Jean Guitton - o Trabalho Intelectual
Jean Guitton - o Trabalho Intelectual
Jean Guitton - o Trabalho Intelectual
JEAN GUITTON
Tradução
— Nietzsche
NOTAS
1 Tenho em mente aqui principalmente Le travail
intellectuel et la volonté , de Payot, e sobretudo La
vide intellectuelle, de
intellectuelle, de Sertillanges.
— Goethe
I. A PRIVAÇÃO
A insatisfação em face da pedagogia de nossas
primeiras idades é um sentimento honroso e
necessário. Uma pedagogia perfeita não serviria
para formar um homem, o qual tem a necessidade
de que se seja com ele, ao mesmo tempo, bom e
mau para que atinja sua estatura. O vício de uma
educação sistemática é não produzir mais que um
homem-criança, como o são na maior parte das
vezes os filhos primogênitos, como talvez o seria o
Emílio.1 Demos portanto graças aos céus pelos
defeitos, pelas lacunas de nossos primeiros mestres,
sem as quais não teríamos a possibilidade de nos
corrigir. O contraste é a condição de uma
experiência original. Um mestre instrui-nos por
aquilo que nos dá. Estimula-nos por aquilo que lhe
falta, e que nos induz a sermos o nosso próprio
mestre interior.
rule. 6
There lies the golden rule.
V. REGRESSOS DE OUTUBRO E DE
NOVEMBRO
As vicissitudes fizeram-me encontrar, por ocasião
de meu regresso, uma classe do ensino secundário;
desejo contar ainda o que ali aprendi. Trata-se de
uma feliz experiência e que geralmente só os
religiosos podem fazer: voltar outra vez ao
princípio. Seria necessário desejá-la ardentemente,
e que o coronel descesse a sargento ou o
engenheiro a contramestre, com a condição, porém,
de que isso fosse feito sem mágoa, evitando as
conseqüências do despeito.
VII. CONCLUSÃO
Sob cada um de seus aspectos, o trabalho
intelectual tem relações com a vida profunda. A
intelectualidade
intelectualidade não deveria separar-se da
espiritualidade.
espiritualidade. Sei bem que perdemos o sentido
dessas relações entre a inteligência e a alma. Sofre
a nossa época da separação, que consentiu, entre a
técnica e o espírito. Conservamos a mentalidade de
escravo: distinguimos os deveres da profissão, os
quais são para muitos o meio de assegurar a sua
subsistência, dos prazeres do ócio, pelo qual nos é
dado gozar da liberdade pura. É forçoso reconhecer
que, nas profissões desumanizadas da indústria,
bem como de certas grandes empresas, nos gestos
mecânicos e monótonos, nenhum espírito se pode
alojar. O que importa é dar-se de corpo e alma à
máquina e ao público, por um espaço de oito horas,
como num sonho automático. Prestamo-nos a isso,
sem nisso pôr a mínima parte de nosso ser, a não
ser descontentamento e esforço. Graças aos deuses,
as profissões ainda têm setores livres. E boas
profissões há que são em si mesmas como
ministérios, no sentido etimológico de métier.
Ingressum instruas
Progressum custodias
custodias
Egressum impleas
NOTAS
1 Personagem do livro homônimo de Rousseau, um
tratado sobre como educar o homem preservando
sua “bondade natural” - NE.
Regras,n
Todo o método, dizia Descartes nas suas Regras,
consiste “na ordem e disposição daquilo para onde
é necessário dirigir a ponta do espírito, a fim de
apercebermos ali qualquer verdade”. O espírito é
uma potência perplexa; quando sabe enfim pelo que
deve se interessar e em que sentido deve orientar a
sua ponta, fica em parte consolado. O peso mais
duro para a alma é não saber o que é necessário
fazer. Aquele que tomou um partido pode vir a
sofrer da perda de seus bens ou da resistência das
vontades que lhe são hostis, mas não mais sofrerá
de incerteza. Além disso, aquilo a que se chama
espírito não
espírito não é senão a qualidade da atenção, e não é
sem razão que se compara a atenção a uma ponta
(acies mentis,
mentis, dizia Descartes) ou, ainda, que a
figuremos por um cone virado ao contrário. A
atenção será tanto mais forte quanto mais se
mobiliza e se concentra. Essa é uma verdade
simples, mas que o nosso gênero de vida, a nossa
educação, a nossa preguiça nos fazem
f azem desprezar.
E mais:
E ainda:
1) Saiba selecionar.
IV. A CONTRIBUIÇÃO DO
DESFAVORÁVEL
Quando lemos a biografia de muitos homens (de
todos, talvez, desde que a narrativa seja sincera),
notamos que as condições de sua infância, de sua
educação ou de sua vida não os predispunham para
o que realizaram. Não foi por causa causa dessa
educação, foi apesar
apesar dela muitas vezes que eles
puderam desenvolver-se. Uns não tinham livros;
escondiam-se para aprender... Isso leva a pensar no
significado da palavra propício-,
propício-, sabemos nós
alguma vez o que não é propício? Muitas vezes
acontece que o elemento mais favorável não faz
falta. É que a falta do objeto exterior faz surgir em
nosso centro um impulso que o substitui; é o eu
substituindo a coisa, é
coisa, é o gênio. Todas as vezes que
substituímos um objeto por um auxílio vindo de
nosso interior, estamos no caminho da renovação
de nós próprios e do mundo. De modo que nunca é
necessário lamentarmos demasiado pelos que
sofrem de uma falta, desde que eles tenham feito o
uramento de perseverarem.
NOTAS
1 Guitton refere-se ao livro Souvenirs sur Henri
Bergson,
Bergson, por Isaak Benrubi. Paris, Delachaux &
Niestlé S.A., 1942 - NT.
NOTAS
1 “[...] est la chance d’un fruit mür'\
mür'\ verso de
Valéry - NT.
2 Mt 8, 22.
3 Ct 5, 2.
V - A ordenação de nossas
idéias
“I prefer commencing with the consideration of an
effect”. —
effect”. — Edgar Allan Poe
I. DO MONSTRUOSO AO LÚCIDO
Examinemos como se pode fazer passar um
rascunho do monstruoso ao lúcido — problema
esse que Pascal, morrendo no tempo certo, teve o
gênio de evitar. Somente um talento reconhecido
por todos, um heroísmo, uma santidade manifesta
conferem valor ao esboço; os outros seres têm a
obrigação de conjugar e concluir — coisa que não
se pode conseguir senão pela ordenação de
computo, de hierarquia.
Diz-se.
disse.4
Diz-se o que se disse.
III. “NEVERMORE”
Nada de mais instrutivo que essa página onde
Edgar Allan Poe nos narra como compôs a balada
do Corvo.
Corvo. Esse espírito tão consciente de seus
meios punha na poesia a preocupação de um
engenheiro mecânico. Tratava-se de obter sobre o
leitor um certo efeito.
1o: A priori;
2o: A posteriori;
3o: A contrariori.
Um exemplo:
Um exemplo: Creso.6
A esse respeito, é preciso notar que não é a
quantidade mas a qualidade
quantidade qualidade dos exemplos que
prova. Os espíritos pequenos operam pela
quantidade. Os grandes espíritos operam pela
qualidade e aprofundamento. Escolhem entre todos
os exemplos possíveis um exemplo significativo e
sondam-no até o fim. Contudo, depois de ter
analisado um fato típico, é conveniente mostrar que
se conhecem muitos outros que lhe são conformes.
Chama-se essa figura retórica de alusão.
alusão. Falando
por alusão, economiza-se a nossa ciência, mostra-se
a nossa inteligência, abrem-se perspectivas. Enfim,
toda alusão agrada ao leitor.
b) A parte de erro.
Um exemplo:
“Dir-se-á que
“Dir-se-á que a riqueza põe ao alcance do homem
o meio de satisfazer todos os seus desejos e, por
conseguinte, ser feliz?”.
“ Dir-se-á,
Dir-se-á, enfim, que sua fortuna dá aos ricos os
meios de aumentarem sua generosidade?”
“Sem dúvida a
dúvida a riqueza do magnânimo permite-lhe
aumentar sua generosidade...”.
V. NOTAS E PARÁGRAFOS
Essa teoria do parágrafo, para ser fecunda, deve
estar apoiada na teoria da “nota” ou, como nós
dizemos, da “ficha”. Encontrá-la-emos mais
freqüentemente no capítulo seguinte. Notemos que
o que era excelente em Bézard é que ele ensinava,
ao mesmo tempo, a redigir parágrafos e a tomar
notas. O
notas. O mesmo princípio servia nos dois casos —
agradável economia.
NOTAS
1 Literalmente, “romance-rio”. Trata-se de uma
sequência de romances, cada um deles completo
em si mesmo, mas que compõem um todo por
partilharem personagens, cenários ou temas - NT.
2 Les Misérables, de
Misérables, de Victor Hugo, e Les
e Les Trophées,
coletânea de poemas de José-Maria de Heredia -
NT.
3 Concours général, a
général, a maior competição acadêmica
da França - NE.
NOTAS
1 “Uma estória fictícia escrita em prosa, na qual o
autor pretende excitar o nosso interesse valendo-se
da singularidade de aventuras extraordinárias” -
NT.
VII - Germes e resíduos
“Nunca se sabe se se caminha sobre uma semente
ou sobre um detrito”.
— A. de Musset
I. OS CADERNOS DE CABECEIRA
Uma vez, fazendo retiro em alguma cela, encontrei
em cima da mesa um caderno de papel branco onde
estavam impressas estas palavras do Evangelho:
“Recolhei os pedaços que sobraram para que nada
se perca”.1 Assim falou Jesus após a multiplicação
dos pães. Por que, depois de um gesto de uma tal
amplitude, ele aconselhava a juntar os restos? São
os exegetas ou, mais ainda, talvez, os místicos,
quem nos deveriam dar a saber... Mas que um tal
texto é rico de sentido para guiar o trabalho do
espírito, isso é bastante claro. Depois da
iluminação, sempre passageira, é preciso reunir os
fragmentos. Idéia que, aliás, desde a vida escolar
até o último de nossos dias é comum e de aplicação
quotidiana; mesmo crianças, estamos já na posição
do testador: temos de pensar no porvir, precisar,
formular a essência do que vai acontecendo,
defendendo-a de um esquecimento irremediável.
IV. SINOPSE
Encontrei um amigo meu, educado num colégio,
que me disse:
NOTAS
1 Jo 6, 12.
I. O EXEMPLO DE STENDHAL
Stendhal começava por resumir uma obra, depois
interpunha no resumo algumas páginas em branco
onde acrescentava os seus comentários; mas
verificou que esse método tinha o inconveniente de
deixar seus empréstimos demasiado visíveis. Quer
se faça história, poesia ou literatura, são necessárias
fontes que em nossa época devem-se ocultar.
Stendhal inventou a ficha. De acordo com Jean
Prévost, que sigo nestas linhas, a ficha oferece aos
historiadores modernos o meio de pulverizar em
fragmentos, numa linha, numa data, num só fato, os
textos de que eles se servem; de facilmente juntar
as fontes, e, em lugar de um mosaico, obter cores
melhor fundidas; eles, os historiadores modernos,
não precisam de muito espírito para parecerem
mais pessoais.
Essa observação parecería malévola se o leitor
obedecesse à hipocrisia comum, segundo a qual
uma obra do espírito não se obtém pelo trabalho.
Mas sabemos muito bem que uma obra de arte é
muitas vezes uma hábil transposição, enriquecida
com diferenças várias, onde o gênio, é certo, coloca
a sua marca.
II. MOBILIZAÇÃO E
DESMOBILIZAÇÃO
Gostaria de citar o conselho que me foi dado, em
1926, por Félix Boillot, professor na Universidade
de Bristol, o qual tinha passado a sua vida
meditando sobre os métodos do trabalho
intelectual. Dizia ele:
NOTAS
1 “Tudo que não ajuda, atrapalha”. Cf. Quintiliano,
Institutio Oratória,
Oratória, vol. 3,1. VIII, § 61 - NT.
— Joubert
O Telêmaco
Telêmaco teve alguns imitadores, mas os
Caracteres
Caracteres de La Bruyère tiveram muito mais. É
mais fácil fazer pequenas pinturas que nos
emocionam rapidamente que escrever uma obra
extensa que ao mesmo tempo agrada e instrui. 3
V. CONSELHOS A UM ESTUDANTE
Eis o que escrevi a um estudante que me pedira
auxílio para resolver um problema de linguagem:
NOTAS
1 trabalhos do autor como retórico. Pode-se dizer
que Sainte-Beuve, aos dezessete anos, já possuía
seu instrumento de análise, graças à prática, não
obstante artificial, dos discursos.
— G. Périer, a propósito
propósito de Pascal doente.
I. O TRABALHADOR
ENCLAUSURADO
Falei até agora do trabalho na saúde. Nesta nossa
época de perturbações e de esgotamento, todavia, é
raro que uma pessoa encontre-se nas condições que
mais favorecem esse trabalho. Parece, portanto, que
o homem atual tem de descobrir como poderá ainda
perseguir sua vocação em meio a obstáculos.
O trabalhador intelectual é, dentre todos os
trabalhadores, aquele que menos necessita da
saúde, ou mesmo de repouso, até mesmo de
condições propícias. Mal se imagina o que poderia
fazer Rembrandt se não tivesse telas, ou Beethoven
se não tivesse instrumentos. Mas Descartes esteve
durante muito tempo enfermo, fechado num quarto
enfumaçado e privado de livros; Pascal tem a sua
melhor obra nos papéis que, enquanto doente, ia
rabiscando. Pense-se em Marcei Proust, asmático,
agonizante, que não podia escrever sem sufocar um
pouco, num quarto enfumaçado pelas inalações,
sem outra escrivaninha a não ser os seus próprios
lençóis. Pode-se perguntar, a propósito de Pascal e
de Proust, se a saúde os ajudou tanto como a
doença. A necessidade de aproveitar todos os
minutos, a angústia de não poder terminar, os
cortes, os esquecimentos, os gemidos, os clarões
súbitos que acompanham o sofrimento do corpo,
tudo isso excita o espírito. Epicuro também era um
doente, sentado num jardim, que se levantava de
vez em quando para anotar um pensamento
qualquer; Lucrécio era-o ainda mais. São Paulo
escrevia “atribulado por todos os lados, mas não
esmagado; [...] prostrado por terra, mas não
aniquilado”.33 Nietzsche, refletindo sobre a raiz do
ser, perguntando-se o que era a doença, via nela um
meio de realização.
NOTAS
1 Me 8, 35; Mt 16, 25; Lc 9, 24; Jo 12, 25.