Psicologia Como Ciencia

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PSICOLOGIA E

CRIMINOLOGIA

Eliane Dalla
Coletta
Introdução à psicologia
geral e à psicologia jurídica
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Reconhecer o surgimento da psicologia como ciência.


„„ Identificar as diferentes abordagens da psicologia.
„„ Descrever a emergência da psicologia jurídica como disciplina e área
de atuação.

Introdução
A psicologia é uma ciência que estuda o comportamento e o psiquismo
humano. Seu surgimento se relaciona ao estudo do comportamento e
dos fenômenos mentais com objetividade e métodos e técnicas espe-
cíficas, conforme o método científico. Na prática, a psicologia científica e
experimental surgiu com a inauguração do primeiro laboratório experi-
mental, em 1878, levada a cabo por W. Wundt, em Leipzig, na Alemanha.
Desde então, surgiram muitas correntes psicológicas. A multiplicidade
das psicologias, sobretudo no domínio prático, leva à identificação de
duas atitudes psicológicas básicas, que correspondem a duas maneiras
de se fazer psicologia: experimental e clínica.
A psicologia experimental estuda mais profundamente o comporta-
mento humano. Já a psicologia clínica trata da investigação sistemática
de casos individuais ou grupais na exploração do psiquismo humano
por meio da linguagem (da palavra), como também do tratamento tera-
pêutico de certas neuroses e psicoses. Não há dúvida de que ambos os
domínios se complementam, apesar de possuírem muitas divergências.
Neste texto, você vai conhecer a história da psicologia e vai entender
como ela alcançou o seu estatuto de cientificidade. Também vai conhecer
as três grandes doutrinas da psicologia: behaviorismo, psicanálise e ges-
talt. Além disso, vai compreender as principais atribuições do psicólogo
na área jurídica.
12 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

Desenvolvimento da psicologia como ciência


Para entender o desenvolvimento da psicologia como ciência, você deve vi-
sualizar esse processo historicamente. A psicologia é tão antiga quanto o
desenvolvimento do pensamento subjetivo. Ela remete ao início da preocupação
do homem com as suas percepções e emoções. Essa preocupação abrange
também o desenvolvimento do pensamento racional sobre o mundo e sobre
os seres humanos, bem como o pensamento do homem sobre si mesmo, o
sujeito pensante da filosofia.
Quando o homem não aceita mais as explicações míticas e passa a questio-
nar a origem da vida, o pensamento mítico dá lugar ao pensamento racional,
passando para o estágio de filosofar. Como você sabe, filosofar significa refletir
sobre os fatos, acontecimentos, sobre o existir. Surge então o pensamento
filosófico. Até o século XIX, todas as ciências humanas ficaram vinculadas
ao destino da filosofia, mais especificamente da antropologia filosófica.
Quando a psicologia se desprendeu da psicologia, ela se desenvolveu como
ciência humana, tomando consciência de que o conhecimento científico não
é filosófico. Esse desprendimento ocorreu em meados do século XIX, quando
surgiram as ciências humanas, com a adoção de metodologias empíricas aceitas
como ciência (ABIB, 2009).
Nesse processo de constituir-se como ciência, sendo a psicologia uma ciência
humana, necessitou romper com duas perspectivas por sua incapacidade de
revelar o objeto específico de seu estudo: o homem. A primeira perspectiva
é a sua ligação histórica com a filosofia, que descrevia os comportamentos
do homem em termos de substância e de faculdades inatas transcendentes.
A psicologia era concebida como a explicação racional dos comportamentos
de consciência. Como representantes dessa psicologia, você pode conside-
rar Descartes (1596–1650), Kant (1724–1804), Bergson (1859–1941) e Ribot
(1839–1916). Nessa fase, a psicologia era considerada uma ciência menor dentro
da filosofia e se dedicava ao conhecimento abstrato e puramente reflexivo.
A segunda perspectiva foi a da sua aliança com as ciências experimentais
de ordem psicoquímica ou biológica, que tinham o estatuto de cientificidade
reconhecido por todos. O homem tornou-se então “objeto de experiência”. Foi
o período da redução dos fenômenos psíquicos aos fenômenos orgânicos e
experimentais. O homem passou a ser estudado em laboratórios com o objetivo
de provar a origem orgânica de seus comportamentos.
Na segunda metade do século XIX, na Europa, havia teorias diversificadas
sobre as exigências espiritualistas sobressaindo-se taxativamente em todos
os domínios da vida intelectual, com a dominância da ideia do determinismo
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 13

universal. O objetivo primordial e único era a análise dos “fatos” e de suas


regularidades. O saber somente era alcançado por meio da experiência “po-
sitiva”. O positivismo é, ainda hoje, uma teoria utilizada nas investigações
científicas quando a pesquisa privilegia o quantitativo, o rigor, a racionalidade,
a medição objetiva e os fatos observáveis.
Entretanto, foi pela sua proximidade com a filosofia que a psicologia
concebeu a sua emancipação e o seu acesso a um estatuto científico, por
conformação ao modelo das ciências da natureza que já estavam constituídas.
Por isso, até hoje a psicologia balança entre duas grandes correntes: uma mais
filosófica, que utiliza modelos explicativos e interpretativos, e outra propria-
mente científica, que tem proximidade com as ciências naturais e com seus
modelos explicativos (behaviorismo).
A psicologia experimental foi a primeira a utilizar um método psicológico
com pretensões científicas. Instituiu-se contra a atitude introspectiva. O fato
psicológico era concebido como a recepção de um estímulo seguido de uma
resposta, e o método permitia que esse circuito funcionasse em condições
controláveis e mensuráveis pelo experimentador.
Você deve notar que o nascimento da psicologia científica ocorreu num
clima intelectual impregnado pelo positivismo comtiano. Foi o fisiólogo e
anatomista E. H. Weber (1795–1878) que, por meio de seus estudos sobre as
sensações táteis e visuais, conseguiu, pela primeira vez, passar do domínio
da fisiologia ao da psicologia. Ernst Heinrich Weber, médico alemão, foi o
fundador da psicologia experimental, publicando o seu trabalho experimental
em 1846. Nesse trabalho, ele comprovou, por meio do método experimental,
que a sensibilidade comum é a consciência do estado sensorial global do corpo.
Para ele, a sensação deveria ser distinguida da sua interpretação.
Porém, é relacionado a W. Wundt (1832–1920) o surgimento da psicologia
experimental, sendo ele o primeiro psicólogo na história da psicologia. Antes
de Wundt, havia muitas psicologias, mas não existiam psicólogos. Os precur-
sores são médicos, fisiologistas e físicos. Em 1879, Wundt criou o primeiro
laboratório experimental, em Leipzig, na Alemanha, todo equipado com o
instrumental científico daquela época. Wundt dedicou-se inicialmente ao
estudo da percepção sensorial, especialmente da visão. Mais tarde, passou
a estudar a memória, a inteligência, bem como o desenvolvimento estético,
moral e social. Ele queria descobrir e determinar a relação dos fenômenos
psíquicos com seu substrato orgânico, especialmente cerebral, pois acreditava
que nada se passava na consciência que não encontrasse seu fundamento em
determinados processos físicos. Entretanto, atribuiu às pesquisas experimen-
tais apenas um campo bastante limitado, reconhecendo dois tipos de leis do
14 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

conhecimento: leis associativas e leis perceptivas, sendo que a lei perceptiva


exprimia a atividade livre do pensamento.
Para Wundt, a psicologia como ciência é psicologia empírica. A psico-
logia empírica, por sua vez, é voltada para a causalidade psíquica. Assim, a
observação dos fenômenos psíquicos busca determinar e captar as causas,
leis e condições iniciais do fenômeno, em um cenário em que as afirmações
são controláveis pelos fatos. Nesse sentido, Wundt fecha as portas para as
explicações mais obscuras e espiritualistas ou materialistas. Em 1874, ele
escreveu o primeiro livro sobre estruturalismo. Posteriormente, essa obra
foi abandonada pela psicologia, pois não conseguiu apresentar um padrão de
semelhança de critérios entre sujeitos, já que cada pessoa possui um sistema
perceptivo único. Wundt é considerado o principal pensador dessa teoria.
Contrapondo-se a Wundt, surgiu, em 1890, Willian James (1842–1910),
conhecido como o pai da psicologia americana. Ele sustentava que a psicolo-
gia era uma ciência natural. Surgia então o funcionalismo como uma reação
às teorias do estruturalismo. Como ciência natural, a psicologia consistia
na previsão e no controle práticos. Você pode considerar que foi a partir de
Wundt e James que a história da psicologia como ciência se iniciou. Alguns
estudiosos afirmam que nessa fase a psicologia era mais um projeto cientí-
fico, não chegando a se consolidar como ciência. Mas foi a partir de então
que essa disciplina procurou atingir o estatuto de cientificidade, mediante a
reivindicação do modelo de objetividade característico das ciências naturais.
O desenvolvimento da psicologia experimental enfrentou sérias oposições em
função de querer romper com a filosofia (FELDMAN, 2015).
No seu desenvolvimento como ciência, a psicologia teve de se valer do
método experimental dos físicos e dos biólogos na busca da cientificidade.
Na aplicação desse método, foi constatada a insuficiência para definir e para
validar o objeto da psicologia. Com esse fracasso da psicologia dos estados
mentais e o êxito simultâneo da psicologia animal (reflexo condicionado),
surgiu a grande revolução em psicologia — o behaviorismo — a partir de
1913, com o famoso artigo de Watson (1849–1936) chamado Psychology as
the Behaviorist views it. Com esse artigo, Watson apresentou uma posição
radical contra toda e qualquer psicologia que pensasse e admitisse a existência
da consciência como objeto de estudo da psicologia.
Porém, a psicologia não poderia prescindir do estudo da imaginação, do
afeto, das emoções e dos sentimentos. Então, nessa época em que o behavio-
rismo pretende expurgar a psicologia científica de todo o recurso à observação
interna dos fatos da consciência, bem como de toda a propagação filosófica,
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 15

surgiram dois fatos novos que teriam uma consequência profunda na história
da psicologia. O primeiro fato foi a iniciação filosófica de Husserl (1859–1938),
que procurou instituir a fenomenologia como uma disciplina científica. O
segundo fato foi a instauração da psicanálise freudiana. As investigações de
Husserl e a Interpretação dos sonhos, de Freud, apareceram no ano de 1900,
e as Ideias diretrizes para uma fenomenologia, de Husserl, em 1913. Ambas
foram contemporâneas dos famosos artigos de Watson.
Como você deve imaginar, abranger todas as correntes psicológicas com
um quadro completo e detalhado desses três séculos de existência é uma tarefa
impossível. A psicologia se apresenta numa pluralidade espantosa de domínios.
Essa multiplicidade por vezes é atribuída às variações das práticas psicológicas,
que frequentemente se entrelaçam. Ao estudar essa disciplina, é importante
que você entenda a sua pluralidade e as suas diversas correntes doutrinárias e
metodológicas, bem como os distintos pontos de vista pelos quais a psicologia
vê seu objeto. Assim, a psicologia não pode ser considerada uma disciplina
única nem unificada. É de suma importância que você identifique em qual
doutrina ou método se baseiam determinadas análises do seu cotidiano e do
seu “eu” enquanto indivíduo histórico.

A regulamentação da profissão de psicólogo no Brasil levou um longo tempo. Houve


discussões, idas e vindas de projetos, pré-projetos, substitutivos, emendas e muita
negociação até a primeira lei que regulamentou a profissão, em 1962 (BRASIL, 1962).
Porém, para os estudiosos e historiadores, o início da atuação dos psicólogos ocorreu
na década de 1930, início da industrialização e do desenvolvimento progressivo de
urbanização, que requeriam práticas psicológicas na organização do trabalho, nas
escolas e nas clínicas infantis. Nessa época, no Brasil, buscava-se a construção de um
novo país e de um novo homem, meta nacionalista que se inspirava no positivismo e
no tecnicismo, tendo a psicologia como apoio. Nos pré-projetos, projetos e emendas,
você encontra as discussões sobre a temática do ensino de psicologia e a profissão
do psicólogo. Surgem, então, as primeiras propostas de atribuições do psicólogo
(1953–1954) como: professor de psicologia, psicólogo clínico, psicotécnico, orientador
educacional e psicopedagogo. Nesse período, também surgiram outras comissões
que tiveram como tema: psicologia geral, psicologia infantil e psicopedagogia, psico-
patologia, psicoterapia e psicanálise, psicologia social e jurídica. Foram criadas diversas
associações nos estados de São Paulo, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Em 1975, o processo foi finalizado com a aprovação do Código de Ética e a criação dos
conselhos e da profissão de psicólogo.
16 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

Diferentes abordagens da psicologia


Na constituição das ciências humanas no século XIX, surgiram as primeiras
escolas, divididas em duas grandes tendências: comportamental e clínica. A
psicologia experimental (behaviorismo) se volta ao método científico e estuda
a conduta humana, ou seja, o comportamento do ser humano. Já a psicologia
clínica (psicanálise) é voltada ao estudo profundo do psiquismo humano. A
psicologia do século XX apresenta diversas e diferentes concepções sobre o
homem. Essa psicologia continuou num processo contínuo de transformação,
tendo hoje, no século XXI, diversas ramificações.
Você vai ver aqui as diferentes abordagens da psicologia em suas princi-
pais correntes e teorias psicológicas. Essas correntes e teorias deram origem
a uma vasta multiplicidade de psicologias; muitas delas são divergentes no
seu método e no seu objeto de estudo, mas diversas outras são convergentes
e complementares. Por isso, hoje é muito difícil, até mesmo para o psicólogo,
definir o que a psicologia estuda. Isso dependerá de que doutrina, de que
teoria está em jogo. Existem várias respostas possíveis e há uma multipli-
cidade de olhares sobre o homem, com diferentes modos de investigação e
de atuação prática.
A seguir, você vai conhecer melhor aquelas que são consideradas grandes
correntes na psicologia: o behaviorismo, a psicanálise e a gestalt.

Behaviorismo
A doutrina behaviorista se afirmou a partir de 1913, com o famoso artigo de
Watson chamado Psychology as the Behaviorist views it. Nesse artigo, Watson
apresentou uma posição radical contra toda e qualquer psicologia que pensasse
e admitisse a consciência como objeto de estudo da psicologia.
O comportamento, para essa doutrina, é uma reação ou resposta do “su-
jeito” observado (homem ou animal) a uma determinada situação. Ou seja,
é a resposta do sujeito observado a um estímulo. Isso é expresso no esquema
clássico: S ← R. O estudo do comportamento será possível a partir da variação
do estímulo S e da observação de cada reação ao estímulo dado.
A psicologia do comportamento encontra nos estudos de Pavlov (1849 –
1936) sobre reflexos condicionados uma grande auxiliar. Pavlov estudou o
reflexo animal e o behaviorismo baseou-se nesse estudo, que analisa a pos-
sibilidade de passar do reflexo espontâneo aos reflexos condicionados, o que
culminaria numa espécie de educação do comportamento. Por uma questão de
método e de coerência doutrinária, a psicologia behaviorista desconsiderou o
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 17

papel do imaginário na vida dos indivíduos, reduzindo o pensamento somente


aos fenômenos sensório-motores passíveis de observação.
No início dos anos 1930, Skinner (1904–1990), na análise de problemas
precisos de aprendizagem, limita metodologicamente sua abordagem a ape-
nas dois tipos de fatos observáveis: os inputs ou estímulos apresentados e os
outputs ou respostas verificáveis e mensuráveis que lhes seguem. Entre os
dois fatos encontra-se o “organismo” ou a “pessoa”, com muitas variáveis
intermediárias psicológicas e mentais. Skinner não reconhece essas variáveis
e compara esse “organismo” a uma caixa preta. Nessa caixa, é possível apenas
o estabelecimento de relações entre os inputs e os outputs. Assim, não se pode
saber nada do seu interior, pois não é observável. Skinner introduz o conceito
de condicionamento operante por meio de sua experiência com ratos (Pavlov
havia identificado o condicionamento respondente-reflexo) e a sua teoria do
reforço — em que todo organismo tende a repetir situações agradáveis, sendo
que o papel do reforço é converter essas situações numa resposta frequente.
Essa doutrina trouxe uma contribuição significativa para a psicologia.
Muitos conceitos e técnicas que apareceram a partir dessa linha de pensamento
ainda são muito utilizados na aprendizagem, como os métodos instrucionistas e
as tecnologias de ensino. Essas noções também são utilizadas nos treinamentos
de empresas, na clínica, no trabalho educativo de crianças excepcionais, na
indução da fala em pessoas com atraso no desenvolvimento, no tratamento de
autismo, no tratamento de fobias, em anúncios publicitários, etc.

Psicanálise
A psicanálise surgiu em 1900, com a publicação da primeira obra de Freud
(1856–1939), A interpretação dos Sonhos. Freud descobriu o inconsciente por
meio da análise dos sonhos, atos falhos e lapsos. Com a investigação sistemática,
construiu uma teoria unificada da mente, demonstrando que a certeza da consci-
ência não é verdadeira, porque a vida intencional pode ter outros “sentidos” que
não o imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber, instala-se o
inconsciente, revelando um saber que não é dado, mas que deve ser procurado
para ser encontrado. A descoberta do inconsciente gerou um efeito radical no
pensamento da época, especialmente em todas as áreas da ciência.
A psicanálise é conhecida no mundo todo e até hoje muito praticada na
clínica psicológica. É uma teoria que apresenta um entendimento complexo
e estruturado da vida psíquica, utilizando o método interpretativo. Na prática
profissional, a forma de tratamento é a análise, que busca a cura pelo autoco-
nhecimento por meio da técnica de associação livre.
18 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

Entre 1920 e 1930, surge a teoria da personalidade, com os conceitos de


id, ego e superego. No id, encontram-se as pulsões de vida e de morte; o
inconsciente é regido pelo princípio do prazer. O ego é regido pelo princípio
da realidade, buscando o equilíbrio entre as forças do prazer (id) e as forças do
superego, que é a consciência moral. O ego tem como funções básicas: a memó-
ria, a percepção, os sentimentos e o pensamento. No superego, encontram-se
os valores da sociedade; essa esfera busca atingir três objetivos, que são inibir
qualquer impulso contrário às regras, forçar o ego a se comportar de maneira
moral e conduzir o indivíduo à perfeição em gestos, pensamentos e palavras
(ideal do ego). Nesses sistemas, encontram-se as experiências pessoais, que
se constituem na relação com o outro e na conjuntura social.
No campo social, Freud escreveu O mal-estar na civilização e Reflexões
para o tempo de guerra e morte. Nessas obras, o autor reflete sobre a possi-
bilidade constante de dissolução dos vínculos sociais.
A psicanálise e os psicanalistas contribuíram também em várias áreas da
saúde mental. Como exemplo dessa contribuição, você pode considerar o tra-
balho de Winnicott no tratamento de crianças com transtornos psíquicos. Ana
Freud é outro exemplo; ela se dedicou ao tratamento de crianças e ao estudo
dos mecanismos de defesa. Já Françoise Dolto e Maud Mannoni focaram seu
trabalho no tratamento de crianças e adolescentes em creches, hospitais e abrigos.

Gestalt
A gestalt é uma doutrina que estudou também o comportamento, porém di-
ferentemente do behaviorismo. Ela considera que o comportamento somente
pode ser estudado em um contexto amplo e não isolado. Assim, é necessário
considerar as condições que alteram a percepção do estímulo. Para os gestal-
tistas, toda percepção é um gestalt (um todo) que não pode ser compreendido
pela separação das partes, pois o todo é maior que a soma das partes.
A gestalt surgiu em 1910, na Alemanha, com os trabalhos científicos de
Max Wertheimer (1880–1943), Wolfgang Köhler (1887–1967) e Kurt Kofka
(1886–1941). Os estudos psicofísicos que relacionavam a forma à sua percepção
construíram a base dessa teoria. Os estudos da percepção e da sensação do
movimento trouxeram uma importante contribuição para a psicologia, pois
a descoberta da influência da percepção no comportamento revolucionou os
princípios fundamentais da ciência. Considere, por exemplo, duas pessoas
olhando o mesmo objeto ou a mesma situação. Naturalmente, elas podem
ver de diferentes formas. Isso é possível porque a percepção é induzida por
vários fatores que podem distorcê-la ou moldá-la. Onde estão esses fatores?
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 19

Esses fatores podem estar em quem percebe, no objeto percebido, no ponto de


onde ele é visto ou na situação em que a percepção ocorre. Essa descoberta da
relação entre o todo e a parte — o todo influencia a compreensão do objeto —
demonstra que o comportamento das pessoas é determinado por sua percepção
da realidade e não pela realidade em si. Pode haver diferentes entendimentos
da realidade por diferentes pessoas, o que contribui para muitas distorções
na comunicação e na compreensão de diferentes situações. A solução dos
problemas resultaria na reestruturação do campo perceptual.
A partir da compreensão no campo da percepção, se seguiram outros
estudos, como aqueles relacionados à aprendizagem, à memória e às reações
motoras. Todos esses aspectos foram estudados a partir do princípio de que
não podem ser compreendidos pela separação das partes, e sim pelo todo, que
é maior do que a soma das partes.
Essas três doutrinas constituíram os padrões de referência no desenvolvimento
da ciência psicológica, levando às mais diversas ramificações na psicologia
contemporânea. A partir do behaviorismo, surgiram o behaviorismo radial e o
behaviorismo cognitivo. Da gestalt, vieram a psicologia existencialista e a gestalt
terapia. Da psicanálise, originaram-se a psicologia analítica (Jung), a reichiana
(Wilhelm Reich), a kleiniana (Melanie Klein) e a lacaniana (Jacques Lacan).
Além disso, esses estudos embasaram as psicologias da aprendizagem, a
psicologia escolar, a psicologia social, a psicologia organizacional, a psico-
logia cognitiva e a psicologia jurídica. Há tantas psicologias quantas são as
perspectivas sobre o homem, e não há como unificá-las numa psicologia geral,
pois são muitos pontos de vista diferentes. O que elas têm em comum é que
buscam aprofundar e apreender aquilo que manifesta-se como o sentido do
ato pelo qual o homem convoca a si mesmo e o mundo em seu projeto.

A profissão de psicólogo foi regulamentada no Brasil pela Lei nº. 4.119, de 27 de agosto
de 1962. Contudo, desde a década de 1950 até a regulamentação, houve muitos
movimentos. Além disso, somente 13 anos depois da aprovação da lei, em 1975, é
que o processo foi finalizado com a aprovação do Código de Ética e a criação dos
conselhos e da profissão de psicólogo.
Saiba mais sobre o assunto no artigo O psicólogo no Brasil: notas sobre seu processo
de profissionalização, disponível no link a seguir.

https://goo.gl/nfonh7
20 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

Psicologia jurídica como disciplina e área de


atuação
A psicologia é uma ciência secular de difícil apreensão em sua totalidade.
Afinal, como você viu, há diversas doutrinas e diversos métodos de investi-
gação no imenso domínio das ciências exatas, biológicas, naturais, humanas
e, mais recentemente, na neurociência. Essa diversidade deve-se à variação
das práticas psicológicas, que muitas vezes se entrelaçam.
Por essa amplitude de domínio, a psicologia estabelece relações com muitas
outras áreas de conhecimento, bem como com áreas importantes da vida em
sociedade, como é o caso da saúde, da educação, do trabalho, das comunidades,
da Justiça e outras mais.
A relação da psicologia com o direito é anterior ao surgimento daquela
como ciência. Analisando o percurso histórico, é possível ter uma dimensão
disciplinar da psicologia jurídica. Se você analisar a história da loucura,
partirá da Idade Média. Nessa época, a loucura era uma ocorrência privada,
os cuidados e tratamentos médicos eram exclusivos dos mais ricos. No século
XVII, o “louco” passou a ser internado em instituições, pois acarretava uma
ameaça à ordem da razão e da moral da sociedade. Durante o período da Idade
Média até o século XVIII, o homem era o sujeito da razão relacionado ao
direito moderno. Nesse período, a religião dominava todas as esferas da vida,
desempenhando o papel de julgamento das atitudes humanas. As relações entre
os sujeitos eram de tamanha complexidade que o direito amparou a função
de julgar por meio de suas leis, porém teve que se embasar nos conceitos e
estudos de outras ciências para o entendimento dos comportamentos desviantes
ou inadequados.
Nos séculos XVIII e XIX, surgiu o novo funcionamento do sistema penal.
Assim, a conduta dos juízes desloca-se para a análise do comportamento. O
julgamento não era apenas pela prática criminosa: o sujeito passou a ser julgado
pela culpa ou inocência, pela sanidade ou insanidade, por seu louco ou normal.
A partir do século XIX, a relação entre a psicologia e o direito passou a
se evidenciar com as experiências sobre testemunhos e o sistema de inter-
rogatório, a detecção da mentira, os falsos testemunhos e a simulação de
anamneses, surgindo a psicologia do testemunho. A função da psicologia era
verificar a veracidade e a precisão dos depoimentos nos processos judiciais.
A psicologia, nessa época, tinha a influência do paradigma do positivismo,
com seus métodos das ciências naturais.
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 21

No início do século XIX, o psicólogo era requisitado como testemunha


pericial. O primeiro psicólogo nessa função foi Albert Von Sharanck, que em
1896 tentou convencer um juiz de que a interferência da memória e das falsas
memórias seria capaz de prejudicar a coisa julgada. A psicologia jurídica como
disciplina e área de atuação foi aceita prontamente na Europa. Nos Estados
Unidos, essa função do psicólogo foi reconhecida bem mais tarde, com um
discípulo do Wundt, Hugo Munsterberg. Ele buscava conscientizar seus pares
sobre a importância da interação entre a psicologia e o direito, iniciando a
atuação dos psicólogos para a realização de perícias sobre os estados mentais
das pessoas com processos judiciais.
As questões a serem respondidas pelos psicólogos passaram a ser: é
consciente de seus atos ou não? É sano ou insano? É o vitimador ou a
vítima? Que perigo representa para a sociedade? Precisa de cadeia ou hos-
pital? O psicólogo, em qualquer área que atue no estabelecimento da justiça,
“[...] utiliza da vigilância da Lei para a construção de suas técnicas de exame,
de avaliação, de diagnóstico, já que esta atividade profissional não se firma
ou limita ao espaço intramuros do estabelecimento Fórum [...]”, conforme diz
Brunini (2016, p. 83-84).
No Brasil, em 1955 foi editada a obra Manual de Psicologia Jurídica, por
­Emilio Mira y Lopez. Essa obra trata sobre os processos de avaliação da per-
sonalidade criminosa. Nas décadas de 1940 e 1950, a psicologia, junto com a
psiquiatria, inicia sua atuação no universo das prisões com fins avaliativos para
subsidiar processos jurídicos e, em 1962, a profissão do psicólogo é regulamentada.
O art. 13 da Lei nº 4.119/62, que, como você viu, regulamenta a profissão
do no Brasil, confere ao portador do diploma de psicólogo o direito de ensinar
psicologia e de exercer a profissão de psicólogo. Nesse sentido, a utilização
de métodos e técnicas psicológicas (diagnóstico psicológico, orientação e
seleção de profissionais, orientação psicológica e tratamento de problemas
de ajustamento) é de uso exclusivo do psicólogo. No parágrafo segundo, o
mesmo artigo afirma que é da competência do psicólogo a colaboração em
assuntos psicológicos ligados a outras ciências, em que se insere a atuação
psicojurídica (BRASIL, 1962).
Em 2003, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), na Resolução nº 7,
instituiu o Manual de Elaboração de Documentos Escritos decorrentes de
avaliação psicológica. Essa resolução determina que o psicólogo deve se basear
exclusivamente em instrumentos técnicos (entrevistas, testes, observações,
dinâmicas de grupo, escuta e intervenções verbais) para coleta de dados, estu-
dos e interpretações de informações a respeito de pessoas ou grupo atendidos
(BRASIL, 2003).
22 Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica

Psicólogo especialista em psicologia jurídica é a denominação dada pela


Resolução nº 013/2007 do Conselho Federal de Psicologia. Essa resolução
institui formalmente o domínio dos profissionais de psicologia que trabalham
na área jurídica (BRASIL, 2007). Nessa área, o psicólogo atua no âmbito da
Justiça, colaborando no planejamento e na execução de políticas de cidadania,
direitos humanos e prevenção da violência. Esse profissional centra sua atuação
na orientação do dado psicológico repassado não só para os juristas como
também aos indivíduos que carecem de tal intervenção. A ideia é possibilitar a
avaliação das características de personalidade e fornecer subsídios ao processo
judicial, além de contribuir para a formulação, a revisão e a interpretação das
leis. Assim, o psicólogo especialista em psicologia jurídica:

„„ avalia as condições intelectuais e emocionais de crianças, adolescentes e


adultos em processos jurídicos, seja por deficiência mental e insanidade,
testamentos contestados, aceitação em lares adotivos, posse e guarda
de crianças, aplicando métodos e técnicas psicológicas e/ou psicometria
para determinar a responsabilidade legal por atos criminosos;
„„ atua também como perito judicial nas varas cíveis, criminais, na Justiça
do trabalho, da família, da criança e do adolescente elaborando laudos,
pareceres e perícias;
„„ realiza pesquisa visando à construção e à ampliação do conhecimento
psicológico aplicado ao campo do direito;
„„ realiza atendimento a crianças envolvidas em situações que chegam
às instituições de direito, visando à preservação de sua saúde mental;
„„ desenvolve estudos e pesquisas na área criminal, constituindo ou adap-
tando os instrumentos de investigação psicológica.

A psicologia e o direito versam sobre a solução de problemas de formas diferentes,


apesar de sua intersecção ao analisar determinado fenômeno e/ou problema e/
ou solução. Essa relação deve ser mantida, mesmo podendo ser complementar ou
contraditória, no sentido da busca da interdisciplinaridade.
O psicólogo, ao assessorar um juiz, visa a apresentar uma leitura psicológica dos casos
judiciais. A avaliação psicológica atende a uma determinação judicial e é apresentada
em forma de laudo. A interdisciplinaridade se constituirá na prática do dia a dia, com
respeito aos limites de atuação de cada área, de modo que o compartilhamento do
conhecimento ocorre concomitantemente.
Introdução à psicologia geral e à psicologia jurídica 23

ABIB, J. A. D. Epistemologia pluralizada e história da psicologia. Scientiae Studia,


São Paulo, v. 7, n. 2, p. 195-208, 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S1678-31662009000200002&script=sci_arttext&tlng=es>. Acesso em: 13
mar. 2018.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº. 007. Institui o Manual de Elabo-
ração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação
psicológica e revoga a Resolução CFP º 17/2002. 2003. Disponível em: <http://site.cfp.
org.br/wp-content/uploads/2003/06/resolucao2003_7.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018.
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Resolução nº. 013. Institui a Consolidação
das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe
sobre normas e procedimentos para seu registro. 2007. Disponível em: <https://site.
cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/Resolucao_CFP_nx_013-2007.pdf>. Acesso
em: 13 mar. 2018.
BRASIL. Lei nº. 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sôbre os cursos de formação em
psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. 1962. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4119.htm>. Acesso em: 13 mar. 2018.
BRUNINI, B. C. C. B. A intersecção da psicologia com a lei: problematizando a psicologia
jurídica na prática profissional dos psicólogos. 178 f. 2016. (Dissertação) - Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2016. Disponível em: <http://
hdl.handle.net/11449/133954>. Acesso em: 13 mar. 2018.
FELDMAN, R. S. Introdução à psicologia. 10. ed. Porto Alegre: McGraw-Hill, 2015.

Leituras recomendadas
BAPTISTA, M. T. D. da S. A regulamentação da profissão da psicologia: docu-
mentos que explicitam o processo histórico. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 30,
p. 170-191, 2010. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-
-98932010000500008&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 13 mar. 2018.
BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo
da psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. Disponível em: <http://unesav.com.
br/ckfinder/userfiles/files/Psicologias%20-%20Ana%20Merces%20Bahia%20Bock%20
%20Outros.pdf>. Acesso em: 13 mar. 2018.
ROSE, N. Psicologia como uma ciência social. Psicologia & Sociedade, v. 20, n. 2, p.
155-164, 2008. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/3093/309326698002/>.
Acesso em: 13 mar. 2018.
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esta Unidade de Aprendizagem. Na Biblioteca Virtual
da Instituição, você encontra a obra na íntegra.

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