GREEN, A. Narcisismo de Morte
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©by Les Éditions de Minuit
©da edição para a língua portuguesa
by Editora Escuta Ltda.
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Dê-me este espelho; é nele que quero ler.
1 _ Assim represento na minha pessoa muitos personagens,
(IV, 1,276)
1. Narcisismo 1. Título. "Ora, como o eu vive incessantemente pensando numa grande quantidade de
coisas, como é apenas o pensamento destas coisas, quando por acaso, ao invés de
CDD-1SO.195 ter diante de si estas coisas, pensa subitamente em si mesmo, encontra apenas um
-616.8917 aparelho vazio, algo que não conhece, que para lhe dar alguma realidade acres-
88-1507 NLM-I<M 610 centa a lembrança de um rosto percebido no espelho. Este estranho sorriso, estes
bigodes desiguais, é isto que desaparecerá da superflcie da terra.
lndices para catálogo sistemático: (•..) E meu eu parece-me ainda mais nulo, ao vê-Io já como algo que não existe
Psicanálise:
1. .Nar c i si smo Medicina 616.8917 mais."
2. NarclSlsmo , Teorias psicanalíticas 150.195 PROUST
A Ia recherche du temps perdu (La fugitive), Pléiade, t. IlI, p. 456.
(1980)
À Catherine Parat
,il'.
·1"
248 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE AMÃEMORTA 249
abordarei os conflitos relativos a esta situação. Assim como A segunda idéia comumente aceita pela maioria dos autores é
não tratarei das análises de pacientes que procuraram ajuda a de uma posição depressiva diferentemente interpretada pe-
de um analista por causa de uma sintomatologia depressiva los diversos autores. Esta segunda idéia vai ao encontro de
clara. um fato da observação e de um conceito teórico em Melanie
Com efeito, as razões que levam os analisandos de quem Klein e Winnicott. Estas duas idéias, convém insistir, vincu-
vou falar a empreenderem uma análise não apresentam em ab- lam-se a uma situação geral que se refere a um acontecimento
soluto os traços característicos da depressão, durante as en- inelutável do desenvolvimento. Se perturbações anteriores da
trevistas preliminares. Em contrapartida, percebe-se de início relação mãe-criança tomam sua travessia e sua ultrapassagem
a natureza narcisista dos conflitos invocados relacionados mais difícil, a ausência de tais perturbações e a boa qualidade
com a neurose de caráter e de suas conseqüências na vida dos cuidados maternos não podem evitar este período que de-
amorosa e na atividade profissional. sempenha um papel estruturante para a organização psíquica
Este esclarecimento inaugural delimita por exclusão o da criança.
quadro clínico do que me proponho a tratar. Devo mencionar Por outro lado, há pacientes, qualquer que seja a estrutu-
brevemente algumas referências que foram a segunda fonte - ra que apresentem, que parecem sofrer da persistência, mais
sendo meus pacientes a primeira - de minha reflexão. Os de- ou menos intermitente e mais ou menos invalidante, de traços
senvolvimentos que se seguirão devem certamente muito aos depressivos que parecem ultrapassar a reação depressiva
autores que lançaram as bases de todo saber sobre os proble- normal, aquela que atinge periodicamente cada um de nós.
mas do luto, Freud, Karl Abraham e Melanie Klein. Mas são Pois sabemos que um sujeito que ignora a depressão é prova-
sobretudo os estudos mais recentes de Wínnicott,' Kohut.? N. velmente mais perturbado do que aquele que ocasionalmente
Abraham e Torok," assim como Rosolato" que me puseram no está deprimido.
caminho. A questão que me coloco é, portanto, esta: "Quais são as
Eis, portanto, o enunciado em tomo do qual minha refle- relações que se pode estabelecer entre a perda do objeto e a
xão vai girar: posição depressiva como dados gerais e a singularidade dos
A teoria psicanalítica mais genericamente compartilhada traços desta configuração depressiva, central, mas freqüente-
admite duas idéias: a primeira é a da perda do objeto como mente submersa no meio de outros sintomas que a camuflam
momento fundamental da estruturação do psiquismo humano mais ou menos? Quais são os processos que se desenvolvem
durante o qual instaura-se uma nova relação com a realidade. em torno deste centro? Do que é constituído este centro na
O psiquismo seria, a partir de então, governado pelo princípio realidade psíquica?
de realidade, que passa à frente do princípio do prazer, que
ele salvaguarda além do mais. Esta primeira idéia é um con-
ceito te6rico, não um fato da observação, pois esta nos mos- o pai morto e a mãe morta
traria menos um salto mutativo do que uma evolução gradual.
A teoria psicanalítica que se funda na interpretação do
pensamento freudiano atribui um papel principal ao conceito
do pai morto, de quem Totem e tabu sublinha a função fun-
1. D. W. Winnicott, leu et réalité, trad. C. Monod e 1.-B. Pontalis, Galli-
mard,1975. damental na &ênese do Supereu. Quando consideramos o
2. H. Kohut, Le Soi, trad. Monique e André Lussier, p.o.r., 1974.
complexo de Edipo como uma estrutura e não apenas como
3. N. Abraham, "Le crime de l'introjection", e M. Torok: "Maladie du
um estádio do desenvolvimento da libido, esta tomada de po-
deuil et fantasme du cadavre exquis", in N. Abraham: L' écorce et te noyau, sição é coerente. Disto decorrem todo um conjunto de con-
Aubier. ceitos: o Supereu na teoria clássica, a Lei e o Simb6lico no
4. G. Rosolato, "L'axe narcissique des dépressions", inNouvelle revue de psy- pensamento lacaniano. Este conjunto está ligado pela referên-
chanaiyse , 1975, XI, pp. 5-34. cia à castração e à sublimação como destino das pulsões.
250 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA 251
Em contrapartida, nunca se escuta falar da mãe morta de dá sua especificidade num determinado paciente. Assim,
um ponto de vista estrutural. Pode-se fazer alusão a ela em mesmo nos casos em que constata a presença de um Édipo
certos casos particulares, como no caso da análise de Edgar invertido, como no Homem dos lobos, afirmará que o pai,
Poe por Marie Bonaparte, mas trata-se de um acontecimento objeto dos desejoseróticos passivos do paciente, nem por isto
singular: a perda da mãe com pouca idade. Há aí uma limita- deixa de ser castrador.
ção imposta por um ponto de vista estritamente realista. Não Esta função estrutural implica uma concepção constituti-
se conseguiria explicar esta exclusão invocando o Édipo, já va da ordem psíquica programada pelas fantasias originárias.
que poderíamos falar disto tanto a propósito do Édipo da me- Este caminho nem sempre foi seguido pelos sucessores de
nina, como a propósito do Édipo invertido do menino. Com Freud. Mas parece que, globalmente, o pensamento psicana-
efeito, a resposta está em outro lugar. A matricida não impli- lítico francês, apesar de suas divergências, seguiu Freud neste
ca a mãe morta, pelo contrário, e o conceito que subtende o ponto. Por um lado, a referência à castração como modelo
pai morto, isto é, a referência ao ancestral, à filiação, à genea- obrigou os autores a "castracízar", se posso ousar expressar-
logia, remete ao crime primitivo e à culpa conseqüente. me assim, todas as outras formas de angústia; falar-se-ã então
Mas é surpreendente que o modelo do luto que subjaz a de castração anal ou narcisista, por exemplo. Por outro lado,
este conceito não mencione nem o luto da mãe, nem o da per- dando uma interpretação antropol6gica da teoria freudiana,
da do seio. Não aludo a eles por estes serem anteriores àque- relacionar-se-ã todas as variedades de angústia ao conceito de
le, mas deve-se constatar que não existe articulação entre es- falta na teoria lacaniana. Penso, no entanto, que, nos dois ca-
tes conceitos. sos, incorre-se numa violência tanto contra a experiência
Freud, em Inibição, sintoma e angústia, relativizou a an- quanto contra a teoria para salvar a unidade e a generalização
gústia de castração incluindo-a numa série que comporta tam- de um conceito.
bém a angústia da perda de amor do objeto, a angústia frente Seria surpreendente que, sobre este ponto, eu pareça me
à ameaça da perda de objeto, a angústia frente ao Supereu e a dessolidarizar de um ponto de vista estrutural que sempre de-
angústia frente à perda da proteção do Supereu. Sabemos, fendi. Também, o que proporei, ao invés de me alinhar com
além disso, que dedicou muita energia para fazer a distinção as opiniões daqueles que fraccionam a angústia em diferentes
entre angústia, dor e luto. tipos segundo sua idade de aparecimento na vida do sujeito,
Minha intenção não é discutir detalhadamente o pensa- será uma concepção estrutural que se organizaria, não em
mento de Freud a este respeito, o que me levaria a um co- tomo de um centro ou de um paradigma, mas pelo menos de
mentário que me afastaria de meu tema, mas gostaria de fazer dois, segundo um caráter distintivo diferente daqueles até
uma observação. Refiro-me à angústia de castração e ao re- hoje propostos.
calcamento. Por um lado, Freud sabe muito bem que junto a A angústia de castração pode ser legitimamente fundada
cada uma delas existem também outras formas de angústia as- como subsumindo o conjunto das angústias ligadas à "coisi-
sim como outras variedades de recalcamento, ou inclusive nha destacada do corpo", quer se trate do pênis, das fezes, da 11'
outros mecanismos de defesa. Nos dois casos, considera a criança. O que dá a esta classe sua unidade, é que a castração
existência de formas ánteriores na cronologia, das quais arn- sempre é evocada no contexto de uma ferida corporal asso-
bas derivam. No entanto, fixa um centro nos dois casos, ou ciada a um ato sangrento. Atribuo mais importância a esta
seja, precisamente a angustia de castração e o recalcamento, noção de angústia "vermelha" do que à sua relação com um
com referência aos quais situa os outros tipos de angústia e as objeto parcial.
diferentes variedades de recalcamento, quer apareçam antes Em contrapartida, quando se trata do conceito da perda
ou depois, o que prova o caráter estrutural assim como gené- do seio, ou da perda do objeto, e inclusive das ameaças rela-
tico do pensamento freudiano. Isto será manifestamente ex- tivas à perda ou à proteção do Supereu e, de uma maneira ge-
presso quando fizer do Édipo uma fantasia originária, relati- ral, de todas as arneças de abandono, o contexto nunca é san-
vamente independente das vicissitudes da conjuntura que lhe guinário. Evidentemente, todas as formas de angústia vêm
252 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE AMÃEMORTA 253
acompanhadas de destrutividade, a castração também, já que mãe). O pai está aí, ao mesmo tempo na mãe e na criança,
a ferida é produto de uma destruição. Mas esta destrutividade desde a origem. Mais exatamente, entre a mãe e a criança.
não tem nenhuma relação com uma mutilação sangrenta. Ela Pelo lado da mãe, isto se expressa pelo seu desejo pelo pai,
tem as cores do luto: preto ou branco. Preto como a depressão do qual a criança é a realização. Pelo lado da criança, tudo o
grave, branco como nos estados de vazio aos quais se dá ago- que antecipa a existência de um terceiro, cada vez que a mãe
ra uma atenção justificada. não está totalmente presente, e que o investimento que faz da
Sustentarei a hipótese de que o preto sinistro da depres- criança não for nem total nem absoluto, pelo menos na ilusão
são que podemos legitimamente relacionar com o 6dio que é que a criança tem a seu respeito, antes do que se convenciona
constatado na psicanálise dos deprimidos é somente um pro- chamar a perda do objeto, será, aprês coup, vinculável ao
duto secundário, uma conseqüência mais do que uma causa, pai.
de uma angústia "branca" que traduz a perda sofrida ao nível É assim que se deve dar conta da solidariedade que liga a
do narcisismo. perda metafórica do seio, a mutação simb6lica das relações
Já tendo descrito a alucinação negativa e a psicose bran- entre prazer e realidade - erigidas aprês coup como princí-
ca, não retomarei o que suponho conhecido, e relacionarei a pios - a proibição do incesto e a dupla figuração das ima-
angústia branca ou o luto branco a esta série. gens da mãe e do pai, potencialmente reunidos na fantasia de
A série "branca": alucinação negativa, psicose branca uma cena primária hipotética e concebida fora do sujeito, e
e luto branco, todos referidos ao que poderíamos chamar a onde o sujeito se ausenta e se constitui na ausência da repre-
clínica do vazio, ou a clínica do negativo, são o resultado de sentação afeti va que dá nascimento à fantasia, produção da
um dos componentes do recalcamento primário: um desinves- "loucura" do sujeito.
timento massivo, radical e temporário, que deixa marcas no Por que metafórica? O recurso à metáfora, que é válido
inconsciente sob a forma de "buracos psíquicos" que serão para todo elemento essencial da teoria psicanalítica, é aqui
preenchidos por reinvestimentos, expressões da destrutivida- particularmente necessário. Num trabalho anterior," fiz notar
de assim liberada por este enfraquecimento do investimento que existiam duas versões freudianas da perda do seio. A
líbidinal er6tico. As manifestações do 6dio e os processos de primeira, te6rica e conceitual, é a que ele estabelece no seu
reparação que a elas se seguem, são manifestações secundá- artigo sobre "A negação" (1925). Freud fala dela como se se
rias a este desinvestimento central do objeto primário, mater- tratasse de um acontecimento fundador único, instantâneo -
no. Compreende-se que esta visão modifica inclusive a técni- decisivo, seria o caso de dizer pois que sua repercussão sobre
ca analítica, pois limitar-se a interpretar o ódio nas estruturas a função do julgamento é fundamental. Em contraposição,
que têm traços depressi vos significaria nunca abordar o nú- particularmente, no Compêndio de psicanálise (1938), adota
cleo primário desta constelação. uma posição menos te6rica do que descritiva, como se esti-
O Édipo deve ser mantido como matriz simbólica essen- vesse fazendo observação de bebês, hoje em dia tão em voga.
cial à qual é importante sempre se referir, mesmo nos casos Aqui, ele relata o fenômeno não de uma maneira te6rica, mas
em que a regressão é dita pré-genital ou pré-edipiana, o que de uma maneira "narrativa", se posso dizer, onde se entende
implica a referência a uma triangulação axiomática. Tão que esta perda é um processo de evolução progressiva que se
avançada quanto esteja a análise do desenvolvimento do ob- efetua passo a passo. Ora, na minha opinião, abordagem des-
jeto primário, o destino da psique humana é sempre de ter critiva e abordagem te6rica se excluem, um pouco como a
dois objetos e nunca um único, tão longe quanto se recue pa- percepção e a memória se excluem na teoria. O recurso a esta
ra tentar apreender a estrutura psíquica dita mais primitiva. comparação não é apenas analõgico. Na "teoria" que o su-
Isso não quer dizer que se deva aderir à concepção de um
Édipo primitivo - filogenético - onde o pai enquanto tal, es-
taria presente, fosse sob a forma de seu pênis (penso na con- 5. A. Green, "The borderline concept", in Borderline Personality Disor-
cepção arcaica de Melanie Klein do pênis do pai no ventre da ders, ed, by Peter Hartocollis, lntemational University Press, 1977.
254 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE AMÃEMORTA 255
jeito elabora a seu próprio respeito, a interpretação mutativa é eles estão presentes, mas com valor secundário ou, mesmo se
sempre retrospectiva. É aprês coup que se forma esta teoria são importantes, o analista tem a sensação de que a análise de
do objeto perdido, que adquire assim seu caráter fundador sua gênese não fornecerá a chave do conflito. Em contrapar-
üníco, instantâneo, decisivo e cortante. tida, a problemática narcisista está em primeiro plano, sendo
O recurso à metáfora não se justifica apenas de um ponto as exigências do Ideal do Eu consideráveis, em sinergia ou
de vista diacrônico, mas também de um ponto de vista sincrô- em oposição com o Supereu. O sentimento de impotência é
nico. Os mais tenazes defensores da referência ao seio na teo- claro. Impotência para sair de uma situação conflitiva, impo-
ria psicanalítica contemporânea, os kleinianos, admitem ago- tência para amar, para tirar partido de seus dotes, para au-
ra, pondo humildemente água no seu vinho, que o seio é ape- mentar suas aquisições, ou quando isto ocorreu, insatisfação
nas uma palavra para designar a mãe, para a satisfação dos profunda frente ao resultado.
teóricos não-kleinianos que freqüentemente psicologizam a Quando começa a análise, a transferência vai revelar, às
psicanálise. Deve-se manter a metáfora do seio, pois o seio, vezes bastante rapidamente mas mais freqüentemente depois
como o pênis, só pode ser simb6lico. Por mais intenso que de longos anos de análise, uma depressão singular. O analista
seja o prazer da sucção ligado ao mamilo, ou à teta, o prazer tem a sensação de uma discordância entre a depressão de
er6geno tem o poder de remeter a si tudo o que da mãe não é transferência - expressão que forjo nesta oportunidade para
o seio: seu cheiro, sua pele, seu olhar e os outros mil compo- opô-Ia à neurose de transferência - e um comportamento ex-
nentes que "fazem" a mãe. O objeto metonímico tornou-se terior onde a depressão não eclode, pois nada indica que o
metáfora do objeto. meio a perceba claramente, o que aliás não impede que as
Pode-se notar de passagem que não temos nenhuma difi- pessoas pr6ximas sofram com as relações objetais que o ana-
culdade em raciocinar da mesma forma quando falamos da lisando estabelece com elas.
relação sexual amorosa, remetendo o conjunto de uma relação O que indica esta depressão da transferência é a repetição
altamente complexa à cópula pênis-vagina e relacionando de uma depressão infantil da qual creio ser útil descrever as
seus avatares à angústia de castração. características.
Compreende-se .a partir daí que, aprofundando-se nos Não se trata de uma depressão por perda real de um ob-
problemas relacionados com a mãe morta, refiro-me a esta jeto, ou seja, não está em questão o problema de uma separa-
como uma metáfora, independente do luto de um objeto real. ção real do objeto que teria abandonado o sujeito. O fato po-
de existir, mas não é ele que constitui o complexo da mãe
o complexo da mãe morta morta.
O traço essencial desta depressão é que ela se dá em
O complexo da mãe morta é uma revelação da transferên- presença de um objeto, ele mesmo absorto num luto. A mãe,
cia. Quando o sujeitá se apresenta pela primeira vez frente a por uma razão ou outra, se deprimiu. A variedade dos fatores
um analista, os sintomas de que se queixa não são essencial- desencadeantes é aqui muito grande. É claro que entre as
mente de tipo depressivo. Na maior parte do tempo, estes principais causas desta depressão matema, encontramos a
sintomas refletem o fracasso de uma vida afeti va amorosa ou perda de um ser querido: filho, parente, amigo pr6ximo, ou
profissional, subtendendo conflitos mais ou menos agudos qualquer outro objeto fortemente investido pela mãe. Mas po-
com os objetos próximos. Não é raro o paciente contar es- de tratar-se também de uma depressão desencadeada por uma
pontaneamente uma história pessoal onde o analista pensa decepção que inflige uma ferida narcisista: infortúnio na fa-
consigo mesmo que lá, em determinado momento, deveria, ou mília nuclear ou na família de origem, ligação amorosa do pai
poderia se situar uma depressão da infância que o paciente que abandona a mãe, humilhação, ete. Em todos os casos, a
não menciona. Esta depressão, que às vezes se traduziu çlini- tristeza da mãe e a diminuição do interesse pela criança estão
camente de forma esporádica, só surgirá com toda sua força em primeiro plano.
na transferência. Quanto aos sintomas neuróticos clássicos,
256 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA 257
Penso ser importante sublinhar que o caso mais grave é o que o novo investimento será interpretado por ele como a
da morte de um filho com pouco tempo de vida, o que foi causa do desinvestimento matemo. De qualquer forma, há
compreendido por todos os autores. Insistirei muito particu- nestes casos triangulação precoce e defeituosa. Pois, ou bem,
larmente na causa cuja ocultação é total porque faltam os si- como acabo de dizer, é ao investimento do pai pela mãe que é
nais para que a criança possa reconhecê-Ia, e cujo conheci- atribuída a retração do amor materno, ou então esta retração
mento retrospectivo nunca é possível pois repousa num se- vai provocar um investimento particularmente intenso e pre-
gredo: o aborto da mãe, que deve ser reconstruído pela análi- maturo do pai como salvador do conflito que se desenrola
se a partir dos mínimos indícios. Construção hipotética, é cla- entre a criança e a mãe. Ora, na realidade, com mais freqüên-
ro, que toma coerentes as expressões do material vinculável a cia o pai não responde à aflição da criança. Eis o sujeito pre-
períodos posteriores da hist6ria do sujeito. so entre uma mãe morta e um pai inacessível, seja porque este
O que aconteceu naquele momento foi uma mudança está sobretudo preocupado pelo estado da mãe sem socorrer o
brutal, verdadeiramente mutativa da imago materna. Até en- filho, seja porque deixa o par mãe-criança sair sozinho desta
tão, como testemunha a presença no sujeito de uma autêntica situação.
vitalidade que sofreu uma brusca interrupção, um emperra- Depois da criança ter tentado uma vã reparação da mãe
mento onde permanece ainda bloqueada, uma relação rica e absorta por seu luto, que lhe fez sentir a medida de sua im-
feliz se dava com a mãe. A criança sentiu-se amada, com to- potência, depois de ter vivido a perda do amor da mãe e a
dos os imprevistos inclusive da mais ideal das relações. As ameaça da perda da pr6pria mãe e que lutou contra a angústia
fotos do pequeno bebê o mostram no álbum da família, ale- através de diversas maneiras ativas entre elas a agitação, a in-
gre, acordado, interessado, cheio de potencialidades, en- sônia ou os terrores noturnos, o Eu vai pôr em ação uma série
quanto que retratos posteriores testemunham a perda desta de defesas de outra natureza.
primeira felicidade. Tudo teria terminado como nas civiliza- - A primeira e a mais importante será um movimento
ções desaparecidas, das quais os historiadores procuram em único com duas vertentes; o desinvestimento do objeto ma-
vão a causa da morte levantando a hip6tese de um abalo sís- terno e a identificação inconsciente com a mãe morta, O de-
mico que teria destruí do o palácio, o templo, os edifícios e as sinvestimento, sobretudo afetivo, mas também representativo,
habitações, das quais s6 restam ruínas. Aqui, o desastre limi- constitui um assassinato psíquico do objeto, realizado sem
ta-se a um núcleo frio, que posteriormente será superado mas 6dio. Compreende-se que a aflição materna interdite toda
que deixa uma marca indelével nos investimentos er6ticos dos emergência de um contingente de ódio suscetível de prejudi-
sujeitos em questão. car ainda mais sua imagem.
A transformação na vida psíquica, no momento do luto Nenhuma destrutividade pulsional deve ser inferida desta
súbito da mãe que desinveste brutalmente seu filho, é vivida operação de desinvestimento da imagem materna, seu resulta-
por ele como uma catástrofe. Por um lado, porque sem ne- do é a constituição de um buraco na trama das relações obje-
nhum aviso prévio o amor foi repentinamente perdido. O tais com a mãe; o que não impede que os investimentos peri-
trauma narcisista que esta mudança representa não precisa ser féricos sejam mantidos, assim como o luto da- mãe modifica
longamente demonstrado. É preciso, no entanto, sublinhar sua atitude fundamental com respeito à criança que se sente
que ele constitui uma desilusão antecipada e que provoca, incapaz de amar, mas que continua a amar, assim como conti-
além da perda de amor, uma perda de sentido, pois o bebê nua a cuidar dela. Todavia, como se diz, "o coração não está
não dispõe de nenhuma explicação para dar conta do que presente" .
aconteceu. É claro que considerando-se como centro do uni- A outra face do desinvestimento é a identificação segun-
verso matemo, ele interpreta esta decepção como a conse- do um modo primitivo com o objeto. Esta identificação em
qüência de suas pulsões para com o objeto. Isto será grave espelho é quase obrigat6ria, depois que reações de comple-
sobretudo se o complexo da mãe morta sobrevém no momento mentariedade (alegria artificial, agitação, etc.) tenham fracas-
em que a criança descobriu a existência do terceiro, o pai, e sado. Esta simetria reativa é a única maneira de restabelecer
258 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE AMÃEMORTA 259
uma reunião com a mãe - talvez segundo o modo da simpatia. de incorporação regressiva, mas também posições anais tingi-
De fato, não há reparação verdadeira, mas mimetismo, cuja das de um sadismo maníaco onde se trata de dominar o obje-
finalidade, não podendo mais ter o objeto, é continuar a pos- to, de maculá-Io, de vingar-se dele, etc.
suf-lo tomando-se não como ele mas ele mesmo. Esta identi- -- A excitação auto-erótica instala-se pela procura de um
ficação, condição da renúncia ao objeto e ao mesmo tempo de prazer sensual puro, prazer de 6rgão no limite, sem ternura,
sua conservação segundo o modo canibalfstico, é desde o sem piedade, que não necessariamente é acompanhado de
princípio inconsciente. Há aí uma diferença com o desinves- fantasias sádicas mas permanece marcado por uma reticência
timento, que se tomará inconsciente posteriormente, porque a amar o objeto. Este é o fundamento das identificações histé-
neste segundo caso a retração é uma réplica; ela supõe que o ricas que virão. Há dissociação precoce entre o corpo e a psi-
sujeito se desfaça do objeto, enquanto que a identificação que assim' como entre sensualidade e ternura, e bloqueio do
produz-se à revelia do Eu do sujeito e contra sua vontade. amor. O objeto é procurado pela sua capacidade de desenca-
Daí seu caráter alienante. dear o gozo isolado de uma zona er6gena ou de várias, sem
Nas relações de objeto posteriores, o sujeito, preso na confluência num gozo compartilhado por dois objetos mais ou
compulsão à repetição, porá ativamente em ação o desinves- menos totalizados.
timento de um objeto passível de decepcionar, repetindo a de- .: por fim e sobretudo, a busca de um sentido perdido
fesa antiga, mas, aquilo de que estará totalmente inconsciente estrutura o desenvolvimento precoce das capacidades fan-
é da identificação com a mãe morta, a quem ele se junta no tasmâticas e intelectuais do Eu. O desenvolvimento de uma
revestimento das marcas do trauma. . atividade frenética de jogo não é feita dentro de urna liberda-
- O segundo fato é, como sublinhei, a perda do sentido. de de brincar, mas na obrigação de imaginar, assim como o
A "construção" do seio cujo prazer é a causa, a finalidade e desenvolvimento intelectual se inscreve na obrigação de pen-
a garantia, desmoronou de uma s6 vez, sem razão. Mesmo sar. Desempenho e auto-reparação unem-se para concorre-
imaginando a inversão da situação pelo sujeito que se atribui, rem para a mesma finalidade: a preservação de uma capacida-
numa megalomania negativa, a responsabilidade da mutação, de de superar o desespero da perda do seio pela criação de
há uma distância impreenchfvel entre a falta que o sujeito se um seio remendado, pedaço de tecido cognitivo destinado a
recriminaria de ter cometido e a intensidade da reação mater- mascarar o buraco do desinvestimento, enquanto que o 6dio
na. No máximo, ele poderia pensar que esta falta está ligada à secundário e a excitação er6tica formigam na borda do abis-
sua maneira de ser mais do que a algum desejo interdito; de mo vazio.
fato, lhe é interdito ser., Esta atividade intelectual sobre-investida comporta ne-
Esta posição que levaria a criança a se deixar morrer, por cessariamente uma considerável parte de projeção. Ao contrá-
impossibilidade de derivar a agressividade destrutiva para fo- rio da opinião comumente difundida, a projeção nem sempre
ra por causa da vulnerabilidade da imagem materna, a obriga é um falso raciocínio, Isto pode acontecer; mas não necessa-
a encontrar um responsável pelo abatimento da mãe, ainda riamente. O que define a projeção não é o caráter verdadeiro
que fosse um bode expiat6rio. É o pai que é designado para ou falso do que é projetado, mas a operação que consiste em
isto. De qualquer forma há, repito, triangulação precoce, já levar para a cena externa - ou seja a do objeto - a investiga-
que se encontram presentes a criança, a mãe e o objeto des- ção, e inclusive a adivinhação, do que deve ser rejeitado e
conhecido do luto da mãe. O objeto desconhecido do luto e o abolido dentro. A criança teve a cruel experiência de sua de-
pai condensam-se então para a criança, criando um Édipo pendência às variações de humor da mãe. Dedicará doravante
precoce. seus esforços para adivinhar ou antecipar.
Toda esta situação criada pela perda do seio provoca uma A unidade comprometida do Eu doravante esburacado
segunda frente de defesa: realiza-se seja no plano da fantasia dando lugar à criação ar-
- O desencadeameruo de um ódio secundário, que não é tística, seja no plano do conhecimento na origem de uma in-
nem primeiro nem fundamental, colocando em jogo desejos telectualização muito rica, É claro que assistimos a uma ten-
NARClSlSMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE 261
260 A MÃE MORTA
tativa de dominar a situação traumática. Mas este domínio Durante muito tempo, a análise destes sujeitos se deu
está fadado ao fracasso. Não que fracasse lá para onde se pelo exame dos conflitos clássicos: o Édipo, as fixações pré-
deslocou o teatro de operações. Estas sublimações idealizadas genitais, anais e orais. O recalcamento recaindo sobre a se-
precoces são provenientes de formações psíquicas prematu- xualidade infantil, sobre a agressividade, foi interpretado com
ras, e sem dúvida precipitadas, mas não vejo nenhuma razão, afinco. Não há dúvida de que progressos se manifestaram.
a não ser por uma ideologia normativa, para contestar sua Eles não convencem nem um pouco o analista, mesmo se o
autenticidade. Seu fracasso é em outro lugar. As sublimações analisando tenta se confortar sublinhando os pontos com os
revelarão sua incapacidade de desempenhar um papel equili- quais poderia ficar satisfeito.
brador na economia psíquica, pois o sujeito permanecerá vul- De fato, todo este trabalho psicanalítico fica sujeito a
nerável num ponto particular, o de sua vida amorosa. Neste quebras espetaculares onde tudo parece ainda como no pri-
campo, a ferida despertará uma dor psíquica e assistiremos a meiro dia, até que o analisando constate que não pode conti-
uma ressurreição da mãe morta que dissolverá, durante toda a nuar a se enganar e encontra-se acuado pela constatação da
crise em que retoma para o centro da cena, todas as aquisi- carência do objeto transferencial: o analista, apesar das ma-
ções sublimatõrias do sujeito que não se perdem, mas ficam nobras relacionais com objetos suportes das transferências
momentaneamente bloqueadas. Ora é o amor que relança o laterais que o ajudaram a evitar a abordagem do núcleo cen-
desenvolvimento das aquisições sublimadas, ora são estas úl- tral do conflito.
timas que tentam desbloquear o amor. Ambos podem conju- Nestes tratamentos, acabei compreendendo que continua-
gar seus esforços durante um tempo, mas logo a destruição va surdo a um certo discurso que meus analisandos me per-
ultrapassa as possibilidades do sujeito, que não dispõe dos mitiam adivinhar. Por trás das eternas queixas sobre a malda-
investimentos necessários para o estabelecimento de uma re- de da mãe, sobre sua incompreensão ou sobre a sua rigidez,
lação objeta! durável e para o progressivo engajamento numa adivinhava o valor defensivo destas falas contra uma homos-
implica~ão pessoal profunda que exige a preocupação com o sexualidade intensa. Homossexualidade feminina nos dois se-
outro. E portanto, necessariamente, ou a decepção do objeto, xos, pois para o menino é a parte feminina da personalidade
ou a do Eu, que põem fim à experiência, com ressurgimento psíquica que assim se expressa, freqüentemente em busca de
do sentimento de fracasso, de incapacidade. O paciente tem a uma compensação paterna. Mas eu continuava a me perguntar
sensação de que pesa sobre ele uma maldição, a da mãe morta por que a situação se prolongava. Minha surdez recata sobre
que não acaba de morrer e que o mantém prisioneiro. A dor, o fato de que, por trás das queixas relativas às atuações da
sentimento narcisista, retoma à superfície. Ela é sofrimento mãe, suas ações, perfilava-se a sombra de sua ausência. De
instalado na borda da ferida, colorindo todos os investimen- fato, a queixa contra X recaía sobre uma mãe absorta, seja
tos, colmatando os efeitos do õdio, da excitação er6tica, da nela mesma, seja em outra coisa, e não disponível, sem eco,
perda do seio. Na dor psíquica, é impossível tanto odiar mas sempre triste. Uma mãe muda, ainda que fosse loquaz.
quanto amar, é impossível gozar mesmo de forma masoquista, Quando estava presente, permanecia indiferente, mesmo
impossível pensar. Existe apenas o sentimento de uma captura quando recriminava a criança. Imaginei então a situação de
que despossui o Eu dele mesmo e o aliena numa figura irre- forma totalmente diferente.
presentável. A mãe morta havia carregado consigo, no desinvesti-
O percurso do sujeito evoca a caça em busca de um ob- mento de que fora objeto, o essencial do amor de que tinha
jeto inintrojetável, sem possibilidade de a ele renunciar ou de estado investida antes de seu luto: seu olhar, o tom de sua
perdê-lo e tampouco com possibilidade de aceitar sua introje- voz, seu cheiro, a lembrança de seu carinho. A perda do
ção no Eu investido pela mãe morta. Em suma, os objetos do contato psíquico provocara o recalcamento do traço mnêmico
sujeito ficam sempre no limite do Eu, nem completamente de seu toque. Tinha sido enterrada viva, mas seu próprio cai-
dentro, nem totalmente fora. E isto porque o lugar está ocu- xão havia desaparecido. O buraco que jazia no seu lugar fazia
pado, no centro, pela mãe morta. temer a solidão, como se o sujeito corresse o risco de nele so-
262 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA 263
çobrar com seu corpo e pertences. A este respeito, penso ago- do qual o ódio é uma conseqüência, esta descrição estava in-
ra que o holding de que Winnicott fala, não é o que explica o completa. O que é importante compreender bem é que a inca-
sentimento de queda vertiginosa que alguns pacientes expe- pacidade de amar na estrutura que expus sõ decorre da
rimentam. Este parece estar muito mais relacionado com uma ambivalência, e, portanto, da sobrecarga de ódio, na medida
experiência de desfalecimento psíquico, que seria para a psi- em que o que vem primeiro é o amor gelado pelo desinvesti-
que o que o desmaio é para o corpo físico. Houve enquista- mento. O objeto está, de certa forma, hibernando, conservado
mento do objeto e apagamento de sua marca por desinvesti- no frio. Esta operação se deu à revelia do sujeito, e eis como.
mento, houve identificação primária com a mãe morta e trans- O desinvestimento é uma retração de investimento realizada
formação da identificação positiva em identificação negativa, (pré)conscientemente. O ódio recalcado é o resultado de uma
isto é, a identificação com o buraco deixado pelo desinvesti- desintrincação pulsional, sendo que todo desligamento enfra-
mento e não com o objeto. E com este vazio que, periodica- quece o investimento libidinal erótico liberando, em conse-
mente, desde que um novo objeto seja escolhido para o ocu- qüência, os investimentos destrutivos. Retirando seus inves-
par, se enche e subitamente manifesta-se pela alucinação afe- timentos, o sujeito que crê ter conduzido os investimentos pa-
tiva da mãe morta. ra o seu Eu, na impossibilidade de poder deslocã-los para um
Tudo o que é observado em tomo deste núcleo organiza- outro objeto, um objeto substituto, não sabe que deixou, que
se com uma tripla finalidade: alienou seu amor pelo objeto caído no esquecimento do recal-
- manter vivo o Eu: pelo õdio ao objeto, pela procura de camento primário. Conscientemente, pensa que sua reserva de
um prazer excitante, pela busca do sentido; amor está intacta, disponível para um outro amor quando for
- reanimar a mãe morta, interessá-Ia, distraí-Ia; devol- a ocasião. Declara-se pronto para investir num novo objeto se
ver-lhe o gosto pela vida, fazê-Ia rir e sorrir; este se mostrar amável e se puder se sentir amado por ele. O
- rivalizar com o objeto do luto na triangulação precoce. objeto primário, supõe o sujeito, não conta mais para ele. De
Este tipo de pacientes colocam sérios problemas técnicos fato, vai encontrar a incapacidade de amar, não apenas por
que não abordarei aqui. Sobre este ponto, remete ao meu tra- causa da ambivalência, mas porque seu amor continua tão hi-
balho sobre o silêncio do analista." Temo que a regra do si- potecado à mãe morta. O sujeito é rico, mas não pode dar na-
lêncio nestes casos sõ perpetue a transferência do luto branco da apesar de sua generosidade, pois não dispõe de sua rique-
da mãe. Acrescento que não creio que a técnica kleiniana de za. Ninguém tomou sua propriedade afetiva, mas ele não po-
interpretação sistemática da destrutividade ajude muito aqui. de gozar dela.
Em contraposição, a posição de Winnicott, tal como é expres- No correr da transferência, a sexualização defensiva que
sa no seu artigo sobre "A utilização do objeto"? parece-me até então se desenrolava, comportando sempre satisfações
adequada. Mas temo que Winnicott tenha subestimado demais pré-genitais intensas e desempenhos sexuais notáveis, pára
a importância das fantasias sexuais, especialmente da cena bruscamente e o analisando vê sua vida sexual diminuir ou se
primária, que abordarei mais adiante. dissipar até ser praticamente nula. Segundo ele, não se trata
nem de inibição nem de perda de apetite sexual: simplesmen-
o amor gelado e suas vicissitudes: te ninguém mais é desejável e, se por acaso alguém o for, ele
O seio, o Édipo, a cena primâria ou ela não te desejam. Uma vida sexual profusa, dispersa,
múltipla, fugaz, não traz mais nenhuma satisfação.
A ambivalência é um traço fundamental dos investimen- Parados na sua capacidade de amar, os sujeitos que estão
tos dos depressivos. Como é isto no complexo da mãe morta? sob o domínio de uma mãe morta sõ podem agora aspirar à
Quando descrevi o desinvestirnento afetivo e representativo autonomia. O compartilhamento lhe continua interdito. Então,
a solidão, que era uma situação angustiante e a ser evitada,
6. "Le silence du psychanalyste"; Topique, D~ 23. muda de sinal. De negativa, torna-se positiva. Fugia-se dela,
7. Em leu et rlaJill, op, cito ela se toma procurada. O sujeito se aninha. Torna-se sua pr6-
265
264 NARCISíSMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA
pria mãe, mas permanece prisioneiro de sua economia de so- jetadas sobre a mãe. Não a mãe morta, mas seu contrário, a
brevivência. Pensa ter afastado sua mãe morta. Na verdade, mãe fálica da qual tentei descrever a estrutura." É uma imago
esta s6 o deixa em paz na medida em que ela mesma é deixa- semelhante que o menino projeta na mãe, enquanto que o pai
da em paz. Enquanto não houver candidato à sucessão, pode é objeto de uma homossexualidade pouco estroturante que faz
deixar seu filho sobreviver, certa de ser a única a deter o dele uma personagem inacessível e, segundo a terminologia
amor inacessível. em uso, insignificante ou cansado, deprimido, vencido por
Este núcleo frio queima como o gelo e anestesia como esta mãe fálica. Em todos os casos há regressão para a anali-
ele, mas, enquanto for sentido como frio, o amor permanece dade, Pela analidade, o sujeito não somente regride do Édipo
não-disponível. Não são somente metáforas. Estes analisan- para trás em todos os sentidos do termo, protege-se também
dos queixam-se de sentir frio em pleno calor. Têm frio sob a através do obstáculo anal, de uma regressão oral à qual a mãe
pele, nos ossos, sentem-se enregelados por um calafrio fúne- morta sempre remete, já que complexo da mãe morta e perda
bre, envoltos .na sua mortalha. Tudo se passa como se o nú- metafórica do seio reverberam entre si. Encontraremos tam-
cleo gelado do amor pela mãe morta não impedisse a evolu- bém sempre uma defesa pela realidade, como se o sujeito ex-
ção posterior para o complexo de Édipo, da mesma maneira perimentasse a necessidade de se agarrar à presença do per-
como a fixação será superada posteriormente na vida do indi- cebido como real isento de qualquer projeção já que não tem
víduo. Estes sujeitos têm, com efeito, uma vida profissional a mínima certeza da distinção entre fantasia e realidade que
mais ou menos satisfat6ria, casam-se, têm filhos. Por um tem- ele se empenha em manter cindidas. A fantasia tem que ser
po, tudo parece em ordem. Mas, logo, a repetição dos confli- somente fantasia, isto é, que, no limite, assistimos à negação
tos faz com que os dois setores essenciais da vida, amar e da realidade psíquica. Quando fantasia e realidade se confun-
trabalhar, se revelem como fracassos: a vida profissional, dem, uma enorme angústia aparece. Subjetivo e objetivo
mesmo quando é profundamente investida, toma-se decepcio- misturados dão ao sujeito a impressão de uma ameaça psic6ti-
nante, e as relações conjugais conduzem a perturbações pro- ca. A ordem deve ser mantida a qualquer preço através de
fundas do amor, da sexualidade, da comunicação afetiva. Em uma referência anal estruturante que permite continuar a fazer
todo caso é esta última a que mais falta. Quanto à sexualida- funcionar a clivagem e, sobretudo, afastar o sujeito do que
de, ela depende do aparecimento mais ou menos tardio do ele descobriu do seu inconsciente. Isto é, que sua psicanálise
complexo da mãe morta. Esta pode estar relativamente pre- permite-lhe mais compreender os outros do que ver a si mes-
servada, mas somente até um certo ponto. O amor, por fim, é mo claramente. Disto decorre a inevitável decepção frente aos
sempre incompletamente satisfeito. Seja, no extremo, total- efeitos esperados da análise, no entanto, em geral, muito nar-
mente impossível, seja, na melhor das hip6teses, sempre mais cisicamente investida.
ou menos mutilado ou inibido. Não pode haver muito: muito A mãe morta se recusa a morrer a sua segunda morte.
amor, muito prazer, muito gozo, enquanto que, do outro lado, Muitas vezes o analista diz a si mesmo: "Desta vez foi, ela
a função parental está sobreinvestida. No entanto, esta função está morta, a velha, ele (ou ela) vai enfim poder viver e eu
está na maioria das vezes infiltrada pelo narcisismo. As respirar um pouco." Um trauma mínimo aparece na transfe-
crianças são amadas com a condição de que preencham os rência ou na vida que dá novamente à imago materna uma
objetivos narcisistas que os pais não conseguiram realizar. vitalidade, se é que posso me expressar assim. É que ela é
Compreende-se, portanto, que se o Edipo é abordado e uma hidra com mil cabeças de quem sempre pensamos ter
até mesmo superado, o complexo da mãe morta vai tornã-lo cortado o pescoço. S6 havíamos atingido uma de suas cabe-
particularmente dramático. A fixação materna impedirá a filha ças. Onde é que está o pescoço da besta?
de em algum momento poder investir a imago do pai sem te-
mer a perda do amor matemo ou, se o amor pelo pai é pro-
8. A. Green, ••Sur Ia mêre phallique", Revue française de psychanatyse,
fundamente recalcado, sem poder evitar de transferir sobre
1968, t. XXXII, pp. 1-38.
a imago do pai uma importante parte das características pro-
266 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA 267
Um preconceito habitual quer que vamos ao mais profun- Todo ressurgimento desta fantasia constitui uma atualiza-
do: ao seio primordial. É um erro; não está aí a fantasia fun- ção projetiva, tendo a projeção como finalidade paliar a feri-
damental. Pois, da mesma maneira que é a relação com o se- da narcisista. Por atualização projetiva designo um processo
gundo objeto no Édipo que revela retroativamente o comple- pelo qual a projeção não apenas livra o sujeito de suas ten-
xo que afeta o objeto primário, a mãe, tampouco é atacando sões internas projetando-as no objeto mas constitui uma revi-
frontalmente a relação oral que se extirpa o núcleo do com- vescência, e não uma reminiscência, uma repetição traumáti-
plexo. A solução se encontra no protótipo do Édipo, na ma- ca e dramática atuais. E qual o significado de cena primária
triz simbólica que permite que este se construa. O complexo no caso em questão? Por um lado, o sujeito adquire a medida
da mãe morta revela então seu segredo: aquele que nomeei a da distância intransponível que o separa da mãe. Esta distân-
fantasia da cena primária. cia faz com que sinta a raiva impotente de estabelecer o con-
A psicanálise contemporânea, como o atestam vários in- tato, no sentido mais estrito, com o objeto. Por outro lado, o
dícios, entendeu - tardiamente, é verdade - que se o Édipo sujeito se sente incapaz de acordar esta mãe morta, de ani-
permanecia sendo a referência estrutural indispensável, as má-Ia, de tomá-Ia viva. Mas, desta vez, ao invés do rival ser
condições determinantes do Édipo não deviam ser procuradas o objeto que monopolizava a mãe morta no luto que ela vivia,
nos seus precursores genéticos oral, anal, ou fálico, vistos ele se toma, pelo contrário, o objeto terceiro que surge, dife-
sob o ângulo de referências realistas - pois oralidade, anali- rente do que se espera, capaz de devolver-lhe a vida e pro-
dade e falicidade dependem de relações de objeto em parte porcionar-lhe o prazer do gozo.
reais - nem tampouco numa fantasmática generalizada de sua Aí jaz a situação revoltante que reativa a perda da oni-
estrutura, à maneira de Melanie Klein, mas na fantasia iso- potência narcisista e desperta o sentimento de uma enfermi-
morfa ao Édipo: a da cena primária. Insisto nesta fantasia da dade libidinal incomensurável. É claro que a reação a esta
cena primária para me diferenciar claramente da posição situação provocará uma série de conseqüências que podem
freudiana, tal como foi exposta no Homem dos lobos , on- aparecer isoladamente ou agrupadas:
de Freud procura, com uma finalidade polêmica contra Jung, 1. A perseguição por esta fantasia e o ódio dos dois ob-
as provas de sua realidade. Ora, o que conta na cena primá- jetos que se formam em detrimento do sujeito.
ria, não é o fato de ter sido testemunha, mas precisamente o 2, A interpretação clássica da cena primária como cena
contrário, ou seja, que ela tenha se desenrolado na ausência sádica, mas onde o fato essencial é que a mãe ou não goza
do sujeito. mas sofre, ou então goza apesar de si mesma, constrangida
No caso particular que nos ocupa, a fantasia da cena pri- pela violência paterna.
mária é de uma importância capital. Pois é na hora do encon- 3. Uma variante desta última situação, onde a mãe go-
tro de uma conjuntura e de uma estrutura que põe em jogo zando torna-se por isto cruel, hip6crita, comediante, espécie
dois objetos, que o sujeito vai ser confrontado com os traços de monstro lübrico que faz dela a Esfinge do mito edipiano
mnêmicos relacionados com o complexo da mãe morta. Estes muito mais do que a mãe de Édipo.
traços mnêmicos foram fortemente recalcados pelo desinves- 4. A identificação alternada às duas imagos - à mãe
timento. Ficam, por assim dizer, em suspenso no sujeito, que morta, seja na sua posição inalterável, seja entregue a uma
só guardou do período relacionado com o complexo uma excitação erótica de tipo sado-masoquista; ao pai, agressor da
lembrança muito parcial. Às vezes, uma recordação encobri- mãe morta (fantasia necrõfila), ou reparador pela relação se-
dora, de aspecto an6dino, é tudo o que sobrou. A fantasia da xual. Mais freqüentemente, o sujeito passa, segundo os mo-
cena primária vai não apenas reinvestir estes vestígios mas mentos, por uma ou por outra destas duas identificações.
também conferir-lhes, através de um novo investimento, no- 5. A deslibidinização er6tica e agressiva da cena em
vos efeitos que constituem uma verdadeira detonação, uma proveito de uma intensa atividade intelectual, narcisicamente
colocação de fogo na estrutura que toma o complexo da mãe restauradora frente a esta situação que confunde, onde a
morta significativo aprês coup. procura de um sentido novamente perdido desemboca na for-
26S NARcrS1SMO DE VIDA, NARCrSISMO DE MORTE '<\,MÃEMORTA 269
mação de uma teoria sexual e estimula uma atividade "inte- A análise da transferência através destas três posições fa-
lectual" extensa que restabelece a onipotência narcisista feri- rá reencontrar a felicidade primitiva anterior ao aparecimento
da, sacrificando as satisfações libidinais. Outra solução: a do complexo da mãe morta. Isto leva muito tempo e é preciso
criação artística suporte de uma fantasia de auto-suficiência. voltar a isto várias vezes antes de provocar a decisão, isto é,
6. A negação, em bloco, de toda a fantasia, com um antes de que o luto branco e suas ressonâncias com a angústia
grande investimento da ignorância de tudo o que diz respeito de castração permitam desembocar na repetição transferencial
às relações sexuais, que faz coincidir no sujeito o vazio da de urna relação feliz com uma mãe por fim viva e desejante
mãe morta e o apagamento da cena. A fantasia da cena primá- do pai. Este resultado passa pela análise da ferida narcisista
ria torna-se o pivô central da vida do sujeito que cobre com a que consumia a criança no luto matemo.
sua sombra o complexo da mãe morta. Desenvolve-se em
duas direções: para a frente e para trás. Particularidades do. transferência
Para a frente, é a antecipação do Édipo, que será então
vivido segundo o esquema das defesas contra a angústia da Não posso me estender sobre as implicações técnicas que
fantasia da cena primária. Os três fatores anti-erõticos, isto é, são colocadas pelos casos onde podemos identificar na trans-
o õdio, a homossexualidade e o narcisismo vão conjugar seus ferência o complexo da mãe morta. Esta transferência mostra
efeitos para que o Édipo se estruture mal. notáveis singularidades. A análise é intensamente investida
Para trás, a relação com o seio é o objeto de uma reinter- pelo paciente. Talvez devamos dizer a análise mais do que o
pretação radical. É aprês coup que esta se torna significativa. analista. Não que este não o seja. Mas o investimento do ob-
O luto branco da mãe morta remete ao seio que, superficial- jeto transferencial, ao mesmo tempo que parece oferecer toda
mente, está carregado de projeções destrutivas. De fato, trata- a gama do espectro libidinal, enraíza-se profundamente numa
se menos de um seio mau que não se dá do que de um seio tonalidade de natureza narcisista. Esta se traduz, para além
que, mesmo quando se dá, é um seio ausente (e não perdido), das expressões confessadamente portadoras de afetos, fre-
absorto pela nostalgia de uma relação lamentada. Um seio qüentemente muito dramatizadas, por um falta de afeto se-
que não pode ser nem preenchido nem preenchedor. Isto tem creta. Esta é justificada por uma racionalização do tipo "Sei
como conseqüência que o reinvestimento da relação feliz com que a transferência é uma ilusão e que, na verdade, tudo é
o seio, anterior ao surgimento do complexo da mãe morta, impossível com você em nome da realidade: então, para
está desta vez afetado pelo signo do efêmero, da ameaça ca- que?" Esta posição vem acompanhada de uma idealização da
tastrófica e, até mesmo se posso me expressar assim, que é imagem do analista, que deve ao mesmo tempo ser mantido
um falso seio, carregado por um falso self, alimentando um tal como é e ser seduzido para provocar seu interesse e sua
falso bebê. Esta felicidade era uma ilusão. "Nunca fui ama- admiração.
do" torna-se uma nova divisa à qual o sujeito vai se agarrar e A sedução se dá pela busca intelectual, pela busca do
que vai fazer esforços para verificar na sua vida amorosa sentido perdido que reassegura o narcisismo intelectual e que
posterior. Compreende-se que estamos lidando com um luto gera um mesmo numero de oferendas preciosas para o ana-
impossível e que a perda metaf6rica do seio torna-se por isto lista. Tanto mais que esta atividade vem acompanhada de uma
inelaborável. Convém acrescentar uma precisão sobre as fan- grande' riqueza de representações e de um dom -de auto-inter-
tasias orais canibalísticas, Ao contrário do que acontece na pretação bastante notável, que contrasta com seu pouco efeito
melancolia, aqui não há regressão a esta fase. Aquilo a que sobre a vida do paciente, a qual só se modifica pouco, so-
assistimos sobretudo é a uma identificação com a mãe morta bretudo no plano afetivo.
ao nível da relação oral, e com as defesas que ela suscitou, o A linguagem do analisando adota freqüenternente uma
sujeito temendo ao máximo tanto a mais completa perda do retórica que descrevi no capítulo 1 a propósito do narcisismo:
objeto, quanto a invasão pelo vazio. o estilo narrativo. Seu papel é comover o analista, ímplícã-lo,
fazê-lo testemunha no relato dos conflitos localizados no ex-
270 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE AMÃEMORTA 271
terior. Como uma criança que contasse à sua mãe seu dia na O complexo da mãe morta dá ao analista a escolha entre
escola e as centenas de pequenos dramas que viveu, para in- duas atitudes técnicas. A primeira é a solução clássica. Ela
teressá-Ia e fazê-Ia participar do que descobriu na sua ausên- comporta o perigo de repetir a relação com a mãe morta pelo
cia. silêncio. Mas temo que, se o complexo não fôr percebido, a
Adivinha-se que o estilo narrativo é pouco associativo. análise corre o risco de soçobrar no aborrecimento fúnebre,
Quando as associações se dão, são contemporâneas deste mo- ou na ilusão de uma vida libidinal enfim reencontrada. De
vimento de discreto retraimento que faz com que pareça que qualquer forma, o tempo do desespero não deixaria de apare-
se trata da análise de um outro que não está presente na ses- cer e a desilusão será dura. A segunda, aquela que prefiro, é
são. O sujeito desconecta, se desliga para não ser invadido a que, utilizando o quadro como espaço transicional, faz do
pelo afeto da revivescência mais do que pela reminiscência. analista um objeto sempre vivo, interessado, acordado pelo
Quando cede, é o desespero que se mostra em toda sua nu- seu analisando e testemunhando sua vitalidade pelos laços as-
dez. sociativos que comunica ao analisando, sem nunca sair da
Com efeito, constata-se na transferência dois traços con- neutralidade. Pois a capacidade de suportar a desilusão de-
sideráveis: o primeiro é a não-domesticação das pulsões - o penderá da forma como o analisando se sentirá narcisica-
sujeito não pode renunciar ao incesto, nem, conseqüente- mente investido pelo analista. É, portanto, indispensável que
mente, consentir com o luto materno. O segundo traço, sem este permaneça sempre atento às proposições do paciente,
dúvida o mais considerável, é que a análise induz o vazio. Ou sem cair na interpretação intrusiva. Estabelecer as ligações
seja, quando o analista conseguiu tocar num elemento impor- fornecidas pelo pré-consciente suporte dos processos terciã-
tante do complexo nuclear da mãe morta, o sujeito se sente, rios, sem curto-circuitã-lo indo diretamente à fantasia incons-
por um breve momento, esvaziado,branco, como se estivesse ciente, nunca é intrusivo, E, se o paciente expõe este senti-
despojado de um objeto tapa-buraco e parapeito (garde-fou). mento, é perfeitamente possível mostrar, sem traumas exces-
De fato, por trás do complexo da mãe morta, por trás do luto sivos, o papel defensivo deste sentimento contra um prazer
branco da mãe, vislumbra-se a louca paixão de que ela é e vivido como angustiante.
continua sendo objeto, que faz de seu luto uma experiência Pois compreende-se que é a passividade que aqui está
impossível. Toda a estrutura do sujeito visa uma fantasia fun- conflituada: a passividade ou a passivação como feminilidade
damental: nutrir a mãe morta, para mantê-Ia num perpétuo primária, feminilidade comum à mãe e à criança. O luto bran-
embalsamento. É o que o analisando faz com o analista, nutre- co da mãe morta seria o corpo comum de seus amores defun-·
o com a análise, não para viver melhor fora da análise, mas pa- tos.
ra prolongá-Ia num processo interminável. Pois o sujeito quer Quando a análise tiver devolvido vida, pelo menos par-
ser a estrela polar da mãe, a criança ideal, que toma o lugar cialmente, a esta parte da criança identificada com a mãe
de um morto idealizado, rival necessariamente invencível, morta, produzir-se-á uma estranha inversão. A vitalidade re-
porque não vivo, isto é, imperfeito, limitado, finito. cuperada permanece presa de uma identificação cativa. O que
A transferência é o lugar geométrico das condensações e acontece então não é facilmente interpretável. A antiga de-
dos deslocamentos reverberando entre fantasia da cena primá- pendência da criança para com a mãe, onde o bebê ainda pre-
ria, complexo de Édipo e relação oral que estão constituídos cisa do adulto, se inverteu. A partir de então, o vínculo entre
por uma dupla inscrição: periférica, enganosa e central, verí- a criança e a mãe morta vira pelo avesso. A criança curada
dica em torno do luto branco da mãe morta. O que está essen- deve sua saúde à reparação incompleta da mãe ainda doente.
cialmente perdido aqui é o contato com a mãe, que é secreta- Isto se traduz pelo fato de que é a mãe que agora depende da
mente mantido nas profundezas da psique, e onde todas as criança. Este movimento parece-me diferente do que é geral-
tentações de troca por objetos substitutos estão destinadas a mente descrito sob o nome de reparação. Não se trata de atos
fracassar. positivos que testemunham um remorso, mas simplesmente de
',li
II
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um sacrifício desta vitalidade no altar da mãe, renunciando a proceder a uma retificação de suas idéias a este respeito, a
utilizar as novas potencial idades do Eu para a obtenção de começar por Bion. Em suma, Melanie Klein esgotou a análise
prazeres possíveis. O que o analista deve então interpretar pa- do que poderia ser atribuído a um conjunto de disposições
ra o analisando é que tudo se dá como se a atividade do su- inatas quanto à força respectiva das pulsões de morte e de vi-
jeito visasse apenas fornecer à análise a oportunidade de in- da no bebê, sendo que a variável materna não entrava prati-
terpretar menos para ele mesmo do que para o analista, como camente em jogo. Nisto, está na filiação de Freud.
se fosse o analista que. tivesse necessidade do analisando, ao São principalmente para as projeções relativas ao objeto
contrário do que acontecia antes. mau que as contribuições kleinianas se inclinaram. Numa
Como explicar esta modificação? Há por trás da situação certa medida, isto se justificava pela recusa de Freud quanto à
manifesta, uma fantasia vampírica invertida. O paciente passa sua autenticidade. Inúmeras vezes foi sublinhada sua oculta-
sua vida nutrindo seu morto, como se fosse o único encarre- ção da "mãe má" e sua fé inabalável no caráter quase paradi-
gado disto. Guardião do túmulo, único possuidor da chave da sfaco dos vínculos que unem a mãe ao seu bebê. Cabia, por-
sepultura, desempenha sua função de genitor nutriz em segre- tanto, a Melanie Klein retocar este quadro parcial e tenden-
do. Mantém a mãe morta prisioneira, que permanece assim cioso da relação mãe-criança, e isto tanto mais facilmente já
como seu bem particular. A mãe se tornou o filho do filho. que os casos que ela analisou - crianças e adultos - a maio-
Cabe a ele reparar a ferida narcisista. ria de estrutura manfaco-depressiva ou psic6tica, revelavam
Surge aqui um paradoxo: se a mãe está de luto, morta, de forma evidente tais projeções. É assim que uma abundante
está perdida para o sujeito, mas pelo menos, por mais ator- literatura descreveu este seio onipotente interno que ameaça a
mentada que esteja, está aí. Presente morta, mas assim mesmo criança de aniquilamento, de despedaçamento e de sevícias
presente. O sujeito pode cuidar dela, tentar acordá-Ia, ani- infernais de todos os tipos, que urna relação especular une ao
má-Ia, curá-Ia. Mas se, em contrapartida, curada, ela acorda, bebê que se defende como pode pela projeção. Quando a fase
se anima e vive, o sujeito a perde também, pois ela o abando- esquizo-paran6ide começa a ceder terreno para a fase depres-
na para cuidar de suas ocupações e para investir outros obje- siva, esta, contemporânea da unificação do objeto e do Eu,
tos. De forma que lidamos com um sujeito preso entre duas tem como traço fundamental a cessação progressiva da ativi-
perdas: a morte na presença ou a ausência na vida. Disto de- dade projetiva e a possibilidade de assunção de suas pulsões
corre a extrema ambivalência quanto ao desejo de devolver a agressivas - sua "responsabilização" com respeito a elas, de
vida à mãe. certa forma - que a leva a poupar o objeto materno, a temer
por ele, a recear sua perda refletindo sua destrutividade sobre
Hipóteses meta psicológicas: si mesmo como efeito de uma culpa arcaica e com vistas a
o apagamento do objeto primário uma reparação. É por isto que, menos do que nunca, trata-se
e a estrutura enquadrante de incriminar a mãe.
Na configuração que descrevi e onde podem persistir
A clínica psicanalítica contemporânea dedicou-se a me- vestígios do objeto mau, fonte de 6dio, suponho que os traços
lhor definir as características da imago materna mais primiti- de hostilidade são secundários a uma imago primária da mãe,
va. A obra de Melanie Klein realizou e este respeito uma onde esta se viu desvitalizada por uma reação especular da
mutação na teoria, ainda que ela tenha se preocupado princi- criança afetada pelo luto do objeto materno. Isto nos leva a
palmente com o objeto interno, tal como pôde representã-lo, desenvolver uma hip6tese que já propusemos. Quando as
tanto através da análise de crianças quanto da análise de condições são favoráveis à inevitável separação entre a mãe e
adultos de estrutura psic6tica e sem levar em conta o papel da a criança, ocorre no seio do Eu uma mutação decisiva. O ob-
mãe na constituição de sua imago. Desta negligência nasceu a jeto matemo se apaga enquanto objeto primário da fusão, pa-
obra de Winnicott. Mas os discípulos de Klein, sem compar- ra dar lugar aos investimentos pr6prios ao Eu, fundadores de
tilhar das visões de Winnicott, reconheceram a necessidade de seu narcisismo pessoal, Eu doravante capaz de investir seus
274 NARCISISMO DE VIDA, NARCISISMO DE MORTE A MÃE MORTA 275
próprios objetos distintos do objeto primitivo. Mas este apa- rem-se alternadamente as marcas mnêmicas do amor perdido
gamento da mãe não o faz desaparecer realmente. O objeto com nostalgia e as da experiência da perda, que se traduz
primário torna-se estrutura enquadrante do Eu abrigando a pela impressão de uma dolorosa vacuidade. Estas alternâncias
alucinação negativa da mãe. Certamente, as representações da reproduzem o conflito muito antigo de um recalcamento pri-
mãe continuam a existir e se projetam no interior desta estru- mário fracassado na medida em que o apagamento do objeto
tura enquadrante sobre o pano de fundo da alucinação negati- primordial não terá sido uma experiência aceitável ou aceita
va do objeto primário. Mas não são mais representações-qua- de comum acordo pelas duas partes da antiga simbiose mãe-
dro, ou para explicar melhor, representações que fusionam as criança.
contribuições da mãe e as da criança. Seria o mesmo que di- As discussões que tiveram por tema o antagonismo entre
zer que não são mais representações cujos afetos correspon- narcisismo primário e amor primário de objeto são talvez ...
dentes expressam um caráter vital, indispensável à existência sem objeto. Tudo depende do ponto de vista adotado. Que o
do bebê. Estas representações primitivas mal merecem o no- amor primário de objeto seja constatável desde o princípio
me de representações. São um misto de representações apenas por um terceiro observador não deixa lugar a qualquer con-
esboçadas, sem dúvida de caráter mais alucinatõrio do que testação. Em contraposição, que este amor seja narcisista do
representativo e de afetos carregados que quase poderíamos ponto de vista da criança, é difícil pensar como poderia ser de
chamar de alucinações afetivas. Isto tanto na espera da satis- outra forma. Sem dúvida, o debate fica obscurecido pelas di-
fação almejada quanto nos estados de falta. Estes, quando se versas acepções atribuídas ao narcisismo primário. Se por tal
prolongam, provocam as emoções de cólera, de raiva, e de- expressão queremos designar uma forma primitiva de relação
pois de desespero catastrófico. Ora, o apagamento do objeto onde todos os investimentos partem da criança - o que talvez
materno transformado em estrutura enquadrante é conseguido seja diferente do auto-erotismo que já escolheu certas zonas
quando o amor do objeto é suficientemente seguro para de- erõgenas sobre o corpo do bebê - então há realmente uma
sempenhar este papel de continente do espaço representativo. estrutura narcisista primária característica de formas inaugu-
Este último não está mais ameaçado de rachar; pode suportar rais de investimento. Mas, se reservamos a denominação de
a espera e mesmo a depressão temporária, a criança sentindo- narcisismo primário à realização do sentimento de unidade
se mantida pelo objeto materno mesmo quando não está mais que se instala depois de uma fase onde o despedaçamento
lá. O quadro oferece, em suma, a garantia da presença mater- domina, então deve-se conceber o narcisismo primário e o
na na sua ausência e pode ser preenchido por fantasias de to- amor objetal como dois modos de investimento centrados em
dos os tipos, inclusive fantasias agressivas violentas que não torno de polaridades opostas e distintas. No que me diz res-
colocarão em perigo este continente. O espaço assim enqua- peito, vejo aí dois momentos sucessivos de nossa construção
drado, constituindo o receptáculo do Eu, circunscreve por as- rnftica do aparelho psíquico. Inclino-me a pensar que o narci-
sim dizer um campo vazio a ser ocupado pelos investimentos sismo primário mais antigo engloba de maneira confusa todos
eróticos e agressivos sob a forma de representações de objeto. os investimentos, inclusive o amor objetal primário, e mesmo
Este vazio nunca é percebido pelo sujeito, pois a libido in- o que poderíamos chamar simetricamente o ódio objetal pri-
vestiu o espaço psíquico. Desempenha então o papel de uma mário, pois é a indiscriminação primitiva sujeito-objeto que
matriz primordial dos investimentos futuros. caracteriza o tipo e a qualidade dos investimentos. É, por-
No entanto, se um trauma tal como o luto branco sobre- tanto, quando a separação se realiza que podemos legitima-
vém antes que a criança tenha podido constituir este quadro de mente opor o narcisismo primário mais tardio como aquele
maneira suficientemente sólida, não é um lugar psíquico dis- que designa somente os investimentos do Eu, opostos aos in-
ponível que se constituiu no Eu. Este último está limitado vestimentos objetais.
pela estrutura enquadrante, mas esta circunscreve então um Para completar esta descrição, acrescento que propus
espaço conflitivo que se esforça por manter cativa a imagem distinguir um narcisismo primário positivo (vinculável a
da mãe, lutando contra seu desaparecimento, vendo reaviva- Eros), tendendo para a unidade e a identidade, e um narcisis-
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mo primário negativo (vinculável às pulsões de destruição), morta uma configuração clínica familiar, que poderá diferir,
que não se manifesta pelo ódio ao objeto - este é perfeita- no entanto, em alguns dos traços de minha exposição. Sendo
mente compatível com o refluxo do narcisismo primário posi- a teoria psicanalítica elaborada a partir de um número limita-
tivo - mas pela tendência do Eu a desfazer sua unidade para do de observações, pode ocorrer que o que descrevi comporte
tender a zero. Isto se manifesta clinicamente pelo sentimento ao mesmo tempo traços suficientemente gerais para recortar a
de vazio. experiência dos outros e traços singulares que seriam próprios
a que descrevemos sob o nome de complexo da mãe aos pacientes que analisei.
morta nos permite compreender os insucessos da evolução fa- Além disto, é muito possível que este complexo da mãe
vorável. Assistimos ao fracasso da experiência de separação morta, cuja estrutura talvez esquematizei, possa ser encontra-
individualizante (Mahler) onde o jovem Eu, ao invés de do sob formas mais rudimentares. Deve-se então pensar que a
constituir o receptáculo dos investimentos .posteriores à sepa- experiência traumática à qual aludi foi mais discreta, ou mais
ração, luta para reter o objeto primário e revive repetitíva- tardia, sobrevindo num momento em que a criança estava
mente sua perda, o que provoca, ao nível do Eu primário con- mais apta a suportar suas conseqüências e só teve que recorrer
fundido com o objeto, o sentimento de uma depreciação nar- a uma depressão mais parcial, mais moderada e facilmente
cisista que se traduz fenomenologicamente pelo sentimento de superável.
vazio, tão caracterfstico da depressão, que é sempre o resul- Talvez tenha havido espanto por eu atribuir um tão gran-
tado de uma ferida narcisista com desperdício libidinal. Neste de papel ao traumatismo materno, num período da psicanálise
momento, como postulamos, toda a libido está marcada pelo em que se insiste muito mais nas vicissitudes da organização
narcisismo, e será, portanto, sempre uma perda narcisista que íntra-psíquica e em que se é mais prudente quanto ao papel
será vivida ao nível do Eu. desempenhado pela conjuntura. Como indiquei no começo
a objeto está "morto" (no sentido de não vivo, mesmo se deste trabalho, a posição depressiva é agora um fato admitido
não tiver ocorrido nenhuma morte real); carrega por isto o Eu por todos os autores, quaisquer que sejam as explicações que
para um universo deserto, mortífero. a luto branco da mãe a ela se dê. Em contrapartida, há muito que se descreveu os
induz o luto branco da criança, enterrando uma parte de seu efeitos deprimentes das separações precoces entre a mãe e a
Eu na necrópole materna. Nutrir a mãe morta significa então criança, sem, no entanto, haver uma correspondência unfvoca
manterem segredo o mais antigo amor pelo objeto primordial, entre a importância do trauma e as manifestações depressivas
sepultado pelo recalcamento primário da separação mal suce- constatadas. A situação, no complexo da mãe morta, não po-
dida entre os dois. parceiros da fusão primitiva. 9 de ser vinculada à posição depressiva comum, nem assimilada
Parece-me que os psicanalistas não terão nenhuma difi- aos traumatismos graves da separação real. Não houve, nos
culdade em reconhecer na descrição do complexo da mãe casos que descrevo, ruptura efetiva da continuidade das rela-
ções mãe-criança. Em contraposição, houve, independente-
mente da evolução espontânea em direção à posição depressi-
9. O que acabo de descrever não pode deixar de evocar as idéias tão inte- va, uma contribuição materna importante que vem perturbar a
ressantes de N. Abraham e de M. Torok. No entanto, mesmo se, em inúmeros
pontos, nossas concepções ~oincidem,. por outro lado elas diferem num tema ao
liqüidação da fase depressi va, complicando o conflito pela
qual atribuo uma grande importância, ou seja, a significação clínica e metapsi- realidade de um desinvestimento matemo suficientemente
col6gica dos estados de vazio. A maneira pela qual tenta explicã-Ios inscreve-se perceptível pela criança para ferir seu narcisisrno. Esta confi-
numa reflexão contínua onde, depois de ter tentado precisar o valor heurístíco do guração parece-me conforme aos pontos de vista de Freud
conceito de alucinação negativa e proposto o conceito de "psicose branca" com
J.-L. Donnet, dediquei-me neste trabalho a elucidar o que chamo o luto branco.
sobre a etiologia das neuroses - em sentido amplo - onde a
Poder-se-ia resumir estas diferenças dizendo que o narcisismo constitui o eixo de constituição psíquica da criança se forma pela combinação de
minha reflexão teórica, enquanto que N. Abraham e M. Torok preocupam-se suas disposições pessoais herdadas e acontecimentos da pri-
essencialmente com as relações entre incorporação e introjeção, com os efeitos de meira infância.
cripta aos quais dão origem.
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este lapso como revelador, o que me leva a concluir que não Só nos resta uma hipótese em suspenso, a da relação oral.
é do luto do avô materno que se trata, mas de um luto ante- Um outro sonho, em relação ao da "mãe querida" a isto nos
rior. A distância significativa do erro - de um ano e meio a remete, onde a mãe aparece viva: o sonho das Três Parcas.
dois anos - remeter-me-ia então a um outro luto da mãe: a do Neste sonho, a mãe de Freud prepara uns "knõdel" e, embora
irmão mais novo, Julius Freud, nascido quando Sigmund tem o pequeno Sigmund queira comê-Ias, ela o intima a esperar
dezessete meses (quase um ano e meio), morto quando tem até que ela esteja pronta ("confuso como discurso", acres-
vinte e três meses (quase dois anos). Disto decorreria a dupla centa Freud), As associações nesta passagem concernem, sa-
explicação: dois (ou três) personagens, ou seja, Jacob, Phi- be-se, à morte. Mas, mais adiante, distante da análise do so-
lippe ou Jacob, Philippe e Philippson; o filho de Philippe, nho, Freud retoma a isto, para escrever "Meu sonho das Três
Julius, já que em 1859, quando Freud tem três anos, teme que Parcas é um sonho de fome, muito claro, mas remete a neces-
sua mãe esteja novamente grávida como a Nania, e que Phi- sidade de alimento à nostalgia da criança pelo seio materno e
Iippe a tenha trancado numa arca, trancafiado ou, vulgar- utiliza um lado inocente para acobertar uma outra de outro ti-
mente, "traçado". po, que não pode se exteriorizar francamente't.P Sem dúvida,
Chamo a atenção para o porquê do jovem iniciador, o fi- e como negar que o contexto convida a isto, mas, também
lho da zeladora, que revela o comércio sexual, se chamar aqui, devemos sempre suspeitar. O que se deve principal-
Philippe. É Philippe que tem relações sexuais com Arnalie e é mente interrogar, é a imagem tripla da mulher em Freud, re-
Philippson (Julius) que permite a Sigmund compreender a tomada em "O tema dos três cofrezinhos": a mãe, a esposa
relação entre ter relações sexuais, parir e morrer. .. Julius será (ou a amante), a morte. Falou-se muito da censura da amante
objeto de um esquecimento de nome, o do pintor Julius Mo- nestes últimos anos, cabe a mim levantar a censura que pesa
sen, de que Freud fala nas suas cartas a Fliess de 26 de sobre a mãe morta. Da mãe do silêncio de chumbo.
agosto de 1898. Mosen-Moses-Moisés, conhecemos a se- Nossa trilogia está agora completa. Eis-nos novamente
qüência e também a insistência de Freud em fazer de Moisés remetidos à perda metaf6rica do seio, colocada em relação
um Egípcio, isto é, para falar claramente, não o filho de com o Édipo, ou com a fantasia da cena primária e à da mãe
Amalie e Jacob, mas da zeladora ou, rigorosamente, de Ama- morta. A lição da mãe morta é que ela também tem de morrer
lie e PhiJippe. Isto também esclarece a conquista de Roma por um dia para que uma outra seja amada. Mas esta morte deve
Freud, se nos lembrarmos de que ele cita Tito-Lívio a res- ser lenta e doce para que a lembrança de seu amor não pereça
peito dos sonhos incestuosos de Júlio César. e nutra o amor que generosamente ela oferecerá àquela que
Compreendo melhor a importância desta idade, dezoito tomar o seu lugar.
meses, na obra de Freud. É a idade de seu neto brincando
com o carretel (mãe morta - mãe ressuscitada), que morreu
por volta dos dois anos, e ocasionará um intenso luto ainda Eis, portanto, nosso percurso fechado. Mais uma vez de-
que minímizado. É também a idade em que o Homem dos lo- monstra-se a significação do aprês coup. Conhecia estes so-
bos teria assistido a cena primária. nhos de longa data, assim como os comentários que suscita-
Anzieu faz duas observações que vão ao encontro das ram. Ambos tinham se registrado em mim como traços mnê-
minhas próprias deduções. Mostra, a respeito da elaboração micos significativos de algo que me parecia obscuramente
pré-consciente de Freud, a aproximação entre Freud e Bion, importante sem que soubesse muito bem como e porquê. Es-
que individualizou, ao lado do amor e do ódio, a compreen- tes traços foram reinvestidos pelo discurso de certos anali-
são como referência primordial. do aparelho psíquico: a busca sandos que num determinado momento, mas não antes, pude
do sentido. Por fim, ele concluiu que se deve suspeitar da in- escutar. Será este discurso que me permitiu redescobrir a
sistência de Freud em reduzir a angústia específica do sonho,
angústia da morte da mãe, a outra coisa.
13. S. Freud, L'inJerpr~tationde.s rêves, pp. 204-205.
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