5 - Os Platônicos Intermediários e Fílon de Alexandria

Fazer download em doc, pdf ou txt
Fazer download em doc, pdf ou txt
Você está na página 1de 8

58

OS PLATÔNICOS INTERMEDIÁRIOS E FÍLON DE ALEXANDRIA1

O século I a.C. testemunhou o surgimento de novo movimento em filosofia, o qual,


embora não envolvesse pensadores criativos realmente destacados, estava fadado a
exercer importante influência no pensamento cristão. A filosofia desse período é às
vezes chamada "sincretista", o que implica a fusão de sistemas anteriormente distintos;
mas essa sugestão é apenas parcialmente verdadeira. Certamente não houve uma fusão
geral das escolas mais antigas. A maioria delas mantinha uma individualidade
claramente assinalada. Doutrinas epicuristas eram expostas, por exemplo, pelo poeta
latino Lucrécio; o ceticismo foi ensinado por Enesidemo, e o céptico tipo "acadêmico"
de Platonismo era exposto por Cícero; prosseguia o trabalho sobre Aristóteles, e uma
edição coligida de seus escritos foi produzida por Andrônico de Rodes, talvez ca. 65-40
a.C.2 Mas, como vimos, já tinha havido contactos entre estóicos, platônicos e
aristotélicos. O novo movimento, iniciado com Antíoco de Ascalon por volta de 80 a.C.,
pretendia ser um ressurgimento do genuíno Platonismo, que rejeitava a tradição céptica,
e, além disso, afirmava haver substancial acordo doutrinal entre Platão, Aristóteles e
Zenão(!), o fundador do estoicismo. A disputa com o ceticismo era claramente de
primeira importância. Pela mesma época, as teorias numéricas dos pitagóricos, que
tinham atraído Platão e seus sucessores imediatos, desfrutavam de um despertar de
interesse.

1
STEAD, Christopher. A filosofia na antiguidade cristã. Tradução de Odilon Soares Leme. São Paulo:
Paulus, 1999. pp. 58-65.
2
Para a data, veja N. Gottschalk, "Os mais antigos comentadores aristotélicos", in R. Sorabyi (ed.),
Aristotle Transformed (veja Bibliografia 4), p. 63: "Andrônico começou sua obra nos anos 60 e publicou
sua edição durante as décadas seguintes", contrariamente ao ponto de vista de L Düring (em Roma, e
cerca de vinte anos mais tarde).
59

O novo Platonismo da assim chamada "Quinta Academia", como mais comumente se


ensina, logo mostrou ser de caráter marcadamente teísta. Percebe-se isso claramente no
tratamento que dá às Idéias ou Formas (eide), no próprio Platão, protótipos
transcendentes, imutáveis; em Aristóteles, princípios imanentes de desenvolvimento;
para os estóicos, meras concepções em nossas mentes (embora eles admitissem que
algumas concepções fossem comuns a todos os homens, e tivessem um equivalente
aproximado do eide de Aristóteles em seus seminae rationales, veja p. 38 acima). O
próprio Platão, na República e no Timeu especialmente, deixara sem resposta muitas
questões. Será que o Artífice, no Timeu, tinha por finalidade representar a perfeição
suprema no universo? Ou essa posição era ocupada pela Forma do Bem, de sorte que o
Artífice simplesmente observa e imita essa perfeição? Ou poder-se-ia identificá-los, seja
pela personificação da Forma do Bem, seja tratando o Artífice meramente como
apresentação mítica da vida, pensamento e ação que de fato reside nas Formas e na
Forma suprema? O novo platonismo, revivendo talvez uma concepção que remonta a
Xenócrates, sustentava que a realidade suprema era a mente ou inteligência, e que as
Formas eram "idéias" ou concepções que se originavam nessa mente e eram usadas
como "exemplares" (paradeigmata) para criar as várias espécies de coisas que o mundo
encerra. Tal prática pode ter sido sugerida por uma expressão da Fisica 2,3 de
Aristóteles "a forma e o exemplar"; alguns pensadores extraíram uma distinção que ele
não pretendia,3 e assim puderam interpretar o "exemplar" como o protótipo
transcendente, e a "forma" como sua marca sobre o objeto familiar, reproduzindo,
assim, aproximadamente as concepções de Platão e de Aristóteles. Às vezes, de fato, o
"exemplar" é tratado como quinto tipo de causa, ao lado dos quatro originais de
Artistóteles.
Suponhamos, então, que o mundo se origina da inteligência criativa aplicando as
Formas à matéria informe. Essa doutrina tem sido intitulada "Dreiprinzipienlehre",
doutrina dos três princípios geradores; e é bom que se lembre que essa expressão não se
refere a nenhuma forma de teologia trinitária; dos três princípios que ela indica, apenas
um é divino. Além disso, o termo "Dreiprinzipienlehre" deveria propriamente implicar
três princípios independentes; mas para aqueles que concebem as Formas como
produtos da mente divina, existem, falando-se com propriedade, apenas dois princípios
últimos, Deus e a matéria. Tal doutrina foi ensinada, por exemplo, pelo Hermógenes
combatido por Tertuliano. Outro concorrente foi o ponto de vista de que podia haver
apenas um princípio último; assim, por exemplo, Fílon, Leg. All. 3.7, talvez tenha sido
influenciado por Eudoro (veja abaixo, p. 103). Para os cristãos isso podia sugerir que o
próprio Deus tenha criado a matéria, e assim tenha feito o mundo ex nihilo.

3
Para o ponto de vista contrário, veja P. Merlan, LGP p. 54.
60

Mas esse argumento admitia a doutrina bíblica de um ato de criação, enquanto a maioria
dos platônicos sustentava que o mundo era eternamente dependente de seu (s) princípio
(s) criativo (s); apenas uma minoria tomava o Timeu ao pé da letra como implicando um
ato criativo.
Muitos platônicos, no entanto, concordavam com os estóicos em tratar as formas como
concepções numa mente, mas faziam-nas reais e objetivas como pertencentes a uma
inteligência suprema, da qual deriva toda perfeição. A união das "noções comuns" dos
estóicos com as Formas transcendentes dos platônicos não era tão absurda como pode
parecer, uma vez que a doutrina estóica dos homens como "microcosmo" podia sugerir
que as mentes humanas se harmonizam, em princípio, com a razão criadora divina. A
esse esquema foi acrescentada a concepção pitagórica de que a fonte última deve ser
uma unidade perfeitamente simples, o Um (Uno), ou Mônada. Paradoxalmente, essa
teoria, que enfatizava a total simplicidade e unicidade do ser supremo, em breve levaria
a desdobramentos e complexidades na teologia. Isso porque a palavra "um (uno)" é
ambígua por si mesma, como explicaremos; ela pode representar algo único, ou algo
indiviso, ou o primeiro número (que pelo raciocínio pitagórico seria a origem de todas
as coisas), ou ainda uma simples unidade que pode ser repetida, como quando dizemos
"duas vezes um, dois". Havia, portanto, alguma razão para distinguir entre o Um
supremo, a origem última, e um princípio de unidade inferior que, como fonte das
Idéias, concebe e expressa a si mesmo na multiplicidade.
Não será possível considerar os expoentes dessa filosofia com todas as minúcias; para
os nossos propósitos, bastará que exponhamos sua contribuição para o pensamento de
um único escritor, que, no entanto, exerceu sua influência sobre muitos teólogos
cristãos, a saber, Fílon de Alexandria. Fílon era judeu de fala grega, membro de família
nobre que desempenhava importante papel nos negócios cívicos; recebera ampla
educação e tinha vasto conhecimento da filosofia grega; viveu aproximadamente de 25
a.C. até 45 d.C. Sua vida religiosa era centrada nas escrituras judaicas, particularmente
no Pentateuco, que ele lia em grego, na versão dos Setenta; considerava a Torá como
correta e autorizada em todos os pormenores, embora não pareça mostrar muita
familiaridade com o ritual do Templo, tal como realizado em Jerusalém na sua época. A
maior parte de seus extensos escritos consiste em comentários alegóricos sobre o
Gênesis e o Êxodo, com alguns outros tratados sobre tópicos particulares, como criação
e providência, e biografias de alguns heróis bíblicos. Ele procurava demonstrar que as
escrituras judaicas em si mesmas eram capazes de apresentar, não apenas a verdade
divina, mas uma educação humanística; e, por meio do uso da alegoria, sustentava que o
teor exato do texto bíblico, e até os nomes nele contidos, proporcionavam orientação
moral e espiritual coerente com a filosofia das escolas gregas contemporâneas.
61

Entre essas, ele demonstrava sincera fidelidade ao Platonismo, fazendo uso até mesmo
do Platonismo cético, onde ele fosse pertinente, embora em geral tenha-se oposto ao
ceticismo; faz uso considerável de conceitos aristotélicos e estóicos, enquanto rejeita
terminantemente Epicuro e todos os outros expoentes do materialismo. Mas seu
ensinamento filosófico, embora abundante, muito freqüentemente é aduzido de forma
incidental, para explicar algum ponto surgido do texto sagrado; ele não tem
oportunidade, embora não lhe falte a competência, para produzir um esquema filosófico
consistente.
Fílon, naturalmente, tem consciência do significado prático da filosofia, no sentido de
apresentar um modo de vida; ele mostra os patriarcas, não apenas como homens devotos
e virtuosos, mas como sábios e ponderados moralistas. Mais surpreendente, talvez, é sua
determinação de apresentar Moisés em particular (para Fílon, o autor de todo o
Pentateuco) não somente como mestre autorizado, mas como filósofo platônico.
Podemos tentar uma ilustração desses traços com a obra em que ele discute Gênesis
9,20, ''Noé ... plantou a vinha", comumente chamada De Plantatione: "Isso está relatado
no Levítico 'Ele chamou Moisés' [Lev 1,1]; mas Beseleel também, a quem é dado o
segundo plano, terá sido chamado, já que Deus o chama para preparar e supervisionar os
utensílios sagrados [Ex 31,2ss]. Mas ele terá um chamado secundário, enquanto Moisés,
o sábio completo, ocupa o primeiro lugar; isso porque Beseleel trabalha com sombras,
como os pintores, que nada de vivo podem criar, já que 'Beseleel' significa 'fazedor de
sombra'; porém Moisés é encarrregado de produzir, não sombras, mas as naturezas
criadoras das próprias coisas." Beseleel é, de fato, um artífice que modela objetos
materiais usados no culto; chamá-las de "sombras" é uma reminiscência da República
de Platão, especialmente 7.514-17 (a alegoria da caverna, veja p. 29 acima) e 10.595-8
(o pintor, que produz semelhanças, antes que objetos reais). Moisés, porém, tem acesso
aos originais, ou seja, o sistema das Formas platônicas, que, segundo nos diz Fílon, são
elas próprias as concepções do Deus supremo reunidas em sua razão, o Logos, e que
agem como "selos" ou modelos de sua obra na criação.
A respeito do próprio Deus, diz-nos Fílon, de modo negativo, que ele não se reveste de
forma humana, apesar das referências bíblicas à sua "face", "mãos" etc., e a suas
emoções, como amor ou raiva; de modo positivo, que sua natureza é misteriosa;
podemos saber que ele é, ou existe, mas não o que ele é. Fílon refere-se a ele como
"Aquele que é" (Ex 3,14 LXX), onde o tempo presente sugere um ser imutável; Deus é
eterno e imutável, fora do espaço e do tempo, embora capaz de agir dentro deles;
ocasionalmente é ele chamado "mente" ou "alma" do mundo; mas sua transcendência é
enfatizada ao se dar a ele o nome de "Mônada" ou mesmo de "acima da Mônada".
62

Seus atributos morais são descritos com bem maior segurança; Deus é a fonte de toda
bondade, o criador e governador do mundo; embora se diga que ele é livre de paixão
(pathos), alegra-se com a bondade e mostra benevolência (eleos) para com todos, mas
rejeita, julga e pune o que é mau. Como o Artífice de Platão, é generoso na sua obra
criadora; o próprio mundo é um presente seu; do mesmo modo, a mente humana e as
virtudes humanas.
O sentimento que Fílon tem da santidade e da transcendência de Deus vai de par com
certa relutância em falar de Deus agindo diretamente sobre o mundo; ele fala de Deus
agindo por meio de seus "poderes", dynameis (como outros mestres judeus de seu
tempo; cf. também De Mundo [Aristóteles]). Não fica claro, muitas vezes, se esses
"poderes" representam a ação do próprio Deus, expressa em termos de
condescendência, ou se eles são seres subsidiários, criados para servi-lo e agir como
seus representantes. Entre eles, figura preeminente a razão de Deus, ou Logos; em
outras passagens, Fílon fala de Deus agindo por meio de sua Sabedoria (Sophia), ou
deliberando com ela, a qual é vista como um ser feminino, chegando a ser descrita como
a "consorte" de Deus. Além disso, ele descreve Deus como empregando dois poderes
principais, sua Bondade e sua Soberania, que são intituladas, respectivamente, "Deus" e
"Senhor", mas são subordinadas a "Aquele que é". Isso claramente deriva de tentativas
anteriores de explicar o emprego de dois nomes, "Deus" e "Senhor", para uma única
divindade. Mas, quando faz uma exposição de Gênesis 18, 'Fílon afirma que Deus pode
ser visto seja como um, seja como três. Naturalmente, essa teologia interessou os
eruditos cristãos que investigavam a doutrina da Trindade; mas é preciso dizer que Fílon
não mostrava nenhuma inclinação consistente para uma teologia trinitária; assim,
embora ele fale tanto de Palavra de Deus, como de sua Sabedoria, comparando-as
respectivamente com seu Filho e sua Consorte, trata-as como concepções alternativas;
raramente são elas combinadas para formar uma Familientrias.
Quando minuciosamente examinada, a doutrina de Fílon relativa aos "poderes" também
se mostra enganosa. Ele emprega todo um conjunto de termos, alguns dos quais
representam atributos ou funções do próprio Deus, alguns claramente representam
princípios auxiliares ou mediadores, alguns lembram as Formas platônicas; mas seus
significados se sobrepõem e não se pode estabelecer distinções claras; assim, "poderes"
de Deus se justapõem a "princípios", e "virtudes", a "anjos", "demônios" e "almas", e a
"Idéias", "imagens", "selos" e "modelos" (em grego, dynameis, a logoi, aretai; angeloi,
daimones, psychai; ideai, eikones, sphragides, paradeigmata).
63

Isso reflete, em parte, a tentativa de Fílon para amalgamar a filosofia platônica com a
tradição hebraica (assim daimones = anjos); mas isso aponta também para complexos
desenvolvimentos na própria tradição platônica.
Já registramos, na pág. 35, o problema se as formas devem ser consideradas
simplesmente como "modelos" ou "selos", precisando de algum poder a mais para
reproduzi-los na matéria, ou se elas próprias devem ser vistas como produtoras. A
criação do mundo poderia ser explicada por meio de um Criador ativo que fizesse uso
de "padrões" puramente inertes; mas é preciso saber ainda qual o papel, se existir
algum, que é desempenhado pelas Formas na contínua recorrência dos fenômenos
naturais e na reprodução das criaturas vivas. Alguns platônicos empregaram o termo
"inteligíveis secundários" para descrever a impressão das Formas sobre as coisas
perceptíveis, ou assumiram o conceito estóico dos princípios seminais imanentes; mas
isso não explicava como as formas simples, eternas e imutáveis podiam produzir seus
múltiplos reflexos num mundo mutável. Textos de Fílon e de gnósticos influenciados
pelo platonismo às vezes retratam Deus ou seu Logos como tendo sob sua direção uma
escada, ou algum mecanismo do tipo, pela qual os princípios vivificadores são
transferidos do céu para a terra e vice-versa (veja, por exemplo, De somniis, de Fílon,
1.133-59, e Ref., de Hipólito, 5.17); mas temos pouco conhecimento da maneira pela
qual os filósofos profissionais lidaram com esse problema. Em alguns casos, pelo
menos naqueles em que estão envolvidos seres humanos, a impressão da forma deve ter
sido assimilada à encarnação de uma alma. De um modo ou de outro, as formas devem
apresentar-se como ativas; podemos observar, contudo, que mesmo aqueles que as
concebiam como números não necessariamente as consideravam puramente estáticas;
Xenócrates já havia definido a alma com "número que se move por si mesmo", veja
acima, p. 35.
Em Fílon, portanto, o Logos é considerado tanto o "lugar" ou a totalidade das Formas,
como um poder ativo, que governa e organiza, descrito às vezes, em termos estóicos,
como "ígneo", e subordinado, naturalmente, ao Deus supremo. Às vezes, com efeito,
parece que se descobre um compromisso, já estabelecido no platonismo intermediário,
pondo a divindade platônico-pitagórica, a Mônada pura, no primeiro lugar, tendo a
deidade cósmica estóica como sua subordinada. Fílon, já o vimos, explica a visão que
Jacó teve da escada como representação da subida e descida das almas, as mais puras
das quais são os anjos auxiliares de Deus, com o Logos "postado" (Gn 28,12) para
presidir a tudo. Teólogos cristãos posteriores chegaram a estabelecer uma rígida
distinção entre seres incriados, o próprio Deus, com seus atributos divinos juntamente
com sua Palavra e Espírito, e seres criados, incluindo-se anjos e homens.
64

Em Fílon, de modo algum essa distinção é clara; os contrastes rígidos são aqueles entre
a mente e os sentidos (vistos respectivamente como macho e fêmea); entre o mundo
inteligível e o mundo perceptível; e então, finalmente, entre a pura Divindade (Natureza
divina) indistinta e todos os atributos, virtudes, auxiliares e criaturas que se possam
nomear.
Fílon não foi, é claro, o único canal através do qual esse tipo de Platonismo veio a
atingir a Igreja primitiva; mas sua influência foi duradoura, e ele pode servir de
exemplo. O próprio Fílon deixou-se intrigar pelas propriedades dos números inteiros
simples, e fornece explicações aritméticas eruditas destinadas a mostrar a importância
especial do número sete, para justificar o sábado, ou dez, para os mandamentos; mas o
seu, foi um platonismo em que os sérios interesses lógicos e matemáticos foram
substituídos por preocupações morais e espirituais. Mas, para Fílon, a virtude era
assunto intelectual; e a ordem inteligível, o cosmos noetos, tinha suplantado, na prática,
a representação bíblica da morada celeste de Deus posta acima do firmamento, a sólida
abóbada do céu, onde até mesmo os anjos infantes podiam ver a face de Deus. Isso era,
além do mais, essencialmente conformista, já que o modelo de tudo que deveria existir
estava estabelecido no mundo das Formas, elas próprias a produção de um Deus
imutável. Embora, na prática, o platonismo pudesse reconhecer homens de excepcional
sabedoria e santidade, sua teoria tendia a não levar tão em conta a individualidade, já
que a bondade era vista simplesmente em termos de conformidade com um ideal
predeterminado. O próprio Fílon, na verdade, estende-se a respeito das virtudes
características de Abraão, Isaac e Jacó; mas ele ainda os vê como representantes ideais
de tipos característicos da bondade humana; não se pode procurar nenhuma genuína
criatividade moral. Nosso acesso ao "mundo inteligível" exigia atividade intelectual
inspirada pela beleza da verdadeira bondade e escorada pela autodisciplina; mas a
simples piedade espontânea deveria ocupar o segundo lugar. O mundo perceptível
poderia, evidentemente, ser apreciado como prova da generosidade do seu Criador, ou
como proporcionando símbolos instrutivos das realidades espirituais, mas se
desencorajava seriamente o interesse ou amor pelas coisas perceptíveis. E o dualismo de
corpo e alma sugeria, não simplesmente que os homens deveriam usar e governar
sabiamente seus corpos para o benefício da alma, mas que a hostilidade para com o
corpo - a menos, naturalmente, que instigada por motivos indignos de ostentação ou
coisas parecidas - era meio confiável para o aproveitamento espiritual. Finalmente, com
o surgimento do monasticismo cristão, a tensão intelectualista que acabamos de
mencionar foi amplamente suprimida pela crescente tendência para o ascetismo, de
modo que muitos cristãos devotos não levavam em conta, ou professavam não levar,
não apenas o saber pagão, mas qualquer forma de educação liberal.
65

Algumas outras falhas da mentalidade cristã primitiva, atribuíveis à mesma tradição,


deveriam ser contrabalançadas com os imensos benefícios que o platonismo trouxe para
a imaginação e para o pensamento da Igreja; notavelmente, a quase universal
incapacidade para ver o sexo como um agradável produto da sabedoria do Criador, uma
vez que qualquer emoção violenta que, mesmo temporariamente, afastasse a ponderação
racional era vista como "paixão" e, assim, condenada. Poucos textos do Novo
Testamento foram tão coerentemente negligenciados como Hebreus 13,4, he koite
amiantos, o "intercurso" é, ou deveria ser, "sem mancha". Os cristãos geralmente
olhavam isso com sobressalto.4 Os estóicos tinham considerado lícito o sexo somente
com vistas à procriação; os cristãos podiam acrescentar que ele tinha sido imposto
apenas como resultado da queda (Gn 3,16), e alguns chegavam a sustentar, como Fílon,
que o homem ideal era assexuado ("macho-fêmea", Gn 1, 27). A tentativa dos
valentinianos de considerar o sexo como uma forma de sacramento não conseguiu obter
muito apoio. Pode-se também assinalar a ênfase no predomínio masculino, já presente
na tradição israelita, como também na sociedade pagã, em parte por não se conseguir
reconhecer a racionalidade inconsciente, presente na intuição tipicamente feminina; e
uma aceitação demasiadamente confiante da tradição cristã ortodoxa, levando a uma
amarga intolerância para com os heréticos sempre que a persuasão tivesse falhado em
conseguir a concordância. Isso foi o outro lado daquele amor e daquela abnegação
recíproca dentro da comunidade cristã ortodoxa, que conquistaram a relutante
admiração até mesmo de satíricos pagãos, como Luciano de Samósata.

4
Uma notável exceção é Agostinho, Gen. ad Litt. 9.2.5: Adão e Eva poderiam ter desfrutado de inocente
intercurso sexual no Paraíso se eles não tivessem pecado.

Você também pode gostar