Gildo Magalhaes - Dialetica Das Controversias

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DOI: 10.1590/s0103-40142018.3294.

0022

Por uma dialética das controvérsias:


o fim do modelo positivista
na história das ciências
GILDO MAGALHÃES I

Mas na história da ciência as coisas funcionam como na própria


ciência: é uma tarefa delicada a de selecionar e avaliar os fatos
“bons”, aqueles que foram importantes, ou mesmo decisivos...
(Thuillier, 1994, p.25)

Introdução

A
da(s) ciência(s) apresenta uma problemática que, apesar de mui-
história
to interessante, não tem sido em geral objeto de seus praticantes. Trata-se
do papel das controvérsias, que ocorrem em dois planos distintos, mas
interligados e a que recorreremos, ocasionalmente passando de um para outro: o
das controvérsias dentro das ciências e o das controvérsias na sua historiografia.
As controvérsias científicas podem levar-nos a reexaminar as hipóteses e
metodologias da história das ciências. Assim, a discussão dos historiadores da
ciência sobre as informações que podem ser tiradas das fontes e as reflexões que
já foram efetuadas a respeito de textos e suas narrações em geral têm a possibili-
dade de conduzir a novas abordagens de temas sobre os quais não se esperavam
mais avanços. Com isso, ampliam-se as oportunidades para orientações meto-
dológicas fecundas, narrativas mais inovadoras e um alargamento do interesse
despertado pela história das ciências.
Vem crescendo a compreensão de que as controvérsias são tanto inevi-
táveis nas ciências quanto fundamentalmente benéficas. Realçar a história das
ciências como história das controvérsias científicas apresenta o máximo interesse
porque muitas dessas controvérsias do passado continuam extremamente atuais
e, ao mesmo tempo, é um privilégio do conhecimento científico alimentar-se
tanto de controvérsias quanto de ortodoxias. Algumas dessas controvérsias atu-
ais incluem: a essência dos átomos e das chamadas “partículas”; a existência do
éter luminoso; como se dá o surgimento de novas espécies biológicas e qual é
a natureza da vida; a ressurreição do lamarckismo frente à ideologia darwinista;
origem e dimensões do universo; formação e distribuição total dos elementos
químicos; evolução do clima etc.
Saindo das ciências naturais, na história em geral está-se mais acostumado
com as controvérsias que envolvem as fontes e suas interpretações, característica

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que não deixa de ser um reflexo da grande complexidade que cerca as ciências
humanas. Talvez por isso, seja relativamente recente o renovado interesse das ci-
ências naturais pela história das controvérsias em que estão envolvidas. De fato,
estamos convictos de que uma maior atenção dada pelos historiadores às contro-
vérsias científicas como sendo o primum movens do avanço desse conhecimento
impactaria favoravelmente ambos os campos: conhecer melhor as características
das ciências naturais e aprofundar a pesquisa do “passado das ciências como his-
tória” (na expressão de Gavroglu, 2007). Para esse objetivo é, porém, necessário
ultrapassar certos problemas decorrentes da adoção, ainda que inconsciente-
mente, da visão positivista da história das ciências e para isto apontaremos para
uma possibilidade de solução.
No Brasil, ao contrário do que sucede no Hemisfério Norte e mesmo em
alguns países latino-americanos (notadamente no México), não tem havido en-
tre historiadores da ciência uma discussão continuada, com profundidade analí-
tica e coerência sistemática, sobre controvérsias metodológicas e historiográficas
próprias desse campo. Tal debate ocorreu entre nós muito brevemente no pe-
ríodo inicial da implantação institucional da história das ciências na década de
1970 (e observamos de passagem, que este começo se deu no Departamento de
História da USP), mas depois o que se observa em geral é uma escolha pessoal
dos pesquisadores por uma determinada corrente metodológica, sem uma troca
de opiniões a esse respeito.1
O tema das controvérsias, se ainda não recebe a devida atenção dos histo-
riadores da ciência em geral, é tangenciado por alguns filósofos da ciência, que
estão porém mais preocupados com questões internas de discurso e da lógica
das controvérsias do que com seus fundamentos históricos.2 Todavia, o conhe-
cido texto de Francis Bacon, O progresso do conhecimento (1605), já postula uma
história do conhecimento que sirva menos para satisfazer a curiosidade do que
para um desígnio de instruir os sábios para o uso do saber em meio a contro-
vérsias. Foi dentro do programa baconiano que resultaram as primeiras obras de
histórias de ciências particulares, que surgiram notadamente a partir do século
XVIII. 3
Ao trabalharmos com essas fontes precursoras numa pesquisa sobre a his-
tória do movimento filosófico-científico alemão chamado de Naturphilosophie,
além de comprovar a força das controvérsias científicas, evidenciou-se a persis-
tência das fontes metafísicas de problemas científicos, que não se restringem à
era (mal considerada) do “romantismo” científico da Naturphilosophie, mas
trazem contribuições para os fundamentos da ciência atual (Magalhães, 2017,
p.153-238).
A herança do positivismo e suas fraturas
Em especial nos séculos XIX e XX despontou uma vertente, por alguns
chamada de “estilo francês” de história das ciências, que se reveste de um caráter
particularmente filosófico e crítico. Essa característica está presente na constitui-

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ção da história das ciências como disciplina autônoma e deve muito a Auguste
Comte e seu Curso de Positivismo. Não negamos a importância fundamental de
ideias positivistas nem examinaremos aqui algumas sutilezas desse pensamento
sobre a história das ciências que escaparam a muitos de seus continuadores,
mas registramos que Comte foi pioneiro ao demandar ao Collège de France
em 1832 a criação de uma cátedra de “história geral das ciências”. A proposta
vingou apenas em 1892, quando um discípulo direto de Comte, Pierre Lafitte,
tomou posse da nova cadeira (Braunstein, 2008).
No final do século XIX, os primeiros historiadores profissionais da ciência,
como o francês Paul Tannery e o belga Georges Sarton, tinham em comum
com essa base positivista quatro ideias programáticas, que foram tomadas como
fundamentos da historiografia, mas que continham os germes que propiciam sua
contestação, como comentado a seguir:
a) A ciência é a mais alta atividade humana e fazer sua história permite
compreender melhor os avanços do espírito humano.
Que tipo de história seria feita nesse contexto? O modelo foi ditado pelo
já citado Lafitte, ao discursar em 1892 na inauguração do curso geral de história
das ciências, reafirmando sua crença de que chegara o momento em que a ciência
deveria assumir a direção dos assuntos humanos. Essa perspectiva caminhava de
par com sua insistência nos “grandes nomes” das ciências. Em decorrência, a sua
será uma história “heroica”, próxima da história de nomes e datas, traço ainda
dominante na concepção de muita história que se escreve, centrada em “grandes
vultos e suas façanhas” como Galileu, Newton, Darwin, Einstein e outros. 4
b) A história das ciências não deve ser uma história das ciências particu-
lares, mas uma “história geral”, uma vez que as ciências se desenvolvem simul-
taneamente e sob a influência umas das outras.
Embora seja importante ressaltar a interdisciplinaridade das diversas ciên-
cias, a ambição de abrangência global acabou na prática dificultando sua execu-
ção, dado o crescimento desmesurado dos campos científicos e da capacitação
necessária para se debruçar sobre todos eles, a não ser permanecendo num nível
de elevada generalidade.
c) A história das ciências tem um viés político e permite ultrapassar precon-
ceitos nacionalistas e religiosos, pois acolhe a fé humanista no papel pacificador e
internacionalista de que a própria ciência é portadora.
Essa audaciosa crença infelizmente vem sendo contínua e crescentemente
contrariada pelo uso bélico da ciência. 5
d) A história das ciências é evolucionista, no sentido de que não há revo-
luções científicas, mas uma continuidade em que novas verdades absorvem as
antigas, desenvolvendo-as.
Como entender, contudo, as transformações das ciências que, à primeira
vista, parecem radicais, à luz da célebre fórmula positivista de que “o progresso

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nada mais é do que o desenvolvimento da ordem”? Julgamos que essas colo-
cações evolucionistas ainda merecem discussão, pois suas contestações levam a
posturas metodológicas interessantes. Assim entendida, a história das ciências
não seria uma simples narração de fatos, mas “teria a finalidade de compreen-
der o desenvolvimento do pensamento humano e a própria história da humanida-
de”.6 Perceber, contudo, a história das ciências como um progresso contínuo e
dogmático da razão é uma simplificação que pode não corresponder ao que se
verifica. A visão linear de progresso do espírito humano, que seria atestada pela
história das ciências, foi abalada por dois motivos principais, que se interpene-
tram: a Primeira Guerra Mundial trouxe o pessimismo tipicamente expresso por
Oswald Spengler em sua história da decadência do Ocidente. Em segundo lugar,
houve uma ruptura da ciência com o racionalismo, representado em especial
pela mecânica quântica, cuja formulação altamente matematizada, mas insatis-
fatória porque não causal, se deu diretamente sob a influência do ambiente de
pessimismo spengleriano da república de Weimar.7
A concepção positivista de ciência subsiste, com diferentes nuanças, mes-
mo nos dias atuais e é, possivelmente, o maior obstáculo para a apreciação da
importância das controvérsias científicas na história, pois em sua perspectiva his-
toriográfica os fatos científicos são vistos como brotando acriticamente e auto-
maticamente das experiências levadas a cabo pelos cientistas. Pelo contrário, ao
levantar uma série de casos históricos, verificamos a existência de um filtro das
ideias condutoras previamente à observação da natureza e à realização das expe-
riências científicas.
Destacamos que a prática de uma história das ciências de base positivista
não favorece a posição ativista que foi citada de início: a de que a história da
ciência seria essencial não só para entender seu desenvolvimento, mas porque
levaria a melhor aprender e praticar ciência(s) – e especialmente numa época em
que o aproveitamento escolar em ciências no Brasil é avaliado como tendo um
padrão muito baixo, comparado com outros países, inclusive latino-americanos.
Três vertentes de controvérsia historiográfica das ciências
A comunidade de história da ciência até a década de 1920 teve um pa-
pel relevante para que, nesse período, fossem disponibilizados alguns instru-
mentos de trabalho fundamentais, tais como biografias, bibliografias, edições e
traduções de obras científicas clássicas, revistas, sociedades e institutos ligados
à academia. Entretanto, faltava se estabelecer ainda preceitos metodológicos e
teóricos mais precisos. Efetivamente, foi o russo Alexandre Koyré quem propôs
na década de 1930 alguns desses conceitos fundamentais, em meio a controvér-
sias que ainda dividem os historiadores. Escolhemos em particular três grandes
querelas metodológicas, de que tratamos a seguir, devido à frequência com que
elas comparecem na historiografia, mesmo quando não nomeadas.
Externalismo e internalismo
A controvérsia que opõe o externalismo contra o internalismo foi deflagra-

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da no II Congresso Internacional de História das Ciências, em Londres (1930),
quando a delegação soviética, chefiada por Nikolai Bukharin, compareceu e apre-
sentou, entre outras, uma comunicação de Boris Hessen com o título sugestivo
de “As raízes sociais e econômicas dos Principia de Newton”.8 Interpretando o
mecanicismo newtoniano como uma expressão dos interesses da burguesia, Hes-
sen concluía que os temas e técnicas de matemática estudados por Newton eram
compatíveis com algo externo ao desenrolar da pesquisa científica em si: o desen-
volvimento no século XVII de objetivos ligados à ascensão do capitalismo, tais
como a navegação, os cálculos de balística naval e o projeto de bombas para es-
gotar a água nas escavações de mineração. Para Hessen, a filosofia de Newton foi
limitada pela sua crença, que seria também burguesa, na natureza inerte da ma-
téria, o que fez com que o sábio inglês recorresse à mão de Deus (o “relojoeiro”,
em sua famosa metáfora) para colocar o Sol e os corpos celestes em movimento.
A chamada “tese de Hessen”, nome dado em referência a esse historiador
e ligado à procura dos fundamentos de qualquer teoria científica não em sua ló-
gica interna, mas externamente em fatores sociais e econômicos, não foi seguida
à risca, a não ser por alguns cientistas que se tornaram conhecidos historiadores
da ciência e eram membros do Partido Comunista Britânico, como o físico John
Bernal, o bioquímico John Haldane e o embriologista Joseph Needham.
Este último se tornou um conhecido sinólogo e se dedicou nas seis déca-
das seguintes ao Congresso de Londres a estudar a ciência chinesa. Divulgou-se
assim a controvérsia que ficou conhecida como “problema de Needham”: por
que a ciência moderna como a conhecemos foi criada na Europa e não na China,
dado o grande desenvolvimento chinês em vários campos do conhecimento? A
questão continua a ser intensamente debatida desde a resposta externalista dada
pelo próprio Needham, de que apesar de a ciência chinesa ultrapassar a europeia
até o Renascimento, a burocracia feudal da China menosprezava sua burguesia
comercial, que permaneceu tímida e não impulsionou o desenvolvimento cien-
tífico e técnico. O “problema” se tornou a “tese de Needham”, segundo a qual
a institucionalização da ciência dependeu da eclosão de um capitalismo pujan-
te, como ocorreu no Ocidente. Trata-se de uma controvérsia historiográfica de
grande porte, bastante difundida nos foros internacionais, pois discute como
teria sido o desenvolvimento da ciência em outros continentes, fora da pers-
pectiva eurocêntrica. O problema de Needham quase não tem tido repercussão
no Brasil, onde seria bem-vindo no debate sobre o advento tardio das relações
capitalistas modernas e o baixo desempenho da ciência e da educação no país.
Pode-se considerar que a controvérsia lançada por Hessen também está na
origem do doutorado do sociólogo Robert Merton. Em Ciência, tecnologia e
sociedade na Inglaterra do século XVII, Merton explorou duas afirmativas exter-
nalistas, primeiramente sublinhando a importância dos técnicos e suas práticas
no desenvolvimento da ciência clássica, como os marinheiros na determinação
da longitude no mar ou na medição da declinação magnética das bússolas. Sua
segunda conclusão, fortemente apoiada em Max Weber e que passou a ser co-

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nhecida como “tese de Merton”, é que a ética protestante dos puritanos consi-
derou a razão e a experiência exercitadas na ciência como meios independentes
adequados para provar verdades religiosas. Para Merton, o puritanismo deu ên-
fase ao empirismo, ascetismo, livre exame e utilitarismo, que desempenharam
um papel importante para o desenvolvimento científico. Seguiu-se então uma
tradição de controvérsia historiográfica, pois essa tese recebeu fortes críticas des-
de sua publicação, inclusive em estudos posteriores que defenderam a contribui-
ção dos católicos à ciência.9
Ainda dentro da controvérsia externalista, há que citar o trabalho que
Edgar Zilsel apresentou no Congresso pela Unidade da Ciência (1939). Co-
nhecido como “tese de Zilsel”, mantém que o nascimento da ciência moderna
ocorreu no Renascimento e se deveu à aproximação operada pelo incipiente ca-
pitalismo moderno entre três categorias, até então sem comunicação direta: uni-
versitários, humanistas e artesãos-engenheiros.10 A redescoberta dos trabalhos
de Edgar Zilsel está na base dos estudos sobre os filósofos e as máquinas, feitos
por Paolo Rossi e também nas narrativas recentes que dão um lugar privilegiado
para os trabalhadores anônimos que participaram na história das ciências junto
com os “grandes nomes”.
Segundo a crítica de Koyré, a partir de seus Estudos Galilaicos (1939),
explicações tão externalistas como as quatro teses mencionadas (de Hessen,
Needham, Merton e Zilsel) teriam negligenciado dois fatores determinantes
para o desenvolvimento da ciência: o interesse puramente teórico na matemáti-
ca, ligado à redescoberta renascentista da ciência grega e o estudo continuado
da astronomia, também estimulado mais pelo interesse teórico do que prático.
Essa visão de Koyré, considerada por muitos como “internalista”, defende que
a ciência é antes de tudo theorein, a busca da verdade por meio do itinerarium
mentis in veritatem, revelável pela história da ciência.11
Historiadores da ciência de orientação política conservadora têm atacado
as explicações externalistas por sua aproximação ao marxismo. Quer nos parecer
que, pelo contrário, a posição de Koyré em Do mundo fechado ao universo infini-
to ainda seria defensável e compatível com a proposta, que apresentaremos mais
à frente, de uma dialética das controvérsias. Por um lado, é uma ilusão admitir
uma ciência “pura” ou “neutra”, fora de influências externas.12 Por outro lado,
se para bem entender a história de um tópico científico é preciso adentrar a sua
parte técnica ou “interna”, por outro tem-se que incluir a ação forte de variáveis
externalistas, não só por meio de influências socioeconômicas, mas também pela
via da cultura que atua na contemporaneidade dos cientistas.
Continuísmo e descontinuísmo
Uma segunda controvérsia separa os historiadores da ciência e que teria
inicialmente oposto os praticantes de cultura francesa e os anglo-saxônicos, em
torno da opção entre continuísmo ou descontinuísmo (ou ainda, em outro lin-
guajar, ruptura, revolução).

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O grande nome a favor do continuísmo na fase profissionalizante no início
do século XX foi o historiador francês Pierre Duhem, que adotou uma posição
ativista com relação à ciência e não se furtou a emitir julgamentos acerca de
seu valor epistemológico. Em estudos memoráveis sobre a origem da ciência,
Duhem sustentou que a mecânica moderna deriva de uma série ininterrupta
e lenta de aperfeiçoamentos de doutrinas professadas no seio da Idade Média,
como a teoria do ímpeto e a geometria do contínuo matemático. Para ele, uma
teoria, mais do que a função de explicar, atua para “salvar os fenômenos” (sózein
ta phainómena), expressão grega com que se referia não só aos hábeis artifícios
da astronomia ptolomaica, mas também às explicações dadas a respeito do he-
liocentrismo por Copérnico e Galileu.
A controvérsia se intensificou quando Gaston Bachelard, um filósofo co-
nhecido por sua escrita particularmente poética, se opôs ao continuísmo de
Duhem. Em seu O novo espírito científico (1934), Bachelard gestou as noções
de “mutação intelectual” e “corte epistemológico”, não no sentido de “revolu-
ção”, mas ainda restritas para designar a ruptura entre o senso comum e o co-
nhecimento científico. Seu discípulo Georges Canguilhem também investigou a
tradição do continuísmo, levando-a ao próprio campo interno à ciência em seu
doutorado, publicado como O normal e o patológico, em que se pergunta se seria
descontínua a transição entre saúde e doença. Cremos, no entanto, que Cangui-
lhem tem uma posição mais elaborada e se distancia do descontinuísmo absoluto
de Bachelard, admitindo que as revoluções científicas, em suas palavras, “não se
fazem sem conservação da herança”. Seria então justa a sua crítica ao que chamou
“vírus do precursor”, tão comum em certas histórias das ciências e técnicas, para
identificar quem primeiro criou uma dada teoria ou fez certa invenção? Nessa
controvérsia cremos que a discussão não seria tanto a existência ou não de des-
continuidades, mas sim em torno da natureza dessas.
Um tipo especial de descontinuidade metodológica foi introduzida nes-
sa controvérsia pela epistemologia de Karl Popper, ao recusar a verificação da
verdade científica com base no acúmulo indutivista de fatos particulares tidos
como verdadeiros. Teorias poderiam vir a ser experimentalmente refutadas (ou
“falseadas”, na nomenclatura popperiana), mas enquanto não ocorresse essa
descontinuidade, as ciências avançariam por meio de um acúmulo continuado
de conjecturas no máximo plausíveis, mas inverificáveis. Popper tem em comum
com Duhem a noção de ciência como busca de uma verdade inatingível, empre-
endimento sempre frustrado, porém nunca abandonado.
A clivagem causada pela controvérsia entre permanência e ruptura se inten-
sificou a partir do surgimento em 1962 de A estrutura das revoluções científicas,
de Thomas Kuhn. Lançado dentro do projeto da “enciclopédia do movimento
pela unidade da ciência” (por sua vez apoiado pelo positivismo lógico do Cír-
culo de Viena), e retomando algumas conclusões de Koyré que Kuhn já havia
assumido em A revolução copernicana (1957), esse defendeu que a história das

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ciências é constituída por longos períodos de “ciência normal” ou paradigmática,
entremeados por alguns períodos de crise que precedem as “revoluções científi-
cas”, encaradas como grandes saltos descontínuos. Durante a fase dita “normal”,
os cientistas se unem em torno de um consenso teórico-prático, que passa a ser
confrontado por anomalias em determinado momento. Caso persistam anoma-
lias insanáveis, o consenso se desfaria e surgiriam de forma não cumulativa o que
seriam “revoluções científicas”, exigindo uma reconstrução da visão de mundo.
O livro de Kuhn teve uma recepção inédita e sua influência ultrapassou as
fronteiras da história das ciências. Espraiando-se também pela filosofia e sociolo-
gia, boa parte desse êxito se deve aos praticantes de diversos campos das ciências
tanto naturais quanto humanas se reconhecerem antes na descrição kuhniana
do que no falsificacionismo popperiano como praticantes de uma ciência para-
digmaticamente normal. O descontinuísmo de Kuhn será retomado por autores
como Althusser e Foucault, que vão justapô-lo à noção de corte epistemológico
defendida por Bachelard.
É interessante notar como o anticontinuísmo de Kuhn veio reforçar a con-
trovérsia entre externalismo e internalismo, invocando na disputa o tema da
chamada “revolução científica” moderna, que teria ocorrido entre os séculos
XVII a XVIII. O reforço teve também razões históricas conjunturais, pois a
controvérsia se expandiu no período da guerra fria. O que estava então em jogo
era qual deveria ser o papel do Estado na impulsão dada em direção a novas e
desejadas “revoluções científicas”: externalista, com forte participação estatal
na política científica e tecnológica, como preconizavam posições mais à esquer-
da, ou internalista, defendida pelo conservadorismo neoliberal, deixando que o
“mercado” fosse o condutor.13
Nesse contexto, observamos que a expressão “estilo de pensamento” ha-
via sido usada por um historiador que Kuhn considerou ter sido seu precursor,
o polonês Ludwik Fleck, em sua obra de 1935 sobre a sífilis, Gênese e desenvol-
vimento de um fato científico. Para Fleck, entretanto, os estilos evoluiriam numa
duração mais longa (ao contrário dos paradigmas de Kuhn ou das epistemes de
Foucault). Nessa direção seria possível uma pluralidade de estilos, o que colo-
caria em xeque a noção tradicional de “método científico” no singular, ou seja,
não haveria um método único e para sempre válido para as ciências, mas sim
métodos plurais.14 Além disso, para Fleck o estilo de pensamento não é algo
individual, mas coletivo, pois reflete um clima intelectual social. Nesses termos,
a controvérsia do continuísmo versus descontinuísmo pode então ser repensada
no modo como a introdução de novos estilos de pensamento convive com a
relativa persistência de outros estilos.
Nesse ponto, é interessante recordar a visão iconoclasta de Paul Feyera-
bend, um “dadaísta” das ciências (rótulo que ele preferia ao de “anarquista”)
para quem não apenas não existiria um único “método científico”, mas o avanço
da ciência poderia se dar até por métodos considerados irracionais e, portanto,

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não científicos. Em Contra o método (1975), fugindo de uma sociologia avessa a
controvérsias, e se distanciando tanto de Popper quanto de Kuhn, Feyerabend fez
uma aproximação entre continuísmo e descontinuísmo que tem sido pouco visita-
da entre nós e muita caricaturada. Isso se deve provavelmente ao exagero das suas
provocações a desafiar o establishment científico quando defende que na ciência,
em suas palavras, “vale tudo”, desde práticas mágicas ao curandeirismo. Em favor
de Feyerabend, notamos que há toda uma tradição que resiste e teima em definir a
ciência e seu funcionamento através de um reducionismo tautológico, que reside
na pretensão de descrever um método, para explicar o que é um método. Incon-
táveis manuais ditos de “metodologia científica” se apoiam nesse recurso na ten-
tativa de ensinar como proceder “cientificamente”. Nesse ângulo da controvérsia
do continuísmo opinamos que faria mais sentido um outro enfoque da crítica ao
racionalismo, em que se poderia deixar uma porta aberta para a entrada de insights
diretos na percepção do funcionamento da natureza, à maneira fenomenológica,
isto é, sem a obrigatoriedade de formalismos lógico-matemáticos.15
Aqui vamos aproximar o plano das controvérsias historiográficas ao plano
das controvérsias científicas. Podemos supor que há uma espécie de “matrizes
de ideias” (ou Ur-ideias na terminologia filosófica alemã), que estão na base de
conceitos científicos, que com o tempo são criticados e se transformam, mas per-
mitindo estabelecer alguma continuidade das ideias numa pluralidade de con-
textos extracientíficos. Contra o positivismo lógico podemos, através da análise
de casos históricos, reafirmar que o continuísmo no plano das ideias implicaria
que não existe uma observação que emane dos “fatos” ou que seja “simples”,
pois mesmo a observação mais elementar seria o resultado de uma aprendiza-
gem conforme o estilo de pensamento do observador, que não costuma ver
além do que está predisposto a ver, e que além disso se enraíza no coletivo. Em
outras palavras, a teoria ditaria o que será observado, e não vice-versa – conclu-
são que a muitos cientistas pareceria absurda, à primeira vista, mas que assim se
revela na história das ciências.
Whiggismo e historicismo
A terceira controvérsia da historiografia da ciência que destacamos é a que
opõe o historicismo ao whiggismo, termo às vezes traduzido como “presentis-
mo”, e para o qual propomos “triunfalismo”, atentando à supremacia whiggista
na historiografia autolaudatória vitoriana da segunda metade do século XIX.
Esse debate remete ao livro de Herbert Butterfield (1931), A interpre-
tação whiggista da história, em que critica os historiadores que escrevem do
ponto de vista dos vencedores, projetando o passado no tempo presente e pro-
duzindo uma história anacrônica, pela justificação determinista e glorificação do
presente. Inicialmente dirigida à história política, o próprio Butterfield estendeu
a crítica para o caso da história das ciências, quando essa se prende à narrativa
heroica que vê na ciência do passado o anúncio das verdades da ciência atual, em
decorrência da suposta ação inevitável do avanço científico (Butterfield, 1991).

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Nessa controvérsia historiográfica pensamos que há limites para a obsessão
contra o anacronismo do tipo triunfalista (Jardine, 2000). Koyré, por exemplo,
que também rejeitava a história triunfalista, admitia contudo que o historiador
projete os interesses e valores de seu tempo para reconstruir o passado das ciên-
cias. Em suas palavras, com uma pitada de ironia, “é por isto que a história se
renova e que nada muda tão depressa como o passado imutável” (Koyré, 1991).
Nesses termos se valoriza a tese de que o presente é que ilumina o passado. Con-
tra uma ideia de “objetividade” a todo custo, esse historiador da ciência pro-
põe a necessidade de conhecer bem o presente para conseguir julgar o passado,
admitindo expressar seus juízos de valor a respeito.16 Isso está em ressonância
igualmente com Bachelard, que retoma Nietzsche, para quem o passado deve
ser interpretado com a grande força do presente, ideia que ecoa também nos
inícios da história das mentalidades na corrente dos Annales. Em consequência,
o passado de uma ciência não se confundiria com a mesma ciência no passado,
ou seja, o passado não estaria dado, mas admitiria ser reconstruído a partir de
questões colocadas pela ciência contemporânea.
Um exame da produção internacional em história das ciências nos últimos
40 anos mostra um campo permanentemente entrecruzado por controvérsias
do teor apontado.
Os adeptos de uma leitura kuhniana, por exemplo, segundo a qual o cri-
tério para decidir sobre a verdade de uma teoria científica é o consenso dos
cientistas, se conjugaram com a influência do relativismo da linguagem do Wit-
tgenstein das Investigações filosóficas. Isto abriu as portas para uma renovação da
sociologia das ciências, bem ilustrada pela “Escola de Edimburgo”, liderada por
David Bloor a partir de meados da década de 1970. Bloor e Barry Barnes sinte-
tizam o que chamam de “programa forte da sociologia das ciências” em torno
de quatro princípios, igualmente plenos de controvérsias: causalidade, imparcia-
lidade, simetria e reflexividade (Bloor et al., 1996). Como um dos efeitos dessa
linha, surgiram nas universidades do mundo anglo-saxão os “SSS”, ou Social
Studies of Science, que provocaram um deslocamento do tradicional domínio
da história das ciências pela física e astronomia para outras ciências, como a
biologia, medicina, geologia e as ciências humanas. Olhar para as ciências como
ancoradas na vida prática e local se tornou um dos objetivos dessa história, que
incorporou em sua metodologia a teoria das redes sociais e a construção de fatos
científicos por meio da negociação.17 Esse tipo de abordagem foi seguido no
conhecido livro de Steven Shapin e Simon Schaffer, Leviatã e a bomba de vácuo
(1985), em que mostram como a controvérsia sobre a existência do vácuo entre
Boyle e Hobbes traduz por detrás das aparências uma série de oposições políti-
cas, epistemológicas, retóricas e metafísicas.
Um aspecto relevante dessa tendência é que a escolha de objetos mais va-
riados de estudo como museus, gabinetes de curiosidades ou jardins zoológicos
mostrou que tanto a arquitetura desses locais quanto a disposição de objetos ne-

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les (inclusive instrumentos científicos) podem ser historicamente significativos.
Também se dispensou atenção à formação das próprias disciplinas científicas,
seus critérios aceitos de cientificidade, métodos de raciocínio e de estabeleci-
mento de fatos e provas. Nessa direção se valorizaram ainda os estudos de ciên-
cias “nacionais” que, longe de defenderem aspectos nacionalistas, enfatizaram
a maneira de praticar a ciência estabelecendo-se tradições locais de pesquisa.18
Amparados por perspectivas advindas da sociologia e antropologia, os
Social Studies of Science têm conhecido uma crescente popularidade, que se
verifica também nas universidades brasileiras pelo número de candidatos à pós-
-graduação que pretendem seguir nesta linha metodológica.
No entanto, essa tendência gerou novas controvérsias historiográficas, já
que por ela a história das ciências tem se orientado para objetos cada vez mais
restritos e efêmeros, constituindo frequentemente uma micro-história sem con-
teúdo epistemológico.19 Levado ao extremo, o antitriunfalismo conduziu às
teses de uma sociologia das ciências, para quem o historiador deve se comportar
como se a verdade ou falsidade de uma tese científica do passado não tivessem
ainda sido estabelecidas. O estudo de Bruno Latour sobre o debate da geração
espontânea entre Pasteur e Pouchet é um conhecido exemplo de apresentar a
história do ponto de vista do vencido (Latour, 1996). Não estaria assim a Histó-
ria das Ciências recaindo em outro tipo de positivismo, no qual a reconstrução
da atividade científica decorreria automaticamente da identificação dos conflitos
locais de grupos e suas disputas pelo poder? O risco que comporta essa tendên-
cia à micro-história é ignorar que, apesar do interesse, justificativa e utilidade
que possam ter esses estudos, as ciências tenderiam a ultrapassar as condições
locais, contingentes e particulares de seu aparecimento.
A superação do problema: dialética das controvérsias científicas
O levantamento analítico antecedente mostra alguns impasses metodoló-
gicos. Julgamos que há um caminho que não tem sido suficientemente trilhado
e que poderia contribuir para avançar o conhecimento historiográfico das ciên-
cias: trata-se de valorizar o papel dialético das controvérsias científicas, e que
poderia ser frutífero tanto para o fazer científico quanto para sua historiografia.
Não consideramos superada a controvérsia do dualismo entre internalis-
mo e externalismo, e acentuamos que a primazia para se entender o passado das
ciências deve ser constituída pelas múltiplas contribuições externas, em que a
atividade científica está imersa no tecido social e econômico e sem esquecer o
sentido amplo de “externo”, que inclui as ideias filosóficas e o ambiente cultural.
Evidentemente também devemos estar atentos às vias internas de desenvolvi-
mento de uma ciência.
Desse ponto de partida decorre que aceitemos que as ideologias permeiam
o desenvolvimento científico e que isto não seria bom ou mau em si, mas sim-
plesmente inevitável. Uma ideologia científica não é necessariamente uma falsa
ciência ou uma superstição – por exemplo, o modelo ptolomaico é perfeita-

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mente científico e assim foi usado; a sua validade e praticidade é que entram
em questão, a partir de certa escala dos fenômenos examinados. Referimo-nos
naturalmente à mudança de referencial para descrição do movimento planetário,
que pode ser arbitrariamente escolhido como a Terra ou o Sol.
A construção de teorias que permitam um conhecimento cada vez mais
aprofundado da natureza e suas aplicações científicas tem sido um empreendi-
mento de duração relativamente longa. O avanço científico não é em curto pra-
zo inevitável exatamente devido à existência contínua de controvérsias científi-
cas, o que nos faz reconhecer a existência de múltiplos caminhos e métodos que
podem impulsionar, mas também fazer regredir o conhecimento. No processo
somos levados a deixar de lado a rígida demarcação de fronteiras nítidas entre
prática (techné) e teoria (epistéme), assim como entre ciências puras e aplicadas,
passando a valorizar mais as aproximações do que seus distanciamentos.
Percebemos assim que há semelhanças entre as controvérsias da face histo-
riográfica das ciências e o núcleo interno de controvérsias científicas. Para escla-
recer melhor nossa proposta podemos exemplificá-la com a questão do continu-
ísmo e que se evidencia numa grande quantidade de teorias científicas. É a antiga
questão da continuidade: a natureza dá saltos? O debate aparece seja na física
clássica, seja na física atômica. Na biologia ele se traduz no clássico problema
do surgimento de novas espécies, fenômeno descontínuo que não se conseguiu
observar na natureza nem em laboratório. Em geologia a transformação ligada à
formação de montanhas, continentes, mares e outros fenômenos passou de uma
teoria explicativa de evolução catastrofista para a de uma lenta transformação
continuísta. Poderíamos acrescentar muito mais controvérsias que envolvem de
uma maneira ou de outra a continuidade.

O problema da continuidade na natureza tem uma homologia com as


transformações históricas em geral. Nessas a questão aparece nas discussões so-
bre revoluções socioeconômicas e outras mudanças – industriais, culturais etc.
– suscitando a dúvida sobre a essência e a continuada permanência de tais rup-
turas nas estruturas sociais e econômicas mais profundas da sociedade, inclusive
daquelas que adentram profundezas psicológicas – qual é o caráter das transfor-
mações naturais e humanas em geral?
Para que as controvérsias científicas possam ser visitadas com maior pro-
veito pelos historiadores da ciência, sugerimos que, além de fazê-lo virando os
olhos para o passado, se investigue se elas se mantêm no presente, mesmo mu-
dando de roupagem. Assim se evidenciaria a dialética histórica em que teorias e
seus protagonistas que foram aparentemente vencidos fornecem subsídios para
releituras e novas sínteses, tanto do lado historiográfico quanto científico.
Nossa proposta suscita ainda uma indagação: como deve o historiador se
portar ante o entendimento simplista da ciência e da história das ciências que
predomina na educação e nos meios de divulgação? O mais comum é que na

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mídia uma notícia sobre ciência ignore totalmente a existência de controvérsias
e a apresente com base no argumento de autoridade, scientia dixit. A resposta
para isso seria mostrar como a história das ciências é uma história de controvér-
sias e que a entendendo assim, podemos compreender melhor como a ciência
funciona no presente: não como acúmulo de certezas inquestionáveis, mas sim
como um processo de busca que recomenda a humildade em meio a incertezas.
Defendemos, portanto, que a exposição e narrativa das controvérsias lança
uma história que busca a inserção social, econômica e cultural do conhecimen-
to, permitindo-nos escapar de padrões positivistas de diversos matizes. Em es-
pecial, acreditamos que isso teria um grande atrativo para o ensino de ciências
naturais em todos os níveis e para o desenvolvimento dessas próprias ciências.
Nessa possibilidade de aplicação, a história das ciências teria importância para a
metodologia do trabalho científico porque permitiria vislumbrar possibilidades
de desenvolvimento interno futuro. As aparentes certezas de hoje seriam relati-
vizadas pela inevitabilidade de controvérsias, em permanente criação e recriação.
Do ponto de vista epistemológico, quer-nos parecer que olhar para a dia-
lética das controvérsias científicas como metodologia historiográfica equivale a
reconhecer que o verdadeiro motor do desenvolvimento científico não está em
noções apenas de método, mas sim na existência permanente de sínteses geradas
pelas controvérsias, pelos erros e acertos na ciência. Nesta abordagem dificil-
mente reconhecemos um período de ciência “normal”, pois a ênfase nas contro-
vérsias ressalta a importância epistemológica e histórica de que a ciência esteja
sempre em crise, pois é assim que brotam novos resultados. A discordância e
falta de consenso são essenciais, pois funcionam para que não haja estagnação do
conhecimento científico, distinguindo-se de outras atividades humanas em que
a ortodoxia possa ser a regra. Sem esse entendimento dialético, a ciência acabaria
por sucumbir à intolerância porque seria dominada por dogmas e paradigmas,
como uma religião.
Dessa maneira acreditamos que a história das ciências poderia funcionar
como ponte para transpor o famigerado abismo entre “duas culturas”, entre
humanidades e ciências naturais, e realizar a verdadeira interdisciplinaridade e
a intradisciplinaridade, tão almejadas, mas pouco praticadas. Se há algo que a
ciência possa aprender da história será entender seu avanço como resultado da
dialética das suas controvérsias.

Notas
1 Para essas primícias, ver Motoyama (1974); Academia de Ciências do Estado de São
Paulo, Anais do Simpósio sobre Filosofia da Ciência, Aciesp n.12, 1978; Anais do Sim-
pósio sobre História e Filosofia da Ciência, Aciesp n.23, 1979.
2 É o caso do filósofo brasileiro Marcelo Dascal (formado na Escola Politécnica da USP,
mas radicado em Israel) e seu grupo. Ver Perspectives on Theory of Controversies and the

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Ethics of Communication: Explorations of Marcelo Dascal’s Contributions to Philoso-
phy (Doordrecht: Springer, 2014).
3 Refiro-me, entre outros, a títulos como História da medicina, em que se vê a origem
e o progresso desta arte, de Daniel Le Clerc (1702), a História das matemáticas, de
Jean-Étienne Montucla (1758), ou ainda a História e estado atual da eletricidade, de
Joseph Priestley (1767), tratado que influenciou notável e diretamente as pesquisas
científicas desse campo durante um bom tempo.
4 Biografias científicas, é claro, fazem parte da história da ciência, mas aqui deve-se dis-
tinguir a investigação historiográfica crítica, como preconizavam os Annales, e para a
qual um destaque é a biografia exemplar de Agassi (1971), em contraste com obras de
divulgação, como Einstein, sua vida, seu universo, de Isaacson ( 2007).
5 Cf. Robert Fox discorreu em “Mapping the universe of knowledge: internationalism
and national interest in modern science”, 2014 Fall Conference, Chemical Heritage
Foundation (Filadélfia). Notas pessoais.
6 Declaração de Georges Sarton ao fundar a revista Isis em 1913 (ainda hoje a publi-
cação central da disciplina, levada para os Estados Unidos quando seu idealizador
emigrou durante a Primeira Guerra, e onde organizaria a Sociedade Americana de
História da Ciência). Sarton vê esse desenvolvimento sob a óptica interessante de que
o progresso das ciências é o único progresso contínuo e inegável a ponto de permitir
comparar toda a humanidade a um único homem, como aliás afirmava Blaise Pascal
(1989) em seu Tratado do Vácuo (1647).
7 Esse diagnóstico do irracionalismo numa atividade racional foi exposto com argúcia
por Formam (1983) em “A cultura de Weimar, a causalidade e a teoria quântica,
1918-1927”; Uma análise mais global do processo se encontra em Herman (1999).
A partir de 1991 procuramos apontar como sair desse imbroglio do irracional numa
atividade racional em textos que levaram à colaboração permanente nas pesquisas do
núcleo do Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa (cf. Croca et al.,
2017).
8 O texto se encontra em Gama (1993).
9 A tese de Merton foi exposta em 1936 nas páginas do número inicial de Osiris, outra
publicação fundada por Georges Sarton e companheira de Isis. Para a controvérsia ver
por exemplo Brooke (2003) e Numbers ( 2009).
10 Veja-se essa influência de Zilsel em Conner (2005).
11 A influência de Koyré se estendeu a historiadores importantes e ainda bastante lidos
hoje, como Bernard Cohen, Rupert Hall, Herbert Butterfield, Alistair Crombie e
Charles Gillispie, levando além disso à redescoberta de Edwin Burtt (1991), que em
seu As bases metafísicos da ciência moderna enfatizou a matematização platônica do
pensamento de Galileu e sobretudo o que aquele autor definiu como o “positivismo
de Newton”.
12 Ver, a respeito, a lúcida “Introdução” de Pierre Thuillier (1994) ao seu De Arquimedes
a Einstein.
13 É a época em que se destacam as posições neoliberais de Michael Polanyi, em A lógica
da liberdade.
14 É também a conclusão a que chega Ruy Pérez (2003).

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15 É como associamos os avanços científicos da Naturphilosophie, principalmente as des-
cobertas de Oersted e Ritter no eletromagnetismo. Também Poincaré acentuou a
importância desse fenômeno na física e matemática.
16 Isto é recorrente também em Canguilhem, que manifesta um “anti-anti-whiggismo”,
cf. Bowker e Latour (1987).
17 A difusão dessa tendência é ilustrada pela crescente influência tanto da revista Social
Studies of Science (fundada em 1971) quanto de Science in Context (fundada em 1988).
18 Um exemplo é o estudo que compara a ciência francesa, mais abstrata e centralizada,
com a inglesa, mais empírica e pública, feito por NYE (1986.
19 O caso bem conhecido de pesquisa de construção social dos fatos científicos é o livro A
vida de laboratório, de Bruno Latour e Steve Woolgar (1997), lançado em 1979. Para
Foucault, tampouco a ciência trata da luta pela verdade, já que não haveria verdade
absoluta e, nem mesmo, verdade relativa.

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resumo – Este artigo descreve os impasses epistemológicos e metodológicos que carac-
terizam a pouca interação entre os historiadores da ciência no debate sobre suas linhas
de pesquisa e afiliações. A influência positivista persistente tem impedido a valorização
das controvérsias científicas e a historiografia da ciência se ressente dessa ausência, em
detrimento de uma compreensão de como funciona a ciência.
palavras-chave: Historiografia da ciência, Positivismo, Controvérsias.
abstract – This article describes the epistemological and methodological impasses that
characterize the lack of interaction among historians of Science in the debate about
their lines of research and affiliations. The enduring Positivist influence has precluded
recognizing the value of scientific controversies, and the history of Science suffers this
absence, which damages the perception of how science works.
keywords: Historiography of science, Positivism, Controversies.

Gildo Magalhães é professor titular do Departamento de História e diretor do Centro


Interunidades de Ciências da USP. Fellow da Smithsonian Institution em Washington,
DC, e da Chemical Heritage Foundation, em Filadélfia (Pensilvânia, EUA).
@ – gildomsantos@hotmail.com
Recebido em 25.3.2018 e aceito em 26.3.2018.
I
Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humansa, Uni-
versidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil.

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