Desenvolvimento Da Linguagem Escrita

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DESENVOLVIMENTO DA

LINGUAGEM ESCRITA

Autoria: Bethânia Coswig Zitzke


Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig

UNIASSELVI-PÓS
Programa de Pós-Graduação EAD
CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI
Rodovia BR 470, Km 71, no 1.040, Bairro Benedito
Cx. P. 191 - 89.130-000 – INDAIAL/SC
Fone Fax: (47) 3281-9000/3281-9090

Reitor: Prof. Hermínio Kloch

Diretor UNIASSELVI-PÓS: Prof. Carlos Fabiano Fistarol

Coordenador da Pós-Graduação EAD: Profa. Cláudia Regina Pinto Michelli

Equipe Multidisciplinar da
Pós-Graduação EAD: Profa. Bárbara Pricila Franz
Profa. Cláudia Regina Pinto Michelli
Profa. Kelly Luana Molinari Corrêa
Prof. Ivan Tesck

Revisão de Conteúdo: Cláudia Cristiane Levandoski Martins

Revisão Gramatical: Iara de Oliveira

Revisão Pedagógica: Bárbara Pricila Franz

Diagramação e Capa:
Centro Universitário Leonardo da Vinci

Copyright © UNIASSELVI 2016


Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri
UNIASSELVI – Indaial. UNIASSELVI – Indaial.

370.14
Z82d Zitzke, Bethânia Coswig
Desenvolvimento da Linguagem Escrita/
Bethânia Coswig Zitzke; Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig.
Indaial : UNIASSELVI, 2016.
173 p. : il.

ISBN 978-85-69910-21-3

1. Linguagem e Comunicação
I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.
Bethânia Coswig Zitzke

Possui graduação em Letras pela Universidade


Federal de Pelotas (1995) e mestrado em Linguística
e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1998). Tem experiência na área de
Linguística, atuando principalmente nos seguintes temas:
aquisição da linguagem, aquisição da fonologia, ensino
de língua materna, metátese e aquisição da linguagem com
desvios fonológicos. Atuou em projetos de extensão e também
no PIBID.

PUBLICAÇÕES:
HEINIG, O. L. O. M.; FRITZEN, M. P.; ZITZKE, B. C. Nós: amarras entre
pesquisa, extensão e ensino no campo da linguagem. Revista de Cultura e
Extensão, v. 1, p. 31-36, 2009.
ZITZKE, B. C. Um levantamento de metáteses na fala de crianças em fase
de aquisição de linguagem. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 125, n.0, p. 219-227,
2001.
HEINIG, O. L. O. M.; FRITZEN, M. P.; ZITZKE, B. C. A linguagem que
permite diálogos entre pesquisa, extensão e ensino. In: Neide de Melo Aguiar
Silva; Rita Buzzi Rausch. (Org.). Extensão Universitária: movimentos de
aproximação entre sociedade e universidade. Blumenau: EDIFURB, 2010, v. 1,
p. 41-53.
LUEDTKE, Andresa; ATANASIO, C. L. I.; MELO, M. P. de; FRITZEN, M. P.;
ZITZKE, B. C.; LUEBKE, J. Narrativas de alunos do ensino fundamental
II: reflexões a partir do projeto Letras Português do PIBID. In: Jornada de
Linguagem, 2013, Florianópolis. Anais da Jornada de Linguagem. Florianópolis:
Editora da UDESC, 2013.
MOREIRA, E. M.; BERNARDO, S.; FRITZEN, M. P.; ZITZKE, B. C.
Subprojeto Letras Português: diagnóstico de narrativas do ensino fundamental II.
In: Jornada de Linguagem, 2013, Florianópolis. Anais da Jornada de Linguagem.
Florianópolis: Editora da UDESC, 2013.

APRESENTAÇÕES DE TRABALHO:
ZITZKE, B. C.. PIBID e currículo: desafios na construção de
subjetividades. 2012. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).
ZITZKE, B. C. Comissão de Verificação - Conselho Estadual
de Educação do Estado de Santa Catariana das Condições de
funcionamento do Curso de Letras- Habilitação em Português e
Alemão - UNOESC. 2000. Universidade do Oeste de Santa Catarina.

Endereço para acessar o CV: <http://lattes.cnpq.


br/0839118442429236>.
Otilia Lizete de Oliveira Martins Heinig

Mestre em Educação pela Universidade


Regional de Blumenau (FURB), doutora em
Linguística pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Em seu caminho pela educação, atuou desde
a pré-escola até o ensino superior, o que possibilitou
compreender as relações existentes em diferentes níveis e
espaços educacionais. Ingressou, em 1990, como docente
naFURB, no curso de Letras e, em 2004, integrou a linha
Educação e Linguagem do Programa de Mestrado em
Educação do qual também foi coordenadora. Atualmente
é professora aposentada e voluntária no Mestrado em
Educação. É membro da ANPED, ABRALIN, ISAPL e ALFAL.
Suas pesquisas focam questões em torno das práticas de
leitura e escrita em diferentes níveis de ensino, abarcando
também questões sobre a aprendizagem do sistema escrito
e da formação de professores. Entre suas publicações mais
recentes em livro está “Baú de práticas: socialização de projetos
de letramento” (2013). Organizou, juntamente com Cátia
Fronza, os dois volumes das obras Diálogos entre linguística
e educação. Além disso, publicou capítulos de livros, artigos
em periódicos e vários em anais de eventos. Entre os seus
projetos de pesquisa,  está  “Padrões e funcionamento de
letramento acadêmico em cursos brasileiros e portugueses
de graduação: o caso das engenharias” que resultou na
produção da obra “Ler e escrever: uma proposta para as
engenharias” (2013) em parceria com Bruna A. Franzen.
Deste projeto também resultou a obra que aqui se
apresenta. Paralelo à pesquisa, coordenou até o início
de 2014 o NEL (Núcleo de Estudos Linguísticos).
Atua como formadora de professores e coordena
desde 2000 o GPLP (Grupo de Professores de
Língua Portuguesa).
Sumário

APRESENTAÇÃO���������������������������������������������������������������������������� 7

CAPÍTULO 1
O Paradigma Construtivista e o Paradigma Fonológico �������� 9

CAPÍTULO 2
Linguagem Escrita e Consciência Fonológica
na Educação �������������������������������������������������������������������������������� 47

CAPÍTULO 3
Fatores Socioculturais no Processo de Aquisição
da Linguagem Escrita������������������������������������������������������������������ 75

CAPÍTULO 4
Dificuldades na Linguagem Escrita�����������������������������������������111

CAPÍTULO 5
A Função da Escrita na Vida do Sujeito��������������������������������� 145
APRESENTAÇÃO
O poeta Mário Quintana ganhara uma pintura de bolso, de 6cm x 4cm, e,
ao agradecer ao pintor, justificando porque não havia aceito um quadro grande,
afirmou: “Elias, me desculpe e acredite. Eu não tenho paredes. Só tenho
horizontes...”1.

Com esta frase de Quintana, gostaríamos de abrir este caderno de estudos,


com o objetivo maior de que as conversas que estabeleceremos possam ampliar
os seus horizontes e sua capacidade de vislumbrar outras (novas e velhas)
possibilidades. Nosso caderno versa sobre o desenvolvimento da linguagem
escrita, trazendo diferentes abordagens, teorias, práticas e, parafraseando o
poeta, horizontes.

No capítulo 1, trazemos dois paradigmas que envolvem o desenvolvimento


da escrita - os paradigmas construtivista e fonológico – e buscamos apresentá-
los como suportes teóricos para que você possa compreender um pouco mais
dos processos que envolvem a alfabetização. O capítulo 2 apresenta um
aprofundamento sobre o segundo paradigma e sobre a consciência fonológica.

No capítulo 3, refletimos sobre a influência de fatores socioculturais na


alfabetização e letramento, buscando elementos que transcendem os fatores
puramente cognitivos ou linguísticos. No capítulo 4, trazemos, novamente, o viés
linguístico e psicolinguístico, procurando analisar os processos de leitura e escrita,
focalizando o sistema de escrita alfabético e a questão dos erros ortográficos.

No último capítulo, abordamos a escrita no seu passado, presente e futuro,


mostrando um percurso que nem sempre é linear, e pensando nela como condição
para inserção social dos sujeitos.

Este caderno é o resultado do trabalho de duas professoras que têm


vislumbrado novos horizontes juntas, há um bom tempo. É fruto de estudos,
pesquisas e conversas com muitos autores. Buscamos e apresentamos
alguns posicionamentos teóricos, no entanto, acreditamos em construções, em
compreensões e sempre na ampliação da nossa capacidade de compreender os
processos relacionados à escrita.

Sempre é bom lembrar que uma teoria nunca se encerra em si mesma.


Quintana já dizia: “Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado

1 FONSECA, J. Ora bolas. O humor de Mário Quintana. 4. ed. Porto Alegre: L&PM, 2011,
p. 17.
à prisão perpétua”2. Prisões não combinam com novos horizontes! Portanto,
venha conversar conosco no desenrolar destas páginas, refletir sobre sua prática
e experimentar estes novos horizontes!

As autoras.

2 QUINTANA, M. Caderno H. 4. ed. São Paulo: Globo, 2009, p. 52.


C APÍTULO 1
O Paradigma Construtivista
e o Paradigma Fonológico

Objetivos de aprendizagem relacionados ao saber fazer:

99 Conhecer as teorias construtivistas e fonológicas no que tange à aquisição da


escrita.

99 Apontar os aspectos relevantes dessas teorias para o ensino e a aprendizagem


da escrita.

99 Analisar artigos e materiais didáticos sobre o desenvolvimento da escrita,


identificando o aporte teórico subjacente.

99 Avaliar a própria prática, buscando implementar e melhorar as ações a partir


do que foi estudado na unidade.
Desenvolvimento da linguagem escrita

10
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Contextualização
Os números e resultados sobre a alfabetização no país têm motivado
profissionais das áreas da educação, linguística e psicologia a pesquisarem
soluções para os problemas que surgem no período de desenvolvimento da
escrita.

Os governos e secretarias de educação buscam por métodos eficientes, no


entanto, nem sempre “um método de alfabetização” é a solução para os problemas
existentes. Antes, é necessário que se compreenda o que significa ler e escrever.
Para isso servem os paradigmas: auxiliar na compreensão destes dois processos
interdependentes, mas, ao mesmo tempo, de natureza diferente.

Neste capítulo, estudaremos dois dos paradigmas contemporâneos: o


paradigma construtivista e o paradigma fonológico, e, a partir destes olhares,
compreenderemos um pouco mais sobre a leitura e a escrita.

Por uma concepção teórica, advinda da Psicolinguística, optamos pelo termo


aprendizagem da escrita e não aquisição da escrita. Essa escolha se deve ao fato
de que a aquisição da linguagem é um processo natural, que não depende de um
ensino sistemático, enquanto a aprendizagem é um processo que depende, em
algum momento, do ensino sistemático.

A diferença entre a aquisição e a aprendizagem é explicada por Scliar-Cabral


(2003, p. 20), “[...] a primeira, a compulsão natural que todo o bebê normal tem,
desde que participante da interação linguística, para adquirir a variedade oral de
uma ou mais línguas; a segunda, o processo sistemático, na maioria dos casos,
para dominar o sistema escrito”. Outra diferença destacada pela autora é entre a
recepção e a produção, que, apesar de processos interligados, não são idênticos.
“[...] a recepção é um processo mais simples, se comparado à produção, a
precede e é seu pré-requisito” (SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 20).

Panorama Teórico
Por que pensamos em um panorama teórico? Para compreender os
movimentos e mudanças que têm ocorrido no campo educacional, é necessário
buscar os grandes motivadores dessas mudanças. Quem são e o que o pensam.
Qual a força de suas teorias, de seus conceitos e por que chegam a causar
mudanças nas perspectivas educacionais de um país.

Nesta seção não se pretende esgotar o tema e nem caberia, mas você terá
condições de compreender os paradigmas propostos e, também, pensar sobre
11
Desenvolvimento da linguagem escrita

sua prática. Acreditamos que muitos dos problemas que envolvem tais paradigmas
resultam justamente do fato de que métodos e teorias são impostos sem que se
conheçam e estudem as bases teóricas. Então, vamos conhecer um pouco mais!

O Paradigma Construtivista
Pensar não se reduz, acreditamos, em falar, classificar
em categorias, nem mesmo abstrair. Pensar é agir
sobre o objeto e transformá-lo. 
Jean Piaget.

O sucesso (ou fracasso?) da alfabetização no Brasil esteve, historicamente,


relacionado aos métodos de alfabetização. Segundo Soares (2004), nas décadas
de 50, 60 e 70 os estudos e pesquisas estavam voltados para a eficiência dos
métodos propostos e empregados pelos alfabetizadores, principalmente o método
sintético ou método das partes, o método analítico ou global e o método misto ou
eclético. O paradigma dos métodos está baseado na perspectiva associacionista
(vertente skinneriana) e, nela, o método é essencial para o processo de
aprendizagem da língua escrita.

Para que você possa compreender um pouco mais, estudaremos


brevemente os conceitos destes três métodos de alfabetização.
No Glossário Ceale (http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/
glossarioceale/), você poderá aprofundar o seu conhecimento no
assunto.

Método sintético ou método das partes: Os métodos sintéticos


partiam do pressuposto de que o aprendizado da escrita se dava das
partes para o todo. Por isso, esse método é também conhecido como
método das partes. As unidades de análise escolhidas poderiam ser
letras, fonemas ou sílabas. Segundo Espírito Santo (2013, p. 72):

Considerar as partes para chegar ao todo advém


de uma ideia bastante preconizada pelo método
indutivo – a de que se deve partir do mais simples
para o mais complexo, do mais concreto para o mais
abstrato – só que essa gradação se baseia na lógica do
adulto, pois o paradigma dos métodos, em geral, não
considera a aprendizagem, toda a ação pedagógica se
centra no ensino: é o paradigma do como se ensina.
Assim, o processo do ser que aprende não é sequer
considerado, tudo parte do ser que ensina, o qual se
encontra teleguiado pelo método de ensino da escrita
e da leitura.

12
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Nessa perspectiva, ensinar a ler e escrever significa ensinar a


codificar e a decodificar, sem levar em conta contextos e situações
sociais diferenciadas.

Método analítico ou global: Esse método se opõe ao método


anterior, pois propõe que a alfabetização deva partir do todo para
as partes. Assim, trabalha com unidades de sentido, devendo-se
começar pela maior unidade de sentido, até se chegar a menor:
texto – frase – palavra – sílaba - fonema e letra. Segundo Frade
(2015, verbete), “está presente nesse movimento metodológico
a defesa do trabalho com sentido, na alfabetização, enfatizando-
se o reconhecimento global como estratégia inicial, para que os
aprendizes realizem, posteriormente, um processo de análise de
unidades menores da língua”. No entanto, o método não favorece a
criação de sentidos, pois parte da memorização e reprodução dessas
unidades, até se chegar ao domínio da escrita.

Método misto ou eclético: este método busca um meio termo


entre os dois outros métodos, tentando evitar a polarização decorrente
de se trabalhar a partir das partes (método sintético) ou a partir das
unidades maiores (método analítico). Apesar de representar uma
nova proposta de alfabetização, ele ainda desconsiderava o contexto
dos aprendizes, conforme confirma Espírito Santo (2013, p. 75):

Nesse tipo de metodologia as histórias utilizadas para o


ensino da escrita e da leitura não possuem ligação com
o contexto de vida da criança e os textos são artificiais,
pois sua estruturação serve unicamente ao ensino
da leitura. Não existe estrutura linguística, trata-se de
textos que se constituem como meros pretextos para
ensinar a ler (decodificar) e a escrever (codificar), os
famosos textos cartilhados. Os textos se centram em
artificialidades que se voltam ao domínio da ortografia
da língua.

No entanto, na década de 80, há uma mudança de paradigma na reflexão


sobre a alfabetização no Brasil, sob influência, principalmente, das ideias de Piaget.

Para que se possa compreender um pouco mais este paradigma, é


necessário situá-lo teoricamente. É muito comum que o termo Construtivismo seja
associado aos métodos de alfabetização ou ensino. Muitos educadores afirmam
que usam o método construtivista em suas aulas. Porém, o que é construtivismo?

É o nome dado a uma das correntes teóricas empenhadas em explicar como


a inteligência humana se desenvolve. Segundo essa corrente, o desenvolvimento

13
Desenvolvimento da linguagem escrita

da inteligência e a construção do conhecimento são determinados pelas


O desenvolvimento
da inteligência e “interações entre o sujeito (aquele que conhece) e o objeto (sua fonte de
a construção do conhecimento)” (BREGUNCI, 2015). As bases teóricas que sustentam
conhecimento são a corrente estão na Epistemologia Genética (ou Teoria Psicogenética)
determinados pelas de Jean Piaget e na Psicologia Sociohistórica de Vygotsky, Luria e
“interações entre Leontiev e foram desenvolvidas no início do século XX.
o sujeito (aquele
que conhece) e o
Piaget explicou detalhadamente como o sujeito, desde o
objeto (sua fonte de
conhecimento)” nascimento, constrói o conhecimento, através de interações com
o objeto e o meio, de forma cada vez mais elaborada. Assim, o
conhecimento resultaria do próprio comportamento e geraria esquemas
de ação. Segundo Kato (1999), Piaget não partia do princípio de que o estado
inicial para a aquisição da linguagem seria uma ‘tábula rasa’, para ele, esta
aquisição também dependeria de programas que gerariam esquemas de ação
orientados para o objeto a ser aprendido, no caso, a linguagem.

Os estudos de Piaget, no entanto, não envolveram a leitura e a escrita


especificamente e também não se constituíram em um “método educacional”.

Figura 1 – Correntes teóricas sobre a aquisição da escrita

Fonte: As autoras.

Então, como chegamos ao paradigma construtivista e qual sua relação com


a leitura e a escrita? Na década de 70, uma das alunas de Piaget, Emília Ferreiro,
com Ana Teberosky e outros colaboradores, observaram como a criança constrói
seu conhecimento sobre leitura e escrita, seguindo a base teórica da Teoria
Psicogenética e buscando fundamentos também na Psicolinguística.

Sendo assim, no princípio da década de 80, os estudos de Ferreiro e


colaboradores começam a ser divulgados por pesquisadores brasileiros,
como Esther Pillar Grossi (fundadora do Grupo de Estudos Sobre Educação,
Metodologia de Pesquisa e Ação -  GEEMPA), Telma Weisz (foi supervisora
pedagógica na elaboração e implementação do Programa de Formação de
Professores Alfabetizadores – PROFA), Lúcia Rego, entre outros. Estes tiveram
forte influência nos estudos sobre Educação Infantil e nos primeiros anos do
Ensino Fundamental, voltados para a alfabetização, assim como nas políticas
estaduais e nacionais que regulamentavam estes níveis escolares.

14
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Soares (2004) considerou tardia a entrada dessas reflexões no Brasil, mas


causadoras de mudanças radicais. Se, na concepção associacionista, o método
era determinante na aprendizagem, pois a criança aprenderia a ler através
da exercitação de habilidades hierarquicamente ordenadas, na concepção
psicogenética seria o contrário, pois esta:

[...] considera ser o aprendiz o centro do processo, já que o


vê como sujeito ativo que define seus próprios problemas e
constrói, ele mesmo, hipóteses estratégicas para resolvê-los.
Nessa segunda perspectiva, o método de ensino, em sua
concepção tradicional, pode mesmo ser prejudicial, na medida
em que bloqueie ou dificulte os processos de aprendizagem
da criança (SOARES, 2004, p. 89).

Então, fica claro que Ferreiro e seus colaboradores não propuseram


um método de ensino, e sim uma teoria para que se pudesse compreender o
processamento da leitura e da escrita. A teoria recebeu o nome de Psicogênese
da Língua Escrita. Para compreender melhor, observe o conceito proposto por
Bregunci (2015):
O termo psicogênese pode ser compreendido como origem,
gênese ou história da aquisição de conhecimentos e funções
psicológicas de cada pessoa, processo que ocorre ao longo de
todo o desenvolvimento, desde os anos iniciais da infância, e
aplica-se a qualquer objeto ou campo de conhecimento.

Agora que já nos situamos teórica e historicamente, aprofundaremos nosso


conhecimento sobre o desenvolvimento da leitura e da escrita por meio do
enfoque psicogenético.

Na concepção construtivista, suporte teórico da psicogênese, a criança é o


centro da aprendizagem – é o sujeito e o agente, pois elabora o conhecimento por
meio de aproximações e hipóteses, relacionadas às fases do desenvolvimento.

A língua escrita é entendida como um sistema de representação da


linguagem e não como um código, no qual os elementos são previamente
dados. As crianças, ao aprender a ler e a escrever, lidam com este sistema de
representação, ou seja, precisam compreender como o sistema funciona, quais
são os seus princípios e, posteriormente, quais são as regras de funcionamento.
Segundo Ferreiro (1985), se a escrita é entendida como um código, sua
aprendizagem é concebida como uma aquisição técnica, se é entendida como um
sistema de representação, torna-se um novo objeto de conhecimento.

Para que você possa compreender melhor a questão da língua


como um sistema de representação, pesquise no artigo de Ferreiro

15
Desenvolvimento da linguagem escrita

(1985) - on-line - <http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/


arquivos/679.pdf>.

A compreensão deste sistema de representação acontece por meio de um


processo de construção, formulação de hipóteses e reformulações. Conforme
Bregunci (2015, verbete) “a apropriação da escrita se apoia em hipóteses do
aprendiz, baseadas em conhecimentos prévios, assimilações e generalizações,
dependendo de suas interações sociais e dos usos e funções da escrita e da
leitura em seu contexto cultural”.

Para compreendermos como Ferreiro (1985) analisou e estudou as


produções infantis, devemos partir do princípio de que as crianças, ao contrário
do que previam os manuais de alfabetização, não precisam de permissão para
aprender a ler e escrever, assim como não necessitam de um método especifico.
“Mas se pensarmos que as crianças são seres que ignoram que devem pedir
permissão para começar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem
saber, embora não tenha sido dada a elas a autorização institucional para tanto”
(FERREIRO, 1985, p. 9, grifo nosso).

Isso quer dizer que, quando uma criança chega na escola, ela já está em
contato com a leitura e a escrita, e, portanto, já vem desenvolvendo algumas
hipóteses do que significa ler e escrever, mesmo antes de ser colocada
formalmente numa sala de aula para que seja alfabetizada. Essa experiência
prévia pode ocorrer tanto nos meios escolares como nos outros meios de
circulação do aluno.

Antes de estudarmos as fases evolutivas propostas por Ferreiro,


assista a este pequeno vídeo, com a autora, sobre a escrita das
crianças. No vídeo, há uma entrevista conduzida pela professora
Telma Weiss, na qual Ferreiro reflete sobre a importância de se
deixar a criança escrever como deseja e de se compreender o
desenvolvimento da escrita como um processo. No link há outros
vídeos que poderão contribuir para a sua aprendizagem. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=V2myaSubdbo>.

Os estudos da psicogênese mostraram que a escrita infantil apresenta uma


linha de evolução, com várias regularidades surpreendentes, independentes da
língua, dos meios culturais e de situações educativa. Ferreiro (1985, p. 10) aponta
para três grandes períodos que compreendem algumas subdivisões.

16
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

1. Distinção entre o modo de representação icônico e não icônico

Este primeiro período exige um grande esforço intelectual da criança, pois


ela precisa separar representações figurativas (icônicas) e não figurativas (não
icônicas) e, também, compreender a escrita como um objeto substituto.

Assim, é feita a primeira diferenciação entre desenhar e escrever. Na


primeira, as formas dos grafismos são importantes e estão relacionadas às formas
do objeto que se deseja representar (representação icônica). Na tentativa de
escrita, por sua vez, as formas dos grafismos não estão relacionadas às formas
dos objetos representados (representações não icônicas). São usadas de forma
arbitrária e linear, o que representa a primeira tentativa de escrita pré-escolar.

Diferenciar a atividade de desenhar da atividade de escrever


é importante porque a escrita, para as crianças pequenas,
recupera o que se pode desenhar: o nome do objeto
desenhado (‘hipótese do nome’). Esta ideia também lhes
serve para interpretar os textos que aparecem acompanhados
de imagens. A escrita por si mesma não é suficiente para
garantir o significado e por isso as crianças costumam
desenhar antes de escrever. A imagem, por outro lado, é a que
permite interpretar a escrita (pelo menos como uma tentativa)
(FERREIRO, 2003 apud BAPTISTA; MONTEIRO, 2009, p. 49).

Outra característica que marca este período é a compreensão da escrita


como um objeto que substitui algo, que representa alguma coisa externa à própria
escrita, porém, os aprendizes ainda não sabem da relação entre a escrita e a
linguagem, e, principalmente, da relação com os sons da fala. Pensando dessa
forma, pode-se afirmar que as crianças diferenciam os desenhos da escrita e
sabem que a escrita não reproduz, mas substitui algo.

Figura 2 - Exemplo de diferenciação entre escrita e desenho

Fonte: Ferreiro (1985, p. 10).

2. Construção de formas de diferenciação (controle progressivo sobre


os eixos qualitativo e quantitativo)

17
Desenvolvimento da linguagem escrita

Como a criança já definiu o que é escrita e o que é desenho, nesta fase, ela
passa a refletir sobre as características formais da escrita, o que exige um grande
esforço intelectual. Ferreiro (1985) descreveu dois critérios de diferenciação
estabelecidos pelas crianças, o intra-figura e o inter-figura.

Primeiramente as crianças estabelecem quais são os critérios para que um


texto possa ser interpretável – critérios intra-figura. Para que uma palavra possa
ser lida, isto é, interpretável, precisa ter no mínimo três letras (eixo quantitativo) e
estas letras precisam ser variadas (eixo qualitativo). Com base nesses critérios,
palavras como “nó” e “osso” não são interpretáveis.

Figura 3 - Exemplo de escrita seguindo o critério intra-figura

Fonte: Ferreiro (1985, p. 11).

No exemplo apresentado por Ferreiro (1985), a criança usou os critérios de


quantidade e qualidade, mas não fez diferenciação entre palavras.

O segundo passo é a busca de diferenciação entre as palavras escritas –


inter-figura. Ainda permanecem os critérios da intra-figura, mas há um esforço para
diferenciar as palavras entre si. Para diferenciar as palavras, é feito um esforço
sistemático, que pode estar baseado no eixo quantitativo – a criança usa os mesmos
elementos, mas varia as quantidades, ou no eixo qualitativo, são feitas diversas
combinações e ordens diferentes, sem necessariamente variar as quantidades.

Vamos exemplificar um pouco para que você possa compreender


melhor este segundo passo. No decorrer do processo de reflexão
sobre a linguagem, a criança vai estabelecendo alguns critérios de

18
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

interpretação e escrita. Para escrever palavras diferentes procura


usar as letras e elementos gráficos que conhece, porém variando sua
ordem e quantidades. Muitas usam as letras do seu próprio nome
para escrever tudo o que for solicitado. Por exemplo, se a criança se
chama Maria e foi solicitado a ela que escreva: caneta e borracha,
podem ser realizadas as seguintes produções respectivamente:

RMIAA e MIARA – nesse caso, utilizou a mesma quantidade


de letras para produzir as duas palavras, mas modificou a ordem e
combinações.

O outro processo envolve as mesmas letras, no entanto,


variando a quantidade. Para exemplificar, utilizando as mesmas
palavras do exemplo anterior, a criança poderia escrever: MAA e
MRAI respectivamente.

Figura 4 - Exemplo de escrita seguindo o critério inter-figura

Fonte: Ferreiro (1985, p. 12).

No exemplo acima, em que a criança utilizou os critérios inter-figura, observa-


se que houve uma variação na ordem das letras para escrever palavras diferentes.

Nas etapas apresentadas, as crianças não tentam criar letras ou outros


sinais, a própria autora destaca que estes aspectos são adquiridos mediante o
convívio com materiais de leitura e escrita, seja este na escola, seja em casa. A
partir dessas interações, a criança aprende as convenções relacionadas à leitura

19
Desenvolvimento da linguagem escrita

e à escrita, como direção, quais são as letras e quais são os números, quais os
sinais de pontuação.

Quando estudamos a Psicogênese da Alfabetização, é muito comum que se


apresentem as hipóteses elaboradas durante o processo. Uma das hipóteses ou
estágios é a chamada pré-silábica, que faz parte dos dois períodos descritos acima.

A criança ainda  Pré-silábico – a criança ainda não compreende a escrita como uma
não compreende a representação dos sons da fala, por isso, utiliza-se de desenhos,
escrita como uma rabiscos e grafismos. As representações estão relacionadas às
representação dos
imagens dos objetos e não ao nome. Este processo é chamado de
sons da fala.
realismo nominal.

Figura 5 – Escrita pré-silábica

Fonte: Disponível em: <http://slideplayer.com.br/


slide/3227764/>. Acesso em: 20 maio. 2016

Um avanço que ocorre nesta fase é a percepção de que para escrever se


usa o nome das coisas, no entanto, o realismo nominal ainda se faz presente, pois
as crianças normalmente usam muitas letras para representar coisas grandes e
poucas para representar coisas pequenas.

Exemplo: Para escrever o nome de uma professora alta, a criança pode


usar muitas letras, se a professora for menor, seu nome consequentemente será
escrito com menos letras.

Para este estágio, Ferreiro e Teberosky (1986) estabeleceram dois princípios


importantes:

• Princípio da quantidade mínima, ou seja, uma palavra deve ter uma


quantidade mínima de letras, em geral três.

20
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

• Princípio das variações qualitativas: uma palavra deve ser representada


por letras diferentes.

Quando o aprendiz supera esta etapa, passa para o estágio silábico.

3. A fonetização da escrita (que se inicia com um período silábico e


culmina no período alfabético)

Neste terceiro grande período ocorre uma mudança, considerada


fundamental para que a criança possa avançar no seu processo em direção
à leitura e à escrita. É a percepção do aspecto sonoro, de que as letras estão
relacionadas às emissões orais que podem ser percebidas nas palavras.

Num primeiro momento, há a percepção das sílabas (hipótese silábica) e,


posteriormente, das letras em si (hipóteses silábico-alfabética e alfabética).

• Silábico – neste estágio, há uma mudança conceitual, e a escrita,


Há uma mudança
além de simbólica, passa a ser associada aos sons da fala. O conceitual, e a
aprendiz acredita que as sílabas são os segmentos que precisam escrita, além de
ser representados e, para isso, usa apenas uma grafia para simbólica, passa a
representar cada sílaba. Esta representação pode ter um caráter ser associada aos
quantitativo, ou seja, usa letras aleatórias para representar as sons da fala.
sílabas, não havendo uma correspondência sonora. Pode ter um
caráter qualitativo, sendo escolhidas letras que representam algum som da
referida sílaba, ocorrendo, então, uma correspondência sonora.

Figura 6 - Escrita silábica Figura 7 - Escrita silábica


sem valor sonoro com valor sonoro

Fonte: Disponível em: <http:// Fonte: Disponível em: <http://danielajanssen.


danielajanssen.com.br/?p=201>. com.br/?p=201>. Acesso em: 20 maio. 2016.
Acesso em: 20 maio. 2016.

Segundo Ferreiro (1985, p. 12), a fase silábica evolui até chegar a uma
exigência rigorosa “uma sílaba por letra, sem omitir sílabas e sem repetir letras”.
No entanto, todo o rigor e estabilidade alcançados nesta etapa acabam criando

21
Desenvolvimento da linguagem escrita

contradições. Nas palavras monossílabas, por exemplo, que seriam representadas


por apenas uma letra, as crianças não aceitariam como passíveis de leitura, por
um princípio quantitativo.

Outro conflito surge no confronto com as palavras escritas pelos adultos,


sempre com um maior número de letras do que a compreensão silábica
desenvolvida pela criança.

Este processo foi nomeado por Ferreiro como conflito cognitivo. Quando o
aprendiz é questionado por um adulto – geralmente um educador ou pesquisador
– quanto a um conceito ou fase de escrita, ocorre um desequilíbrio cognitivo.
O objetivo deste procedimento é levar o aluno a avançar no seu processo de
construção da escrita.

A coexistência da • Silábico-alfabética – é uma fase de transição, e se observa a


representação de coexistência da representação de sílabas e grafemas. Segundo
sílabas e grafemas. Perfeito (1999, p. 35) “o sujeito precisa negar a lógica da hipótese
silábica, tentando superá-la, por parecer-lhe precária, escrevendo,
por isso, às vezes no nível silábico, outras no sistema alfabético”.

Para que você possa compreender melhor, leia o conceito de


grafema, proposto por Scliar-Cabral (2003, p. 27): “[...] deve-se
entender grafema como uma ou mais letras que representam um
fonema (no sistema alfabético do português do Brasil, não mais que
duas letras)”. Ou seja, em palavras como exceto temos 6 letras e 5
grafemas para representar /e’sεto/. Neste exemplo, o grafema “xc” é
um dígrafo.

Quando a criança descobre que a sílaba pode ser dividida em elementos


menores, que devem ser igualmente representados, ingressa na última etapa, em
direção à escrita convencional.

Figura 8 – Escrita silábico-alfabética

Fonte: Disponível em: <http://danielajanssen.com.br/?p=201>. Acesso em: 22 maio 2016.


22
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Ferreiro (1985, p 13-14) aponta dois problemas que ocorrem nesta fase:

[...] pelo lado quantitativo, que se por um lado não bastam


uma letra por sílaba, também não se pode estabelecer
nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por
sílaba, (já que há sílabas que se escrevem com uma, duas
ou mais letras); pelo lado qualitativo, enfrentará os problemas
ortográficos (a identidade de som não garante a identidade de
letras, nem a identidade de letras a de sons).

Esta nova percepção, cujo resultado final será a escrita alfabética, também
é geradora de dúvidas e conflitos, pois a criança, ao perceber que há elementos
menores, compondo as sílabas, passa a buscar uma nova forma de representação,
que exige uma nova construção e compreensão do que significam estas novas
unidades (fonemas) e como representá-las.

• Alfabético: neste estágio as letras passam a ser concebidas como


representações dos sons, o aluno conhece as vogais e as consoantes, mas
acredita que a escrita seja uma representação real da fala. Dessa forma, escreve
foneticamente e não de forma ortográfica. É importante salientar que, nesta fase,
a criança ainda não está alfabetizada. Para isso, será necessário que se organize,
gradualmente, para apreender também as convenções da língua.

Figura 9 - Escrita alfabética

Fonte: Acervo das autoras.

Para aprofundar seus conhecimentos sobre o que foi


apresentado, realize a dinâmica proposta neste link: <http://
revistaescola.abril.com.br/avulsas/teste-hipoteses-de-escrita-dos-
alunos.shtml>.

23
Desenvolvimento da linguagem escrita

Como se pode observar, a teoria proposta mostra como a criança se apropria


de conceitos e habilidades para desenvolver a leitura e a escrita. O caminho
percorrido nas fases/ níveis é semelhante ao da humanidade no desenvolvimento
do sistema escrito. Para compreender melhor como ocorre esta semelhança, leia
o texto adaptado de Kato (1999).

SEMELHANÇAS ENTRE A HISTÓRIA DA ESCRITA E AS


ETAPAS/ NÍVEIS DE DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA

Segundo Kato, a escrita levou milênios para chegar a forma


alfabética. A partir dos estudos de Gelb (A study of writing) a autora
aponta etapas evolutivas, baseadas na natureza dos sistemas de
escrita.

• Inexistência da escrita

• Precursores da escrita:

o sistema pictográfico
o recursos de identificação mnemônica

• Escrita plena: fase fonográfica

o lexical-silábica
o silábica
o alfabética (KATO, 1999, p. 13).

Figura 10 - O Painel com filas de figuras humanas em


deslocamento Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí, Brasil

Fonte: Disponível em: <http://www.semeiosis.com.br/tecidos-


graficos-da-cultura>. Acesso em: 22 maio 2016.

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O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

No sistema pictográfico, o homem se expressava através


de desenhos, que tinham duas funções: uma forma de arte ou um
sistema pictográfico de comunicação (desenhos utilizados para
comunicar um acontecimento ou um fato). Os desenhos eram formas
de representação do que o homem via, não do que o homem falava.
Além destes, foram usados recursos para contar e marcar o tempo –
recursos de identificação mnemônica, ou seja, símbolos para marcar
a passagem do tempo, das estações, etc.

Com o decorrer do tempo, os pictogramas começam a ser


estilizados, o traçado simplificado e gradativamente convencionado.
Assim, surgem os ideogramas, conforme se pode observar na escrita
cuneiforme dos sumérios (escrita em forma de cunha, geralmente
feita na argila molhada). O exemplo abaixo mostra a evolução de um
pictograma para um ideograma.

Figura 11 – Da Escrita Pictográfica à Cuneiforme

Fonte: Disponível em: <ttp://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/


start.htm?infoid=911&sid=7>. Acesso em: 15 maio. 2016.

É importante destacar que os ideogramas estavam associados


a palavras e, portanto, tinham também uma representação fonética.
Alguns ideogramas passaram por um processo de mudança de
representação, um exemplo é o ideograma que representava “sol”,
que passou a representar a palavra “brilhar”.

A aproximação com o sistema fonético ocorreu quando os


ideogramas passaram a ser usados com valor de sílaba, deixando
o aspecto conceitual e de significado, sendo empregados a partir do
seu valor sonoro.

Mas isso não aconteceu de forma rápida e nem para todos os


sistemas de escrita, segundo Kato (1999, p. 15):

25
Desenvolvimento da linguagem escrita

Foram os fenícios, com seu espírito prático de


comerciantes, que se apossaram da complicada escrita
lexical-silábica dos egípcios, derivada dos hieróglifos,
e dela extraíram 24 símbolos, os mais simples, para
formar o silabário. Esse silabário era constituído ape­
nas de consoantes, sendo que esporadicamente as
semiconsoantes correspondentes aos fonemas /w/ e /y/
serviam para representar as vogais /u/ e /i/. Um mesmo
símbolo podia ser lido, por exem­plo, como /ma, me, mi,
mo/ ou /m/.

E como se chegou ao alfabeto? Os gregos tomaram o sistema


fenício como base para a sua escrita, no entanto, passaram a usar a
vogal depois das consoantes como uma regra. Chegava-se, assim, a
escrita alfabética. Isso ocorreu aproximadamente no século X a. C. e,
desde então, nenhuma inovação significativa ocorreu na história da
escrita.

Kato afirma que, embora existam diferenças formais externas


entre os alfabetos, todos usam os mesmos princípios estabelecidos
pela escrita grega. Pode-se considerar que não houve uma invenção
da escrita alfabética, e sim uma “descoberta”, pois “quando o homem
começou a usar um símbolo para cada som, ele apenas operou
conscientemente com o seu conhecimento da organização fonológica
da sua língua” (KATO, 1999, p. 16).

Fonte: As autoras.

Agora que você leu este pequeno texto, vamos pensar um pouco sobre ele e
também sobre o que estudamos até aqui. Não se preocupe em aprofundar neste
momento, pois os conceitos serão retomados nas próximas unidades!

Atividade de Estudos:

1) Você consegue levantar algumas semelhanças entre a história


da escrita e as etapas/níveis propostas por Ferreiro (1985) e
apresentadas no decorrer deste capítulo?
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O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Pensando um pouco sobre as implicações da teoria, Bregunci (2015) traz


alguns pontos que são relevantes para a nossa compreensão:

1. Os progressos dos alunos são diferentes e dependem de


fatores externos à escola. 2. A complexidade e o dinamismo
dos processos são incompatíveis com avaliações e
procedimentos direcionados para classes ditas homogêneas.
3. As hipóteses são chamadas de erros construtivos e servem
para orientar o trabalho e a intervenção do professor.

Ferreiro (1985) alerta para a necessidade de se aprender a ler e a interpretar


as produções espontâneas das crianças, pois, dessa forma, torna-se possível
compreender os processos de construção envolvidos no desenvolvimento do
sistema alfabético.

Quando uma criança escreve tal como acredita que poderia


ou deveria escrever certo conjunto de palavras, está nos
oferecendo um valiosíssimo documento que necessita ser
interpretado para poder se avaliado. Essas escritas infantis
têm sido consideradas, displicentemente, como garatujas,
“puro jogo”, o resultado de fazer “como se” soubesse
escrever. Aprender a lê-las – isto é, a interpretá-las – é um
longo aprendizado que requer uma atitude teórica definida
(FERREIRO, 1995, p. 9).

Fica evidente que o professor precisa ter uma atitude muito diferenciada
quando opta por desenvolver o seu trabalho com base na teoria apresentada.
Novamente se reafirma que esta teoria oferece uma possibilidade de compreensão
das produções infantis e também do processo de desenvolvimento da escrita. As
interpretações e conhecimentos resultantes dessas compreensões com certeza
geram mudanças didáticas e metodológicas profundas, assim como uma mudança
de postura profissional.

Nosso próximo tema apresentará outra postura teórica, que também nos
auxiliará a refletir sobre o processo de alfabetização e sobre sua prática.

Atividade de Estudos:

1) Antes de seguir para a próxima seção, procure refletir sobre a


sua prática, o seu trabalho diário, identificando as concepções
e teorias que norteiam o seu fazer profissional. Como você tem
compreendido o processo de alfabetização? Sua concepção
até o momento está relacionada ao que estudamos? Liste três
atividades que costuma realizar com os alunos e tente relacioná-
las aos conceitos que propusemos.

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Desenvolvimento da linguagem escrita

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Para aprofundar seu conhecimento, sugerimos a leitura das


páginas 54 a 57 do livro “A criança de 6 anos, a linguagem escrita e o
ensino fundamental de nove anos: orientações para o trabalho com
a linguagem escrita em turmas de crianças de seis anos de idade”,
disponível no site: <http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-educacao-
basica/destaques?id=12624:ensino-fundamental>.

O Glossário Ceale – Termos de alfabetização, leitura e


escrita para educadores - pode auxiliá-lo(a) quanto aos conceitos,
definições e termos técnicos. <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/
glossarioceale/>.

Paradigma Fonológico
Mais um paradigma!?

Nós finalizamos a seção anterior refletido sobre o paradigma construtivista,


principalmente no que diz respeito à sua contextualização histórica e aos
pressupostos relacionados ao desenvolvimento da língua escrita.

Como já foi colocado, na década de 80, quando as ideias de Ferreiro e


colaboradores passaram a ser divulgadas no país, dados os problemas nos índices
de alfabetização, houve uma tentativa de modificação das políticas públicas, de
mudança de métodos, principalmente voltados para a alfabetização.

Naquela época, os métodos de alfabetização global, silábico, fônico, entre


outros, passaram a ser duramente criticados, e, em função de uma nova perspectiva,
foram entendidos como prejudiciais aos processos de aprendizagem da criança. O
eixo da discussão passou do “como se ensina” para o “como se aprende”.

28
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Para relembrar, veremos brevemente as definições dos métodos


de alfabetização supracitados.

Método global: Faz parte do conjunto de métodos analíticos


e, portanto, segundo tal método, a criança percebe a língua como
um todo. Assim, a alfabetização parte do todo (textos, poemas,
parlendas, histórias) para as partes (palavras, sílabas e sons). Frade
(2015, verbete método global) enumera algumas características do
método global, que são importantes para sua compreensão.

1) a linguagem funciona como um todo e as partes


somente têm sentido em função de uma unidade; 2)
existe um princípio de sincretismo no pensamento infantil:
primeiro percebe-se o  todo e depois as   partes; 3) os
métodos de alfabetização devem priorizar a compreensão;
4) no ato da leitura, o leitor  utiliza  estratégias globais
de reconhecimento; 5) o aprendizado da escrita não
pode ser feito por fragmentos de palavras, mas por
seu significado;   6) a escola tem que acompanhar os
interesses, a linguagem e o universo infantil e, portanto,
as palavras percebidas globalmente também devem ser 
familiares e ter sentido  para a criança.

Método silábico: É um dos métodos sintéticos que emprega a


sílaba como unidade de aprendizagem da escrita. Parte do princípio
de que as consoantes são percebidas nas sílabas, de forma natural
e, por isso, as sílabas são apresentadas inteiras, sem que se reflita
sobre a articulação entre as vogais e as consoantes. Nesta opção, é
importante que as crianças consigam discriminar as sílabas no fluxo
de fala e, posteriormente, registrá-las por meio da escrita. Como há
uma ordem de trabalho, que prioriza as sílabas mais simples e introduz
sequencialmente as mais complexas, este método se desenvolve
utilizando textos artificiais, que contemplem as sílabas em questão.

Método fônico: Também faz parte dos métodos sintéticos, neste


a alfabetização se baseia na relação entre os grafemas e letras,
sendo compreendida como um processo que envolve codificação e
decodificação. São introduzidas primeiramente as vogais e depois as
consoantes, e há uma sequenciação de sílabas mais simples para as
mais complexas. Neste método são utilizados textos artificiais, que
contemplem as letras e as sílabas que estão sendo estudadas pelas
crianças.

Fonte: As autoras.

29
Desenvolvimento da linguagem escrita

Algumas concepções do processo de aquisição da língua escrita mudaram


profundamente com a introdução da teoria psicogenética. As mais relevantes
foram destacadas por Soares (2004): a criança passou de aprendiz, dependente
de estímulos externos para chegar a escrita, para sujeito ativo, capaz de construir
esse conhecimento por meio de sua interação com esse objeto de conhecimento.
Os chamados pré-requisitos para a aprendizagem da escrita (“prontidão”/
“maturidade”) foram substituídos por uma visão que nega uma ordem hierárquica
de habilidades e enfatiza que “[...] a aprendizagem se dá por uma progressiva
construção de estruturas cognitivas, na relação da criança com o objeto ‘língua
escrita’ ” (SOARES, 2004, p. 89).

Nessa mesma perspectiva, o que era considerado “deficiência” ou “disfunção”


passa a ser compreendido como “erro construtivo”, parte das reestruturações no
processo de construção da língua escrita.

Nesse cenário, a psicogênese da língua escrita apontava para uma nova


forma de compreender os processos de leitura e escrita, completamente diferente
do paradigma associacionista (ou paradigma dos métodos) que a precedeu.
Consequentemente, foi aceita como uma forma de reverter os índices negativos
de alfabetização, repetência e desistência dos anos iniciais. O paradigma anterior
tinha como foco os métodos de alfabetização, o atual, buscava os processos de
aprendizagem e se apresentava como uma alternativa teórica.

Para obter melhores resultados no campo da alfabetização, foram


propostas mudanças em São Paulo (PROFA – Programa de Formação de
Professores Alfabetizadores), no Rio Grande do Sul (GEMPA - Grupo de Estudos
sobre  Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação), e a teoria foi utilizada na
elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), adotados pelos mais
importantes sistemas públicos de ensino, entre outros.

Atividade de Estudos:

Antes de continuarmos esta discussão, faça a leitura desta


crônica – O Currículo dos Urubus, escrita por Rubem Alves, e que faz
parte do livro Estórias de quem gosta de ensinar.
O Currículo dos Urubus

O rei Leão, nobre cavalheiro, resolveu certa vez que nenhum


dos seus súditos haveria de morrer na ignorância. Que bem maior
que a educação poderia existir? Convocou o urubu, impecavelmente
trajado em sua beca doutoral, companheiro de preferências e de
churrascos, para assumir a responsabilidade de organizar e redigir

30
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

a cruzada do saber. Que os bichos precisavam de educação, não


havia dúvidas. O problema primeiro era o que ensinar. Questão do
currículo: estabelecer as coisas sobre as quais os mestres iriam
falar e os discípulos iriam aprender. Parece que havia acordo
entre os participantes do grupo de traba­lho, todos urubus, claro: os
pensamentos dos urubus eram os mais verdadeiros; o andar dos
urubus era o mais elegante; as preferências de nariz e de língua
dos urubus eram as mais adequadas para uma saúde perfeita; a cor
dos urubus era a mais tranquilizante; o canto dos urubus era o mais
bonito. Em suma: o que é bom para os urubus é bom para o resto
dos bichos. E assim se organizaram os currículos, com todo o rigor
e precisão que as últimas conquistas da didática e da psicologia da
aprendizagem podiam merecer. Elaboraram-se sistemas sofisticados
de avaliação para teste de aprendiza­gem. Os futuros mestres foram
informados da importância do diálogo para que o ensino fosse mais
eficaz e chegavam mesmo, vez por outra, a citar Martin Buber. Isso
tudo sem falar na parafernália tecnológica que se importou do exte­
rior, máquinas sofisticadas que podiam repetir as aulas à vontade
para os mais burrinhos, e fascinantes circuitos de televisão. Ah! Que
beleza! Tudo aquilo dava uma deliciosa impressão de progresso e
eficiência e os repórteres não se cansavam de fotografar as luzinhas
piscantes das máquinas que haveriam de produzir saber, como urna
linha de monta­gem produz um automóvel. Questão de organização,
questão de técnica. Não poderia haver falhas.

Começaram as aulas, de clareza meridiana. Todo mundo


entendia. Só que o corpo rejeitava. Depois de uma aula sobre o cheiro
e o gosto bom da carniça, podiam-se ver grupinhos de pássaros
que discretamente (para não ofender os mestres) vomitavam atrás
das árvores. Por mais que fizessem ordem unida para aprender o
gingado do urubu, bastava que se pilhassem fora da escola para que
voltassem todos os velhos e detestáveis hábitos de andar. E o pavão
e as araras não paravam de cochichar, caçoando da cor dos urubus:
“Preto é a cor mais bonita? Uma ova...’

E assim as coisas se desenrolaram, de fracasso em fracasso,


a despeito dos métodos cada vez mais científicos e das estatísticas
que subiam. E todos comentavam, sem enten­der: “A educação vai
muito mal...”

1) É possível estabelecer relações entre a crônica “O Currículo


dos Urubus” e a discussão que temos feito sobre os métodos/
paradigmas da alfabetização? Quais? Você já se sentiu assim na
sua prática profissional?

31
Desenvolvimento da linguagem escrita

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No entanto, apesar das grandes contribuições do construtivismo,


principalmente o rompimento com métodos tradicionais, alguns problemas
começaram a ser evidenciados, tanto por pesquisadores nas áreas da pedagogia,
linguística e psicologia, como por avaliações, nacionais e internacionais (como o
Saeb -  Sistema de Avaliação da Educação Básica, o ENEM - Exame Nacional do
Ensino Médio e Pisa - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes).

A partir dos resultados das avaliações, bem como do acompanhamento


dos professores alfabetizadores, começou-se a repensar as questões de
alfabetização. E, como um resultado natural, são propostas novas teorias e
revistas as metodologias empregadas até então.

Os artigos de Mendonça e Mendonça (2011), Morais (2006) e


Soares (2004), que estão nas referências bibliográficas deste caderno,
trazem uma análise sobre os resultados dos testes de alfabetização. Se
você desejar se aprofundar nesta área, procure lê-los.

Nesse contexto, surge a proposta de um paradigma fonológico, não como


uma solução milagrosa, mas como uma nova perspectiva teórica de compreensão
dos fenômenos que envolvem a escrita e a leitura. Com isso, não se pretende
afirmar que o paradigma construtivista não era bom ou que não servia para a
nossa realidade educacional e, por isso, deveria ser substituído. Vamos apenas
mostrar alguns problemas que ocorreram quando se optou por adotar esta teoria
como embasamento de diversas políticas públicas.

Uma das primeiras falhas evidenciada foi a tentativa de didatizar a teoria da


psicogênese da língua escrita, ou seja, transformar uma teoria de compreensão
da escrita e leitura em uma metodologia de alfabetização – ou, como se escuta
até hoje, no método construtivista. O processo ainda não foi bem-sucedido, pois,
tanto a psicogênese como o construtivismo, são teorias que elucidam a aquisição
do conhecimento pelas crianças, e devem ser entendidas como um recurso
de compreensão aprofundada do desenvolvimento da escrita, cujas reflexões
poderiam gerar mudanças de postura nos professores, na forma de analisar as
produções infantis e reorientar sua prática.
32
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Os pesquisadores (MORAIS, 2006) têm constatado que, em muitos contextos, os


alfabetizadores compreendem a psicogênese, identificam as hipóteses de construção
da escrita, mas não sabem como conduzir o processo, como auxiliar um aluno que
está no nível pré-sílabico ou mesmo silábico a avançar.

A concepção do erro construtivo e o pressuposto de que o professor não deve


corrigir o aluno levaram a uma série de equívocos, pois, ao invés de realizarem a
análise das produções e dos “erros” dos alunos, questionando-os e levando-os a
reconstruir suas hipóteses, muitos alfabetizadores acreditaram que a exposição
às formas ortográficas de escrita bastaria para que os alunos conseguissem
avançar e desenvolver o sistema de escrita.

Como a psicogênese aborda o desenvolvimento individual do sujeito,


houve mudanças no sistema de avaliação e progressão escolar. Se um aluno
não conseguisse alcançar a escrita alfabética no primeiro ciclo, passaria para o
segundo, e terceiro consecutivamente, sendo respeitadas as individualidades e
tempo de aprendizagem. No entanto, apesar do bom embasamento da proposta,
o que se constatou é que há alunos nos quartos, quintos e sextos anos que
não dominam o sistema alfabético e outros são considerados semianalfabetos
(MENDONÇA; MENDONÇA, 2011).

Por isso, é necessário que se compreenda que o papel do professor mediador,


fundamental para que os alunos possam superar as diferentes hipóteses de
escrita, não foi bem compreendido. Em vários contextos, os professores
assumiram um papel de espectador, esperando que os alunos superassem
sozinhos suas dúvidas e dificuldades.

Os autores Mendonça e Mendonça (2011) e Morais (2006) questionam


também a forma como a teoria foi imposta aos alfabetizadores e as formações
rápidas e insuficientes para a atuação na perspectiva psicogenética. Trata-se de
uma teoria complexa e que demanda dos profissionais compreensões linguísticas
e psicológicas aprofundadas.

Soares (2004, p. 96) afirma que o paradigma construtivista, apesar de ter sido
amplamente divulgado e aceito, se tornou hegemônico, sendo desconsiderada
a possibilidade de complementação por paradigmas linguísticos. Como os
resultados obtidos nos sistemas de avaliação não foram positivos, levantou-
se esta possibilidade, pois “[...] a alfabetização não é somente um processo de
conceitualização da escrita, que a psicogênese descreve e explica, mas é também,
e simultaneamente, um processo de apropriação de um objeto linguístico – a língua
escrita, objeto e processo que as ciências linguísticas descrevem e explicam”.

33
Desenvolvimento da linguagem escrita

Quando uma teoria ou um paradoxo se tornam hegemônicos,


isso significa que são adotados como verdades únicas, e, dessa
forma, não há espaço para outros paradigmas e teorias, que
poderiam ser complementares.

Antes de mostrarmos em que momento entra o paradigma fonológico e


explicarmos um pouco mais sobre o que se propõe por meio dele, é necessário
atentarmos brevemente para o paradigma do letramento.

Letramento – estado ou condição de quem não apenas sabe


ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a
escrita (SOARES, 2001, p. 47).

No final dos anos 80 e início dos anos 90, surge o paradigma do letramento
(para alguns autores seria o paradigma sociocultural). Soares (2004) alerta para
o fato de que, no Brasil, o letramento começa a ser discutido pelas concepções
de alfabetização propostas pela psicogênese. Na teoria, o aprendiz construiria a
escrita através do contato com textos que circulam nas práticas sociais.

Com a entrada das concepções de letramento, começa a haver uma


confusão entre alfabetização e letramento, que acaba sendo prejudicial para o
desenvolvimento da escrita. Quando se parte do princípio de que uma criança
construirá sua escrita com base no contato constante com textos relacionados às
práticas sociais, na verdade, estão sendo empregadas estratégias de letramento,
não de alfabetização.

Apesar de serem interdependentes, a alfabetização e o letramento têm


naturezas diferenciadas e, segundo Soares (2003, 2004) e Morais (2006),
precisam estar juntos no processo de desenvolvimento da escrita.

Para os autores, alfabetização foi perdendo suas especificidades no trabalho que


seguia as concepções psicogenéticas, a construção da escrita acabou englobando e
desenvolvendo mais aspectos psicológicos do que os linguísticos.

Soares (2004, p. 16) postula que a alfabetização e o letramento devem ser


trabalhados concomitantemente, sendo a primeira “[...] entendida como processo
de aquisição e apropriação do sistema da escrita, alfabético e ortográfico” e o
segundo “[...] como a participação em eventos variados de leitura e de escrita, e

34
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

o consequente desenvolvimento de habilidades de uso da leitura e da escrita nas


práticas sociais que envolvem a língua escrita, e de atitudes positivas em relação
a essas práticas” (SOARS, 2004, p. 16).

Para aprofundar um pouco a sua reflexão, realize a atividade de estudo.

Atividades de Estudos:

Os autores Mendonça e Mendonça (2011, p. 56), no final do


artigo ‘Psicogênese da Língua Escrita: contribuições, equívocos
e consequências para a alfabetização”, fazem uma síntese do que
apresentamos até aqui.

Analisando a alfabetização ao longo dos últimos 20 anos,


constata-se que a teoria construtivista tem sido adotada por vários
estados do Brasil como se fosse uma fórmula mágica para resolver
todos os problemas relativos ao tema, mas resultados de pesquisas
como o INAF 2009 (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2009)
mostram índices alarmantes de analfabetismo.

O domínio da língua escrita, enquanto especificidade da


alfabetização, e a participação do aluno no mundo letrado têm se
configurado como um grande desafio e um problema considerável
para o sistema escolar. Os dados do INAF 2009 (INSTITUTO PAULO
MONTENEGRO, 2009), quanto ao item escolaridade, mostram que 54%
dos brasileiros que estudaram até a 4ª série atingem, no máximo, o grau
rudimentar de alfabetismo. Outro fato pior é que 10% destes podem ser
considerados analfabetos absolutos, apesar de terem cursado de um a
quatro anos do ensino fundamental.

Entre os alunos que cursam ou cursaram da 5ª a 8ª série,


apenas 15% podem ser considerados plenamente alfabetizados.
Além disso, 24% dos que completaram entre 5ª e 8ª séries do ensino
fundamental ainda permanecem no nível mais rudimentar de leitura
e escrita. Dos que cursaram alguma série ou completaram o ensino
médio, apenas 38% atingem o nível pleno de alfabetismo (o que
deveria ter ocorrido para 100% deste grupo). E ainda, somente entre
os que chegaram ao ensino superior é que prevalecem (68%) os
indivíduos com pleno domínio das habilidades de leitura/escrita e das
habilidades matemáticas.

35
Desenvolvimento da linguagem escrita

Nesse sentido, é urgente a adoção de metodologia adequada


para que crianças sejam alfabetizadas em nosso país, assumindo a
definição de alfabetização, em sua especificidade, como conjunto de
técnicas para exercer a arte e a ciência da escrita.

O construtivismo teve seu mérito, à medida que destronou


a cartilha e apresentou uma teoria sobre a aquisição da escrita.
Entretanto, segundo Soares (2003a), na época da cartilha havia
método sem teoria sobre alfabetização, hoje há uma bela teoria, mas
não se tem método. O ideal é que se tenha um método com base em
uma teoria de alfabetização. (MENDONÇA; MENDONÇA, 2011, p. 56).

1) Os dados, apresentados no texto acima, revelam um panorama


desfavorável no que se refere à leitura e à escrita. Você acredita
que estes resultados sejam atribuídos somente ao período em
que houve a mudança para o paradigma construtivista?
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___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________

2) Nos dois últimos parágrafos, os autores retomam a questão do


“método”. Isso poderia ser considerado um retrocesso? Reflita.
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___________________________________________________
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___________________________________________________
___________________________________________________

Para finalizar, ainda é importante lembrar que a alfabetização e o letramento


têm dimensões diferentes e que demandam metodologias de trabalho diferentes.
Para Soares (2004, p.16), “[...]algumas caracterizadas por ensino direto, explícito e
sistemático – particularmente a alfabetização, em suas diferentes facetas – outras
caracterizadas por ensino incidental, indireto e subordinado a possibilidades e
motivações das crianças”.

A falta de reflexão sobre as especificidades da alfabetização pode ser


apontada como uma das causas dos resultados insatisfatórios que aparecem nas
avaliações. Nesse contexto, propõe-se o paradigma fonológico, não como um
substituto do paradigma construtivista, mas como um contraponto.

36
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Finalmente....

O paradigma fonológico parte do pressuposto de que as crianças O paradigma


precisam compreender que as letras representam os sons para fonológico parte
que possam ler e escrever. Pesquisas enfatizam a relação entre a do pressuposto
consciência fonológica e o desenvolvimento da relação som e letra, de que as
assim como do desenvolvimento da escrita. crianças precisam
compreender
que as letras
Mas o que é a consciência fonológica? É a capacidade que um representam os
indivíduo tem de refletir conscientemente sobre os fonemas, sílabas sons para que
e palavras da língua. Na verdade, a consciência fonológica faz parte possam ler e
de uma habilidade maior, que é a consciência metalinguística. Esta escrever.
decorre da capacidade que o ser humano tem de se debruçar sobre a
linguagem, de forma consciente (SCLIAR-CABRAL, 2010).
É a capacidade
que um indivíduo
[...] a consciência fonológica é uma competência
metalinguística que possibilita o acesso consciente tem de refletir
ao patamar fonológico da fala e a manipulação conscientemente
cognitiva das representações neste nível. Portanto, sobre os fonemas,
envolve reflexão, análise e manipulação intencional sílabas e palavras
de unidades que compõem a linguagem (palavras, da língua.
sílabas, fonemas) (PESTUN et al., 2010, p. 96).

A consciência metalinguística envolve a reflexão sobre, basicamente, todos


os aspectos da linguagem - aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos,
semântico e ortográficos. Através dela, o ser humano pode refletir sobre a
estrutura e organização da língua.

Mas como se desenvolve a consciência fonológica? Ela se desenvolve


na medida em que as crianças começam a perceber palavras, rimas, sílabas.
Portanto, o desenvolvimento da escrita é importante para o desenvolvimento da
consciência fonológica. As primeiras percepções podem ocorrer antes da escrita,
mas a percepção dos fonemas estará atrelada à escrita. É importante salientar
que este desenvolvimento é gradual, complexo e que algumas unidades são
perceptíveis com mais facilidade do que as outras.

Alguns teóricos afirmam que o desenvolvimento da consciência fonológica


está atrelado ao desenvolvimento da escrita e vice-versa, assim, os avanços e o
sucesso na leitura e na escrita dependem dos avanços na consciência fonológica.

De acordo com Pestun et al. (2010) o sistema alfabético é fonográfico,


pois representa elementos fonológicos com sílabas e fonemas. O sistema de
escrita é baseado na linguagem oral, dessa forma, é possível entender como a
ortografia e a escrita funcionam. Como as palavras são construídas a partir de
combinações fonemas e grafemas, conhecidas pelos leitores, torna-se possível

37
Desenvolvimento da linguagem escrita

a leitura de palavras que o leitor não conheça. “Como a escrita é uma habilidade
criativa, construída a partir do alicerce alfabético, ela exige algumas habilidades
precedentes que facilitarão essa complexa criação” (PESTUN et al., 2010, p. 96).

Pode-se observar que existe uma complexidade na linguagem, e que, para


chegar à escrita alfabética, o aluno deverá evoluir e ser capaz de refletir sobre as
unidades que a compõem. Retomando o construtivismo, para começar a perceber
o aspecto sonoro da língua, a criança precisa do desenvolvimento simbólico,
ou seja, precisa ser capaz de desvincular a escrita dos significados. Outros
autores destacam a importância da superação do realismo nominal, ou seja, os
significados deixam de ser representados e os significantes (nomes das coisas)
passam a ser representados.

Superadas estas hipóteses, quando o aprendiz percebe as relações entre


os sons e a escrita, ele ainda precisa descobrir como se dá essa relação, como
representar as unidades da língua.

Algumas são naturalmente percebidas, como as rimas (mesma terminação


da palavra) e aliterações (palavras que iniciam pelo mesmo som). Já a percepção
dos fonemas é mais complexa e depende de um ensino sistemático. Como a
definição de consciência fonológica é bastante ampla, alguns autores apresentam
diferentes níveis. No texto de Persun et al. (2010) foram abordados quatro níveis.

1) Sensibilidade à rima e à aliteração: a criança começa a perceber que


há grupos de sons semelhantes em palavras diferentes. Nos exemplos abaixo,
retirados da pesquisa de Maluf e Barrera (1997, p.14), pode-se verificar o domínio
de rimas e aliterações por pré-escolares.

C.(5;10) - Ao ser solicitada a dizer uma palavra parecida com a palavra CADEI-
Exemplo 1: RA, responde: "Cátia", dando a seguinte justificativa: "É porque cadeira começa
com CA e Cátia também começa com CA." (consciência da aliteração).
F. (6;5) - Ao ser solicitada a dizer qual das palavras (BOLO/LEQUE/HOTEL)
Exemplo 2: terminava igual à palavra PASTEL, responde: "hotel", justificando assim sua
resposta: "Porque eu acho que no fim tem o TÉ e TÉ." (consciência da rima).
C. (5;10) - Ao ser solicitada a dizer qual das palavras (FOGO/LÁPIS/BOCA) co-
meçava igual à palavra FOLHA, responde: "fogo", dando a seguinte justificativa:
Exemplo 3:
"Porque folha começa com folha e fogo começa com fogo." (simples detecção da
aliteração).
V (4;11) - Ao ser solicitada a dizer uma palavra parecida com a palavra MATO,
Exemplo 4: responde "tato", justificando assim sua resposta: "Porque mato e tato são iguais."
(simples detecção da rima).

38
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

2) Consciência da sílaba – implica a capacidade de segmentar as palavras


em sílabas. Nesta fase, as crianças conseguem contar quantas sílabas há numa
palavra, conseguem omitir sílabas e comparar palavras, levando em conta a sílaba.

A. (5;11) - Acha que as palavras LIVRO e REVISTA não são parecidas,


dando a seguinte justificativa: “Por causa que livro e revista... é LI e RE.” (análise
silábica) (MALUF; BARRERA,1997, p.13).

3) Conhecimento intrassilábico – compreensão de que a sílaba pode ser


dividida em elementos menores do que ela e maiores do que os fonemas. Este
nível já apresenta uma complexidade maior.

4) Conhecimentos segmental – palavras são constituídas por unidades


menores – fonemas. Alguns autores chamam esta etapa de consciência fonêmica.
Outros autores acreditam que as crianças não conseguem discriminar os fonemas
de uma palavra, o que realizariam, na verdade, seria a soletração das letras que
compõem a palavra.

O paradigma fonológico também não responde a todos os questionamentos


que têm sido feitos a respeito da alfabetização. Novamente, o que se propõe é uma
teoria sobre o desenvolvimento da escrita, uma forma de análise e reelaboração
de práticas e, talvez, uma aproximação de uma ação metodológica.

É importante destacar que repensar as questões da consciência fonológica


não significa uma volta ao método fônico. Morais (2006, p. 11) alerta para a
questão dos métodos:

Embora o emprego de métodos isoladamente não garanta


sucesso ou êxito escolar, os métodos tradicionais, de base
empirista, não são remédios miraculosos: foram e continuam
sendo promotores de fracasso (ou sucesso) escolar. No caso
específico do método fônico, tem-se a exigência de um nível
de consciência metafonológica exagerado e antinatural, além
de descuidar-se do ensino da linguagem própria dos diferentes
textos escritos.

Esse esclarecimento é fundamental, pois facilmente uma teoria que discuta a


questão da consciência fonológica pode ser vista como um simples retorno a um
procedimento metodológico que trabalhava o desenvolvimento da escrita como
uma habilidade de codificação.

39
Desenvolvimento da linguagem escrita

O artigo “Habilidades metalinguísticas e linguagem escrita nas


pesquisas brasileiras” apresenta um levantamento de pesquisas
na área, tanto em trabalhos de pós-graduação, como em artigos
científicos. É uma boa opção para aprofundamento no tema.
Disponível em: <https://goo.gl/VTbc4b>.

Atividades de Estudos:

No artigo Concepções e metodologia de alfabetização: Por que é


preciso ir além da discussão sobre “métodos”? (disponível em: <portal.
mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_moarisconcpmetodalf.
pdf>), Morais (2006) apresenta quatro princípios para repensar os
processos de alfabetização. No entanto, no final do artigo, faz uma
ressalva quanto à aplicação e o emprego de novas metodologias,
paradigmas, entre outros.

[...] Entendemos, todavia, que esse conjunto de princípios,


não deve ser tratado à margem de considerações mais gerais
sobre a profissionalização do docente, de suas condições
materiais e simbólicas de trabalho e da implementação de políticas
que favoreçam, precocemente, o sucesso escolar das crianças
oriundas de meios populares. O próprio significado da discussão de
metodologias de alfabetização precisa estar subordinado a esses
temas mais amplos, que são fatores de democratização da escola.

É necessário reconhecer que muito precisa ser feito no sentido


de assumir como política de estado a formação continuada dos
professores, em especial a dos que se dedicam à alfabetização. Os
esforços feitos nos últimos anos parecem-nos ainda insuficientes
para dar conta da gravidade da questão. Acreditamos que é hora de
termos políticas federais, estaduais e municipais que garantam a real
formação continuada dos professores da educação básica. Para que
essas não funcionem como apêndices ou ações descartáveis dos
sistemas de ensino, é urgente priorizar a formação dos formadores de
professores, em cada âmbito local. [...] (MORAES, 2006, p.13-14).

1) Faça uma comparação entre o posicionamento do autor e o texto


o “ Currículo dos Urubus”, exposto anteriormente.

40
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

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2) Após as reflexões dos paradigmas apresentados, como você


avaliaria as políticas públicas para a alfabetização? No decorrer
dos anos houve avanços, ou apenas uma maquiagem nos
primeiros métodos?
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3) No material didático “Alfabetização e Linguagem”, elaborado pelo


MEC e destinado à formação de professores do programa Pró-
letramento, são apresentados alguns quadros que descrevem
capacidades que os aprendizes devem desenvolver. O quadro 2
diz respeito à apropriação do sistema de escrita.

Fonte: Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/pro-


letramento/publicacoes?id=12616:formacao>.

41
Desenvolvimento da linguagem escrita

• I – introduzir
• T – trabalhar sistematicamente
• C – consolidar
• R - retomar

Após a análise do quadro, quais dos paradigmas traria


embasamento para que o professor pudesse organizar seu
trabalho, de forma a auxiliar os alunos no alcance destas
capacidades, conhecimentos e atitudes? Explique.
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___________________________________________________

Algumas Considerações
Acreditamos que, ao final deste capítulo, você tenha compreendido um
pouco mais sobre os dois paradigmas discutidos e apresentados. No entanto,
é importante salientar que você deve buscar aprofundamento neste conteúdo,
assim como outras leituras. Neste caderno, procuramos selecionar as ideias
principais, pois, em virtude da densidade do tema, seria impossível abranger
todos os aspectos que envolvem estas teorias.

No próximo capítulo, aprofundaremos os conceitos sobre o paradigma


fonológico, assim como, por meio da análise de pesquisas, veremos o que já se
pode afirmar de positivo ou negativo sobre ele.

42
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

Referências
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2001.

BAPTISTA, M.C.; MONTEIRO, S.M. Dimensões da proposta pedagógica para o


ensino da linguagem escrita em classes de crianças de seis anos. In. MACIEL,
F. I. P.; BAPTISTA, M.C.; MONTEIRO, S.M. (Org.) A criança de 6 anos, a
linguagem escrita e o ensino fundamental de nove anos: orientações para o
trabalho com a linguagem escrita em turmas de crianças de seis anos de idade.
Belo Horizonte: UFMG/FaE/CEALE, 2009.

BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Pró-


Letramento: Programa de Formação Continuada de Professores dos Anos/
Séries Iniciais do Ensino Fundamental: alfabetização e linguagem. ed. rev. e
ampl / Brasília: 2008. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/pro-letramento/
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BREGUNCI, M. das G. de C. Psicogênese da aquisição da escrita (verbete)


– In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Faculdade de
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Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo
Horizonte, 2015. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/
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ESPÍRITO SANTO, Edeil Reis do. Consciência fonológica e prática


alfabetizadora: por uma ação teórico – metodológica para o ensino da
linguagem escrita. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Estadual de Feira de Santana, Bahia. Disponível em: <www2.uefs.br/
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FERREIRO, E; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:


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FERREIRO, E. A representação da linguagem e o processo de alfabetização.


Caderno de Pesquisa. São Paulo, v. 52, p.7-17, Fevereiro 1985.

FRADE, I. C. A. da S. Métodos e Metodologia de alfabetização (verbete)


– In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Faculdade de
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43
Desenvolvimento da linguagem escrita

______. Método global (verbete). In: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS


GERAIS (UFMG). Faculdade de Educação (FaE). Centro de Alfabetização,
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KATO, M. No mundo da escrita. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999.

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MORAIS, A. G. Concepções e metodologia de alfabetização: Por que é preciso


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PERFEITO, A. M. Discurso da escrita: da teoria à pratica. In: MELO, L.E.


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PESTUN, M. S. V. et al. Estimulação da consciência fonológica na educação


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pdf/pee/v14n1/v14n1a11.pdf >. Acesso em: 22 abr. 2016. 

44
O Paradigma Construtivista
Capítulo 1 e o Paradigma Fonológico

SCLIAR-CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do português do


Brasil. São Paulo: Contexto, 2003.

SOARES, M. Alfabetização e letramento. Contexto: São Paulo, 2004.

______. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Revista Brasileira de


Educação, Rio de Janeiro, n. 25, p. 5-17, abril 2004.   Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782004000100002>.
Acesso em: 25 mar. 2016.

______. Letramento. Um tema em três gêneros. 2. ed. Autêntica: Belo


Horizonte, 2001.

45
Desenvolvimento da linguagem escrita

46
C APÍTULO 2
Linguagem Escrita e Consciência
Fonológica na Educação

Esta unidade tem os seguintes objetivos relacionados ao saber e ao fazer:

99 Explicar os conceitos de consciência fonológica e habilidades metalinguísticas,


procurando esclarecer a influência da consciência fonológica na alfabetização.

99 Descrever os estágios do desenvolvimento da escrita, tanto os propostos nas


abordagens construtivistas com os relacionados à abordagem linguística.

99 Refletir sobre o papel da consciência fonológica e das habilidades


metalinguísticas na aquisição da escrita, desenvolvendo possibilidades de
intervenção neste processo.

99 Investigar diferentes abordagens sobre a escrita, selecionando elementos que


possam melhorar a atuação na alfabetização.
Desenvolvimento da linguagem escrita

48
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Contextualização
No capítulo anterior procuramos esclarecer os principais conceitos e
concepções relacionados aos paradigmas construtivista e fonológico. A partir desta
conceituação, do percurso histórico em que se situaram, trouxemos a reflexão
sobre algumas das implicações dessas teorias nos processos de alfabetização.

Outro aspecto interessante e que merece destaque é que a alfabetização


deixou de se configurar como uma área exclusiva da Pedagogia e passou a
ser estudada pela Psicologia, pela Linguística e pelas Ciências Sociais. O fato
tem provocado uma revisão de métodos e pressupostos, demandado diferentes
pesquisas para os profissionais que atuam na área.

O ato de aprender a ler e a escrever transcende o aspecto mecânico de


codificar e decifrar o “código escrito” e passa a ser compreendido como um
sistema em construção, que demanda um desenvolvimento cognitivo, associado
ao desenvolvimento linguístico e dependente do contexto social em que se
encontra o aprendiz.

Percebemos que a compreensão da consciência fonológica, assim como


das outras habilidades metalinguísticas, auxilia o educador a levar seus alunos à
aquisição do sistema de escrita alfabética.

Neste capítulo, pretendemos que você possa aprofundar suas concepções


sobre consciência fonológica e metalinguística, sendo capaz de compreender a
relevância de tal conteúdo para alfabetização.

Novamente ressaltamos que não estamos propondo um novo método,


uma receita milagrosa, e, sim, disponibilizando conhecimentos e recursos para
que, compreendendo melhor o desenvolvimento da escrita, você possa rever e
melhorar sua prática.

O Papel da Consciência Fonológica e


das Habilidades Metalinguísticas na
Aquisição da Linguagem Escrita
A fala e a escrita possuem naturezas bastante diferentes e sua aquisição
também reflete estas diferenças. Byrne (1995) propõe que se estudem as
diferenças para que se compreenda o motivo pelo qual a língua escrita

49
Desenvolvimento da linguagem escrita

apresenta mais problemas em seu desenvolvimento do que a língua


Com efeito, antes
de se alfabetizar, o falada. Uma das questões levantadas por ele é o fato de que a fala
indivíduo percebe é relativamente contínua. Scliar-Cabral (2010, p. 60) ressalta que:
a cadeia da fala “Com efeito, antes de se alfabetizar, o indivíduo percebe a cadeia da
como um contínuo: fala como um contínuo: não há pausas entre as palavras, como os
não há pausas espaços em branco que as separam na escrita, nem contrastes entre
entre as palavras, os sons que constituem as sílabas”.
como os espaços
em branco que as
separam na escrita, Para falar, a criança não precisa refletir sobre as segmentações,
nem contrastes no entanto, para escrever, para compreender o sistema alfabético da
entre os sons que língua, além de sílabas, necessita perceber os fonemas da língua.
constituem as Segmentar, nesse caso, significa “[...] descobrir os elementos da
sílabas. fala contínua que correspondem aos elementos discretos da escrita
alfabética” (BYRNE, 1995, p. 41). Que complexidade!

Byrne (1995) destaca, ainda, que um traço característico do pensamento e


da ação humana também amplia a diferença entre a fala e a escrita, este traço
é a dificuldade que temos para tomar consciência dos componentes dos nossos
pensamentos e ações. Um exemplo bem simples: você almoça com tranquilidade,
conversando com a família e com amigos, no entanto, para descrever a sequência
de movimentos – mãos, talheres, conversa, copos – sentirá uma grande dificuldade.

Nossa capacidade de refletir sobre a linguagem – consciência metalinguística


– também é assim. Nós ainda temos alguns conhecimentos que facilitam o
processo, mas o indivíduo não alfabetizado sente dificuldade em segmentar algo
que usualmente se apresenta num contínuo.

Por essa razão, esta unidade traz o tema das consciências fonêmica,
fonológica e metalinguística. Mas, antes de prosseguirmos, é necessário buscar
apoio em alguns conceitos da linguística.

Observe as seguintes palavras:

Exemplo 1:

O que há de diferente entre elas? Você deve ter notado que a diferença
está apenas no primeiro elemento. Pronuncie cada uma delas. Quando falamos,
podemos dizer: o que muda é o primeiro som de cada palavra. As palavras
entre colchetes indicam a pronúncia, são chamadas de transcrição fonética

50
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

(Como nosso propósito é que você compreenda conceitos básicos, faremos uma
transcrição mais simples).

Essa troca, no início das palavras, não é apenas uma troca de sons. Veja o
próximo exemplo:

Exemplo 2:

No exemplo 1, cada troca de som correspondeu, também, a uma


O conceito de
mudança da palavra. No exemplo 2, houve troca de som, mas a palavra fonema, que
continuou a mesma. Assim, é possível compreender o conceito de são unidades
fonema, que são unidades que distinguem palavras. É importante que distinguem
atentar para o fato de que o fonema, ao contrário do som, não é uma palavras.
unidade física. “O fonema é uma entidade psíquica: assim como não
podemos colocar uma cadeira dentro de nossa cabeça, as moléculas de ar que se
comprimem e rarefazem para produzir o som também não podem entrar na nossa
cabeça” (SCLIAR-CABRAL, 2010, p. 63, grifos nossos).

A troca de fonemas em uma palavra sempre ocasiona mudança de significado


(como no exemplo 1), e é algo que implica um processo mental, a simples troca
de sons não modifica o significado da palavra, sendo um processo de natureza
acústico articulatória (como no exemplo 2). Para que você possa entender melhor,
pense em um poema ou em uma música. Mentalmente é possível recitá-lo, “ouvir
a música”, como se fosse uma imagem do som.

Na língua, funciona da mesma forma, temos os sons, produzidos e percebidos


através de fenômenos físicos, e os fonemas, que organizam o funcionamento dos
sons psiquicamente.

Atividade de Estudos:

1) Faça um simples exercício, identificando os pares de palavras em


que houve troca de sons e troca de fonemas.

51
Desenvolvimento da linguagem escrita

1. [‘sala] e [‘vala] –
2. [‘tres] e [‘trejs] -
(o “j” representa a semivogal i)
3. [‘mar] e [max] -
(o segundo “r” representa a pronúncia dos cariocas)
4. [‘ver] e [‘ler] –
5. [‘aza] e [‘aʃa] –
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Quando operamos com a fala, utilizamos os fonemas e sons sem refletir


sobre eles, no entanto, quando se inicia o processo da escrita, as pesquisas
evidenciaram que essas capacidades de reflexão vêm à tona e, no caso específico
de sons e fonemas, chamam-se consciência fonológica e fonêmica.

Portanto, uma primeira distinção a ser feita é entre


conhecimento para uso, não consciente, dos fonemas de uma
língua, que todo falante-ouvinte nativo tem, independente ou
não de ser alfabetizado, pois utiliza com propriedade, quer
quando escuta, quer quando fala, a diferença entre /’bala/
e /’mala/, e o conhecimento consciente dos fonemas, ou
consciência fonológica que se desenvolve lado a lado com
a aprendizagem do sistema alfabético da respectiva língua
(SCLIAR-CABRAL, 2010, p. 62).

A habilidade de
identificar os Agora que você já compreendeu o que é um fonema, podemos
sons individuais retomar o conceito de consciência fonológica e introduzir o conceito
das palavras e de consciência fonêmica. Silva (2015, Glossário CEALE) afirma
também manipulá- que ambas consciências estão relacionadas à sonoridade de fala, à
los é chamada percepção das palavras, sílabas e sons. A habilidade de identificar os
de consciência
sons individuais das palavras e também manipulá-los é chamada de
fonêmica.
consciência fonêmica. “Ou seja, o falante é capaz de identificar que
a diferença entre as palavras faca e vaca está no som inicial que é /f/
Um processo em faca e /v/ em vaca, bem como é capaz de identificar e manipular os
no qual estão demais sons dessas palavras” (SILVA, 2015, Glossário CEALE).
envolvidos
a atenção, a
No entanto, cabe salientar que essa habilidade está relacionada
intencionalidade
e domínio de uma ao desenvolvimento da leitura e da escrita. Pesquisas na área da
língua escrita, Psicolinguística e da Psicologia cognitiva têm comprovado que a
especialmente a compreensão da relação entre os fonemas e grafemas passa pelo
alfabética. desenvolvimento da consciência fonêmica. Seguindo esta linha, Scliar-

52
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Cabral (2003, p. 620) define a consciência fonêmica como “[...] um processo no


qual estão envolvidos a atenção, a intencionalidade e domínio de uma língua
escrita, especialmente a alfabética”.

Já a consciência fonológica é mais abrangente do que a consciência


fonêmica e compreende, também, a percepção de sílabas, de sons semelhantes,
segmentações de palavras e sílabas e a manipulação destas, conforme já
introduzido na primeira unidade.

Ou seja, o falante tem consciência de que as


palavras ‘faca’ e ‘vaca’ têm duas sílabas e de que a
palavra ‘lavada’ tem três sílabas. O falante tem consciência de
que todas as sílabas das palavras apresentadas são formadas
por (consoante + vogal) e de que na palavra ‘vasta’ a primeira
sílaba é formada por (consoante + vogal + consoante). O falante
é capaz de identificar que as palavras  “faz”  e  “traz”  rimam
devido à sua porção final (SILVA, 2015).

Tanto as habilidades da consciência fonológica como da consciência


fonêmica são consideradas importantes para o desenvolvimento do sistema
alfabético, mas, no primeiro momento, é a consciência fonológica que emerge por
meio de percepções como sílabas, palavras semelhantes, etc.

Para que o professor possa perceber a emergência das consciências


fonêmica e fonológica, precisa conhecer alguns elementos da fonologia da língua.
É preciso saber como a fala funciona para que se possa compreender as relações
estabelecidas entre fala e escrita pelo alfabetizando.

Uma das primeiras segmentações que a criança faz ao começar a refletir


sobre a escrita é a sílaba, portanto, precisamos compreender como ela se
estrutura no Português Brasileiro, doravante identificado como PB.

A sílaba no PB tem sempre um núcleo silábico ocupado obrigatoriamente por


uma vogal. Somente uma vogal já é capaz de configurar uma sílaba, no entanto,
ela pode ser precedida ou seguida de consoantes e semivogais (aclive) (declive).

Esse é um modelo de interpretação silábica que nos permite compreender


como as sílabas funcionam.

53
Desenvolvimento da linguagem escrita

Exemplos:

Ônibus
Configurações das sílabas

1. Ô = V ( vogal)
NI = CV (consoante e vogal)
BUS = (consoante, vogal, consoante)

2
MÁ = CV

Frascos

FRAS = CCVC
3

COS = CVC

É importante observar que o núcleo da sílaba é sempre ocupado por apenas


uma vogal, nunca por consoantes ou semivogais. Já o aclive ou o declive são
preenchidos por uma ou mais consoantes ou semivogais. Esta é uma forma,
inclusive, de compreender o que significa uma semivogal e de visualizar as
composições silábicas que incluem as semivogais, como ditongos e tritongos.
As semivogais não são facilmente identificadas porque são apenas mais breves
do que as vogais, no que se refere à pronúncia, e porque ocupam as margens
silábicas, cumprindo sua função na sílaba.

Ortograficamente não diferenciamos vogais e semivogais e, por isso, muitas


vezes, as pessoas não compreendem esta diferença.

Exemplos:

Saúde

1. Hiato – duas vogais em sílabas separadas

Ditongo decrescente – a letra “i” representa


Lei
uma semivogal, pois está na posição de decli-
2 ve. Nas transcrições de som, a semivogal “i” é
representada como /j/.

54
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Ditongo crescente – a letra “i” representa uma


Glória
semivogal, pois está na posição de aclive.
3
Um ditongo se caracteriza pelo encontro de
uma vogal e uma semivogal na mesma sílaba.

Quais
Tritongo – combinação de uma vogal e duas
4
semivogais na mesma sílaba.

Nos ditongos, nem sempre as semivogais são representadas pelas letras “i”
e “u”. Nos ditongos nasais, a vogal é nasalizada e a semivogal pode ter outras
representações, como, por exemplo: tem, mãe, mão, dançam, também.

Retomando a estrutura das sílabas, há diferenças entre elas que se refletem


em alterações tanto na fala quanto na escrita. A sílaba CV (consoante e vogal) é
considerada a sílaba canônica. Os métodos de alfabetização fonéticos partiam
deste tipo de sílaba e ela também é uma das primeiras sílabas produzidas pelas
crianças na aquisição da fala. Conforme pode ser observado em uma página da
cartilha Caminho Suave, que trabalhava a partir do estudo das sílabas CV.

Figura 12 – Cartilha Caminho Suave

Fonte: Disponível em: <http://www.smeourinhos.com.br/Gestao_


Educadores/Caminho%20Suave.pdf>.Acesso em: 15 jun. 2016.
55
Desenvolvimento da linguagem escrita

No PB, no entanto, há várias outras estruturas silábicas. Bortoni-Ricardo


(2004, p. 82) apresenta as estruturas silábicas e reflete sobre elas, mostrando
algumas características da sílaba que o falante não percebe usualmente, mas cuja
compreensão é relevante para os profissionais que lidam com o desenvolvimento
da escrita.

Além da sílaba CV, temos as seguintes estruturas:

• V: a; ú-nico.
• CVC: mar; par-te.
• CCV: pra-to; blo-co.
• CCVC: fres-co; plas-ma.
• CCVCC: trans-porte.
• CVCC: pers-pectiva.

As estruturas CCV e CVC são consideras complexas. No caso das sílabas


CCV, a presença de duas consoantes oferece dificuldade de pronúncia. E a
segunda consoante é sempre um “r” ou um “l”. Nas falas menos monitoradas
podem ocorrer algumas trocas, pense nas palavras: problema – CCV/CCV/CV,
prateleira – CCV/CV/CVC/CV, próprio – CCV/ CCV. São palavras que apresentam
muita variação de pronúncia.

O padrão silábico CVC também apresenta um certo grau de dificuldade, que


vai trazer muitas interferências no momento da escrita. Nossa atenção deve estar
voltada para a consoante do declive, ou seja, a segunda consoante da sílaba,
também chamada de travamento silábico. No PB, podem ocupar esta posição as
seguintes consoantes: r, s, l, i, u e nasais.

Brevemente, vamos observar as diferentes possibilidades. Na palavra


PORTA, o travamento da sílaba é feito pelo R. Como você pronuncia esta
palavra? Em todo o Brasil ela é pronunciada da mesma forma? Pense nos
gaúchos, mineiros, cariocas e paulistanos. Esta letra possui diferentes valores
sonoros, dependendo de onde o falante se encontrar. Nos verbos no infinitivo, este
processo pode ocorrer e também a supressão. Então, comumente escrevemos
comer e falamos [ko’me], escrevemos pular e falamos [pu’la].

Você deve estar afirmando que não realiza essas supressões na fala, pois os
adultos alfabetizados deixam de perceber as características da fala, ao contrário
das crianças em processo de desenvolvimento da escrita.

56
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Atividade de Estudos:

1) Faça uma gravação de fala de dois adultos conversando


espontaneamente e observe os aspectos que estamos
destacando neste texto.
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________

Seguindo com a sílaba CVC, o que as palavras menos, extra e feliz têm
em comum? O travamento das sílabas foi feito com as letras “s”, “x” e “z”, mas
se você as pronunciar, verá que todas representam o mesmo som – [s]. Isso não
acontece quando estas letras estão iniciando uma sílaba – sapo, xale e zebra.
Nas sequências “menos açúcar” e “feliz ano novo” ocorre uma mudança de sons,
a letra “s” e “z” são produzidas como um [z].

Além dessas possibilidades, o som [s] pós-vocálico também está suscetível


às variações regionais. Podemos encontrar com bastante frequência a palavra
“pasta” produzida como [´pasta] ou como [‘paʃta] (com o som chiado, semelhante
ao som do x), entre outras ocorrências.

Para exemplificar, observe as palavras sublinhadas que aparecem na


transcrição de uma entrevista com um adulto, relatando sobre sua época escolar.
(Não foi feita uma transcrição fonética em todas as palavras, marcamos apenas a
pronúncia de alguns sons – lembre-se que o [ j ] simboliza a semivogal “i” e o [w],
a semivogal “u”. O til é usado para marcar as nasalizações).

Excerto 1:

Informante 1: Praz geraço~j~z di hoji..oh.oh,..essa..digamuz


assi~j~..essa, não é mais tão complicada comu na nossa época... as
coisa, as coisa hoji i~ j~ dia já estão mais fáceis pruz alunus..te~j~
.jardii~ te~j~ pré, na época i~j~ qui eu entrei não tinha essas. essis...
digamuz...assi~j~...essis...preparatórius para você começa...ahh, era
primera séri..i... vamu i~mbora... aprende i iʃtuda...

Fonte: As autoras.

57
Desenvolvimento da linguagem escrita

O som [ s ] varia por estar na posição pós-vocálica e também de acordo


com o contexto de produção. Isso reforça o aspecto de continuidade da fala, que
não é refletido pela escrita. Por isso, é comum encontrar nas escritas infantis as
seguintes ocorrências “o zouvido” (os ouvidos), “o zolios” (os olhos). Apesar de se
tratar do mesmo informante, há também presença e omissão de plural, resultado
do apagamento do [ s ]. No fluxo de fala, muitas vezes, os apagamentos não são
percebidos, pois, no caso de “as coisa”, o plural foi indicado e, no caso de “vamu”,
já há indicação da flexão verbal, não havendo prejuízo no significado. Este tipo de
omissão é bastante comum.

As palavras em negrito já mostram a supressão do “r” em formas verbais


também em posição de declive. Este processo também se reflete na escrita. A
supressão, no entanto, não ocorre em início de sílaba (aclive), mas há uma variação
de sons e representações. As palavras “rato” e “carro”, em algumas regiões do
Brasil, apresentam o mesmo som, apesar de serem escritas de formas diferentes.

Figura 13 - Texto 1: texto de uma criança de 5 anos, produzido na escola, nível: Infantil 5

Fonte: Acervo das autoras.

Neste texto espontâneo, você pode observar que a criança tenta representar
os sons que percebe na fala. E diferencia o “r” nas palavras Rafael e pescaria.
Isso mostra que ela já reflete fonologicamente sobre a escrita, mas ainda não
desenvolveu todas as regras da escrita ortográfica.

Voltando à análise das sílabas, outro som que também se modifica na sílaba
CVC é o [ l ]. Pronuncie as palavras “lata” e “mel”. Há diferença no som do “l” ?

58
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Normalmente os falantes do PB o neutralizam e produzem um [u] em travamento


de sílaba, seja no final da palavra, como AVENTAL, seja dentro da palavra, como
FALTOU. Em algumas variações ele é pronunciado como [ l ], mas de forma
diferente do que quando está no final das palavras, é chamado de [ ] velarizado,
comum em regiões com forte influência italiana e alemã.

No caso do texto 1, colocado acima, percebe-se que a criança não sabe ao


certo como representar o [ l ] final, usando as letras “l” em “esperol” (esperou),
pescol (pescou), ficol (ficou), botol (botou) e em Rafael, mas escreve também
“Rafaeo”, empregando a letra “o” no lugar do “l” e na palavra “vio”, no lugar do
“u”. Sem conhecer um pouco sobre as alterações de sons na fala, o profissional
que corrigirá este texto pode não compreender as razões para tantas variações,
quando, na verdade, estão todas relacionadas à posição na sílaba. No capítulo 4,
você aprofundará a análise das incorreções ortográficas e poderá retomar este
mesmo texto.

Os ditongos que ocorrem na posição CVC também podem sofrer omissões.


Observe as palavras POUCO, CANTOU, BEIJO, FEIJÃO, CAIXA. Os falantes do
PB frequentemente omitem a semivogal, realizando um processo que conhecemos
como monotongação. Assim, teríamos as seguintes produções: [‘poku], [kãn’to],
[‘beju], [fe’jãw~] e [´kaʃa]. Esse caso está relacionado às silabas CVC porque a
semivogal ocupa a posição de declive ou pós-vocálica.

Um último aspecto que gostaríamos de destacar quanto às sílabas CVC são


os travamentos por sons nasais (representados na escrita por m e n, ou pelos
ditongos nasalizados – ão, ãe). Nos travamentos nasais em finais de palavra,
ocorre sempre a ditongação, ou seja, o som da nasal é produzido como uma
semivogal que tem uma vibração nasal.

• Pulam – [ãw~] (pronúncia ão)

• Bem – [e~j ~] (pronúncia de ei nasalizados)

• Assim – [ i ~j~ ] (pronúncia de ii nasalizados e prolongados)

• Bombom – [õw~] (pronúncia de ou nasalizados֘)

• Bumbum – [ u~w~] (pronúncia de uu nasalizados e prolongados)

Para compreender melhor, observe o movimento dos seus lábios, prepare-


se para dizer “mala”, mas não diga. Os lábios ficaram distendidos e juntos, certo?
Formando a articulação do [m]. Quando você fala as palavras desta lista, os seus
lábios finalizam na mesma posição? Não. Eles terminam com a articulação de
vogais nasalizadas, resultado do processo de ditongação.

59
Desenvolvimento da linguagem escrita

Os sons nasais que aparecem em posição pós-vocálica (declive) dentro


das palavras normalmente não são percebidos e marcados como nasalizações,
estendendo este traço para a vogal anterior e sendo dependentes dos sons
produzidos na sequência.

• Tempo – ocorre a nasalização do “e” e, logo após, os lábios se unem e já


produzem o “p”.

• Tanto – ocorre a nasalização do “a” e a língua se eleva, preparando para


a pronúncia do “t”.

Por essa razão, uma das regras ortográficas da Língua Portuguesa é que
antes das letras “p” e “b” escrevemos sempre “m”. As ditongações finais, assim
como as sílabas travadas por nasal, são de difícil compreensão para quem está
aprendendo a escrever. Nas tentativas, muitas vezes, as crianças escrevem “tãtu”
– para tanto, cãpo – para campo.

Excerto 2:

Informante 1: bõw~..ah ..ah..fatuz marcantiz na minha vida, já


qui istamos falãndu di cultura achu qui..uma das coisas qui mais mi
marco foi a minha entrada na primera séri..qui foi o primeru choqui
qui eu tivi com li~ngua portuguesa...(risos..risos..)

Fonte: As autoras.

No excerto 2, nas palavras em negrito, é possível observar o processo


de redução de ditongo que ocorre na fala. Na primeira palavra produzida -
[bõw~] bom - nota-se que a nasal aparece na forma escrita, mas não tem esta
correspondência na fala. Faça o teste e pronuncie a palavra, veja como os seus
lábios a finalizam. Com certeza, não estarão distendidos e unidos como no [m], e
sim arredondados, em forma de biquinho, formando o som [u]. E se você colocar a
mão sobre o nariz, durante a produção, ainda perceberá a vibração, característica
dos sons nasais.

Note como é diferente a pronúncia da nasal na palavra “falando”, no início da


segunda linha. Nesse caso, o aparelho fonador faz a preparação para a produção
da consoante “d”, com elevação da língua em direção aos dentes. Já na palavra
“língua”, no final da terceira linha, o movimento da nasal é bastante diferente, há
uma retração em direção a parte posterior do trato vocal, local onde é articulado
o som [ g ].

60
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

A questão que envolve a nasalidade é bastante complexa, pois a criança em


fase de desenvolvimento do sistema de escrita percebe as diferentes produções,
mas não consegue decidir como irá representá-las. Para os adultos alfabetizados,
a questão não oferece problemas, pois dificilmente fazem a análise dos fonemas
e sílabas, pensam nos sons geralmente a partir da escrita (já aprendida e
sedimentada), não compreendendo o processo pelo qual passam os alunos.

Abaixo serão colocadas amostras de textos, da mesma criança do texto 1,


todas retiradas do mesmo caderno de atividades e realizadas na mesma época
(os textos fazem parte do acervo da autora).

Figura 14 – Texto 2

Fonte: Acervo das autoras.


Figura 15 – Texto 3 Figura 16 – Texto 4

Fonte: Acervo das autoras.

Fonte: Acervo das autoras.


Figura 17 – Texto 5

Fonte: Acervo das autoras.

61
Desenvolvimento da linguagem escrita

Como há diferença entre as nasalizações em final de palavra e dentro de


palavra, observaremos primeiro as ocorrências de final. No texto 2, a palavra
“ficam” mostra uma escrita que também gera dúvidas nos alfabetizados, pois
o som é realmente um [ãw~], mas, nesse caso, representa-se com um “am”. A
palavra “morrem” revela a dúvida, pois a criança grafou um “m” e um “i”, buscando
o ditongo nasalizado ‘ei’. No texto 3, na palavra “mãos”, observamos, inclusive,
sobreposições, primeiro foi escrito um “u” e depois um “o”. Além do til, foi colocado
um “n” para tentar representar o som nasal. O mesmo aconteceu no texto 5, com
a palavra “um”.

Quanto às nasalizações dentro de palavra, as escolhas de representação


foram bastante interessantes. Nos textos 2 e 3, palavras “doentes” e “lavando”,
foi feita a escolha da letra “n”, preparando para a pronúncia dos sons [t] e [d]
que são articulados no mesmo lugar. No segundo exemplo ainda foi acrescido um
til, para marcar a nasalização do “a”. Mas, no texto 4, a nasalização da palavra
‘tomando” é marcada apenas com um til sobre o “a”. Os textos 3 e 4 fazem
parte do mesmo exercício, o que mostra que a criança ainda não sistematizou
estas representações e está seguindo, além de sua percepção de sons, as
possibilidades de representação que já conhece.

No texto 5, a palavra “domingo” foi grafada dominhgo. Esta é uma das


ocorrências mais diferente, pois a presença do dígrafo “nh” - [ ], em final de sílaba,
não acontece no PB. No entanto, acredita-se que a escolha por esta nasal se deu
em função do som [g], que é produzido na parte posterior do trato vocal. A criança
não identificou esta nasal como [m] nem como [n], ambos produzidos na parte
anterior e, por isso, procurou uma nasal mais posterior. Outro aspecto relevante
sobre o som representado pelo “nh” é a sensação de que há uma vogal “i” dentro
dele. O que ocorre com outro dígrafo, o “lh” – [ ñ ]. Frequentemente as crianças
escrevem “famílha” (para família) e também “brilio” (para brilho). Ao pronunciar
estas palavras, tanto com nh como com lh, você perceberá a presença de um “i”
dentro do som. Meu nome já foi escrito como Bethãnha por muitas crianças.

Retomando o excerto 2, há outra característica da fala muito comum,


mas que os adultos não percebem, que é a modificação dos sons das vogais.
Nesse caso, no entanto, a motivação para o processo não está relacionada ao
padrão silábico, uma vez que as vogais sempre ocupam o núcleo da sílaba. A
tonicidade de cada sílaba também pode ocasionar variações na fala e que, por
consequência, refletem nos processos iniciais de escrita. Sabe-se que a sílaba
tônica recebe maior atenção na pronúncia e, por isso, não apresenta tantas
omissões ou substituições.

Já nas sílabas pré-tônicas e pós-tônicas, os processos ocorrem mais


frequentemente, principalmente nas sílabas pós-tônicas finais, nas quais as
vogais “e” e “o” quase sempre são pronunciadas como [ i ] e [ u ]. Exemplos:

62
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

• Príncipe – princip[ i ]
• Leite – leit[ i ] – nesse caso, em algumas regiões, o ‘t” é substituído por [tʃ]
(som de tx)
• Pouco – pouc[u]
• Menino – m[ i ]nin[u] – o processo ocorreu também na sílaba pretônica.

Nas pré-tônicas, o processo também ocorre, mas não com a regularidade


das pós-tônicas finais.

• Boneca – b[u]neca
• Escola – [ i ]scola
• Enxame – [ i ]nxame

Na amostra de fala (excerto 2), houve alteração em praticamente todas


as vogais pós-tônicas, como nas palavras: fatos ([o] – [u]), marcantes ([e] – [ i
]), choque ([e] – [ i ]), acho ([o] – [u]). Nas pré-tônicas, observamos na palavra
“estamos” ([e] – [ i ]), mas o processo não ocorreu na palavra “entrada”. Ainda
quanto às vogais, convém lembrar que no PB nós temos 7 vogais orais e cinco
nasais, resultando em 12 sons vocálicos:

• Pá – a [a]
• Ler – e [e]
• Perto – é [ɛ ]
• Livre – i [ i ]
• Lodo – o [o]
• Lote – ó [ɔ]
• Único – u [u]

As sete vogais sonoras são representadas por 5 letras, acrescidas de


diacríticos (acentos, til) quando necessário. As vogais nasais geralmente recebem
o til ou vem seguidas ou precedidas de consoantes nasais: pão, lenda, pinto, mãe
e minhoca.

Para exemplificar, mais um texto do mesmo informante, parte de uma


produção coletiva em que escreveu haver gostado “da música eu me remexo
muito”.
Figura 18 - Texto 6

Fonte: Acervo das autoras.

63
Desenvolvimento da linguagem escrita

Essas trocas de vogais, como encontramos na fala, aparecem em textos


escritos espontâneos com bastante frequência. No texto 6, troca de “me” por “mi”
e troca de “muito” por “muntu”.

Há outros aspectos da fala que devem ser conhecidos de quem trabalha


com a linguagem e, especialmente, com o desenvolvimento da escrita. Neste
capítulo destacamos apenas os principais, que serão necessários para que você
possa refletir sobre o sistema alfabético do Português e também sobre os erros
ortográficos.

Para saber mais leia as obras a seguir:

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna. A


sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do


português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003.

Quando uma pessoa domina o sistema de escrita e tem vasta experiência


com a leitura e a escrita, sua concepção de linguagem oral acaba sendo
afetada. Kato (1999, p. 11) afirma que qualquer profissional de linguagem “[...]
alfabetizadores e professores de línguas – partilham da mesma concepção. A
consciência linguística que eles têm provém muito mais do que eles fazem ao
escrever ou ler do que aquilo que eles fazem ao falar ou ouvir”.

Isso explica o estranhamento que sentimos quando precisamos refletir sobre


a fala e percebemos que, por influência da escrita, não percebemos mais como
a fala se processa. No entanto, tomar consciência do que fazemos na fala é
primordial para que possamos compreender sobre o que estamos falando quando
tratamos das consciências fonêmica e fonológica.

A compreensão do conceito de consciência fonêmica parece simples quando


pensamos na linguagem e nas segmentações como sujeitos letrados. No entanto,
sabe-se que a tarefa de desmembrar uma sílaba para associá-la a fonemas e
grafemas é bastante complexa para quem ainda não domina o sistema alfabético. E
vale lembrar que autores como Morais (2006) e Scliar-Cabral (2010) alertam sobre
a relação de dependência entre o desenvolvimento da escrita e da consciência
fonêmica. “Os princípios do sistema alfabético do português do Brasil são bastante
complexos e se constituirão, uma vez incorporados, na principal ferramenta para
recortar, de forma consciente, a cadeia da fala em unidades menores que a sílaba”
(SCLIAR-CABRAL, 2003, p. 61).

64
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Atividade de Estudos:

1) Agora é a sua vez de analisar um texto e pensar sobre as


interferências da oralidade, sobre consciência fonológica
e sobre os conceitos de fonemas e sílabas. Os dois textos
foram produzidos pela mesma criança que escreveu os textos
integrantes deste capítulo. No entanto, o menor corresponde ao
Infantil 5 e o maior ao 1º ano. Ambos são amostras de escrita
espontânea, trabalhadas no ambiente escolar.

Figura 19 - Texto 7: Criança de 5 anos – INFANTIL 5

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 20 – Texto 8: Criança de 6 anos – 1º ANO

Fonte: Acervo das autoras.

a) Faça uma avaliação dos textos, pensando nos níveis propostos


pela psicogênese.
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___________________________________________________
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65
Desenvolvimento da linguagem escrita

b) Destaque palavras que foram escritas de acordo com as


percepções da fala e procure explicar as ocorrências, utilizando
os conhecimentos que você desenvolveu sobre fala e escrita.
___________________________________________________
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c) Explique como você compreende a relevância da consciência


fonológica para o desenvolvimento da escrita.
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Elementos Para o Desenvolvimento


da Leitura e da Escrita – Uma
Abordagem Linguística

Atividade O tema de que trata esta seção já está sendo desenvolvido desde
metacognitiva o capítulo 1, da seção anterior e continuará nos próximos capítulos.
quando ele, Mas é importante ampliarmos a noção de consciência metalinguística
conscientemente, e das habilidades a ela associadas. Morais e Leite (2012) refletem
analisa seu sobre o conceito de atividade metacognitiva com o objetivo de situar a
raciocínio e suas
consciência metalinguística e suas ramificações.
ações mentais,
“monitorando” seu Dizemos que um indivíduo exerce uma atividade metacognitiva
pensamento. quando ele, conscientemente, analisa seu raciocínio e suas
ações mentais, “monitorando” seu pensamento. Quando a
pessoa faz isso sobre a linguagem oral ou escrita, dizemos que
ela está exercendo uma atividade metalinguística. Tal reflexão
consciente sobre a linguagem pode envolver palavras, partes
das palavras, sentenças, características e finalidades dos
textos, bem como as intenções dos que estão se comunicando
oralmente ou por escrito. Quando reflete sobre os segmentos
das palavras, a pessoa está pondo em ação a consciência
fonológica (MORAIS; LEITE, 2012, p. 21).

66
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Você pode perceber que, no âmbito dos comportamentos conscientes e


monitorados, há alguns específicos para a linguagem, como já temos visto. De
certa forma, eles fazem parte do ser humano e do desenvolvimento infantil, não
são totalmente dependentes, mas interligados.

Figura 21 – Comportamentos metacognitivos

Fonte: As autoras.

A reflexão sobre a linguagem transcende as consciências especificadas


acima, pois, conforme destacam Barreira e Maluf (2003), além dos aspectos mais
estruturais da língua, há também a avaliação sobre a gramaticalidade ou não de
um enunciado, a percepção de ambiguidades, metáforas, duplos sentidos, entre
outros. No entanto, estas habilidades se desenvolverão mais tardiamente, através
de práticas de letramento distintas e também do amadurecimento dos sujeitos.

As outras habilidades metalinguísticas, entretanto, surgem mais


precocemente. Há muitos estudos sobre a relevância da consciência fonológica
na alfabetização, principalmente no que se refere ao desenvolvimento do sistema
de escrita alfabética. Mas muitos estudos não significam um consenso de opiniões
e resultados, e nosso propósito é que você conheça o tema e possa repensar
sua prática. No capítulo 1, já foi sugerido um texto que apresenta as diversas
pesquisas que vem sendo realizadas pelas diferentes áreas. (Texto: Habilidades
metalinguísticas e linguagem escrita nas pesquisas brasileiras).

Retomaremos o que já sabemos sobre consciência fonológica e


apresentaremos brevemente as consciências lexical e sintática.

Consciência Fonológica
A consciência fonológica envolve a capacidade de refletir sobre os segmentos
sonoros que compõem as palavras, produzidas como um contínuo na fala. Esta
habilidade é fundamental para que uma criança possa se apropriar do Sistema
de Escrita Alfabética (denominado SEA). Morais (2015) levanta várias habilidades
relacionadas com a reflexão sobre os sons:

67
Desenvolvimento da linguagem escrita

Variam quanto à operação mental que o aprendiz realiza:


pronunciar um a um os segmentos que compõem a palavra,
contar, identificar ou produzir “partes sonoras” parecidas,
adicionar ou subtrair segmentos sonoros. Variam quanto ao
tamanho do segmento sonoro, que pode ser uma rima (mato/
gato), uma sílaba (cavalo, casaco) ou um fonema (sapo, c).
E variam, ainda, quanto à posição (início, meio, final) em que
aparecem nas palavras. 

No capítulo 1, havíamos apresentado alguns níveis de consciência fonológica,


adotados por alguns autores, e que estão relacionados às diferentes habilidades
propostas pelo autor.

• Sensibilidade à rima e à aliteração;

• Consciência da sílaba;

• Conhecimento intrassilábico;

• Conhecimento segmental.

O conhecimento segmental se refere à consciência fonêmica, que faz


parte da consciência fonológica. No início do capítulo, já discutimos sobre as
características de ambas e ressaltamos que a consciência fonêmica depende do
desenvolvimento da escrita, emergindo depois de outras habilidades.

Ainda no que se refere à segmentação em sílabas, alguns pesquisadores


defendem que esta é uma unidade mais natural, e que, por essa razão, poderia
ser percebida pela criança sem um trabalho formal, já na educação infantil.

Scliar-Cabral (2010) ressalta, no entanto, que é difícil perceber o contraste


entre os elementos que compõem uma sílaba e, por consequência, segmentá-la
em função das características fonoarticulatórias da produção. Como exemplo, cita
a consoante “p”, cujo som é dependente da vogal que a acompanha. Segundo a
autora, ao pensar em produzir “pi” ou “po” a articulação dos lábios fica diferente,
mostrando que as vogais mudam a articulação do “p”. “Quando pedimos a um não
alfabetizado para dizer quantos sons escuta em casa, ele responde que são dois
e não consegue apagar a consoante inicial de uma sílaba” (SCLIAR-CABRAL,
2010, p. 61).

Consciência Lexical
O léxico é o vocabulário de uma língua, refere-se às palavras e às expressões
de uma língua. Por volta dos 12 meses, os bebês começam a desenvolver este

68
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

léxico, que será ampliado e reorganizado até o final de suas vidas. Já a


A consciência
consciência lexical diz respeito à capacidade de refletir sobre o léxico, lexical diz respeito
sobre a segmentação do contínuo da fala em palavras. à capacidade de
refletir sobre o
No entanto, em função do encadeamento sintático e morfológico léxico, sobre a
da língua, essa segmentação também apresenta uma complexidade. segmentação do
Para Barreira e Maluf (2003, p. 493): contínuo da fala em
palavras.
A consciência lexical diz respeito à habilidade
para segmentar a linguagem oral em palavras, considerando
tanto aquelas com função semântica, ou seja, que possuem
um significado independente do contexto (tais como os
substantivos, adjetivos, verbos), quanto aquelas com função
sintático-relacional, que adquirem significado apenas no
interior de sentenças (conjunções, preposições, artigos).

A complexidade desta etapa é reforçada por Scliar-Cabral (2010, p. 68-69),


que levanta três dificuldades as quais surgem para a segmentação das palavras.

• Percepção dos vocábulos átonos (clíticos) – os vocábulos átonos


dependem do vocábulo seguinte, pois precisam se vincular a um
substantivo, adjetivo, verbo ou advérbios que possuem uma sílaba mais
forte. Exemplo: no texto 8, colocado acima, na segunda linha, a criança
escreveu “fugeti danasa ...”. O “da” é um vocábulo átono que acabou
apoiado no vocábulo “nasa”.A autora reforça a importância de se trabalhar
com percepção entre sílabas mais fortes e fracas desde a Educação
Infantil.

• Os vocábulos átonos não apresentam significação com contrapartida


referencial concreta – outra dificuldade para segmentar os clíticos é que
eles não apresentam uma significação externa, apenas um significado
gramatical. Uma criança de 6 anos não sabe que deve colocar “ da
NASA”, para ela, o “da” faz parte da palavra.Atividades que trabalhem com
direções, procedência, companhia podem auxiliar a criança a identificar e
compreender os clíticos.

• A percepção dos vocábulos átonos – quando há finalização da palavra por


consoante e a seguinte começa por vogal (as orelhas), ou quando dois
fonemas são idênticos (os santos) ocorre a reanálise silábica, tornando
opacas as fronteiras entre as palavras. Um exemplo pode ser observado
no texto abaixo, produzido por uma criança no 1º ano.

69
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 22 – Texto espontâneo

Fonte: Acervo das autoras.

As crianças já trazem um léxico consigo, no entanto, quando começam a


refletir e a segmentar podem apresentar formas lexicais que necessitarão ser
reordenadas. Encontra-se com frequência “zunha” (as unhas), “zolhos” (os olhos)
e também o processo contrário “um bigo” (umbigo) e “a tirei” (atirei).

Consciência Sintática
A sintaxe da língua está relacionada à forma como os morfemas se combinam
para formar unidades maiores. Observe o seguinte exemplo:

Figura 23 - Estruturação frasal

Os falantes de uma língua dominam suas regras básicas de ordenação e


combinação e, nesse caso, regras morfológicas e sintáticas. A partir de um número
limitado de unidades, o usuário da língua, por meio de combinações
e flexões, pode criar infinitas possibilidades. Aqui nos referimos ao
O termo
aspecto estrutural, mas sabe-se que estas escolhas também envolvem
consciência
sintática refere-se significados, contextos, propósitos entre outros.
à habilidade para
refletir e manipular Na fala, no processo inicial, não há consciência das regras, mas
mentalmente a os falantes desenvolvem a sintaxe da língua. Com o processo de
estrutura gramatical escolarização/alfabetização inicia-se a reflexão consciente sobre estas
das sentenças. regras. “O termo consciência sintática refere-se à habilidade para refletir

70
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

e manipular mentalmente a estrutura gramatical das sentenças” (BARREIRA;


MALUF 2003, p.494).

Alguns estudos na área da Psicolinguística indicam que as consciências


fonológicas, morfológicas e sintáticas auxiliam no desenvolvimento da linguagem
escrita. No entanto, ainda há desencontros sobre como e quando a consciência
sintática pode ser um facilitador.

No processo de sistematização e fixação do sistema de escrita alfabética,


na sistematização das regras ortográficas, os princípios fonológicos, morfológicos
e sintáticos são fundamentais, visto que levam o aprendiz à reflexão e à
compreensão, evitando a concepção de que a ortografia precisa ser decorada.
Nos capítulos 3 e 4 aprofundaremos este tema.

Para finalizar esta seção sugerimos a leitura do texto: O Ensino


do Sistema de Escrita Alfabética: por que vale a pena promover
algumas habilidades de consciência fonológica de Morais e Leite –
disponível em: <http://www.pomerode.sc.gov.br/arquivos/SED/ano1/
unidade_03_ano_01_azul(teste_figuras)(07_11_2012).pdf>.

Além do texto, assista a uma sequência de três vídeos (parte 1,


parte 2 e parte 3) relacionada ao texto e ao nosso tema, disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=Cwd9QcxedKE>.

No texto e nos vídeos, os autores conseguem mostrar uma


proposta de alfabetização – em ciclos – que reúne elementos da
psicogênese da língua escrita e de práticas e princípios para que se
desenvolva o Sistema de Escrita Alfabética a partir de elementos da
consciência fonológica e metalinguística.

A professora Leonor Scliar-Cabral tem trabalhado a questão da alfabetização


a partir das descobertas de neurociência. Em publicações recentes, propõe
mudanças e avanços nas concepções e práticas da alfabetização. Este também
é um caminho possível, com elementos que nos auxiliam a pensar sobre o
desenvolvimento da escrita e suas complexidades.

71
Desenvolvimento da linguagem escrita

Algumas Considerações
Neste capítulo, propusemo-nos a refletir sobre a consciência fonológica e
sua relação com o desenvolvimento da escrita. Para tanto, foi necessário estudar
como a fala se processa e tomar consciência de que nossas produções orais
diferem de nossa escrita.

Você deve ter percebido que os aspectos desenvolvidos aprofundaram o


que já tínhamos visto no capítulo 1, e que não tem por objetivo contrapor teorias.
Nosso propósito maior é que você possa compreender os processos pelos quais
os aprendizes passam no decorrer da aprendizagem do sistema de escrita.

Os próximos capítulos seguirão esta mesma proposta, sempre retomando os


caminhos percorridos e trazendo novos elementos para o seu conhecimento.

Referências
BARRERA, S. D.; MALUF, M. R. Consciência metalinguística e alfabetização: um
estudo com crianças da primeira série do ensino fundamental. Psicol. Reflex.
Crit., Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 491-502, 2003. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722003000300008&lng=en&
nrm=iso>. Acesso em: abril 2016.

BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna. A sociolinguística na


sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004.

BYRNE, B. Treinamento da consciência fonêmica em crianças pré-escolares:


Por que fazê-lo e qual o seu efeito? In: CARDOSO-MARTINS, C. (Org.).
Consciência fonológica & alfabetização. Petrópolis: Vozes, 1995.

KATO, M. No mundo da escrita. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999.

MORAIS, A. G. Concepções e metodologia de alfabetização: Por que é


preciso ir além da discussão sobre “métodos”? Pernambuco: UFPE/Centro
de Estudos em Educação e Linguagem, 2006. Disponível em: <portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_moarisconcpmetodalf.pdf >. Acesso em: fevereiro
2016.

MORAIS, A. G.; LEITE, T. M. R. O Ensino do Sistema de Escrita Alfabética: por


que vale a pena promover algumas habilidades de consciência fonológica? In:
BRASIL – Ministério da Educação. A aprendizagem do Sistema de Escrita

72
Linguagem Escrita e Consciência
Capítulo 2 Fonológica na Educação

Alfabética. Unidade 3. Ano 1. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.


pomerode.sc.gov.br/arquivos/SED/ano1/unidade_03_ano_01_azul(teste_figuras)
(07_11_2012).pdf>. Acesso em: maio 2016.

MORAIS, A. G. Consciência fonológica na alfabetização. (verbete) In:


UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Faculdade de
Educação (FaE). Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). Glossário
Ceale: termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo
Horizonte, 2015. Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/
glossarioceale/>. Acesso em: fevereiro 2016.

SCLIAR-CABRAL, L. As principais dificuldades na alfabetização. In: HEINIG,


O. L.; FRONZA, K. A. Diálogos entre linguística e educação. Blumenau:
EDIFURB, 2010.

______. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo:


Contexto, 2003.

SILVA, T. C. Consciência fonológica (verbete) In: UNIVERSIDADE FEDERAL


DE MINAS GERAIS (UFMG). Faculdade de Educação (FaE). Centro de
Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). Glossário Ceale: termos de
alfabetização, leitura e escrita para educadores. Belo Horizonte, 2015. Disponível
em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/>. Acesso em: fev.
2016.

73
Desenvolvimento da linguagem escrita

74
C APÍTULO 3
Fatores Socioculturais no Processo
de Aquisição da Linguagem Escrita

A criança precisa do bonito e do novo,


pois o velho e o usado ela já tem.
Bartolomeu Campos de Queirós.

A partir da concepção do saber e do fazer, neste capítulo, você deverá


alcançar os seguintes objetivos:

99 Reconhecer a linguagem escrita como uma prática social, compreendendo


que os fatores socioculturais são determinantes para sua aquisição.

99 Compreender o conceito de letramento a partir da aprendizagem da linguagem


escrita.

99 Repensar a aprendizagem da escrita como parte de um processo maior – o


letramento.

99 Discutir as implicações da concepção de escrita como prática social no ensino


e na aprendizagem da escrita.
Desenvolvimento da linguagem escrita

76
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Contextualização

Neste capítulo, convidamos você a aprofundar sua compreensão sobre


linguagem escrita, aproximando a aprendizagem da escrita e da leitura das
práticas sociais em que elas ocorrem. Por que discutir esse assunto? Para que a
prática docente, nos anos iniciais, consiga aproximar a aprendizagem do sistema
de escrita das vivências, experiências e práticas que ocorrem com o texto escrito,
seja para ler, seja escrever, seja conversar sobre ele.

Há muitas discussões acontecendo, seja nos programas de formação


continuada, seja nos cursos de graduação ou mesmo nos materiais escritos a
que você já teve acesso. Embora sejam abordagens diferentes, há entre elas
aproximações que iremos apresentar, a fim de que você possa compreender
que, para atuar junto aos pequenos aprendizes, é preciso ter clareza teórica e
metodológica.

Os conceitos, aliados a exemplos e práticas, serão apresentados


gradativamente. Portanto, leia, anote e, sempre que sentir necessidade, volte a
eles. Assim, você irá consolidar suas aprendizagens em torno desse tema. As
propostas de atividades são caminhos possíveis. Por isso, considere que elas
deverão ser contextualizadas, pois, neste material, nossa compreensão é de
que as crianças não aprendem todas do mesmo jeito e ao mesmo tempo. O que
se tem, portanto, são potencialidades que devem ser refletidas por você. Dessa
forma, você irá aproximar o saber e o fazer como já anunciamos em nossos
objetivos.

Agora é com você! Aproveite o conteúdo que segue, mas não se limite a ele.
Aproveite para ler outros textos que forem sugeridos; faça sempre uma síntese
do que leu e compreendeu e pense em outras práticas a partir da teoria aqui
apresentada. Mãos à obra!

A Linguagem Como uma Prática


Social: O Que Isso Significa?
Mas uma certeza me vigiava: ler era meu único sonho viável.
Bartolomeu Campos de Queirós.

Para começar nossa reflexão sobre os letramentos, ou seja, as práticas


sociais que fazemos com a leitura e a escrita, apresentaremos a capa de um livro
de literatura infantil.
77
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 24 - Capa da obra infantil “O menino que aprendeu a ver”

Fonte: Disponível em: <http://pt.slideshare.net/GraaSousa/livro-o-


menino-que-aprendeu-a-ver>. Acesso em: 18 jun. 2016.

Ficou curioso em conhecer a história e não tem acesso ao livro?


Pode acessar a história toda em: <http://pt.slideshare.net/TatyCarla/
o-menino-que-aprendeu-a-ver-ruth-rocha-21465703>.

Lendo a capa, você, certamente, consegue identificar a autora, a editora, o


título. Já se perguntou como aprendeu isso? Você já esteve exposto(a) várias vezes
a eventos de letramento (ainda iremos conversar sobre este termo) como este. Sua
mãe ou tia ou professora já lhe apresentou uma capa de livro quando criança. Aos
poucos, vivenciando a leitura de livros, foi aprendendo o que é um livro e como se
tem acesso a suas informações. Aprendeu, também, a escolher um livro para ler. As
imagens da capa são também uma pista sobre o que trata a obra.

Atividade de Estudos:

1) Falando nisso? Que aspectos da capa lhe chamaram a


atenção? Como você relaciona as imagens ao título? Antes de
prosseguirmos, responda a estas questões.

78
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________
___________________________________________________

Para dar continuidade a nossa aprendizagem, vamos analisar uma das


páginas dessa história:

Figura 25 - Página 28 da obra “O menino que aprendeu a ver”

Fonte: Disponível em: <http://pt.slideshare.net/GraaSousa/livro-o-


menino-que-aprendeu-a-ver>. Acesso em: 18 jun. 2016.

Observe que João, o personagem da história, lia placas, paredes, pacotes


e livros. Ele fazia uso, em seu cotidiano, do que aprendia na escola na fase
de alfabetização. Podemos dizer, então, que João vivia, simultaneamente, a
alfabetização e o letramento. Mas existe diferença entre um e outro? É sobre essa
aproximação e suas especificidades que conversaremos a partir de agora.

Vamos começar discutindo o que significa alfabetizar, alfabetização. Se


você procurar em um dicionário, encontrará um significado parecido com este
aqui, garimpado em Caldas Aulete, para o qual alfabetização é “Ação ou resultado
de alfabetizar, de ensinar a ler e escrever” e alfabetizar é:

79
Desenvolvimento da linguagem escrita

1.Ensinar ou aprender a ler e a escrever. [td. : alfabetizar crianças] [int. :


Aos sessenta anos alfabetizou -se];
2. Restr. Transmitir ou adquirir capacidade ou hábito da
comunicação e expressão pela escrita;
3. P.ext. Dar a (alguém) ou adquirir os conhecimentos gerais
básicos (inclusive leitura e escrita), a instrução primária.

Fonte: Disponível em: <http://www.aulete.com.br/alfabetizar>.


Acesso em: 15 jul. 2016.

Ensinar pressupõe As palavras que se destacam neste verbete são: ensinar;


alguém que saiba, aprender; ler e escrever. Vamos, então, analisar a relação entre elas:
ou seja, que ensinar pressupõe alguém que saiba, ou seja, que tenha domínio do
tenha domínio conhecimento científico, nesse caso, sobre ler e escrever, para poder
do conhecimento mobilizar esses conhecimentos, usando uma metodologia adequada,
científico.
a fim de que possa ensinar como o sistema de escrita alfabético se
organiza. Não é tarefa simples, pois a escrita é uma invenção recente.

Até aqui, com o auxílio do dicionário, revisitamos o significado dos termos


alfabetizar e alfabetização, mas isso não é suficiente para quem quer saber
mais. Então, chegou o momento de irmos ao encontro de alguns teóricos que já
escreveram sobre o assunto.

Vamos apresentar algumas definições que você deverá ler


Embora sejam
processos que com atenção para poder, então, compreender o que se entende por
dialogam entre si, alfabetização e como ela se articula com o letramento.
há aspectos que
dizem respeito à É importante, desde o início, perceber que, embora sejam
alfabetização que processos que dialogam entre si, há aspectos que dizem respeito à
não podem ser alfabetização que não podem ser deixados de lado quando se trata
deixados de lado
do fenômeno do letramento. Sobre isso, Soares (2003, p. 12, grifos do
quando se trata
do fenômeno do autor) escreveu:
letramento.
Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque,
no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas
e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança
(e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita se dá
simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição
do sistema convencional de escrita – a alfabetização, e
pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema
em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que
envolvem a língua escrita – o letramento. Não são processos
independentes, mas interdependentes, e indissociáveis:

80
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio


de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através
de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode
desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem
das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da
alfabetização. A concepção “tradicional” de alfabetização,
traduzida nos métodos analíticos ou sintéticos, tornava os
dois processos independentes, a alfabetização – a aquisição
do sistema convencional de escrita, o aprender a ler como
decodificação e a escrever como codificação – precedendo o
letramento – o desenvolvimento de habilidades textuais de
leitura e de escrita, o convívio com tipos e gêneros variados de
textos e de portadores de textos, a compreensão das funções
da escrita. Na concepção atual, a alfabetização não precede o
letramento, os dois processos são simultâneos [...].

Para melhor compreensão, vamos tirar alguns trechos dessa citação longa
para que possamos entender o que é específico da alfabetização:

• “pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização”;

• “a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas


sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento”;

• “a alfabetização não precede o letramento, os dois processos são


simultâneos”.

Alfabetizar é, então, ensinar o sistema convencional de escrita, ou seja,


ensinar a ler (decodificar) e escrever (codificar) dentro de um sistema alfabético
que foi construído ao longo de muitos anos.

Algumas dicas de vídeo para quem quer saber mais sobre a


história da escrita:

- A História da Palavra - O Nascimento da Escrita (Acesse:


<https://www.youtube.com/watch?v=TVxmJoi-DDg>);

- História da Escrita - do papiro ao computador - parte 1


(Acesse: <https://www.youtube.com/watch?v=r7yeiRtc1fA>).

Para alfabetizar, segundo Soares (2003), é preciso também considerar o


contexto em que a criança vive e as práticas de letramento de que ela participa.
A alfabetização e o letramento estão situados culturalmente, ou seja, a criança
que aprende participa de ações de leitura e escrita em sua comunidade. Isso

81
Desenvolvimento da linguagem escrita

Não é preciso leva à escolha da metodologia e das ferramentas pedagógicas, como


primeiro alfabetizar o livro didático, o uso de jogos, de textos, dentre outras possibilidades.
para depois Por isso, ao ensinar a ler e a escrever, a criança perceberá as funções
inserir em práticas da leitura e da escrita, o que já foi sinalizado quando apresentamos a
escolares de página 28 da obra de Ruth Rocha. João, o personagem, alfabetizava-
letramento, pois a se na escola, com a ajuda da professora. O conhecimento sobre o
criança, curiosa por
sistema alfabético de escrita aprendido era, por ele, mobilizado para
natureza, vai querer
“ver” e ler tudo que ler o que estava ao seu redor. Isso reforça a perspectiva de que não é
está escrito ao seu preciso primeiro alfabetizar para depois inserir em práticas escolares de
redor. letramento, pois a criança, curiosa por natureza, vai querer “ver” e ler
tudo que está escrito ao seu redor.
O que é
propriamente a Até aqui, vimos que há muitas aproximações entre letramento e
alfabetização, de alfabetização, mas o que é específico de cada um desses processos?
que também são Vamos mais uma vez recorrer a Soares (2003), que trata das facetas
muitas as facetas de cada um deles.
– consciência
fonológica
É que, diante dos precários resultados que vêm sendo obtidos,
e fonêmica, entre nós, na aprendizagem inicial da língua escrita, com
identificação sérios reflexos ao longo de todo o ensino fundamental, parece
das relações ser necessário rever os quadros referenciais e os processos
fonema-grafema, de ensino que têm predominado em nossas salas de aula, e
habilidades de talvez reconhecer a possibilidade e mesmo a necessidade
codificação e de estabelecer a distinção entre o que mais propriamente
decodificação da se denomina letramento, de que são muitas as facetas –
língua escrita, imersão das crianças na cultura escrita, participação em
experiências variadas com a leitura e a escrita, conhecimento
conhecimento e
e interação com diferentes tipos e gêneros de material escrito
reconhecimento – e o que é propriamente a alfabetização, de que também
dos processos de são muitas as facetas – consciência fonológica e fonêmica,
tradução da forma identificação das relações fonema-grafema, habilidades de
sonora da fala para codificação e decodificação da língua escrita, conhecimento e
a forma gráfica da reconhecimento dos processos de tradução da forma sonora
escrita. da fala para a forma gráfica da escrita (SOARES, 2003, p. 13).

No que concerne à alfabetização, é preciso estar atento aos seguintes


aspectos específicos (alguns já vistos dos capítulos anteriores):

• consciência fonológica e fonêmica;


• identificação das relações fonema-grafema;
• habilidades de codificação e decodificação da língua escrita;
• conhecimento e reconhecimento dos processos de tradução da forma
sonora da fala para a forma gráfica da escrita.

Esses aspectos dizem respeito, especificamente, aos conhecimentos de


duas áreas: a Linguística e a Psicolinguística. Portanto, para alfabetizar (e
inserir em práticas de leitura e escrita), é preciso ter conhecimentos linguísticos

82
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

sólidos. Isso porque as crianças, no processo de aprendizagem, refletem sobre


a organização (nada lógica) da escrita e costumam fazer perguntas. Aí entra o
ensino, a mediação do professor e a sistematização dos conhecimentos do
sistema alfabético de escrita.

No capítulo 1, você pode conhecer e refletir sobre as diferenças entre os


paradigmas construtivista e fonológico no que se refere à compreensão do
processo de alfabetização. Os principais conceitos e concepções desenvolvidos
neles foram apresentados sob uma perspectiva histórica, que nos levou a
introduzir o conceito de letramento, retomado neste capítulo.

No capítulo 2, você pode compreender o que é a consciência fonológica e


fonêmica e qual o papel dela na leitura e escrita, assim como outras etapas da
consciência metalinguística.

As relações grafema–fonema (que dizem respeito à leitura) e fonema-


grafema (escrita) serão aprendidas ao longo do primeiro ciclo de alfabetização,
pois é preciso considerar a organização dos princípios do sistema alfabético.

O novo documento de orientação para a educação no Brasil, a Base Nacional


Comum Curricular (BNCC), em sua segunda versão (2016), chama atenção para
esse processo, nos três primeiros anos, quanto ao ensino e aprendizagem do
sistema de escrita alfabética:

Nos três primeiros anos do Ensino Fundamental, a apropriação


do sistema de escrita alfabética e o aprendizado de algumas
normas ortográficas assumem centralidade e contemplam
o conhecimento das letras do alfabeto, a compreensão dos
princípios de funcionamento do sistema de escrita alfabética
e o domínio das convenções que regulam a correspondência
entre letras ou grupos de letras e seu valor sonoro, de modo a
levar os/as estudantes a ler e a escrever palavras e textos. Os
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento relacionados
a esse aprendizado são propostos em articulação aqueles
relacionados aos eixos da leitura, da produção de textos e de
seus usos (BRASIL, 2016, p. 191).

Comparando as orientações do eixo do sistema de escrita Há mais de uma


alfabética da BNCC com os aspectos pinçados do texto de Soares década tem
(2003), podemos perceber que há mais de uma década tem se estudado se estudado a
a necessidade de haver um currículo que contemple os aspectos necessidade de
linguísticos e psicolinguísticos de forma gradual, ou seja, levar o aluno haver um currículo
a perceber que não se escreve como fala, pois existe uma relação que contemple
os aspectos
entre fonema e grafema, para a escrita, que precisa ser aprendida ao
linguísticos e
longo dos anos iniciais. Portanto, há uma centralidade na “apropriação psicolinguísticos de
do sistema de escrita alfabética e o aprendizado de algumas normas forma gradual

83
Desenvolvimento da linguagem escrita

ortográficas”, mas sempre considerando que os aspectos ortográficos ainda serão


alvo do ensino nos anos seguintes.

Nesse processo, é possível pensar que três pontos devem compor o currículo
no que tange especificamente à alfabetização: o desenvolvimento da consciência
fonológica e fonêmica; a aprendizagem da leitura e a aprendizagem da escrita.
Ainda que elas possam ocorrer simultaneamente, haverá sempre centralidade
em uma delas, conforme o ano em que a criança está matriculada e os seus
conhecimentos linguísticos. Recorrendo mais uma vez à BNCC, é importante
lembrar que, ao final dos três primeiros anos do ensino fundamental, “espera-
se que os/as estudantes dominem o sistema de escrita alfabética, aprendam a
segmentar palavras nas frases, usem pontuação em textos, aprendam algumas
normas ortográficas que dizem respeito às relações diretas entre fonemas e
grafemas e regras contextuais” (BRASIL, 2016, p. 191). Portanto, é preciso
organizar os objetivos por ano, a fim de que todas as capacidades e habilidades,
já anunciadas por Soares (2003) e retomadas em vários documentos de formação
continuada, no Brasil, para a alfabetização, sejam desenvolvidas e os objetivos de
aprendizagem alcançados.

Uma possibilidade é organizar os objetivos de aprendizagem considerando,


por exemplo, que, no primeiro ano, a criança deva ler textos curtos e escrever
palavras, frases e até textos, se assim for o desejo dela, mas com a mediação do
professor. Ao escrever as palavras e frases, irá representá-las usando estratégias
de representação da fala, mas, aos poucos, deverá perceber que não se escreve
como se fala. Para isso, é importante participar de momentos de leitura com
reflexão sobre como as palavras e frases estão dispostas no texto, respeitando
a forma composicional do gênero discursivo, compreendendo a organização, por
exemplo, de um poema (em versos), de um conto (em prosa), de uma lista, como
de compras, entre tantos outros.

Ler ajuda a Dessa forma, irá observar os espaços em branco que dividem as
escrever, pois palavras, o uso da pontuação, das maiúsculas e outros recursos. Nessa
haverá um trabalho perspectiva, ler ajuda a escrever, pois haverá um trabalho reflexivo sobre
reflexivo sobre como o autor compõe o texto, como organiza as partes menores, como
como o autor letras e sílabas em palavras. Compreenderá, de forma inicial, ainda, que
compõe o texto, há mais de uma forma, em alguns casos, para representar um fonema.
como organiza as
Por exemplo, “casa” está escrita com “s”, mas o fonema é /z/, o que não
partes menores,
como letras ocorre em “vazio”, palavra na qual o mesmo fonema é representado
e sílabas em pela letra “z”. Sugere-se que, no primeiro ano, explorem-se palavras do
palavras. cotidiano da criança para que ela aprenda a compreender as palavras
conhecidas. Por isso, no planejamento, é tão importante a seleção de
textos, considerando letras e fonemas a serem explorados, o vocabulário do texto
em relação ao conhecimento lexical e semântico da criança. Aliado ao trabalho

84
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

de leitura está o do sistema de escrita alfabética, sempre com a mediação do


professor, a criança deverá alcançar, ao longo do ano, objetivos de aprendizagem
como os sugeridos pela BNCC:

Conhecer as letras do alfabeto, a ordem alfabética e sua


utilização para guiar consultas a agendas, catálogos,
dicionários, dentre outros.
Realizar analise fonológica de palavras, segmentando-as
oralmente em silabas.
Relacionar elementos sonoros (sílabas, fonemas, partes de
palavras) com sua representação escrita, observando a função
sonora que os fonemas assumem nas palavras.
Comparar palavras identificando semelhanças e diferenças
entre sons de sílabas iniciais, mediais e finais.
Identificar rimas, aliterações e assonâncias em textos orais.
Compreender que alterações na ordem escrita dos grafemas
provocam alterações na composição da palavra, fazendo
corresponder fonemas e grafemas (BRASIL, 2016, p. 232).

Importante considerar, como bem assinala o primeiro objetivo,


Toda a
que toda a aprendizagem do sistema de escrita deve ter uma função aprendizagem do
social. O conhecimento do alfabeto não é para apenas saber o nome sistema de escrita
das letras, mas compreender em que situações esse conhecimento é deve ter uma
necessário, ou seja, há uma aproximação entre esse eixo e as práticas função social.
de leitura de gêneros discursivos, como o dicionário, e nele o verbete, a
agenda, entre tantos outros.

Do mesmo modo, no eixo da produção escrita, levar o aluno a produzir textos


curtos, inicialmente, tendo o professor como escriba, para que compreenda, por
exemplo, o esquema narrativo em histórias; a rima no poema; as onomatopeias
em tirinhas ou história em quadrinhos; a função do título em vários gêneros;
o uso de legenda em fotos. Essas são algumas sugestões, mas cada professor
deve sempre considerar o grupo que está sob sua responsabilidade e partir de um
diagnóstico inicial, que deve ser retomado periodicamente para ver se os objetivos
de aprendizagem estão sendo alcançados.

No segundo ano, a mediação continua, mas a proposta deve ser: levar o


aluno a ter autonomia para chegar ao final do ciclo de alfabetização, ou seja, o
terceiro ano, lendo com autonomia e fluência e escrevendo com autoria.

Já no segundo ano, podem ser selecionados objetivos de aprendizagens


que visem aprimorar a compreensão sobre a organização do sistema de escrita
alfabética; ampliar os conhecimentos linguísticos; ler textos usando estratégias
de leitura e analisando os recursos que o autor usa ou que o gênero discursivo
requer. Tudo isso vai ser mobilizado nas atividades de escrita, que devem sempre
considerar as condições de produção do texto.

85
Desenvolvimento da linguagem escrita

Entretanto, vale lembrar, recorrendo a Geraldi (1997, p. 170-171),


A alfabetização
e o letramento que as crianças “para produzirem, precisam voltar-se para sua própria
estão em diálogo experiência (real ou imaginária) para dela falarem: buscam e inspiram-
constante, pois se nela para extrair daí o que dizer”. Mais uma vez se percebe que
se aprende a ler e a alfabetização e o letramento estão em diálogo constante, pois se
escrever para uma aprende a ler e escrever para uma finalidade. Não é à toa que, muitas
finalidade. vezes, na escola, escutou-se uma pergunta como esta: “por que eu
tenho que aprender isso?”. Ao ter claros os objetivos de aprendizagem,
o professor já informa ao aprendiz as razões pelas quais se lê e
A produção de escreve em nossa sociedade. Além disso, recorrendo ao mesmo autor,
texto não é uma é importante lembrar que a produção de texto não é uma atividade
atividade pontual, pontual, mas um processo de ensino e aprendizagem da língua.
mas um processo
de ensino e Acima, referimo-nos a estratégias de leitura. Talvez esse não
aprendizagem da seja um assunto de seu conhecimento, por isso, selecionamos algumas
língua.
informações que poderão ajudar você a compreender o que isso significa:

• Ler é uma atividade social.


• As características do texto e as finalidades de leitura nortearão a atividade
globalmente, ativando, na nossa memória, conhecimentos prévios
relevantes, que nos ajudarão a prever o que virá e a adotar estratégias de
leitura adequadas a tais propósitos.
• Usamos diferentes estratégias em diferentes situações.
• As estratégias são ações que buscam a melhor maneira de agir para
conseguir uma meta.
• São ensináveis.
• Para desenvolver estratégias “conscientes”, o processo é mediado pelo
professor, por meio de exercícios de linguagem orais e escritos, levando
os alunos à reflexão.
• As estratégias devem ser mobilizadas pelo professor antes, durante e
após a leitura.

As principais estratégias e capacidades de leitura são:

 Ativar conhecimentos prévios;


 Antecipar sentidos;
 Verificar antecipações;
 Decodificar;
 Localizar informações;
 Elaborar inferências;
 Comparar informações;
 Integrar informações;

86
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

 Generalizar (ordenar informações; extrair conclusões a partir de várias


informações do texto);
 Estabelecer relações intertextuais;
 Identificar tema do texto;
 Identificar ideia central;
 Monitorar compreensão de textos.

Lembre-se de que é preciso aprofundar o estudo, para isso,


sugerimos:

Leitura da entrevista “Para Isabel Solé, a leitura exige


motivação, objetivos claros e estratégias”, que você pode acessar
em https://goo.gl/mjV8Da.

Leitura da obra de Isabel Solé, Estratégias de Leitura, publicada


pela editora ArtMed.

Vídeo com a própria autora, Isabel Solé, que pode ser acessado
em https://www.youtube.com/watch?v=unmRNBizsvc.

Até aqui, fomos estabelecendo as relações entre a aprendizagem da leitura


e da escrita durante o processo de alfabetização. Também destacamos que existe
todo um planejamento para tal. Iniciamos com um exemplo da literatura infantil,
relacionando o que João, o personagem, aprendia na escola e como ele “via”
essas letras e palavras em seu cotidiano nos gêneros discursivos que o cercavam.

Isso também ocorre com as crianças que estão no processo de escrita.


Logo vão aprendendo qual a função do texto. No caso do nosso personagem da
obra “O menino que aprendeu a ver”, destacamos a aprendizagem e as práticas
referentes à leitura.

Agora, trazemos um texto colocado na porta do quarto de uma menina de sete


anos que “descobriu” que pode se comunicar com seus pais através da escrita. Leia-o
com atenção, pois refletiremos sobre ele nas atividades de estudo.

87
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 26 - Aviso colocado na porta do quarto de uma menina de 7 anos

Fonte: Acervo das autoras.

Atividades de Estudos:

1) Retorne ao texto da figura 26 e discuta os seguintes aspectos:

- Referente às práticas de leitura: Que gênero discursivo ela


produziu? Que conhecimentos ela já tem sobre esse gênero e
que ficaram explícitos em sua produção? O que ela tem a dizer?
Para quem ela se dirigiu em seu texto? De que forma organizou
seu texto?

- Referente ao processo de aprendizagem do sistema de escrita:


Que conhecimentos linguísticos podem ser identificados em seu
texto? Que aspectos ainda precisam ser trabalhados com essa
criança no seu processo de alfabetização?
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88
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

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2) No texto que segue, escrito por uma criança que já participava


de práticas de letramento em casa, no seu primeiro ano escolar,
podemos observar alguns dos aspectos pontuados até aqui.
Leia-o com atenção.

Figura 27 - Texto produzido por Daniel C. Zitzke na 1a série

Fonte: Acervo das autoras.

a) Esta atividade foi realizada em sala de aula. Daniel conta uma


história. É possível localizar elementos que mostrem que a
criança compreende o que é uma narrativa? Como podemos
relacionar isso com as suas experiências e vivências sobre ler e
escrever histórias?
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b) É bem possível que, na primeira leitura, você tenha se dirigido


às palavras que ele ainda não escreve ortograficamente. Mas
isso não impediu a sua compreensão do texto. Selecione essas
palavras e tente entender que estratégias a criança usou para
grafar as palavras, a fim de que o seu interlocutor (no caso
o professor) pudesse compreender o que ela escreveu. Que
proposta de intervenção poderia ser feita nesse caso?
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89
Desenvolvimento da linguagem escrita

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3) A sua função agora é analisar a proposta de produção textual


apresentada à criança a fim de responder os itens a seguir:

Figura 28 - Proposta de continuação de uma história

Fonte: Disponível em: <http://atividadespedagogicasnana.blogspot.


com.br/2011_06_01_archive.html>. Acesso em 18 jun. 2016.

90
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

a) identificar o objetivo da atividade:


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b) verificar que aspectos da prática de escrita são contemplados:


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c) apresentar sugestões de avaliação da proposta:


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Para encerrar essa nossa construção de conhecimento, lembrando mais uma


vez a aproximação entre a alfabetização e as práticas sociais de leitura e escrita,
convidamos você a ler um trecho de Bartolomeu Queirós que nos fala sobre o
papel do professor no processo de ingresso do aluno no mundo dos diferentes
letramentos. Leia e reflita:

Nas aulas de poesia, Dona Maria caprichava. Abria o caderno,


e não só lia os poemas, mas escrevia fundo em nossos
pensamentos as ideias mais eternas. Ninguém suspirava,
com medo da poesia ir embora: Olavo Bilac, Gabriela Mistral,
Alvarenga Peixoto e “Toc, toc, tamanquinhos”. Outras vezes
declamava poemas de um poeta chamado Anônimo. Ele
escrevia sobre tudo, mas a professora não falava de onde
vinha nem onde tinha nascido. E a poesia ficava mais
indecifrável (QUEIRÓS, 2004. p. 36).
Na escola, há um
Este texto relata as memórias do menino Bartolomeu. Ficou letramento que lhe
para ele, na lembrança, a relação entre ler e aprender a ler; escrever é peculiar, mas é
e aprender a escrever. O papel do professor, nesse processo, é muito importante que o
significativo. Portanto, a alfabetização deve aproximar-se das práticas de professor apresente
leitura e escrita, a fim de que a criança compreenda que há uma função ao aluno textos de
diferentes gêneros
social dos diferentes letramentos. Na escola, há um letramento que
discursivos e
lhe é peculiar, mas é importante que o professor apresente ao aluno campos.

91
Desenvolvimento da linguagem escrita

textos de diferentes gêneros discursivos e campos. Nesse exemplo de Bartolomeu,


a professora escolheu textos do campo da literatura e foi introduzindo diferentes
estilos de escrita de poemas. Pode-se afirmar, então, que houve um letramento
literário já no início da escolarização dele. Selecionar bons textos para leitura, é
também ensinar a ler.

Se for possível, faça você também as suas memórias de


aprendizagem de leitura e escrita e tente perceber em que medida
seus professores e professoras ajudaram você a se tornar leitor e
produtor de textos.

Letramentos: Sobre as Práticas que


Realizamos com o Texto Escrito e a
Partir Dele
Se olho demoradamente para uma palavra
descubro, dentro dela, outras tantas palavras.
Assim, cada palavra contém muitas leituras e
sentidos.
Bartolomeu Campos de Queirós.

Vamos prosseguindo nos estudos sobre as relações entre alfabetização e


letramento e, deste momento em diante, conversaremos e estudaremos mais
especificamente o que significa letramento, esta palavra nova que, há pouco,
passou a fazer parte de nossos dicionários.

Segundo o dicionário do Aurélio, letramento significa:

1 Conjunto de conhecimentos de escrita e leitura adquiridos na


Ler e escrever escola.
não é apenas (de)
codificar, mas
usar a leitura e a 2 Capacidade de ler e de escrever ou de interpretar o que se
escrita em vários escreve.
contextos, a fim
de interpretar, Percebe-se, portanto, a aproximação entre o conhecimento do
compreender e sistema de escrita e seu uso, pois o verbete traz o termo capacidade.
produzir sentidos. Ou seja, ler e escrever não é apenas (de)codificar, mas usar a leitura

92
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

e a escrita em vários contextos, a fim de interpretar, compreender e produzir


sentidos.

Em muitos países não existe a separação entre os termos letramento e


alfabetização, pelo menos no nome. Em inglês, por exemplo, se usa o termo
literacy, abarcando a alfabetização e o letramento. Na realidade, não nos interessa
muito esse ponto, mas os estudos que já foram realizados e que chegaram até o
Brasil para que se repensasse teoria e práticas.

Um dos grupos que nos influenciou é o dos Novos Estudos do Letramento é


Letramento (STREET, 2003; BARTON; HAMILTON, 2000) para o o conjunto de
qual o letramento é o conjunto de práticas sociais em que os sujeitos práticas sociais
estão inseridos e se apropriam delas para realizar as atividades de em que os sujeitos
comunicação. estão inseridos
e se apropriam
delas para realizar
Entretanto, se pensarmos bem, há muitas maneiras de
as atividades de
participarmos socialmente, mediados pelo texto escrito, por isso, comunicação.
adotamos o conceito de letramentos no plural, pois são práticas sociais
em que se

[...] integra outras linguagens que não apenas a linguagem


verbal através dos textos. Então, o sentido plural localiza essas
práticas na vida das pessoas, práticas que são realizadas com
finalidades para atingir os seus fins específicos de vida, e não
um conjunto de competências que estão armazenadas na
cabeça das pessoas (DIONÍSIO, 2007, p. 210).

Partindo dessa definição, podemos perceber que são letramentos plurais,


pois dizem respeito às diferentes atividades realizadas pelos sujeitos no uso de
textos, sejam eles escritos, sejam orais.

Refletindo Sobre os Usos da


Linguagem
Observe as imagens e textos que seguem e reflita: onde eles circulam; quem
os produziu e com que intenção; por que as pessoas se interessam por eles;
como as pessoas os leem.

93
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 29 – Textos diversificados

Fonte: Disponível em: <http://www.


Fonte: Disponível em: <http://goo.gl/ cage8.com/trends/br/apr-2014/receita.
TWSWPy>. Acesso em: 01 jul. 2016. html>. Acesso em: 01 jul. 2016.

Fonte: Disponível em: <http://brunakelly2012. Fonte: Disponível em: <http://


blogspot.com.br/2012/11/anuncio-publicitario. quemcoruja.com.br/aprendendo-ler-
html>. Acesso em: 01 jul. 2016. rotulos/>. Acesso em: 01 jul. 2016.

94
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Fonte: Disponível em: <http://turmadamonica.uol.com.br/tirinhas/>. Acesso em: 01 jul. 2016.

Retomando o conceito de Dionísio (2007, p. 210), após a reflexão sobre


esses textos e as formas como os lemos e usamos, podemos confirmar que os
letramentos são “práticas que são realizadas com finalidades para atingir os seus
fins específicos de vida”.

Portanto, ao ensinar a ler e escrever, estamos simultaneamente


Aprender a ler e
explicando aspectos sobre os suportes onde encontramos os textos, a escrever existe
os diferentes gêneros discursivos a que temos acesso conforme para podermos
a nossa necessidade; tanto quem escreve como quem lê o faz com participar de
uma intenção, ou seja, não há uma ação de ler por ler e escrever por diferentes práticas
escrever, como muitas vezes já vivenciamos na vida escolar. Aprender de letramento.
a ler e a escrever existe para podermos participar de diferentes práticas
de letramento.

Modelos de Letramento
Acima nos referimos a diferentes possibilidades de usos e atividades Há dois modelos:
de leitura e de escrita na escola. Isso nos leva a mobilizar o que Street o autônomo e
(2003) apresenta sobre os modelos de letramento. Você já ouviu falar o ideológico,
sobre esse assunto? entretanto, é
importante não
colocá-los um
Há dois modelos: o autônomo e o ideológico, entretanto, é
contra o outro, mas
importante não colocá-los um contra o outro, mas em um movimento em um movimento
o qual revela que, em alguns momentos, há mais a presença de um o qual revela
ou do outro e que pode haver diálogo entre eles. O objetivo aqui é que, em alguns
compreender para poder identificar as posturas que se adotam nas momentos, há mais
práticas pedagógicas. a presença de um
ou do outro e que
pode haver diálogo
O modelo autônomo de letramento foca nas habilidades técnicas,
entre eles.
ou seja, algo que pode ser ensinado e transmitido. Esse modelo supõe

95
Desenvolvimento da linguagem escrita

que as pessoas não possuem um conjunto de habilidades técnicas e estas


precisam ser transmitidas a elas. Nesse caso, o professor seria um depositante de
conhecimento, o que também remete à “teoria bancária” de Paulo Freire. “Funciona
com base na suposição de que em si mesmo o letramento – de forma autônoma –
terá efeitos sobre outras práticas sociais e cognitivas” (STREET, 2003, p. 4). Isso
leva à compreensão de que o letramento reside apenas na cabeça das pessoas
como um conjunto de habilidades a ser aprendido, e que não é preciso considerar
o sujeito nem o contexto onde ele vive. Sinaliza para uma compreensão de que
todos aprendem do mesmo jeito. Qual, então, é o papel do aluno nesse modelo?
Que tipos de atividades nos levam a perceber que quem sabe é o professor e
quem deve aprender é o aluno, independente do seu contexto cultural?

Por outro lado, o modelo ideológico defende que existem vários tipos de
letramento e que as práticas a ele relacionadas têm base social (STREET, 2003),
as palavras ganham significados nos contextos empregados e os estudantes se
envolvem com os textos com os quais trabalham. Nessa concepção, “o letramento
é uma prática de cunho social, e não meramente uma habilidade técnica e neutra”
(STREET, 2003, p. 4).

Assim, os letramentos, entendidos como práticas sociais e que, por isso, são
múltiplos, ocorrem nas diferentes agências de letramento, sendo a escola uma
delas, por meio de eventos, a fim de se chegar a práticas que permitam uma
melhor inserção em sociedade.

Ainda que na Ainda que na escola não seja possível colocar o aluno em uma
escola não seja situação semelhante como a em que leria o texto no cotidiano, é
possível colocar possível apresentar diferentes gêneros para que ele se familiarize
o aluno em com as distintas dimensões que constituem cada gênero discursivo
uma situação (composição do texto; recursos linguísticos e intencionalidades que
semelhante como a
levam à construção do sentido). Um exemplo disso é a porta de uma
em que leria o texto
no cotidiano, é sala de aula de crianças do segundo ano do ensino fundamental, como
possível apresentar se pode observar na imagem que segue:
diferentes gêneros
para que ele se
familiarize com as
distintas dimensões
que constituem
cada gênero
discursivo.

96
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Figura 30 - Porta sala de aula do segundo ano

Fonte: Acervo das autoras.

A porta se transformou em suporte para diversos gêneros aos quais as


crianças têm acesso, leem e conversam sobre isso. Estão na escola, que é uma
das mais importantes agências de letramento, participando de práticas sociais.
Recorrendo aos modelos, qual deles você identifica nessa situação?

A cena que descrevemos aqui, com a participação de crianças lendo textos,


embora somente tenhamos apresentado a porta, remete-nos a um evento de
letramento. E é sobre isso que estudaremos a seguir.

Práticas e Eventos de Letramento


Ao estudarmos a teoria dos letramentos, é importante considerarmos dois
componentes: eventos e práticas de letramento.

Abaixo, apresentamos a imagem de um iceberg e a ele podemos associar


esse dois termos:

97
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 31 - Metáfora do iceberg para as práticas e eventos de letramento

Fonte: Disponível em: <http://www.mtmlinguasoft.com/why-would-you-need-


a-pre-translation-cultural-assessment/>. Acesso em: 20 jun. 2016.

Os eventos de letramento (HAMILTON, 2000) são apenas a


Os eventos são
situações visíveis ponta do iceberg, ou seja, aquilo que conseguimos ver. Isso leva a
em que o texto compreender que os eventos são situações visíveis em que o texto
escrito é central escrito é central para que haja construção de sentido sobre o que se lê,
para que haja escreve e oraliza. Além disso, parte das interações entre os participantes
construção de da situação e dos processos de interpretação (KLEIMAN, 1995).
sentido sobre o que Imagine, então, várias crianças lendo os textos que estão afixados
se lê, escreve e
na porta da sala de aula (figura 30). Quais seriam suas reações? Que
oraliza.
sentidos atribuiriam ao que leem? Que conversas surgiriam?

Os eventos de letramento constituem usos específicos do letramento como


os que você analisou nos cinco textos que apresentamos anteriormente. Por
exemplo, a leitura de uma capa de jornal é distinta da de uma tabela nutricional
em um rótulo, mas em ambas conseguiríamos fotografar a cena de leitura.

Por isso, para Barton e Hamilton (2000, p. 8, tradução nossa), os eventos são
“atividades em que o letramento cumpre um papel”. Mais que isso, “são episódios
observáveis que surgem das práticas e são formados por estas. A noção de
eventos acentua a natureza situacional do letramento uma vez que este sempre
existe em um contexto social” (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 8, tradução nossa).

Os eventos de letramento ocorrem em espaços sociais ou instituições


situadas em um tempo, em uma cultura e onde podemos aprender a ler e a

98
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

escrever, denominados agências de letramento. A partir dessa ideia, temos a


escola, a família, a igreja, por exemplo, como agências de letramento. Dentro
das agências, há pessoas que ajudarão na aprendizagem da leitura e da escrita,
mediarão a aquisição de competências para uso dos textos nos diferentes
espaços. Essas pessoas são os agentes de letramento, como se observa na cena
capturada de uma sala de aula:

Figura 32 - Cena de sala de aula em que se podem observar


os elementos do evento de letramento

São situações
não visíveis e
Fonte: Disponível em: <http://www.acrilex.com.br/educadores. envolvem valores,
asp?conteudo=197&visivel=sim&mes=58>. Acesso em: 18 jun. 2016. crenças, sentidos,
podendo, por isso,
As práticas de letramento contemplam um conceito mais amplo, serem variáveis
pois abrangem uma natureza social e cultural (STREET, 2003). Pode- de acordo com o
se dizer que os eventos de letramento estão comportados dentro contexto, a cultura
e os participantes
das práticas.
envolvidos.

São situações não visíveis e envolvem valores, crenças, sentidos,


podendo, por isso, serem variáveis de acordo com o contexto, a Eventos e
cultura e os participantes envolvidos. Barton e Hamilton (2000, p. 7, práticas não
tradução nossa) afirmam que “as práticas de letramento são as formas estão separados,
eles possuem
culturais generalizadas de uso da língua escrita, nas quais as pessoas
amplitudes
encontram inspiração para sua vida. No sentido mais simples, as diferentes e se
práticas de letramento são o que as pessoas fazem com o letramento”. complementam.
Enquanto estas
Eventos e práticas não estão separados, eles possuem amplitudes nos dão uma noção
diferentes e se complementam. Enquanto estas nos dão uma noção dos sentidos,
dos sentidos, aqueles se limitam a uma descrição da situação. Por aqueles se limitam
a uma descrição da
exemplo, retomando a cena da figura 32, pode-se observar que os
situação.

99
Desenvolvimento da linguagem escrita

alunos participam do momento da aula, interagem com a professora, estão com


seus materiais abertos, são agentes desse processo. Qual o sentido de aula para
eles? Esse sentido foi construído ao longo das participações em vários eventos
de letramento como o da cena, o que leva os alunos a terem uma crença sobre
a escola, sobre aprendizagem e também a ter valores que se revelam em suas
ações como a de interagir, participar, fazer suas atividades e se relacionar com os
demais interlocutores da sala de aula.

Para compreender melhor as diferenças entre um e outro, apresentamos um


quadro, elaborado por Oliveira (2008) a partir dos estudos de Hamilton (2000):

Quadro 1 - Elementos básicos de eventos e práticas de letramento

Elementos visíveis nos eventos de letramento Constituintes não-visíveis das práticas


Participantes ocultos: outras pessoas ou grupos
de pessoas envolvidas em relações sociais
Participantes: pessoas que podem ser vistas
de produção, interpretação, circulação e, de
interagindo com textos escritos.
um modo particular, na regulação de textos
escritos.
O domínio de práticas dentro das quais o
Ambientes: circunstâncias físicas imediatas nas
evento acontece, considerando seu sentido e
quais a interação se dá.
propósito sociais.
Todos os outros recursos trazidos para a prática
Artefatos: ferramentas materiais e acessórios de letramento, incluindo valores não-materiais,
envolvidos na interação. compreensões, modos de pensar, sentimentos,
habilidades e conhecimentos.
Rotinas estruturadas e trajetos que facilitam ou
Atividades: as ações realizadas pelos participan-
regulam ações; regras de apropriação e elegibi-
tes no evento de letramento.
lidade – quem pode ou não pode engajar-se em
atividades particulares.
Fonte: Oliveira (2008, p. 103).

Conforme Barton e Hamilton (2000), muitos eventos de letramento


são situações regulares, repetidas em nossas vidas, ligadas às
instituições sociais que frequentamos, como o local de trabalho, a
Eventos de
família e a escola e, por isso, o estudo dos eventos de letramento pode
letramento
ser considerado, de acordo com os autores, um início para se pesquisar
são situações
regulares, repetidas o letramento.
em nossas
vidas, ligadas às Também Soares (2003, p. 105) descreve que analisar os eventos
instituições sociais de letramento orienta o pesquisador para “a observação de situações
que frequentamos. que envolvem a língua escrita e para a identificação das características

100
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

dessas situações”. Tudo isso aponta para o caráter etnográfico que os estudos
do letramento requerem. Saiba mais sobre isso com a explicação de Marli André
(1999, p. 36, grifos nossos):

O interesse dos educadores pela etnografia fica muito evidente


no final dos anos 70 e tem como centro de preocupação o
estudo da sala de aula e a avaliação curricular. Para tentar
analisar e compreender o que se passa no dia-a-dia escolar
temos tido que recorrer frequentemente a diferentes campos
do conhecimento como a psicologia, a sociologia, a pedagogia
e a etnografia.

A pesquisa de viés etnográfico possibilita uma melhor compreensão do


contexto em que os sujeitos estão inseridos, além de proporcionar maior abertura
para a observação de questões-problema que estão em foco na pesquisa, bem
como acesso às pessoas, podendo, assim, realizar questionamentos mais efetivos
e, se preciso for, buscar novos sujeitos para contribuir com o trabalho, que pode
ter uma perspectiva mais flexível, uma vez que é o próprio pesquisador uma das
fontes de geração de dados.

Atividade de Estudos:

1) A fim de compreender essa relação entre a etnografia, as práticas


e os eventos de letramentos, apresentamos algumas cenas.
Observe-as com atenção e depois preencha o quadro que segue
com os elementos visíveis do evento de letramento:

Figura 33 - CENA 1 Figura 34 - CENA 2

Fonte: Disponível em: <http:// Fonte: Disponível em: <http://www.


www.feuc.br/revista/wp-content/ ocarpinteiro.com.br/artigos/item/188-3-
uploads/2014/02/DSC_0404. regras-fundamentais-para-os-leitores-
jpg>. Acesso em: 03 jul. 2016. da-missa>. Acesso em: 03 jul. 2016.

101
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 35 - CENA 3

Fonte: Disponível em: <http://mdemulher.


abril.com.br/dieta/viva-mais/acerte-nas-
compras-do-mercado-e-seque-4-kg-
por-mês>. Acesso em: 03 jul. 2016.

CENA PARTICIPANTES AMBIENTE ARTEFATO(S) ATIVIDADE(S)

Diante do que foi estudado até aqui, podemos retomar os objetivos


apresentados no início do capítulo e ratificar que a aprendizagem da linguagem
escrita precisa abarcar os fatores socioculturais, pois o que se faz com a leitura
e a escrita são ações para a inserção e participação em diferentes eventos de
letramento. Por isso, o ensino deve considerar mais do que os pequenos pedaços
de que são formadas as palavras (fonemas, letras, sílabas), precisa mobilizar
metodologias que levem a criança a entender a função social da leitura e da
escrita. Por causa disso, apresentaremos a proposta de projetos de letramento.

102
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Projetos de Letramento
Há muitas maneiras de alfabetizar uma criança, considerando, especialmente,
os dois modelos de letramento já apresentados. Se adotarmos a perspectiva de
que a criança é um ser de cultura, iremos também levar em conta o que ela já
sabe, sua história e seu contexto social. Diante disso, podemos afirmar que as
práticas escolares são também práticas de letramento, mesmo que sejam
consideradas tradicionais.

Diante dessa compreensão de letramento e das relações com o processo


escolar de aprendizagem da leitura e da escrita, uma das possibilidades de
trabalho que se apresenta é a que se insere em projetos de letramento. Mas o
que significa isso diante de tantas metodologias? Para compreender, recorremos
à autora que iniciou, no Brasil, os Novos Estudos do Letramento, Ângela Kleiman
(2008). Um projeto de letramento se constitui como:

[...] um conjunto de atividades que se origina Um conjunto de


de um interesse real na vida dos alunos e cuja atividades que
realização envolve o uso da escrita, isto é, a leitura
se origina de um
de textos que, de fato, circulam na sociedade e a
produção de textos que serão realmente lidos, em interesse real na
um trabalho coletivo de alunos e professor, cada vida dos alunos
um segundo sua capacidade (KLEIMAN 2008, p. e cuja realização
238). envolve o uso da
Independentemente do tema ou do objetivo do escrita.
projeto, ele é adequado na medida de seu potencial
para mobilizar conhecimentos, experiências,
capacidades, estratégias, recursos, materiais e tecnologias
em situações concretas de uso da língua escrita de interesse
do aluno (KLEIMAN, 2008, p. 509).

Muitas informações, não é mesmo? Mas vamos pinçar os aspectos principais


que caracterizam um projeto de letramento, que é diferente de um projeto didático,
pois este não visa necessariamente às práticas de leitura e de escrita.

PROJETO DIDÁTICO

O que é: Conjunto de ações para a elaboração de um produto final


que tenha uso pela comunidade escolar. Uma de suas características é
envolver a turma em todas as etapas do planejamento.

Objetivo: Reunir conteúdos abrangentes, atingindo propósitos


didáticos e sociais. Um projeto de leitura e escrita, por exemplo, em
que os estudantes fazem um livro de receitas, ensina a ler e escrever

103
Desenvolvimento da linguagem escrita

e trabalha com valores nutricionais. Pode ter como meta mostrar à


comunidade como aproveitar as frutas regionais.

Organização: Prever os momentos de planejamento e


de discussão em grupo e os de trabalhos individuais. Colocar
justificativas, aprendizagens desejadas, etapas do desenvolvimento,
produção, maneiras de divulgar o produto final, duração e avaliação
final.

Como usar: A duração é variada, mas sempre ocupa dois


meses ou mais. Por isso, o ideal é propor um ou dois por ano para
cada turma. Desenvolve-se o conjunto das atividades do projeto sem
abandonar as atividades permanentes e as sequências didáticas.
(NOVA ESCOLA)

Portanto, para se caracterizar como um projeto de letramento é preciso:

• Haver um conjunto de atividades que surjam do interesse real dos alunos;

• envolver o uso da escrita e da leitura de textos reais que circulem entre os


alunos;

• usar a linguagem escrita para atingir uma determinada finalidade;

• desenvolver um trabalho coletivo entre alunos e professor(es) (pode


envolver mais de uma disciplina);

• mobilizar conhecimentos, capacidades e experiências dos alunos;

• considerar uma situação concreta de uso da língua escrita;

• ser do interesse do aluno.

Diante dessas características, podemos perceber que não é difícil


Basta que o
professor esteja desenvolver um projeto de letramento, basta que o professor esteja
atento: ao atento: ao que ocorre na comunidade em que o aluno vive; como os
que ocorre na textos circulam nela e que conhecimentos podem ser ampliados
comunidade em ou construídos a partir da participação em diferentes eventos de
que o aluno vive. letramento.

104
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Atividades de Estudos:

1) Para ajudar nessa reflexão, tente responder às questões que


seguem, considerando um grupo real de crianças:

Onde vivem e que material escrito circula:


Na comunidade toda:_________________________________
Na família: _________________________________________
Na igreja: __________________________________________
E a escola?
Que tipo de material possui?
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Desse material o que é selecionado para o trabalho com as


crianças?
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Como o trabalho com a cultura escrita é feito com as crianças?


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Como se dá a relação com as outras agências de letramento?


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Ao responder a essas questões, o professor está considerando a cultura local


e poderá, assim, organizar ações com a linguagem escrita para, por exemplo,
resolver problemas que existam em sua comunidade ou mesmo para responder a
questões sobre curiosidades que as crianças trazem.

105
Desenvolvimento da linguagem escrita

Um dos exemplos de projeto de letramento foi analisado por Jociane Stolf


(2010) em sua dissertação “Práticas sociais de leitura e escrita no primeiro ano
do ensino fundamental: um estudo de caso”. As crianças do primeiro ano tinham
muita curiosidade sobre animais e resolveram fazer um projeto, a fim de responder
às seguintes questões levantadas pela turma:

• Qual a origem do cachorro?


• Como ele é por dentro?
• Quais as pelagens que existem?
• Qual o órgão mais apurado?
• Quais as raças; nomes de cachorros?
• Quanto vive, em média, o cachorro?
• Qual é a alimentação ideal?
• Qual o cachorro mais perigoso?
• Qual é o mais dócil?
• Quanto leva o período de gestação?
• Qual é o cachorro mais esperto?
• Onde vivem?
• Como e por que latem?
• Quais os cachorros caçadores?
• Qual o cachorro maior?
• Qual é o menor?
• Como fica o cachorro quando fica bravo?

Para responder às questões, as crianças mobilizaram textos do eixo da


leitura, da oralidade e da escrita. Produziram, ao longo do projeto, pesquisa,
diversos gêneros, entre eles cartazes, capa de livro, infográfico, relato de passeio,
texto científico; leram livros e revistas, resolveram problemas; assistiram a vídeos;
ouviram música; fizeram maquetes; realizaram passeios de estudo e, por fim,
organizaram todas as suas produções em um único material que apresentou as
respostas às questões que os motivaram a realizar tantas ações com a linguagem.

Para exemplificar, apresentamos dois dos textos produzidos ao longo do


projeto de letramento por um dos alunos:

106
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

Figura 36 - Texto de pesquisa para responder à questão "qual a origem do cachorro"?

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 37 - Texto produzido para responder à pergunta: “qual é a alimentação ideal”?

Fonte: Acervo das autoras.

Se recuperarmos as características do projeto de letramento, podemos


perceber que as crianças participaram de um, pois realizaram um conjunto de
atividades que surgiram do seu interesse real e, para responder às suas questões,
fizeram o uso da escrita e da leitura de textos reais. Além de aprenderem a ler
e escrever, também usaram a linguagem escrita para atingir uma determinada
finalidade e produzir conhecimento. Houve, além disso, um trabalho coletivo
entre alunos e professor, envolvendo mais de uma disciplina. Foram vários
os conhecimentos, capacidades e experiências mobilizados pelos alunos que
discutiram, estudaram e produziram sobre um tema de seu interesse.

107
Desenvolvimento da linguagem escrita

Para saber mais sobre projetos de letramento, sugerimos a


leitura de Projetos de letramento e formação de professores de
língua materna, obra organizada por OLIVEIRA, M. S.; TINOCO, G.
A.; SANTOS, I. B. A. e publicada pela EDUFRN em 2011. Você pode
acessar este livro em pdf no seguinte link: <http://www.repositorio.
ufrn.br:8080/jspui/bitstream/1/11787/1/E-book%20Projetos%20
de%20letramento.pdf>.

Algumas Considerações
Neste capítulo, propomo-nos a estudar a linguagem escrita como uma prática
social, a fim de compreendermos os fatores socioculturais que são necessários
para a sua aprendizagem. Alfabetizar, portanto, não é apenas a ação de ensinar
as letras e as sílabas, como o fazia a professora da obra “O menino que aprendeu
a ver”, que abriu este capítulo. É preciso ensinar onde estão as letras, as palavras,
os textos que apresentamos aos pequenos para que se insiram na cultura letrada.

Alfabetizar tem suas especificidades, como vimos na primeira


Alfabetizar, em uma
perspectiva social, parte deste capítulo, por isso, é preciso que o professor tenha o
é desenvolver conhecimento necessário sobre a organização do sistema de escrita
capacidades alfabética; sobre os fatores que antecedem a aprendizagem da leitura,
e habilidades como a consciência fonêmica; sobre o planejamento das aulas para
considerando cada que a criança, ao mesmo tempo em que aprende a ler e a escrever,
criança como um atribua sentido ao que faz com a leitura e a escrita. Portanto, alfabetizar
ser de cultura que
não é um ato mecânico nem depende apenas de um ou outro método.
vive em uma certa
comunidade na Alfabetizar, em uma perspectiva social, é desenvolver capacidades e
qual a leitura e a habilidades considerando cada criança como um ser de cultura que
escrita também se vive em uma certa comunidade na qual a leitura e a escrita também se
fazem presentes. fazem presentes.

Por fim, queremos recuperar os vários momentos em que você foi convidado
a refletir sobre as formas como as crianças escrevem, sobre as atividades que
podem ser apresentadas às crianças e, sobremaneira, sobre os eventos e práticas
de letramento para os quais apresentamos cenas observáveis. Desejamos
que você, depois dessa carga teórica e reflexiva, seja capaz de repensar a
aprendizagem da leitura e da escrita como um processo maior, e que isso se
reflita em sua prática docente.

108
Fatores Socioculturais no Processo
Capítulo 3 de Aquisição da Linguagem Escrita

A aprendizagem não para por aqui, por isso, deixamos várias sugestões de
leitura. Nosso processo de aprendizagem é parecido com o das crianças quando
nos sentimos curiosos e cheios de desejo de saber um pouco mais sobre essa
invenção que revolucionou o mundo: a escrita.

Referências
ANDRÉ, M. de. Etnografia da prática escolar. 3. ed. São Paulo: Papirus, 1999.

AULETE, C. Dicionário da língua portuguesa. Disponível em: <http://www.


aulete.com.br/alfabetizar>. Acesso em: 20 jun. 2016.

AURÉLIO. Dicionário. Disponível em: <https://dicionariodoaurelio.com/


letramento>. Acesso em: 18 jun. 2016.

BARTON, D.; HAMILTON, M. La literacidad entendida como práctica social. In:


ZAVALA, V.;

NIÑO-MURCIA, Mercedes; AMES, P. Escritura y sociedad. Nuevas


perspectivas teóricas y etnográficas. Lima: Red para el desarrollo de las
Ciencias Sociales en el Perú, 2000. p. 109-139.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: segunda versão. Brasília: 2016.

DIONÍSIO, M. de L. Literacias em contexto de intervenção pedagógica: um


exemplo sustentado nos Novos Estudos de Literacia. Revista Educação UFSM.
n. 1, v. 32, 2007.

GERALDI, J. W. (Org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1997.

HAMILTON, M. Expanding the new literacy studies: using photographs to


explore literacy as social practice. In: BARTON, D., HAMILTON, M., IVANIC, R.
(Org.). Situated literacies: reading and writing in context. Londres e Nova York:
Routledge, 2000. p. 16-34.

KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a


prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

______. Os estudos de letramento e a formação do professor de língua materna.


Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 8, n. 3, p. 487-517, set./dez. 2008.

109
Desenvolvimento da linguagem escrita

NOVA Escola. Escrita profissional: a importância dos registros feitos pelos


professores. Disponível em: <http://novaescola.org.br/formacao/escrita-
profissional-427279.shtml>. Acesso em: 20 jun. 2016.

OLIVEIRA, M. S.. Projetos: uma prática de letramentos no cotidiano do professor


de língua materna. In: OLIVEIRA, M. S.; KLEIMAN, A. B. (Org.). Letramentos
Múltiplos: agentes, práticas, representações. Natal, RN: EDUFRN, 2008.

QUEIRÓS, B. C. de. Ler, escrever e fazer conta de cabeça. São Paulo: Global,
2004.

ROCHA, R. O menino que aprendeu a ver. 2.ed. São Paulo: Quinteto Editorial,
1998.

SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Poços de Caldas:


ANPEd, 2003.

SOLÉ, I. Estratégias de Leitura. Trad. Claudia Schilling. 6. ed. Porto Alegre:


ArtMed, 1998.

STREET, B. V. Abordagens alternativas ao letramento e desenvolvimento.


2003. Paper (entregue após a Teleconferência UNESCO Brasil sobre letramento
e diversidade). Brasil. 2003.

STOLF, J. Práticas sociais de leitura e escrita no primeiro ano do ensino


fundamental: um estudo de caso. FURB, 2010.

110
C APÍTULO 4
Dificuldades na Linguagem Escrita
Quando uma criança escreve tal como acredita
que poderia ou deveria escrever certo conjunto
de palavras, está oferecendo um valiosíssimo
documento que necessita ser interpretado para ser
avaliado. Aprender a lê-las, interpretá-las é um longo
aprendizado que requer uma atitude teórica definida.
Emília Ferreiro.

Nesse capítulo iremos estudar a fim de atingir os seguintes objetivos:

99 Identificar os elementos principais que podem causar dificuldades na


aprendizagem da linguagem escrita.

99 Explicar as relações entre a fala e a escrita.

99 Conhecer as prováveis causas de erros ortográficos e das dificuldades na


aprendizagem da ortografia da língua.

99 Apresentar critérios de avaliação, considerando o processo de aprendizagem


da escrita e suas implicações.

99 Examinar as dificuldades encontradas na aprendizagem da escrita, propondo


soluções e intervenções.

99 Distinguir tipos de erros ortográficos, analisando suas causas.

99 Desenvolver critérios de avaliação, conforme os estágios de aprendizagem da


escrita.
Desenvolvimento da linguagem escrita

112
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

Contextualização
Um dos pressupostos da aprendizagem da escrita é: não se escreve como se
fala. Até a criança compreender as relações entre fala e escrita, há um tempo. Isso
porque nosso sistema de escrita alfabética não é transparente para a codificação,
pois há muitas relações entre fonemas e grafemas que dependem do contexto
ou precisam ser memorizadas. No capítulo 2, linguagem escrita e consciência
fonológica, você pode compreender uma série de relações de fenômenos
linguísticos que estão relacionados à alfabetização como a consciência fonológica
e sua influência na alfabetização, bem como as relações acerca de fonemas e
sílabas. Agora, é hora de ampliar esses conhecimentos.

No início do processo de alfabetização, as crianças tendem a escrever


representando os fonemas sem observar as relações e as restrições que
as representações gráficas exigem. Como levar a criança a compreender a
organização dos princípios do sistema alfabético do português do Brasil? Como
construir os conhecimentos ortográficos partindo da produção dos alunos? Que
conhecimentos teóricos um professor competente precisa ter?

Estas três perguntas são fundamentais para guiar a organização desse


capítulo que visa fundamentar teoricamente a prática do professor para que
ele possa responder às perguntas em momentos distintos da aula, bem como
possa organizar um diagnóstico de escrita de seus alunos. Ainda que haja um
planejamento, a curiosidade do aluno é que move a aprendizagem e, para isso, o
professor precisa ter claros quais aspectos devem ser abordados quando se fala
em escrever ortograficamente.

Vamos, então, iniciar nossos estudos sobre o sistema de escrita. Organizamos


este capítulo em quatro aspectos que serão retomados um em relação ao outro:
elementos que podem ocasionar dificuldades na aprendizagem da linguagem
escrita; a relação entre fala e escrita; o aprendizado da ortografia - reflexões sobre
o erro ortográfico; a avaliação na linguagem escrita.

Preparado(a)? Então, vamos em frente!

Aprendizagem da Linguagem Escrita:


Facilidades e Dificuldades
Antes de falarmos se aprender é fácil ou difícil, precisamos recordar alguns
pontos teóricos importantes para que se perceba que a aprendizagem da escrita
é um processo. No capítulo 1 e no 3, referimo-nos à história da escrita e, neste,

113
Desenvolvimento da linguagem escrita

queremos relembrar que a escrita é uma invenção. Para tal, buscaremos uma
parte de nossa tese para dividir com você, pós-graduado (a). Se desejar saber
mais consulte Heinig (2003).

Falar em aprendizagem requer que se faça uma distinção entre ela e


aquisição. Esta acontece de forma espontânea (PELANDRÉ, 2002; SCLIAR-
CABRAL, 2001; 2003), uma vez que o ser humano normal é biopsicologicamente
programado para operar com signos verbais, especialmente os orais, imperativo
para sua sobrevivência, devido à maneira como o sistema nervoso central está
estruturado e funciona. Mas há, ainda, os fatores maturacional e ambiental que
se agregam ao inato, a fim de que haja a aquisição da linguagem. Assim, é preciso
levar em conta também que os circuitos que ligam os diversos centros do sistema
nervoso central não nascem prontos: é necessário que os prolongamentos dos
neurônios passem pelo processo de mielinização para que sejam estabelecidas
as ligações de maneira adequada e no devido tempo. O fator ambiental tem suma
importância, pois “os programas inatos para o desenvolvimento da linguagem
verbal oral e sua maturação precisam ser ativados pela interação verbal” (SCLIAR-
CABRAL, 2001, p. 5).

Portanto, a aquisição da linguagem ocorre naturalmente, levando-se


em conta os fatores mencionados e, mesmo que não haja uma assistência
consciente no desenvolvimento da linguagem oral, a criança normal, exposta à
interação, a adquire.

Entretanto, ler e escrever não ocorrem nessa mesma direção, pois


exigem um ensino sistemático. Scliar-Cabral (2003a, p. 41) aponta como
fatores para a aprendizagem da leitura e da escrita: “condições reais para
que as crianças se tornem motivadas, experiência funcional prévia com material
impresso, exposição a contextos narrativos e um contexto ensino-aprendizagem
inteligente, onde professores e alunos em conjunto possam construir o letramento”.

Outro aspecto imprescindível para que ocorra a aprendizagem do sistema


escrito é a consciência fonológica (já estudado no capítulo 2). Esta diz respeito
“à capacidade de discriminar, compreender e reflectir [sic.] sobre o facto de as
palavras serem constituídas por uma série de sons” (PINTO, 1998, p. 43). A autora
advoga que o contato da criança desde a pré-escola com a poesia está associado
a um melhor desempenho, posteriormente, na leitura. Scliar-Cabral (2002, p.
155) afirma que “o exercício da consciência fonológica pressupõe, no mínimo,
processos atencionais, ou, com mais precisão, a intencionalidade para exercê-la e
o domínio de uma linguagem para o recorte consciente da cadeia da fala. Quanto
às unidades que são objetos do recorte, ele está na dependência direta de como
uma dada língua escrita representa tais unidades”. Esta autora, quanto à relação
entre a aquisição da consciência fonológica e a aprendizagem da leitura, advoga
que há uma relação de reciprocidade entre esses dois aspectos.

114
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

No processo de aprendizagem do sistema escrito, ainda devem


ser levadas em conta as consciências sintática e semântica, bem como as
convenções específicas desse sistema. Inicialmente, há que se considerar
também a questão motora. Kato (1995, p. 129) apresenta a seguinte situação:
perguntado a uma criança o que era mais difícil, ler ou escrever, ela responde
que escrever, pois cansa os dedos. A resposta do aprendiz aponta para a sua
dificuldade motora e essa constatação faz emergir um questionamento que nem
sempre é feito no espaço escolar: a ênfase nesta dificuldade não teria como causa
o excesso de exercícios de natureza mecânica na escola?

Outro dado que precisa ser levado em consideração, atualmente, no ensino


da língua portuguesa, é a explosão científica e tecnológica, pois teve repercussão
sobre o léxico e os universos cognitivos, promovendo a especialização. Scliar-
Cabral (2001) afirma que as consequências pedagógicas dessa explosão são em
grande número para o ensino da língua portuguesa, especialmente se for levado
em conta que a função da escola é, sobremaneira, ensinar a ler e escrever. A
leitura deve ter como objetivo a compreensão e interpretação de textos e a escrita,
a produção de textos que possam ser compreendidos e interpretados pelo leitor.
Entretanto, “a criação de universos do discurso especializados, com a respectiva
explosão lexical e semântica, torna impenetráveis os textos exatamente porque
o leitor não dispõe dos respectivos esquemas” (SCLIAR-CABRAL, 2001, p. 31).
Diante da especialização, urge que as disciplinas sejam pensadas de forma
interdisciplinar, a fim de que haja ampliação e aprofundamento dos esquemas
cognitivos, o que favorecerá a compreensão de textos.

Aprender a ler e escrever, independente do sistema de


Aprender a
escrita, implica uma multiplicidade de aquisições. Quanto à ler e escrever,
leitura (CASTRO; GOMES, 2000), para ser um leitor fluente, pelo independente do
menos duas aquisições se fazem necessárias: o reconhecimento dos sistema de escrita,
sinais gráficos e o conhecimento prévio de como os sinais gráficos se implica uma
organizam no papel. multiplicidade de
aquisições.
Já Lemle (2001) apresenta cinco capacidades necessárias
para a alfabetização: a ideia de símbolo; a discriminação das formas; Cinco capacidades
a discriminação dos sons da fala; consciência da unidade palavra e a necessárias para
organização da página escrita. Apresentamos, a seguir, uma síntese e a alfabetização: a
complementação do texto de Lemle (2001) produzida por nós, autoras. ideia de símbolo;
a discriminação
das formas; a
discriminação
a) A ideia de símbolo: “a ideia de símbolo é complicada. Uma dos sons da fala;
coisa é símbolo de outra sem que nenhuma característica consciência da
sua seja semelhante a qualquer coisa simbolizada”. Ex. de unidade palavra e
símbolos: sinais, placas, dedos, bandeira, etc. “Uma criança a organização da
que ainda não consiga compreender o que seja uma relação página escrita.

115
Desenvolvimento da linguagem escrita

simbólica entre dois objetos não conseguirá aprender a ler”. Observe na


figura 38 que há vários símbolos: cores, sinais, letras, desenhos. Analise
como você faz a leitura de cada um deles e que conhecimentos são
necessários. Quais são lidos apenas por pessoas alfabetizadas? Por que
isso ocorre?
Figura 38 - Símbolos

Fonte: Disponível em: <http://www.betuseal.com.br/conheca-principais-


placas-sinalizacao-transito/>. Acesso em: 10 jul. 2016.

b) A discriminação das formas: “As letras, para quem ainda não se


alfabetizou, são risquinhos pretos na página branca. O aprendiz precisa
ser capaz de entender que cada um daqueles risquinhos vale como
símbolo de um som da fala. As letras do nosso alfabeto têm formas
bastante semelhantes, e, por isso, a capacidade de distingui-las exige
refinamento de percepção”. Observe estas xícaras:

Figura 39 - Xícaras

Fonte: As autoras.

Essa é uma das Independentemente da posição que estejam, são sempre


dificuldades das reconhecidas como xícaras, ou seja, são vistas como um inteiro.
crianças: a rotação Entretanto, isso não ocorre com as letras. Partindo das alças das
dos traços, pois xícaras (um semicírculo) e acrescentando uma reta temos as seguintes
as letras não são letras: q, b, p, d. Essa é uma das dificuldades das crianças: a rotação
inteiros. dos traços, pois as letras não são inteiros.

Para compreender isso melhor, pegue, por exemplo, 4 palitos de picolé


e forme essa letras maiúsculas: V, M, N, Z, X. Você vai perceber que são

116
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

combinações de traços em diferentes direções. Isso ajuda a explicar a escrita


espelhada das crianças no início do processo da alfabetização: elas olham para
as letras como um inteiro, ou seja, como um desejo e você deverá ajudá-las a
compreender que são traços que se organizam em diferente direções e posições.

c) A discriminação dos sons da fala: o aprendiz precisa ter consciência da


percepção auditiva. É preciso saber ouvir diferenças: pé/fé (consoante
inicial com modo de articulação distinto); toca/doca (surdo e sonoro); vim/
vi (nasalidade/oralidade).

Observe estas duas imagens e escreva abaixo delas os seus nomes,


observando que diferenças existem na escrita e, sobretudo, na pronúncia:

Figura 40 – Vaca Figura 41 – Faca

Fonte: Disponível em: <http://a-casa.colorir.com/a-


cozinha/uma-faca.html>. Acesso em: 10 jul. 2016.

Fonte: Disponível em: <https://


pixabay.com/pt/vaca-desenhos-
animados-engra%C3%A7ado-30710>.
Acesso em: 10 jul. 2016.

Essas três capacidades “[...] são as partes componentes da capacidade de


fazer uma ligação simbólica entre sons da fala e letras do alfabeto”. A 1ª “é a
capacidade de compreender a ligação simbólica entre letras e sons da fala”. A
2ª “é a capacidade de enxergar as distinções entre letras”. A 3ª “é capacidade
de ouvir e ter consciência dos sons da fala, com suas distinções relevantes na
língua”. (LEMLE, 1990.p. 9-10).

d) Consciência da unidade palavra: “o importante, na ideia da unidade


palavra, é que ela é o cerne da relação simbólica essencial contida numa
mensagem linguística: a relação entre conceitos e sequências de sons da
fala. Temos, portanto, na escrita, duas camadas sobrepostas de relação
simbólica: uma relação entre a forma da unidade palavra e seu sentido e
a sequência de letras que transcrevem a palavra”.

117
Desenvolvimento da linguagem escrita

• O tipo de dificuldade na depreensão de unidades vocabulares (umavez,


nonavio, minhavó)  falta de separação onde existe uma fronteira
vocabular.

• A alocação errada de fronteiras vocabulares: ( minha miga, em vez de


minha amiga ou o niverso, em vez de o universo.).

• O alfabetizando também deve reconhecer sentenças, representadas por


letra maiúscula para indicar o início e o ponto, o término. Mas isso não
precisa acontecer logo no início, “pois o aprendiz pode aprender a tomar
consciência dessa unidade no decorrer de suas primeiras leituras”.

A organização da página escrita: desde o início do trabalho de


alfabetização, deve ficar estabelecida a compreensão da organização espacial
da página: “a ideia de que a ordem significativa das letras é da esquerda para
a direita na linha, e que a ordem significativa das linhas é de cima para baixo na
página”. Isso é primordial, “pois dessa compreensão decorre uma maneira muito
particular de efetuar os movimentos dos olhos na leitura”. Ler um texto é diferente
de olhar uma gravura, e isso é novo para o alfabetizando.

Diante disso, podemos perceber que muitas dificuldades na aprendizagem


do sistema de escrita se devem ao não desenvolvimento das capacidades
necessárias para a alfabetização. Por isso, antes de iniciar com letras, é preciso
diagnosticar os conhecimentos que a criança já tem acerca do sistema de escrita
e que capacidades já desenvolveu. Partindo das facilidades, ou seja, do que a
criança já sabe, fica mais fácil enfrentar as dificuldades.

Escrevemos porque desejamos comunicar algo a alguém, isso explica a


função social da escrita (o que já estudamos bem no capítulo 3). Entretanto, no
processo inicial de alfabetização, é preciso considerar a escrita também como
codificação que, segundo Houaiss (2001), é “processo de formular um enunciado
linguístico de acordo com as regras de uma língua, considerada como código”.
A escrita é diferente da leitura, por isso, é mais complexo escrever. O processo
de codificação é inverso ao de descodificação (leitura), pois nele acontece
a conversão da realização dos fonemas em grafemas a partir da variedade
sociolinguística praticada pelo falante. Isso é muito importante, pois falamos
diferentemente uns dos outros, mas precisamos representar a fala de uma
única maneira. Aqui reside uma das dificuldades iniciais que iremos discutir mais
adiante: não se escreve como se fala.

118
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

Atividades de Estudos:

1) Antes de prosseguirmos, convidamos você a analisar os textos


abaixo e observar:
Figura 42 - Texto 1

Fonte: Disponível em: <http://novaescola.org.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-inicial/


vou-alfabetizar-todos-eles-fim-ano-423796.shtml?page=2>. Acesso em: 12 jul. 2016.

Figura 43 - Texto 2

Fonte: Disponível em: <http://www.proceedings.scielo.br/


scielo.php?pid=MSC0000000032006000100002&script=sci_
arttext>. Acesso em: 12 jul. 2016.

a) Que conhecimentos sobre a escrita a criança já possui e que


capacidades ela já desenvolveu?
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119
Desenvolvimento da linguagem escrita

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b) Que conhecimentos sobre a escrita a criança ainda não possui e


que capacidades ela precisa desenvolver?
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Precisamos também entender que a escrita tem um processamento


(SCLIAR-CABRAL, 2003) que leva em conta essas etapas: inicialmente é a
motivação, que leva o redator, por intenções pragmáticas, a escrever o texto.
Depois, ocorre a seleção dos esquemas mentais, bem como a dos registros
linguísticos, que devem ser adequados ao gênero textual, ao receptor e
objetivos, a fim de que o texto alcance seus propósitos. Feito isso, vem a fase de
planejamento. Por fim, acontece a linearização linguística.

Vamos agora aprofundar a aprendizagem da escrita!

Se a leitura, de um lado, permite ao sujeito invadir o mundo da linguagem


escrita, é justamente no próprio ato de escrever que esse novo estatuto se realiza
de modo pleno. A questão da escrita, abordada daqui em diante, será feita tendo
como foco a capacidade de produzir escrita, especificamente, como ocorre a sua
aprendizagem, levando em conta aspectos relacionados à pesquisa desenvolvida,
tais como o ditado e as dificuldades de escrita.

Em uma situação comum de ditado, o ponto de partida é uma cadeia


Em uma situação
comum de ditado, fonológica para se alcançar uma sequência ortográfica. Para chegar à
o ponto de partida escrita, tanto é possível percorrer a via fonológica e/ou a lexical. Na
é uma cadeia primeira, pode-se recorrer às correspondências fonológico-grafêmicas;
fonológica para na outra, é feita a recuperação direta da forma escrita da palavra a
se alcançar partir de uma forma fonológica correspondente. A escrita de palavras
uma sequência
regulares (tatu, dedo, bolha), desconhecidas e pseudopalavras (pudo,
ortográfica.
reude) ocorre pela via fonológica apenas. Já a via lexical permite
escrever com correção as palavras irregulares (concerto, paço, cena,
chave) uma vez que é preciso que a forma ortográfica, armazenada no léxico
mental, seja recuperada. O modelo de dupla via (CASTRO; GOMES, 2000, p.
151) ilustra a situação descrita:

120
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

Figura 44 - Uma versão simplificada do Modelo de Dupla Via para a escrita


por ditado: a via fonológica (a cheio) e a via lexical (a tracejado)

Fonte: Castro e Gomes (2000).

Observando o modelo anterior e pensando sobre como você Fonema: “uma


escreve palavras, verá que ocorre uma representação do fonema em unidade de som
grafema. Você lembra o que essas duas palavras significam? Caso caracterizada por
não recorde, vamos retomar brevemente: Fonema: “uma unidade um dado feixe de
de som caracterizada por um dado feixe de traços distintivos”. Por traços distintivos”.
exemplo, a palavra [‘kasa] “caça” diferencia-se de [‘kaza] “casa” pelo
uso de uma fricativa alveolar surda [s] em “caça” e de uma sonora [z]
Grafema: uma ou
em “casa”. Grafema: uma ou mais letras para representar um fonema.
mais letras para
Por exemplo, o fonema [s], em “caça” foi representado por “ç”, mas em representar um
“passa” foi representado “ss”. No primeiro caso, temos apenas uma fonema.
letra, no segundo duas, caracterizando um grafema.

Para a compreensão das relações entre fonemas e grafemas, é preciso,


primeiro, uma revisão de como os fonemas estão organizados e classificados no
PB. Para tal, apresentamos, a seguir, duas tabelas: uma relacionada ao sistema
vocálico e outra referente ao quadro fonêmico das consoantes. É importante

121
Desenvolvimento da linguagem escrita

Esta é uma forma lembrar que esta é uma forma de “representar” os fonemas de nossa
de “representar” língua, entretanto, nossos alunos chegam às escolas cada um
os fonemas de falando de acordo com sua variante sociolinguística, o que justifica
nossa língua, a compreensão entre o sistema oral e escrito. Esta compreensão
entretanto, nossos permite ao professor construir hipóteses para a codificação, levando
alunos chegam às
o aprendiz a perceber que existe uma única língua escrita; entretanto,
escolas cada um
falando de acordo ao ler, o fará de acordo com sua variante sociolinguística, assim
com sua variante que tiver domínio do código. Além disso, permitirá que o professor
sociolinguística, compreenda por que os alunos em fase inicial de alfabetização
o que justifica a escrevem como falam, num continuum, ou seja, não há ainda a
compreensão entre o percepção dos espaços em branco.
sistema oral e escrito.
Quadro 2 - Quadro do Sistema Vocálico do PB: Sistema vocálico do PB,
conforme modelo de Quicoli (1990), com acréscimo das vogais nasalizadas

- posterior
+posterior +posterior
+ Orais -arredondado
- arredondado + arredondado
(anteriores)
+alta i u
-alta
e o
-baixa
+baixa E (pé) a ɔ (pó)
-orais
(nasalizadas)
~ ~
+alta i u
-alta ~
e ~
o
+baixa ã

Fonte: Scliar-Cabral (2003).

Quadro 3 - Fonêmico das Consoantes: Conforme modelo de Lopez


(1979), com acréscimo das semivogais, exemplos e termos comparativos
(entre parênteses) à nomenclatura de Mattoso Câmara Jr. (1975)

+ant +ant -ant -ant -ant


-cor +cor +cor -cor -cor
(labiais) (anteriores) (posteriores) -post -post
(posteriores) (posteriores)
+obstruinte -son p t k
-cont (surdas) b d g (galo)
(oclusivas) +son

122
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

+cont -son f s ʃ (chá) ʀ(rosa)


(fricativas) +son v z ʒ(já)
-Obstruinte m n ɲ (vinho)
+nasal
(+vocálico) l ʎ (velha)
+lateral r(caro)
-lateral
-cons
(semivogais) j (pai) w (teu)

Fonte: Scliar-Cabral (2003).

No processo de codificação, acontece a conversão da realização No processo


dos fonemas em grafemas a partir da variedade sociolinguística de codificação,
praticada pelo falante. Para converter a realização dos fonemas em acontece a
grafemas, o redator poderá ou não levar em conta o contexto fonético, conversão da
o que explica a existência destes cinco subgrupos: independentes do realização dos
fonemas em
contexto; regras dependentes da posição e/ou do contexto fonético; as
grafemas a partir
alternativas competitivas; as regras dependentes da morfossintaxe e do da variedade
contexto fonético e a derivação morfológica. sociolinguística
praticada pelo
Independentes do contexto: no primeiro subgrupo, incluem-se falante.
as variantes alofônicas (sons da fala que constituem uma variante ou
realização fonética de um mesmo fonema), determinadas pelo contexto Quem escreve
fonético, não percebidas pelo redator de forma consciente. Nesse não tem dúvida
caso, quem escreve não tem dúvida quanto a que grafema escolher quanto a que
para representar o fonema. Seria interessante que os professores grafema escolher
considerassem essas informações no processo inicial de escrita, pois, para representar o
fonema.
nessas situações, há maior transparência para a representação do
fonema, facilitando, assim, a codificação.

Tabela 1 - Conversão dos fonemas aos grafemas, independente do contexto

Fonema Grafema Exemplos Fonema Grafema Exemplos


/p/ p pato /b/ b bola
/t/ t tatu /d/ d dado
/f/ f faca /v/ v uva
/m/ m mato /n/ n nata
/ɲ/ nh linha / / lh bolha
Fonte: Scliar-Cabral (2003b, p. 78).

123
Desenvolvimento da linguagem escrita

O segundo subgrupo é formado por regras dependentes só do


Regras
dependentes só do contexto fonético. Nesse caso, quem ensina e quem escreve deve
contexto fonético. prestar atenção na palavra e observar em que posição está a letra
(início, meio ou fim da palavra ou sílaba); deve, também, ficar atento
às outras letras que antecedem e que seguem aquela que está sendo escrita, ou
seja, há informações na própria palavra que servem como dicas de que grafema
escolher para representar o fonema. As regras que seguem foram formalizadas
por Scliar-Cabral (2003).

Caso queira saber mais sobre isso, consulte as obras: Princípios


do sistema alfabético do português do Brasil e Guia prático
de alfabetização: baseado em princípios do sistema alfabético
do português do Brasil, de Leonor Scliar-Cabral, publicadas pela
Contexto em 2003.

Há informações Um grupo delas é organizado levando em consideração que


na própria palavra o fato de as vogais e semivogais serem posteriores (+post) ou não
que servem como posteriores (- post) influi na grafia das consoantes (retorne ao quadro
dicas de que do Sistema Vocálico do PB) e verifique a classificação:
grafema escolher
para representar o
fonema. a) a realização da consoante /k/ se transcreve com “c” antes de vogal
posterior, oral ou nasalizada ou diante de consoante e com “qu”
antes de vogal não posterior, oral ou nasalizada como em “cola”,
“cravo” e “quinto”.

b) a grafia do fonema /g/, antes de vogal posterior, oral/nasalizada ou diante


de consoante, transcreve-se com “g” e diante de não posterior, oral ou
nasalizada, com “gu”, como em “sagu”, “grito” e “guerra”.

c) a realização do fonema /s/ em início de vocábulo diante das vogais


posteriores (a, o, u) se transcreve com “s”: “sapo”, “soco”, “sunga”;

d) a realização do fonema /s/ entre a semivogal /j/ e as vogais anteriores


[-post] se transcreve com “c” e se for posterior [+post] com “ç” como em
“foice” e “feição”.

e) a conversão do fonema /ʒ/: antes de vogais posteriores [+post] grafa-se


com “j” como em “jarra, jogo, jurado”. (Antes de vogais anteriores [-post],
grafa-se com “j” ou “g”, ou seja, o contexto torna-se competitivo como em
relógio, giro, jeito).

124
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

f) a conversão do fonema /ʃ/ se transcreve com o grafema “x” em dois


contextos: depois de ditongo: ameixa, caixa, trouxa; depois de en-:
enxaimel, enxada.

g) A nasalização da vogal, em final de sílaba, que não seja final de palavra,


ante de /p/ e /b/ é marcada por “m”: bomba, sempre. Nos outros casos, é
marcada por “n”: dente, conto, linda.

Para compreender o que vem a seguir, vamos primeiro explicar


o que significa um arquifonema. Se você escutar um mineiro falando
a palavra carta, ele dirá o “r” de uma forma diferente, por exemplo, de
uma pessoa do interior de São Paulo. A pronúncia do “r” é diferente,
mas, em ambos os casos, o significado permanece o mesmo.
Quando isso ocorre, temos um arquifonema, aqui o |R|, mas também
existe o |S| e o |W| que veremos mais adiante. Arquifonema é, então,
um fonema resultante da neutralização; ele representa os fonemas
neutralizados e é simbolizado através de uma letra maiúscula.

As regras, que versam sobre a conversão do fonema /R/ no grafema “rr”


(carro, guerra); do flape alveolar /r/ na letra “r” (caro, tiro) e do arquifonema |R| na
letra “r” (carta, beber, desrespeito, enrugado, rato), auxiliam para explicar estas
grafias que constituem uma dificuldade para o aprendiz, sobretudo, a codificação
do encontro consonantal com flape /r/ como em “gripe, gruta”. A última regra
apresenta uma forma prática de aplicação, ou seja, salvo no contexto entre
vogais, o fonema /R/ sempre se escreve com um “r”.

As alternativas competitivas constituem a maior dificuldade


As alternativas
ortográfica na aprendizagem do sistema escrito. Em casos como o competitivas
do fonema /s/, que apresenta o maior número de possibilidades de constituem a
conversão, “é necessário selecionar no léxico mental ortográfico o maior dificuldade
item que emparelhe semântica e morfossintaticamente com a forma ortográfica na
fonológica” (SCLIAR-CABRAL, 2003b, p. 151). Situações dessa aprendizagem do
sistema escrito.
natureza podem ser resolvidas e compreendidas se houver um ensino
inteligente da gramática que considere:

a) o papel do significado quando os dois itens forem da mesma Papel do


classe gramatical  a grafia de “paço” (palácio) ou “passo” significado quando
(modo de andar), “sessão” (tempo de duração) ou “seção” os dois itens forem
(dividir em partes) só pode ser resolvida em um contexto no da mesma classe
qual o sentido possa ser atribuído pelo redator, uma vez que as gramatical.
duas situações se apresentam diante de vogal [+post].

125
Desenvolvimento da linguagem escrita

b) a morfologia, especialmente, a derivação  1) a codificação do fonema


/ʒ/ em “viagem” e “viajem” se dá de forma diferente, pois, no primeiro
caso, tem-se um substantivo derivado do radical “via-“ acrescido do
sufixo “-agem”; em “viajem” (terceira pessoa do plural do presente do
subjuntivo do verbo viajar), tem-se uma derivação da primeira pessoa
do singular do presente do indicativo. 2) Outra dificuldade encontrada na
aprendizagem dos contextos competitivos é a realização do fonema /z/
entre vogal oral ou semivogal e vogal oral ou nasalizada, pois é possível
grafar tanto com “s” quanto com “z”. 3) Em situações como a grafia de
“quiser”, “fizer”, “inglesa”, “beleza” e “lapiseira”, novamente o ensino
da morfologia auxiliará na resolução da dúvida, levando-se em conta: a
forma primitiva do perfeito; os femininos pátrios; os substantivos abstratos
femininos que usam o sufixo “-eza” e os derivados de radicais atemáticos
terminados em “s”, como “lápis”.

A conversão do arquifonema |W| pode ocorrer em quatro diferentes situações


nas quais se escreve competitivamente: 1) “o” ou “u” nos ditongos crescentes
orais; 2) “u” ou “l” em ditongo decrescente em sílaba interna, como em “calda” e
“cauda”; 3) “o”, “u” ou “l” em final de vocábulo nos ditongos decrescentes, como
em “mau” e “mal”; 4) “o” ou “u” no ditongo seguido do arquifonema |S|, como em
“ateus”. Desses casos, o mais complexo é o terceiro, visto que “é particularmente
difícil decidir quando escrever “mal” ou “mau”, pois, dada a semelhança semântica,
somente os conhecimentos de morfologia e de sintaxe podem resolver” (SCLIAR-
CABRAL, 2003b, p. 95). No exemplo dado na situação 2, novamente a atribuição
do sentido irá auxiliar na escolha de que letra usar na conversão do arquifonema
em questão: se “calda” de bolo ou se “cauda” do vestido.

Este subconjunto Outro contexto competitivo é o das vogais orais [+alt] postônicas
de regras sinaliza seguidas ou não do arquifonema |S| que podem ser grafadas com
que o ensino “e”/“i” ou “o”/“u”. Em uma situação como em “descrição” e “discrição”,
dos contextos a realização das vogais pretônicas orais [+alt] é livre, podendo ser
competitivos requer
pronunciada tanto com [e] como com [i]. Casos assim são comuns
um profissional
que trabalhe os entre os homófonos não homógrafos, daí a necessidade de um ensino
conhecimentos que, além do significado dos radicais, também contemple a
gramaticais e o significação de alguns prefixos que constituem pares mínimos na
significado de escrita, como é o caso de: “dis-”/”des-”, “e-”/ “i-”, “anti-”/ “ante-”, “en(m)-
forma a auxiliar o ”/ “in(m)-”.
aprendiz a resolver
suas dúvidas,
Este subconjunto de regras sinaliza que o ensino dos contextos
compreendendo
competitivos requer um profissional que trabalhe os conhecimentos
que conhecimentos
são necessários gramaticais e o significado de forma a auxiliar o aprendiz a resolver
para tomar a suas dúvidas, compreendendo que conhecimentos são necessários
decisão certa em para tomar a decisão certa em cada situação.
cada situação.

126
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

No que tange à forma de representar um fonema em grafema,


temos as seguintes situações:

a) INDEPENDENTES DO CONTEXTO: tatu, dedo, pato, uva,


foto, vida.

b) REGRAS DEPENDENTES DO CONTEXTO:

1. Da posição e/ou do contexto fonético: /k/  “c” ou “qu”: cola,


aquele; /g/  “g” ou “gu”: gato, guitarra; /r/ em contexto intervocálico
 “r” carinho; /s/  “s” em início diante de vogais [+post]: soco, saco,
suco.

2. Da morfossintaxe e do contexto fonético: tem/têm 


singular e plural; venderam/venderão  paroxítona e oxítona.

3. Derivação morfológica: viagem/viajem.

c) ALTERNATIVAS COMPETITIVAS:

1. Memorizadas: ficção/táxi; sigla/ciclo; fecha/mexe.


Previsibilidade nos contextos competitivos: origem; sufixação
(-oso é sempre com “s”: gostoso); prefixação (antebraço com “e”, pois
o prefixo “ante-“ assim o indica); cognatos (lapiseira que se origina de
lápis); significado (conserto de música).

Atividades de Estudos:

1) Abaixo, você encontra um grupo de palavras. Leia-as com


atenção para o grafema negritado e depois assinale com:

a) as independentes do contexto (as que não oferecem dúvida).


b) as dependentes do contexto grafêmico (que indicam regras).
c) as alternativas competitivas (as que precisam ser memorizadas).

127
Desenvolvimento da linguagem escrita

( ) sessão ( ) frouxo
( ) sutura ( ) gueixa
( ) excesso ( ) passaram
( ) nada ( ) touça
( ) enxadrista ( ) enxofre
( ) zeugma ( ) guichê
( ) coice ( ) jeitinho
( ) sombra ( ) claro
( ) repensar ( ) formarão
( ) resolverão ( ) polonesa
( ) quilate ( ) conserto
( ) furada ( ) fada
( ) joelho ( ) chuvoso
( ) peixe ( ) sela
( ) glacê ( ) falaram
( ) fraqueza ( ) viagem
( ) dente ( ) sexta
( ) bilro ( ) jaqueta
( ) excelente ( ) bobina
( ) emergir ( ) cabeça
( ) sarau ( ) vaga
( ) gilete ( ) tomate
( ) socorro

2) Nos que estão assinalados com (b), explique a regra dependente


do contexto.
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Todos esses ���������������������������������������������������
conhecimentos são ���������������������������������������������������
fundamentais para ���������������������������������������������������
fazer o diagnóstico ���������������������������������������������������
de escrita de um
texto. Dessa forma,
o professor poderá
agrupar os erros
conforme a sua Todos esses conhecimentos são fundamentais para fazer o
complexidade e diagnóstico de escrita de um texto. Dessa forma, o professor poderá
organizar o seu agrupar os erros conforme a sua complexidade e organizar o seu
planejamento, a planejamento, a fim de que o aluno depreenda a regra, por exemplo,
fim de que o aluno quando grafa com “c” e deveria ser com “qu”; vai explicar o significado
depreenda a regra. caso o aluno, por exemplo, escreva o “concerto do carro” ou vai

128
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

mobilizar conhecimentos morfológicos, quando o aluno escreve belesa com “s”,


explicando que se trata de um substantivo abstrato e que todos são escritos com
“-eza”. Agora que já temos esses conhecimentos, podemos aprofundar nosso
estudo em torno da avaliação.

O Aprendizado da Ortografia:
Reflexões Sobre o Erro
Ortográfico e a Avaliação na
Linguagem Escrita
Você já deve ter se defrontado com placas com palavras escritas erradas.
Isso significa que você sabe que a grafia está incorreta. Entretanto, como
professor(a), é preciso ir além e explicar a razão do erro. Então, vamos começar
com um desafio.

Atividades de Estudos:

1) Leia a placa, identifique os erros e explique:

Figura 44 - Placas

Fonte: Acervo das autoras.


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129
Desenvolvimento da linguagem escrita

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Isso faz parte de nosso cotidiano, mas, quando estamos na escola,


Quando estamos
na escola, como como agir diante dos problemas de escrita de nossos alunos? É preciso
agir diante dos ter claro como e quando interferir no comportamento linguístico dos
problemas de alunos. Entre os erros apresentados pelo autor, destacamos o que se
escrita de nossos refere à norma ortográfica. Quanto a isso, assim se manifesta Oliveira
alunos? (2001, p. 5):

Há formas incorretas em si mesmas, ou seja, erros em termos


absolutos. É o caso de [...]: erro ortográfico. A infração às
regras da ortografia é sempre um erro, qualquer que seja o
gênero textual em que ocorra. Também neste ponto coincide
a posição tradicional com a do ensino que estamos propondo.
Esse tratamento especial concedido à ortografia deve-se aos
seguintes fatos: (1.o) o sistema ortográfico é o único aspecto
do idioma inteiramente adquirido na escola, o que o torna mais
artificial e rígido que os demais subsistemas da língua; (2. o)
a ortografia é matéria de lei no Brasil; (3. o) ela diz respeito
exclusivamente à comunicação escrita. Esse conjunto de
atributos a impede, mesmo numa proposta flexível de ensino,
de ser tratada com a mesma flexibilidade que os demais
subsistemas. No aprendizado da ortografia não faz sentido,
pois, o binômio formal/informal. Se determinada palavra se
grafa com “ch”, não é por estar empregada num texto informal
que se passará a escrever com “x”. A grafia tem de ser a
mesma, seja num bilhete ou num relatório técnico.
A escrita
“espontânea” Diante dessa postura, passamos, então, a olhar a produção
dos alunos é
escrita dos alunos em fase de aprendizagem do sistema alfabético.
uma rica fonte de
material para o A escrita “espontânea” dos alunos é uma rica fonte de material para
levantamento de o levantamento de hipóteses que os pequenos formulam sobre a
hipóteses que os codificação das palavras.
pequenos formulam
sobre a codificação Leia com atenção o texto que segue quanto à forma como os
das palavras. fonemas foram representados pela criança:

Figura 45 - Texto espontâneo de uma criança

Fonte: Acervo das autoras.

130
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

Observe que, neste texto, há muitas palavras escritas corretas:


Neste texto, há
baleia, chamada, mar, pegou, arco, flecha, churrasco. Isso indica que muitas palavras
a criança: 1) já depreendeu algumas regras contextuais como em escritas corretas.
pegou (escrito com g e não com gu); arco (escrito com c e não com qu);
morreu (com dois rr). 2) internalizou em seu léxico mental ortográfico algumas
alternativas competitivas com a representação do fonema /x/ com “ch” em flecha
e churrasco. Entretanto, ela ainda precisa aprender a escrever palavras como
passear (pois foi grafada com apenas um s) e caçador (nesse caso, é preciso
também compreender o significado).

Partindo da realidade dos aprendizes, é possível preparar atividades de


reflexão sobre os princípios do sistema alfabético, permitindo que o próprio aluno
depreenda as regras de codificação e decodificação a partir das informações da
própria palavra ou do contexto linguístico. Como já mencionamos anteriormente,
para que isso ocorra, é preciso que o professor tenha domínio do conteúdo
referente ao que deseja ensinar. Assim, a correção deixa de ser um momento em
que alguém que sabe diz a quem não sabe o que está errado e passa a ser um
espaço de construção de saberes, o que se faz pela reflexão linguística.

Para auxiliar nesta tarefa, apresentamos, a seguir, uma discussão


Problemas como
feita a partir da análise de Cagliari (1999), que teve uma releitura, os apresentados a
partindo da tese de Heinig (2003) e dos estudos de Scliar-Cabral seguir não dizem
(2003a, 2003b). Vale ressaltar que problemas como os apresentados respeito apenas
a seguir não dizem respeito apenas aos pequenos aprendizes, pois aos pequenos
muitos textos de alunos que se encontram em outros níveis apresentam aprendizes, pois
problemas semelhantes quanto à grafia. muitos textos
de alunos que
se encontram
Iniciamos com os problemas relacionados à alfabetização em outros níveis
(transcrição fonética, segmentação, juntura, hipercorreção) e apresentam
passamos, depois, aos conhecimentos ortográficos da língua problemas
(maiúsculas, pontuação, acentuação, regras dependentes do contexto, semelhantes
sintaxe). Identificar os problemas é também diagnosticar o nível em que quanto à grafia.
o aluno se encontra e que tipo de atividades devem ser realizadas para
que ele avance na escrita correta das palavras e dos textos.

Transcrição fonética: nesse grupo, estão situações que revelam


Transcrição
que o aluno escreve como fala, que se encontra no processo inicial fonética: nesse
de aprendizagem do sistema de escrita. Dentro dessa categoria podem grupo, estão
ser identificados problemas como os que se apresentam a seguir: situações que
revelam que o
a) O aluno escreve i em vez de e, porque fala [i] e não [e]; por aluno escreve
exemplo: dissi (disse), qui (que), tristi (triste), eli (ele). como fala.
Vale destacar que a tonicidade ajuda a explicar esse problema,
pois a troca ocorre geralmente no final da palavra com sílaba

131
Desenvolvimento da linguagem escrita

átona. A mesma explicação pode ser atribuída em casos em que o aluno


escreve u em vez do o, pois fala [u] e não [o]; por exemplo: tudu (tudo),
abraçu, titiu, brincandu.

b) O aluno escreve duas vogais em vez de uma, por usar na sua pronún­cia
um ditongo; por exemplo: rapais (rapaz), feis (fez). Neste último caso,
além do problema de ditongação, pode-se observar o uso do “S” em
contexto competitivo.

c) O aluno escreve uma vogal em vez de duas, porque usa na sua pronúncia
um monotongo; por exemplo: caxa (caixa); mato (matou), pergunto
(perguntou). Entretanto, no caso de verbos, como os dois últimos
exemplos, a questão vai além da monotongação, é um caso em que há
a redução da desinência verbal e que pode ser incluída nos estudos da
morfologia verbal.

d) Não escreve o r, por não haver som correspondente na sua fala; por
exemplo: mulhe (mulher), lava (lavar). Aqui também é preciso ficar
atento e verificar se não se trata de um caso de morfologia verbal ou se
é da variedade sociolinguística do aluno. O mesmo raciocínio pode ser
aplicado neste caso: não escreve s, por não haver som correspondente
na sua fala; por exemplo: vamu (vamos).

e) Não escreve o r, pois pronuncia a vogal que o antece­de de forma mais


longa, englobando o som do r; por exemplo: poque (porque).

f) Escreve r em vez de l, pois faz essa troca quando fala; por exemplo:
praneta (planeta). Casos como este podem ser explicados consultando
o quadro de consoantes, pois as trocas entre fonemas não são distantes.
Entretanto, antes de decidir que tipo de problema existe aqui, vale a
pena considerar outras duas possibilidades: par mínimo ou variedade
sociolinguística.

g) Escreve u em lugar de l; por exemplo: sou (sol), sauvar (salvar). Além


disso, aqui pode se tratar de um contexto competitivo nesta posição (por
exemplo, se confunde cauda e calda), por isso, é importante não isolar o
erro, mas relacionar as ocorrências dentro do texto.

h) Escreve li vez de lh, por dizer [li] e não [λ]; por exemplo: armadilia
(armadilha), coelio (coelho). Observando o quadro de consoantes já
estudado, é importante considerar que esse tipo de erro não é gratuito,
porque há uma relação com o modo e/ou ponto de articulação, pois /l/;
/r/; /?/; /j/; /w/ são (+vocálico), + lateral, -lateral, -cons. Outro caso que

132
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

ocorre é a escrita inversa: grafa familha ao invés de família. Em ambos


os casos, o aluno escreve como fala.

i) O aluno usa somente a vogal para indicar o som nasalizado, suprimindo


a consoante m e n, que não percebe (embora muitas vezes a pronuncie),
por exemplo: ode (onde), curraiva (com raiva). No primeiro caso, o que
pode ocorrer também é que o aluno não sabe como marcar a vogal
nasalizada, uma vez que isso, em português, pode ser feito de três
formas: til (não), com n (onde) e com m (campo). Já no segundo caso,
precisa incluir o problema de juntura, pois o aluno ainda não percebe os
espaços em branco que separam as palavras. Pela razão anterior, não
usam o til, por exemplo em eitau (então), nesse caso, revela o ditongo
que pronuncia + “o”  “u” (escreve como fala). Já no caso de vocao
(vulcão), ocorre a supressão de letra acoplada à hipercorreção e a não
indicação de nasal, nesse caso, não se sabe exatamente se é percepção
ou esquecimento. Daí a necessidade de um exame detalhado de vários
textos produzidos pelo mesmo aluno.

Hipercorreção: é muito comum quando o aluno já conhece a forma


ortográfica de determinadas palavras e sabe que a pronúncia destas é diferente.
Passa a genera­lizar essa forma de escrever; por exemplo, como muitas palavras
que terminam em e são pronunciadas com i, es­creve todas as palavras com
o som de i no final com a le­tra e. Confira, por exemplo, a escrita Blumenal de
algumas crianças, em vez de Blumenau. Aqui há uma generalização da regra de
que se fala /u/ mas se escreve “l”. Por isso, é preciso cuidar ao dar as informações
às crianças sem considerar cada caso, como já estamos estudando até aqui.
Observando os textos dos alunos, Cagliari (1999) apresenta alguns exemplos:
desse (disse); jogol (jogou); conseguio (conseguiu); sootou (soltou).

Atividades de Estudos:

1) Antes de prosseguirmos, analise o texto que segue quanto à


hipercorreção e a exemplos de transcrição fonética:

Figura 46 - Texto espontâneo de uma criança

Fonte: As autoras.

133
Desenvolvimento da linguagem escrita

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Modificação da estrutura segmental das palavras: Alguns erros


ortográficos não refletem uma transcri­ção fonética, nem de fato se relacionam
diretamente com a fala. São erros de troca, supressão, acréscimo e in­versão
de letras. Nesse caso, mais uma vez, aconselhamos consultar o quadro das
consoantes e sua classificação, pois isso ajuda a compreender a lógica por trás
do erro. Embora tenham uma aproximação dentro da categoria, vale agrupá-los
conforme o problema específico:

a) troca de letras: voi (foi)  verificar o traço [± son]; bida (vida)  analisar
/v/ e /b/ quanto ao modo de articulação; save (sabe); anigo (amigo) 
pode ser rotação de traço (aconselha-se verificar). Nesses casos, há que
se levar em conta se as trocas se dão entre pares mínimos ou se é caso
de rotação de traços, pois o sistema alfabético é econômico.

b) supressão e acréscimo de letras: macao (macaco); sosato (susto).

Juntura intervocabular e segmentação: Quando a criança começa a


escrever textos espontâneos, ­verifica-se que costuma juntar todas as palavras.
Esta juntura reflete os critérios que ela usa para analisar a fala. Na fala, não existe
a separação de palavras, a não ser quando marcada pela entonação do falante.
Quando está em processo inicial de alfabetização, é comum encontrar frases
como estas: ‘‘eucazeicoéla’ (’’eu casei com ela’’); “jalicotei’’ (‘‘já lhe contei’’);
“mimatou” (“me matou”) ou mesmo palavras escritas juntas como em vaibora
(vai embora) aínsima (ai em cima). Há, também, casos de juntura e segmentação
em textos de adultos e alunos em processos mais avançados em anos escolares,
como esses: “derepente” (de repente), “agente” (a gente), “apartir” (a partir).
Nesses casos, é preciso fazer a distinção entre a palavra lexical e a gramatical
(esta, por sua vez, por ser pequena e, em geral, átona, não é considerada uma
palavra e a tendência é colocar as preposições, artigos e conjunções como parte
da palavra lexical). Para completar essa categoria, vamos considerar os grupos
tonais do falante, ou conjuntos de sons di­tos em determinadas alturas, é um
dos critérios que a criança utiliza para dividir a sua escrita. Às vezes, devido à

134
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

acentuação tônica das palavras, po­de ocorrer uma segmentação indevida, ou


seja, uma se­paração na escrita que ortograficamente está incorreta, por exemplo:
“A gora” (agora); “A fundou” (afundou). Independentemente de ser um caso
de juntura intervocabular e segmentação, o professor deve levar o aprendiz à
percepção dos espaços em branco, pois não se escreve como se fala e a palavra
é uma unidade independente de seu tamanho.

Para ficar mais claro, apresentamos esse problema em um texto produzido


por uma criança em processo inicial de aprendizagem da escrita. Atente para as
palavras sublinhadas:

Figura 47 - Exemplo de escrita de criança

Fonte: Disponível em: <http://carpediem-pedagogica.blogspot.com.


br/2011_02_01_archive.htm>. Acesso em: 12 jul. 2016.

Forma morfológica diferente: Alguns erros ortográficos acontecem porque,


na varie­dade dialetal que se usa, certas palavras têm característi­cas próprias
que dificultam o conhecimento, a partir da fala, de sua forma ortográfica: Adepois
(depois); ni um (em um ou num); pacia (passear).

Uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas: Aprendendo que devem
escrever os nomes próprios com letras maiúsculas, alguns alunos passam a
escrever os pronomes pessoais também com letras maiúsculas; por exemplo, Eu.
Normalmente as letras minúsculas são mais utilizadas. É interessante percebermos
que o trabalho realizado com letras maiúsculas e minúsculas está, também, mui­to
ligado às funções da escrita. Também em textos de séries finais tem-se detectado o

135
Desenvolvimento da linguagem escrita

desconhecimento das regras do uso de maiúsculas. Um caso comum é o de nomes


próprios que parecem escritos com minúscula; outro, é a falta de compreensão de
que as sentenças se iniciam com letra maiúscula depois de ponto.

Sinais de pontuação: Estes sinais também não são ensinados logo no início
e raramente ocorrem nos textos espontâneos. Às vezes, alguns alunos usam sinais,
como ponto ou travessão, para isolar palavras: “Era. uma. Vez.”, ou “Era-uma-vez”,
fruto de ensinamentos obtidos em outras atividades que o aluno estende para os
textos. O que se observa aqui é um recurso para marcar o espaço em branco entre
as palavras, mas isso não diz respeito ao funcionamento da pontuação.

O texto que segue, de um ano do início dos anos finais (6° ano), revela alguns
dos problemas estudados com a juntura intervocabular, mas atente para o uso de
maiúsculas e sinais de pontuação:

Figura 48 – Exemplo de escrita

Fonte: Acervo das autoras.

Acentos gráficos: Aqui há três problemas a serem considerados: 1) a


omissão de sinais quando as regras da língua assim o indicam; 2) a presença
de acentos em sílabas átonas, o que sugere desconhecimento dos princípios
que orientam a acentuação gráfica; 3) presença de marcas de acentuação em
sílaba tônica que não leva acento, o que indica desconhecimento das regras de
acentuação gráfica.

Problemas sintáticos: Alguns erros de escrita que aparecem nos textos


revelam problemas de natureza sintática, isto é, de concor­dância, de regência,
mas que, na verdade, denotam mo­dos de falar diferentes do dialeto privilegiado
pela orto­grafia. Aparecem construções estranhas, que refletem es­tilos que só
ocorrem no uso oral da linguagem: ‘‘eles viu oram urubu” (‘eles viram outro
urubu’); dois coelio (dois coelhos). Podem aparecer construções estranhas, que
refletem estilos que só ocorrem no uso oral, como “Muito felis e susego”, ou
construções do tipo: “era uma vez um gato que um dia ele saiu de casa”,
apresentando uma topica­lização, que é encontrada na fala e não na escrita.

136
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

Regras dependentes do contexto: como já foi apresentado anteriormente,


há erros que são decorrentes da não internalização das regras dependentes do
contexto grafêmico. Analisando textos de alunos de diferentes anos escolares,
localizamos exemplos como: tamto, limgua, tenpo, segidores, queigo,
arependida, deicha.

Alternativas competitivas: estas são, como já sabemos, de aprendizagem


mais difícil, por isso, é importante verificar se estão presentes nos textos a que os
alunos têm acesso. Também em textos de alunos localizamos grafias como: serto
(certo), relojio (relógio), bebesinho (bebezinho), faser (fazer). Estes problemas
podem ser solucionados pela informação semântica, ou seja, o significado da
palavra ou pela informação morfológica, se é, por exemplo, advérbio se escreve
mal, mas se for adjetivo, grafa-se mau. Por fim, é preciso identificar que palavras
precisam ser armazenadas no léxico mental ortográfico de forma memorizada.

Acertos: Não poderíamos concluir esta parte do estudo sem fa­lar um pouco
sobre os acertos ortográficos das crianças. É importante ter claro que os erros
não são dificuldades insuperáveis ou falta de capacidade das crianças e nem os
acertos são obra do acaso. Tudo pertence a um processo de aprendizagem da
escrita e revela a reflexão que o aluno põe na sua tarefa e na forma
de interpretar o fenômeno que estuda. No conjunto, vemos que certos
É preciso deixar os
textos, aparentemente ‘‘horríveis’’, contêm uma quantidade de acertos alunos escreverem
superior à de erros e que, portanto, não seria justo atribuir zero ao seu textos livres,
autor, reprovando-o. Na verdade, o que em geral incomoda o professor espontâneos,
é o tipo de erro; ele não ad­mite que se escrevam coisas como pecoa em contarem histórias
lugar de pessoa. Mas, como vimos, esses erros não se dão ao acaso. como quiserem.
Os acertos, frequentemente, não são levados em conta, são admitidos É nesse tipo de
material que vamos
como absolutamente previsíveis. Já os erros pesam toneladas nas
po­der encontrar
avaliações. É indispensável que o professor faça um levantamento os elementos
das dificuldades dos alunos. Isso não pode ser visto apenas através que mostram as
de palavras e frases já treinadas, de cópias e atividades dirigidas. reais dificul­dades
É preciso deixar os alunos escreverem textos livres, espontâneos, e facilidades
contarem histórias como quiserem. É nesse tipo de material que vamos dos alunos no
po­der encontrar os elementos que mostram as reais dificul­dades e aprendizado da
escrita.
facilidades dos alunos no aprendizado da escrita.

Antes de encerrarmos esta parte de nosso estudo, convido você a observar


quanto de correção e competência textual e linguística pode revelar o texto de uma
criança em fase inicial de alfabetização. Verifique quantas palavras foram escritas.
Quantas estão corretas? O que isso significa em termos de aprendizagem?

137
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 49 - Texto produzido por uma criança no 1° ano

Fonte: Acervo das autoras.

Atividades de Estudos:

1) Leia com atenção os textos produzidos por alunos do Ensino


Fundamental.

TEXTO 1

As árvores

Era uma vez, um menino que plantou uma árvore, e depois


plantou outra, e ele as regava todos os dias e ai cada mês que
passava elas creciam mas e mas e entam se passou tempo um
tempo e então elas estavam um pouco maior e ai ainda estava
mole os galhos e então ele começou tudo de novo e regalas
todos os dias e assim elas continuaram a crecer cada vez
mais. E então estavão grandes, ele foi até sua casa e buscou
sua rede e amarrou nos dois troncos das árvores.

138
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

TEXTO 2

Vem ver um dia de festa

A festa da minha vizinha ela fes aniversario foi


na caragem da sida a dona da casa primeiro as pessoas se
reuniram pra festa cantamos dançamos, alegremente asamos
carne ela as pessoas tomaram serveja, as crianças tomaram
refri a gente se divetil depois comemos a carne a maionese
o arroz e o pipino depois arrumamos a loça para cantar os
parabéns tiramos fotos depois a sida foi la pegar o Bolo o Bolo
era lindo delicioso damos presentes tiramos foto com o bolo e
com a aniversariante ela ficol tam feliz até choro de felisidade
foi asim muito legal divertido ficamos até uma hora da manhã
dançando.legal.

Agora, atente para o que segue e realize as tarefas propostas:

a) Em geral, o professor, na escola, ao ler e analisar os textos


produzidos, concentra-se nos erros produzidos. Entretanto, a
sua “missão” aqui é identificar acertos (destaque o grafema na
palavra) tanto independentes do contexto, como dependentes do
contexto (regras) e de alternativa competitiva.

b) Volte aos textos e procure outras palavras (diferentes) que o aluno


ainda não sabe grafar corretamente. Escreva-as uma abaixo da
outra.

c) Ao lado de cada palavra selecionada, faça o diagnóstico,


identificando que tipo de conhecimento sobre o sistema de escrita
alfabética ou ortográfica precisa ser desenvolvido com esse
aluno.

d) Faça um balanço entre acertos e erros, considerando cada texto.


Partindo dele, qual a sua proposta pedagógica para levá-los a
escrever de acordo com os princípios do sistema alfabético que
aprendemos neste capítulo?
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139
Desenvolvimento da linguagem escrita

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Algumas Sugestões de Atividades


Para Ajudar os Alunos a Resolverem
Seus Problemas de Escrita
O primeiro acordo que queremos fazer é o seguinte: as atividades visam
à reflexão sobre o sistema ortográfico e o alfabético, por isso, a ideia é que se
trabalhe sempre com textos, não apenas com palavras isoladas, embora elas
possam ser pinçadas do texto para posterior atividade. Os textos selecionados
devem ser de gêneros textuais diversos (folhetos, notícias, contos, diários, etc.).
Isso possibilita a alfabetização na perspectiva do letramento, ou seja, das
práticas sociais de leitura e escrita.

Só devem ser Dessa forma, o professor pode se valer de textos do livro didático
usados para esse ou de outros que circulam na comunidade escolar. É muito importante,
tipo de atividade entretanto, que os textos não sejam pretextos para o ensino do sistema
depois que alfabético, por isso, só devem ser usados para esse tipo de atividade
foram explorados depois que foram explorados suficientemente pelos alunos.
suficientemente
pelos alunos.
Sugestão 1: Ditado interativo. Em vez de aplicar um ditado
tradicional – que cumpre geralmente apenas o papel de verificar
os conhecimentos ortográficos - esse tipo de ditado busca ensinar ortografia,
refletindo sobre o que se está escrevendo. Dita-se à turma um texto já conhecido,
fazendo pausas diversas, nas quais se convida os alunos a focalizarem e
discutirem certas questões ortográficas previamente selecionadas ou levantadas
durante a atividade. Os alunos sabem que o ditado é para isso e já voltam sua
atenção para refletir sobre dificuldades ortográficas (MORAIS, 1998).

Um exemplo: Para ensinar a grafia de cena e conserte, selecionamos,


do livro didático, este trecho, digitamos e deixamos apenas o espaço em braço

140
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

para a palavra a ser ditada. A reflexão pode ocorrer depois de ditar cada palavra
ou ao final.

Vendo aquela ............................. , ainda me lembrei do Pó,


o nosso cachorro. Nem ele come uma comida igual àquela que o
homem buscou do lixo. Engraçado, querido Diário, o nosso cão vive
bem melhor do que aquele homem. Tem alguma coisa errada nessa
história, você não acha? Como pode um ser humano comer comida
do lixo e o meu cachorro comer comida limpinha? Como pode,
querido Diário, bicho tratado como gente e gente vivendo como
bicho? Naquela noite eu rezei, pedindo que Deus ...............................
............. logo este mundo. Ele nunca falha. E jamais deixa de atender
os meus pedidos. Só assim, eu consegui adormecer um pouquinho
mais feliz.

Fonte: OLIVEIRA, Pedro Antônio. Gente é bicho e bicho é


gente. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 16 out.1999.

Sugestão 2: Releitura focalizada. Encaminhamento semelhante ao do


ditado interativo. Durante a releitura coletiva de um texto já conhecido, fazem-
se interrupções para debater certas palavras, lançando questões sobre sua
grafia. Trata-se de uma releitura, na qual os alunos refletem sobre as palavras
de um texto já conhecido. Como unidades de significado e materialização de
processos discursivos, os textos escritos existem para serem lidos, comentados,
“degustados”. Usar um texto desconhecido para desencadear a reflexão
ortográfica seria distorcer a natureza e as finalidades do ato de ler um texto pela
primeira vez (MORAIS, 1998).

Sugestão 3: Produções dos alunos, como cartazes, livro, comparação entre


palavras. Seguem exemplos da tese de Heinig (2003):

141
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 50 - Explicação da diferença entre a escrita de passo/paço do rei

Fonte: Acervo das autoras.

Figura 51 - Cartaz para explicar a palavra "cumprimento"

Fonte: Acervo das autoras.

Sugestão 4: Jogos. Mas o que é necessário para preparar um jogo? Aqui vão
algumas dicas: Definir o objetivo que se pretende alcançar com o jogo. Conhecer
a regra contextual ou a situação que pretende se focar no jogo. Levar em conta
o sujeito aprendiz (idade, conhecimento prévio, facilidades, entre outros.).
Selecionar palavras para criar um banco de palavras que atendam ao conteúdo

142
Capítulo 4 Dificuldades na Linguagem Escrita

do jogo. Selecionar imagens compatíveis. Redigir as regras do jogo com bastante


clareza. Organizar a caixa com o jogo e a regra. Testar com um grupo de crianças.
Se o teste não foi favorável, rever os aspectos problemáticos. Se foi favorável, é
jogar e aprender.

Sugestão de sites que apresentam jogos:

<http://educarparacrescer.abril.com.br/grafia/>.
<http://www.soportugues.com.br/secoes/jogos.php>.
<http://www.nossoclubinho.com.br/jogo-da-forca-ortografia-
b-p/>.
<http://portal.fmu.br/game/>.
<http://www.imagem.eti.br/jogo-da-ortografia/jogo-da-ortografia-
palavras-escritas-com-ce-ci.php>.
<http://www.escolagames.com.br/jogos/fabricaPalavras/>.

Algumas Considerações
Se voltarmos ao início de nosso capítulo, especialmente ao eixo do fazer,
perceberemos que os estudos teóricos, os exemplos e as reflexões permitiram
que você conseguisse examinar as dificuldades encontradas na aprendizagem da
escrita, propondo soluções e intervenções, bem como levaram você a distinguir
tipos de erros ortográficos, analisando suas causas e, por isso, poderá aprimorar
e desenvolver critérios de avaliação, conforme os estágios de aprendizagem da
escrita.

É importante que todo trabalho para a aprendizagem da escrita esteja


apoiado em sólida base teórica de estudos linguísticos, pois os erros não são
acasos, são situações que precisam ser analisadas, agrupadas, a fim de que a
aprendizagem ocorra de forma sistemática. Além disso, não há como tratar todos
os erros em apenas um texto, por exemplo, colocando-o no quadro, para que
os alunos identifiquem os erros. Se eles soubessem, não os teriam cometido. É
papel do professor preparar atividades que levem o aluno: a refletir sobre a sua
forma de escrita; a revisar seu texto; a fixar regras de ortografia.

Estamos conscientes que são muitas informações, algumas novas para


você, mas o sistema de escrita também pede de nós, professores, momentos
de estudo, pois somente quem domina a teoria pode transformar o complexo em
simples, e as crianças precisam disso: aprender refletindo.

143
Desenvolvimento da linguagem escrita

Referências
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. 10. ed. São Paulo: Scipione,
1999.

CASTRO, S. L.; GOMES, I. Dificuldades de aprendizagem da língua materna.


Lisboa : Universidade Aberta, 2000.

HEINIG, O. L. de O. M. “É que a gente não sabe o significado”: homófonos


não homógrafos. 2003. Tese (Doutorado em ) – Universidade Federal de Santa
Catarina, UFSC, Florianópolis, 2003.

OLIVEIRA, H. F. Como e quando interferir. In: COLL - Consultoria de Língua


Portuguesa e Literatura, 2001.

HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed.


Objetiva, 2001.

KATO, M. A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. 5. ed. São


Paulo: Ática, 1995.

LEMLE, M. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2001. p. 7-11.

OLIVEIRA, P. A. Gente é bicho e bicho é gente. Diário da Tarde, Belo Horizonte,


16 out.1999.

PELANDRÉ, N.. Ensinar e aprender com Paulo Freire : 40 horas 40 anos


depois. São Paulo: Cortez, 2002.

PINTO, M.G. A ortografia e a escrita em crianças portuguesas nos primeiros


anos de escolaridade. In: ______. Saber viver a linguagem : um desafio aos
problemas de literacia. Porto: Porto Editora,1998.

SCLIAR-CABRAL, L. O ensino da Língua Portuguesa hoje: desafios e dilemas.


Confluência, Rio de Janeiro, n. 21, p. 25-33, jan./jun. 2001.

______. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo:


Contexto, 2003a.

______. Guia prático de alfabetização: baseado em princípios do sistema


alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003b.

144
C APÍTULO 5
A Função da Escrita na
Vida do Sujeito

Objetivos de aprendizagem relacionados ao saber fazer:

99 Conhecer o percurso da escrita e suas funções no decorrer da história,


enfocando os sujeitos e períodos de aquisição da escrita.

99 Identificar os desafios futuros relacionados à aquisição da escrita.

99 Analisar propostas didáticas a partir das funções da linguagem escrita na vida


dos sujeitos.

99 Desenvolver atividades que auxiliem os alunos na aquisição da escrita


utilizando meios digitais, assim com as habilidades metalinguísticas.
Desenvolvimento da linguagem escrita

146
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Contextualização
No decorrer dos capítulos anteriores, temos refletido sobre o desenvolvimento
da escrita, teorias que explicam como este processo ocorre, capacidades
envolvidas, diferentes perspectivas e o papel da sociedade neste processo.

Nos capítulos 1 e 2, estudamos os paradigmas construtivista e fonológico,


observando a influência deles nos processos de alfabetização e compreensão
do desenvolvimento da escrita por uma criança. No capítulo 3, refletimos sobre
a influência de fatores socioculturais na alfabetização e letramento, buscando
elementos que transcendem os fatores puramente cognitivos ou linguísticos. No
capítulo 4, trouxemos novamente o viés linguístico e psicolinguístico, procurando
analisar os processos de leitura e escrita, focalizando o sistema de escrita
alfabético e a questão dos erros ortográficos.

Nesta última unidade, retomaremos a história da escrita, refletindo um pouco


sobre suas funções e sobre a concepção de escrita como condição para a inserção
social dos sujeitos. E, como não poderia deixar de ser, levantaremos questões
sobre o letramento na era digital e algumas implicações. Como o tema não se
encerra em um caderno de estudos, apontaremos, apenas, outras possibilidades
de compreensão e de aprofundamento. Reiteramos que nosso objetivo é que você
possa ter elementos para compreender sua prática, para modificá-la ou mesmo
reafirmá-la com outras bases teóricas.

Assim, iniciamos mais uma unidade e convidamos você para outras


possibilidades de aprendizagem.

Dos Primeiros Registros à Escrita


Vista como Meio de Inserção Social
Figura 52 – Tirinha da Mafalda

Fonte: Toda Mafalda (QUINO, 1995, p. 28)


147
Desenvolvimento da linguagem escrita

A tirinha da provocativa personagem Mafalda traz algumas das


Mas também dá
acesso direto possíveis motivações para a escrita. Escrever para registrar, para
ao mundo das guardar, para lembrar o que foi pensado, planejado, falado ou vivido.
ideias. permite Um dos estudiosos da história da escrita, parecendo concordar com a
ainda apreender nossa personagem, escreveu que:
o pensamento e
fazê-lo atravessar o [...] a escrita não é apenas um procedimento destinado a fixar
espaço e o tempo. a palavra, um meio de expressão permanente, mas também dá
acesso direto ao mundo das ideias, reproduz bem a linguagem
articulada, permite ainda apreender o pensamento e fazê-lo
É um fato social atravessar o espaço e o tempo (HIGOUNET, 2003, p. 10).
que está na própria
base da nossa
Quais foram as nossas motivações para aprender a escrever?
civilização. Por
isso a história da Por que a humanidade, no decorrer da história desenvolveu sistemas
escrita se identifica de escrita? Há diferenças entre os objetivos atuais e de outrora, ou
com a história dos a história da escrita se repete cada vez que um indivíduo aprende a
avanços do espírito escrever e a ler? Nesse sentido, trazemos novamente uma contribuição
humano. de Higounet (2003, p. 10), afirmando que a escrita “é um fato social
que está na própria base da nossa civilização. Por isso a história da
escrita se identifica com a história dos avanços do espírito humano”. Este é um
posicionamento bem interessante, coloca a escrita como um fato social e, dessa
forma, intrincada com a história da humanidade.

Atividades de Estudos:

1) Antes de prosseguirmos, leia o poema a seguir, que também traz


uma motivação para a escrita e reflita sobre por que usamos a
escrita e em quais situações. A escrita é imprescindível no seu dia
a dia? E para o autor do poema?

Guardar

Antônio Cícero

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por


ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.

148
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Por isso, melhor se guarda o voo de um pássaro


do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde
o que Guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

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Nos capítulos 1 e 3 você já pode estudar um pouco sobre a história da escrita,


portanto, agora, retomaremos as ideias principais e veremos, além dos processos
evolutivos, algumas motivações que a humanidade teve para desenvolver este
sistema e modificá-lo.

Kato (1999, p. 12) afirma que “o homem tem inerentemente uma necessidade
individual de se expressar e uma necessidade social de se comunicar”. Portanto,
os primeiros desenhos do homem primitivo poderiam ser apenas uma forma de
expressão ou a comunicação de um fato. Higounet (2003) apresenta uma percepção
aprofundada destas primeiras manifestações da escrita, tratando-a como uma
possibilidade de materializar um pensamento. Nesse sentido, ele vai ao encontro da
percepção do autor da poesia. É interessante notar que os conceitos sobre a escrita
se assemelham, sejam de estudiosos da linguagem, sejam de poetas.

[...] a escrita é mais que um instrumento. Mesmo Ela não apenas a


emudecendo a palavra, ela não apenas a guarda, guarda, ela realiza
ela realiza o pensamento que até então permanece
o pensamento
em estado de possibilidade. Os mais simples
que até então
traços desenhados pelo homem em pedra ou papel
não são apenas um meio, eles também encerram permanece
e ressuscitam a todo o momento o pensamento em estado de
humano (HIGOUNET, 2003, p. 9). possibilidade.

149
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 53 - Arte rupestre nas


cavernas de Lascaux - pintada há Figura 54 - Arte rupestre da
aproximadamente 18000 anos Caverna de Altamira

Fonte: National Geographic. Fonte: National Geographic.

As figuras expostas acima são pinturas rupestres e há discussões sobre


a época em que foram produzidas, assim como sobre as reais intenções dos
homens. O que significariam estas pinturas, um desejo de expressão, um desejo
de comunicar esta realidade para os outros, o desejo de preservar o momento?
Para Higounet (2003, p. 12) estes desenhos contêm “algo que se assemelha a
rudimentos de escrita; eles exprimem, se não uma ideia, pelo menos um desejo”.

Independentemente do objetivo ou motivação, os pictogramas apresentavam


no princípio uma relação com os objetos ou imagens que representavam, o que
pode ser facilmente observado. Com o tempo, estes desenhos foram sofrendo
estilizações, perdendo a semelhança com os seus referentes e se aproximando
dos sistemas de escrita. Kato (1999, p. 13) salienta que estas expressões visuais
seguem direções distintas com o passar do tempo, “o desenho como arte e o
sistema pictográfico na comunicação”.

É interessante notar que a discussão sobre o processo de criação/


A escrita começou evolução da escrita passa pela motivação do homem para fazê-lo.
a existir no Esta pergunta ainda norteia as discussões sobre alfabetização, sobre
momento em que o que significa ler e escrever, sobre as motivações de uma criança
o objetivo do ato para aprender a escrever. Sobre este aspecto, Cagliari (1999, p. 105)
de representar apresenta o seguinte ponto de vista:
pictoricamente
tinha como
Historicamente muitos sistemas de escrita desenvolveram-se
endereço a fala e
a partir de desenhos. A escrita começou a existir no momento
como motivação em que o objetivo do ato de representar pictoricamente tinha
fazer com que como endereço a fala e como motivação fazer com que através
através da fala o da fala o leitor se informasse a respeito de alguma coisa.
leitor se informasse
a respeito de
alguma coisa.

150
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Portanto, para Cagliari (1999), o que diferencia um desenho de uma tentativa


de escrita é a intenção de quem escreve. Salienta, ainda, que a função informativa
não seria a única, mas a primeira cronologicamente.

Figura 55 - A invenção da escrita

Fonte: Disponível em: <https://megaarquivo.com/tag/escrita/>. Acesso em: 20 ago. 2016.

Em livros e artigos encontramos as concepções de pesquisadores sobre


as motivações para a escrita. Mas o que pensam as crianças que estão em
fase de alfabetização? Para satisfazer a nossa curiosidade, perguntamos para
algumas crianças por que elas necessitam aprender a escrever? As crianças
que responderam se encontram no primeiro e no segundo anos do Ensino
Fundamental.

Rafael – sete anos


‘Porque sim, porque precisa. Para eu poder ler, para também crescer’.
(foi questionado sobre a relação entre aprender a escrever e crescer)
‘Porque tua mão fica mais forte’.

Bárbara – seis anos


‘Porque se eu não aprender a escrever, eu não vou poder escrever umas palavras’.
‘Para eu aprender o som de cada letra, para saber o som de cada letra, senão eu não vou
aprender a ler e a escrever!’

Luíza – oito anos


‘Para conseguir guardar as ideias’. ‘Eu penso que precisa escrever’.

151
Desenvolvimento da linguagem escrita

Esta é uma pergunta aparentemente simples, no entanto, as crianças


pareciam surpresas e inseguras para respondê-la. As três repetiram a pergunta,
como se buscassem uma confirmação para o que de fato estava sendo
questionado. Podemos destacar nestas respostas a concepção da escrita como
algo óbvio na vida das pessoas, como uma capacidade que faz parte de um
desenvolvimento natural do ser humano, da mesma forma que aprende a comer,
andar e desenhar.

Todos os entrevistados nasceram em uma sociedade letrada, cercados


de livros e oportunidades de leitura. Além da necessidade óbvia, nas respostas
há o destaque para outras concepções, como o crescimento – porque a escrita
fortaleceria a mão, saber o som das letras – o que nos diz sobre a fase em que a
criança se encontra em seu processo, guardar as ideias – numa percepção mais
avançada e ler – para as crianças a possibilidade de ler é muito importante.

Voltando ao processo de evolução da escrita, os pictogramas sofreram


estilizações, perderam a semelhança com os objetos que representavam e, por
isso, passaram a ser convencionados. Ou seja, o que antes era de fácil “leitura
e interpretação”, doravante necessitaria ser ensinado. Para que você possa
observar esse processo, retomaremos uma figura do capítulo 1. Na primeira
representação da palavra estrela, qualquer pessoa poderia compreendê-la e
utilizá-la. Na última, com uma escrita cuneiforme, escreveria e leria apenas quem
detivesse este conhecimento. Gostamos de imaginar, que, neste momento,
nasceram os professores!!

Figura 56 - Evolução da escrita

Fonte: Disponível em: <http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/


start.htm?infoid=911&sid=7>. Acesso em: 20 ago. 2016.

Este período inaugura a fase ideográfica. Os pictogramas representavam


geralmente uma ideia, e na evolução para os ideogramas, além das estilizações e
simplificações de traços, eles passam a representar as palavras. Aqui ocorreu um
marco importante na evolução da escrita, pois, como já vimos, a segmentação de

152
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

palavras que compõem uma frase não é algo simples. Kato (1999, p. 12) afirma
com propriedade que: “todos nós passamos, em nossa alfabetização, por uma
fase em que as palavras apareciam grudadas umas nas outras, e a tarefa de
silabá-las era um bicho de sete cabeças”. Alguns autores afirmam que, nesta
fase, já se atribuía aos ideogramas um valor fonético.

Os sistemas pictóricos mais importantes que se desenvolveram em escritas


ideográficas foram o sumério (escrita cuneiforme), o egípcio (hieróglifos) e o
chinês. A escrita egípcia está na base da escrita alfabética.

No caso dos egípcios, a escrita por meio de hieróglifos era considerada uma
expressão sagrada, feita para se conservar, atravessar o tempo, por isso, era
talhada em pedra. Com a invenção do papiro, também houve uma evolução desta
escrita para a forma hierática, contemplando outras funções, além de religiosas.

A escrita cuneiforme era talhada em placas de argila molhada, por isso,


os traços eram mais simplificados. Servia para registros sociais, religiosos,
econômicos e também para fixação de códigos e leis. Abaixo, um exemplo de
símbolos cuneiformes já relacionados a um alfabeto.

Figura 57 - Escrita cuneiforme suméria

Fonte: Disponível em: <http://www.ufrgs.br/igeo/m.topografia/exposicoes/


Historia%20da_escrita.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2016.

Algo que necessita ser destacado é que o suporte da escrita e os instrumentos


utilizados também contribuíram para esta evolução. A possibilidade de se escrever
em materiais menos rígidos e facilmente transportáveis, com certeza influenciou
no processo de evolução, como também nos conteúdos.

Os ideogramas representaram uma grande evolução com relação aos


pictogramas e, com o tempo, perderam seu valor semântico (significado) e

153
Desenvolvimento da linguagem escrita

passaram a ser usados com seu valor fonético. Uma das etapas importantes foi o
uso do “rébus”, quando se representava palavras ou sílabas por pictogramas, mas
não se associava um significado a estes desenhos, e sim os sons dos nomes dos
objetos representados (KATO, 1999). Este mesmo princípio é utilizado nas cartas
enigmáticas, empregadas até hoje por muitos professores. Para que você possa
compreender melhor, observe o exemplo abaixo:

Figura 58 – Exemplo de carta enigmática

Fonte: Acervo das autoras.

Nesse caso foram utilizadas as figuras (no caso da evolução da escrita eram
pictogramas) de um sol e de um dado para formar uma terceira palavra, soldado.
O que você precisa entender é que, nesse processo, não interessa o significado
da imagem (valor semântico), e sim o som que é associado a ela (valor fonético).
Algumas vezes, eram empregadas apenas a primeira sílaba da palavra, outras
vezes, como no nosso exemplo, a palavra inteira. Abaixo colocamos um exemplo
de atividade a partir do conceito de “rébus”.

Figura 59 – Atividade a partir do conceito de “rébus”.

Fonte: Disponível em: <https://aletraacaia.wordpress.


com/tag/rebus/>. Acesso em: 20 jul. 2016.

154
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Outros exemplos e explicações você encontrará nos vídeos indicados.

Além dos vídeos que já foram indicados no decorrer das


unidades, sugerimos estes dois, que foram aproveitados no
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (Profa).
Pela qualidade, você perceberá que se tratam de produções mais
antigas, no entanto, destacamos a síntese e boas explicações sobre
a história da escrita.

<http://novaescola.org.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-
inicial/alfabetizacao-video-profa-construcao-escrita-parte-1-545605.
shtml>.

<http://novaescola.org.br/lingua-portuguesa/alfabetizacao-
inicial/alfabetizacao-video-profa-construcao-escrita-parte-2-545591.
shtml>.

A atribuição de valores fonéticos foi um avanço em direção a uma escrita


alfabética, no entanto, ainda não era o suficiente, pois, nas escritas ideográficas,
eram necessários muitos símbolos para que o homem pudesse fazer seus
registros cotidianos.

Da notação das palavras, o homem enfim passou Se fizermos a


a notação dos sons. Seja de sinais ou de palavras, notação apenas
isso realmente supõe um considerável estoque de
dos elementos
sinais e, consequentemente, uma imensa memória
visual para a leitura. Se fizermos a notação apenas fonéticos que
dos elementos fonéticos que constituem as palavras, constituem
obteremos um material gráfico infinitamente mais as palavras,
restrito (HIGOUNET, 2003, p. 14). obteremos um
material gráfico
infinitamente mais
Mas como se chegou ao alfabeto, mais especificamente ao restrito.
nosso alfabeto? Os fenícios, levados principalmente por necessidades
comerciais, extraíram 24 símbolos do sistema lexical-silábico dos
egípcios e formaram o seu silabário.

155
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 60 - Escrita alfabética

Fonte: Disponível em: <http://www.invivo.fiocruz.br/cgi/cgilua.exe/sys/


start.htm?infoid=911&sid=7>. Acesso em: 22 ago. 2016.

Figura 61 - Evolução das letras

Fonte: Disponível em: <https://torqueteam.files.wordpress.


com/2009/04/escrita25.jpg>. Acesso em: 23 ago. 2016.

Uma característica interessante deste sistema é que eram representadas


apenas as consoantes, com exceções para as semivogais /j/ e /w/. Essas
consoantes possuíam o valor de sílabas. Se você escrevesse a letra ‘D’, por
exemplo, poderia ser lida como /da, de, di, do, du/. Isso ocorreu porque nas
línguas semíticas não era muito importante marcar as vogais e também em função
da própria percepção das sílabas.

156
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Esse processo se assemelha a etapa silábica, que ocorre durante a


alfabetização. Não é exatamente o mesmo processo, pois, naquela época, ainda
não se dominava o alfabeto. No entanto, a naturalidade com que ocorre na vida
de muitos indivíduos nos faz refletir sobre a razão de ser desta etapa na evolução
da escrita em direção ao alfabeto.

Os gregos adaptaram o sistema de escrita fenícia, criando símbolos para


as vogais e, assim, desenvolveram o sistema de escrita alfabética. “A escrita
alfabética é a que apresenta um inventário menor de símbolos e permite a maior
possibilidade combinatória de caracteres na escrita” (CAGLIARI, 1999, p. 110).
Para eles, a escrita já tinha funções de registro de conhecimentos, de literatura,
filosofia entre outros. Um sistema alfabético, próximo da fala, viabiliza o registro
de conteúdos mais abstratos e ainda de forma artística. Entre os gregos foi
aperfeiçoado, adaptando, inclusive, o traçado das letras, em busca de beleza e
funcionalidade.

De forma geral, falamos sobre os gregos, no entanto, o


estudo aprofundado da história mostra que outros povos, em
outros locais, também já chegavam ao alfabeto. Por uma questão
de registro, citamos mais os gregos, mas, se você quiser se
aprofundar e conhecer mais, leia a obra “A história concisa da
escrita”, de Charles Higounet.

Os romanos adaptaram a escrita grega e criaram o alfabeto greco-latino, de


onde provém o nosso alfabeto. Obviamente não foram apenas os romanos que
o fizeram, quanto maior o movimento dos povos, maior o entrosamento entre as
culturas, invenções e histórias. No entanto, para o nosso estudo, o foco realmente
é o alfabeto adaptado pelos romanos, cujo domínio foi tão significativo, que o
alfabeto continuou sendo empregado, mesmo após a queda do Império Romano.

Nessa época, a escrita passou a fazer parte de fato da vida social, sendo cada
vez mais necessária. Ainda não era algo acessível à população em geral, mas sua
relevância pode ser sentida pela quantidade de registros que se tem deste tempo.
Os escribas eram profissionais extremamente valorizados e detentores de um
conhecimento que ainda estava longe de fazer parte da vida de todos.

A escrita alfabética representou outro grande salto na evolução, talvez o salto


final. Estima-se que as adaptações gregas tenham sido feitas no final do segundo
milênio, no entanto, em termos de princípio (representação dos sons por letras)
não houve grandes evoluções desde então. O que reforça o pensamento de Sven
Ohman (apud KATO, 1999, p. 16)., “[...] na verdade a invenção da escrita alfabética

157
Desenvolvimento da linguagem escrita

é uma ‘descoberta’, pois, quando o homem começou a usar um símbolo para cada
som, ele apenas operou conscientemente com o seu conhecimento da organização
fonológica de sua língua”.

Para as crianças, a compreensão do sistema alfabético também representa


um avanço. Depois dessa descoberta, começa um trabalho que visa dar conta das
convenções e propriedades de cada língua, etapa que não pode ocorrer enquanto
não se entende como se dá a representação da fala.

Após a invenção/descoberta da escrita alfabética, assim como na


alfabetização, o que se modificaram foram os traçados das letras, algumas
inclusões, sinais de pontuação e assim por diante. Modificações na forma e não
no princípio. Passamos pelo alfabeto latino, romano, escritas carolíngeas, góticas
e chegamos a mais uma revolução – a invenção dos textos impressos, em torno
de 1450, na figura de Gutenberg principalmente.

Figura 62 - Página da Bíblia de Gutenberg - 1455

Fonte: Disponível em: <https://www.wdl.org/pt/item/7782/>. Acesso em: 25 ago. 2016.

A invenção da prensa auxiliou principalmente na difusão da escrita, através


da impressão de livros, revistas, jornais, cartazes, panfletos e também o acesso
a estes materiais. Começou-se a imprimir com uma tipografia gótica, mas logo
o sistema foi sendo modificado e criadas novas fontes, para atingir públicos e
objetivos diferentes. Nesse momento, a tipografia passaria a sofrer a influência do
design e também das exigências da publicidade, como acontece até hoje.

158
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Assim, a escrita vai adquirindo novos papéis sociais, vai sendo modificada
para atingir objetivos diversos, que vão muito além dos registros de fatos, histórias
e memórias.

As categorias da tipografia que foram desenvolvidas a partir


da invenção da prensa figuram até hoje nas fontes dos nossos
computadores, como exemplo, a fonte antiqua, o formato itálico,
garamond (criada por Claude Garamond), baskerville e futura.

Há, ainda, outro aspecto desta que é importante destacar, principalmente se


quisermos compreender o que ocorre com as crianças em fase de alfabetização.
Com exceção dos pictogramas e de alguns ideogramas, toda a escrita é fruto de
convenções. Além dos símbolos fixados e convencionados, também o sentido do
texto, o traçado das letras, a distribuição na folha de papel são convenções. Se
observarmos outros sistemas de escrita, veremos que a escrita da esquerda para
a direita e de cima para baixo, tão comum para nós, não é uma unanimidade.

Os chineses e japoneses, além de usarem ideogramas, também escrevem


da direita para a esquerda e em colunas verticais. A escrita árabe também usa o
sistema da direita para a esquerda.

Qual a relevância de compreendermos estes aspectos da evolução da


escrita e das convenções por nós adotadas e aceitas? Nossas concepções sobre
a escrita vêm, muitas vezes, das nossas percepções como pessoas letradas,
ou seja, para nós parece natural o sentido das letras e da escrita, a separação
em palavras, sílabas e sons, mas, quando estamos em contato com crianças ou
mesmo adultos que iniciam este processo, percebemos que estes conceitos não
são naturais, nem óbvios.

Observe a escrita espontânea de uma criança de 5 anos. Esta produção foi


feita em casa, de forma espontânea, sem uma solicitação prévia.

159
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 63 - Escrita espontânea

Fonte: Acervo das autoras.

Apesar do informante ter contato diário com livros e frequentar o Infantil


5, observa-se que as convenções da escrita ainda não fazem sentido para ele.
Além de não dominar o sistema ortográfico, a direção do texto também é um
fator que não o preocupa. Quando foi questionado sobre o que havia escrito,
fez a leitura, apontando com o dedo, a ordem e direção das palavras, que
acompanhavam o desenho.

No próximo texto, são evidenciadas outras convenções que ainda não foram
compreendidas, agora por uma criança de 6 anos. A produção também foi feita
em casa, de forma espontânea e sem solicitação.

Figura 64 - Convenções na escrita

Fonte: Acervo das autoras.

Neste texto, observa-se a compreensão do sentido da escrita, mas ainda não


há convenção de maiúsculas e minúsculas e também da separação das palavras.

160
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

No início do processo, é muito comum a inversão das letras, principalmente


“p, b, d e q”. Para as crianças, tanto faz, e, por isso, o ensino é necessário. As
convenções são arbitrárias, e, portanto, necessitam ser ensinadas.

Retornando a história da escrita, podemos observar que a evolução


aconteceu porque o homem tinha necessidade de escrever, por fins culturais, por
fins religiosos, por fins sociais, não importa. Após o estabelecimento do sistema
alfabético, o acesso à escrita também necessitou de uma evolução. No princípio,
a escrita se restringia a poucos, era um instrumento de grande poder, mas, com
a invenção da imprensa, o texto escrito passou a fazer parte da vida das pessoas
comuns e, assim, várias modificações surgiram. Cagliari (1999, p. 112) destacou a
relevância da invenção da imprensa:

A invenção do livro e, sobretudo da imprensa


Para a maioria das
são grandes marcos da História da humanidade,
depois é claro, da própria invenção da escrita. Esta pessoas, além de
foi passando do domínio de poucas pessoas para o aprender a andar
público em geral e seu consumo é mais significativo e a falar, é comum
na forma de leitura do que na produção de textos. aprender a ler e a
Os jornais e revistas são hoje tão comuns quanto escrever.
a comida. Para a maioria das pessoas, além de
aprender a andar e a falar, é comum aprender a ler
e a escrever.

Para finalizar esta seção, traremos mais alguns depoimentos que gravamos
com crianças do primeiro ano do Ensino Fundamental, respondendo por que
necessitam aprender a escrever. Todos estão na mesma escola e na mesma turma.

Henrique- 6 anos
Para poder fazer provas e para poder viajar e para poder fazer o passaporte.

Mel – 6 anos
Eu quero aprender a escrever para poder escrever cartas, textos, escrever livros e
ser professora.

Lavínia - 7 anos
Porque aí eu posso escrever sozinha, sem a ajuda de ninguém.

Joaquim - 6 anos
Para saber fazer texto.

161
Desenvolvimento da linguagem escrita

Mariah - 6 anos
Porque depois eu posso aprender a ler. Aí vai ser muito legal, porque escrever um monte de
palavrinhas e ler um monte de palavrinhas.

Guilherme - 6 anos
Para aprender as coisas do mundo.

Nas respostas das crianças, notamos que as percepções estão voltadas para
as necessidades de cada um. A maioria deles associa a escrita com produções
escolares – provas, textos, palavrinhas. Mas também aparecem necessidades de
interação com a sociedade – viajar, passaportes e aprender as coisas do mundo.
E, por último, a autonomia – sem a ajuda de ninguém. E a questão da leitura
sempre será mencionada em algumas respostas. Para eles, escrita e leitura estão
muito relacionadas e, por vezes, aparentam ser a mesma coisa.

Podemos concluir que tanto a evolução da escrita pela humanidade como


os processos de alfabetização que vivemos individualmente possuem motivações
diversas, que se relacionam aos contextos e histórias dos indivíduos. O escritor
português José Saramago, em entrevista à revista Nova Escola, foi questionado
sobre o que significava escrever, ao que respondeu: “É ir descobrindo que tínhamos
na cabeça mais coisas do que havíamos suposto antes”.

Atividades de Estudos:

1) Observe a tirinha de Calvin e Haroldo, personagens de Bill


Watterson, e leia a citação do livro “O livro da escrita”, de
Ruth Rocha e Otávio Roth. Os autores abordam a escrita da
mesma forma? O personagem Calvin, que representa uma
criança, mostra a mesma percepção encontrada nas entrevistas
mencionadas?

162
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Figura 65 - Calvin e Haroldo – relevância da escrita

Fonte: Disponível em: <https://br.pinterest.com/


pin/308989224410856701/>. Acesso em: 27 ago. 2016.

Hoje, todas as sociedades civilizadas possuem uma escrita. O


mundo moderno precisa da escrita até para as coisas mais simples: a
compreensão de placas, as instruções para o manejo das máquinas,
as bulas de remédios. Precisa da escrita para desenvolver teorias
que levam ao desenvolvimento tecnológico, para a explanação de
sistemas filosóficos, para a discussão dos estudos religiosos. E a
escrita, que foi na Antiguidade privilégio de sacerdotes e nobres, é
hoje necessidade e direito de todos (ROCHA; ROTH, 1992, p. 26).
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163
Desenvolvimento da linguagem escrita

Para trabalhar com o tema, sugerimos o livro “O livro da


escrita”, de Ruth Rocha e Otávio Roth. O livro apresenta um texto
de fácil compreensão e ilustrações muito bem feitas.

Desafios Para uma Nova Época –


Letramento Digital
Figura 66 - Evolução dos suportes de escrita

Fonte: Disponível em: <http://livrariabookdigital.blogspot.com.


br/2013/08/introducao_1.html>. Acesso em: 27 ago. 2016.

Nos capítulos anteriores, já trabalhamos os conceitos de letramento e


alfabetização, mas retomaremos para que possamos avançar para o letramento
digital, afinal, não é possível pensar em educação, em desenvolvimento da escrita,
sem que pensemos nos meios digitais e novidades tecnológicas, e que, pelo
menos, possamos refletir sobre as implicações de tantos recursos nos processos
educacionais.

A professora e pesquisadora Magda Soares (2003) discute muito bem a


questão da alfabetização e letramento, por isso, retomaremos os conceitos que já
citamos no capítulo 3.

[...] a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no


mundo da escrita se dá simultaneamente por dois processos:
pela aquisição do sistema convencional de escrita – a
alfabetização, e pelo desenvolvimento de habilidades de uso
desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas
sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. Não
são processos independentes, mas interdependentes, e
indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto de
e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é,
através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode

164
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem


das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da
alfabetização (SOARES, 2003, p. 12, grifos do autor).

Os sujeitos entram em contato com o mundo da escrita, na maioria das vezes,


antes de sua escolarização, da alfabetização. Muito cedo se familiarizam com um
ambiente repleto de escritas, logos, símbolos. A presença de livros, revistas e
jornais não é uma regra em todas as casas, mas o entorno das crianças, do seu
convívio, normalmente traz elementos de escrita. Portanto, as práticas sociais de
leitura e escrita antecedem o período escolar e também as práticas escolares.

Por isso, é relevante que a escola não ignore estes contextos e a relação entre
eles e o desenvolvimento da escrita. Nas respostas das crianças, apresentadas na
seção anterior, a preocupação com a escrita revelou características muito próprias
e relacionadas ao dia a dia e aos contextos em que estes sujeitos estão inseridos.

Kleiman (2005, p. 6) procura mostrar a relevância do contexto Forma de explicar


e afirma que “[...] o conceito do letramento surge como uma forma o impacto da
de explicar o impacto da escrita em todas as esferas de atividades escrita em todas
e não somente nas atividades escolares”. Portanto, a escrita não as esferas de
pertence apenas à escola, pertence aos contextos onde as crianças atividades e
não somente
estão inseridas. Geraldi (1999) também compartilha a concepção de
nas atividades
que os processos relacionados à escrita começam antes da inserção escolares.
dos sujeitos no ambiente escolar, mas procura mostrar qual seria o
papel da escola.

[...] pela escrita, cuja aprendizagem exige mediadores,


expandem-se nas escolas as oportunidades de processos
interlocutivos. [...] Trata-se de instâncias públicas de uso
da linguagem. Note-se, não era a linguagem que antes era
privada e agora se torna pública. São as instâncias do uso
da linguagem que são diferentes. E estas instâncias implicam
diferentes estratégias e implicam também a presença de outras
variedades linguísticas, uma vez que as interações não se darão
mais somente no interior do mesmo grupo social, mas também
com sujeitos de outros grupos sociais (GERALDI, 1999, p. 39).

Então, na escola, as crianças entrariam em contato com outras instâncias


de uso da linguagem, mas que são, também, práticas sociais de leitura e
escrita. Se observarmos, mais uma vez, as respostas dos nossos entrevistados,
perceberemos que tanto o contexto escolar como os outros contextos se fazem
presentes em suas concepções. Por exemplo, um deles acredita que precisa
aprender a escrever para fazer provas – contexto escolar – e para viajar e fazer o
passaporte – possivelmente algo que está vivenciando. Pelo menos dois acreditam
que precisam aprender a escrever para escrever e ler palavrinhas – característica
do contexto escolar, alguns já avançaram e visualizaram a possibilidade de

165
Desenvolvimento da linguagem escrita

escrever textos, mas outros querem poder guardar as ideias, aprender as coisas
do mundo e conseguir autonomia.

Estes exemplos nos auxiliam na compreensão de que a alfabetização e o


letramento andam juntos e que as práticas sociais de leitura e escrita não se
restringem ao contexto escolar.

Retomando nosso tema do início deste capítulo, a evolução da escrita, a


função da escrita na vida dos sujeitos e o letramento, precisamos pensar sobre
o avanço das tecnologias e as implicações destes avanços na vida das crianças.

Ao contrário da escrita, que levou um tempo relativamente grande para


chegar ao sistema alfabético, o uso das tecnologias avançou em velocidade
espantosa. Há quarenta anos, o acesso à escrita e à leitura se dava basicamente
através de livros, revistas, jornais e impressos diversos. Nas ruas, através de
placas, indicações de ônibus, outdoors e cartazes. Hoje, até nas famílias mais
humildes, há um celular do tipo smartphone ou um tablete, por onde circula todo o
tipo de informação, de atividade e de interação.

Os gregos instituíram o sistema alfabético, que foi adaptado e aperfeiçoado


em diferentes línguas. O uso de computadores nos permitiu avançar, mas, em
termos de sistema de escrita, apenas superficialmente. Podemos trabalhar com
fontes, tamanhos, cores diferentes, imprimir muitos textos, salvar e acessar
toda a informação que pudermos e continuamos evoluindo. Surgiu a internet
e, posteriormente, formas de acesso massificado à rede (web), redes sociais
e também formas de conversação instantâneas, antes possíveis apenas por
telefone.

Essas novas possibilidades de interação nos fizeram evoluir um pouco


mais. Chats, MSN, Twitter, WhatsApp, Snapchat – demandam rapidez, agilidade
e facilidade. O que não se escreve rapidamente, pode ser gravado, filmado e
fotografado. Observe estas duas interações através do WhatsApp.

Figura 67 - Diálogos do Whats

Fonte: Acervo das autoras.


166
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Na primeira conversa do WhatsApp, observamos o uso de ‘emoticons’, são


três pessoas diferentes usando ícones e quase nenhuma palavra. É interessante
notar que, para facilitar, para avançar nos sistemas de escrita, acabamos
retornando a uma escrita ideográfica. Acreditamos que os sacerdotes egípcios se
sentiriam mais a vontade do que nossos bisavôs.

Na segunda interação, uma nova surpresa, um participante escreve e o outro


fala e envia sua resposta gravada. É uma grande inovação, que nos faz pensar:
os registros podem ser feitos de muitas formas, não apenas pela escrita. Isso
aponta para a multimodalidade.

No exemplo a seguir, vemos um quadro com palavras que pertencem ao


chamado ‘internetês’. É quase o retorno a uma escrita silábica. Tudo em nome da
simplificação e facilidade. Um suposto avanço com traços de antiguidade!

Figura 68 - Usos da linguagem na internet

Fonte: Disponível em: <http://www.tecmundo.com.br/?>. Acesso em: 28 ago. 2016.

E como estas mudanças e novidades têm chegado ao âmbito educacional?


Como elas interferem nas concepções de letramento?

167
Desenvolvimento da linguagem escrita

Figura 69 - Calvin e os textos

Fonte: Disponível em: <https://www.google.com.br/


search?q=escrita+calvin+e+haroldo&rlz>. Acesso em: 28 ago. 2016.

As novas tecnologias trouxeram para a sociedade novas formas de práticas


sociais de escrita e leitura, o que tende a ampliar nossa compreensão de letramento.
Soares (2002, p. 146) reflete sobre o tema e nos chama à reflexão:

É, assim, um momento privilegiado para, na ocasião mesma


em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão
sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão
instituindo: um momento privilegiado para identificar se
as práticas de leitura e de escrita digitais, o letramento na
cibercultura, conduzem a um estado ou condição diferente
daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita
quirográficas e tipográficas, o letramento na cultura do papel.

Estas mesmas tecnologias trazem para a educação, além das


Um certo estado
novas práticas sociais de leitura e escrita, uma nova terminologia e uma
ou condição que
adquirem os que se nova discussão. Um dos primeiros termos que gostaríamos de definir
apropriam da nova é o letramento digital, Soares (2002, p. 151) traz um conceito bastante
tecnologia digital e simples e que pode contribuir para o nosso entendimento: “[...] um
exercem práticas certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova
de leitura e de tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela,
escrita na tela. diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem
práticas de leitura e de escrita no papel”.

Ribeiro e Coscarelli (2005) ampliam este conceito, incluindo os


Uso de textos celulares e tabletes, que têm assumido o lugar dos computadores.
em ambientes
Em muitas escolas, os tabletes fazem parte do material escolar, com
propiciados pelo
computador ou por os livros didáticos ou mesmo os substituindo. Para estas autoras, o
dispositivos móveis, letramento digital:
tais como celulares
e tablets, em [...] diz respeito às práticas sociais de leitura e produção de
plataformas como textos em ambientes digitais, isto é, ao uso de textos em
e-mails, redes ambientes propiciados pelo computador ou por dispositivos
sociais na web. móveis, tais como celulares e tablets, em plataformas como

168
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

e-mails, redes sociais na web, entre outras (RIBEIRO;


COSCARELLI, 2005).

As práticas de leitura e escrita que se realizam neste meio envolvem uma


capacidade de selecionar recursos, os motivos, os interlocutores e os textos
adequados para cada situação. Envolve, também, o acesso consciente a uma rede
de informações que prevê uma capacidade de selecioná-las e filtrá-las.

Os hipertextos também modificam a forma de interação do leitor com o que


está sendo lido, enquanto o texto no papel é linear, possui uma única direção de
leitura, linha por linha, páginas numeradas, o hipertexto é multilinear, cheio de
links, cujo início e fim são determinados pelo leitor. A respeito deste tipo de leitura
e escrita, Soares (2002, p. 152) afirma:

Pode-se concluir que a tela como espaço de escrita e de


leitura traz não apenas novas formas de acesso à informação,
mas também novos processos cognitivos, novas formas de
conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim,
um novo letramento, isto é, um novo estado ou condição para
aqueles que exercem práticas de escrita e de leitura na tela.

Ainda há poucas pesquisas sobre os novos processos cognitivos que surgem


destas novas formas de escrever, ler e acessar conhecimentos e informações.
O que se percebe, no entanto, é que a realidade escolar ainda está longe de
compreender o que está acontecendo através das novas formas de letramento.
Ainda há muita resistência ao uso de tecnologias, que, muitas vezes, são
empregadas apenas como um suporte diferenciado.

Na área da alfabetização, há inúmeras pesquisas sobre como os


computadores e tablets podem ser facilitadores dos processos, mas, também, na
mesma proporção, há muitas críticas sobre os efeitos prejudiciais da tecnologia
ao desenvolvimento infantil. Neste material não temos como aprofundar esta
discussão, mesmo porque seria necessário um caderno de estudo inteiro para
isso. Deixaremos sugestões de leitura, inclusive de pesquisas realizadas a partir
de propostas didáticas, para que você possa refletir e chegar às suas próprias
conclusões.

Um fato é certo, algumas crianças tem acessado smartphones, tablets e


computadores antes mesmo de chegar aos livrinhos e outros brinquedos. Cada
vez é mais comum encontrar os pequenos sendo intertidos por estes recursos. Isso
modifica a forma de aprender, escrever e ler, mas, com compreensão e estudo,
podem ser aliados dos educadores e de pessoas que lidam com a linguagem.

169
Desenvolvimento da linguagem escrita

Sugerimos que você pesquise os termos multimodalidade e


alfabetização digital no Glossário CEALE - <http://ceale.fae.ufmg.br/
app/webroot/glossarioceale/>. Faça deste exercício uma experiência
de leitura em um hipertexto, utilize os links que possam aprofundar
o seu entendimento e pense tanto no conteúdo como na forma de
interação com este tipo de glossário online.

Atividades de Estudos:

1) Para finalizar nossas atividades de estudo, leia os dois excertos


de entrevistas com as pesquisadoras Emilia Ferreiro e Ana
Teberosky, sobre o uso dos computadores na alfabetização.
Reflita sobre o que estudamos até aqui e como as respostas
podem contribuir para esta construção.

Entrevista com Emilia Ferreiro:

TELMA WEISZ: Muita gente está falando em alfabetização


digital. O que você pensa disso? 

EMILIA FERREIRO: Não gosto dessa expressão pois creio


que a alfabetização no século 21 inclui todos os objetos em
que circulam imagens e textos. No passado, o quadro negro
era o suporte principal da escrita. Depois, foi preciso incluir
outros objetos, como os livros de estudo. É necessário introduzir
os alunos em uma cultura escrita que tem como principal
característica a variedade de superfícies sobre as quais se
realizam as escritas, incluindo todos os procedimentos digitais
que conhecemos hoje e os que virão. Atualmente, existem
cláusulas inconcebíveis em contratos, como a que diz “esta
obra pode ser reproduzida em qualquer tipo de superfície que
conhecemos ou vamos conhecer...”. Ninguém sabe o que virá
pela frente, mas temos de estar preparados para mudanças. 

TELMA WEISZ: O computador disponibiliza muitos recursos para


a escrita e uma infinidade de tipografias. 

EMILIA FERREIRO: Exatamente, nada disso existia no passado.


Eram recursos da imprensa e hoje são acessíveis para qualquer

170
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

pessoa. Quantas crianças mandam mensagens de texto pelo


celular e não digitam com os dedos que tradicionalmente eram
usados para escrever? Elas recorrem aos polegares, que não
eram particularmente interessantes para produzir letras. Agora
também se escreve com as duas mãos, não só com uma. Há
algumas discussões que envelheceram, como a relacionada
ao ensino da letra cursiva. Em qualquer processador de textos
se pode escolher a opção cursiva ou a gótica, por exemplo, ou
mesmo usar caracteres maiúsculos. 

Fonte: http://novaescola.org.br/fundamental-1/nova-escola-promove-encontro-
emilia-ferreiro-telma-weisz-alfabetizacao-753011.shtml?page=1

Entrevista com Ana Teberosky:

O computador pode ajudar na alfabetização?

Ana Teberosky - O micro permite aprendizados interessantes.


No teclado, por exemplo, estão todas as letras e símbolos que a
língua oferece. Quando se ensina letra por letra, a criança acha
que o alfabeto é infinito, porque aprende uma de cada vez. Com
o teclado, ela tem noção de que as letras são poucas e finitas.
Nas teclas elas são maiúsculas e, no monitor, minúsculas, o
que obriga a realização de uma correspondência. Além disso,
quando está no computador o estudante escreve com as duas
mãos. Os recursos tecnológicos, no entanto, não substituem o
texto manuscrito durante o processo de alfabetização, mas com
certeza o complementam. Aqueles que acessam a internet leem
instruções ou notícias, escrevem e-mails e usam os mecanismos
de busca. Ainda não sabemos quais serão as consequências
cognitivas do uso do computador, mas com certeza ele exige
muito da escrita e da leitura. 

Fonte: http://novaescola.org.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/
debater-opinar-estimulam-leitura-escrita-423497.shtml

Para refletir sobre algumas práticas relacionadas aos


contextos tecnológicos, sugerimos o artigo: A aprendizagem da
escrita em contextos tecnológicos: um link ao letramento digital,
de Fernanda Maria Almeida dos Santos - <http://editorarealize.
com.br/revistas/fiped/trabalhos/Trabalho_Comunicacao_oral_
idinscrito_926_b1bc5fc394aaa1aca12ac5be04d1ebbe.pdf>.

171
Desenvolvimento da linguagem escrita

O livro Letramento digital:  aspectos sociais e práticas


pedagógicas contempla vários artigos que discutem o tema, trazendo
tanto questões teóricas como práticas.

COSCARELLI, Carla Viana; RIBEIRO, Ana Elisa


(Org.). Letramento digital: aspectos sociais e práticas pedagógicas.
2. ed. Belo Horizonte: Ceale, Autêntica, 2007.

Algumas Considerações
Neste capítulo, realizamos uma viagem entre o passado, presente e futuro
da escrita e conseguimos perceber o quanto este percurso histórico não é linear.
Há avanços e, ao mesmo tempo, retornos conceituais.

Foi possível observar, também, que o processo de evolução e modificação da


escrita está atrelado às necessidades, aos interesses e às motivações dos homens.
Talvez, por essa razão, a evolução não seja linear, porque atende mais a critérios
sociais, econômicos, religiosos e políticos do que, propriamente, critérios científicos.

O letramento digital, um fato presente e, com certeza, futuro, ainda precisa


ser estudado e pensado. No entanto, deve-se compreender que ele precisa ser
considerado nos processos de alfabetização e práticas docentes diárias.

Aproveitamos estas considerações para fechar também este caderno


de estudos, desejando que você tenha sido desafiado a rever posturas,
princípios e teorias. Sabemos que foram abordados muitos tópicos, alguns de
bastante complexidade, mas todos igualmente relevantes para a compreensão
do desenvolvimento da escrita. Sugerimos que você realize as leituras
complementares, que busque os aprofundamentos necessários e, principalmente,
que se permita crescer, acrescentar e mudar.

Como encorajamento, deixamos um pensamento do poeta Fernando Pessoa:

172
Capítulo 5 A Função da Escrita na Vida do Sujeito

Referências
CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. 10. ed. São Paulo: Scipione,
1999.

CÍCERO, A. Guardar. In: CALCANHOTO, A. (Org.) Antologia ilustrada da


poesia brasileira – para crianças de qualquer idade. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2013.

GERALDI, J. W. Linguagem e ensino. São Paulo: Mercado das Letras, 1999.

HIGOUNET, C. História concisa da escrita. São Paulo: Parábola, 2003.

KATO, M. No mundo da escrita. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999.

KLEIMAN, A. Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e a


escrever? Coleção Linguagem e letramento em foco: linguagem nas séries
iniciais. Ministério da Educação. Cefiel/IEL. UNICAMP, 2005. 65 p. Disponível
em: <http://www.letramento.iel.unicamp.br/publicacoes/artigos/preciso_ensinar_
letramento-Kleiman.pdf>. Acesso em: jun. 2016.

QUINO, J. S. L. Toda Mafalda – da primeira à última tira. 2. reimpressão. São


Paulo: Martins Fontes, 1995.

RIBEIRO, A.E.; COSCARELLI, C.V. Verbete: Letramento Digital. In: Glossário


CEALE - Termos de alfabetização, leitura e escrita para educadores. 2005.
Disponível em: <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/>. Acesso
em: 04 jun. 2016.
ROCHA, R; ROTH, O. O livro da escrita. São Paulo: Melhoramentos, 1992.

SARAMAGO, J. José Saramago: “ideias claras, escrita clara”. Entrevista


concedida à revista Nova Escola em 2003. Disponível em: <http://novaescola.
org.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/ideias-claras-escrita-clara-423611.
shtml>. Acesso em: 04 jul.2016.

SOARES, M. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Poços de


Caldas: ANPEd, 2003. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
73302002008100008>. Acesso em: 04 jul. 2016.

______. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ.


Soc., Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, Dec.  2002. Disponível em: <http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302002008100008&lng=en&
nrm=iso>. Acesso em: jul. 2016.

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