precisaria portanto de um medicamento que me
garantisse a tranquilidade durante uma hora de conferência, no museu do Prado. Mais tarde,
poderia lidar com as questões profundas que provocavam os tremores. E me indicou um
farmacologista.
Contei minha história, finalmente, ao dr. E., um psiquiatra real, em seu consultório de
verdade. Ele se revelou atento e solidário. Ouviu com paciência o relato sobre enxaqueca, o
que eu sustentava ser um único ataque, a sugestão de que eu tinha um tipo de síndrome do
pânico, e minha própria teoria sobre transtorno de conversão. Ele me disse, com franqueza,
que meus ataques não combinavam com síndrome do pânico, pois eu não estava
preocupada, antes deles; que eu não me sentia ameaçada, e sabia que não ia morrer. Ele me
dispensou com uma receita de 0,5 mg de lorazepam em comprimidos e a indicação de um
especialista em epilepsia. Antes da apresentação em Madri, tomei um comprimido. Não
tremi. Marquei consulta com o especialista em epilepsia, mas depois a cancelei.
Minha jornada, tanto imaginária quanto real, me levou a mover em círculos, e a causa de
meus ataques continuava desconhecida. O lorazepam provavelmente me acalmou o
suficiente para inibir a tremedeira, no museu do Prado. Este e outros benzodiazepínicos são
empregados no tratamento de ataques epilépticos genuínos, e também contra ataques de
pânico, portanto a eficácia da droga não ajuda um médico a fazer o diagnóstico, no meu
caso. Por outro lado, a palestra que proferi nada tinha a ver com meu pai, o que pode ter
evitado os espasmos, de qualquer maneira. Para complicar ainda mais as coisas, um placebo
talvez tivesse funcionado tão bem quanto. Sabe-se hoje que a simples crença de que uma
pílula ajudará pode aumentar a liberação de opióides no cérebro, fazendo com que a pessoa
se sinta melhor; ou, como os autores de um estudo disseram, “fatores cognitivos” (ou seja, a
expectativa de alívio da dor) são capazes de modular estados físicos e emocionais.”25
Ideias, pelo jeito, são poderosas e podem nos alterar. Como Janet destacou, a roda da
carruagem não precisa passar por cima da perna; ter a ideia basta para paralisar o membro.
Seria a simples noção da morte de meu pai que provocava os tremores? Ou algum outro
fator? A única certeza era que eu não conseguia percebê-lo por meio da consciência; não
era capaz de pôr o problema em palavras. A ideia se escondia em algum lugar. Eu me
perguntava: seria possível encontrá-la?
Por vezes a teoria precede a tecnologia que comprovará sua veracidade, e por vezes a
tecnologia chega primeiro que a teoria. Neste caso temos os avanços que mudaram a
pesquisa em neurociência. Exames como PET (positron emission tomography – tomografia
de emissão positrônica), SPECT (single photon emission computed tomography –
tomografia computadorizada por emissão de fóton único) e fMRI (functional magnetic
resonance imaging – imagens por ressonância magnética funcional) são usados para
examinar o cérebro e outros órgãos do corpo humano. As imagens coloridas que muitos já
viram em revistas e na televisão mostram o fluxo sanguíneo em várias regiões do encéfalo.
A teoria diz que há maior atividade cerebral quando mais oxigenado o sangue flui. O que as
imagens realmente mostram e como interpretá-las, contudo, ainda provoca controvérsias.
Tenho ouvido seguidas dúvidas dos cientistas a respeito do que as imagens realmente
significam, e mesmo assim elas são usadas frequentemente como provas, são fascinantes e
instrumentos úteis, apesar do fato de não poderem ser consideradas o ponto final definitivo
das pesquisas científicas. Mas, quando o escaneamento do cérebro chega à imprensa
popular, os aspectos duvidosos que os cercam já foram em sua maioria superados. Em 26
de setembro de 2006 a seção de Ciência do New York Times publicou um artigo intitulado
“A histeria é real? Imagens do encéfalo afirmam que sim.” Além do título levar a
questionar o que significa a palavra “real”, ele dá uma ideia dos equívocos relativos à
doença mental e à relação entre corpo e mente. O argumento implícito de que a paralisia ou
ataque histérico, se aparecerem num escaneamento cerebral, deixam de ser uma doença que
consideravam “coisa da sua cabeça” para ser um problema do corpo, e portanto sua
“realidade” se confirma. “A histeria parecia ser uma extravagância extinta no século XIX”,
escreve a jornalista, “útil a objetivos literários, mas sem dúvida deslocada nas pesquisas
sérias da ciência contemporânea.” Novamente, estabelece-se uma hierarquia. As pessoas
ridículas que levam a literatura a sério podem encontrar alguma utilidade para a histeria;
mas por que cientistas, os mestres da cultura que determinam nossas verdades, se
dedicariam a algo tão retrógrado quanto a histeria? “A palavra em si soa obscura”,
prossegue, “um tanto misógina e excessivamente vinculada a Freud, que hoje saiu de
moda.”26 A repórter tem razão ao dizer que a histeria tem conotações negativas para as
mulheres, e que mesmo pessoas que nunca leram uma palavra de Sigmund Freud sentem-se
à vontade para condenar suas teorias, pois as ideias dele a respeito da histeria, por exemplo,
não estão mais em voga. De todo modo, por mais valiosas que possam ser, as imagens
cerebrais não explicam a conversão.
Elas demonstram haver relações neuroanatômicas com a paralisia ou a cegueira histérica –
uma alteração orgânica – mas como isso ocorre não pode ser descoberto por um fMRI;
essas imagens tampouco mostram aos médicos como tratar seus pacientes de transtornos de
conversão. Como Sean Spence mencionou em Advances in Psychiatric Treatment, depois
de repassar estudos de imagens cerebrais de sintomas de conversão, bem como de outros
distúrbios psiquiátricos que envolvem algum problema corporal, incluindo a anorexia e as
alucinações auditivas: “Talvez a mais sutil lição desta revisão seja a falta de especificidade
de todas as descobertas até então descritas. Embora possamos prever que um paciente que
descreve perturbações corporais de “algum tipo” apresentará anormalidades em
determinadas regiões prováveis do cérebro, teríamos muita dificuldade em modificar o
diagnóstico ou o tratamento, com base no escaner cerebral.”27 Mesmo assim, os sintomas de
conversão são tão “reais” quanto qualquer outro sintoma, e eles podem estar associados a
choques e traumas emocionais.
Justine Etchevery foi a primeira paciente de histeria de Charcot. Antes de ser internada em
Salpêtrière, acumulou tragédias durante a vida inteira. De uma família com quatorze filhos,
testemunhou a morte da maioria dos irmãos, ainda pequenos. Ela sobreviveu ao tifo e à
cólera. Na instituição onde trabalhava, um homem a atacou e tentou violentá-la. Aos 25
anos, durante o primeiro ataque convulsivo, caiu em cima do fogo e sofreu queimaduras
sérias, além de perder a visão de um olho. Quando chegou em Salpêtrière, sofria de
paralisia e insensibilidade do lado esquerdo. Internada no hospital, sofreu outro ataque
violento, perdendo o uso do braço esquerdo e logo depois dos outros membros. As
“contraturas” duraram oito anos. Então, em 22 de maio de 1874, quando estava deitada no
leito hospitalar, sofreu um ataque súbito de sufocamento. Notou que a rigidez do lado
direito do maxilar inferior e da perna direita cessaram, e ela gritou às enfermeiras: “Quero
sair da cama! Quero andar!” Depois de anos de paralisia, Justine levantou da cama e
caminhou.28 A histeria pode operar milagres.
A história resumida de outro paciente de conversão foi descrita no apêndice de um artigo da
Brain, em 2001:
O paciente V. U., uma mulher de quarenta anos, destra, que havia fugido da Argélia na
infância, escapou ao tiroteio em que morreram parentes seus. Uma dor crônica no pescoço,
com irradiação para o braço esquerdo, a atormentou por muitos anos, após um acidente
automobilístico sem ferimentos. Não houve registro anterior de diagnóstico somatoforme
ou psiquiátrico. Sentiu fraqueza e dormência no braço esquerdo, dois meses depois de ter
arrastado móveis, quando forçada a mudar para a Suíça. Ela não conseguia levantar e
manter o braço esquerdo estendido, só fazia movimentos lentos e restritos com os dedos.
Perdeu praticamente a sensibilidade a toques leves no braço inteiro, sem distribuição
radicular.29
Eu continuei a tremer. Tremia mesmo tomando lorazepam, mas não em todas as aparições
públicas: só em algumas. Quando meu último romance foi publicado, o narrado por meu
irmão imaginário, no qual usei parte das memórias que meu pai havia escrito para a família
e os amigos, e li trechos para a plateias, eu tremi. Quando compareci a um debate sobre a
morte na literatura, na Austrália, eu tremi. O problema sempre acontecia do mesmo jeito.
Eu tremia, continuava falando, melhorava aos poucos. No entanto, era preciso um esforço
imenso para não se permitir que as violentas convulsões de seu corpo a distraiam, e
comecei a me perguntar se suportaria a pressão. O que me pegava de surpresa tornou-se
familiar. O que antes parecia uma ocorrência bizarra sem ligação consciente com um
sentimento identificável tornou mais e mais um caso extremo de medo do palco –
inteiramente irracional, mas vinculado a momentos em que eu me expunha ao escrutínio
público. Tudo que se relacionava a uma apresentação provocava em mim ansiedade e
preocupação. A qualquer momento o sabotador incontrolável dentro de mim poderia
aparecer e perturbar minha palestra. Foi quando descobri o betabloqueador Inderal. Anos
antes eu havia tomado Inderal para enxaquecas. Não adiantou muito para as dores de
cabeça, mas a conselho de um amigo passei a ingerir 10 miligramas do medicamento antes
de palestras e conferências, e funcionou. O Inderal (ou propranolol) é um medicamento
para pressão sanguínea; um bloqueador de adrenoreceptor que interrompe a liberação dos
hormônios do estresse.
Pode-se imaginar que a narrativa da mulher trêmula acaba aqui, dada a bem sucedida
eliminação dos ataques durante eventos, na presença de estranhos, o que me aliviou e até
alegrou. Mas não foi o que aconteceu. Quando excursionava pela Alemanha e Suíça tomei
propranolol antes das palestras que dei em seis cidades, sem tremer. Na última, Zurique,
tomei a pílula e falei sem tremer, mas senti um formigamento elétrico nos membros. Era
como se eu tremesse sem tremer. Enquanto falava eu me censurava internamente, dizendo:
“Cuide disso! Isso é você! Cuide disso!” Claro, o fato de eu falar comigo como se fosse
outra pessoa sugere a ocorrência de uma ruptura – uma sensação ruim de que duas Siris
estavam presentes, e não uma só. Naquele instante, sentia-me exausta de tanto viajar de
uma cidade a outra, de dar entrevistas e palestras todos os dias, da ansiedade inevitável por
medo dos tremores, e de distribuir partes de minha vida interior mais profunda a outros, na
forma de leituras de um livro que derivava diretamente da morte de meu pai. Embora a
solução farmacológica inibisse o problema exterior, não solucionava o mistério. Não me
revelava o que estava acontecendo.
Os betabloqueadores têm sido usados para moléstias do coração, ansiedade, glaucoma,
hipertireoidismo e problemas neurológicos, como enxaquecas. Em Basic and Clinical
Pharmacology, na seção intitulada “Doenças neurológicas”, os autores admitem que não
sabem o motivo para o propranol ser eficaz em algumas enxaquecas. Eles dizem: “Uma vez
que a atividade simpática pode elevar o tremor muscular esquelético, não surpreende que
beta antagonistas sejam capazes de reduzir certos tremores. As manifestações somáticas de
ansiedade podem responder intensamente a baixas doses de propranolol, em especial
quando tomadas profilaticamente. Por exemplo, comprovou-se benefício em músicos com
ansiedade de performance (‘medo do palco’).”32 (itálico da autora). A “atividade simpática”
faz parte do sistema nervoso autônomo, nosso lado que entra em giro alto durante uma
emergência ou situação estressante. Automática e involuntariamente. Tudo isso se encaixa
no meu caso, mas por que eu, sem qualquer alerta, de repente passei a sofrer de medo do
palco, aos 51 anos? Por alguma razão, após muitos anos de relativa calma, eu desenvolvi
espasmos terríveis, que quase me derrubavam, diferentes dos tremores nervosos facilmente
ocultáveis de antes. Por que eu não senti ansiedade antes dos primeiros ataques de
tremedeira, se eles estavam relacionados com a ansiedade? Por que consigo falar
calmamente durante todos os ataques? Onde está a sensação de sufoco e taquicardia típicos
do pânico em outras situações?
Eu me lembro do primeiro prêmio que ganhei. Foi no curso básico. Pintei a cena da
Natividade. Eu me lembro de uma estrela bem grande, no céu. Ganhou uma fita azul na
feira da escola.
Eu me lembro de quando comecei a fumar e escrevi uma carta contando isso a meus pais.
Eles nunca mencionaram a carta e eu continuei fumando.62
Quando os pacientes redigem suas “eu me lembro” ocorre algo notável. O próprio ato de
escrever as palavras eu me lembro gera lembranças, normalmente imagens bem específicas
ou eventos passados, com frequência episódios em que não pensavam havia anos. Escrever
as palavras eu me lembro estimula tanto as ações motoras quanto as cognitivas. Em geral eu
não sei como vou terminar a frase quando começo, mas assim que a palavra lembro surge
na página algum pensamento me vem à cabeça. Uma lembrança leva a outra. Uma cadeia
associativa se forma:
Eu me lembro de nunca mais ter achado meus joelhos feios, depois disso.
Para que a escrita automática ocorra deve haver uma dissociação da consciência
coexistente, com eliminação da extremidade que funciona automaticamente do campo da
consciência. Não somente as funções motoras se dissociam, como, habitualmente, o
membro como um todo é elidido da consciência, tendo como resultado que as impressões
sensoriais originárias neste membro não são conscientemente percebidas.65
Embora os autores do estudo da Brain aleguem não existir precedente para o caso de Neil,
o que pode ser verdade, há o registro de um caso famoso: o paciente Zazetsky, de A. R.
Luria, descrito no livro The man with a shattered world. Depois de sofrer ferimentos sérios
na Segunda Guerra Mundial, com danos nas áreas parietais e occipitais esquerdas do
cérebro, Zazetsky passou a apresentar dificuldades espaciais e cognitivas graves. Como
Neil, ele conseguia falar e repetir palavras, mas não conseguia lembrar seu nome nem o
endereço, ou nomear com palavras os objetos que o rodeavam. Ele identificou corretamente
a parte desaparecida como sua “memória verbal”. Após alguns meses internado num
hospital, ele começou a lembrar lentamente fragmentos de seu passado, como nome,
endereço e algumas palavras:
Eu ouvia tudo que as pessoas estavam dizendo ao meu redor, e pouco a pouco minha
cabeça de encheu de canções, lembranças e trechos de conversas que eu entreouvira.
Conforme eu me lembrava das palavras e as usava para pensar, meu vocabulário adquiriu
mais flexibilidade.
No início eu não conseguia lembrar nenhuma das palavras que pretendia usar depois. Mas
acabei decidindo escrever para casa, e escrevi uma carta rápida – curta, quase um bilhete.
Eu não conseguia ler nada do que escrevia, e por isso não queria mostrá-la aos outros
pacientes. Para não pensar mais no assunto e evitar irritação, fechei o envelope, escrevi o
endereço da minha família e pedi que pusessem a carta no correio. [Itálico meu]66
Zazetsky apresentaria para sempre dificuldades terríveis para ler e entender o que escrevia,
mas conseguia escrever, e quando escrevia se lembrava, especialmente quando não erguia a
mão da página. Em seus volumosos cadernos, Zazetsky não só descrevia os sofrimentos
causados pelos danos ao cérebro, como trazia de volta, com esforço imenso, todas as
lembranças que conseguia extrair de sua mente fragmentada. Apesar das deficiências, era
um homem capaz de manter um alto senso de consciência pessoal, com um “eu” capaz de
refletir e de se adaptar. Trechos dos cadernos de Zazetsky revelam um caráter notável.
Intelectualmente curioso, analítico e sensível emocionalmente, Zazetsky serve como
testemunha decisiva da estranha e curiosa capacidade da escrita como instrumento da
memória.
Até que ponto chegou a ciência na compreensão do que ocorre às pessoas que apresentam
sintomas psicogênicos – sintomas de vários tipos que não se enquadram nos diagnósticos
neurológicos existentes? Em seu estudo de 2006, “Conversion disorder and fMRI”,
publicado em Neurology, Trevor H. Hurwitz e James W. Pritchard reviram um estudo
recente de exames cerebrais de histéricos. No final da discussão, os autores recuaram 130
anos no passado, até o médico inglês J. Russell Reynolds, “que descreveu a paralisia e
outras disfunções motoras, e a sensação baseada num ‘ideia que toma posse da mente e a
conduz até sua realização.’” Eles prosseguem, tentando “reformular” a afirmação em
termos contemporâneos: “As reações de conversão são crenças fixas de disfunções
somáticas derivadas do estresse psicológico que controla os caminhos corticais e
subcorticais para produzir padrões de perdas ou ganhos de funções que não são orgânicas
no sentido convencional.”77 Jean-Martin Charcot estava presente quando Reynolds
apresentou o estudo citado por Hurwitz e Pritchard, numa conferência da Associação
Médica Britânica, em 1869, na Inglaterra, e as palavras do médico inglês exerceram forte
influência sobre o neurologista francês, que ele mencionava com frequência e se dedicou a
desenvolver.78 “Crenças fixas” soa parecido com o conceito de Janet, idée fixe, ou ideia
fixa. Charcot, Janet e Freud também sabiam que a histeria não era orgânica no sentido
convencional. Pelos inúmeros estudos e pesquisas que consultei posso afirmar que os
conceitos científicos sobre a histeria não avançaram um único centímetro desde que os
estudiosos citados pesquisaram a doença, no final do século XIX e início do século XX.
Dois autores de um outro estudo sobre conversão e neuroimagens dizem o seguinte:
“Contudo, a questão de quanto os processos psicológicos especiais se transmutam em
neurobiologia ainda precisa ser respondida.”79 E não era exatamente esta a questão que
Freud pretendia responder com seu Projeto de 1895?
Vigora um consenso generalizado de que os fatores “psicológicos estressantes”
desempenham um papel nos sintomas das doenças psicogênicas, e hoje em dia os
escaneamentos cerebrais apresentam provas claras de alterações neurais em áreas cerebrais
compatíveis, mas falta uma explicação abrangente. O que Hurwitz e Prichard querem dizer
com “não são orgânicas no sentido convencional”? Soa verdadeiro, mas vago. Orgânico
tem sido usado para designar doenças com causa conhecida, nas quais a atividade durante
um ataque pode ser vista e medida, por exemplo, ou quando a cegueira pode ser atribuída a
uma lesão cerebral, mas não para as doenças às quais falta isso. O advento de sinais visíveis
de conversão no cérebro das pessoas parece deixar muitos pesquisadores num vácuo
teórico. O que eles têm nas mãos é algo orgânico no sentido não convencional.
O problema mente/corpo ainda nos atormenta, tão consagrado enquanto dualidade que se
torna quase impossível pensar seu usá-la. A divisão, afinal, criou a distinção entre
psiquiatria e neurologia: mente doente versus cérebro doente. A histeria, antes no campo da
neurologia, acabou empurrada para a psiquiatria. De qualquer maneira, pelas descrições, a
maioria dos pacientes de conversão procuram primeiro o neurologista, pois aparentemente
sofrem de problemas neurológicos. A questão aqui, mais uma vez, é de percepção e
contexto, quadros disciplinares que estreitam a visão. Sem categorias não conseguimos
entender o sentido das coisas. A ciência precisa controlar e restringir seu campo, ou não
descobrirá nada. Ao mesmo tempo, precisa de ideias e interpretações que sirvam de fios
condutores, ou as descobertas carecerão de sentido. Quando os pesquisadores estão presos a
campos pré-ordenados, porém, que permitem pouco intercâmbio, a imaginação científica é
abafada. Os estudos sobre conversão são em geral pequenos, pois não é fácil reunir pessoas
com os mesmos sintomas e, se por acaso houver descrição dos casos, elas ocupam um par
de linhas, como se vê no exemplo de um paciente dos sete que participaram do estudo da
Brain:
Paciente V. A.
Cinquenta e um anos, mulher, destra, divorciada, cujo filho faleceu de moléstia cardíaca um
ano antes da realização do estudo. Fraqueza, sensação de peso e perda de destreza dos
membros direitos surgiram depois de seu companheiro sofrer infarto do miocárdio no
período em que foi injustamente acusado de abusar de uma adolescente. Nenhuma queixa
sensorial.80
Nossos olhos estão diretamente ligados ao cérebro, o que ajuda a explicar por que estamos
sempre fitando os olhos das outras pessoas para descobrir o que querem dizer. Como
escreveu E. H. Hess, o olho é “uma extensão anatômica do encéfalo; é quase como se uma
porção do cérebro estivesse à vista.”96 Os neurobiologistas sabem que os intercâmbios
visuais entre mãe e filho facilitam o desenvolvimento cerebral da criança. Allan Schore
chama o intercâmbio entre mãe e filho de “harmonização psicobiológica”, e a exemplo de
outros autores refere-se à mãe e filho com uma única palavra, díade – um nó, dois em um.
“A face emocional e expressiva da mãe é a fonte mais importante de informação visual-
afetiva”, destaca, “e nas interações rosto com rosto ela serve como um estímulo visual de
registro no desenvolvimento do sistema nervoso infantil.”97 Nossas vidas começam por um
diálogo sem palavras, e a falta dele compromete nosso crescimento.
Impossível separar natureza e nutrição. Não podemos isolar uma pessoa do mundo em que
vive, e a questão vai além: noções de dentro e fora, sujeito e objeto, se entrelaçam. A
corrente vital que entra por nossos olhos e ouvidos deve sair por nossos lábios, pés ou
mãos. Somos feitos por meio de outros, e este movimento inicial de reconhecimento entre
mãe e filho e mais tarde entre pai e filho é essencial para definir quem somos, e na
maturidade para a noção de imagem corporal, de uma identidade corporalmente constituída.
Shaun Gallagher escreveu: “É a interação intermodal e intersubjetiva entre propriocepção
[nosso esquema corporal motor mais inconsciente] e a visão da face do outro que a imagem
corporal [consciente] da pessoa se desenvolve.”98 Em minhas palavras, a criança precisa
adquirir um “eu” através de um “você”. Elas nascem com um temperamento genético –
tensa e sensível, por exemplo, ou relativamente calma e dócil – que influenciará o modo
como reagem aos estímulos visuais e emocionais, e todas contam com os instrumentos
necessários para participar do mundo interativo falante, mas o “eu” articulado e consciente
não é um dom. Sua chegada faz parte de um desenvolvimento corporal extenso que envolve
espelhos e reconhecimentos mútuos.
Muita gente já deve ter ouvido falar de neurônios espelho, descobertos em 1995 por
Vittorio Gallese, Giacomo Rizzolatti, Leonardo Fogassi e Luciano Fadiga em primatas do
gênero Macaca.99 Esses neurônios, localizados no córtex pré-motor desses animais, são
acionados quando o macaco faz alguma coisa, como segurar uma banana, mas também
entram em ação quando o macaco observa a mesma banana, sem fazer nada. Sem surpresas,
os cientistas identificaram um sistema de espelho na espécie humana. Ainda não se saber
exatamente o que isso significa, mas a descoberta dos neurônios espelho levou à
especulação de que eles estão envolvidos em tudo, da linguagem à empatia. Rizzolatti
acredita ter encontrado o sistema subjacente sinalizador da linguagem humana. No mínimo,
os neurônios espelho parecem fazer parte das idas e vindas dialéticas inerentes às relações
humanas, sendo uma raiz biológica da reflexibilidade do “eu” e “você”, uma ideia que pode
ser encontrada em Hegel, e combina intensamente com sua noção de que nossa
autoconsciência está enraizada nas relações entre o eu e o outro: “A autoconsciência existe
em si e por si, na medida em que e pelo fato de que existe para outra autoconsciência; ou
seja, apenas por ser admitida ou ‘reconhecida.’”100
A palavra “eu” aparece mais tarde, na fala infantil. Como Merleau-Ponty destaca, “O
pronome eu tem seu pleno significado apenas quando a criança não o usa como signo
individual para designar sua própria pessoa – um signo que seria dado de uma vez por todas
para ela e para mais ninguém – e sim quando passa a compreender que cada pessoa avistada
é um “eu” para si e um “você” para os outros.101 Antes do “eu” surgir, a maioria das
crianças se referem a si por seus nomes próprios. Eu me lembro de minha filha dizer
“Sophie cenoura” em vez de “Eu quero cenoura”. Os gêmeos de seis anos de Luria não
tinham um termo pra “eu” em sua linguagem particular. Eles se referiam a si na terceira
pessoa. Em alguns tipos de afasia o “eu” desaparece no início, e em certos esquizofrênicos
o “eu” e o “você” se confundem ou perdem o sentido. Em suas memórias, Autobiography
of a Schizophrenic Girl, Renee escreve sobre a doença, os delírios sobre um Sistema
controlador que lhe dava ordens, e a terapia que a trouxe de volta para a “realidade”:
O que me deu uma satisfação incrível foi ela usar a terceira pessoa ao falar de si, “Mamãe e
Renee” [Renee chamava a terapeuta de Mamãe], e não “eu e você”. Quando ela usava a
primeiro pessoa, por acaso, eu deixava de reconhecê-la abruptamente, e ficava furiosa por
ela ter, com seu erro, rompido meu contrato com ela. Então, quando ela dizia, “Você verá
como lutaremos juntas contra o Sistema” (O que eram eu e você?), para mim não havia
realidade. Só “Mamãe” e “Renee”, ou, melhor ainda, “a pequena personagem”,
apresentavam realidade, vida, afetividade.”102
A psicose de Rennee afetou mais do que sua linguagem. A estrutura do ego se fragmentou,
e um sinal de sua desintegração foi a regressão a um estágio anterior de emprego da
linguagem, e um “eu” vazio, hesitante. A terceira pessoa, “Renee”, e a expressão descritiva,
“a pequena personagem”, possuíam realidade, concretude, firmeza e objetividade, coisas
que ela não encontrava na mutabilidade do “eu” e “você”, que dependiam exclusivamente
do falante.
Eu cuidei de uma moça perturbada que apresentava tendência de falar de si na terceira
pessoa, mas nem sempre, só em determinados momentos. Ela havia sido abandonada pelos
pais, residira com vários parentes e acabou sendo adotada. Além disso, sofreu ataques
sexuais quando tinha onze anos. “Linnie não gosta da escola”, ela dizia. Ou: “Eles odeiam a
Linnie.” Certa vez, ela pronunciou uma frase assombrosa: “Se eu tivesse o amor de meu
pai, então seria a verdadeira Linnie.” Havia duas Linnies, uma irreal, sem amor, e outra
real, amada. Existem muitas maneiras de se perder a lucidez, mas golpes, perdas e
privações repetidos com frequência se tornam problemas de identidade: o eu e o não-eu, ou
o eu e o ele, o real e o irreal. Há aspectos psicológicos nos transtornos neurológicos
também, embora se compreenda pouco a distinção entre eles e a doença ou dano cerebral
localizado. O sr. D. transformou a mão enferma em uma “coisa” odiada. Mãos estranhas
que não pertenciam mais ao “eu” que articulava. Quem age, nesses casos? A mão de Neil
registrava lembranças que o “eu” falante não conseguia recordar. O termo de Freud para a
parte inconsciente e conduzida pelo instinto da personalidade tripartida era das Es, que se
tornou “id” em inglês [e português], termo emprestado de Georg Groddeck, que escreveu:
“Em meu ponto de vista o homem é animado pelo Desconhecido, que se encontra dentro
dele como “Es”, um “It”, uma força impressionante que dirige tanto o que ele faz quanto o
que acontece a ele. A afirmação ‘eu vivo’ só é correta condicionalmente, expressando
apenas um parte pequena e superficial do princípio fundamental, ‘O homem é vivido pelo
It.’”103 Freud partiu do conceito de Groddeck para criar a noção de uma parte da
personalidade impulsiva, além de a-histórica ou atemporal, da qual não temos
conhecimento. Benjamin Libet que realizou experiências sobre livre arbítrio,
provavelmente concordaria. O “It” interno tem força, mas não fala.
O instinto mais profundo que nós animais possuímos é o da sobrevivência. Nosso ser foi
inteiro selecionado para continuar vivo e se reproduzir. Todos os animais têm
provavelmente um senso interno de sua própria vulnerabilidade e mortalidade. Não sou
uma dessas pessoas que temem atribuir emoções aos animais. Pelo jeito, os elefantes
pranteiam seus mortos. O neurocientista D. O. Hebb descobriu que os macacos se afastam
das representações das cabeças cortadas de seus companheiros símios, embora saibam
perfeitamente que elas não são reais. A consciência da ameaça e o comportamento
defensivo são cruciais para a sobrevivência, mas talvez sejamos os únicos animais capazes
de contemplar nossas próprias mortes. Contudo, poucos de nós gostam de pensar no final.
Reprimimos isso. Quando a morte se aproxima, como ocorreu comigo num acidente
automobilístico, as emoções se trancam; no meu caso, o medo voltou nos pesadelos, em
surtos de lembranças terríveis. Não consigo pensar numa passagem literária melhor sobre a
repressão da mortalidade do que o trecho de Tolstoi, em A morte de Ivan Ilitch:
No fundo do coração ele sabia que estava morrendo, mas não se acostumava com a ideia,
ele simplesmente não conseguia, não podia compreender isso.
O silogismo, aprendera na Lógica de Kiesewetter: “Caio é um homem, os homens são
mortais, portanto Caio é mortal”, a vida toda lhe parecera correta quando aplicada a Caio,
mas não aplicada a ele, de jeito nenhum. Que Caio – um homem qualquer – fosse mortal
era perfeitamente justo, mas ele não era Caio, não era um homem genérico, mas uma
criatura distinta de todas as outras. Ele havia sido o pequeno Vânia, com mamãe e papai,
com Mítia e Volódia, com os brinquedos, o cocheiro e a ama, depois com Kátienka e todas
as alegrias, dores e delícias da infância, da mocidade e da juventude. O que Caio sabia do
cheiro da bola de couro listada que Vânia tanto apreciava? Caio beijara a mão de sua mãe, e
o vestido de seda farfalhava para Caio? Ele criou um caso no curso, quando o bolinho não
prestou? Caio se apaixonara como ele? Caio conseguiria presidir uma sessão como ele?
Caio realmente era mortal, e sua morte seria correta; mas para mim, o pequeno Vânia, Ivan
Ilitch, com todos os meus pensamentos e emoções, é um caso completamente diferente.
Não pode ser que eu vá morrer. Isso seria terrível demais.104
O salto de Caio para o pequeno Vânia é o salto do abstrato ao particular, do saber algo
intelectualmente a não saber isso realmente, da verdade genérica para a verdade pessoal, da
realidade na terceira pessoa para a realidade na primeira pessoa. O salto também nos leva
de volta no tempo, para as lembranças da primeira infância, para o aroma agradável da bola
de couro e da presença sensual da mãe, um mundo que girava em volta do pequeno Vânia,
sua majestade, o bebê, o menino tão amado. É tão comum negar o inevitável, o que
acontecerá, o meu final, mas compreender isso é muito difícil. Tolstoi usa o pronome “It”
para descrever a presença que espreita a vida de Ivan Ilitch, e que o herói tenta
desesperadamente evitar. Ele procura “consolos – novos cenários – e novos cenários são
encontrados, e por um período dão a impressão de que o salvarão, mas logo se partem em
pedaços, ou melhor, se tornam transparentes, como se o It os penetrasse e nada pudesse
cobrir It.” Como a sra. A., que projetava sua dor em óculos e cigarros perdidos, Ivan Ilitch
se preocupa com riscos no verniz da mesa, num álbum rasgado e em seguida briga com a
mulher e a filha sobre o lugar melhor para guardar o álbum danificado, e percebe que essas
disputas triviais servem também como cenários salvadores: “Mas tudo bem, na época ele
não pensavam em It. It era invisível.”105 It indica algo externo, o não-eu, sejam as estranhas
forças animais do desejo e da agressão que parecem viver em nós, ou a terrível realidade de
que nossas forças não são eternas, que terminam num cadáver, em um objeto, o antes-eu
agora virou isso.
Tremi pela primeira vez em pé, num lugar conhecido. E não só pelo fato de meu pai ter
lecionado na faculdade por muitos anos. Na infância eu havia morado no campus, pois meu
pai, além de professor, trabalhava como administrador residente de um dormitório
masculino. O antigo prédio fora demolido, mas eu me lembro dos corredores mofados, dos
odores, do elevador de porta vermelha, da máquina de refrigerante a brilhar no andar de
baixo, com o botão para a Royal Crown Cola. Eu me lembro do zelador gordo e gentil,
Bud, de calça cor de cinza empoeirada, os andares superiores proibidos, onde minha irmã
Liv e eu nos aventuramos umas poucas vezes. Eu me lembro da vista da janela do nosso
apartamento, onde chorei na Páscoa. Naquele dia de chapéus e luvas e vestidos primaveris
leves, esperava-se um convencional dia quente ensolarado, mas o que vi pela janela foi
neve. Eu me lembro quando aprendi a andar de bicicleta no mesmo local, noutra primavera,
e da sensação no momento em que meu pai soltou a bicicleta e eu saí pedalando sozinha,
oscilando um pouco, mas radiante no momento em que percebi estar solta e continuar
andando, sem cair. Eu me lembro do gerador de energia que fui visitar com meu pai e Liv,
de sua fumaça branca, do calor intenso e do ruído do maquinário, num espaço apertado
perto dos fundos de um prédio onde um homem fazia sorvete e nos deu amostras grátis. Eu
me lembro de deitar na grade na parte externa da biblioteca e de estudar as embalagens de
doces, pontas de cigarros e outros detritos caídos lá embaixo, e de como bastava eu ficar
olhando aquelas coisas para me entreter. Mudamos da cidade antes de eu começar a terceira
série, mas exceto por alguns fragmentos de meu terceiro e quarto anos de vida, minhas
memórias autobiográficas dos cinco aos nove anos se situavam em grande parte naquele
campus. Lugares têm poder.
O local tão familiar teria libertado a realidade da morte para mim – a presença do indizível?
Afinal, eu morava em Nova York e não via meu pai todos os dias. Em Nova York parecia
normal sua ausência de minha vida. O episódio deflagrou uma noção subliminar de sua
ausência permanente, irrevogável, sem que eu me conscientizasse da mudança dentro de
mim? Os rostos das pessoas que eu conhecia desde menininha despertaram a personalidade
infantil anterior? Os tremores teriam algo a ver com eu ocupar o lugar do meu pai?
Literalmente, num lugar que na minha opinião pertencia a ele? A visão do gramado, na
frente do prédio onde meu pai mantinha sua sala, conhecido como Old Main, gravada na
memória pois eu passei por ali inúmeras vezes, não apenas quando criança, mas também
adolescente e jovem, quando entrei na universidade? Mas não foi a visão do lugar que
provocou a convulsão; foi o ato de falar. Começou na primeira palavra e acabou com a
última. Haveria conexão com uma lembrança?
Quando S. lia uma longa série de palavras, cada uma delas despertava uma imagem gráfica.
E como a série era muito longa, ele precisava encontrar um jeito de distribuir essas imagens
numa fila ou sequência mental. Com frequência (e este hábito o acompanhou por toda a
vida), ele “distribuía” as palavras ao longo de uma rua ou estrada que visualizava
mentalmente. Por vezes era uma rua de sua cidade natal, que também incluía o quintal atrás
da casa onde residira na infância, e do qual se recordava vividamente. De todo modo, ele
também podia escolher uma rua de Moscou. Frequentemente, realizava uma caminhada
mental pela rua – a Gorky, de Moscou – começando pela praça Maiacóvski e seguindo
lentamente pela rua, “distribuindo” as imagens em casas, portões e vitrines de lojas. Em
alguns momentos, sem entender como isso ocorria, ele se via de volta à cidade natal
(Torzhok), onde encerrava a jornada, na casa onde vivera na infância. O cenário que
escolhia para seus “passeios mentais” se aproximava ao dos sonhos, com a diferença de que
o cenário de suas caminhadas desaparecia imediatamente quando distraía a atenção, mas
regressava subitamente quando era obrigado a lembrar a série de palavras que “gravara”
por este método.107
Luria não menciona os sistemas clássicos, nem S. leu Cícero. As lembranças vinham
naturalmente, sendo produtos de suas sinestesias, que mistura sentidos – o sabor da cores,
por exemplo, ou a imagem do som. O grande físico Richard Feynman enxergava equações
coloridas: “Quando olho para equações, vejo letras coloridas – não sei por que [...] jotas de
cor creme, us violetas e xis marrons escuros revoando.”108
Na primeira estrofe do poema “Vogais”, Rimbaud evoca com perfeição este forma de
sinestesia:
A memória prodigiosa de S. resultava de sua percepção visual interna vívida. O sujeito via
tudo. “Até os números evocam imagens”, explicou. “Pegue o número 1. Eis um homem
altivo, orgulhoso, grande; 2 é uma mulher com senso de humor; 3, uma pessoa sombria
(não sei por que); 6, um homem de pé inchado.”110 A enorme capacidade de memória de S.,
porém, foi por muitos anos um empecilho para a compreensão do mundo que o cercava.
Sentia dificuldade para ler histórias e poemas, pois cada palavra evocava uma complexa
imagem visual. Chegava ao final da sentença confuso com as imagens múltiplas, detalhadas
e concorrentes que se acumulavam em sua mente. Uma lista de números ou palavras
desvinculadas servia melhor para mostrar seus dons, uma vez que cada elemento podia
existir isolado dos demais. O transformar cada signo numa imagem visual concreta, ele se
incapacitava para captar seu sentido abstrato, e portanto faltava-lhe a capacidade de
distinguir o importante do irrelevante. A hierarquia semântica se diluía numa democracia
visual. S. faz lembrar o herói de Jorge Luis Borges, em “Funes, o memorioso”:
Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de ideias gerais, platônicas. Não apenas lhe
custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de
diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de
perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quinze (visto de frente). Sua própria face
no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez.
Quase no final do conto o narrador comenta sobre o herói: “Suspeito, contudo, que não era
muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.”111 Ao contrário
de Funes, cuja memória visual era perfeita, S. sentia dificuldade para memorizar os rostos
das pessoas (prosopagnosia) ou para registrar as emoções faciais alheias, hoje uma moléstia
associada tanto ao autismo quanto a lesões que afetar uma parte específica do cérebro, vital
para o reconhecimento facial, o giro fusiforme. Sua extraordinária habilidade, bem como as
deficiências, levariam, além da designação descritiva de “sinestésico”, ao diagnóstico de
síndrome de Asperger.
Talvez não surpreenda que S. tenha um duplo, uma terceira pessoa, “ele”, que acompanhou
o mnemônico a vida inteira. Ele projetava sua persona na paisagem. Quando criança, S.
costumava deitar na cama e observar seu duplo se vestir e ir para a escola no lugar dele.
Quando S. tinha oito anos, a família se mudou para um novo apartamento. Eis sua descrição
do episódio. Notem que ele usa o tempo presente. Ao recordar o evento, ele o vê
novamente:
Não quero ir. Meu irmão me pega pela mão e me leva para o táxi que espera lá fora. Vejo o
motorista mordiscando uma cenoura. Mas eu não quero ir [...] Fico para trás, em casa –
quer dizer, vejo como “ele” está à janela de meu antigo quarto. Ele não vai a lugar
nenhum.112
Luria identifica nisso uma “fratura entre o ‘eu’ que emite ordens e o ‘ele’ que as executa
(que é o ‘eu’ na visualização de S.)” Mas o “ele” é também o desobediente, que fica no
antigo e querido quarto enquanto arrastam o “eu” para longe. “Ele” realiza os desejos do
“eu”. “Ele” assemelha-se a uma figura sonhada, à qual falta a inibição do S. desperto.
Mesmo na idade adulta, S. explicava que não dava para garantir que seu duplo se
comportaria direito:
Ou seja, nunca diria nada assim [um comentário mal educado sobre a qualidade do cigarro
do anfitrião], mas “ele” era bem capaz. Não tinha o menor tato, e eu não conseguia explicar
isso para ele. Pois “eu” entendia as coisas, mas “ele”, não. Se me distraio, “ele” fala coisas
que não deveria.”113
Neste caso, “ele” representa o papel do perverso, o duplo papel familiar dos personagens da
literatura e da neurologia clínica, embora todos nós talvez tenhamos duplos latentes ou
potenciais, imagens refletidas agindo de um modo que o “eu” quer reprimir. Criancinhas
com amigos imaginários que levam a culpa por erros e travessuras, ou que precisam sem
consultados antes de a criança obedecer aos pais não constituem raridade. E, como S., as
crianças pensam de maneira mais concreta do que um adulto normal. Eu me lembro da
confusão que senti quando, na véspera do Ano Novo, meus pai puseram minha irmã e eu na
cama, dizendo: “Até o ano que vem!” Que um ano inteiro pudesse passar antes de
amanhecer desafiava minha compreensão. Tanto Renee quanto minha aluna Linnie eram
bem mais concretas em seu pensamento do que a maioria das pessoas de sua idade, e como
S., migravam para uma realidade em terceira pessoa – o eu como “ele” ou “ela”: “Se eu
tivesse o amor de meu pai, então seria a verdadeira Linnie.” Uma jovem paciente minha do
curso de redação, B., também trocava o “eu” pela terceira pessoa na história dos cadernos
trocados e pais violentos. O “eu” e o “ela” em forma de narrativa são formas de autoscopia?
Como os gêmeos de Luria, Renee, Linnie e talvez B., também, parecem presos a uma fase
anterior, um mundo menos verbal e mais visual. Não seria razoável especular que eles
nunca chegaram a ganhar aquilo que os pacientes neurológicos perderam?
Luria compreendeu que a rica vida interior de S. comprometia o limite que o senso comum
traçava entre fantasia e realidade. Sua vida mental, de tão atribulada, fazia com que ele se
perdesse dentro dela. E S. não somente lembrava, ele imaginava. O número 1 ereto e o
tristonho 3 (este parece abatido, um sujeito de cabeça baixa), fizeram com que eu revisse
minhas próprias personificações infantis de quase tudo que meu campo visual abrangia:
cereais matinais, galhos, pedras, sapatos. E faz muito tempo que acredito serem a memória
e a imaginação dois aspectos do mesmo processo. Os neurocientistas hoje sabem que, ao
recuperarmos uma lembrança não encontramos a cena original, e sim aquela invocada na
última vez em que recordamos do fato, que o trouxemos à consciência. Neste processo, a
memória muda. As lembranças não são apenas guardadas, consolidadas, mas relocadas,
reconsolidadas. Vejam a minha transferência inconsciente de uma lembrança de uma casa
para outra. Não foi o sentido visual e espacial que percebeu o engano – o cenário da
humilhação continua sendo a segunda sala de jantar. Não possuo outro lugar conveniente
onde guardá-la. Meu recurso à “verdade” do caso foi racional. Admiti a impossibilidade
lógica de que a cena registrada em minha mente tivesse ocorrido onde eu a via.
Um amigo me contou uma história sobre sua esposa. Judia que frequentou um colégio
católico, ela se viu diante de um impasse no momento da formatura. Depois de receber o
diploma, era praxe que todas as moças beijassem o anel do padre que entregava o
documento. J. resolveu evitar o beijo ritual, por questão de princípio, e mais tarde contou a
história de seu pequeno ato rebelde, mas significativo, aos amigos e à família, com certo
orgulho. Anos depois ela viu o filme da cerimônia de formatura e se surpreendeu ao se
observar na tela, mais jovem, subindo ao palco para receber o canudo e se abaixar para
beijar o anel do padre. O erro de J não foi consciente nem maldoso. Na verdade, ela
reimaginou no inconsciente o momento, que serviu a um importante objetivo restaurador
para sua auto-imagem. A certa altura de sua história a memória foi reconsolidada. Sem
dúvida seu desejo que o desfecho fosse o oposto exato do ocorrido desempenhou um papel
importante na transformação – um processo psicobiológico, no qual o real foi substituído
pelo imaginário: uma tela, ou melhor, um duplo, um “ela” atuando conforme a vontade de
J. O fenômeno chamado de memória do observador pelos cientistas, quando a pessoa
relembra o passado não como primeira pessoa encarnada, e sim como um outro, na terceira
pessoa, pode ser uma forma similar desta divisão, da criação de uma duplo imaginário
refletido que atua no estágio da memória. Eu me pergunto muitas vezes o quanto os
produtos de minhas reminiscências são distorções ou resultado de uma imaginação tão
vívida que eles se tornaram verdadeiros para mim.
Cem anos antes de os neurocientistas compreenderem a reconsolidação, Freud escreveu que
o presente colore o passado, que as lembranças nem sempre são o que parecem, e portanto
não podem ser consideradas factuais. Certas memórias servem de cortina de fumaça para
outras. E, mais crucial, as pessoas revisam as memórias depois de algum tempo. Ele achou
isso de Nachträglichkeit, palavra de difícil tradução. Para o inglês, James Strachey, tradutor
de Freud, cunhou a expressão “deferred action” [ação diferida ou a posteriori], mas que na
verdade significa algo como afterlyness [“posterioridade”].114 Uma lembrança antiga
assume novos significados e muda conforme a pessoa amadurece. O hipocampo é a parte
vital do cérebro para a memória episódica, e se relaciona com aspectos da memória
espacial.115 Ele se desenvolve após o nascimento, explicando neurologicamente a amnésia
infantil, os obscuros primeiros anos que se perderam. Guardamos lembranças implícitas de
nossos anos iniciais, mas não as explícitas, e parece mais do que provável que uma
experiência, para ser recuperada pela memória consciente, tenha sido um dia consciente. As
pessoas que alegam recordar o nascimento ou experiências marcantes ocorridas nos dois
primeiros anos de vida tratam de fantasias. Minha curiosidade sobre o papel que a
linguagem desempenham na construção das lembranças conscientes me levou a indagar às
pessoas o que se lembram da infância. Os resultados desta pesquisa sem pretensões
científicas foram que todos os que declararam ter começado a falar muito cedo, sem
exceção, apresentaram as recordações explícitas mais antigas. Isso vale para minha própria
família. Minha irmã Asti, que emitia sentenças em linguagem fluente antes dos dois anos,
se lembra mais do seu terceiro ano de vida que as três irmãs dela.
Hoje existe um consenso de que a memória é tanto mutável quanto criativa. Um estudo de
pessoas com lesões no hipocampo mostrou que o dano prejudicou não só suas lembranças,
como também sua imaginação. Os pesquisadores pediram aos participantes da pesquisa que
imaginassem lugares e eventos fictícios. Quando eles criavam uma nova experiência – ir à
praia ou passear num museu – a descrição dos pacientes com danos cerebrais era fraca,
pobre em comparação às cenas produzidas pelo grupo de controle “normal”.116 Contudo,
mesmo entre as pessoas ditas normais vigora um amplo espectro de diferenças
imaginativas.
Quando leio um romance vejo e mais tarde lembro das imagens que inventei para o livro.
Algumas cenas foram emprestadas de lugares marcantes de minha vida. Outros, desconfio,
de filmes, ilustrações de livros e quadros que vi. Preciso colocar os personagens em algum
lugar. Muitas pessoas com quem conversei confirmaram que também veem livros. Certa
vez, porém, conheci um homem que participou de uma mesa-redonda comigo, poeta e
tradutor, que jurava não inventar imagens quando lia. Discutíamos Proust. “Bem”,
perguntei-lhe, “se você não vê o quarto de Marcel e a mãe dele e todas as pessoas da
história, o que acontece?” Ele respondeu: “Vejo as palavras.” Aquilo me assombrou.
Parecia um modo muito triste de ler, mas como saber? Talvez a mente dele não convertesse
símbolos em imagens, e por que ele sentiria falta de algo que jamais experimentou?
Quando escrevo ficção, vejo meus personagens andando, falando e agindo, sempre os situo
em ambientes reais: salas, casas, prédios e ruas que conheço e recordo bem. Normalmente
sou um dos personagens, não como eu mesma, e sim como outro eu, outra personalidade,
homem ou mulher, projetada no mundo mental que habito ao escrever. Em geral, não me
preocupo em descrever interiores e exteriores familiares em detalhe, mas preciso deles para
realizar a tarefa. Meus eventos ficcionais precisam do mesmo chão exigido pelas
experiências das quais me recordo. Preciso de loci. Não assumo que todos os romancistas
trabalhem assim. De todo modo, para muita gente, ler é uma forma comum de sinestesia.
Transformamos signos abstratos em cenas visuais.
Um jovem e talentoso romancista mexicano, M., contou-me que ao redigir seu primeiro
romance ele entendeu que estava fazendo uma casa, cômodo por cômodo, e que ao terminar
de escrever a casa estava pronta. Para ele, o ato de escrever possuía coordenadas visuais
precisas. “Tive uma ideia”, escreveu-me por e-mail, “de que o romance é como uma casa
branca, engraçada, que contém uma segunda casa, escura e sinistra. No centro da segunda
casa há um jardim, e no jardim cães ferozes e o jardineiro que aguarda a chegada do leitor
para lhe contar uma história.” M. pede a outros romancistas que desenhem um diagrama ou
mapa de seus romances, no estilo dos pequenos mapas narrativos que Laurence Sterne
incluiu em Tristram Shandy. Quando ele me pediu para fazer isso, hesitei, mas logo a forma
visual surgiu em minha mente e logo terminei o esboço.
A faculdade da memória não pode ser separada da imaginação. Elas andam de mãos dadas.
Em graus variados, todos nós inventamos nosso passado pessoal. E, para a maioria de nós,
esses passados se formam a partir de lembranças emocionalmente carregadas. Afetos
conferem significado ou valor às experiências, como querem alguns filósofos. Esquecemos
do que não nos importa. Na verdade, a amnésia é uma bênção em muitos casos. S.
enfrentava impedimentos terríveis para expulsar as visões de sua mente congestionada. Ele
guardava coisas demais. A lembrança do percurso pelo assoalho para consolar minha prima
entrou em minha autobiografia por causa da emoção, no caso a indignidade contra a
importantíssima “pequena personagem”, eu. Aristóteles dividia todas as memórias em
semelhança ou imagem visual mental, simulacrum, e sua carga emocional, intentio. O
antigo filósofo compreendeu que não existe memória sem um efeito adjacente. Mas quando
eu procuro lembranças associadas a falar em público, não as encontro. Tenho medo de algo
totalmente escondido de mim?
S., estudado por Luria, transformava todas as experiências em visualizações. Eu, pelo jeito,
as traduzo em sentimentos e sensações corporais. Há muitos anos recebi uma carta de um
membro de uma organização internacional de sinestesia. Ela havia lido meus livros e se
convenceu de que eu tinha o dom. Meu conhecimento do fenômeno era superficial na
época, e respondi dizendo que números e letras não apresentavam cores para mim,
encerrando o assunto. O que ela não disse foi que havia uma coisa chamada sinestesia
reflexiva, quando alguém sente o toque ou mesmo a dor alheia só de olhar para a outra
pessoa.120 De todo modo, esta forma de sinestesia só foi descrita e definida em 2005.
Quando eu era criança, minha mãe costumava me dizer que eu era “sensível demais para
este mundo”. Ela não falava por mal, mas considerei por muitos anos que minha
hipersensibilidade era uma falha de caráter. Desde que me lembro, sinto os toques, batidas
e choques, bem como o estado de espírito de outras pessoas, quase como se acontecessem
comigo. Consigo distinguir entre um toque real e o que sinto quando vejo alguém ser
tocado, mas a sensação existe, mesmo assim. Sinto como se fosse minha a dor de alguém
que torce o tornozelo. Observar a mãe que acaricia a filha me dá o prazer físico que eu
sentiria ao fazer o mesmo gesto. Se alguém se machuca num filme, fecho os olhos ou saio
da sala. Quando menina, passei metade de um episódio de Lassie no banheiro. Filmes
violentos ou de terror são intoleráveis, pois sinto a tortura das vítimas. Olhar, ou só pensar
num cubo de gelo me dá arrepios. Minha empatia é extrema e, para ser franca, por vezes
sinto com exagero e preciso me proteger da superexposição a estímulos que me tornariam
um pilar de carne dolorida. Tudo isso, ao que se sabe, caracteriza quem sofre de sinestesia
reflexiva.
Também reajo com intensidade a cores e luzes. Por exemplo, durante uma viagem à
Islândia eu viajava num ônibus, olhando pela janela a paisagem desprovida de árvores
quando passamos por um lago de cor inusitada. Sua água era azul-esverdeada, clara,
glacial. A cor me agitou como se fosse um choque. Percorreu meu corpo inteiro, e me vi
resistindo a ela, fechando os olhos, agitando as mãos num esforço para expelir aquele matiz
insuportável do corpo. Minha companheira de viagem, sentada a meu lado, perguntou qual
era o problema. “Não suporto aquela cor”, expliquei. “Ela me fere.” Sua surpresa foi
compreensível. Em sua maioria, as pessoas não sentem incômodo com cores. Diversos
tipos de luz geram emoções distintas em mim: o sol fraco da tarde entrando através da
janela, o brilho irritante das luzes da rua, a crueldade das lâmpadas fluorescentes. Luria cita
S., que disse: “Quando ando de bonde sinto seu clangor nos dentes.”121 Os ruídos afetam
meus dentes. Um som os abala, ou os aquece, ou zumbe através das gengivas. Talvez isso
seja comum. Não sei. Se olho muitos quadros (adoro pintura), sinto náuseas e vertigens.
Esta afecção recebeu um nome: síndrome de Stendhal. No meu caso, pelo menos,
relaciona-se com enxaquecas e pode evoluir até se tornar uma dor de cabeça lancinante.
Chama a atenção que esta condição – ou melhor, estado de ser – só tenha sido identificada
recentemente. A resposta, em parte, está nos neurônios espelhos. Uma teoria afirma que em
pessoas como eu eles são hiperativos. Sem a descoberta de Gallese, Rizzolatti e seus
colegas, bem como pesquisas posteriores, minha versão de sinestesia provavelmente
continuaria sem classificação no mundo da ciência física, seria um estado psicológico sem
concomitante orgânico. Os neurobiologistas a tratariam com ceticismo (como em relação a
todas as formas de sinestesia, até perceberem que ela podia ser entendida como
consequência de processos genéticos e neurais), ou simplesmente a ignorariam, como
problema fora de sua área. Sem uma hipótese biologicamente plausível, impossível realizar
uma pesquisa. O declínio do behaviorismo na psicologia sem dúvida desempenhou um
papel, no caso. De repente os estados subjetivos, ao menos em determinados círculos,
tornou-se um tema de estudo razoável. Filósofos analíticos anglo-americanos, no Journal of
Consciousness Studies, realizam um debate interminável sobre o problema da qualia – a
experiência pessoal fenomenológica do mundo em cada um, que não pode (segundo
alguns), ser reduzida a uma descrição de circuitos neurais ativados, ou “processamento de
informação”. Cientistas de diversos campos divergem da formulação reducionista de que
somos “uma vasta rede de células nervosas.”
Muita gente sentiu alívio ao descobrir que um traço da personalidade que sempre as
acompanhou tinha nome, pertencia a uma categoria científica legítima e se enquadrava na
taxonomia geral das doenças e síndromes. Em Blue cats and Chartreuse kittens [Gatos
azuis e gatinhos de Chartreuse], Patricia Lynne Duffy descreve seu contentamento quando,
em 1975, leu um artigo em Psychology Today que descrevia sua sinestesia com as cores.
“Li de olhos arregalados, surpresa ao descobrir que minhas ‘visões’ anormais faziam parte
de um padrão de percepção documentado, com história e lugar na literatura científica.”122 A
sinestesia reflexiva é um fenômeno descoberto recentemente, considerado raro. Tenho a
impressão de que agora, oficialmente diagnosticado, haverá hordas de pacientes que sairão
das sombras, em número muito maior do que o esperado pelos pesquisadores. Afinal de
contas, o cerne desta condição é a empatia, e nos seres humanos a empatia existe num
espectro que vai da participação radical nos sentimentos alheios à completa indiferença.
Autistas têm imensa dificuldade para imaginar a mente dos outros. Psicopatas, por sua vez,
conseguem ler mentes de modo brilhante, para manipulá-las, pois como se sabe, falta a eles
empatia, o vínculo com seus semelhantes. Também pessoas que sofreram danos nos lobos
frontais do cérebro se tornam estranhamente frias, sua personalidade muda muito, como
ilustra o famoso caso neurológico do ferroviário Phineas Gage, que sobreviveu a um
ferimento grave. Depois de ter os lobos frontais varados por uma barra de ferro, ele
apresentou uma recuperação milagrosa. Sua personalidade, entretanto, mudou. Gage,
pessoa gentil e responsável, tornou-se incapaz de planejar a vida. Tornou-se inconstante,
indiferente aos outros. A culpa e a empatia se perderam com a parte do cérebro destruída no
acidente.
MEU DIA: O parágrafo acima foi a última coisa que escrevi, depois de algumas horas de
trabalho numa manhã de terça-feira, antes de correr para almoçar ao meio-dia com um
grande amigo, psiquiatra e psicanalista. Entre outras coisas, conversamos sobre encontrar
um analista para mim. Decidi tentar, e G. disse que poderia recomendar um colega. Senti
alívio quando ele falou isso. Depois do almoço dei duas aulas de redação no hospital, como
de costume. Na primeira turma, para pacientes adolescentes, havia uma única aluna, de
dezesseis anos, recatada, sensível, que gostava muito de escrever. Eu a chamarei de D.
Embora sempre peça aos estudantes adultos que comentem um texto, em geral um poema,
descobri que os jovens reagem melhor a uma única palavra, um termo emocionalmente
forte. Escolhi medo. D. escreveu sobre seu medo de escadas rolantes, que ela havia
conseguido superar. Escrevi a respeito do temor de andar de automóvel, que começava a
diminuir, lentamente. Em seguida, indaguei se ela gostaria de tratar de uma outra emoção, e
ela respondeu: “Tristeza.” Na redação, ela escreveu que se cortava. Quando se sentia triste,
solitária, muito pressionada na escola, ou quando se esforçava, mas ia mal numa prova, ela
se cortava. A tristeza e os cortes formavam um par. Na turma dos adultos, lemos e
comentamos poemas de Theodore Roethke. Depois passeei um pouco pela cidade, até a
hora de participar de um evento da PEN, em Cooper Union, para defender a causa
democrática dos monges em Burma. Tomei o propranolol e li em voz alta um texto curto,
escrito por Zargana, comediante burmês muito famoso, descrevendo o brutal interrogatório
feito pelas autoridades, quando foi detido pela primeira vez, em 1988. Ele hoje está preso
novamente, por denunciar o governo militar depois da devastadora tempestade Nargis.
(Não tremi.)
Meu sonho, naquela noite: Percorri corredores e salas até chegar a um laboratório
desconhecido, um local desolador. Havia um médico de jaleco branco lá dentro. Ele me diz
que sofro de câncer. O número 3 entra de algum modo no diagnóstico dele. O câncer é
inoperável. Estou morrendo. Não há nada que se possa fazer, ele diz. Saio do consultório, e
só então tomo consciência dos tumores sob a pele, na garganta, em volta do pescoço,
protuberâncias inchadas que se mexem sob meus dedos quando as toco, confirmando meu
estado terminal. De repente estou no banco traseiro de um carro, atrás de um monge budista
de túnica cor de açafrão. Bem, digo a mim mesma, sempre soube que o livro que estou
escrevendo não podia ser muito longo, mas agora terei de cortá-lo, terminar antes do que eu
esperava, pois estou morrendo. Será meu derradeiro livro. Isso me entristece terrivelmente
– não provoca desespero, como ocorreria na vigília, e sim uma tristeza profunda,
inenarrável. Então acordei.
Como ocorre com muitos sonhos, aquele transformou meu dia numa parábola curta, densa,
curiosa. Antes mesmo de sair da cama entendi que os sonhos sobre tumores se referiam ao
tumor maligno que os médicos removeram da coxa de meu pai, deixando sua perna rígida e
inútil, a perna que eu senti com tanta intensidade durante os minutos de completa
identificação com meu pai, quando estava deitada na minha cama de criança. A visão dos
tumores saindo do pescoço me fez lembrar do paciente esquizofrênico de Hitomi, que
desenhou as gravatas do terapeuta até passar o foco para o rosto, primeiro do médico,
depois dele mesmo. O sonho acompanhou minha jornada no hospital, o dia em que vejo
psiquiatras de jaleco branco entrando e saindo das enfermarias. Naquela terça-feira em
particular, no almoço em que G. sugeriu um terapeuta par mim, e poucas horas antes disso,
eu havia escrito sobre a importância dos rostos para reconhecer e identificar outras pessoas.
Mas o pescoço é onde começa a mulher trêmula. Um pescoço doente serve como imagem
sonhada perfeita de meu sintoma: Do queixo para cima, eu era a pessoa de sempre. Do
pescoço para baixo, uma trêmula estranha.
Não é o pescoço o local onde a cabeça termina e o corpo começa? E o enigma corpo/mente,
por mais ambíguo que seja, não é o tema deste livro, o mesmo livro que estou escrevendo
agora e que escrevia no sonho, e que precisava ser terminado logo? As memórias de meu
pai foram seu último livro. O número 3 paira sobre o diagnóstico, como um dígito maldito –
o que remete ao paciente S., de Luria, que também aparece neste texto, o sr. Sinestesia, o
homem que tinha a memória visual incomparável, uma pessoa cuja inicial do nome é a
mesma do meu primeiro nome. O carro é um veículo do medo. Eu havia escrito a respeito
de carros durante o dia, no hospital. Mais tarde, naquele dia, sentei atrás de um monge
budista que fora um dos líderes das manifestações de maio de 2008 contra o governo de
Burma, e uma figura parecida com a dele ocupava o banco da frente do automóvel, no
sonho. Ao lado do restante dos presentes em Cooper Union, eu havia assistido um filme
onde os manifestantes fogem dos tiros e pessoas feridas sangram nas ruas de Rangoon. Eu
havia lido o trecho destinado a mim. Perto do final, Zargana escreveu: “E, contudo, não há
nada que possamos fazer...” No sonho, o médico disse: “Não há nada que se possa fazer.”
A tristeza do meu sonho remetia à tristeza de D., aos cortes que ela fazia e à minha
necessidade de cortar o livro – um signo provável do corte da comunicação com meu pai,
dos últimos livros, e também da voz, da minha voz numa garganta inchada, doente, e da
voz de meu pai, agora silenciosa, dos meus discursos e do esforço para falar apesar da
tremedeira, que é o meu sintoma, minha perna deficiente, transformada no sonho em
doença terminal, como a de meu pai, que não era na perna e sim nos pulmões, na
respiração, e que cortou sua voz, um silêncio trêmulo, mudo.128 Quando falei com ele pela
última vez, pelo telefone, ele não conseguia mais falar. Identificação como ferida psíquica.
E, finalmente, o sonho retornou para um dos poemas de Theodore Roethke que eu havia
lido com os pacientes adultos em Payne Whitney. Intitulado “Silêncio”, termina com os
versos:
Se um dia procurar consolo
Da monotonia do desgosto,
Nervos tensos que chegam à goela
Não soltarão uma nota trêmula:
Quem leva minha mente à desdita
Jamais chegará a ser ouvida.129
Em A interpretação dos sonhos, Freud diz: “Já tive a ocasião de assinalar que, de fato,
nunca é possível ter certeza de que um sonho foi completamente interpretado. Mesmo que a
solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta sempre a possibilidade de que o sonho tenha
ainda outro sentido.”130 O significado é algo que encontramos e elaboramos. Nunca se
completa. Restam sempre lacunas. Os cientistas não chegaram a um consenso sobre a razão
para dormirmos, nem o motivo dos sonhos. Ninguém tem certeza absoluta. Os estudiosos
do sono concordam com o que Freud chamou de Tagereste, traduzido como “resíduos do
dia”, que surgem em nossos sonhos. Muitos, mas não todos, aceitam que os sonhos
costumam ser mais emotivos do que a vida em vigília. Sabe-se que as partes executivas do
cérebro que inibem nossas ações quando estamos acordados (o córtex pré-frontal dorso-
lateral) estão em larga medida inativas quando dormimos e sonhamos. Vários cientistas há
muito supõem que o sono ajuda a solidificar lembranças, mas outros discordam. Não há
consenso sobre o significado dos sonhos. Os cientistas não se entendem a respeito das
partes exatas do encéfalo que ficam ativas ou inativas; os que acham que estão ativas, com
frequência interpretam a atividade de maneiras diferentes. Em oposição à antiga ortodoxia,
hoje sabemos que existem sonhos REM e sonhos não REM. A associação que se fazia entre
o movimento rápido dos olhos (REM) e o sonho não mais se sustenta. Diversos
pesquisadores afirmam que os sonhos são uma espécie de descarga caótica, um caminhão
de lixo noturno compactador que não envolve funções de alta ordem, pois os sonhos, por
sua própria natureza, não conseguem reter ou revelar ideias complexas. Entre os
pesquisadores mais proeminentes encontra-se Allan Hobson, um vigoroso anti-freudiano,
que propôs a teoria de ativação-síntese para os sonhos. Esta teoria sustenta que o segmento
pontino do tronco cerebral, parte do antigo cérebro, em termos evolutivos, é crítico para o
sonho. Segundo Hobson e seu colega Robert McCarley, os sonhos “não possuem conteúdo
primário conceitual, volitivo ou emocional.”131 Hobson insistiu ainda que as tramas dos
sonhos não apresentam ordem coerente e não envolvem reflexão consciente. Em um
experimento ele coletou relatos de sonhos, dividiu-os em partes e pediu às pessoas que os
remontassem na ordem correta, algo que se mostrou muito difícil de fazer.132
Entretanto, usando meu sonho como exemplo, tenho de perguntar: O diagnóstico de câncer
do doutor precisava preceder minha reflexão sobre o mesmo diagnóstico, no carro? Não
seria esta uma forma de lógica narrativa? Minha mente, ao sonhar, não fabricou uma
narrativa de meu encontro com notícias fatais, seguido pela tristeza por conta delas?
Embora eu não soubesse que estava sonhando, minha mente ao sonhar não tinha uma
espécie de reflexão consciente? Esta mente sonhante não meditou sobre os últimos livros e
o final da vida? E o sonho não continha ideias e conteúdo emocional primário
condensados? Seria eu uma sonhadora singular, alguém sem precedentes na história
mundial? Duvido muito. Trata-se de um caso em que a teoria vigente deixa de lado os casos
que se opõem a ela.
Num artigo sobre o tema, de Antti Revonsuo remete a Freud no título “The reinterpretation
of dreams: An evolutionary hypothesis of the function of dreaming”. Ao contrário de
alguns pesquisadores, Revonsuo cita as “evidências avassaladoras” de que o conteúdo dos
sonhos reflete “problemas emocionais da pessoa que sonha.”133 Meu sonho pode ser um
exemplo importante desta verdade. Para elaborar a argumentação evolutiva de que o sonho
é uma função antiga do cérebro, que nossos sonhos conflitantes são uma espécie de campo
de treinamento da mente, para nos preparar para enfrentarmos ameaças, ele escreveu:
“Portanto a principal razão para não sonharmos sobre escrever, ler ou fazer contas é que
provavelmente eles sejam todos elementos culturais tardios que precisaram ser introduzidos
em nossa arquitetura cognitiva.”134 A crer na hipótese de Revonsuo, sou uma criatura mais
evoluída do que outros seres humanos, pois sonho com escrever e ler o tempo inteiro. Por
mais lisonjeiro que seja me ver num ponto mais alto da escala evolutiva, a noção me parece
discutível. Digitar no computador, ler livros e outros textos, bem como ouvir palavras
significativas, com frequência inegavelmente reveladoras, há muito desempenham um
papel em minha vida sonhada. Seja lá o que for que pensem sobre meus poderes como
intérprete de sonhos, entre outras coisas o sonho sobre câncer serviu como resposta para a
leitura do poema “Silêncio” naquele dia. Até reler o poema, depois do sonho, eu não havia
notado a enorme relevância das palavras para meu caso pessoal: não somente consolo,
desgosto e goela, como trêmula. Sem qualquer percepção da professora totalmente desperta
em sala de aula, outra parte de mim se apropriou da linguagem do poeta e a inseriu no
sonho.
Meus textos e leituras diários costumam se transmutar em linguagem ou lógica do
devaneio, quando durmo. Um amigo meu, R., físico envolvido no momento em pesquisa de
neurociência, sobre percepção, relatou um sonho para mim enquanto almoçávamos. Pedi-
lhe que recontasse a história por e-mail:
Eu havia passado vários dias trabalhando com cálculos complicados que exigiam muitas
páginas de álgebra intricada, com dois valores matemáticos centrais, que desempenhavam
um papel simétrico. Eu os chamei de x e x primo. No geral, o problema me parecia
insolúvel; sempre que sentia chegar perto da solução, os cálculos se revelavam falhos.
Certa noite, sonhei com dois irmãos gêmeos. Insolentes, desagradáveis, agressivos, os dois
vinham de um país distante. Eram atores humanos em meu sonho, mas ao mesmo tempo eu
sabia que eles eram x e x primo. Eu me lembro claramente das impressões durante o sonho,
eles eram os elementos de meus cálculos e manifestavam um antagonismo deliberado em
relação a mim. No início eles se comportaram de modo discreto, depois se tornaram
instáveis. Até onde posso me lembrar, no decorrer do sonho eles foram deixando de se
identificar com x e x primo para ficar mais humanos.
Como pode ver, eu não estava calculando durante o sonho, mas alguns dos elementos
assumiram formas humanas, e embora não pudessem ser manipulados algebricamente,
conservaram o “caráter” que tinham nos cálculos.
Eu já havia acordado diversas vezes (pela manhã, ou no meio da noite) com conclusões
matemáticas claras, como se tivesse feito cálculos detalhados durante o sono. Eu me
levantava para anotar numa folha os resultados, enquanto estavam frescos em minha mente.
Essas questões nos levam de volta ao problema da experiência subjetiva. Os sonhos usam a
linguagem e as imagens da vida desperta, mas seus significados são pessoais. Como muitos
psicanalistas contemporâneos, eu não acredito em símbolos universais nos sonhos, que
escadas significam uma coisa, três e pipas, outra. Sonhos são histórias criadas por e para
quem sonha, e cada um tem seus baús para abrir e nós para desatar. Se eu não tivesse
montado o sonho com os eventos do dia e as emoções preponderantes de minha vida atual,
ele sem dúvida poderia ser considerado absurdo. Excluir a complexa realidade subjetiva das
pesquisas a meu ver é miopia. A atenção intensa à vida diária do sonhador não torna o
relato de um sonho menos desarticulado ou bizarro; ele dá a essas mesmas características
um significado, ao situá-las num contexto mais amplo. De todo modo, não existe leitura
objetiva de um sonho. Mas não seria esta uma condição das interpretações em geral?
Sabemos que nossas experiências pessoais influem em nossa noção de como o mundo
funciona. Se Antti Revonsuo escrevesse ou calculasse regularmente, em seus sonhos,
dificilmente ele teria aceito a ideia de que essas atividades estão ausentes das alucinações
noturnas de todos. É bem possível que a maioria das pessoas não escreva nem some durante
o sono. Os cálculos de meu amigo R. não incluíam lidar com álgebra, mas transformaram
os símbolos em personagens. Eu costumo digitar nos sonhos, e raramente me lembro do
que escrevi. Mesmo assim, constituímos exceções à hipótese de Revonsuo, e as exceções
também precisam encontrar seu lugar no campo teórico dos sonhos humanos. Na verdade, a
personalidade inevitavelmente contamina todas as formas de nossa vida intelectual. Todos
nós extrapolamos a partir de nossas vidas para compreender o mundo. Na arte, considera-se
isso uma vantagem; na ciência, uma contaminação.
Um exemplo dramático da sobreposição entre o pessoal e o intelectual ocorreu durante uma
palestra que assisti. Entre outros tópicos, a conferencista falou a respeito da neurociência e
de seu uso na psicoterapia. Ela também dedicou algum tempo à questão da empatia e do
cérebro. Durante a sessão de perguntas e respostas, um homem no fundo da sala se levantou
e declarou ser um engenheiro que pesquisava questões cerebrais. Depois discorreu um
pouco sobre seus conhecimentos, não me recordo bem do conteúdo, mas ficou patente que
ele não era nenhum idiota. Em seguida, declarou em alto e bom som que empatia não
existia. O próprio conceito era absurdo. Não podia acreditar nele. Na sala lotada por umas
duzentas pessoas, em sua maioria psicoterapeutas e psiquiatras, reinou o silêncio. Mas eu
senti a força da corrente que corria pela plateia, como um murmúrio inaudível, se é que
uma coisa dessas é possível. De modo educado e silencioso um diagnóstico de massa se
processava, e seu nome, confesso, surgiu imediatamente em minha cabeça: Asperger.
Acreditar em estados emocionais que a pessoa não consegue sentir é muito difícil. Não se
confunde com acreditar na Antártida, neurônios ou quarks. Mesmo que alguém não tenha
conhecimento pessoal dessas entidades, mesmo que nunca as tenha visto, acreditam nelas
por fé, fazem parte de nosso conhecimento cultural intersubjetivo. Em contraste, o mundo
dos sentimentos é tão interno, tão inseparável do próprio ser que todas as noções sobre a
normalidade se tornam muito subjetivas. Argumentar que o homem no fundo da sala tinha
uma “condição”, um diagnóstico em voga no momento e que o torna anormal não derruba
meu argumento: costuma ser difícil deslindar a personalidade e os estados de espírito dos
sistemas de crenças, ideias e teorias.
William James, em Pragmatism, distingue entre filósofos de “mente rígida” e de “mente
suave”, alegando que os dois possuem temperamentos antagônicos. “O rígido pensa que o
suave é sentimentalista e frouxo. O suave considera o rígido tosco, insensível ou brutal.”137
Como pluralista, James situa o pragmatismo entre os dois, mas a distinção feita por ele
permanece valiosa. Apesar da imprecisão das categorias, elas nos remetem a uma divisão
existente entre estilos de pensar. (James, conciliador em seu tom, nunca demonstrou
acreditar realmente que o pensamento sem sentimento era perverso.)
Por muito tempo estudei apenas filósofos europeus modernos, ignorando americanos e
ingleses. Quando cheguei ao ponto de ler os filósofos analíticos anglo-americanos, descobri
um novo planeta. Os analíticos, como passei a chamá-los, preferem se apoiar em condições
verdadeiras e fórmulas lógico-matemáticas que explicam a maneira como as coisas são,
como se a corrente imprecisa da vida não passasse de um jogo de verdadeiro e falso, e a
experiência humana não fizesse parte dele. Gostam de experimentos mentais com zumbis
(eles se parecem conosco e agem como nós, mas não possuem consciência). Também
contam e recontam a história de Mary, uma brilhante neurocientista que viver numa caixa
preta e branca, sabendo tudo que se pode conhecer a respeito das cores e do cérebro. Um
dia, ela sai da caixa e vê uma flor vermelha. Estaria realmente vendo algo novo? Esses
jogos não se referem ao mundo concreto, ou a nossas vidas nele. Destinam-se a nos levar a
pensar de modo abstrato num problema filosófico. Sei que seria trapaça dizer eu sinto que
outra pessoa não é um zumbi, quando sento na frente dela numa sala e fito seus olhos, e
também deve ser trapaça imaginar como a privação das cores, durante tantos anos, tenha
modificado tanto o cérebro quanto a personalidade de Mary, a ponto de que ela, ao sair da
caixa, seria difícil saber o que ela veria em termos de cores, e, se tivesse um cérebro como
o meu, ela saberia que teria de evitar um tom específico de turquesa? E o que significa
saber tudo que se pode conhecer? Refere-se ao conhecimento dos livros? Inclui o fato de
que as cores agem na pré-consciência, antes mesmo que possamos dizer o nome da cor que
vemos?138
Esses filósofos são homens e mulheres (mais homens do que mulheres) da Lógica de
Kiesewetter, o compêndio que volta à mente de Ivan Ilitch nos últimos dias de sua vida.
Nem todos eles concordam a respeito da experiência de Mary com o vermelho, ou a
respeito da natureza da consciência. Eles discutem acaloradamente entre si, e as ideias de
alguns me atraem mais do que as de outros. O filósofo Ned Block, por exemplo,
desenvolveu um interesse cada vez maior pelos mistérios das doenças neurológicas ao lidar
com uma teoria biológica da consciência. Ao contrário de Daniel Dennett, que não acredita
em qualia,139 Block leva experiências fenomenais a sério, e não pensa que devam ser
descartadas. Numa entrevista, ele especula que aos filósofos incapazes de “apreciar” a
fenomenologia, como o poeta-tradutor que conheci, falta a capacidade de produzir imagens
visuais, um pensamento que repete o do engenheiro que se recusava a existência da
empatia.140 William James, porém, sem dúvida incluiria todos os analíticos no campo dos
“rígidos”. Não me oponho à razão ou à lógica. É a base do consenso em muitas disciplinas,
essencial para nossas conversas coletivas. Esses escritores me impressionam, suas ideias
são interessantes, mas sinto um arrepio quando leio seus textos.
De vem em quando a frieza se transforma em gelo. Peter Carruthers, filósofo formado em
Oxford, define a consciência como a capacidade de ter crenças de segunda ordem – ou seja,
ser capaz não só de ter a experiência A, como saber que está tendo a experiência A. Como
consequência de seu conceito, se os animais não conseguem fazer isso, eles são
inconscientes.
Similar, portanto, no caso dos animais: uma vez que suas experiências, inclusive a da dor,
são inconscientes, suas dores não nos interessam em termos morais imediatos. Na verdade,
como os estados mentais dos animais são inconscientes, seu sofrimento não merece nem
mesmo um interesse moral indireto.141
6.522 Há, certamente, o inexprimível. Ele se manifesta por si, sendo o místico.
6.53 [...] não dizer nada, a não ser aquilo que pode ser dito.142
A ciência o força a escapar de sua própria consciência, a dar as costas ao mundo vivo e
significativo que sua consciência lhe revelou, e que a ciência tenta substituir por um
universo de objetos congelados, independentes de todos os olhares e pensamentos.143
Beauvoir tem razão, na medida em que boa parte da ciência (bem como da filosofia
analítica) atua a partir de um ponto de vista anônimo, em terceira pessoa, de um mundo
parado, que pode então ser fragmentado em verdades legíveis. Para Francis Crick e uma
filósofa como Patricia Churchland, a mente é feita de neurônios.144 Não há nada a mais,
nem a menos. Quando compreendermos toda a anatomia do cérebro e suas funções, a
história terá sido completamente contada. Há posições com mais nuances. Talvez a mente
surja do cérebro, como alguns argumentam, repetindo La Mettrie em L’Homme Machine.
Ou seria o problema apenas uma questão do nosso ponto de vista? Dentro da minha cabeça
o mundo parece imediato. Olho para as pessoas e coisas em sua enorme variedade. Penso,
rio e choro, mas quando alguém abre meu crânio e espia lá dentro, só vê dois montes de
massa cinzenta e esbranquiçada, ligados. Se eu estiver dormindo, os sonhos não podem ser
vistos. Há quem especule que alguma forma de consciência não se limita aos seres
humanos e animais, mas abrange tudo, até os níveis mais profundos do universo. Cientistas
cognitivos, como Francisco Varela e outros teóricos, se apropriaram de visões budistas e de
diversas práticas místicas para estudar uma realidade abnegada.145 Outros acreditam que
exista uma unicidade pan-psíquica.146 Alguns cientistas – físicos em particular – deixaram o
conceito de substância para trás e mergulharam nas abstrusas regiões da teoria quântica.
Eles não são acusados de congelar objetos ou deixar de lado os papéis de observador e de
observado. Na teoria quântica há estados que podem ser vistos por uma pessoa como vácuo,
enquanto constituem para outra uma mistura de partículas. Não compreendo realmente
como isso funciona, mas aceito a palavra dos físicos. O que se vê depende da perspectiva
de quem vê.
O físico teórico Jan-Markus Schwindt, um idealista tardio, vira Crick pelo avesso: “Não
acredito que a mente exista no mundo físico”, escreveu. “Creio que o mundo físico existe
na mente.”147 Este pensamento é idêntico ao do filósofo George Berkeley, que declarou no
século XVIII que “o coro celeste e as coisas da terra, ou seja, todos os corpos que compõem
a imensa cena do mundo, tão têm qualquer subsistência sem uma mente.”148 E o que é a
mente para Schwindt? “A mente consiste em uma observação consciente e uma unidade
inconsciente de processamento, como num sonho.” Sua proposta para um novo modelo
científico lembra a passagem de Beauvoir. Deveria, segundo ele, “assumir o papel de
sujeito com muito mais seriedade do que na ciência atual, que é uma ciência de objetos.”149
Schwindt não pensa apenas com ajuda das lentes da física, estendendo a reflexão ao campo
filosófico. Embora não mencione Berkeley, cita Schopenhauer e Husserl em seu ensaio. O
fenomenologista Husserl foi essencial a Merleau-Ponty, cujo livro Beauvoir resenhou. Ela,
por sua vez, sofreu influências tanto de Husserl quanto de Merleau-Ponty.
Ideias são infecciosas, e nos definem. Mas de que maneira escolhemos entre elas? Não era
provável que o engenheiro incapaz da empatia considerasse os modelos mecânicos de seu
campo adequados a sua personalidade rígida? Isso, claro, não torna seus modelos
operacionais ineficazes ou falhos; mas por tornar outras perspectivas menos atraentes, e até
incompreensíveis. Alguém como Schwindt se acostumou a pensar grande, ou pequeno,
dependendo de como se julga. A noção de que tudo é mente não o assusta. Ele a considera
agradável. Talvez seja de se esperar isso de alguém que cresceu acostumado a contemplar
funções ondulatórias nos “espaços de Hilbert” ou o ainda mais incompreensível “espaço de
Minkowski.” E Schwindt não está sozinho, de jeito nenhum. Um bom número de seus
colegas físicos acreditam que é a consciência quem produz a realidade física, e não o
contrário. Para pensadores como eles, os epítetos rígido e suave não se aplicam mais.
Imants Baruss, professor de psicologia na universidade de Ontário Ocidental conduziu um
estudo sobre personalidade e crenças, em 2006. Ele e seus colegas geraram um complexo
teste de personalidade, que também lhes permitia traçar o perfil das ideias de cada sujeito a
respeito do caráter da realidade, e depois relacionar os resultados. Eles esperavam encontrar
a clássica divisão entre os que acreditavam num mundo puramente físico, fundado nos
princípios da ciência material, e os que, por crenças religiosas, defendiam o dualismo, um
universo feito tanto de espírito quanto de matéria. O que esperavam era encontrar uma
terceira categoria, a que chamaram de “transcendência extraordinária”. Os membros deste
grupo se mostravam mais propensos a vivenciar experiências místicas ou extracorpóreas,
descartavam a religião convencional e, como Schwindt, acreditavam na suposição de que
tudo é mental. Eles obtiveram notas altas nos testes de inteligência e versatilidade. Não se
sabe até que ponto a pesquisa reflete as posturas da população geral. Mas um detalhe
chamou a minha atenção. Como parte da avaliação do QI, os participantes precisavam
identificar objetos em imagens distorcidas. Deviam remontar mentalmente os fragmentos
apresentados. Baruss comenta: “Os mais capazes de sintetizar mentalmente os fragmentos
visuais e montar uma cena íntegra se mostram mais inclinados a acreditar que a realidade
vai muito além do que nossos olhos apreendem.”150 Eu vou mais longe: talvez as pessoas
que conseguem integrar fragmentos e formar uma imagem unificada sejam aquelas que
consideram a realidade mais do que um mar de objetos materiais congelados, que nos é
dado pronto, e sim um emaranhado de percepções que dependem do observador.
Muitos de nós, talvez com mais frequência na infância, se perguntam como seria ser uma
pessoa diferente, saltar de uma mente a outra. Claro, para comparar mentes eu precisaria
reter a consciência de como é ser eu, em comparação a ser você. Se eu fosse você e eu ao
mesmo tempo, sofreria um choque? Diria: Isso é muito diferente? E seu eu pudesse
experimentar a vida interior do engenheiro citado? E se entrasse na mente do dr. Schwindt e
compreendesse a teoria quântica num instante? E se entrasse na do poeta-tradutor que
conheci num simpósio, faz alguns anos, o homem que lembrava das palavras dos romances,
não das pessoas, e lesse do jeito dele? De que maneira eu apreciaria os romances que mais
gostei?
O máximo que conseguimos nos aproximar do acesso à mente de outra pessoa é pela
leitura. O texto é a arena mental onde diversos estilos de pensamento, rígidos ou suaves, e
as ideias geradas por eles, se tornam mais evidentes. Temos acesso ao narrador interno de
um desconhecido. Ler, afinal de contas, é uma forma de viver dentro das palavras alheias.
A voz de outro se torna meu narrador, durante a leitura. Claro, retenho minha capacidade
crítica, parando para pensar: Sim, ele tem razão quanto a isso. Não, ele esqueceu o
principal, ou Este personagem é estereotipado. Todavia, quanto mais cativante for a voz na
página, mais eu me distancio da minha. Seduzida, entrego-me às palavras da outra pessoa.
Mais ainda, costumo ser atraída por diferentes pontos de vista. Quanto mais estranha,
distante, difícil ou hostil for a voz, contudo, mais eu me vejo dividida, ocupando duas
cabeças ao mesmo tempo. Superar a resistência é um dos prazeres da leitura. Alguns textos
são incrivelmente difíceis de ler, e quando uma luz brilha de repente sobre uma passagem
obscura, decifrar seu sentido (ou sentir que a entendi) gera felicidade.
O preconceito, porém, também desempenha um papel importante na leitura. O conceito
prévio do que um livro é pode cegar a pessoa. Dá para entender por que rótulos como
“clássico”, “ganhador do Nobel” ou “best-seller” influenciam os leitores. Um profissional
de determinada área pode evitar sempre a obra de autores de outra. Um neurocientista me
contou ter mencionado Freud numa palestra, certa vez, e ouviu “críticas pesadas por isso”.
Da mesma forma, alguns psicanalistas se recusam a admitir que a neurobiologia é
importante para sua prática, ou falam sobre ego, id e superego como se fossem órgãos do
corpo, em vez de conceitos que nos permitem imaginar o funcionamento da mente.
Filósofos europeus continentais costumam manter distância dos analíticos do outro lado do
canal da Mancha, e vice-versa. Alimentamos nossas crenças e preconceitos. Em minhas
viagens como escritora deparei-me várias vezes com afirmações do tipo: “Não leio
romances, mas minha mulher lê. Poderia autografar o livro para ela?” A mensagem
subliminar, nada sutil, é que a masculinidade combina com não-ficção, e a feminilidade se
associa a histórias frívolas, “inventadas”. Os homens de verdade gostam de textos
objetivos, e não das divagações subjetivas dos meros autores de ficção, principalmente
mulheres, cuja prosa, qualquer que seja sua característica, está maculada pelo sexo da
autora antes da leitura da primeira palavra. Essa noção absurda não chega a ser universal,
mas nenhum de nós vive livre de preconceitos, predileções, gostos e preferência por uma
metáfora em relação a outra, ou associações de longa data, tão impregnadas que se tornam
inconscientes ou vagamente conscientes. Durante boa parte do século XX, multidões de
cientistas se alarmaram tanto com as noções de “relatos subjetivos” e “introspecção” que a
própria ideia de visualização mental, para não citar a sinestesia, era considerada um
provável tipo de ficção.
Talvez o exemplo mais famoso seja do behaviorista J. B. Watson, que rejeitava
completamente as imagens mentais, alegando que não existiam. Watson defendeu sua
posição num debate público do Clube de Psicologia de Washington, D. C., onde declarou
que “nunca ocorreu uma descoberta na psicologia subjetiva; só encontramos especulações
medievais.”151 No ano anterior à realização deste debate público, Freud publicou O Ego e o
Id, no qual alterou seu modelo mental anterior. Suas três categorias iniciais, consciente,
inconsciente e pré-consciente, elaboradas inicialmente em A interpretação dos sonhos,
foram abandonadas em prol de uma nova abordagem, baseada no modo como cada uma das
novas divisões da mente funcionavam. O conceito de ego (Ich) de Freud não era do
narrador interno, ou da consciência perceptiva desperta, com sua miríade de imagens. Ela
incluía o desenvolvimento corporal de um sentido de si, muito similar ao esquema corporal
– que determina nossa sensação de separação de outras pessoas – bem como processos
inteiramente inconscientes. O id (das es) era o local totalmente inconsciente e atemporal
dos impulsos e desejos primais. O superego (über-Ich) era similar à consciência pessoal que
surge com as identificações iniciais mais importantes – com os pais. Portanto, na época em
que Freud remodelava seu modelo da mente, incluindo uma vasta região inconsciente,
Watson negava que a imaginação visual, uma experiência diária consciente para a maioria
das pessoas, sequer existia.
As ideias crescem, mas costumam crescer em valas fundas e estreitas. Watson era um
defensor radical e controverso do behaviorismo, mas suas ideias provocaram efeitos
profundos na ciência e na filosofia da ciência. Existem no mundo pessoas incapazes de
formar imagens mentais (meu poeta-tradutor e alguns filósofos, creio), mas elas constituem
uma minoria, e alguns são pacientes neurológicos. Minha pergunta é: Se Watson e seus
colegas cientistas vissem romances ou lembrassem de casas e paisagens, ou mesmo de
palavras de um texto que haviam lido, revisando-as mentalmente na página 78, como
poderiam questionar a existência de imagens mentais? Ademais, todo mundo sonha, certo?
E os sonhos, não são imagens visuais mentais? Dogmas deixam as pessoas cegas.
Relato: 23 de junho de 2008. Estou viajando com meu marido e um amigo. Vamos passar
três dias juntos nos Pireneus, e pretendemos fazer uma caminhada pelas montanhas. J.
escolheu uma “moderada” em seu guia, que avalia as atividades para os turistas conforme o
grau de dificuldade. Seguimos de carro até o início do caminho, e subimos a montanha pela
trilha sinuosa, passando de uma pedra a outra. Sinto orgulho de minha força (estou me
exibindo para dois homens que ficaram para trás), mas logo me canso. Sem fôlego, sento
numa pedra e sinto que meu corpo entra em convulsões intensas, que cessam logo. Isso não
é emocional, penso. Não tem nada a ver com a morte de meu pai. Não é um transtorno de
conversão. Não comento nada com meu marido nem com nosso amigo, que de longe não
viram meu ataque. Sigo devagar, na descida da montanha. O episódio me deixou fraca e
insegura. Mais tarde, reli o que havia escrito a respeito em meu diário: “Eu sabia que não
foi psicogênico. A exaustão causou o tremor. Isso me leva a refletir sobre minha teoria
inteira – alguma coisa a mais acontece. Poderia ter relação com minha neuropatia
periférica? Ela poderia se transformar em tremedeira?
Na época dos meus trinta anos adquiri um “corpo elétrico”, para usar a expressão de
Whitman. Minhas pernas e meus braços formigavam. Sentia choques elétricos de vários
tipos, que percorriam os membros e o rosto. Por vários meses, ignorei o fato. Depois
comecei a temer doenças neurológicas debilitantes, como a esclerose múltipla. Procurei
meu médico, que me assegurou que a esclerose múltipla não se manifestava daquela
maneira. Ele chamou meu problema de neuropatia periférica. Suspeito que a culpa pode ter
sido de um medicamento profilático que eu tomava, contra infecções do trato urinário. Meu
médico ficou em dúvida, mas quando consultou o Physicians’ Desk Reference [Manual do
médico], a neuropatia constava entre os possíveis efeitos colaterais. A verdade é que muitas
drogas se relacionam com este sintoma, e portanto a macrodantina poderia estar por trás de
meus nervos elétricos, assim como poderia não estar. Indaguei, no consultório, se quem
sofria de enxaqueca não apresentava mais vulnerabilidade a essas sensações esquisitas do
que as outras pessoas, mas o dr. K. disse que não. Mais tarde, descobri que ele se enganara.
Choques, formigamento e outras sensações peculiares – parestesias – são comuns nos
pacientes crônicos de enxaqueca. Depois da realização de exames para verificar danos aos
nervos, fui informada de que possuía nervos de uma mulher de sessenta anos, e quando
perguntei qual seria o prognóstico ao neurologista, ele declarou, sério: “Pode melhorar;
pode piorar; pode continuar assim.” Dei risada. Ele não viu graça nenhuma. No final, ele
tinha razão em tudo. Melhora por algum tempo; depois piora; e às vezes continua tudo
igual, por várias semanas.
Minha história fantasiada sobre a mulher trêmula se volta sobre si mesma quando, uma por
uma, pessoas vivas substituem meus médicos imaginários. Por recomendação de G., acabei
sentada na frente da dra. C., psiquiatra e psicanalista, em seu consultório na Park Avenue.
Ao contrário de meu analista fantasma, a dra. C. era mulher. Como na minha ficção, ela
possuía um rosto gentil e inteligente. Ouviu com paciência tudo que contei a respeito da
história dos meus tremores. Quando sugeri transtorno de conversão, ela balançou a cabeça
de leve, com um sorriso triste no rosto. Quando mencionei a certa altura convulsões febris
da infância, ela prestou muita atenção. No dia do meu batismo a febre chegou a 41 graus, e
eu sofri convulsões na frente de minha mãe, que ficou desesperada. Não me lembro de
quando ouvi minha mãe contar a história pela primeira vez. Por que a mencionei à dra. C?
Porque eu contava a versão resumida da história da minha vida. Por que não escrevi a
respeito disso aqui? Esqueci. Reprimi. Ela me deu o telefone da dra. L, uma neurologista
conhecida em quem confiava, com reputação de tratar os pacientes com humanidade, e
concordei marcar uma consulta para investigar meus nervos adequadamente.
A dra. L. enviou por fax um questionário de dez páginas sobre minha história. Ela incluiu
uma página para comentários adicionais. Escrevi duas páginas em espaço um, registrando
tremores, enxaquecas, auras, formigamento nos braços e nas pernas – enfim, tudo que pude
pensar relacionado ao meu sistema nervoso. Ao terminar de escrever lembrei-me do meu
quarto na enfermaria neurológica do hospital Mount Sinai. Posso ver os telhados sujos dos
prédios pela janela, a mesinha bege que servia de bandeja, a televisão pequena, que na
minha recordação é em preto e branco, mas este detalhe dúbio provavelmente revela mais a
respeito de meu estado emocional na época do que a imagem real na tela. Nicholas
Nickleby passa na tevê, mas as pessoas na tela são pequenas e longínquas. Não consigo
focalizá-las, pois parecem embrulhadas em diversas camadas de gaze. A densidade da
torazina. O mundo se torna remoto, percebo que preciso percorrer uma longa distância para
recuperar sua proximidade, sua vivacidade, sua cor. De repente eu me pergunto se, ao me
levantar do leito hospitalar tantos anos antes, para ir ao banheiro, eu me parecia com os
pacientes mentais pesadamente sedados com quem convivo semanalmente, as pessoas que
arrastam os pés, em vez de andar pelo quarto, com membros rígidos como se fossem
marionetes de madeira. Provavelmente, sim. Foram oito longos dias. Enfermeiras bruscas,
indiferentes. Os internos com seus sorrisos, picadas de agulha e perguntas. Teria sido a
lembrança do hospital que me levou a cancelar a consulta com o especialista em epilepsia?
A doutora é alta, direta, articulada e simpática. Gosto de seus movimentos largos, soltos,
sinto que estou na presença de uma pessoa confiante, confortável com seu corpo. Preparada
para tratar do caso com calma. Dá para notar sua atitude algo intrigada com minha
confissão, que vejo sobre sua mesa, na lateral – com muitos trechos marcados em azul.
Minha impressão é que ela lê com o marcador na mão, que o movimento da mão faz parte
do processo de absorver as informações. Sinto-me estupidamente gratificada com a
impressão de que meu caso não a entedia. Não sou um exemplo típico de nenhuma
enfermidade, ao que parece. Passado um momento, torna-se óbvio que a dra. L, assim como
havia feito a dra. C, descartava o transtorno de conversão. Considera a ideia absurda, sem
dúvida. Ela explica que sou muito velha. Se tivesse quatorze anos ela levaria a possibilidade
em conta, mas aos 53, não é possível. Não creio que isso seja uma verdade absoluta, ao
pensar nos casos que estudei, mas de todo modo meu diagnóstico já fora abalado pela
caminhada nos Pireneus. Além disso, passei a sentir um tremor nos membros, não
constante, mas frequente, como se os grandes espasmos fossem uma versão exagerada das
vibrações internas que me agitavam. Ela também demonstrou interesse pelas convulsões
febris, e declarou que muita gente passa a sofrer de ataques de vários tipos, quando tem
convulsões nos primeiros seis meses de vida.
Tirei a roupa, vesti uma camisola hospitalar e andei de um lado para o outro do consultório,
na frente dela. Fizemos brincadeiras de mão. Toquei o nariz com o indicador. Ela examinou
meus olhos. Nenhum sinal de pressão ou tumor cerebral. Ela toca minhas mãos e a sola dos
pés com um instrumento frio. Sinto tudo. Bom sinal. Ela usam um garfo. Diz que tenho
“artérias boas, grossas”, e fico contente ao ouvir isso. Ela quer saber se já tomei Depakote
para enxaqueca, um medicamento contra ataques. Digo que não. Ela pede dois exames
MRI.
Leio na folha em que ela pediu as imagens de ressonância magnética em garranchos
grandes, inteligíveis:
1. Favor realizar MRI cerebral: Epilepsia Lobo Temporal – sem GADO. Protocolo 345.4
2. MRI da coluna cervical – Nogado/coluna posterior, C-2 – C-5, Dx323.9 / 721.1
Obrigada,
Dra. L. L.
No metrô, a caminho de casa, senti que meu humor, ótimo durante a consulta, sofria uma
queda brusca. As doutoras D. e L. se mostraram muito competentes e gentis, mas eu penso
que descartar a histeria reativou o espectro de uma doença neurológica adicional, uma
possibilidade de eu ter mais do que uma mera enxaqueca. Embora nem o transtorno de
conversão nem a enxaqueca sejam diagnósticos agradáveis, nenhum dos dois mata. Desde
meu ataque em Paris, em 1982, temo que as dores de cabeça conduzam à epilepsia.
Segundo os autores de Behavioral Aspects os Epilepsy [Aspectos comportamentais da
epilepsia], “Enxaqueca e epilepsia são distúrbios encefálicos semelhantes em muitos
aspectos. Ambos são comuns. A epilepsia pode ser, e a enxaqueca é, por definição, um
problema primário, presumidamente genético.”152 Adiante, no mesmo capítulo, eles
afirmam: “Uma pessoa que sofre de um dos distúrbios tem o dobro de chances de sofrer do
outro.”153 Oliver Sacks, no livro Migraine, reflete sobre as distinções e sobreposições
históricas das duas doenças. Embora possa haver uma relação teórica entre elas, “na prática
é fácil distinguir enxaquecas de epilepsias, na vasta maioria dos casos”, afirma. Depois de
listar os traços que tornam um diagnóstico categórico relativamente simples, ele reconhece
uma “região crepuscular” que confunde “a rígida nosologia”. E cita um autor que cunhou o
termo “migralepsia” para um paciente que apresentava os dois conjuntos de sintomas.154 Eu
incluiria o dr. Sacks na categoria dos pensadores suaves de James. Ao contrário de muitos
colegas médicos, ele reconhece não só as viradas e cambalhotas da história médica, como
também as genuínas ambiguidades que surgem quando tentamos dar nomes a fenômenos
avessos à clareza: “Finalmente, o problema deixa de a diferenciação clínica ou fisiológica,
e se torna uma decisão semântica: não podemos dar nome ao que não podemos
individualizar.”155 Limites imprecisos criam enigmas duradouros.
Trata-se de um sentimento que ele [Rolland] gostaria de designar como uma sensação de
‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - ‘oceânico’, por assim dizer.
Esse sentimento, acrescenta, configura um fato puramente subjetivo, e não um artigo de fé;
não traz consigo qualquer garantia de imortalidade pessoal, mas constitui a fonte da energia
religiosa de que se apoderam as diversas Igrejas e sistemas religiosos, é por eles veiculado
para canais específicos e, indubitavelmente, também por eles exaurido. Acredita ele que
uma pessoa, embora rejeite toda crença e toda ilusão, pode corretamente chamar-se a si
mesma de religiosa com fundamento apenas nesse sentimento oceânico.159
Freud especula se o sentimento oceânico seria uma lembrança implícita do início da vida,
quando nossos egos ainda não estavam inteiramente separados do mundo que nos rodeia.
Sua ideia combina com a dos pesquisadores que encontraram conexões entre o sentimento
religioso e o vínculo mãe e filho. Este período esquecido, segundo Freud, persiste na
sensação de união com o mundo. A infância é irrecuperável. Suas memórias vivem ocultas.
Em que medida retornam de modo imperceptível, ou são disparadas por vários
catalisadores, continuam sendo questões em aberto. Mas o que Freud compreendeu em sua
conversa com Rolland foi que “oceânico” não significa necessariamente um conjunto de
crenças religiosas.
A tarefa do diagnóstico é separar a “doença” da “pessoa”. Sarampo é uma coisa. Vem e vai.
As manchas passam de uma pessoa para outra. É provocado por um único agente
patogênico. Mas, e quando a doença se personaliza? Em 1975, Norman Geschwind e seu
colega médico Stephen Waxman, publicaram um estudo sobre as características
compartilhadas que notaram entre pacientes com epilepsia do lobo temporal entre os
ataques (chamado de período interictal): aumento da religiosidade ou preocupação com
questões éticas, bem como intensificação das emoções, que dependiam da irritabilidade.
Eles também tendem a apresentar hipossexualidade e hipergrafia – muitos sentiam
necessidade de escrever, por vezes compulsiva.160
Geschwind definia a religiosidade como um estado mais relacionado ao sentimento
oceânico de Freud e à transcendência extraordinária de Baruss do que à teologia formal.
Artistas e religiosos tão diferentes quanto São Paulo, Maomé, Joana d’Arc, Santa Teresa de
Ávila, Fiódor Dostoiévski, Gustave Flaubert, Soren Kierkegaard, Vincent van Gogh, Guy
de Maupassant, Marcel Proust, Lewis Carroll e Alfred, lord Tennyson, foram
diagnosticados como portadores de epilepsia do lobo temporal, em vida ou após a morte.161
Os diagnósticos post-mortem de pessoas famosas e geniais surgem em livros e estudos
desde o início da medicina moderna. Hoje parece indiscutível que Flaubert tinha epilepsia,
embora tenha sido também neurótico e histérico; Dostoiévski certamente sofria de epilepsia
(embora o famoso diagnóstico de Freud fosse histero-epilepsia); a conversão de São Paulo
na estrada para Damasco apresenta indícios de um ataque; Santa Teresa sofria de epilepsia,
histeria e enxaqueca; van Gogh tinha várias doenças, como epilepsia, envenenamento por
chumbo, doença de Ménière, esquizofrenia e transtorno bipolar. Lewis Carroll é
considerado pelos neurologistas epiléptico do lobo temporal e vítima de enxaquecas. Os
sintomas podem nos conduzir a vários caminhos, especialmente quando se examina um
paciente morto há anos. Estudar diários, cartas, textos e obras de arte em busca de pistas
neurológicas tem lá suas limitações.
Quando era jovem eu desenhava bastante, e o impulso mais tarde se voltou para a escrita;
muitas vezes eu sentia haver uma presença inefável atrás de mim. Meu apetite sexual
parece normal (seja lá o que for isso), mas tenho sido com frequência passional demais em
situações sociais, e intolerante em relação a conversas fúteis, embora me esforce ao
máximo para reduzir a intensidade de minha presença. Confessei à dra. L. que cheguei a
pensar se não teria uma personalidade do lobo temporal. Contudo, também no caso minhas
identificações mudam. Eu empatizo com muitas doenças. Como inúmeros estudantes de
medicina do primeiro ano, eu mergulhava nos sintomas de uma doença após a outra, alerta
quanto ao latejar ou formigar, tremer ou palpitar de meu corpo mortal, sendo cada um deles
um aviso potencial do fim.
Sem dúvida, por conta de minhas visões e elações, os místicos de todas as tradições me
fascinam, e li sobre muitos deles. Qualquer que seja a interpretação que se dê aos estados
transcendentes, as experiências místicas são genuínas, assumem diversas formas, podem
surgir espontaneamente ou induzidas por drogas, meditação ou mesmo pela música
repetitiva, percussiva. Em seu livro Major trends in Jewish mysticism [Tendências
predominantes no misticismo judaico], Gershom Scholem cita um discípulo de Abraham
Abulafia, que depois de duas semanas de meditação começou a tremer: “Tremores intensos
tomaram conta de mim, perdi as forças, meu cabelo arrepiou, era como se eu não
pertencesse a este mundo.”162 No curso médio, quando pesquisa místicos cristãos, topei pela
primeira vez com as versões iniciais do “ponto divino”, a explicação médica para quem
ouvia vozes, tinha visões e sensações eufóricas. Estados mentais alterados são considerados
patológicos há muito tempo, e assim descartados pela explicação. Em Varieties of religious
experience, William James chama este método eliminatório de “materialismo médico”:
O materialismo médico acaba com São Paulo ao chamar sua visão na estrada para Damasco
de lesão nervosa do córtex occipital, por ele ser epiléptico. Descarta Santa Teresa como
histérica, e São Francisco de Assis como degenerado hereditário [...] Com isso, o
materialismo médico acredita que a autoridade espiritual desses personagens foi
favoravelmente minada.
James não acreditava que isso encerrava a questão, como demonstram as muitas páginas
depois desta passagem. Nem fígados nem neurônios, apesar de sua importância, fornecem
explicações suficientes para crenças e experiências espirituais ou intelectuais. O engenheiro
que rejeita a empatia não está menos sujeito a sua realidade corporal do que São Paulo. O
pensamento de James ecoa a meditação sobre doença e sentimento em O idiota, de
Dostoiévski. “E se for uma doença?” pergunta a si mesmo o príncipe Myshkin, o herói
epiléptico. “O que interessa que seja uma tensão anormal, se o momento da sensação,
lembrado e analisado no estado de saúde, se mostra como harmonia e beleza levados ao
mais alto ponto de perfeição, e dá a sensação, inesperada e inimaginada até então, de
completude, proporção e reconciliação, além de uma fusão em êxtase e oração, com a mais
alta síntese da vida?”164 Embora por vezes o mórbido seja também transcendente, o
transcendente não pode ser reduzido ao mórbido.
Dostoiévski explorou as auras epilépticas em seus romances, e elas indubitavelmente
influenciaram suas crenças religiosas. Flaubert jamais usou explicitamente ataques em suas
obras. As efusões românticas de Emma Bovary são inteiramente diferente das elações do
príncipe Myshkin, no mínimo por Flaubert manter uma distância irônica, embora solidária,
de sua heroína teatral. Dostoiévski e Flaubert podem ter compartilhado a mesma doença,
mas a personalidade e a arte de cada um se desenvolveu por caminhos bem diferentes.
Depois da cerimônia da árvore, em homenagem ao meu pai, minha mãe, minhas três irmãs
e eu conversamos na cozinha de Liv. Discutimos as misteriosas convulsões por algum
tempo, e depois, citando outros problemas neurológicos, mencionei minhas alucinações
auditivas. Ouvi vozes quando tinha onze a doze anos, não sempre, só de quando em
quando. Elas surgiam quando eu estava sozinha e recitavam um coro mecânico, repetindo
frases exaustivamente, o que me fazia sentir que elas tentavam me envolver com seu ritmo
insistente, ameaçador, queriam me dominar. Liv disse que ouvia vozes ameaçadoras na
mesma idade, e que as enfrentava com suas próprias palavras, tentando afogá-las. Minha
irmã Ingrid contou que ouvira uma voz, aos seis ou sete anos, que ela acreditou ser sua
consciência falando com ela em voz alta. Certa noite, cansada das vozes em sua cabeça, ela
procurou meus pais e perguntou o que devia fazer com o “Grilo Falante”. Pinóquio era a
única referência da minha irmã para o fenômeno, e fazia perfeito sentido. Meus, pais,
porém, compreensivelmente, não faziam a menor ideia do que ela estava falando.
Soubemos que minha mãe nunca tinha ouvido vozes, nem minha irmã Asti. Esta confessou
que se sentia meio excluída – a única irmã que não alucinava, das quatro. Mais tarde minha
filha Sophie, de vinte e um anos, contou que escutava vozes quando era menina. Meu pai
disse certa vez, após a morte de meu avô: “De vez em quando eu ouço papai me chamar.”
Ele anunciou isso como um simples fato, um sentimento óbvio, e não achei que visse isso
como um problema. Ele amava o pai, e às vezes ouvia sua voz. Talvez a voz fosse o retorno
de uma memória auditiva antiga, vinda do hemisfério direito do cérebro – o som do pai
dele, que o chamava para casa. Em vários momentos de minha vida tive alucinações em
que meu pai e minha mãe chamavam meu nome. O fenômeno parece comum na família.
Meu pai, três entre quatro irmãs e minha filha, todos nós já ouvimos vozes.
Um outro caso ilustra as características emocionais, breves e incontroláveis de pelo menos
um tipo de voz, que deve emanar de algum lugar do indivíduo, mas é claramente ouvida
como se viesse de uma pessoa diferente. Durante o sítio de Sarajevo meu marido e eu
recebemos um hóspede daquela cidade, um diretor que havia adaptado um dos livros de
meu marido para o teatro. Durante os poucos dias que passou conosco, contou histórias de
amigos traídos, de atos cruéis inimagináveis, das privações duradouras da guerra. No final
de uma manhã ele saiu de nossa casa no Brooklyn para uma reunião em Manhattan.
Despedi-me do hóspede e fui para minha mesa, trabalhar. Minutos depois de ter sentado
ouvi seu grito: “Socorro!” E desci os dois lances de escada correndo e fui até a porta,
esperando encontrá-lo caído na entrada da casa. Mas não vi sinal dele. Fora uma
alucinação. Nosso amigo não havia gritado “Socorro!” A voz, a voz dele, não era uma
lembrança acústica de algo dito por ele, mas, suponho, que fosse como nos sonhos, uma
condensação dos dias de conversa num único e vívido grito de ajuda, repentina e
involuntariamente emitido por um recanto profundo e emocional de minha mente.
Desde aquele estranho mas inesquecível grito de socorro, o único momento em que ouço
vozes regularmente é de noite. Deitada na cama, no devaneio que antecede o sono, costumo
ouvir vozes masculinas e femininas que emitem frases curtas, enfáticas, e de vez em
quando dizem meu nome. Por vezes tento lembrar o que disseram, mas isso raramente
ocorre. São os sons efêmeros audíveis quando a consciência plena recua e a mente parece
percorrer dois caminhos distintos: o visto e o ouvido. Estranhos invisíveis pronunciam
frases curtas, enquanto eu observo as fabulosas e geralmente coloridas imagens das
alucinações hipnagógicas, tanto figurativas quanto abstratas, que passam pelas pálpebras
cerradas. São fenômenos do limiar do sono e dos sonhos. Como sonhos, não derivam da
vontade. Diferentemente dos sonhos, eu ouço vozes, mas nunca respondo a elas, sou
observador das visões e não um protagonista em primeira pessoa. Certa vez, eu me vi numa
dessas cenas anteriores ao sono. No início, não reconheci para quem estava olhando, então
me dei conta de que era uma imagem minha, mais jovem. Com um bebê no colo, minha
filha quando era pequena. Sophie apoiava a cabeça no meu ombro, e depois, como tudo
naquela tela fugaz, desaparecemos.
Se há uma lição a ser tirada desta rápida passagem pelos sentimentos transcendentes e
vozes alheias, é a dificuldade para classificar esses fenômenos. Muitas vezes essas
experiências estão ligadas a doenças como a epilepsia ou psicose, mas nem sempre.
Quando se tornam insuportáveis para o indivíduo ou para os outros, a pessoa pode se
internar para tratamento. Caso contrário, estados de espírito elevados e até êxtases, além de
vozes intermitentes, integram-se à vida cotidiana ou serem desviados para a poesia. Na
verdade, podem acrescentar sentido à vida, e não tirar, e as pessoas inevitavelmente os
julgam conforme a perspectiva de sua própria história narrada. As iluminações e êxtases de
Rumi e Rilke podem compartilhar traços e bases fisiológicas, mas as viagens mentais de
cada um foram contextualizadas de maneira diferente, pois cada um deles vivia dentro de
sua própria linguagem e cultura. Mas é certo que se torna difícil separar a personalidade
dessas experiências vividas, por mais curiosas que sejam, especialmente se forem
recorrentes, e o sentido que cada um dá a elas é crucial para a convivência com esses
fenômenos.
Recebi uma carta da dra. L, de três páginas em espaço simples, com uma descrição de
nosso encontro e dos procedimentos previstos. Tenho uma médica meticulosa. Uma frase
chamou a minha atenção: “Em resumo, o histórico e o exame físico indicam que ela tem
enxaqueca clássica, ocasionalmente alterada para enxaqueca crônica, e a paciente teme ter
epilepsia do lobo temporal com base no histórico e nas características dos episódios.” Então
minha vida está nos limites da dor de cabeça. Acordo com enxaqueca quase todos os dias,
costuma passar depois do café, mas cotidianamente sofro com alguma dor, cabeça turva,
alta sensibilidade à luz, sons e umidade relativa do ar. De tarde eu me deito para fazer
exercícios de biofeedback, que acalmam meu sistema nervoso. A dor de cabeça sou eu, e
compreender isso tem sido minha salvação. Talvez o truque agora se integrar a mulher
trêmula também, reconhecer que ela também faz parte de mim.
Estou sentada na sala de espera da central de exames para fazer o MRI, com o formulário
de aprovação na mão. O plano de saúde liberou apenas a imagem por ressonância
magnética do cérebro, mas não a da coluna cervical. Quando escrevi meu nome e endereço
me dei conta de que estava a ponto de cometer um erro. Em “cidade” eu quase escrevi
Northfield, onde cresci, e não Brooklyn. Uma surpresa. Resido no Brooklyn há 27 anos, e
há trinta na cidade de Nova York. Sem ter consciência disso, devo ter viajado no tempo
para uma casa da qual não me recordo. Só guardei daqueles anos iniciais meu primeiro
endereço: 910 West Second Street, Northfield, Minnesota. O interior da casa é puramente
imaginário, seus ocupantes personagens que moldei a partir de histórias que outras pessoas
me contaram. Minha mãe, ainda jovem, se debruça sobre um bebê com febre, cujo corpo
treme e se agita. Agora moro em outra Second Street, situada no Brooklyn, em Nova York.
A troca se deu num recanto oculto da mente, onde uma cidade substituiu a outra, duas ruas
se misturaram, assim como o passado e o presente formaram uma única imagem
paroxísmica. O que surge à luz do dia é uma palavra: Northfield. Conforme a mão se move
sobre o papel e preenche o formulário, um ato habitual, realizado milhares de vezes desde
que aprendi a escrever, se desloca, como se eu ainda fosse uma menina, na carteira da
escola, preenchendo um papel com meu nome e endereço para entregar à professora.
Dores de cabeça. Num determinado momento, a dor é aliviada pela projeção no universo,
mas o universo é contaminado; a dor é mais intensa quando volta para casa, mas algo em
mim não a sofre, e permanece em contato com um universo que não foi contaminado.172
Weil, filósofa, mística e ativista política, lutou contra dores de cabeça intensas. Sofria de
enxaqueca crônica, e traços de sua personalidade apresentam forte semelhança com os que
Norman Geschwind relacionou à epilepsia do lobo temporal. Ela podia ser descrita como
hipossexual; nunca teve um amante, mas escrevia com energia inesgotável e era
profundamente religiosa. Se sofria ataques, eles não foram diagnosticados. Geschwind não
acreditava que sua lista de traços se limitasse aos epilépticos, um fato que amplia a
síndrome, e a enfraquece enquanto instrumento diagnóstico. Weil foi uma pessoa de
capacidade intelectual rara, cujas experiências a levaram para lá no materialismo, ao reino
da transcendência extraordinária. (Suspeito que ela poderia remontar qualquer imagem que
o professor Baruss colocasse na sua frente) A vida de Weil é mais um exemplo de como o
neurológico e o psicológico se sobrepõem para moldar crenças, tanto de natureza espiritual
quanto material, como argumentava James. Isolar as enxaquecas de Weil de sua
personalidade e de suas ideias só serve para criar falsas categorias, o que não significa dizer
que ela era constituída pelas dores de cabeça. Como qualquer um de nós, ela se formou
como ser ao longo do tempo. Uma tendência genética para a enxaqueca e a experiência
cotidiana da enxaqueca, bem como a instabilidade neurológica que a acompanha, foram
peças essenciais em sua história de vida, como no caso dos ataques de Dostoiévski.
Epilepsia e enxaqueca não atingem apenas os mais dotados de nós, claro. A produção
hipergráfica de uma pessoa pode ser brilhante, e a de outra, irrelevante enquanto obra. A
doença não produz necessariamente a percepção e o discernimento.
Mas a passagem de Weil sobre dor de cabeça é tipicamente perspicaz. Ela dissolve os
limites entre dentro e fora. Sua enfermidade é interna e externa, a dor intensa, e mesmo
assim uma parte dela consegue suspender a dor, e dar conta do que não é sofrimento, mas
um todo. Sei, por experiência própria, que é possível lidar até com a mais forte das dores de
cabeça, sentindo dor, mas aprendendo a não prestar atenção a ela, o que só exacerbaria o
penar. Preocupação e concentração pioram as dores de cabeça. A distração e a meditação a
atenuam.
Em Pain: the science of suffering, o neurocientista Patrick Wall argumenta que a dor não é
mensurável pelos métodos usuais da ciência. Em seguidos estudos, escreve, os
pesquisadores costumam reunir um grupo de “sujeitos”, administram um estímulo doloroso
a cada um deles, depois monitoram e comparam as reações fisiológicas desses voluntários.
A ciência funciona assim, mas Wall alega que o contexto artificial dos experimentos
distorce a realidade da dor. Os participantes sabem que os cientistas não os lançarão num
estado de prolongada agonia, e que podem gritar “Chega!” se a dor for muito forte. Wall
chama este ambiente de laboratório de dor sem sofrimento: “a medida da dor nessas
circunstâncias tem sido realizada em milhares de experiências. O conceito de uma sensação
pura de dor, liberada de percepções e significados, tem sido inerente a essas pesquisas.
Muitos acreditam que esta sensação existe; eu, não.”173 Wall ressalta que, apesar de
experimentos terem sido conduzidos exatamente da mesma maneira, com idênticas
instruções verbais, o limiar superior da dor tolerável muda de cultura para cultura. O
resultado também depende de quem transmite as instruções – homem ou mulher, professor,
técnico ou estudante.
Nenhuma dessas ressalvas me surpreende. Se alguém sabe que a dor passará (tenho uma
dor de barriga de vinte e quatro horas, depois vou melhorar), é capaz de suportá-la melhor
do que a dor fraca que o matará, pelo que dizem. Minhas raízes são escandinavas, onde se
valoriza muito o estoicismo. Nadar em água gelada é considerado admirável, mas em outra
cultura pode ser visto como farra ou total insanidade, e a reação de determinada pessoa a
um mergulho na água gelada não só parecerá diferente, segundo seu significado para ela,
como será diferente, e não apenas psicologicamente, mas também neurobiologicamente.
Não se pode separar os dois. Muitas pessoas se impressionam mais com professores do que
com estudantes, e se mostram mais inclinadas a demonstrar resistência quando estão frente
a frente com Herr Doktor em pessoa, em comparação a um universitário que lê um texto
qualquer de instruções. Suspeito que os contatos entre homens envolva competição com
base na testosterona, o que seria menos provável entre mulheres. E a dor é sempre
emocional. Medo e depressão acompanham constantemente a dor crônica. Nunca vai
passar; sofrerei para sempre; estou tão triste são mantras de quem acorda, se arrasta pelo
dia e se recolhe todas as noites com uma dor incessante, seja de que tipo for. Quando tive
minhas duas crises de enxaqueca crônica, cada um delas com duração aproximada de um
ano, eu conferia continuamente minha dor: Está mais fraca? Um pouco. A esperança
desfraldava uma bandeira dentro de mim. Logo vai diminuir e sumir para sempre! Piorou?
Sim, está muito pior. Largo a bandeira e retorno à batalha. Hora após hora, dia após dia,
mês após mês, eu acompanhei os altos e baixos de minha cabeça despedaçada. Depois da
consulta com o dr. E. aprendi a meditar com a máquina dele (não há diferença essencial
entre biofeedback e diversas formas de meditação oriental), e me afastei dos vigilantes da
dor. Parei de prestar atenção demais à dor. Ela surge com frequência, e de vez em quando
torna-se violenta, preciso parar de trabalhar e deitar, mas não entro em desespero nem
acredito que desaparecerá para sempre. Minha dor é qualitativamente diferente da dor que
sentia quando eu era mais jovem. Sofro menos por causa da mudança da percepção da dor
que sinto e do significado que a ela atribuo.
Patrick Wall faleceu em 2001, de câncer. Em seu livro, publicado no ano anterior, ele não
ampliou seus conceitos para incluir pesquisas científicas sobre outros aspectos da vida
humana, mas poderia ter feito isso facilmente. Em essência, Wall disse: a dor não pode ser
separada de nossa percepção da dor, e tais percepções possuem um significado. Elas
envolvem o sistema nervoso de um indivíduo dentro de um corpo específico, em relação a
um ambiente em particular – de cultura, linguagem e outras pessoas (presentes ou
ausentes). A dor ocorre dentro do corpo vivo de um sujeito, e não dentro um corpo inerte,
objetivo e hipotético da Anatomia de Gray. Existe alguma “sensação pura” de qualquer
coisa que possa ser atribuída às redes neurais, e não a um ser humano corporal, capaz de
sentir e pensar, que vive no mundo? O problema nem toca o confuso dilema da palavra em
si, dor, usada pelos pesquisadores para significar o que acontece quando o “sujeito” leva
um choque elétrico, uma agulhada ou um tapa. Como saber o que significa a dor, exceto
por meio do que ela significa para mim? Durante anos ponderei sobre as meditações sobre
linguagem e dor de Wittgenstein nas Investigações Filosóficas: [A dor] não é uma coisa”,
proclama, “mas tampouco é coisa nenhuma! A conclusão é que o nada serve tanto quanto
algo a respeito do qual nada se pode dizer.” O filósofo recomenda um “rompimento radical
com a ideia de que a linguagem sempre funciona de determinada maneira, sempre serve ao
mesmo propósito: transmitir pensamentos – que podem ser sobre casas, dores, bem e mal
ou qualquer outro assunto que lhe agrade.”174 A condição instável da linguagem está em seu
uso, que muda conforme o falante. Os cientistas se esquecem disso com impressionante
regularidade.
Sempre achei cômico um médico perguntar como eu classificava minha dor numa escala de
um a dez. Os números no lugar das palavras. Avaliar minha dor em relação a quê? A pior
dor que já senti? Será que me lembro da pior dor? Impossível retê-la enquanto dor, ela só
permanece enquanto lembrança articulada, ou relação empática com minha personalidade
passada: a dor do parto, dores de enxaqueca, a dor que senti ao fraturar o cotovelo. Qual
delas merece nota 6, ou 7? Seria seu 4 o meu 5? O 9 de Charlie o 2 de Daya? O 10
realmente existe, ou não passa de uma representação idealizada do insuportável? A gente
morre, acima de 10? A noção de que graus de dor podem ser reduzidos a números é
ridícula, porém rotineira. A tentativa de evitar ambiguidades só contribui para criá-las.
A transformação em minha dor é psicobiológica. Meus pensamentos têm sido cruciais para
reduzir a dor. Como os autores do estudo sobre efeito placebo que citei antes reconhecem,
“fatores cognitivos” afetam a química neural. O que sempre pensamos ser mental pode
influenciar o que sempre pensamos ser físico. Ninguém sabe explicar como funcionam
esses mecanismos complexos, mas a atividade na porção pré-frontal, executiva, do cérebro,
parece regular e inibir muitas funções cerebrais. Pessoas com transtorno obsessivo-
compulsivo podem reduzir sua intensa necessidade de lavar, conferir, contar ou tocar com
técnicas comportamentais simples – resistir ao impulso durante períodos cada vez mais
maiores. A cura pela conversa tem sido tão eficaz quanto medicamentos para pessoas com
depressão suave ou moderada, embora os dois tratamentos sejam usados atualmente.175
Os seres humanos são animais repetitivos. A repetição cria o sentido. Quando me deparo
com uma palavra desconhecida, consulto o dicionário e espero que na próxima ocorrência
de pruriginoso eu me lembre do significado. Assim que é repetido, o novo deixa de ser
novo. Tremer uma vez é diferente de tremer duas. Nas doenças psiquiátricas e neurológicas,
a repetição pode se tornar compulsiva, uma necessidade incontrolável de retornar ao
mesmo, Freud notou isso em pacientes seus e escreveu a respeito. No hospital onde leciono
muitos pacientes de minhas turmas iniciaram rotinas neuropsicológicas – incapazes de se
libertarem do padrão de repetição mórbida incansável. Pessoas deprimidas geram um
pensamento ruim em seguida de outro, por exemplo, mas há momentos em que são instadas
a redirecionar as energias para escrever, e pelo menos durante a atividade deixar de lado os
comportamentos incômodos. “Eu me lembro do caldo da galinha que mamãe fazia, era uma
delícia.”
A irmã de uma amiga minha sofre ataques epilépticos desde pequena. L. acordava de noite
e via a irmã agitando os membros e tremendo na cama ao lado. L. me disse que a irmã não
se sentia alienada das auras e ataques. Na verdade, fazem parte dela de tal maneira que ela
relutava em procurar auxílio médico. No ensaio “Witty Ticcy Ray”, Oliver Sacks descreve
um paciente da síndrome de Tourette que, livre dos tiques graças a um medicamento, sentia
tanta falta deles que passou a tirar férias dos remédios nos fins de semana, para desfrutar
novamente o tique.181 Um paciente bipolar, P., que produziu sete mil páginas de texto,
deixou claro para mim que ela sentia uma falta terrível de sua mania. Tive a forte impressão
de que ela deixaria de tomar lítio quando os responsáveis lhe dessem alta do hospital.
Quando as vozes cessaram, um paciente esquizofrênico se sentiu solitário pela primeira vez
em muitos anos, e não teve certeza de gostar disso. A neurologista Alice Flaherty, em seu
livro The Midnight Disease [A doença da meia-noite], descreve e analisa sua hipergrafia
pós-parto, que começou pouco depois de ela dar à luz gêmeos, que não vingaram. Além
disso, passou a ver uma série de imagens metafóricas que fizeram o mundo em torno dela
parecer anormalmente vívido, mas eram invasivas a distraíam. Quando um medicamento
fez com que os sintomas cessassem, ela escreveu: “O mundo se tornou tão morto que meu
psiquiatra reduziu as doses até eu conseguir a volta de algumas metáforas tirânicas, pelo
menos.”182 E se isso for uma doença? O príncipe Myshkin indagou. Eu também desenvolvi
uma curiosa ligação com as enxaquecas e os vários sentimentos que as acompanhavam.
Não consigo ver realmente onde a doença começa ou acaba; melhor dizendo, eu sou as
dores de cabeça, e rejeitá-las significaria me expulsar de mim mesma.
Nenhum de nós escolhe doenças crônicas. Elas nos elegem. Com o passar do tempo, a irmã
de L. não se acomodou com uma vida de ataques e espasmos obrigatórios; os ataques
passaram a fazer parte da própria tessitura de sua identidade consciente, de sua
personalidade narrativa, como as minhas enxaquecas, a mania de P., as metáforas e a
hipergrafia da dra. Flaherty, para o bem ou para o mal. Talvez por ter chegado tarde, eu
tenha tido muito mais dificuldade para integrar a mulher trêmula à minha história, mas
conforme ela foi se tornando familiar, passando da terceira pessoa para a primeira, deixou
de ser um duplo detestável para se tornar uma parte admitidamente deficiente de mim.
Permanece controversa a noção exata da personalidade, do eu. O neurocientista Jaak
Panksepp defende que os seres humanos têm um centro da personalidade, localizado no
cérebro, um eu mamífero externo à linguagem, mas crucial para o estudo de consciência
desperta; a região da matéria cinzenta periaquedutal (PAG) no cérebro é muito pequena,
mas quando sofre danos compromete a consciência desperta.183 Antonio Damasio também
propõe que existe um centro do eu, embora discorde de Panksepp sobre sua localização
precisa.184 Ambos afirmam que este centro do ser não é a personalidade autobiográfica, não
é a pessoa que diz ou escreve “eu me lembro”.
Michael Gazzaniga, cientista que trabalhou com pacientes de cérebro desconectado e
cunhou o termo “intérprete do hemisfério esquerdo”, reúne evidências para uma visão do eu
por meio da teoria da seleção natural: “tudo que fazemos na vida é descobrir o que foi
construído em nosso cérebro.”185 Segundo Gazzaniga, as influência ambientais numa pessoa
escolhem entre opções que já estão lá. Esta ideia aparentemente inócua de habilidade inata
– as pessoas não voam, exceto em sonhos e aeronaves, pois não possuem a capacidade
natural para tanto – passa a assustar quando a teoria é aplicada no meio social. Conduz a
uma série de outras crenças: os pais exercem pouquíssima influência nos filhos (eles são
imunes à instrução), e os programas sociais destinados a apoiar pessoas com problemas
diversos são contraproducentes, pois o que os indivíduos realmente necessitam é serem
deixados no modo de sobrevivência. Os pacientes de câncer devem ser encorajados a
“lutar” contra a doença, pois o combate os ajudará a viver mais tempo. Gazzaniga é um dos
vários cientistas que, ao publicar um livro para um público mais amplo, contesta a visão de
que os seres humanos começam como uma “página em branco”.
Steven Pinker, respeitado psicólogo cognitivo, escreveu diversos livros populares sobre o
tema. Ele também contesta o conceito de página em branco.186 A ideia, com frequência
atribuída a John Locke, considera que os seres humanos nascem em branco, sendo depois
preenchidos pela experiência. Mas Locke não descartava a capacidade humana inata. Ele
argumentava contra a teoria das ideias inatas de Descartes, pela qual existem verdades
universais que nascem conosco e são compartilhadas com todas as pessoas. Quaisquer que
sejam suas falhas, em An essay concerning human understanding [Edição brasileira: Ensaio
acerca do entendimento humano (São Paulo, Editora Abril, 1978, 2ª edição), Locke
delineia uma visão de vida interativa, progressiva: é preciso experimentar o vermelho para
saber o que é o vermelho. Na verdade, seria dificílimo encontrar um defensor são do
determinismo biológico absoluto. Nem o construcionista mais extremado nega os genes.
Mesmo quem sustenta que a personalidade – ou o “sujeito” – não passa de uma ficção
baseada na linguagem, uma elaboração constantemente refeita nos termos da ideologia
dominante de um período histórico determinado, não acredita que falta aos seres humanos a
capacidade inerente da fala. Para ir direto ao ponto: o que está em jogo aqui é a ênfase – os
genes prevalecem sobre a experiência, ou a experiência prevalece sobre os genes.
Gazzaniga, Pinker e muitos outros acreditam, com boas razões, que no interior das
instituições acadêmicas alguns estudiosos elevaram a maleabilidade humana a um patamar
não comprovado. Mas sua confiança que as pesquisas mostraram que os pais não
influenciam os filhos é notável. Eu os orientaria a examinar as pesquisas laboratoriais
acumuladas sobre mamíferos que indicam que a carga genética é modificada por fator
ambientais, entre eles os cuidados maternos.187 Ideias rapidamente de tornam crenças, e as
crenças logo viram projéteis nas guerras ideológicas. O que somos e do que somos feitos
sem dúvida é um dos campos de batalha dessas guerras. Os rígidos e os suaves disparam
sua artilharia uns contra os outros. Perto do final de uma apresentação em PowerPoint e
conferência sobre o cérebro a que compareci em fevereiro de 2009, o neurocientista Hans
Breiter, de Harvard, projetou a seguinte imagem na tela: um retângulo azul enorme. Dentro
dele havia um pequeno quadrado vermelho. “Isso é o que sabemos a respeito do cérebro”,
disse, e não se referia ao imenso azul, e sim ao minúsculo vermelho. O que conhecemos
serve muitas vezes como desculpa para extrapolações infindáveis, e meu palpite é que na
maior parte do tempo a humildade intelectual leva mais longe do que a arrogância.
No budismo, o eu é ilusório. Não há personalidade. Alguns cientistas cognitivos concordam
com esta formulação. Outros, não. O modelo do eu, para Freud, era dinâmico, complexo,
dividido em três e provisório. Ele acreditava que a ciência levaria adiante suas ideias, e isso
aconteceu, embora por caminhos às vezes conflitantes. Na teoria psicanalítica das relações
entre objetos desenvolvida, o eu também é plural. As imagens de outros importantes
habitam em nós para sempre. D. W. Winnicott ventilou mais do que Freud o ambiente
psíquico, cujo modelo de estrutura mental é mais restrito, mais propenso a lidar com
fantasias e identificações do que com outras pessoas reais e experiências concretas.
Winnicott acreditava que todos nós temos um eu verdadeiro, bem como eus falsos. Nossas
personalidades sociais têm necessariamente aspectos falsos – o sorriso polido, ou a resposta
“Tudo bem” à pergunta “Como vai?”188 Eu não sei o que é o eu. Defini-lo, seja o que for, é
sem dúvida um problema semântico, uma questão de limites e percepções, bem como de
qualquer verdade psicobiológica que formos capazes de descobrir.
Sinto que tenho um eu – mas, por quê? Ele é tudo que vive dentro dos limites do meu
corpo? Não mesmo. Quando tremo, não sinto que seja eu seja assim. Eis o problema.
Quando ela chega, a personalidade? Não me lembro, mas sei que o segredo faz parte do
negócio. Houve um tempo em que acreditei que minha mãe era capaz de olhar nos meus
olhos e ver a culpa. Em Pelos olhos de Maisie (São Paulo, Companhia das Letras, 2010),
Henry James identifica um novo sentido que começa a se alvoroçar na pequena heroína:
As bonecas rígidas nas prateleiras começaram a mexer as pernas e os braços; velhas formas
e frases começaram a fazer um sentido que a amedrontava. Surgia nela um novo
sentimento, o do perigo; para ele, apareceu um novo remédio, a ideia de uma personalidade
própria, ou, em outras palavras, de ocultamento.189
Maisie descobre o lugar em nós para onde nos retiramos, o recanto no qual nos escondemos
sem que os outros nos vejam, o refúgio buscado quando sentimos medo, o santuário escuro
que possibilita a mentira, além dos devaneios, sonhos, pensamentos ruins e intensos
diálogos internos. Este não é o cerne do eu biológico. Ele surge em algum momento meio
esquecido da infância. Os outros animais não o possuem; exige conhecimento de uma
realidade dual, na qual o conteúdo verbal ou emocional de um eu interior não precisa se
mostrar externamente. Em outras palavras, é preciso estar consciente do que se esconde,
para poder esconder. Crianças pequenas costumam pensar em voz alta. Aos três anos,
minha filha tagarelava, ao brincar: “O porquinho vai para a cama sozinho. Nossa, ele caiu
da caminha! Vai logo, pode levantar. Não precisa chorar, porquinho!” Algum tempo depois
ela parou de falar. Sophia passava horas brincando em silêncio, entretida, mas sem dizer
nada. Seu narrador fora interiorizado. Seria o momento da virada? A arena interna do
pensamento e representação, que muitos de nossa identificam com a personalidade? Uma
versão sinto, logo existo, do Cogito, ergo sum de Descartes?
Em The principles of Psychology, William James, irmão mais velho de Henry James,
apresenta uma noção ampliada da personalidade ou das personalidades que se inicia com o
corpo da pessoa, a personalidade material, um Me, depois evolui para incluir um eu maior,
o Meu, que engloba as roupas, a família, a casa, o patrimônio, os sucessos e fracassos.
James ressalta que certas partes do corpo são mais íntimas do que outras, que grande parte
da noção de si – que ele chama de “Eu dos Eus” – ocorre “entre a cabeça e a garganta”190,
ou do pescoço para cima, e não para baixo. Levando em conta este eu flutuante, James traça
uma distinção entre a pessoa solidária e a egoísta. Usando o estoicismo como exemplo de
egoísmo, ele argumenta: “Todas as pessoas limitadas se encastelam em seu Me, eles o
retiram – da região das coisas que elas não podem garantir a posse.”191 Tipos solidários, por
sua vez, “adotam o caminho inteiramente oposto da expansão e inclusão. O limite exterior
de sua personalidade pode ser indefinido, e portanto espalhar seu conteúdo a redime.”192 O
conceito de eu de James é elástico – encolhe ou expande conforme a personalidade e
conforme o momento, na vida de uma única pessoa. Talvez por ser o limite de minha
personalidade seja um tanto vago eu tendo ao lado solidário, gosto da ideia de que tanto
apreendemos o mundo quanto saímos em sua direção, de que o movimento faz parte de
uma sensação do eu que inclui outros. Não vivo sempre trancada na cela de meus
pensamentos privados, ocultos, e mesmo quando isso ocorre, grande parte do meu mundo
se fecha comigo – multidões tagarelas.
Não podemos desvendar um “universo congelado de objetos independentes do olhar e do
pensamento”, mas existe um mundo intersubjetivo compartilhado de imagens, raciocínio e
outras pessoas, e acredito que uma abertura maior ou menos a essas palavras, imagens e
pessoas seja possível. Alguns possuem personalidades rígidas, pequenas, restritas. Outros
são mais abertos. Alguns tão abertos que se afogam em outras pessoas, como os pacientes
psiquiátricos que confundem “eu” e “você”. De todo modo, já momentos em que me perco
em você. Há também momentos em que olho para uma coisa com tanta intensidade que
desapareço. O narrador interno tira licença, me abandona por um tempo. Ações e palavras
confundem continuamente o narrador, não só na forma de mãos estranhas que se movem a
esmo, flashbacks, ataques e alucinações visuais ou auditivas, como também em situações
bem mais corriqueiras. Meus dedos se movem na direção da bomboneira antes mesmo que
eu saiba o que estou fazendo, um fragmento de sentença ou melodia surgem subitamente
em minha cabeça, sem solicitação. Quantas vezes encontrei uma pessoa e percebi no ato
que havia algo errado? Não captei isso por meio da comunicação verbal. Antes de ser capaz
de articular o problema, eu o sinto. Mais tarde, posso especular que talvez tenha notado
certa tensão no corpo da pessoa, que foi registrada pelo meu, ou a vi olhar para o lado e este
olhar reverberou em meu peito ou foi registrado como um aperto nos meus próprios olhos,
ou como um recuo do corpo. Sinestesia por reflexo ou não, sem dúvida não estou sozinha.
Reagimos ao que está além dos nossos corpos com uma sensação anterior à reflexão, com
uma percepção do sentido embutido. Este sentimento é consciente, claro, mas não
autoconsciente, do tipo “protagonista de minha própria vida”. Não me vejo a sentir.
NOTES
1. Owsei Temkin, The falling sickness: A history of epilepsy from the Greeks to
the beginnings of modern neurology, 2nd ed. (Baltimore: Johns Hopkins Press, 1971), 36.
2. Frances Hill, The salem witch trials reader (Nova York: Da Capo Press, 2000), 59.
3. Temkin, Falling sickness, 194.
4. Ibid., 225.
6. Ibid., 493.
7. Carl W. Basil, Living well with epilepsy and other seizure disorders (Nova
York: Harper Resource, 2004), 73.
11. Robert J. Campbell, Campbell’s psychiatric dictionary, 8a. ed. (Oxford: Oxford
University Press, 2004), 189.
12. Sigmund Freud e Josef Breuer, Studies on hysteria, trans. James Strachey
(Nova York: Basic Books, 1957), 86. [Ed. brasileira Estudos sobre a histeria. Rio de
Janeiro: Imago)]
17. Pierre Janet, The major symptoms of hysteria: fifteen lectures given in the medical
school of Harvard University (Londres: Macmillan, 1907), 324.
22. Eugene C. Toy e Debra Klamen, Case files: psychiatry (Nova York: McGraw-Hill,
2004), 401.
23. Todd Feinberg, Altered egos: how the brain creates the self (Oxford: Oxford
University Press, 2001), 28.
24. Rita Charon, Narrative medicine: honoring the stories of illness (Oxford: Oxford
University Press, 2006), 9.
25. J.- K. Zubieta et al., “Placebo effects mediated by endogenous opioid activity on μ-
opioid receptors”, Journal of Neuroscience 25 (2005): 7754-62.
26. Erika Kinetz, “Is hysteria real? brain images say yes”, New York Times, 26 de
setembro de 2006.
27. Sean A. Spence, “All in the mind? the neural correlates of unexplained
physical symptoms”, Advances in Psychiatric Treatment 12 (2006): 357.
32. Bertram G. Katzung, ed., Basic and clinical pharmacology, 9a. ed. (Nova York:
Lange Medical Books / McGraw-Hill, 2004), 156.
33. James L. McGaugh, Memory and emotion: the making of lasting memories
(Nova York: Columbia University Press, 2003), 93.
35. Citado por Daniel Brown, Alan W. Scheflin e D. Corydon Hammond, Memory,
trauma, treatment and the law (Nova York: Norton, 1998), 95.
36. Françoise Davoine e Jean-Max Gaudillière, History beyond trauma, trad. Susan
Fairfield (Nova York: Other Press, 2004), 179.
37. Onno van der Hart, Ellert R. S. Nijenhuis e Kathy Steele, The haunted self: structural
dissociation and the treatment of chronic trauma (Nova York: Norton, 2006).
38. Ian Hacking, Rewriting the soul: multiple personality and the sciences of memory
(Princeton, NJ: Princeton University Press, 1995), 21.
41. Three short novels of Dostoyevsky, trad. Constance Garnett, ed. Avrahm
Yarmolinsky (Nova York: Doubleday, 1960), 15.
42. Hans Christian Andersen, “The shadow,” em Fairy Tales, vol. 2, trad. R. P
Keigwin (Odense, Dinamarca: Hans Reitzels Forlag, 1985), 188.
46. Jacques Lacan, “The mirror stage as formative of the I function” in Écrits trad.
Bruce Fink (Nova York: Norton, 2006), 75-81.
52, Mark Solms e Oliver Turnbull, The brain and the inner world (Nova York: Other Press,
2002), 32.
56. A. R. Luria, Higher cortical functions in man, trad. Basil Haigh, 2a. ed. (Nova
York: Basic Books, 1962),32.
57. Sigmund Freud, Beyond the pleasure principle, trans. James Strachey (Nova
York: Norton, 1961), 9. [Ed. brasileira Além do princípio do prazer (Rio de Janeiro:
Imago)]
60. Sigmund Freud, The Ego and the Id, trad. James Strachey (1923; repr., Nova
York: Norton, 1960), 32-33. [Ed. brasileira O ego e o id e outros trabalhos (Rio de Janeiro:
Imago)
61. Charles Dickens, David Copperfield (1850; repr., Oxford: Oxford University
Press, 2000), 1. [Ed. brasileira David Copperfield (São Paulo: Hemus, 2005)
62. Joe Brainard, I remember (Nova York: Penguin, 1975), 28. Joe Brainard é mais
conhecido como artista plástico. Participou do grupo de escritores e pintores conhecido
como Escola de Nova York, que incluía John Ashbery, Fairfield Porter, Alex Katz,
Kenward Elmslie, Frank O’Hara, James Schuyler, Kenneth Koch e Rudy Burkhardt. Sua
obra está no Museu de Arte Moderna e no museu Whitney. Morreu em 1994. I remember
inspirou o escritor Georges Perec a criar sua própria versão desta máquina geradora de
memórias: Je me souviens.
65. Charles D. Fox, Psychopathology of hysteria (Boston: Gorham Press, 1913), 58.
66. A. R. Luria, The Man with a shattered world, trad. Lynn Solotaroff (Cambridge,
MA: Harvard University Press, 1972), 92.
67. Citado por Elaine Showalter, Hystories: hysterical epidemics and modern culture
(Londres: Picador, 1998), 34.
68. Georges Didi-Huberman, Invention of hysteria: Charcot and the photographic
iconography of the Salpêtrière, trad. Alisa Hartz (Cambridge, MA: MIT Press, 2003).
70. DSM-IV,494.
72. A experiência de soldados com transtorno de conversão pode lançar luz sobre uma
das razões pelas quais as mulheres são mais vulneráveis à histeria do que homens fora de
situação de combate. Se a impotência e a sensação de não desempenhar um papel ativo em
seu destino estiver ligado à doença, então faz sentido dizer que as mulheres, que
historicamente desfrutaram de autonomia bem menor que os homens, sejam mais atingidas.
Da mesma forma, em muitos livros de referência, inclusive o DSM, repete-se a especulação
de que a histeria é mais comum em pessoas sem instrução, de sociedades menos
desenvolvidas, que parece um outro jeito de dizer que as pessoas cuja vontade é minada por
forças que não podem controlar são mais propensas a sucumbir à conversão.
81. D. W. Winnicott, Home is where we start from: essays by a psychoanalyst (Nova York:
Norton, 1986),32.
87. Benjamin Libet, “Do we have free will?” Journal of Consciousness Studies 6, no.
8-9 (1999): 47-57.
88. Julian Offray de La Mettrie, Machine man and other writings, trad. e ed. por Ann
Thompson (Cambridge: Cambridge University Press, 1996).
89. Jaak Panksepp, Affective neuroscience: the foundations of human and animal
emotions (Oxford: Oxford University Press, 1998),52.
90. Antonio Damasio, Descartes’ error: emotion, reason and the human brain (Nova
York: HarperCollins, 2000), 3-79.
91. William James, The will to believe and other essays in popular philosophy
(1897; repr., Nova York: Barnes and Noble Books, 2005), 92.
96. Citado por Allan Schore, Affect regulation and the origin of the self: the
neurobiology of emotional development (Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1994),76.
98. Gallagher, How the body shapes the mind, 73. Gallagher sofre forte influência de
Merleau-Ponty, que por sua vez foi influenciado por Husserl, que argumenta termos um
senso subjetivo consciente de nossa liberdade de movimentos, mas que “as aparências que
chegam já estão preconfiguradas. As aparências formam sistemas dependentes. Só como
dependentes de cinestesia elas podem passar de uma a outra a constituir uma unidade de
sentido único.” O consciente se liga a uma inconsciência cinética/motora corporal. Ver
“Horizons and the Genesis of Perception”, em The essential Husserl: basic writings
in transcendental phenomenology, ed. Donn Welton (Bloomington: Indiana
University Press, 1999),227-28.
100. G. W. F. Hegel, The phenomenology of mind, trad. J. B. Baillie, 2nd ed. (Londres:
Allen and Unwin, 1949), 232.
104. Leo Tolstoy, "The Death of lván Ilých," em Great short works of Leo Tolstoy,
trad. Louise Maude e Aylmer Maude (Nova York: Harper & Row, 1967), 280.
105. Ibid., 282.
106. Albertus Magnus, “Commentary on Aristotle”, “On memory and recollection” The
medieval craft of memory: an anthology of texts and pictures, ed. Mary Carruthers e Jan M.
Ziolkowski (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2002), 153-188.
107. A. R. Luria. The mind of a mnemonist: a little book about a vast memory, trad. Lynn
Solotaroff (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987), 32.
108. Citado por Patricia Lynne Duffy, Blue cats and Chartreuse kittens: how synesthetes
color their world (Nova York: Henry Holt, 2001), 22.
109. Arthur Rimbaud, Complete works, trad. Paul Schmidt (Nova York: Harper & Row,
1967), 123.
111. Jorge Luis Borges, “Funes the memorious”, Labyrinths: selected stories and
other writings (Nova York: New Directions, 1964), 65-67.
Para o inglês, James Strachey, tradutor de Freud, cunhou a expressão “deferred action”
[ação diferida ou a posteriori], mas que na verdade significa algo como afterlyness
[“posterioridade”].
115. Joseph LeDoux, Synaptic self how our brains become who we are (Nova York:
Penguin, 2002), 124.
118. Francis Crick, The Astonishing hypothesis: the scientific search for the soul
(Nova York: Simon & Schuster, 1995), 3.
127. Freud, Mourning and melancholia, Standard Edition, vol. 14, trans. James
Strachey (Londres: Hogarth Press, 1957). [Ed. brasileira Luto e melancolia (Rio de Janeiro:
Imago)]
128. Ao ler o original deste livro, uma amiga que também é psicanalista ressaltou que
“sentir um aperto no peito” significa tristeza.
129. Theodore Roethke, “Silence”, Collected poems (Nova York: Doubleday, 1966).
130. Sigmund Freud, The interpretation of dreams, Standard Edition, vol. 4, trad. James
Strachey (Londres: Hogarth Press, 1953, 1971), 279.
131. Citado por Mark Solms, “Dreaming and REM sleep are controlled by different brain
mechanisms”, Sleep and dreaming: scientific advances and reconsiderations (Cambridge:
Cambridge University Press, 2003), 52.
138. Para uma breve discussão da cor como fenômeno pré-reflexivo, ver Kym Maclaren,
“Embodied perceptions of others as a condition of selfhood”, Journal of Consciousness
Studies 15, no. 8 (2008), 75.
139. A história de Mary foi contada e recontada em diferentes jornais, estudos, livros e
conferências. Para argumentos contra a história de Mary como prova de qualia, ver Daniel
Dennett, Consciousness explained (Boston: Little, Brown, 1991), 398-401
141. O estudo de Peter Carruthers publicado no Journal of Philosophy, me foi enviado pelo
filósofo “solidário” Ned Block, depois que compareci à conferência dada por ele sobre as
teorias da consciência, em fevereiro de 2009, no Instituto Psicanalítico, na cidade de Nova
York. “Brute experience”, Journal of Philosophy 86 (1989), 258-69.
146. O físico Erwin Schrodinger oferece uma visão da consciência que se baseia nos
Upanishads e em Schopenhauer, num livro pequeno, mas brilhante, publicado após sua
morte. Erwin Schrodinger, My view of the world, trad. Cecily Hastings (Woodbridge,
Conn: Ox Bow Press, 1983). Na página 88 ele nos informa as cores que associa a vogais,
escrevendo a respeito de sua sinestesia como fenômeno comum: “Para mim, o A é marrom
clarinho, o E, branco, o I azul intenso e brilhante, o O, preto, e o u, marrom chocolate.”
150. Imants Baruss, “Beliefs about consciousness and reality”, Journal of Consciousness
Studies 15. no. 10-11 (2008): 287.
158. Steve Connor, “God spot is found in brain”, Los Angeles Times, 29 de outubro de
1997; e “Doubt cast over Brain God Spot”, na BBC News, 30 de agosto de 2006. Dois
estudos sobre religião e o cérebro receberam ampla atenção da mídia. O primeiro, realizado
em 1997 na Universidade da Califórnia, em San Diego (por V. S. Ramachandran et al.),
pesquisou pessoas com epilepsia do lobo temporal, que admitiram ser muito religiosas, e
controles normais. Os cientistas testaram a IGSR e encontraram respostas emocionais
intensas para palavras de cunho espiritual nos epilépticos e nos religiosos, mas não nos
normais. Ramachandran especulou que o lobo temporam, bem como a atividade límbica,
geram maior religiosidade. Ver V. S. Ramachandran e Sandra Blakeslee, Phantoms in the
brain: probing the mysteries of the human mind (Nova York: William Morrow, 1997), 174-
98. O segundo estudo, feito no Canadá por Mario Beauregard, examinou quinze freiras
carmelitas com fMRIs, sem encontrar a tal localização: “As experiências místicas são
mediadas por diversas regiões cerebrais.” Os pesquisadores descobriram, contudo, que “a
ativação direita medial temporal estava relacionada com uma experiência subjetiva de
contato com uma realidade espiritual.” M. Beauregard e V. Paquette, “Neural Correlates of
Mystical Experiences in Carmelite Nuns”, Neuroscience Letters 405 (2006), 186-90. Seria
justo apontar que os cientistas envolvidos são bem mais circunspectos a respeito das
descobertas do que os jornalistas que as divulgam. Mesmo assim, a confusão filosófica por
vezes é desenfreada. Michael A. Persinger trabalhou intensivamente no campo da
experiência mística e da ativação do lobo temporal, mas ele também vincula essas
experiências transcendentes com a relação inicial do filho com os pais. Ver seu livro
Neuropsychological bases of God beliefs (Nova York: Praeger Publishers, 1987).
159. Sigmund Freud, Civilization and its discontents, Standard Edition, vol. 21, trad.,
James Strachey (Londres: Hogarth Press, 1957), 64. [Ed. brasileira O mal estar na
civilização (Rio de Janeiro: Imago)
161. Muitos livros contêm diagnósticos especulativos dos famosos. Ver J. Bogouslavsky
e F. Boller, eds., Neurological disorders in famous artists, vol. 19 (Lausanne: Karger,
2005); e Frank Clifford Rose, ed., Neurology of the arts: painting, music, literature
(Londres: Imperial College Press, 2004). Para um relato popular que identifica inúmeros
notáveis do passado recente e distante como epilépticos do lobo temporal, ver Eve La
Plante, Seized: temporal lobe epilepsy as a medical, historical, and artistic phenomenon
(Lincoln, NE: Authors Guild Backinprint.com, 1993).
162. Gershorn Scholem, Major trends in jewish mysticism (Nova York: Schocken,
1961), 151.
163. William James, Varieties of religious experience (1902; repr., Nova York: Library of
America, 1987), 23.
164. Fyodor Dostoyevsky, The idiot, trad. David Magarshack (Nova York: Penguin, 1955),
258-59. [Ed. brasileira O idiota (São Paulo: Martin Claret, 2004)]
165. Saint Augustine, Confessions, trad. Henry Chadwick (Oxford: Oxford University
Press, 1988), 152.
166. Julian Jaynes, The origin of consciousness in the breakdown of the bicameral mind
(Boston: Houghton Mifflin, 1976).
167. Marcel Kuijsten, ed., Reflections on the dawn of consciousness: Julian Jaynes’s
bicameral mind theory revisited (Henderson, NV: Julian Jaynes Society, 2006), 119-21.
169. Citado por Kristen I. Taylor e Marianne Regard, “Language in the right cerebral
hemisphere: contributions from reading studies”, News in Physiological Sciences 18, no. 6
(2003), 258.
171. Daniel Smith, Muses, madmen and prophets: rethinking the history, science,
and meaning of auditory hallucinations (Nova York: Penguin, 2007), 136-140.
172. Simone Weil, Gravity and grace, trad. Arthur Wills (1952; repr., Lincoln:University
of Nebraska Press, 1997), 51.
173. Patrick Wall, Pain: The science of suffering (Nova York: Columbia University Press,
2000), 63.
174. Ludwig Wittgenstein, Philosophical investigations, 2a. ed. (Nova York: Macmillan,
1958), 102e.
175. Segundo uma fonte, foram realizados cerca de três mil estudos a respeito da eficácia
relativa da psicoterapia e da medicação para casos de depressão clínica. A pesquisa
pioneira, que abriu o caminho para as investigações seguintes, foi feita pelo Programa de
Pesquisa Colaborativo para Tratramento da Depressão do Instituto Nacional de Saúde
Mental (Elkin et al., 1985, 1989; Weisman et al., 1986), que demonstrou que vários tipos de
terapias psicológicas eram tão eficazes no tratamento da depressão quanto os medicamento
antidepressivos. Desde então isso tem sido verificado em muitos estudos, especialmente
nos casos de depressão leve ou moderada. Num dos casos, os autores verificaram uma
melhoria considerável em pessoas que usavam medicamentos ou algum tipo de psicoterapia
para a depressão, mas a pesquisa também concluiu que a combinação de antidepressivos
com psicoterapia apresentava uma taxa inferior de tratamentos mal sucedidos do que
apenas o uso de remédios ou terapia, separadamente, e resultavam em menor índice de
internações e melhoria no ajustamento dos pacientes. Burnand et al., “Psychodynamic
Psychotherapy and Clomipramine in the Treatment of Major Depression”, Psychiatric
Services 53, no. 5 (2002): 585-90. For more recent research comparing drugs and
psychotherapies, see Cuijpers et al., “Are psychological and pharmacological interventions
equally effective in the treatment of adult depressive disorders? A meta-analysis of
comparative studies”, Journal of Clinical Psychiatry 69, no. 11 (2008): 1675-85. Também
há um número crescente de pesquisas sobre as alterações neurobiológicas induzidas pela
psicoterapia. Ver Etkin et al., “Toward a neurobiology of psychotherapy”, Journal of
Neuropsychiatry and Clinical Neurosciences 17 (2005), 145-58; bem comos Henn et al.,
“Psychotherapy and antidepressant treatment: evidence for similar neurobiological
mechanisms”, World Psychiatry 1, no. 2 (2002).
177. Mary Douglas, Purity and danger (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1966), 95.
178. Ian Hacking, The social construction of what? (Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1999), 123.
179. Para uma boa introdução a Habermas, ver The philosophical discourses of
modernity; twelve lectures, trad. Frederick G. Lawrence (Cambridge, MA: MIT Press,
1990). Habermas não acredita que possamos saltar para fora de nossa cabeça e nos
tornarmos observadores objetivos do mundo. Mas ele acredita na razão e no discurso
razoável como forma de atingir um consenso. Sua visão da ciência e da tecnologia é
complexa. Segundo seu argumento, os seres humanos podem aplicar o que chama de
“interesse técnico cognitivo”, ou seja, regras técnicas de compreensão, que por meio de seu
uso estendem o controle humano sobre a natureza. Ver Jürgen Habermas, Theory and
practice, trad. John Viertel (Boston: Beacon Press, 1973), 142-69.
180. G. Alacón et al., “Is it worth pursuing surgery for epilepsy in patients with normal
neuroimaging?” Journal of Neurology, Neurosurgery, and Psychiatry 77(2006), 474-80.
181. Oliver Sacks, “Witty Ticky Ray”, The man who mistook his wife for a hat (Nova
York: Summit Books, 1995), 92-101. [Ed. brasileira O homem que confundiu sua mulher
com um chapéu (São Paulo: Companhia das Letras, 1997)]
182. Alice W. Flaherty, The midnight disease: the drive to write, writer’s block and the
creative brain (Boston: Houghton Mifflin, 2004), 234.
184. Antonio Damasio, The feeling of what happens: body and emotion in the making of
consciousness (San Diego: Harvest Harcourt, 1999), 134-43.
185. Michael S. Gazzaniga, Nature’s mind: the biological roots of thinking, emotions,
sexuality, language and intelligence (Nova York: Basie Books, 1992), 2.
186. Stephen Pinker, The blank slate: the modern denial of human nature (Nova York:
Viking, 2002).
187. Para uma discussão inteligente do inato versus adquirido, ver os comentários de
LeDoux sobre o tema em Synaptic self, 82-93. Há um vasto material na literatura cientítica
sobre os efeitos da nutrição materna, bem como da separação materna sobre os filhos que
não é citado por Pinker. Os objetos desses estudos incluem de ratos e camundongos a
primatas e seres humanos. Para uma coleção de 82 estudos de pesquisadores de disciplinas
diferentes, mas relacionadas, ver John T. Cacioppo et al., eds., Foundations in social
neuroscience (Cambridge, MA: MIT Press, 2002). Entre eles há estudos neurobiológicos
em ratos que tratam especificamente da questão da interação genética e ambiental: Liu et
al., “Maternal care, hippocampal glucocortoid receptors, and hypothalamic-pituitary-
andrenal response to stress”; and Francis et al., “Nongenomic transmission across
generations of maternal behavior and stress response in the rat”. Ver também a discussão de
Jaak Panksepp sobre os sistemas cerebrais para envolvimento social e problemas de
separação em Affective neuroscience. Temos uma explosão de literatura de pesquisa sobre
envolvimento de bebês e crianças, um campo em que foi pioneiro John Bowlby, na obra-
prima em três volumes Attachment and loss (Nova York: Basic Books, 1969).
188. D. W. Winnicott, “Ego distortion in terms of true and false self”, in The
maturational processes and the facilitating environment (Londres: Karnac, 1990), 140-52.
189. Henry James, What Maisie knew (Oxford: Oxford University Press, 1996), 22-23.
190. William James, The principles of psychology (1892; repr., Chicago: Encyclopedia
Britannica, 1952), 194.