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PANC para quem? Um estudo sobre práticas e saberes, envolvendo o consumo de


Plantas Alimentícias Não Convencionais1

Renata Tomaz do Amaral Ribeiro, PGDR-UFRGS/Brasil


Renata Menasche, PPGAnt-UFPel, PGDR-UFRGS/Brasil

Palavras chave: Cultura, Alimentação, PANC

As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) são, segundo Kinupp


(2007), as plantas e partes da planta que, apesar de alimentícias, não são habitualmente
consumidas e comercializadas em mercados ou feiras. Essas têm recebido atenção da
mídia, especialmente em programações voltadas ao bem estar, saúde e alimentação. As
discussões a respeito das PANC também passaram a estar presente, em espaços
voltados a questões como biodiversidade, gastronomia e saúde. Nos grandes centros
urbanos, não são raras as oportunidades para participação em oficinas sobre Plantas
Alimentícias Não Convencionais. Nesse contexto, algumas PANC tornam-se
emblemáticas do conceito. Entretanto, quando consideramos a definição anteriormente
mencionada, percebemos que estas plantinhas têm se tornado emblemáticas por
guardarem um paradoxo: ser ou não ser PANC. O que afinal, faz com que uma espécie
seja considerada PANC e outra não? Como este paradoxo constitui algumas dessas
plantas representativas da categoria? Os estudos sobre alimentação e cultura trazem
contribuições interessantes para essa reflexão.
Segundo Garine (1987), a alimentação possui certas características
nutricionais, entretanto estas variam em termos de qualidade e quantidade: cada grupo
social define aquilo que é percebido enquanto comida, bem como a quantidade que
considera adequada, para suprir a necessidade biológica e cultural de alimentar-se.
Fischler (2001), no mesmo sentido, observa que as escolhas alimentares estão
intrinsecamente relacionadas ao universo simbólico para ele, o ato de alimentar-se
nutre não apenas o corpo, mas também o imaginário compartilhado por uma
determinada sociedade. Mintz (2001) observa que as primeiras escolhas alimentares
são ensinadas por adultos emocionalmente próximos, como o pai, a mãe, a avó e por
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Trabalho apresentado na 31 ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre o s dias 09 e 12 de
dezembro de 2018, Brasília/DF.
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isso a alimentação está marcada pela afetividade, envolvendo sentimentos que duram e
que dificilmente se modificarão completamente.
É a partir dessa abordagem que podemos perceber que o que torna uma planta
comestível é justamente a cultura. Isto é, são as percepções de cada grupo que definem
entre as plantas classificadas a partir do conhecimento científico como não
convencionais, quais serão ou não consideradas, por determinado grupo, PANC.
Kinnup (2007) aponta a importância de pesquisas na área da Etnobotânica,
que resgatam saberes de populações tradicionais referentes às PANC, na intenção de
garantir o registro desses conhecimentos, bem como valorizar e incentivar a
permanência das práticas a elas relacionadas, que envolvem plantio, manejo e
produção de alimentos. Contudo, a pesquisa de Kinnup (2007), assim como a
desenvolvida pelo Grupo Viveiros Comunitários – GVC – vinculado ao Instituto de
Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, centram-se na Botânica,
sem dar maior importância a aspectos culturais. O presente estudo não está circunscrito
na Etnobotânica, mas se propõe a manter-se em diálogo com as pesquisas dessa área.
Tendo em vista estar situado no campo dos estudos socioantropológicos sobre
alimentação, associado a uma abordagem para um desenvolvimento rural que não
restringe seu foco às potencialidades econômicas, privilegiando os aspectos sociais,
culturais e ambientais (KAGEYAMA, 2008).
O conceito de PANC, como proposto por Kinnup (2007), delimita uma série
de plantas colocadas à margem pelo mercado, mas que, em diferentes contextos e
territórios, são de uso tradicional ou mesmo cotidiano. São justamente os usos
tradicionais e/ou cotidianos que tornam algumas dessas plantas representativas do
conceito proposto por Kinupp, guardando o paradoxo: ser ou não ser PANC. Ou seja,
são os saberes e as práticas, envolvendo o consumo e a confecção de pratos, que
colocaram em evidência algumas dessas PANC.
Uma das plantas mais emblemáticas é a ora-pro-nóbis, possivelmente a mais
comumente lembrada quando o assunto é PANC. A Pereskia aculeata, hortaliça
popularmente conhecida em distintas localidades, por diferentes nomes, entre eles ora-
pro-nóbis e carne-de-pobre, é lato sensu considerada PANC, no Rio Grande do Sul.
Todavia, em Sabará, Minas Gerais, realiza-se anualmente o Festival da ora-pro-nóbis,
um dos eventos gastronômicos mais tradicionais da região. Ainda assim, seria
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precipitado definir que a ora-pro-nóbis é PANC no Rio Grande do Sul, se


considerarmos a diversidade cultural e social que um mesmo território pode conservar.
Afinal, como ensina Milton Santos (2002), é necessário refletir sobre o território
enquanto lugar repleto de heterogeneidades e intersubjetividades.
Assim, a partir das discussões sobre alimentação e cultura, compreendemos
que as plantas definidas pela literatura especializada enquanto PANC podem, em
distintos territórios e por diferentes grupos, serem percebidas enquanto comida do
cotidiano e/ou tradicional e, portanto, nesses contextos, não passíveis de serem
consideradas PANC, como é o caso da ora-pro-nóbis. Sugerimos que é esta condição
ambígua, ser e não ser PANC, que lhe confere evidência na mídia, em espaços
acadêmicos, em eventos gastronômicos, oficinas, assim como nas feiras ecológicas. Tal
visibilidade é, desse modo, deflagrada não apenas em virtude de seu potencial
nutritivo, mas fundamentalmente por existirem usos tradicionais da planta. Sendo os
usos, as práticas e os saberes relativos ao consumo de determinada PANC o que a
constitui, no imaginário coletivo de determinado grupo, enquanto comida.

Fluxos de conhecimentos envolvendo o consumo de PANC

Com o destaque que tem sido conferido às PANC, agricultores de diferentes


territórios passaram a trazer algumas destas plantas, muitas de uso cotidiano e/ou
tradicional destas famílias rurais, para comercialização, nas feiras da Redenção e
Tristeza. Neste contexto, buscamos neste estudo etnográfico, refletir sobre os saberes e
práticas que envolvem o consumo e a confecção de pratos à base de PANC.
Em Ipê/RS a planta Taraxacum officinale, mais conhecida como dente-de-
leão, nomeada pelos agricultores pisacan (categoria êmica) é consumida tradicional e
cotidianamente. Entretanto, para os consumidores das Feiras Ecológicas essa planta é
considerada PANC. Outros produtos tradicional e/ou cotidianamente consumidos por
essas famílias rurais passaram a ser levados às feiras, impulsionados pelo interesse dos
consumidores pelas PANC: batata crem, goiaba serrana, mastruço, caruru.
Também os agricultores do extremo sul de Porto Alegre passaram a
diversificar a produção de Plantas Alimentícias Não Convencionais, oferecendo a seus
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consumidores, nas feiras: hibiscus, peixinho da horta, capuchinha, ora-pro-nóbis,


tomate de árvore, melão de árvore, pepininho, fisális, bertalha, dente-de-leão. Do
mesmo modo que as do Município de Ipê, algumas dessas famílias rurais fazem uso
tradicional e/ ou cotidiano destas plantas. Outras, todavia, passaram a consumi-las
concomitantemente à adoção do cultivo, ou seja, a produção estimulou seu consumo
cotidiano. Atualmente são inúmeras as receitas vegetarianas elaboradas por essas
famílias com tais plantinhas.
Estamos falando de dois grupos muito distintos de agricultores. Os primeiros
vivem na serra gaúcha, percebem-se como colonos, são descendentes de imigrantes
italianos e possuem laços profundos com a cultura tradicional do território. Já os
agricultores do extremo sul de Porto Alegre apresentam um território mais
heterogêneo, onde convivem famílias que ancestralmente lidam na terra com outras
que apenas recentemente deixaram a cidade, em busca, como contam, de uma vida
simples, autônoma e saudável, junto à natureza.
Contudo, apesar dessa multiplicidade ontológica (Escobar, 2015), é também
possível observar uma prática comum a estes agricultores/feirantes: são eles e elas que
constroem, entre os consumidores das feiras, a ideia de que determinada planta pode
ser considerada comida. Ou seja, mesmo com a diversidade de visões de mundo,
trajetórias sociais, formas de interpretar e significar a realidade – observadas em
diferentes territórios ou em um mesmo território como é o caso do extremo sul de
Porto Alegre, onde existe uma diversidade muito grande – nas feiras percebemos que
estes agricultores são os detentores do saber, pois são eles que sabem como converter a
planta em comida. Alguns, por meio de saberes ancestrais, outros através da prática
cotidiana, há quase uma década inserida junto aos cultivos destinados à
comercialização.
Em ambos os casos, há por parte dos agricultores, um estudo subjacente a
esses saberes e práticas associados ao consumo de Plantas Alimentícias Não
Convencionais. No caso das famílias que fazem uso tradicional e cotidiano de algumas
destas plantas, os saberes são passados de geração em geração. O conhecimento é,
assim construído ao longo de gerações, transformando-se durante esse processo, em
que a avó passa para a mãe, que passa para a filha. Vale lembrar que, segundo Charão
(2009), as tradições não são estáticas e imutáveis. Devemos ter em mente que as
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culturas tradicionais, além de possuírem heterogeneidades, se transformam, pois as


pessoas se relacionam e se deslocam em seus próprios “universos”, mas também
“visitam” outras realidades distintas.
Deste modo os saberes e práticas associados ao consumo tradicional de
pisacan, em Ipê, foram construídos ao longo de um processo que está relacionado ao
território (Santos, 2002), à memória coletiva (Halbwachs, 1990) e à paisagem
(Simmel, 1996), não como algo estanque. São saberes e práticas que revelam
memórias de “um tempo, quando se colhia pisacan no mato”, conforme lembra um dos
agricultores de Ipê. Outro agricultor, falando sobre a mesma planta, observa que
prefere o pisacan que nasce naturalmente, no mato, por ser mais amargo do que aquele
que ele cultiva para comercializar. Uma agricultora, ao revelar um saber passado
através de gerações, conta que para fazer o pisacan coti (cozido), é necessário antes
escaldá-lo.
Por outro lado, o território que compreende o extremo Sul de Porto Alegre é,
como afirmado anteriormente, bem mais heterogêneo, ali se encontrando algumas
famílias que costumam fazer uso tradicional do território e das PANC e outras que
recém aderiram à vida rural e ao consumo cotidiano das PANC. Ou melhor, existem,
nesta localidade, famílias que fazem uso tradicional e cotidiano, ou apenas tradicional
de algumas dessas plantas (como no caso de Ipê), assim como há também aquelas que
consomem diariamente, mas não o fazem como uso tradicional.
As famílias de agricultores – podemos dizer, neo-rurais – que consomem
cotidianamente estas plantas sem fazer delas uso tradicional também desenvolveram
um estudo. Entretanto, seu modo de pesquisar não se aproxima daquele desenvolvido
pelos que se criaram como agricultores. Atualmente estas famílias possuem suas
próprias receitas e, portanto, também têm suas práticas e saberes sobre como preparar
uma determinada planta que, a partir dos parâmetros do conhecimento científico, pode
ser considerada PANC, mas que para elas é comida do dia a dia. Neste caso, tais
conhecimentos não foram passados de geração em geração, mas adquiridos por meio
de diferentes maneiras: internet, técnicos, outros agricultores, livros de gastronomia e
culinária.
Apesar das diferenças que distinguem os agricultores que fazem uso
tradicional de determinada PANC daqueles que apenas fazem uso cotidiano,
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percebemos que nas feiras ecológicas de Porto Alegre, em ambos os casos, os


agricultores são os detentores do conhecimento. Porque são eles que sabem quais são
os usos e como preparar aquele alimento o transformando em comida.
Conforme trecho do diário de campo de outubro de 2018, desenvolvido após
observação participante (FOOTE-WHYTE, 1975) na Feira da Tristeza, segue Receita
de pisacan coti da Vani: “Ferve uma panela de água, coloca o pisacan para ferver junto
por dez minutos. Aí, dispensa essa água quente e coloca água fria. Depois pega com as
mãos a planta e esmaga ela para tirar a água. Vai apertando, tirando a água e fazendo
uma bola de pisacan. Aí, pica essa bola esmagadinha como se fosse couve, refoga,
colocando os temperos que tu gosta. Eu ponho de um tudo: cebola, alho, azeite de
oliva, pimenta e uma cebolinha verde no final.”

Considerações finais

É assim que as feiras ecológicas estudadas revelam-se como importante


espaço de trocas simbólicas entre o rural e o urbano, na medida em que não é a partir
dos parâmetros dados pela ciência moderna que, entre os consumidores, é construída a
percepção de que uma determinada PANC é comida. A ciência define se uma planta é
comestível e nutritiva, mas não a converte em comida. Podemos frequentemente
observar um agricultor, quieto e tímido, protagonizar “oficinas” informais no espaço
junto a sua banca. Nessas ocasiões, ele ocupa claramente a posição de mestre,
ensinando, por meio de sua experiência, trajetória, visão de mundo, um pouco de suas
práticas e saberes associados ao consumo de Plantas Alimentícias Não Convencionais.

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: cozinhar. v. I. Rio de Janeiro: Vozes,


2009.

CHARÃO, Marques Flávia. Velhos conhecimentos, novos desenvolvimentos:


transições no regime sociotécnico da agricultura. A produção de novidades entre
agricultores produtores de plantas medicinais no Sul do Brasil. Tese de Doutorado.
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Faculdade de Economia. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.

DA MATTA, Roberto. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. O Correio da


Unesco, v. 15, n. 7. Rio de Janeiro, 1987.

ESCOBAR, Arturo. Territorios de diferencia: la ontología política de los" derechos


al territorio". Cuadernos de antropología social. n. 41. Argentina, 2015.

FISCHLER, Claude. L'homnivore. Paris: Poche Odile Jacob, 2001.

FOOTE-WHYTE, William. Treinando a observação participante. Rio de Janeiro:


Francisco Alves, 1975.

GARINE, Igor de. Alimentação, culturas e sociedades. O Correio da Unesco, v. 15,


n. 7. Rio de Janeiro, 1987.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

KAGEYAMA, Ângela. Desenvolvimento Rural: Conceitos e aplicações ao caso


brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 2008.

KINUPP, Valdely. Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana


de Porto Alegre, RS. Tese de doutorado. Faculdade de Agronomia. Programa de Pós-
Graduação em Fitotecnia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre,
2007.

KINUPP, valdely. Plantas Alimentícias Não-Convencionais (PANCs): uma Riqueza


Negligenciada. Manaus: SBPC, 2009.

MINTZ, Sidney. Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de


Ciências Sociais, v. 16, n. 47. São Paulo: 2001.

SANTOS, Milton. Território, Territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial.


2 ed. Niterói: DP&A, 2002.

SIMMEL, George. A filosofia da paisagem, Revista de Ciências Sociais: Política e


Trabalho, v 12. Paraíba: 1996.

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