Cultura e Linguagem
Cultura e Linguagem
Cultura e Linguagem
AULA 1
CONVERSA INICIAL
A vida humana, com isso, não é apenas um fenômeno evolutivo natural, mas
Fica claro que essas relações apresentam capacidades únicas do humano, como
Com isso, podemos perceber que o ser humano não é um ente isolado de
seu meio, ele está em constante contato com os outros e compartilha meios
comuns de produzir sua vida, perceber seu papel social e construir determinados
valores, ainda que tácitos, que vão reger sua presença no mundo social. O
elemento implícito dessas relações pode ser chamado de cultura, pois se trata de
uma forma de vida que está para além de uma percepção consciente dos seres
humanos envolvidos nas relações, apontando para uma dimensão “espiritual” das
conceitos são tão complexos nas ciências sociais como este. Há uma explosão de
Por fim, traremos definições das ciências sociais para definirmos com alguma
seus modos de vida. Mas é somente com a Revolução Industrial, nos séculos XVIII
e XIX, que a cultura entra como uma palavra a ser debatida, passando assim por
uma transformação semântica.
Cultura é palavra de origem latina e em seu significado original está ligada às atividades agrícolas. Vem
do verbo Latim “colere”, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram essa
significação e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na expressão cultura
originais, estava ligada diretamente a uma ação feita sobre a natureza, ligada
nos diz Santos (1983), vão aplicá-lo ao cultivo de si, ao cultivo das boas ideias, do
bom comportamento e da boa vida.
apontam para outras questões. No século XIX, com o grande crescimento das
cidades e da indústria, isto é, do que ficou conhecido como civilização, ela ganha
novos contornos. Tal mudança na ordem social gera impacto nos modos de vida
dos sujeitos, que assumem posturas ora críticas, ora elogiosas sobre a forma de
vida nascente.
transformação dos sentidos da palavra nos dá pistas sobre a forma como ela será
Com base em suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra primeiro significa algo como
"civilidade", depois no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima de civilização, no sentido de um
equipara significativamente costumes e moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete assim como
Há, com isso, uma abertura que faz com que a cultura possa der definida de
diferentes formas que estão em disputa pela sociedade como um todo. Podemos
dizer que cultura é aquilo que separa o ser humano da natureza, isto é, as
segundo como uma crítica a essa mesma civilização, numa tentativa de retorno a
situam os sentidos que ainda hoje são produzidos em nossa sociedade. Portanto,
podemos dizer que a ideia de cultura é um objeto de luta política, já que nela
vivemos e, a partir dela percebemos os acontecimentos do mundo e nos situamos
e situamos os outros na sociedade.
relação cultura-natureza. Uma dicotomia clássica que está na origem não apenas
do debate, mas situa as definições daquilo que podemos chamar de ser humano.
questão insolúvel, ela nos leva a uma pergunta filosófica que muitas vezes recai
Esses dois exemplos nos mostram que esse descolamento da natureza não
tem uma resposta fácil. Mas também nos mostra as formas como a cultura
ocidental trata do tema das origens e destinos do humano, sendo estes também
temas culturais.
Porém, há um fato inescapável, vivemos em um mundo cultural, que definiu
a existir depois de nossa morte. Mas, afinal, como chegamos a esse estado? O
forma como a produzimos? O primeiro ponto a ser destacado sobre essa questão
vem de Freud (2010 [1930]):
O que buscam os homens? É difícil não acertar a resposta; eles buscam a felicidade, querem se tornar
e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência
de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. (p. 29-30)
próprio corpo ou das relações que estabelece com outras pessoas. Para o autor,
Tal meta de maximização do prazer possui seus limites, já que ela depende
sempre de objetos – e aqui entendemos objeto como aquilo que está fora do
sujeito, podendo ser outro sujeito, ou objetos da natureza. Essa relação com os
objetos é onde está, na hipótese freudiana, o surgimento da cultura.
O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução,
não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode
se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com
é transformada em uma mesa, por exemplo. A essa mesa é dada uma função,
significado – fazendo com que aquilo dado de início naturalmente se torne outra
coisa.
vida, o tempo do trabalho, da caça, do lazer, dos cuidados etc. Esses novos ritmos
Isso não quer dizer que há aqui uma evolução, isto é, que todas as culturas
levam a um mesmo fim. Cada cultura teve seus modos específicos de produzir
sentido para as relações, sejam humanas ou com a natureza. O que se pode dizer
de proteção e controle ante ao intempestivo e ela não foi feita sem um preço a
ser pago. A saída do mundo natural gerou seus efeitos, colocando como centro
do processo as relações humanas.
cultura aponta para todo um modo de vida histórico construído pelos seres
humanos que está na base de toda a sociedade.
constroem a identidade dos sujeitos sociais que vivem sob uma determinada
A riqueza de formas das culturas e as suas relações falam bem de perto a cada um de nós, já que
convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos fazem pensar na natureza de todos os seres
sociais de que fazemos parte, nos fazem indagar das razões da realidade social de que partilhamos e
Dessa forma, ela nos leva a considerar tal processo não como uma evolução
linear da humanidade que nos levaria a um modo de vida único, mas nas
vida social de determinada forma e não de outra. Além disso, olhar para a
Como diz Eagleton, “a cultura [...] não significa uma narrativa grandiosa e
Essa é a definição que nos permite falar de, por exemplo, cultura indígena,
mitos, suas histórias, seu modo de vida como um todo. Além disso, olhar as
especificidades históricas de cada uma dessas populações faz com que possamos
e sociais. “Definir o próprio mundo da vida como uma cultura é arriscar relativizá-
la. Para uma pessoa, seu próprio modo de vida é simplesmente humano; são os
mostra que não há processo evolutivo linear, mas que existem diferentes formas
A Nação abarcaria com isso os valores que movem determinado país. Isto é,
Por fim, precisamos destacar que a cultura, enquanto modo de vida, está
Nas discussões que fizemos até o momento fica patente que a cultura é um
observar que ela está calcada sempre na relação com o "outro”, seja este a
natureza ou a sociedade.
valores que media e controla essas relações. Além disso, em uma sociedade que
Laicidade), como a nossa, ela também aponta para as relações de poder que
sustentam a hierarquia social. De acordo com Freud (2010[1930]):
A palavra civilização designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida
daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a
natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. (p. 49)
Esse fato aponta para uma das contradições da civilização, ela estipula um
Dessa forma, ela aponta para dois aspectos: o primeiro para a ciência
Cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura dominante, e por outro, a qualquer cultura.
No primeiro caso, cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie; e cultura é então a própria marca
da civilização. Ou ainda, a alta cultura surge como marca das camadas dominantes da população de
uma sociedade; se opõe à falta de domínio da língua escrita, ou à falta de acesso à ciência, à arte e à
religião daquelas camadas dominantes. No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de
qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de
Com isso, temos que a cultura como civilização aponta para dois aspectos.
população, não possui cultura, ou só tem acesso àquilo que de pior foi produzido
por ela mesma. Está na base disso os julgamentos estéticos e éticos sobre essas
é uma das bases, por exemplo, do racismo, que visa tratar a população negra de
determinada sociedade como inferiores.
Esse segundo ponto é o que mais se aproxima das definições de Freud sobre
a relação complexa que temos com a civilização. Se uma das origens dos conflitos
são as relações humanas, e estas são mediadas pelos valores culturais dominantes
Para ele dois são os valores que estão na base da civilização enquanto
Com isso, Freud (2010 [1930]) está dizendo que, ao adentrarmos no mundo
da cultura, estamos fazendo uma troca. Isto é, trocamos uma porção de nossa
os conflitos culturais. Já que é por meio deles que articulamos nossas identidades
Vimos até agora que a cultura é todo um modo de vida que produz sentido
Aqui é preciso fazermos uma definição mais ampla do que seja a linguagem.
Quando falamos nesse termo, não estamos reduzindo-o apenas à língua nacional
que os povos falam, a linguagem é um elemento mais amplo dessa realidade, ela
se materializa não apenas na língua, mas nos rituais, nos sinais de trânsito, nos
do modo de vida das sociedades, pois é ele que está na base da compreensão do
Contudo, esse processo de troca simbólica que sustenta a cultura não é algo
após as revoluções burguesas, a vitória dessa classe social fez com que seus
de universalidade, mas sua origem está ligada aos valores em disputa contra a
Além desses exemplos, se nos voltarmos para o sujeito e sua relação com a
que a significa, que permitem, por exemplo, que uma ideia expresse um acontecimento, descreva um
sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa
formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. (Santos, 1983. p. 41-42)
Por fim, é possível afirmar que a cultura está na base do processo social
enquanto uma forma de simbolizar essa vida, isto é, à forma como se produz
sentido para o mundo, tendo a linguagem como seu fundamento principal.
NA PRÁTICA
disso, é possível dizer que o discurso sobre “ser brasileiro” possui elementos de
seriam esses elementos? Discuta com seus colegas sobre o processo histórico da
formação da identidade nacional.
FINALIZANDO
sentido que está na base das nossas relações sociais. Ela foi a responsável por
nos separar do estado de natureza e a fazer com que o humano produzisse algo
que estava para além do natural.
dessa forma, ganha uma duplicidade, ao mesmo tempo em que aponta para um
sentido normativo sobre o que é “ser civilizado”, sobre o bom e o belo, ela tem
O mais importante que precisamos ficar atentos é que a cultura não é algo
estanque, ainda que sua mudança seja um processo longo e demorado, ela é de
CULTURA E LINGUAGEM
AULA 2
Prof. Cícero Costa Villela
CONVERSA INICIAL
CULTURA E REPRESENTAÇÃO
linguagem, esta entendida como algo mais amplo que a língua, que abarca
imagens visuais, conceitos, rituais, enfim, toda e qualquer prática simbólica que
sustenta os significados compartilhados em nossa sociedade.
da análise dos conflitos culturais no mundo contemporâneo. Além disso, nos abre
comunidade ou estrato social, como afirma Hall (2016), tratá-las dessa forma é
entrar naquilo que há de mais atual no debate sobre a cultura,
Nos últimos anos, porém, a palavra “cultura passou a ser utilizada para se referir a tudo o que seja
grupo social – o que veio a ser conhecido como definição “antropológica”. Por outro lado, a palavra
também passou a ser utilizada para descrever os “valores compartilhados” de um grupo ou de uma
sociedade – o que de certo modo se assemelha à definição antropológica, mas com uma ênfase
Com isso, devemos ter claro que, a partir de agora, sempre que nos
“valores compartilhados”, pois são eles que nos permitem pluralizar a abordagem
sobre a cultura e que abrem espaço para um trabalho mais amplo das relações
com a linguagem.
de maneira irrestrita por todo o globo. Estamos aqui no cerne daquilo que
Adorno (1994) chamava de Indústria Cultural. Vivemos, com isso, em meio a todo
alienação dos sujeitos sociais se sustenta apenas até determinado ponto, já que
apropriação desses valores pelas pessoas. Além disso, ele desconsidera que há
Esse é ponto que Du Gay et al. (1997) vão abordar, eles nos falam de um circuito
cultural, conforme a figura a seguir:
circulação de valores sociais, tendo como base a linguagem. Nesse aspecto, entra
sociais, e o uso que estes fazem desses produtos. Tais usos que são de ordem
pertencem à mesma cultura equivale a dizer que eles interpretam o mundo e maneira semelhante e
podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma que um compreenda o outro. (Hall, 2016,
p. 20)
determinado grupo, cidade, país etc. Ela que sustenta as histórias que contamos,
uma troca desigual. Esse elemento serve, por exemplo, para pensarmos as
que aponta para os sentidos do que é ser “mulher” e “seu lugar na sociedade”.
Tal resposta está embebida em um sistema de valores que situa relações de poder
e discrimina os sujeitos sociais.
falar em algo que se coloca no lugar de outra coisa, por exemplo, uma palavra
relações sociais e, ao mesmo tempo, produz o laço social. Como afirma Hall (2016,
p. 20), “os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles
Em parte, nós damos significados a objetos, pessoas e eventos por meio de paradigmas de
interpretação que levamos a eles. Em parte damos sentidos às coisas pelo modo como as utilizamos
ou as integramos em nossas práticas cotidianas. É o uso que fazemos de uma pilha de tijolos com
argamassa que faz disso uma “casa”; e o que sentimos, pensamos ou dizemos a respeito dessa “casa”
um “lar”. Em outra parte ainda, nós concedemos sentido às coisas pela maneira como
as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu
respeito, as imagens que delas criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras como a
classificamos e a conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos. (Hall, 2016, p. 21)
O processo descrito por Hall nos mostra como essas representações são
questão ele fala da passagem da “casa” para o “lar”, ambas que designam o
– situa os objetos para além deles mesmos, ou seja, não há o objeto em si, sua
eles valem por essas relações. Estas que permitem a construção de diferentes
[...] a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto
não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento. (Hall, 2016, p. 26)
seu estudo, já que ela traz de volta a dimensão do sujeito, dos usos que ele faz
disputa por novos significados sociais para determinados grupos e sujeitos, até
então apartados, ou não reconhecidos, pela vida comum da sociedade.
da cultura, já que, agora, ela vai buscar compreender o sistema simbólico em seu
enquanto uma prática, como já ressaltamos, e, por isso, ela transborda a descrição
podemos afirmar que essas práticas funcionam ‘como se fossem línguas’ não porque elas são escritas
ou faladas (elas não são), mas sim porque todas se utilizam de algum componente para representar
ou dar sentido àquilo que queremos dizer e para expressar ou transmitir um pensamento, um conceito,
madeira. Mas quando inserida no contexto da fé, ela se torna outra coisa, ela
à comunidade cristã, ela é um dos elementos que produz o laço entre esses
sujeitos.
Primeiro, há o “sistema” pelo qual toda ordem de objetos, sujeitos e acontecimentos é correlacionada
a um conjunto de conceitos ou representações mentais que nós carregamos. Sem eles jamais
que esse elemento ocupa. Pensemos, por exemplo, em conceitos abstratos como
que não se trata de uma coleção aleatória de conceitos, mas que todo o processo
de organização deles que está baseado nas relações que estabelecemos entre
nós e os fenômenos do mundo.
mesmos mapas conceituais em si. “Uma vez que nós julgamos o mundo de forma
de maneira relativamente similar, podemos construir uma cultura de sentidos
Saussure (1916), “um tesouro social depositado na mente dos falantes”. Isso
significa que temos uma dupla articulação, as representações mentais que temos
coloca nessa posição, já que para discordamos é preciso que todos estejamos
imersos na linguagem.
uma certa concepção referencialista da linguagem. Isso significa que não estamos
mais lidando com a relação referencial entre linguagem e coisa, mas com
torna menos clara, fazendo com que um mesmo acontecimento possa ser
mesma ação que pode ser nomeada de maneiras positivas ou negativas. Isso
afeta a percepção pública sobre o evento, seus sujeitos, tendo por base diferentes
códigos culturais que sustentam essas percepções.
Somos nós quem fixamos o sentido tão fortemente que, depois de um tempo, ele parece natural e
inevitável. O sentido é construído pelo sistema de representação. Ele é constituído e fixado pelo código,
que estabelece a correlação entre nosso sistema conceitual e nossa linguagem, de modo que, a cada
vez que pensamos em uma árvore, o código nos diz para usar palavra em português ÁRVORE, ou a
É preciso levar em conta que esses mapas conceituais não são determinados
não possui uma relação necessária. A princípio, qualquer relação de sons e letras
pode se referir a determinada coisa. O que conta nos códigos culturais é a relação
que sons, letras, conceitos estabelecem entre si.
Dessa forma, podemos dizer que a língua tem íntima relação com tais
processo pode ser visto na linguagem dos esquimós. Enquanto em nossa língua
temos três palavras para fenômenos da água em estado sólido (gelo, neve e
granizo), eles, por viverem nesse clima, desenvolveram um vocabulário que é
capaz de diferenciar múltiplos aspectos de tal estado.
Percebemos com isso que a relação entre língua e cultura se dá por meio
Em termos gerais, podemos dizer que existem três diferentes enfoques para
uma delas visa responder às seguintes perguntas: “De onde vêm os significados?”;
a imagem de uma cabra, por exemplo, contudo ela não aborda o fato de que tal
imagem é na verdade um signo e que suas relações com mundo real são apenas
uma das quais ela estabelece na produção de sentido, já que ela também se
articula com os outros signos visuais apresentados na imagem. Hall (2016) vai
utilizar a rosa como exemplo para tal funcionamento,
É claro, podemos usar a palavra rosa para fazer referência à planta real e verdadeira crescendo no
jardim, como dissemos antes. Mas isso funciona porque eu conheço o código que liga o conceito a
uma palavra ou imagem particular. Eu não posso pensar, falar ou desenhar com uma rosa verdadeira.
(p. 47)
Esse caso nos coloca o fato de que a diferença de códigos culturais vai fazer
falante. As palavras vão significar aquilo que o autor pretende que elas
signifiquem.
por exemplo, está para além dos significados privados que damos aos objetos,
ela é pública, fazendo com que os sentidos preexistam àquilo que falamos. Ou
A linguagem é um sistema social por completo. Isso significa que nossos pensamentos privados
precisam negociar com todos os sentidos das palavras ou imagens guardadas na linguagem que o uso
etapas, temos a abordagem construtivista. Ela vai afirmar que nem as coisas, nem
São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, seja a língua ou outro
sistema de representação, fazendo com que ele seja compreensível e, com isso,
possa ser comunicado com os outros. Olhada por esse aspecto, a linguagem é
isolada, ela é sempre assujeitada pelo sistema da língua e da cultura que preexiste
a nós, mas é ela também que possibilita a mudança – sempre coletiva – dos
significados sociais. É por meio desse sistema que construímos laços, que nos
aproximamos uns dos outros, mas que também se estabelecem conflitos e
NA PRÁTICA
FINALIZANDO
A linguagem deve ser vista enquanto uma prática social, que produz e altera
disso, ela é um elemento social, “um tesouro social depositado na mente dos
falantes”, que se inserem num mundo de sentidos que já existam antes deles. Tal
CULTURA E LINGUAGEM
AULA 3
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CONVERSA INICIAL
cultura como foco e a representação como aquela que tem por papel ligar cultura,
língua à realidade. Nesta etapa, vamos passar para o outro lado da questão e
Além dele, veremos as relações entre língua e poder por meio da perspectiva
A razão recebe as ideias mediante as sensações, a memória e a experiência. Daí nascem os conceitos.
A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece a verdade das coisas, permite que haja
material recebido da representação, que são as proposições completas em si, podendo ser verdadeiras
ou falsas porque dizem algo sobre o que foi expresso. No processo de significação, há três elementos:
o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma entidade física, uma ação, um acontecimento.
verdade de suas expressões que são atestadas empiricamente por meio do olhar,
do sentimento e da elaboração. Só há significados porque há fatos significativos.
Essa forma de tratar a língua perdura até o século XIX, e ainda hoje tem seus
“coisa”, já que para haver significado é preciso que a palavra aponte para coisas
estes não tinham significado antes de apontarem para algo. O significado das
palavras só será aprendido ao sabermos ao que elas se referem.
ela ainda está subordinada a uma relação entre sujeito e coisa mediada por uma
a realidade a ser captada por essas ideias. A linguagem é o elemento que media
esse contato, interferindo na relação entre pensamento e ser das coisas. Nesse
Há, contudo, a reflexão de que a língua é um sistema de signos, fato que será
importante para o pensamento contemporâneo.
Para Port-Royal, a língua é um sistema de signos. As palavras ou expressões são invólucros das ideias.
Apenas as ideias ligam-se aos objetos. O nível mais elaborado é o nível lógico das ideias, a língua
exterioriza essa lógica, que é o fundo comum por detrás da diversidade linguística, daí a gramática
fundir-se com a lógica. As palavras são sons distintos e articulados que se transformam em signos,
encarregados de traduzir o que se passa no pensamento, isto é, as operações lógicas, tais como
conceber, julgar, raciocinar. As palavras apenas marcam essas operações. (Araújo, 2004, p. 24)
deslocamento das coisas para o sujeito. A língua não é mais uma forma de captar
a realidade das coisas, mas a forma como o sujeito expressa, por meio de seu
que estuda a língua. Seu projeto de pesquisa, publicado com base em notas de
não estava voltado para o uso normativo, regras do bem dizer, ou uso correto da
língua; seu projeto era estudar a língua no seio do sistema social. Pelo lado
Apesar de ter como foco principal de estudo a língua, Saussure abre espaço
Pode-se conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela formaria uma
parte da psicologia social, e por conseguinte da psicologia geral; nós a chamaremos de semiologia (do
grego semeion, “signo”). Ela nos diria em que consistem os signos, que leis os regem. Já que ela ainda
não existe, não se pode dizer o que ela será; mas ela tem o direito à existência, seu lugar está
previamente determinado. A linguística é apenas uma parte dessa ciência geral; as leis que a semiologia
descobrir serão aplicáveis à linguística, e esta se encontrará assim ligada a um campo bem definido no
Mas como Saussure cria essa ciência? O primeiro ponto, que já mostramos,
lugar de alguma coisa não é nova, como pudemos ver anteriormente, mas na
Mas o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a linguagem: ela é apenas uma parte
da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, para permitir o
exercício dessa faculdade entre os indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme a
heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao
domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos
humanos, porque não se sabe como depreender a sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em
si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem,
introduzimos uma ordem natural em um conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação.
para designar aspectos do mundo real apenas, mas que funciona com autonomia
em relação à coisas do mundo.
em si, que tem como referência o social, isto é, ela está para além das vontades
Dessa forma, o foco do estudo da linguística será a língua, pois essa é passível de
sistematização, para além dos usos individuais, já que estes apenas reproduzem
em ato o sistema linguístico ao qual pertencem.
resta a ser dito. Falamos que a língua é composta por signos e, além disso,
linguagem, já que há um gesto de exclusão feito pelo linguista; aqui o signo não
está mais colado à coisa, isto é, a língua não é um sistema de nomenclatura.
ele une “um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1975, p. 98). O conceito,
o significado. Essa noção está para além da coisa, já que, por exemplo, o
significado da letra “A” vai depender de onde ela se situa em uma fala, de modo
aparece, seja ela por som ou escrita; é o que o autor chama de significante.
Retomando o exemplo anterior, a letra “A” não aponta para uma realidade
exterior, para uma coisa, mas para seu funcionamento em relação aos outros
Fica claro agora que o signo não aponta para uma relação externa à língua,
que justifique que uma palavra se conecte a uma determinada ideia. “Assim, a
ideia de soeur (“irmã”, em francês) não está ligada por nenhuma relação interior
com a sequência de sons s-ö-r (escrita fonética) que lhe serve de significante; ele
poderia também ser representado por qualquer outra” (Saussure, 1975, p. 100).
Tanto ela é arbitrária que, ao falarmos sobre o que é soeur, a traduzimos para
Dessa forma, Saussure abre o caminho para o estudo da língua por si só,
usos cotidianos e comuns da fala. Ele entende que esse estudo não é histórico,
isto é, não se olha para a mudança histórica da língua, o que ele chama de
“diacronia”, mas para o estado da língua no presente, na forma como esses signos
como se constroem os sentidos das coisas, já que, nessa concepção, elas estão
apartadas da noção de “coisa” ou “referente”.
são “valor” significa que só se pode analisar uma língua por meio da relação que
os signos estabelecem entre si.
diremos que seu significado é ser uma vogal. É do sistema de vogais de nossa
língua, na relação que ela tem com “E”, o fato de ela ser “não E”, que faz com que
determinemos seu valor. Quando ela aparece da seguinte forma: “A dentista”, ela
agora se torna um artigo definido. Isso se dá pela relação que ela estabelece com
o substantivo “dentista”, que demanda que o artigo seja feminino; quando essa
mesma letra aparece em “jogadora”, temos que o “A” é designativo do gênero
feminino na palavra. É importante perceber que a letra não tem sentido por si só,
ela só pode ser determinada por meio da análise do conjunto no qual ela se
articula. Essa é a ideia de valor para Saussure.
A ideia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo
simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do
sistema do qual faz parte; seria acreditar que se pode começar pelos termos e construir o sistema
fazendo a soma destes, ao passo que, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir, para obter,
Essa ideia de valor faz com que consideremos a língua como um sistema de
diferenças. Nela não há uma identidade do signo consigo mesmo, sua identidade
é dada por meio da cadeia em que ele se insere no sistema da língua. O exemplo
temos apenas mouton, que é válido para ambos os casos. A diferença de valor
a mutton a palavra sheep, enquanto no francês esse valor não se realiza. Ou seja,
é da relação interna ao sistema que os signos valem. Como diz o autor:
Na língua só há diferenças. E não é só isso: uma diferença supõe, em geral, termos positivos entre os
quais ela estabelece; mas na língua, há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se tome o
significado, quer o significante, a língua não comporta nem ideias nem sons que preexistiriam ao
sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas provenientes desse
Esse sistema de diferenças e articulações vai ser descrito por Saussure por
meio de dois eixos. O primeiro deles é chamado de eixo dos sintagmas, que se dá
por intermédio das relações que os elementos consecutivos de um discurso
estabelecem entre si. Essas relações podem se dar desde a palavra, como em
designativo do tempo verbal, ou uma frase, como “Eu sou forte”, em que temos
as relações entre pronome, verbo e predicativo do sujeito.
possibilidades como “Você pegou”, “Eu fumei” ou “Eu pequei”, no qual, temos a
primeira pela semelhança do significado, alterando-se o pronome, a segunda
das seleções, já que ele disponibiliza as palavras que podemos utilizar para
determinadas situações.
como as ideias se encadeiam em uma língua. Elas também estão na base das
noções de Metáfora e Metonímia.
Roman Jakobson (2008), ao analisar questões de afasia, afirma que o
de uma palavra por outra, logo, podemos chamar o eixo paradigmático de eixo
É importante ressaltar que, em linguística, essas duas figuras não são vistas
sistema linguístico. Entendê-las dessa forma é fundamental, já que tal leitura dos
eixos, enquanto metáfora e metonímia, estará na base na leitura que Lacan fará
de Freud em conjunto com a linguística saussuriana.
para uma série de análises não apenas linguísticas, mas de todos os sistemas de
signos que circulam em uma sociedade. Todavia, tal perspectiva deixa algumas
história e as relações de poder que se dão por meio da linguagem. Podemos dizer
que a Semiologia foi uma forma de olhar os signos em sua dimensão poética, isto
não era um linguista, mas um filósofo e historiador. Isso significa que sua
em analisar como as coisas são ditas e o que possibilita que elas sejam ditas em
que não apenas molda, mas que está atrelada à história e às relações de poder
que se materializam. A noção de discurso, com isso, extrapola os limites da língua
está, para além disso, se atrelando à dimensão do sentido. “O discurso tem a ver
com a produção de sentido pela linguagem. Contudo […], uma vez que todas as
Dessa forma, ele rompe com a separação entre aquilo que diz e aquilo que
escola e o Estado, que são entidades que funcionam pelo domínio de certo saber
sobre a sociedade e os sujeitos que nela vivem e que, ao mesmo tempo, detém
poder sobre o que tomam como objeto de discurso.
A de que falar não é apenas combinar signos numa sintaxe, nem relacionar palavras e coisas, nem um
modo de comportamento reproduzido em atos de fala; falar é mais que produzir enunciados em
situação, comunicar. Foucault introduz uma dimensão em que falar é criar uma situação, é investir a
fala como prática entre outras práticas. (Araújo, 2004, p. 217, grifo do autor)
analisá-los? Há dois conceitos que precisamos mobilizar para lidar com esse tipo
Idade Média, poderia ser lido e interpretado como aquele que diz a verdade para
além das convenções, ou como o portador de uma palavra mística que revela
coisas sobrenaturais.
As condições para que se apareça um objeto de discurso, as condições históricas para que se possa
dizer algo […] são numerosas e pesadas. O que significa que não se pode falar de qualquer coisa em
qualquer época […]; não basta abrir os olhos, prestar atenção ou tomar consciência para que novos
objetos de repente se iluminem […]. Ele existe sob as condições positivas de um feixe complexo de
relações. Estas relações são estabelecidas entre instituições, processos econômicos e sociais, formas
de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos de classificação […]. Elas não definem sua
algo não é a origem dos sentidos, mas o suporte. Ele é assujeitado pelos dizeres
que circulam na sociedade, daí que nem tudo possa ser dito em qualquer época
histórica.
O que sustenta esse fato é a noção de Formação Discursiva (FD). As FDs são
mesmo em revistas em quadrinhos. Daí sua dispersão, ela não está atrelada a
apenas um registro dos discursos.
Ela é um princípio de aglutinação, pois ela pode ser vista como um processo
entre discurso e poder, já que a produção de sentido para e pelas práticas sociais
coisas sejam ditas de determinada forma, produz regimes de verdade que, por
sua vez, estão atrelados a determinados dispositivos de saber que falam sobre a
de cima para baixo, ele circula nas falas cotidianas, em nossas práticas mais
comuns que reproduzem essas estruturas, é a concepção da microfísica do poder.
poder, para além das intenções dos sujeitos, mas articulada aos efeitos que são
produzidos. Isso afeta o modo como se faz uma análise de discurso, já que ela
[…] dispensa toda e qualquer subjetividade fundadora. Ao contrário das análises sociológicas ou
psicológicas da evolução das mentalidades e das filosofias do logos, das teleologias da razão, Foucault
para os sujeitos, que não é sujeito soberano do “eu disse”, nem aquele que fala, nem aquele que se
esconde na fala ou sofre um “efeito de ilusão” [sic], como se expressam algumas analistas de discurso.
Para Foucault, ao contrário, não há uma voz anônima por detrás, mas um domínio no qual alguém
pode dizer o que diz, e assim imbui-se da função de sujeito, e o que diz ganha uma certa positividade
buscam representar o mundo de determinada maneira. Ele é uma prática que cria
a realidade, recorta os objetos, estabelece o que é verdadeiro, produz saber e,
com isso, se reveste de poder e autoridade para dizer o verdadeiro.
determinadas épocas, fazendo com que alguns tipos de discurso tenham mais
O poder, com isso, deve ser visto como relacional. Ele não opera
exclusivamente pela dominação ou pela imposição, ele opera por meio de todo
seu caráter contraditório – ao mesmo tempo que busca produzir sujeitos dóceis,
medicalizados, enfim, que não representem de alguma forma uma ameaça ao
discurso sobre a “normalidade” da sociedade, pois ele também gera dominação
sobre esses corpos.
aos sujeitos, fazendo com que determinadas vozes tenham mais legitimidade do
que outras.
NA PRÁTICA
ouvir a música “Pra que mentir”, de Noel Rosa, e “Dom de Iludir”, de Caetano
feito esse processo, vamos retornar às músicas e buscar pensar em como esses
dizeres sobre as mulheres criam o “sujeito mulher”, ou seja, para além do que elas
dizem, o que possibilita no contexto das duas músicas que a mulher seja dita
daquela forma.
FINALIZANDO
década de 1960, entre eles Lacan, que tomaram a linguística como uma ciência
ele formula que este está ligado ao sentido, algo ligado às práticas sociais. Este
sobre o mundo, que acarreta, ao mesmo tempo, a produção de poder sobre esses
CULTURA E LINGUAGEM
AULA 4
Prof. Cícero Costa Villela
CONVERSA INICIAL
LINGUAGEM E PSICANÁLISE
procurar olhar o processo de leitura como uma escritura; Althusser vai reler Marx
fundamentais dos séculos XIX e XX, tomando por base o pensamento linguístico
precisa passar pela reflexão do retorno a Freud proposto por Lacan em seus
mesmo tempo, a um certo tipo de prática codificada em relação a um princípio de de investigação que
– hoje em dia – dificilmente se prestaria a uma confusão quanto ao corte que inaugura. Trata-se de
situar de imediato, sem equívoco, o que é da ordem de uma prática autenticamente psicanalítica em
relação direta com a letra freudiana, ir aos textos e extrair deles os elementos que
o toma como suporte” (Auroux, 2001, p. 261, grifos nossos). Dessa forma, ele vai
Com isso, Lacan vai produz um duplo movimento ele traz a dimensão da
da fala. Como ele mesmo vai dizer em seu seminário sobre as psicoses: “A
relações que se estebelecem entre os sujeitos por meio da palavra. Essa dimensão
relacional é a do significante (falaremos sobre isso em breve), pois é por ela que
o sujeito se coloca na fala, fazendo com que a relação entre e sujeito e linguagem
tenha uma dimensão fundadora para o primeiro.
Com isso, Lacan retoma elementos de A interpretação dos sonhos (1900), como
as figuras da condensação e do deslocamento, trazendo a relação entre
podemos dizer que ela é fundamental para tal retorno a Freud, já que as figuras
O sonho é apenas o objeto provilegiado da investigação analítica; ele fornece assim o modelo de todas
as formas de expressão substitutivas do desejo. A interpretação, na técnica freudiana, incide não sobre
o próprio sonho, mas sobre a narração do sonho. Trata-se de um texto no qual o sujeito busca a fala
que coincidiria com a expressão primitiva do desejo engajado no conflito inconsciente que é sua
origem. O objeto da análise é então a linguagem do desejo mais do que o desejo enquanto tal. É nesse
sentido que o sonho pode funcionar como paradigma psíquico de todas as representações simbólicas
do desejo, escondidas atrás das formas deslocadas e disfarçadas do chiste e do lapso, do mito e da
Olhar dessa forma a relação transferencial, bem como a relação entre desejo
É a partir do retorno a Freud nesses termos que Lacan vai poder defender
o inconsciente é estruturado como uma linguagem; sob condição de previamente explorar o que, na
própria obra de Freud, justifica seu princípio e sua pertinência. Por ser A interpretação dos
sonhos designada como a pedra fundamental de tal obra, é a partir de algumas dessas articulações, as
mais fundamentais, que tal iniciativa será iniciada. (Dör, 1989, p. 15)
arvora, desde a primeira abordagem dos sonhos, em 1900, nos mecanismos que
sustentam o processo primário do inconsciente.
fenômeno com duas ordens. Tais ordens de fenômenos, Freud vai chamar
de condensação e deslocamento.
Em primeiro lugar, a condensação por omissão, de que temos o excelente exemplo na análise do sonho
da “monografia botânica” [ver A interpretação dos sonhos], onde a restituição dos pensamentos
latentes é muito lacunar ao nível do conteúdo manifesto. Um outro tipo de condensação procede por
meio da fusão, superposição do material latente. A ilustração mais espetacular deste tipo de
condensação é apresentada pela elaboração das pessoas coletivas ou pela criação de neologismos
Freud uma teoria linguística para a descrição, com base na linguagem, desses
fenômenos.
forma e possam ser acessados no processo da análise. Freud ([1900] 1996, p. 265-
266) afirma:
Somos, assim, conduzidos a pensar que no trabalho do sonho manifesta-se um poder psíquico que,
de um lado, despoja elementos de alto valor psíquico de sua intensidade e, por outro lado, graças à
sobredeterminação, dá um valor maior a elementos de menor importância, de modo que estes possam
penetrar no sonho. Pode-se, desde então, compreender a diferença entre o texto do conteúdo do
sonho e o texto dos pensamentos; houve, na formação do sonho, transferência e deslocamento das
intensidades psíquicas dos diferentes elementos. Este processo é parte essencial do sonho. Ele pode
relação de Freud e Saussure, por meio de Lacan, mas que possuem como
forma como ele vai olhar o signo linguístico. Estudamos anteriormente que, para
relação que ele estabelece com outros signos dessa cadeia, o que se chama
de valor. O signo pode ser representado pelo seguinte algoritmo: Sa/Sg (onde Sa
é o significante, e Sg, o significado). Eles são separados por uma barra que
estabelece a relação arbitrária entre eles.
alterar o significante sem que isso produza uma mudança no significado, e vice-
Fonte:
Saussure, 1975.
Essa imagem pode ser descrita como uma cadeia de fala e significação, na
psicanalista francês é ler as duas cadeias de massas amorfas por meio da noção
Está dado, com isso, o primeiro passo para o primado do significante, já que
sua delimitação é feita pelo corte nas relações da materialidade acústica. É ele
relação unívoca entre Sa e Sg, dá-se agora maior destaque para o significante,
não mais preso a um significado, mas recortado de uma relação com outros Sa.
Além disso, o significante que vai governar o discurso do sujeito, ou seja, o sujeito
é dito pelo significante que se recorta em sua fala, e não nos conceitos que
subjazem na mente deste. Podemos dizer que o que aparece no sonho, na fala
sujeito se emaranha nas palavras, nas quais, em vez de dizê-las (ele efetivamente
as diz), ele é dito por elas.
Tal leitura do corte feita por Lacan, que dá uma relativa autonomia ao
Em geral, é sempre o significado que colocamos no primeiro plano de nossa análise, porque
seguramente é o que há de mais sedutor e que, numa primeira abordagem, parece ser a dimensão
É importante ressaltar que tal leitura feita por Lacan ressitua a análise da
linguagem. Não se trata mais de buscar uma significação oculta por trás da fala
do sujeito, mas de perceber como ele se revela na fala. Como a trama dos
relação com o Outro. Isso pode ser visto no texto sobre o “estádio do espelho”.
Segundo Auroux (2001, p. 266),
A linguagem, que dá forma à gênese do sujeito (o “cenário familiar”) é o meio no qual o indivíduo é
mergulhado desde o nascimento. Um meio que o sujeito deverá subjetivar, onde ele deverá se
reencontrar nele em sua própria história, e que Lacan designa como o lugar do Outro. A linguagem é
então, originariamente, menos um meio de comunicação do que uma função que permite a
identificação do sujeito no reconhecimento dos traços que definem a condição de um ser ao mesmo
tempo sexuado e mortal. O Outro, no qual o sujeito se aliena como Eu de um modo imaginário, é
da linguagem; mas este, ao falar, se aliena dos sentidos e se mostra nas relações
significantes; por isso, ele pode dizer que o sujeuto representa um significante
para outro significante. Como o próprio Lacan (1985, p. 130) afirma no Seminário,
livro 20: Mais, ainda:
O significante é signo de um sujeito. Enquanto suporte formal, o significante atinge um outro que não
aquele que é cruamente, ele, como significante, um outro que ele afeta e que é de fato sujeito, ou ao
menos que passa por sê-lo. É nisso que o sujeito se encontra ser, e somente para o ser falante, um
ente cujo ser está sempre alhures como mostra o predicado. O sujeito é sempre pontual e
Lacan, com isso, vira a linguística de cabeça para baixo, renova a noção de
todavia, tal sujeito não é mais o sujeito da razão, cartesiano, mas o sujeito do
inconsciente, imerso na linguagem que fala, e é falado pelo sistema significante.
agora ver como esse processo funciona por meio das noções
de metáfora e metonímia, como postos pelo psicanalista francês.
na forma como Lacan vai olhar para a metáfora. Contudo, apesar de ainda manter
que Saussure chama de eixo dos paradigmas ou eixo das similaridades (como
processo de substituição de uma palavra por outra, ou, para sermos mais
“Na medida em que a metáfora mostra que os significados extraem sua coerência
sujeito. Vamos usar o exemplo do uso metafórico do termo “peste” para designar
a “psicanálise”.
sem nenhuma relação entre eles. Ao estabelecermos uma relação entre eles, algo
muda: haverá uma substituição significante conforme a Figura 3.
sua forma manifesta, no caso dos sonhos, o que aparece é sempre um elemento
que condensa elementos latentes que só podem ser retomados por meio das
associações significantes.
Na metonímia, por seu turno, temos outro processo nos eixos da linguagem.
como olhar “uma vela no horizonte” para designar um barco que se afasta do
cais.
já que o novo significante que aparece possui uma relação de contiguidade com
Vejamos o caso da relação entre “análise” e “divã”. Há, entre os dois signos,
uma relação de contiguidade. Podemos dizer que estar no divã é estar em análise:
a relação metonímica vai introduzir uma relação entre eles, na qual vamos
substituir S1 por S2.
não passa para a parte de cima da barra que separa significado e significante, na
medida em que essa figura de estilo apresenta-se sempre como um não sentido aparente (não “se está
num divã”, faz-se uma análise sobre um divã). Em outras palavras, uma operação de pensamento é
apontar para relações que não produzem mudança de significação. Tal processo
a mais fundamental, pois permite uma visão mais completa dos processos de
linguagem que descrevemos nos temas anteriores.
Podemos perceber que a relação entre esses três registros está na base da
sujeito. Tal afirmação nos permite passar à definição específica de cada um desses
elementos.
O que é o real? Em Lacan o real é tudo aquilo do sujeito que escapa de uma
ordem e que não está na ordem da possibilidade de controle pelo sujeito. O real
acontece para além das vontades ou desejos: ele produz um furo na ordem do
que produz o laço e a relação com o outro. Ele é da ordem da lei subjetivada pelo
indivíduo por meio dos símbolos e da linguagem; é ele que articula as relações
preencher o buraco deixado pelo real, muitas vezes sem sucesso, podendo
apenas lhe fazer borda, mas que insere a linguagem no cerne do sujeito. Lacan
vai dizer que “quando se trata do simbólico, isso diz respeito àquilo no qual o
sujeito se compromete numa relação propriamente humana [...]” (Lacan, 1953).
palavra, torna presente algo. Quando voltado para o imaginário, ele nos coloca
linguagem. No que nos interessa acerca desse tema, podemos dizer que os
Lacan, a linguagem não serve para comunicar, ainda que nos comuniquemos por
ela; ela serve para produzir reconhecimento – o que significa aqui que estamos
colocando, no cerne do pensamento, não mais a comunicação que alcança seu
alvo, mas o processo em que o sujeito é produzido nas tramas desses
NA PRÁTICA
FINALIZANDO
que media a relação entre dois, permeada pelo imaginário. O real é aquele que
escapa: a falha, o tropeço, aquele elemento que funda a ordem do mundo para
além dos sujeitos.
CULTURA E LINGUAGEM
AULA 5
durante a modernidade? Essas questões vão guiar nossa reflexão nesta etapa.
Afinal, não vivemos mais no mesmo mundo que os nossos antepassados.
[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio,
fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito
unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de
mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando
os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Hall,
2015, p. 9)
que entram em jogo nessa redefinição, entender o que possibilita essa nova
tempo apontando para três diferentes momentos históricos que moldaram o que
se entendia por sujeito, sua forma de conhecer o mundo, seu papel nele e sua
relação com a cultura e a linguagem. Pensar dessa forma pode parecer, em algum
Ela foi objeto de diferentes debates filosóficos que tiveram como pano de fundo
formas dissonantes de se pensar tal questão. O sujeito pensado por Freud não é
o mesmo daquele pensado por Descartes, isso pelo fato das transformações
outro – é central. Por meio dela se pode pensar o sujeito situado no mundo e, ao
mesmo tempo, produto e produtor da realidade em que vive. Conforme
dissemos, nem sempre se pensou o sujeito da mesma forma, por isso, destacamos
Descartes, que se baseava em sua máxima do “penso, logo existo”, extraindo disso
uma concepção que colocava o indivíduo como autocentrado, ou seja, como uma
do indivíduo, mas de forma com que ele seja sempre igual a si mesmo. Isso
significa que ele é sempre o mesmo, se mantém durante toda a sua existência da
que o indivíduo age para maximizar seus interesses. Apesar de importante para
de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação
com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, os sentidos e os
símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava (Hall, 2015. p. 11)
Dessa forma, a identidade não vai ser mais pensada como um processo único
“exteriores”. Ela passa a ser pensada como um processo de interação entre o “eu”
acordo com os contatos com o “outro”, com a sociedade, com a cultura, que
disponibilizam as identidades.
do sujeito, já não mais senhor de si, mas marcado pelo fato da identidade
preencher o espaço entre o “dentro” e o “fora” do sujeito. Pode-se dizer que nós
Com isso, a forma como nos vemos e como agimos no mundo está marcada
sempre pela relação que estabelecemos com outros sujeitos, a forma como
somos socializados. O papel que ela cumpre é de dar estabilidade para o sujeito
ao se ver pertencente a determinado grupo ou comunidade.
que os indivíduos se situem para além dos contatos imediatos, ainda que estes
permaneçam importantes na incorporação de valores culturais.
O mundo atual, em especial com a globalização, faz com que essa suposta
comunicação, das redes sociais, faz com que os reconhecimentos de base dos
forma como nos reconhecemos nas representações sociais do que por um certo
núcleo duro no qual incorporamos os valores sociais. Ela
diferentes momentos, identidades que não são unificados ao redor de “eu” coerente. Dentro de nós
sistemas de significação faz com que, a cada momento, nos confrontemos com
identidades possíveis e, de alguma forma sejamos capturados por elas.
identidades culturais no mundo atual. Vamos, com isso, aprofundar nosso debate
incerteza e o movimento eternos... Todas as relações fixas e congeladas, com seu cortejo de vetustas
poderem ossificar-se. Tudo que é solido se desmancha no ar. (Marx; Engels, 2009, p. 70)
percam suas raízes, se vejam cada vez menos dependentes de suas relações
locais, gerando, com isso, uma sensação de vazio ou de angústia.
questão das identidades. Isto é, quando falamos em cultura agora não estamos
de modos de vida diferentes dos hegemônicos. Hall vai definir esse momento ao
retomar o pensamento de Ernesto Laclau, ao dizer:
As sociedades na modernidade tardia [ou pós-modernidade como estamos dizendo], argumenta ele,
são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos
sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições sujeito” – isto é, identidades – para os
é, com isso, uma posição social de caráter móvel. O sujeito muda e carrega
lidar com isso? Quais estratégias adotamos para conseguirmos construir nossas
identidades em um mundo no qual a impermanência é uma constante?
Imaginadas, de Benedict Anderson (2008). Ele vai dizer que as culturas nacionais
são formadas por um tipo de vínculo que não é natural, mas que se dá a partir
de narrativas produzidas sobre a nação, seus heróis, suas tradições, seu mito
que o caráter dessa criação nem sempre é pacífico, basta lembrarmos o número
Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-la como constituindo
um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são
atravessadas por profundas divisões internas, sendo “unificadas” apenas através do exercício de
funcionário desejável e que, por sua vez, vai “vestir a camisa” do trabalho. O
mais desejável, ele pode ser considerado o perfil ideal dessa identidade. Sua
possivelmente sem solução, pois somente somos livres de maneira limitada, pois
outro, ao mesmo tempo em que marca a igualdade com tantos outros. Nessa
relação entre “nós” e “eles” entra o sentido político das reivindicações, já que em
Com isso, podemos dizer que, ao construírem suas histórias, suas narrativas
imaginada. Esta não está mais presa a um território, mas se multiplica, já que as
relações não dependem mais do contato face a face, elas circulam, gerando
nesse tópico, para vermos como essas questões permeiam a sociedade. Retiro o
exemplo de Hall (2015).
Clarence Thomas. Seu objetivo era restaurar uma maioria conservadora na casa
acusações de que ele era racista e que jamais indicaria um juiz negro para a
Suprema Corte. Sua tentativa foi de ganhar apoio em relação aos conservadores
Bush estava, com isso, jogando o jogo das identidades com tal aceno
contraditório.
acusado de assédio sexual por uma mulher negra, Anita Hill, uma ex-colega dele.
disso, Anita Hill era uma funcionária subalterna, enquanto o Juiz era da elite
judiciária americana, fato que também mexeu no jogo político das identidades, a
partir das questões de classe.
um jogo político em relação às posições dos sujeitos, permitindo com que eles
façam uma leitura da disputa política a partir das leituras de mundo que as
identidades disponibilizam para os indivíduos.
- Nenhuma identidade singular – por exemplo, de classe social – podia alinhar todas as diferentes
identidades com uma “identidade mestra” única, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura,
basear uma política. As pessoas não identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos
de classe; a classe não pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora
através da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser
representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se
vive sua contradição na busca de uma identidade possível para produzir sentido
para o mundo. Essas que estão sempre em jogo politicamente, afetadas pelas
imaginadas que circulam pelo mundo nas redes. É possível ter uma posição
de que ela fosse capaz de solapar culturas locais e, com isso, colocar em risco a
“unidade” das culturas nacionais.
Porém, não foi esse o movimento que ocorreu. O que se observa é que há
culturas locais que se dão por meio dela. É possível afirmar então que as culturas
locais se apropriam de uma cultura global e, a partir dela, refazem seus laços não
apenas localmente, pois se inserem em um movimento global.
com valores que circulam globalmente, mas que ganham características locais
próprias.
Esse elemento de pressão feito pela globalização sobre as culturas gera dois
governo Trump nos Estados Unidos, que foi fortemente baseado em discursos
maneira tão forte que alguns sujeitos são capazes de matar ou morrer em nome
desses valores.
podiam ser reconhecidas e que ganharam visibilidade em sua luta. Podemos citar
[...] um novo foco de identificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas
[poderíamos dizer para as latinas também]. O que essas comunidades têm em comum, o que elas
representam através da apreensão da identidade black, não é que elas sejam cultural, étnica, linguistica
ou mesmo fisicamente a mesma coisa, mas que elas são vistas e tratadas como a “mesma coisa” (isto
é, não brancas, como outros) pela cultura dominante. (Hall, 2015, p.51)
NA PRÁTICA
segundo ele mesmo, foi feito como forma de denúncia aos abusos cometidos por
efeitos sociais desse processo, tanto para sociedade quanto para Colin
Kaepernick?
FINALIZANDO
civilizatórias, quanto para seu recuo. Ela gera consequências de expansão das
mesmo e a sociedade a partir das diferentes identidades que ele assume em sua
trajetória.
que haja uma articulação em níveis globais que pressionam as culturas locais à
mudança. Estas, por sua vez, se apropriam dessa cultura global à sua forma,
gerando novas formas de vida e identidade.
interpelações feitas pela cultura, nas quais ele se reconhece. Tal fato nos mostra
que o sujeito, seus valores e sua forma de enxergar o mundo é limitado pela
cultura, pela sociedade e pelos valores que absorvemos durante todo esse
processo de contato com o outro.
CULTURA E LINGUAGEM
AULA 6
Prof. Cícero Costa Villela
CONVERSA INICIAL
novas formas de conflitos políticos e culturais. Mas não são apenas esses os
efeitos e as causas do descentramento do sujeito, em suas contradições.
Podemos dizer que o Mal-Estar analisado por Freud, em 1930, adquire hoje
em meio à produção de uma nova cultura que, ao mesmo tempo, produz novas
formas de mal-estar. Se em Freud se falava da troca de um punhado de liberdade
por um pouco de segurança, hoje a ordem da equação se inverteu. De acordo
com Bauman (1998, p. 10):
que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-
modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
Essas questões serão objeto dessa etapa. Falaremos sobre cada uma delas,
de base na cultura ocidental. Estas estavam ligadas a, pelo menos, dois valores
social, padrões de limpeza urbana, locais específicos para depósito dos rejeitos.
A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não
fossem levadas a mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem
— isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. (Bauman,
1998, p. 14)
Esse processo, à primeira vista, é benéfico para a cultura humana, mas ele
que ocorre quando esses valores deixam de ser pensados somente em relação a
si e aplicado ao outro? Tal pergunta nos permite pensar a cultura ocidental e seus
“outros”.
Como vimos, toda cultura é uma particularidade. A novidade da cultura
social que, em suas fundações, exclui alguns atores sociais. Podemos dizer que
ela é basicamente uma cultura europeia, branca e masculina. Isso significa, que
apontamentos de que são desorganizados, que mulheres não são racionais e que
indígenas não possuem higiene básica. Tais estereótipos mostram que o processo
de exclusão social (podemos falar de discursos racistas, xenófobos e misóginos)
passa por um certo sonho de pureza, em que essas categorias sociais foram
consideradas impuras e, por isso, passíveis de exclusão.
puros sendo aqueles que vivem dentro dos ordenamentos e os impuros, seus
outros, ou aqueles que habitam o campo da diferença. Estes foram vistos como
obstáculos à civilização. Ainda segundo Bauman (1998, p. 17),
falando — é de importância muito especial e, na verdade, única: a saber, aquele em que são outros
seres humanos que são concebidos como um obstáculo para a apropriada “organização” do ambiente;
em que, em outras palavras, é uma outra pessoa ou, mais especificamente, uma certa categoria de
menos parte deles). A questão que se coloca é quem são os “impuros” do mundo
contemporâneo. Ou seja, como se dá a relação com o “outro” na sociedade?
É preciso lembrar que a grande mudança ocorrida nos últimos 50 anos está
garantias sociais dadas pelo Estado faz com que a ordem seja pensada de outra
Uma vez que o critério da pureza é a aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora
como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são os consumidores falhos —
pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos
requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em
função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros”, que não se ajustam ao novo
livrar das mazelas que ela mesma produziu. Esse novo sistema de exclusão
elemento central na mudança que houve com as formas de se lidar com o “outro”
que falaremos mais no próximo tema.
e quem não pertence a determinado grupo. Tal criação não é algo nem positivo
Todavia, o “outro” nem sempre é uma figura facilmente lidável para o sujeito.
lidaram com essa questão, e agora vamos aprofundar esse debate acerca da
relação “eu”-“outro”.
Conforme nos diz Bauman (1998, p. 27),
[A sociedade] Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos
e morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados fundamentais para sua vida
ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais
vimos, passou a circular por outros espaços, gerando uma certa instabilidade para
instáveis. Tal fenômeno é o que o autor chama de relações líquidas, que passam
a se estabelecer por uma moral individual, na qual cada indivíduo retira seu valor
não mais da comunidade, mas a partir daquilo que ele pode oferecer.
Além disso, a lógica do mercado faz com que se apaguem as noções de garantias
posição de que toda a produção do laço social é feita apenas por encontros
sucessivamente usadas, a história da vida numa série de episódios cuja única consequência duradoura
A relação com o outro, com isso, se empobrece. Não se trata mais da criação
qual o sujeito volta-se apenas para si mesmo, fazendo com que a relação com o
outro seja sempre mediada pela representação de ameaça que ele traz às
próprias certezas do indivíduo.
Tais certezas são do campo imaginário, este que toma a centralidade das
Como tudo o mais, a imagem de si mesmo se parte numa coleção de instantâneos, e cada pessoa deve
evocar, transportar e exprimir seu próprio significado, mais frequentemente do que abstrair os
instantâneos do outro. Em vez de construir sua identidade, gradual e pacientemente, como se constrói
uma casa — mediante a adição de tetos, soalhos, aposentos, ou de corredores —, uma nova série de
“novos começos”, que se experimentam com formas instantaneamente agrupadas mas facilmente
demolidas, pintadas umas sobre as outras: uma identidade de palimpsesto. (Bauman, 1995, p. 36)
Esse fenômeno pode ser observado no cotidiano das redes sociais, onde
sempre se expõe uma imagem de si, onde o diálogo fica quase impossibilitado e
Tudo se passa, segundo Birman (2012, p. 7), de forma em que “quase tudo
retórica do narcisismo. Seria a produção e a exaltação desenfreada das imagens de si mesmo, para o
deleite do outro, num campo sempre imantado pela sedução, o que passaria a das as cartas do jogo
Birman, com isso, traz novos elementos para os conflitos apontados por
interdições morais, no mundo atual, ele se esboça por meio da dor, tendo como
O principal elemento a ser visto pelo outro é o nosso corpo. Além disso, é
sobre saúde, bem-estar e beleza. O corpo possui sua dimensão imaginária, pois
é afetado pelos discursos que se fazem sobre ele e sua performance no mundo.
performance sexual. Todos eles articulam dois elementos apontados por Birman:
o da imagem do corpo saudável e produtivo, ideal para a realização do trabalho.
quando o olhar do outro se torna central para o sujeito que se supõe avaliado o
tempo todo (Birman, 2012).
estamos o tempo todo sendo incentivados à ação. O sujeito não mais lido como
um registro interior de pensamento, mas como aquele que age, que performa de
determinada maneira no mundo.
impulsionar o indivíduo a agir mais e pensar menos; está no registro de que toda
consumo de drogas com efeitos cada vez mais potentes. Muitas vezes atreladas
à melhoria dos desempenhos individuais. Um exemplo desse caso pode ser visto
sempre intensamente o aqui e agora, faz com que a vivência dessas dores perca
do sujeito necessita de elaboração para que ele faça sentido. O que acontece é
contemporânea, estamos falando que ele sempre se volta para si, isto é, ao invés
Birman (2012) vai falar que há aqui duas dimensões que sofrem impacto com
sofrimento seria algo da ordem arbitrária, que pressuporia o apelo e a demanda endereçada ao outro.
Portanto, o sofrimento como marca das tormentas do sujeito implicaria uma transformação do registro
da dor, que seria sempre permeada pela simbolização e temporalização desta. (Birman, 2012. p. 9)
diminuição. Para Birman, vive-se hoje a dimensão da dor como um dos efeitos da
sofrimento. A partir dessa impossibilidade, ele fica à mercê dos discursos sobre a
existência forjados pelo individualismo do mundo atual.
TEMA 5 – A PSICOPOLÍTICA
afirma que “o ‘eu’ como projeto, que acreditava ter se libertado das coerções
Tal afirmação significa que houve uma inversão na ordem do poder, em que
não há mais uma figura hierárquica que obriga ao trabalho, mas que agora é o
próprio sujeito que incorpora as ordens em si. Tal fenômeno é o que ele chama
sendo vítima de sua própria opressão. Esse é o paradoxo do mundo atual para o
autor.
O mundo neoliberal colocou a liberdade como central, mas tal liberdade não
é em abstrato, está inserida numa série de significantes que afirma que todos
somos livres para vendermos nossa força de trabalho como bem entendermos.
outro se dá sempre por algum tipo de interesse, ou de que este outro é sempre
si mesmo. Ele é o responsável por sua disciplina de trabalho, ele faz seu próprio
horário e também define o quanto ganha em um dia. Com isso, temos uma nova
Doenças psíquicas, como depressão ou burnout são expressões de uma profunda crise da liberdade:
são sintomas patológicos de que hoje ela se transforma muitas vezes em coerção. O sujeito do
desempenho, que se julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem
sobrevivência demanda que o sujeito trabalhe de alguma forma, ainda que sem
condições dignas para isso. E para que possa sobreviver, há sobrecarga de
trabalho imposta por si mesmo. Esse é o caso do que hoje se chama uberização
do trabalho, com os trabalhos por aplicativo e remunerações flexíveis.
sujeito por meio dos dispositivos de poder, emergindo daí os valores sociais que
já mencionamos anteriormente.
produzindo informações para eles, que serão vendidas para outras corporações.
Esse é o caso dos algoritmos das redes que nos mostram exatamente o que
NA PRÁTICA
Segundo dados da OMS, no Brasil, 30% dos profissionais sofrem da
FINALIZANDO
Por fim, falamos brevemente da psicopolítica (Han, 2014), como uma nova