Derrida - Essa Estranha Instituição Chamada Literatura
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SUMÁRIO
Introdução
A LITERATURA À DEMANDA DO OUTRO
Evando Nascimento
Questões de princípio
Lembro-me
seminários de quando,
de Jacques na qualidade
Derrida, no iníciodedos
aluno
anosinscrito nos
de 1990,
certo dia eleme trouxe o livro recém-publicado na Inglaterra
e nos Estados Unidos, Acts of Literature, organizado pelo
especialista britânico de srcem sul-africanaDerek Attridge,
contendo uma entrevista que estaria na srcem de minha
tese de doutorado, depois convertida no livroDerrida e a
literatura.1As discussões com meu então diretor de estudos
na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), o
professor Derrida, giravam em tomo do sentido e da essência
da literatura, em particular a partir das reflexões de Maurice
Blanchot em O livro por vir e em O espaço literário.Em mi
nha mente de recém-chegado ao território francês,le sens e
7
Vessenced a literatura, a despeito de umapequena diferença de
pronúncia, quase se confundiam. Não é que não percebesse
a distinção, mas intuitivamente compreendia que pensar
o sentido da literatura (se ela tem um) era também pensar
sua essência (se tem uma). Mal sabia que o presente então
recebido como uma dádiva não apenas continha uma série
de respostas a minhas aflitivas questões (“A literatura tem
um sentido ou uma essência?”, “Quais?”, “Se não tem, como
opera o texto literário?”, “Qual a relação com a questão da
mímesis?”, “E a filosofia, em que se aproxima e se distancia
do texto literário?” etc.), mas, sobretudo, suscitaria outras
dúvidas, as quais, por sua vez, só seriam resolvidas, mesmo
assim parcialmente, com a escrita da referida tese sobre a
“questão da literatura” nos textos da desconstrução.
Além de ser uma coletânea com diversos ensaios de
Derrida em que a literatura aparece, direta ou indireta
mente, como tema, o volume Acts of Literature continha
uma preciosa entrevista que modificaria os rumos de meu
projeto de pesquisa. “This Strange Institution Called Lite
rature” era o título do diálogo com Derek Attridge, que me
levou a apresentar um trabalho nos seminários de Derrida,
no auditório do bulevar Raspail, bem como a escrever uma
carta ao CNPq, notificando que, doravante, o tópico ainda
bastante enigmático “Derrida e a literatura” se tornaria o
único objeto de minhas investigações.
8 Jacques Derrida
Foi, portanto, com alegria que recebi o convite de
Roberto Said para revisar e apresentar a tradução desse
texto dotado de grande singeleza, mas também de não
menor complexidade. Nessa entrevista realizada em 1989 e
publicada pela primeira vez três anos depois, encontram-se
algumas das ferramentas mais potentes disponibilizadas
por Derrida para pensa r as intrincadas e muitas v ezes con
flituosas, perquiridoras, prazerosas, jamais de todo neutras
relações entre discurso literário e discurso filosófico. Chamo
a atenção, desdejá, como é dito num resumo inicial do texto
traduzido adiante,, para o fato de que, por mais de 15 anos,
a versão francesa não estava disponível. Somente em 2009
foi que Thomas Dutoit, pesquisador americano radicado
em Paris, a coeditou, num volume que contém ensaios e
depoimentos sintomaticamente voltados para as relações
de Derrida com os Es tados Unidos.2A tradução a seguir já
tinha sido realizada por Marileide Dias Esqueda, a partir
do inglês, quando recebi o convite para revisá-la. Assim,
interceptem e intersectem
sentido, a tradução emse
brasileira mais
fez de
no um momento.entre
cruzamento Nesse
os
étimos latino e anglo-germânico, heranças europeias que
informam grande parte da literatura e da filosofia ocidental,
embora não com exclusividade, evidentemente.
“Mais de uma língua” (plus d’une langue) é o sintagma
derridiano para indicar que há sempre mais de uma língua
implicada em todo enunciado que se queira desconstrutor.3
Tanto do ponto de vista intralinguístico quanto do ponto
de vista interlinguístico, qualquer língua é feita de múltiplas
línguas, de modos diversos de usos. Há sempre pelo menos
um bilinguismo em causa, uma relação com a língua do
outro, sobretudo quando se trata de literatura, impedindo
assim o monolinguismo puro. A língua é, desde logo, con
taminada por aquilo que ela não é, seu exterior, ao qual se
relaciona inelutavelmente.
Nesse sentido, ressaltaria que já a entrevista srcinal era,
efetivamente, bilíngue, pois Derrida respondia em francês
às perguntas formuladas em inglês por Attridge. A tradução
e sua revisão só poderiam remeter às duas publicações, sem
tomar nenhuma delas como mais srcinal (no sentido de
“pura” e “única”). A pureza e a unicidade da srcem são
3 Cf. J. Derrida, Mémoires: pour Paul de Man, Paris, Galilée, 1988, p. 38.
Lembro,
conhecidosneste
do ponto, que différance
vasto léxico - um
derridiano - é dos
um termos mais
corpo estra
nho no próprio francês, visto que se trata de uma rasura na
ortografia oficial, em que um a substitui o e de différence.
Trata-se de diferença inaudível, perceptível apenas no nível
da escrita, pois a pronúncia dos dois vocábulos é idêntica.4
E assim já se adentra o espaço aberto da écriture, que
ajuda a pensar toda a relação com “a estranha instituição
chamada literatura”. Quanto a essa palavra, chamei a aten
ção para que, no contexto do pensamento francês recente,
seja vertida alternadamente comoescrita ou como escritura,
pois a opção pelo último termo, que vigorou durante muito
tempo entre nós, obliterava outro sentido, bastante corrente
(quedo
tivo deixa, portanto,
próprio literário serum princípio
de enquanto simples)
escritura é indica
e leitura. Como
Derrida expõe em “La Loi du genre” [A lei do gênero],
todo texto literário participa, mas não pertence a um único
em si.A litera-
(...) não há nenhum texto que seja literário
riedade não é uma essência natural, uma propriedade intrínseca
do texto. É o correlato de uma relação intencional com o texto,
relação esta que integra em si, como um componente nmaou
camada intencional, a consciência mais ou menos implícita de
regras convencionais ou institucionais -sociais, em todo caso.7
prio discurso,
que seria não autofágica;
também se resumindo
masatampouco
uma autorreferência
se identifica
mesmas
absoluta-eou seja,
pela pela impossibilidade
correlata de autoidentificação
impossibilidade de se identificar
inteiramente a outros discursos —,a literatura precisa, para
sobreviver e, nos melhores casos, superviver (o Überleben
benjaminiano), abrir-se ao mundo, dialogando com outras
produções artísticas e culturais, bem como com a própria
história. Trata-se de uma “nulidade” (“essa experiência de
aniquilação do nada”) que é tudo: uma simples inscrição
passível de, em certos casos e dentro de determinados
contextos, dar vez a novas formas de pensamento, que são
outros modos de relação com o mundo e suas múltiplas
alteridades. É o que tenho designado, a partir de leituras de
Derrida, como uma escritura ou literatura pensante.
Sendo assim, não pode haver natureza nem função da
literatura em si, justamente porque esta não tem nenhuma
essência e nenhum sentido previamente estabelecidos. O
que se reconhece como literatura deriva de convenções e
intenções mais ou menos conscientes que se estabelecem
do lado de quem escreve e são reconhecidas como tais do
lado de quem lê. Mas essa legitimação do literário em mo
mento algnm se faz de forma homogênea, nem tem duração
permanente no tempo ou no espaço. As convenções podem
que
e as tem entredeseus
novelas eminentes
cavalaria. antecessores a epodesse
A heterogeneidade peia clássica
gênero
faz com que, mesmo com os inúmeros abalos modernistas,
certa tradição narrativa continue a ser praticada até hoje,
tornando dificultoso qualquer traçado linear de uma suposta
evolução que se definiria idealmente como transformação
progressiva do mais simples ao mais complexo.
Não há então como estabelecer um significado último
nem uma referência definitiva na realidade, pois o literário
opera por significações e referências parciais e mediadas
para com o real. A essência da literatura é mesmo não ter
essência alguma, rasurando e deslocando a pergunta me
tafísica “o que é?”, em proveito de um espaço irredutível
a qualquer ontologia. Tal suspensão da tese filosófica por
excelência (S = P) jamais é garantida de antemão, visto que
se
sobchama
o signodedaliteratura,
alteridade.elaAcomparece
literatura ena obra de Derrida
a escrita/escritura
sempre serão outras , diferentes, como efeito e causa da
simplesmente da literatura.
e compartimentações, pois sóElas recusam
interessa, departamentos
com efeito, o pen
samento daquilo que ainda está por vir. E é este o desejo
expresso na entrevista: o de um texto que não fosse mais
simplesmente nem filosófico nem literário, guardando, no
entanto, a memória desses dois discursos e suas respectivas
instituições.
9 Idem, Some States and Truisms About Neologism s, Newisms, Postisms, Pari
sitisms, a nd Other Seisms, em Derri da d’ici, Derrida de là, p. 223-252,
Geoffrey Bennington,
de um relato enquanto
mais extenso. se aguardava
Intitulada a publicação
por Bennington como
Curriculum vitae, a ficha biográfica continha uma série de
informações que contou com a colaboração “descontínua
ou aleatória” de Derrida.13A biografia, como gênero mais
ou menos acabado, só viria com a realização do trabalho
tida em letra.daOrelação
a resultante pensamento - eisimplicada
de forças minha hipótese - seriae
na invenção
na recepção literárias, dentro da perspectiva do instituir-se
político de toda instituição. Lembro que política é antes de
tudo uma questão depólis , dos direitos da cidadania e das
experiências possíveis, que estão no coração dessa proble
mática ficcional. Isso faz com que a literatura, a escritura
e a leitura devam ser pensadas como evento, no limite de
uma quase impossibilidade, já que o real se faz justamente
17 Como desenvolvi num texto ainda inédi to que aprese ntei no seminário de
Derrida em 1992, a noção de estranheza dialoga no pensamento derridiano
com a noção freudiana e heideggeríana de Unheimliche, traduzível como
“inquietante estranheza”, “estranho familiar”, “infamiliar”, “insólito”, entre
outras possibilidades. Retomei essa ideia em: Clarice Lispector: uma literat u
ra pensante, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012.
“Talvez”,
porvir é preciso
paraa justiça e só sempre
hájustiçadizer
talvez
na paraem
medida a justiça. Há um
que o aconteci
mento é possível, excedendo, enquanto acontecimento, o cálculo,
as regras, os programas, as antecipações etc. Como experiência
da alteridade absoluta, a justiça é inapresentável, mas essa é a
chance do acontecimento e a condição da história. Uma história
decerto irreconhecível, é claro, para os que creem saber de que
falam quando usam essa palavra, quer se trate de história social,
ideológica, política, jurídica etc.18
28 Jacques Derri da
são sintagmas indiciadores de uma pragmática que nunca
se reduz a um fim prático, pois não é da ordem de qualquer
teleologia, abrindo-se à ventura do acaso, da sorte e do azar,
da promessa e da ameaça. Porventura é o belo título do li
vro do poeta
empenho, é aAntonio
aposta eCícero.23Por ventura
o investimento e com
a fundo o maior
perdido da
escrita dita literária, pois depende dos jogos do acaso.
Nacional da França.
-argelina falasse Como se a escritora
“ao inconsciente também franco-
da Biblioteca”.
Partindo dadistinção,
“delimitação, etimologia de aforismo,
definição, que aforismo”,
sentença, significa
Derrida expõe que a história de Romeu e Julieta é mais do
que simples acidente, pois a separação, sempre iminente e
ameaçadora, é decisiva em relação ao desejo. É porque o
outro ou a outra são de fato “outros”, diferentes de mim, que
há desejo. A paixão nasce dessa separação, a qual funciona o
tempo todo, implicando, no fundo, que um dos dois partirá
antes, mesmo se for com uma diferença mínima. A morte
do outro, ou seja, a separação inevitável, cedo ou tarde, dos
de
(...)uma temporalidade,
Eu amo de uma
porque o outro temporalidade
é uotro, porqueseu temuna e organizada.
pojamais será
meu. A duração viva, a própria presença de seu amor permanece
[reste]infinitamente afastada da minha, afastada de si mesma
no que a estende para a minha, e isso até no que se gostaria de
descrever como a euforia amorosa, a comunicação extática, a
intuição mística.Só possoamar o outro na paixão desseorismo
af .
Tal aforismo não advém, nem sobrevêm como a infelicidade, o
infortúnio ou a negatividade. Ele tem a forma da afirmação mais
amante a[imante:que imanta] - é a sorte do desejo. Não cortando
apenas no estofo do desejo, espaça. O contratempo diz algo da
topologia ou do visível, abrindo o teatro.26
asidade
uma dupla
que seinjunção do acasoguiar
deixa também e da pelo
necessidade, da neces
acaso, para poder
efetivamente reinventarum destino. Pois, se forem do início
ao fim programados, um romance, uma peça, uma vida se
tornam mera matéria de repetição, nada acrescentando de
particular. Para afirmar e confirmar sua assinatura, um au
tor ou um vivente precisam partir do texto alheio (“Minha
o é
Minha lei, aquela à qual tento me devotar ou responder,
texto do outro,
sua própria singularidade, seu idioma, seu apelo,
que me precede. Porém, somente posso corresponder a isso de
forma responsável (o mesmo vale para a lei em geral e para a
[en gage],
ética em particular) se coloco em jogo, e em garantia
minha singularidade, ao assinar, com outra assinatura - pois a
contra-assinatura assina ao confirmar a assinatura do outro
mas também ao assinar de uma maneira absolutamente nova e
inaugural, as duas coisas a um só tempo, como a cada vez que
confirmo minha própria assinatura,assinando maisuma vez: cada
vez da mesma maneira e cada vez de forma diferente, uma nova
vez, mais uma vez, noutra data.30
e do trilhamento
menos “Freud e a no pensamento
cena derridiano,
da escritura”, desde
um de seus pelo
ensaios
inaugurais, publicado em A escritura e a diferença.31No
coração da Gramatologia, comparece, citada em português,
a linda palavra picada (que o Houaiss dá como brasileiris-
mo), referida aos estudos de Lévi-Strauss sobre os índios
brasileiros Nambiqwaras.32 Sempre entendi essa citação de
picada como uma incitação ou injunção para que traçasse
meu próprio caminho, com, mas sobretudo a partir de,
Derrida. Ou seja, reinventado seu legado, indo mais além
de sua própria inscrição.
É nesse sentido que uma Associação Brasileira de Es
tudos de Desconstrução, se tal um dia vier à luz, deveria
repensar de ponta a ponta seus fundamentos, a fim de evitar
o comunitarismo. Derrida em diversos momentos marcou
distância em relação à ideia de comunidade.33 Segundo seu
biógrafo, isso começou no momento em que se viu segre
gado em sua Argélia natal e obrigado a frequentar uma
escola exclusiva da chamada comunidade judia. Inúmeras
34 idem, La Structure, le signe et les jeu dan s le discour des sciences humaines ,
em A escritura e a diferença,p. 409-428.
35 Cf. S. Naifeh e G. W. Smith, Van Gogh:The Life, New York, Random House,
2011 .
constituídas
pelo sonho de(como
Joyce?leitores, escritores,
Não somos o sonhocríticos, professores)
de Joyce, no e de
os leitores
seus sonhos, aqueles com quem ele sonhou e que nós sonhamos
ser, por nossa vez?36
43
qu’on appelle la littérature”, publicada no livro Derrida d’ici,
Derrida de là, organizado por Thomas Dutoit e Philippe
Romanski.
Por ser um diálogo, desde a srcem, enunciado em
mais de uma língua (plus d’une langue: categoria derri-
diana de inspiração
aqui referidos, entrebabélica),
colchetes,sempre que utilizados
os termos necessáriopelos
são
interlocutores num ou noutro idioma. Isso é tanto mais
relevante porque, como se poderá verificar, Derrida retoma
literalmente, em inglês, às vezes com sutil ironia, alguns dos
termos da fala de Attridge.
as duas O
nantes. se existencialismo,
entrecruzavam por meio
Sartre, das obras
Camus então
estavam domi
presentes
em toda parte e a memória do surrealismo ainda estava viva.
E, se essas escrituras praticaram um tipo bastante novo de
relação entre filosofia e literatura, foram, no entanto, pre
paradas para isso por uma tradição nacional e por certos
modelos, que recebiam uma legitimidade sólida por parte
do ensino nas escolas. Além disso, os exemplos que acabei
de dar parecem muito diferentes entre si.
Decerto, eu hesitava entre filosofia e literatura, sem
renunciar a nenhuma das duas, buscando talvez, obscura
mente, um lugar a partir do qual a história dessa fronteira
pudesse ser pensada ou até mesmo deslocada: na própria
mente
desejo,literatura nem
digamos, de filosofia, diverte-me
adolescente pensar
pudesse ter me que meu
direcionado
para algo da escritura que não era nem uma coisa nem outra.
O que era então?
“Autobiografia” talvez seja o nome menos inadequado,
pois permanece, a meuver, como o mais enigmático, o mais
aberto, ainda hoje. Neste momento, aqui mesmo, por meio
de um gesto que comumente seria chamado de “autobio
gráfico”, estou tentando lembrar o que aconteceu quando
me veio o desejo de escrever, de forma tão obscura quanto
compulsiva, a um só tempo impotente e autoritária. Bem, o
que acontecia naquelemomento era exatamente algo como
um desejo autobiográfico. No momento “narcísico” de
identificação “adolescente” (uma identificação difícil e fre
quentemente relacionada, em meus cadernos de juventude,
ao tema gideano de Proteu), ocorria acima de tudo o desejo
de inscrever apenas uma ou duas memórias. Digo “apenas”,
embora já o sentisse como tarefa impossível e infinita. No
fundo, havia algo como um movimento lírico em direção
às confidências ou confissões. Ainda hoje, permanece em
mim um desejo obsessivo de salvar o que acontece - ou
deixa de acontecer - na inscrição ininterrupta, sob a forma
de memória. O que eu poderia ficar tentado a denunciar
alguns
de umamovimentos miméticos;
ficção literária resumidamente,
fundada numa tratava-seo
“emoção” filosófica,
sentimento deexistência como excesso, o“ser-em-demasia”,
o próprio além do sentido que dava srcem à escritura).
Perplexidade, então, diante dessa instituição ou esse tipo de
objeto que permite dizer tudo. O que é isso? O que “resta”
quando o desejo acabou de inscrever algo que “permane
ce” [reste] lá, como um objeto à disposição de outros e que
pode ser repetido? O que significa “restar”?3Essa pergunta,
subsequentemente, assumiu formas talvez um pouco mais
elaboradas, mas desde o início da adolescência, quando eu
mantinha esses cadernos, ficava absolutamente perplexo
diante da possibilidade de confiar coisas ao papel. O devir
filosófico dessas questões passa pelo conteúdo dos textos
pela
comoperplexidade
coisa escrita.ingênua ou maravilhada diante do “resto”
Subsequentemente, a formação filosófica, a profissão, a
posição de professor foram também um desvio para voltar
a esta pergunta: “O que é a escritura em geral?” e, no espaço
da escritura em geral, a esta outra pergunta, que é mais e
outra coisa além de um simples caso particular: “O que é a
literatura?”; a literatura como instituição histórica, com suas
convenções, suas regras etc., mas também essa instituição
da ficção que dá, em princípio, o poder de dizer tudo, de se
liberar das regras, deslocando-as, e, desse modo, instituindo,
inventando e também suspeitando da diferença tradicional
entre natureza e instituição, natureza e lei convencional,
natureza e história. Nesta altura, seria preciso colocar
questões jurídicas e políticas. A instituição da literatura
no Ocidente,
ligada em sua
à autorização forma
para dizerrelativamente moderna,
tudo e, sem dúvida está
também,
ao advento de uma ideia moderna de democracia. Não que
ela dependa de uma democracia instalada, mas parece-me
inseparável do que conclama a uma democracia por vir, no
sentido mais aberto (e, indubitavelmente, ele mesmo por
vir) de democracia.
necessária
timento depara
que,mim, é porque
às vezes, talvez
poderia tivesse
haver umauminocência
press en
ou irresponsabilidade, até mesmo uma impotência, na
literatura. Eu pensava, decerto inocentemente, que não
apenas se pode dizer tudo na literatura sem consequên
cia alguma, mas também, no fundo, que o escritor como
tal não questiona a essência da literatura. Talvez, tendo
como pano de fundo um a impotência ou inibição diant e
da escrita literária que eu desejava, mas sempre colocava
num local mais alto e mais distante de mim, rapid amen
te me interessei tanto por uma forma de literatura que
carregava uma questão sobre a literatura, quanto por um
tipo filosófico de atividade que interrogava a relação entre
fala e escrita. A filosofia também parecia mais política,
digamos, mais apta a colocar politi camente a questão da
D. A. - O senhor
“ belles-lettres” fez uma
ou “poesia distinçãoesta
”, distinção entre “literatura”
presente em oue
tros textos seus (em “Préjugés: Devant la loi”,5por exemplo).
O senhor poderia ser mais preciso sob re o que fundamenta
a hipótese dessa diferença?
5 J. Derrid a, Préjugés: Devant la loi, em La Faculté dejuger, Paris, Minuit, 1985,
p. 87-140. (N. do R. T.)
se constrói
mente como
nunca a ruína
existiu. de um monumento
É a história que
de uma ruína, basica
a narrativa
de uma me mória que produz o acontecimento por relatar
e que nunca terá estado presente. Nada poderia ser mais
“histórico” , porém essa história somente pode ser pensada
mudando as coisas, em particular a tese ou a hipótese do
presente, ou seja, algumas outras coisas, não é mesmo?
Não há nada mais “revolucionário” do que essa história,
mas a “revolução” terá também que ser alterada. É talvez
o que está acontecendo... Esses eram todos textos que, em
suas várias formas, não eram mais pura e simplesmente
literários. Mas, quanto às questões inquietantes sobre a
literatura, eles não som ente as colocam, mas também lhes
dão uma form a teórica, filosófica ou sociológica, com o é o
encontravam
juventude dosreunidas
quais euasfalava
du ashá
preocupações ou desejos
pouco: escrever da
de modo
a pôr em jogo ou a manter a singularidade d a data (o que
não retorna, o que não se repete, experiência prometida
da memória como promessa, experiência da ruína ou da
cinza); e, ao mesmo tempo, no mesmo gesto, questionar,
analisar, transformar essa estranha contradição, essa ins
tituição sem instituição.
O que talvez seja fascinante é o acontecimento de uma
singularidade poderosa o suficiente para formalizar as ques
tões e as leis teóricas que lhe dizem respeito. Sem dúvida,
teremos que voltar a essa palavra potência. A “potência” de
que a linguagem é capaz, a potência que há, como lingua
gem ou como escritura, é a de que uma marca singular seja
também repetível, iterável, como marca. Ela começa, então,
a diferir de si própria o suficiente para se tomar exemplar
e, portanto, comportar certa generalidade. Essa economia
de iterabilidade exemplar é, por si mesma, formalizadora.
Ela também formaliza ou condensa a história. Um texto de
Joyce é, ao mesmo tempo, a condensação de uma história di
ficilmente delimitável. Mas essa condensação da história, da
linguagem, da enciclopédia, permanece aqui indissociável
ocorre precisamente
- em suma, porqueinsubstituível
a singularidade o traço, a datae ou a assinatura
intraduzível do
único - é iterável como tal, fazendo e não fazendo parte
do conjunto marcado. Enfatizar esse paradoxo não é um
gesto anticientífico, ao contrário. Resistir a esse paradoxo,
em nome de uma pretensa razão ou de uma lógica do sen
so comum é a própria figura de um suposto iluminismo
[enlightenment]como forma do obscurantismo modern o.
Tudo isso deve nos levar, entre outras coisas, a pensar
sobre o “contexto” em geral de forma diferente. A “econo
mia” da literatura me parece, às vezes, mais poderosa do
que a dos outros tipos de discurso, por exemplo, o discurso
histórico ou filosófico. Às vezes: depende das singulari
dades e dos contextos. A literatura seria potencialmente
mais potente.
significaria ultrapassar
ma, pela linguagem o interesse
(observe que pelo significante,
eu não pela for
digo pelo “texto”),
na direção do sentido ou do referente (essa é a definição da
prosa, um tanto simplista mas bastante cômoda, de Sartre).
É possível fazer uma leitura não transcendente de qualquer
tipo de texto. Além disso, não há nenhum texto que seja
literário em si. A literariedade não é uma essência natural,
uma propriedade intrínseca do texto. É o correlato de uma
relação intencional com o texto, relação esta que integra
em si, como um componente ou uma camada intencional,
a consciência mais ou menos implícita de regras convencio
nais ou institucionais - sociais, em todo caso. Decerto, isso
não significa que a literariedade seja meramente projetiva
ou subjetiva - no sentido da subjetividade empírica ou do
capricho de cada um. Acredito que essa linguagem de tipo
resistem
isso a essa
vale não leitura
apen transcendente
as para mais
a literatura no do quemoderno
sentido outros, e.
Em poesia ou na epopeia pré-literária (na Odisseia, tanto
quanto em Ulysses), essa referência ou essa intencionali
dade irredutível pode também suspender a crença tética e
ingênua no sentido ou no referente.
A poesia e a literatura têm como traço comum, mesmo
que sempre de maneira desigual e diferente, suspender a
ingenuidade tética da leitura transcendente. Isso também
dá conta da força filosófica dessas experiências, uma força
de provocação para pensar a fenomenalidade, o sentido
ou o objeto, até mesmo o ser como tal; uma força que é
pelo menos potencial, uma dynamis filosófica, passível, no
entanto, de se desenvolver somente na resposta, na expe
riência da leitura, pois não se encontra escondida no texto
como uma substância. Poesia e literatura proporcionam ou
muito cuidadosamente.
acidentes que poderiamNãoser são falhas, Por
evitados. erros, pecados
meio ou
de tan
tos programas tão necessários - linguagem, gramática,
cultura em geral -, a recorrência de tais “pressupostos”
[assumptions]é tão estrutural que não seria uma questão de
eliminá-los. No conteúdo dos textos literários, há sempre
teses filosóficas. A semântica e a temática de um texto
filosofia
informada dedo
forma mais severa,
que outros. mais
Às veze temática
s, esse ou maistobem
questionamen pas
sa de maneira mais eficiente pela prática efetiva da escrita, da
encenação, da composição, do tratamento da língua e da re
tórica, do que por argumentações especulativas. Às vezes, os
argumentos teóricos como tais, mesmo na forma de crítica,
são menos “desestabilizadores” ou, digamos, simplesmente
menos inquietantes para os “pressupostos metafísicos”
[metaphysical assumptions] do que essa ou aquela “maneira
efeitos “desconstrutivos”
que se autoproclama mais poderosos
radicalmente do que um
revolucionário sem texto
afetar
em nada as normas ou os modos da escrita tradicional. Por
exemplo, algumas obras que são altamente “falocêntricas”
em sua semântica, em seu significado intencional, em suas
próprias teses, podem produzir efeitos paradoxais, parado
xalmente antifalocêntricos, pela audácia de uma escritura,
que, de fato, perturba a ordem ou a lógica do falocentrismo,
tocando nos limites onde as coisas são revertidas: nesse caso,
a fragilidade, a precariedade, a própria ruína da ordem se
toma mais aparente. Estou pensando, aqui, tanto no exemplo
de Joyce como no de Ponge. O mesmo ocorre de um pontode
vista político. A experiência, a paixão da língua e da escritura
(aqui estou falando igualmente de corpo, de desejo, de prova
ção), pode atravessardiscursos tematicamente “reacionários”
ou
de “conservadores”
transgressão ou dee lhes conferir um poder
desestabilização maiordedoprovocação,
que o dos
pretensos textos “revolucionários” (sejam de direita ou es
querda), que não ousam se arriscar e prosseguem nas formas
neoacadêmicas ou neoclássicas. Estou pensando também
num número grande de obras deste século, cuja mensagem
e cujos temas políticos seriam legitimamente considerados
“de direita” e cujo trabalho de escrita e de pensamento não
daqueles
A que multiplicam
lista, infelizmente, seriasua própria
longa. Na inépcia
questãoado
esseequívoco,
respeito.
da heterogeneidade ou da instabilidade, a análise, por de
finição, escapa a todo fechamento e a toda formalização
exaustiva.
O que vale para a “produção literária55também vale
para a “leitura de textos literários” [reading literature]. A
performatívidade sobre a qual acabamos de falar exige a
mesma responsabilidade por parte dos leitores. Um leitor
não é um consumidor, um espectador, um visitante, nem
tampouco um “receptor”. Reencontram-se, portanto, os
mesmos paradox os e as mesmas estratificações. Uma críti
ca que se apresenta com proclamações, teses ou teoremas
10 J. Derrida, Khôra, trad. Nícia Adan Bonatti, Campinas, Papirus, 1995. (N. da T.)
de aalguma
task]
E, ser realizada pelosgostaria
maneira, críticosde
literários [literary
questionar critics] ?
(no sentido
crítico do termo), o prazer, até mesmo o gozo[enjoyment]
que a maioria dos leitores teve, e ainda tem, com esse tipo
de literatura e com a crítica que a promove? A literatura,
entendida e ensinada dessa forma, ou seja, como logocên-
trica e metafísica, é cúmplice de uma ética e de uma política
específicas, historicamente e no presente?
não
mais“trata” da história
significativa, maispor meio
viva, maisdenecessária
uma experiência
em suma,quedoé
que a de alguns “historiadores” profissionais ingenuamente
preocupados em “objetivar” o conteúdo de uma ciência.
Mesmo se não for um dever moral ou político (mas pode
tornar-se um), essa experiência deescrita está “sujeita” a um
imperativo: srcinar acontecimentos singulares, inventar
algo novo na forma de atos de escrita, que não consistem
mais num saber teórico, em novos enunciados constativos;
dar-se a uma performatividade poético-literária pelo menos
análoga à das promessas, das ordens, ou a atos de consti
tuição ou de legislação, que mudam não somente a língua,
ou que, ao mudar a língua, mudam mais do que a língua.
É sempre mais interessante do que repetir. Para que essa
performatividade singular seja efetiva e para que algo novo
seja produzido, não é indispensável a competência histórica
com certa configuração (a de certo saber universitário, por
exemplo, acerca da história literária), mas ela aumenta as
chances. Em sua experiência de escrita como tal, senão
numa atividade de pesquisa, um escritor não pode deixar
de estar envolvido, interessado, inquieto com relação ao
passado, seja o da literatura, da história ou da filosofia,
algumas
revelar osformas de críticafalocêntricos
pressupostos feminista, que
dostêm comoliterários
textos objetivoe
dos comentários feitos sobre tais textos durante muito tempo.
Esse tipo detrabalho coincide em alguns aspectos com o seu?
Em que medida o termo “literatura”nomeia a possibilidade
de se ler textos de forma a colocar o falocentrismo tanto
quanto o logocentrismo em questão?
texto
tambémescapa
ser, completamente ao os
em alguns casos, assim
maisprogramado) podemE
desconstrutores.
seus autores podem ser, em termos estatutários, homens
ou mulheres. Há, às vezes, mais recursos desconstrutores -
quando se quer ou pelo menos se pode operar algo com eles
na leitura, e não há nenhum texto antes ou fora da leitura
- em alguns textos escritos por Joyce ou Ponge, que muitas
vezes parecem falocêntricos ou falogocêntricos, do que em
alguns textos que, tematicamente, são de uma forma teatral
“feministas” ou “antifalogocêntricos”, sejam assinados com
nomes de homens ou de mulheres.
Em virtude da dimensão literária, o que textos “falo
gocêntricos” exibem é imediatamente suspenso. Quando
alguém encena um discurso ou um comportamento hiper-
bolicamente falocêntrico, ele/a não o subscreve assinando
a obra, ele/a o descreve e, descrevendo-o como tal, ele/a o
expõe, exibindo-o. Qualquer que seja a atitude presumida
do autor ou da autora sobre a questão, o efeitopode ser pa
radoxal e, às vezes, “desconstrutor”. Mas não se deve falar
genericamente, não há regras aqui a ponto de cada obra
singular ser apenas um caso ou exemplo delas, uma amos
tra. A lógica da obra, especialmente em literatura, é uma
Textosviolentamente
Artaud, como os de Nietzsche, Joyce,
falocêntricos Ponge,maneiras,
de tantas Bataille,
produzem efeitos desconstrutores, e precisamente contra o
falocentrismo, cuja próp ria lógica está sempre pronta para
se reverter ou se subverter. No sentido inverso, se posso
falar dessa maneira, quem acreditará de modo irrefletido
que George Sand, George Eliot, ou imensas escritoras
modernas, como Virginia Woolf, Gertrude Stein ou
Hélène Cixous, escrevem textos que são simplesmente não
ou antifalogocêntricos? N esse caso, peço que se verifique,
atentamente, a cada vez. Devem existir refinamentos, tanto
em relação ao conceito ou à lei do “falocen trismo” quanto
em relação à possível pluralidade das leituras de obras
sempre singulares. Hoje estamos numa fase ligeiramente
“grosseira” e pesada da questão. Na polêmica, confia-se
demais nas pretensas identidades sexuais dos signatários,
no próprio conceito da identidade sexual; as coisas são
tratadas de modo demasiadamente genér ico, como se um
texto fosse isso ou aquilo, de forma homogênea, por esse ou
aquele motivo, sem levar em consideração o que, no status
ou na própria estrutura de uma obra literária - diria ainda
nos parado xos de sua economia deveria desencorajar
tais simplificações.
para
peça afoileitura
casual,que o senhor
atendeu a umpropõe?
convite,E ou
suasente
escolha
que,dessa
entre
as obras de Shakespeare, essa merece atenção especial em
termos de seus interesses e objetivos?
édedemasiado frouxa,
uma disfunção sem rigor,
patológica. A aquestão
causa de uma anomalia
é sempre a de umae
avaliação econômica: o que faz o “melhor jogo”? Em que
medida o “bom” jogo, que faz as coisas funcionarem, corre
o risco de dar srcem ao “jogo ruim”, que compromete o
bom funcionamento? Por que, querendo a todo custo evitar
o jogo, pois poderia ser ruim, arriscamo-nos também a nos
da leitura, da que,
É por isso história
por etc.?
mais que seja oblíqua, parcial e mo
desta, uma leitura como a que procuro fazer de Romeu e
Julieta, talvez não seja simplesmente irrelevante ou incom
petente. Obviamente, não reconstituítoda a história. Mas
quem teria a pretensão de fazê-lo? E eu disse algumas coisas
sobre essa situação “histórico-anacrônica” ao falar da singu
laridade da e na peça de Shakespeare, de seu nome próprio
e de seus nomes próprios. Sobretudo não tenho a pretensão
de fazer dessa breve incursão um exemplo ou modelo. Foi
algo que desejei assinar e até datar num momento passado
em dezembro daquele ano, em Verona (como é dito no final
do texto). Queria me lembrar disso e dizer que sou bastante
sensível a essa história de contra-tempos, à história como
contratempo, a essas leis que extrapolam enormemente o
caso de Romeu
estrutura e Julieta, pois isso se inscreve diretamente na
do nome e da marca iterável. Ninguém é obrigado
a se interessar pelo que me interessa. Mas se isso realmente
acontecesse, então seria preciso perguntar o que acontece,
em que condições etc. E é o que geralmente faço, mas nem
sempre. Quis dizer que Romeu e Julieta não é o único, mas
é um exemplo muito bom. Sua singularidade não deveria
um nome
ou seja, próprio,
para evidentemente
qualquer vale
singularidade paraqualquer
e para qualquernome
obra,
próprio. O que é trágica e felizmente universal aqui é a ab
soluta singularidade. Como seria possível falar ou escrever
de outra maneira? O que se teria a dizer de outra maneira?
E tudo para jamais dizer nada, na verdade? Nada que toque
em absoluto na singularidade absoluta sem imediatamente
perdê-la, e, sugiro
-la? É o que ao mesmo
nessetempo, também
pequeno texto esem
em nunca
alguns perdê-
outros,
especialmente emSchibboleth,em Feu la cendre ou em “Che
cos’è la poesia?”.16Essa tragédia, quero dizer, esse destino
sem destinação estritamente determinável, é também a
tragédia da competência, da pertinência, da verdade etc. Há
muito disso, mas é preciso haver esse jogo da iterabüidade na
singularidade do idioma. E tal jogo ameaça o que ele mesmo
toma possível. Não se pode separar a ameaça da sorte, nem
a condição de possibüidade do que limita a possibüidade.
Não há singularidade pura que afirme a si própria como tal
sem logo se dividir e, portanto, se expatriar.
O senhor também me perguntou: “E sua escolha dessa
peça foi casual, atendeu a um convite (...)?” Sim, atendia um
16 Idem, Che cosê la poesia?, trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar, Inimigo rumor,
Rio de Janeiro, 7Letras, n. 10, p. 113-116, maio 2001. (N. da T.)
literários? É possível
desse ou daquele atofalar da unicidade
histórico de umtexto separada
de leitura?
divisível,
lado, se hádaí a dificuldade
sempre que eu anunciava.
singularização, Pois,por
a singularidade outro
absoluta
nunca é dada como um fato, um objeto ou um ente em si.
mesmo; é anunciada numa experiência paradoxal. Uma
singularidade absoluta, absolutamente pura, se houvesse,
nem mesmo apareceria ou, em todo caso, não estaria dis
ponível para a leitura. Para se tornar legível, é preciso que
ela seja compartilhada [separtage], queparticipe e pertença.
Então, ela se divide e toma parte no gênero, no tipo, no
contexto, no sentido, na generalidade conceituai do sentido
etc. Perde-se a si própria para se dar. A singularidade nunca
é uma coisa pontual, nunca é fechada como um ponto ou
como um punho. É um traço [trait], um traço diferencial e
diferente de si próprio: diferente de si para consigo mesmo.
A singularidade difere de si mesma, diferindo-se para ser o
“La Loi du genre” é outro ensaio de Parages (p. 231-266). Cf. nota 13 (N do
R.T.)
contra-assina.
na expectativa Odaprimeiro
segunda texto apenas inaugura
contra-assinatura. a partir
Tem-se aquie
uma cena incalculável, porque não se pode contar um,
dois, três, nem o primeiro antes do segundo, uma “cena”
que, por definição, nunca se revela e cuja fenomenalidade
pode somente se furtar, mas que deve ter programado as
“reivindicações tradicionais” [traditional claims] de todas
as “críticas literárias”. Ela produziu, decerto, a história de
seus teoremas e de suas escolas.
ls R. Gasché, The Tain of the Mirror: Derrida and the Philosophy of Reflection,
Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1986, p. 269. Tradução france
sa de Marc Froment-Meurice, Le Tain du mirroir, Paris, Galilée, 1995. (N. do
R.T.)
é preciso
locar determinar
assim, seu devir-literatura,
e então distinguir se éem
entre a ficção quegeral
posso(nem
co
toda ficção é literária, nem toda literatura é estritamente da
ordem da ficção), a poesia ou as belas-letras, a literatura, que
tem esse nome somente há poucos séculos etc. É preciso
também - e é disso justamente que estamos falando - discer
nir com exatidão o fenômeno historicamente determinado
das convenções sociais e das instituições que dão lugar, seu
lugar à literatura. Gasché está correto em indicar que essa
estrutura histórico-institucional não é uma “infraestrutura”
geral do texto. Não está no mesmo nível do que não chama
rei de infraestrutura, mas sim de generalidade sem limites
da différance,do rastro, do suplemento etc. Dito isso, talvez
seja neste ponto que poderia haver uma discussão com
Gasché para além da escolha estratégica de terminologia:
embora a literatura não seja o texto em geral, embora nem
toda arquiescritura seja “literária”, indago-me se a literatura
é simplesmente um exemplo, um efeito ou uma região en
tre outras de alguma textualidade em geral. E imagino se é
possível simplesmente lhe aplicar a questão clássica: o que,
com base nessa textualidade geral, faz a especificidade da
literatura, a literariedade?
constituindo
sar a estruturaantes umdafiotextualidade,
geral condutor privilegiado parachama
o que Gasché aces
de infraestrutura. O que a literatura “faz” com a língua
detém um poder revelador, que certamente não é único,
pois ela pode compartilhá-lo até certo ponto com o direito,
com a linguagem jurídica, por exemplo, mas que, numa
dada situação histórica (precisamente, a nossa própria, e
essa é uma razão a mais para nos sentirmos envolvidos,
provocados, convocados pela “questão da literatura”), nos
ensina mais, e até o “essencial”, sobre a escrita em geral,
sobre os limites filosóficos ou científicos (por exemplo,
linguísticos) da interpretação da escrita. Em suma, essa é
uma das razões principais de meu interesse pela literatura,
e estou convencido de que isso motiva o interesse de tantos
teóricos da literatura pelos procedimentos desconstrutivos
quando privilegiam a escritura.
2. Em segundo lugar, mesmo se for preciso analisar
exaustivamente essas questões histórico-institucionais, a
política e a sociologia da literatura, esta não é uma institui
ção entre outras ou como as outras. Percebemos, mais de
uma vez, no decorrer desta conversa, o traço paradoxal: é
uma instituição que consiste em transgredir e transformar,
seus ancestrais
uma instituiçãoe especial
seus descendentes. Masinaugurada
para sua obra, Joyce sonhou
porcom
ela
como uma nova ordem. E ele não alcançou isso, em certa
medida? Quando falei a esse respeito, como fiz em Ulysses
Gramophone, tive mesmo que entender e também comparti
lhar seu sonho: não somente compartilhar, tomando-o meu,
reconhecendo-o como meu, mas compartilhá-lo porperten
cer ao sonho de Joyce, porfazer parte dele, perambulando
em seu espaço. Não somos, hoje, pessoas ou personagens
em parte constituídas (como leitores, escritores, críticos,
professores) no epelo sonho de Joyce? Não somos o sonho
de Joyce, os leitores de seus sonhos, aqueles com quem ele
sonhou e que nós sonhamos ser, por nossa vez?
Para a pergunta “Quem seria capaz de lê-lo?”, não há
uma resposta preestabelecida. Por definição, o leitor não
existe. Não antes da obra e como seu simples “receptor”. O
sonho de que falávamos diz respeito ao que, na obra, produz
seu leitor, um leitor ainda inexistente, cuja competência
não pode ser identificada, um leitor que seria “formado”,
treinado, instruído, construído, até engendrado, digamos
inventadopela obra. Inventado, ou seja, a um só tempo, en
contrado por acaso e produzido pela pesquisa. A obra então
forma, a umpossíveis
certamente só tempo-geral e singular.
e sim, Outras
eu gostaria formas
também de são
me
consagrar a elas.