Jusdiversidade e Protocolos Comunitários
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PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Grão-Chanceler
Dom José Antônio Peruzzo
Reitor
Ir. Rogério Renato Mateucci
Vice-reitor
Vidal Martins
Diretora de Marketing
Cristina Maria de Aguiar Pastore
co-realização
apoio
Organização
Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Hermelindo Silvano Chico
Liana Amin Lima da Silva
Manuel Munhoz Caleiro
Ygor de Siqueira Mendes Mendonça
JUSDIVERSIDADE E
PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Rua Imaculada Conceição, 1155, Prado Velho
CEP 80.230-100 - Curitiba - Paraná - Brasil
www.direitosocioambiental.org
contato@direitosocioambiental.org
Conselho Editorial
Antônio Carlos Sant’Anna Diegues
Presidente Antônio Carlos Wolkmer
José Aparecido dos Santos Bartomeu Melià, SJ (in memorian)
Bruce Gilbert
Vice-Presidenta Carlos Frederico Marés de Souza Filho
Liana Amin Lima da Silva Caroline Barbosa Contente Nogueira
Clarissa Bueno Wandscheer
Diretora Executiva Danielle de Ouro Mamed
Flávia Donini Rossito David Sanchez Rubio
Edson Damas da Silveira
Primeira Secretária Eduardo Viveiros de Castro
Amanda Ferraz da Silveira Fernando Antônio de Carvalho Dantas
Heline Sivini Ferreira
Segundo Secretário Jesús Antonio de la Torre Rangel
Oriel Rodrigues de Moraes Joaquim Shiraishi Neto
José Aparecido dos Santos
Tesoureira José Luis Quadros de Magalhães
Jéssica Fernanda Maciel da Silva José Maurício Arruti
Juliana Santilli (in memorian)
Conselho Fiscal Liana Amin Lima da Silva
Andrew Toshio Hayama Manuel Munhoz Caleiro
Anne Geraldi Pimentel Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
Priscila Lini Milka Castro Lucic
Priscila Lini
Rosembert Ariza Santamaría
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-87022-08-6
1. Jusdiversidade. 2. Protocolos comunitários. I. Carlos Frederico Marés de Souza Filho. II. Hermelindo Silva-
no Chico. III. Liana Amin Lima da Silva. IV. Manuel Munhoz Caleiro. V. Ygor de Siqueira Mendes Mendonça.
VI. Título.
CDD 321.8
321.9
CDU 342.1
INTRODUÇÃO
1 Advogada OAB/PA. Mestranda no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico úmido – NAEA/UFPA.
Email: adharabdala@gmail.com .
8| JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
para a Amazônia:
Dessa forma, se faz necessário compreender não só o ambiente natural como visivel-
mente afetado, mas também os impactos socioambientais relacionados aos povos e comu-
nidades tradicionais. Em resposta, a esse movimento secular de ocupação e exploração
que dinamiza populações tradicionais na Amazônia, é fundamental fortalecer as bases de
mobilização social dos mais afetados nesse processo; no estado do Pará, especificamente na
região do baixo Tocantins, as lideranças da comunidade quilombola de São José de Icatu,
representada pela sua Associação (CREQSJI), vendo a necessidade de levar a informação,
bem como fortalecer os movimentos de resistência de comunidades vizinhas, propôs a
realização de um evento no formato de roda de conversa com o tema “Entra na roda: A
Consulta Prévia, Livre e Informada”, na presente oportunidade, o evento foi realizado no
barracão da sede da Associação, no dia 31 (trinta e um) de outubro de 2019, contando
com a presença de lideranças e comunitários de diversas comunidades do entorno.
Em virtude das interferências externas; e a necessidade de consolidar a organização
social na luta pela manutenção e garantia de seus direitos, diante das constantes ameaças
inerentes a esse processo desenvolvimentista, a Convenção 169 da Organização Internacio-
nal do Trabalho, prevê a obrigatoriedade e necessidade de realização da Consulta Prévia,
Livre e Informada (CPLI) aos povos e comunidades tradicionais. Com isso, a CPLI é
um tema que merece e deve ser cada vez mais discutido e apropriado por esses grupos,
uma vez que esta representa mais uma forma de resistência e manutenção da cultura e
território; deixando evidente a sua importância como instrumento efetivo e legítimo de
garantia das demandas internas e cosmovisões de seus sujeitos, muito embora os entra-
ves políticos e institucionais no reconhecimento deste instrumento visem inviabilizar a
eficácia dos seus termos.
Nesse contexto, considerando a interculturalidade presente nesse processo de reco-
nhecimento de direitos, surge o Protocolo de Consulta Prévia, que será construído pelos
próprios comunitários, contendo nele a regulamentação do processo de Consulta que
venha a ser realizado naquela comunidade, classificando e enumerando todas as suas
especificidades. Assim, conferindo maior autonomia e dando mais força pra esses grupos
etnicamente diferenciados nas tomadas de decisões (OLIVEIRA, 2017).
O método utilizado no evento do presente relato de experiência se fundamenta a
partir da utilização da roda de conversa, que tem por base priorizar a troca de diálogos e
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FORTALECIMENTO DE DIREITOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SÃO JOSÉ DE ICATU – MOCAJUBA/PA |9
Adhara Abdala Nogueira Pereira
Logo no inicio do povoado de Icatu se concentram a igreja Católica, que tem São José
como santo padroeiro, a escola local, o posto de saúde, o antigo sistema de abastecimento
de água, o salão comunitário, a sede social da Associação Quilombola, e mais quatro casas
12 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
É com base nesses relatos que, antes mesmo de existir a titulação da terra, os
comunitários já conheciam e respeitavam os limites do seu território, tendo cada espaço
delimitado para cada função de uso, o que retoma as lembranças de seus antecipados,
que descreviam os lugares de plantação, de pesca e caça adotados desde o momento das
primeiras ocupações do quilombo, e até mesmo os limites de onde se pode ou não ir.
O título coletivo de terra é um documento fundamental a esta e outras comunidades
quilombolas brasileiras, pois se transforma em mais um meio de proteção, luta e resistência
contra invasores.
“ENTRA NA RODA”: O DIREITO À CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA COMO RECONHECIMENTO E
FORTALECIMENTO DE DIREITOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SÃO JOSÉ DE ICATU – MOCAJUBA/PA | 13
Adhara Abdala Nogueira Pereira
de São José de Icatu, que tem como afluente direto o Rio Tauaré. A execução das obras
tende a viabilizar maior trafego hidroviário, possibilitando a conexão em seu curso com
as malhas ferroviárias e rodoviárias brasileiras, formando um corredor multimodal. Com
isso, sendo determinante para a atração de novos investimentos, tais como a instalação de
novos portos, além de possuir potencial de dinamizar a produção rural dos municípios
que margeiam o rio Tocantins, permitindo o escoamento desses produtos pela nova Via
Navegável, e ainda de possibilitar a plena operação da eclusa da Usina Hidrelétrica de
Tucuruí, que se encontra subutilizada (DNIT. 2018). O projeto se encontra sob análise
do IBAMA para liberação de Licença Prévia.
No dia 31 de outubro de 2019, foi realizada uma roda de conversa no salão sede da
Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo de São José de Icatu, em que
se propôs a realização de debate, troca de conhecimentos e experiências sobre o direito
à Consulta Prévia, Livre e Informada entre os comunitários locais e de comunidades
quilombolas vizinhas. Na ocasião fiquei responsável por ministrar uma palestra sobre o
tema, a fim de trazer conceitos e definições básicas sobre o assunto. Estavam presentes
mais duas comunidades vizinhas, sendo estas as Comunidades de Engenho e Calados,
ambas do Município de Baião. Recebi o convite para participar da atividade na comuni-
dade através da comunitária Delma Brito, durante um evento que organizei em setembro
de 2019 no Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, relacionado ao grupo de pesquisa
“Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais”.
O traslado de Belém à comunidade foi feito na companhia da senhora Maria José;
grande liderança da comunidade de Icatu, responsável pelas organizações sociais e do
grupo de mulheres, e que também é tia de Delma. Na época, a viagem foi realizada em
dois trechos, um é feito por via fluvial e o outro por via terrestre; o primeiro trecho saindo
de Belém até o município de Cametá, feito de barco, com duração de duas horas; em
seguida, no segundo trecho, a viagem segue de ônibus por estrada, havendo uma rápida
travessia do rio Tocantins em uma balsa até chegar à Mocajuba. Após o desembarque
seguimos mais duas horas de estrada pela PA – 151 ate a entrada do ramal que dá acesso
a Comunidade de São José de Icatu, avisado o motorista, o ônibus para bem em frente ao
ramal, onda já havia um senhor com seu carro aguardando nossa chegada para nos levar
ate a comunidade, seguindo aproximada mais vinte minutos até chegar à comunidade.
Chegando na comunidade, Dona Maria José me levou até sua casa, onde fiquei
hospedada. A casa era bem ampla, não seguia o padrão das casas construídas na vila pelo
projeto de moradia (COHAB), tinha dois quartos, uma sala e cozinha, o quintal da casa
na verdade era só a extensão de todo o terreno da comunidade, com algumas arvores
frutíferas e findava no rio Icatu. Após acomodar as bagagens, seguimos a uma breve apre-
sentação pelos principais pontos da comunidade; o barracão sede da associação e acolhida
da Igreja Católica, que já estava enfeitado para o evento que aconteceria logo mais, a casa
de apoio ao fundo, onde se localizava a cozinha que forneceria as refeições ao longo do
dia; no caminho também ia sendo apresentada á algumas pessoas, a maioria com ar de
16 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
curiosidade, natural, uma vez que tinha uma pessoa nova entre eles.
Com o passar das horas as pessoas foram chegando e se posicionando nos bancos
distribuídos no barracão, organizados de forma a simular uma “roda”. A conversa se estabe-
leceu na medida em que todos os convidados se fizeram presentes e ocuparam seus lugares
no barracão, que se encontrava enfeitado com as cores do movimento de resistência negra,
predominando o verde, vermelho, amarelo e preto; nesse momento somavam-se apro-
ximadamente trinta pessoas. Em um primeiro momento, ainda um tanto introspectivo,
cada pessoa presente foi convidada a se apresentar, dizendo nome, profissão ou ocupação
e qual sua comunidade de origem.
Finalizado o dia, de volta a casa de dona Maria José, com o sentimento de dever
cumprido, o recolhimento e o descanso para enfrentar a longa viagem de retorno no dia
seguinte já no primeiro raiar do sol. Assim, ao final do evento se atingiu como resultado
o entendimento do direito e da obrigatoriedade da CPLI no dia-a-dia das comunidades
tradicionais, especificamente na Comunidade Quilombola de São José de Icatu, onde
se construiu um espaço de aprendizado e reconhecimento de direitos fundamentais, e
acima de tudo a troca de saberes técnicos, científicos, empíricos e culturais, bem como
foi sugerida a criação de um calendário de atividades que visem trazer mais eventos e mais
informações sobre os direitos Fundamentais de Comunidades Tradicionais, com ênfase
em comunidades quilombolas, assim como maiores explanações sobre o direito a CPLI,
para que em um futuro próximo, seja realizada a construção do Protocolo de Consulta
Prévia, Livre, Informada e Consentida da Comunidade Quilombola de São José de Icatu.
DIREITOS ENTRELAÇADOS
Diante de tal experiência, é possível refletir ainda sobre como essas comunidades
dialogam no que tange a organização e criação de um ordenamento jurídico próprio e um
pré-existente. Dessa forma, o Protocolo de Consulta se torna uma demonstração prática
do entrelaçamento de ordens jurídicas internas e externas à comunidade quilombola,
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FORTALECIMENTO DE DIREITOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SÃO JOSÉ DE ICATU – MOCAJUBA/PA | 19
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[...] são documentos nos quais os povos “regulamentam” a consulta de maneira específica, de
acordo com seus usos, costumes e tradições. Nesses protocolos, povos indígenas, comunidades
quilombolas, povos e comunidades tradicionais expõem ao governo como estão organizados
politicamente, como se fazem representar, quem fala em nome deles, como esperam que as
informações sejam repassadas e como tomam decisões autônomas levando em consideração
a coletividade. (GARZON, YAMADA, OLIVEIRA, 2014, p.38)
como esses sujeitos se organizam através das suas próprias normas, e ainda
como tais sujeitos organizam suas experiências, segundo o direito estatal, os direitos consuetu-
dinários, o direito comunitário, os direitos locais ou o direito global, e, na maioria dos casos,
segundo complexas combinações entre diferentes ordens jurídicas, para que possam manter
um território ancestral. (CARDOSO E CARDOSO et al, 2010, p. 10)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
são excluídos do sistema predominante pela maioria detentora de poder, fazendo ecoar as
multivozes de resistência que comunidades como a de São José do Icatu possuem; ressal-
tando sua força e seu caráter de adaptação aos mais diversos tipos de contextos já vividos,
quebrando barreiras na luta contra a invisibilização desses indivíduos.
Dessa forma, o que se busca implantar na região amazônica, seria caracterizado pela
utilização dos saberes tradicionais e inclusão daqueles que se encontram marginalizados
em um primeiro momento desse processo. Dessa forma, desconstruiria e reinventaria a
aplicação da participação das comunidades Tradicionais no atual contexto de exploração
ambiental. Assim, entende-se o direito a CPLI como instrumento de luta e resistência na
conquista e manutenção de direitos fundamentais; ainda que, muito presente na realidade
amazônica, este direito seja constantemente violado, ainda mais se tratando de questões de
caráter territorial; porem acredita-se que, através da organização social, o empoderamento
e fortalecimento dessas relações entre os comunitários, faz com que cada vez mais o acesso
à justiça e manutenção de seus direitos se tornem viáveis, bem como a elaboração e eficácia
de Protocolos de Consulta Comunitários como resultado de um processo de adaptação
secular aos diferentes modelos de ordenamentos jurídicos vivenciados e a retomada da
autonomia e poder decisório desses grupos.
REFERÊNCIAS
BASTOS, Ana Paula Vidal; ALMEIDA, Oriana; CASTRO, Edna Ramos de; MARÍN,
Rosa Acevedo; PIMENTEL, Marcia da Silva; RIVERO, Sergio; SILVA, Ione Câmara da;
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tins, Pará. Paper do NAEA. Março 2010.
FUNDO DEMA. Projeto da Ferrovia Paraense S.A não respeita não respeita o direito
de povos indígenas e comunidades tradicionais. Disponível em: http://www.fundo-
dema.org.br/conteudos/noticias-fundo-dema/40940/projeto-da-ferrovia-paraense-s-a-
-nao-respeita-os-direitos-de-povos-indigenas-e-comunidades-tradicionais . Acesso em:
01 de junho de 2021.
MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo; CASTRO, Edna Maria Ramos de. No caminho das
Pedras de Abacatal: experiência social de grupos negros no Pará. 2. ed. Belém: NAEA/
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FORTALECIMENTO DE DIREITOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SÃO JOSÉ DE ICATU – MOCAJUBA/PA | 23
Adhara Abdala Nogueira Pereira
UFPA, 2004.
MATOS, Mariana Ribeiro de; DESIDÉRIO, Plábio Marcos Martins; SILVA, Elias da.
A Formação Socioterritorial da Comunidade Remanescente de Quilombo Grotão.
Revista Temporis [Ação] (Periódico acadêmico de História, Letras e Educação da Uni-
versidade Estadual de Goiás). Cidade de Goiás; Anápolis. v. 19, n.2, p. 1-26, e-190208,
jul./dez., 2019. Disponível em: https://www.revista.ueg.br/index.php/temporisacao/
issue/archive . Acesso em: 26 de maio de 2021.
INTRODUÇÃO
1 Discente do 8ª período do Curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Email: laracsousa98@gmail.com.
2 Advogado e Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA).
Email: ferreiravictorantonio@gmail.com.
3 Advogado, Doutor em Ciência e desenvolvimento socioambiental. Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Direito na Universidade
Federal do Pará (UFPA). Membro da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA/UFPA). Pesquisador do CNPQ. E-mail:
jbenatti@ufpa.br.
26 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Art. 1° Fica homologada, para os efeitos do art. 231 da Constituição Federal, a demarcação
administrativa promovida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), da terra indígena
Yanomami, localizada nos Municípios de Boa Vista, Alto Alegre, Mucajaí e Caracaraí, Estado
de Roraima e Santa Izabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira, Estado do
Amazonas, caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena, com superfície
de 9.664.975,48ha (nove milhões, seiscentos e sessenta e quatro mil, novecentos e setenta e
cinco hectares e quarenta e oito ares) e perímetro de 3.370km (três mil, trezentos e setenta
quilômetros).
a. que o governo brasileiro continue adotando medidas sanitárias de caráter preventivo e clínico
a fim de proteger a vida e a saúde dos índios expostos a contrair doenças infecto-contagiosas;
b. que o governo brasileiro, através da FUNAI e de acordo com sua legislação, proceda a
delimitação e demarcação do Parque Yanomami, tal como proposto pela FUNAI em setem-
bro de 1984;
c. que os programas educacionais, de saúde e de integração social dos Yanomami sejam levados
a cabo consultando com a população indígena afetada e com a assessoria de pessoal científico,
médico e antropológico competente; e
d. que o governo brasileiro informe à Comissão sobre as medidas adotadas para implementar
estas recomendações.
Apesar de toda esta violência acima mencionada, Davi Kopenawa, grande liderança
Yanomami na luta pelos direitos indígenas, apresenta esperança por dias melhores, como
descreveu na sua obra A Queda do Céu (2015, p. 78):
Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascentes dos rios muito antes
de os meus pais nascerem, e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. Antiga-
mente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos
morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas.
Ficamos tristes, e sentimos a raiva do luto demasiadas vezes no passado. Às vezes, até tememos
que os brancos queiram acabar conosco. Porém, a despeito de tudo isso, depois de chorar
muito e de pôr as cinzas de nossos mortos em esquecimento, podemos ainda viver felizes.
Constata-se, então, que os indígenas Yanomami têm lutado contra o etnocídio, mar-
cado pelo avanço do garimpo ilegal, a exemplo do massacre do Rio Haximu em 1993; da
construção de estradas que atraem garimpeiros; do desamparo aos defensores de direitos
humanos, incluindo as lideranças comunitárias; do desmatamento de terras e, agora, da
pandemia de COVID-19, a qual se iniciou em 2020, assolando, de forma mais intensa,
as populações que se encontram em contexto de vulnerabilidade, como os povos e comu-
nidades tradicionais.
ANÁLISE DO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA QUINTA TURMA DO TRF1 SOBRE O PROJETO DE CONSTRUÇÃO
DA RODOVIA FEDERAL, PRÓXIMA AO TERRITÓRIO YANOMAMI, EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA/AM | 29
Lara Cristina Cardoso de Sousa, Victor Antônio dos Santos Ferreira e José Heder Benatti
No cenário atual de crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, Dário Kope-
nawa Yanomami, em palestra virtual proporcionada pelo Instituto Socioambiental (2020),
afirmou, acerca do garimpo nas terras Yanomami:
Essa situação dos garimpeiros é muito preocupante, né? A gente vive lá na terra Yanomami....
Os Yanomami estão sofrendo bastante de.... de ameaça de morte...de ameaça de...dessas várias
doenças que estão impactando... as doenças de malária... de tuberculoso.... e também preju-
dicando a vida do povo Yanomami com um todo, né.... na terra Yanomami. [...] Hoje, a terra
Yanomami está totalmente destruída; tem muitos é de mercúrio nas nossas comunidades...
os rios...os rios são principais Alto do Itajaí e o Catrimani... Rio Catrimani está totalmente
poluído por mercúrio. Então, por isso que os nossos Yanomami e os outros... crianças estão
cada vez mais adoecendo nessas contaminações.
(1) mesmo que não haja menção expressa no acórdão dos artigos referentes à responsabilidade
pelo dano moral, o STJ já decidiu que a discussão de fato sobre determinado assunto supre a
necessidade dessa exposição expressa; (2) o Exército Brasileiro não se esquivou às obrigações
impostas por lei, tendo provocado os órgãos ambientais competentes antes da realização da
obra (fl. 1139v); (3) o dano ambiental já foi reparado mediante acordo devidamente homo-
logado e regularmente cumprido, firmado na ação civil pública 2005.32.00.005553-3 (fl.
1139v); (4) os danos morais supostamente causados à comunidade da Aldeia Indígena Ariabu,
localizada no estado do Amazonas, não foram demonstrados (fl. 1140); (5) o acórdão incorreu
em contradição ao determinar a suspensão definitiva da obra e, simultaneamente, consignar a
possibilidade de continuidade da construção, caso preenchidos os requisitos legais (fl. 1140);
(6) a estrada vicinal é de extrema importância para as próprias comunidades indígenas envol-
vidas (fl. 1140); (7) não houve manifestação expressa do tribunal sobre as questões alegadas
quando do julgamento dos embargos de declaração.
ANÁLISE DO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA QUINTA TURMA DO TRF1 SOBRE O PROJETO DE CONSTRUÇÃO
DA RODOVIA FEDERAL, PRÓXIMA AO TERRITÓRIO YANOMAMI, EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA/AM | 33
Lara Cristina Cardoso de Sousa, Victor Antônio dos Santos Ferreira e José Heder Benatti
Tais alegações não foram acolhidas, porque, em sede de recurso especial, os fatos
não devem ser novamente discutidos, como tentou a União. Sendo assim, esse recurso foi
inadmitido, em decisão monocrática, datada de 27 de setembro de 2017, proferida pelo
Desembargador Hilton Queiroz.
Na mesma oportunidade, a União interpôs recurso extraordinário. Em razão da falta
de prequestionamento, tal recurso também foi inadmitido. Seguem os argumentos do RE:
(1) o Exército Brasileiro não se esquivou às obrigações impostas por lei, tendo provocado
os órgãos ambientais competentes antes da realização da obra. Entretanto, o acórdão não
considerou o fato de que o projeto e a execução da obra em foco datam de período em que
as normas de licenciamento ambiental eram ainda incipientes, estando em vigor apenas a
Resolução 1/86 do CONAMA (fl. 1145v); (2) o dano ambiental já foi reparado mediante
acordo devidamente homologado e regularmente cumprido, firmado na ação civil pública
2005.32.00.005553-3 (fl. 1146); (3) os danos morais supostamente causados à comunidade
da Aldeia Indígena Ariabu, localizada no estado do Amazonas, não foram demonstrados (fl.
1140). Concluiu afirmando que “não há nexo de causalidade entre os fatos narrados no acórdão
e a conduta da União, o que exclui a responsabilidade civil (art. 37, § 6º CF).
no art. 18 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, nos
artigos 231 e 232 da Constituição Federal, e em outros instrumentos normativos. A
Constituição Federal, no seu art. 231, § 3º, assim dispõe:
Na linha de precedente do egrégio Supremo Tribunal Federal, quando julgou o caso Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, restou decidido que, conforme bem salientado pelo eminente
relator, em caso de segurança nacional, não se faz necessária a consulta prévia ao povo indí-
gena do local, quando se fizer necessária a presença das Forças Armadas brasileiras, da
Polícia Federal e de órgãos de segurança pública. Este argumento da nossa Suprema Corte
não necessita de maiores explanações, porquanto resulta evidente que o interesse nacional de
proteção à fronteira, a combate a toda sorte de criminalidade na região é uma necessidade
imperiosa. (Grifos nossos).
Quando tive a oportunidade de julgar ação relativa à área indígena Raposa Serra do Sol, estudei
alguns dados a respeito do Parque Nacional do Pico da Neblina. O Parque Nacional do Pico
da Neblina — fiz aqui alguns apontamentos, me recordando do caso passado já julgado — é
a segunda maior reserva do Brasil e foi criado no governo do General Figueiredo, junto com
outros parques amazônicos (...).
Há de ver-se, porém, que o colendo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento
histórico, abordando questão similar, relativa à ocupação das Terras Indígenas Raposa
Serra do Sol, emprestou interpretação ao referido dispositivo constitucional, no sentido
de que:
v) o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a
instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão
estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o
resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério
da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de
consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI;
(vi) a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas
atribuições, fica assegurada e se dará independentemente de consulta às comunidades
indígenas envolvidas ou à FUNAI; (vii) o usufruto dos índios não impede a instalação,
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Como se pode verificar nos votos e no acórdão ementado, a 5ª Turma entendeu que
a construção de estrada, ainda que instalada para garantir a segurança nacional, deve se
sujeitar à legislação socioambiental. Todavia, aplicou indevidamente o “Caso Raposa Serra
do Sol”, decidido no julgamento da Ação Pet 3388, pelo Supremo Tribunal Federal —
STF, o qual relativizou o direito à consulta, quando em detrimento ao “interesse nacional”.
Reconhece-se que o “Caso Raposa Serra do Sol”, cuja matéria envolvia a demarcação
da terra indígena Raposa Serra do Sol em Roraima/RR, tentou resolver essa demanda que
perdurava por muitos anos, porém lançou incertezas a alguns aspectos que permanecem
controversos. Por exemplo, cita-se a repercussão desta decisão em outras instâncias, com
juízes e teóricos procurando aplicar a decisão a outros casos concretos, inclusive, agindo
de forma inadequada. Neste cenário, dentre os problemas observados no julgamento,
é prevista a dispensa do direito à consulta, quando há interesse da União em garantir a
segurança nacional pelas Forças Armadas, o que fundamentou os votos e o acórdão do
conflito, aqui discutido.
Não se pode conceber que, ao mesmo tempo, seja possível a proteção do meio
ambiente e a promoção do desenvolvimento sustentável, relativizando o direito à con-
sulta dos povos originários. É necessário destacar que estes já foram considerados como
os melhores protetores da floresta, segundo o novo Relatório “Povos indígenas e comu-
nidades tradicionais e a governança florestal”, da Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e a Agricultura (FAO) e do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos
Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC) (FAO, 2021).
No presente caso, a falta de consulta é bastante delicada. O projeto em questão é
resultado do “Programa Calha Norte”, baseado na política de integração e segurança nacio-
nal, intensamente investida no período da ditadura militar que, apesar de seus expressivos
impactos socioambientais, ainda tem sido aplicada atualmente. Como foi salientado no
Relatório da Comissão de Direitos Humanos (2000), a implementação do projeto de
construção da estrada vicinal ocasionou inúmeros danos aos indígenas e estes não tiveram
a oportunidade de discutir e deliberar acerca da construção da rodovia federal. Portanto,
o contato intenso entre indígenas e não-indígenas ocorreu de modo — extremamente
— prejudicial, em razão da ausência de consentimento. Em circunstâncias de elevada
ANÁLISE DO ACÓRDÃO PROFERIDO PELA QUINTA TURMA DO TRF1 SOBRE O PROJETO DE CONSTRUÇÃO
DA RODOVIA FEDERAL, PRÓXIMA AO TERRITÓRIO YANOMAMI, EM SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA/AM | 37
Lara Cristina Cardoso de Sousa, Victor Antônio dos Santos Ferreira e José Heder Benatti
gravidade, surgiram, ainda, relatos de abusos sexuais contra as mulheres indígenas, prati-
cados por membros do próprio exército.
Sobre o contato entre indígenas e colonizadores, é oportuno informar que, no
período de 21 a 23 de novembro de 2019, foi realizado o Fórum de Lideranças Yanomami
e Ye’kwana, oportunidade em que várias lideranças indígenas puderam dialogar. Neste,
Ehuana Yaíra Yanomami afirmou: “É assim que eu penso, porque os garimpeiros não
nos respeitam. Nós não queremos que eles se aproximem dos Yanomami. Eles estragam
a nossa floresta e por isso ficamos muito tristes. Por isso eu falo essa mensagem, para que
vocês espalhem”.
Sendo assim, não foi levado em consideração o art. 6 da Convenção nº 169 da OIT,
a qual já estava, em 2004, vigorando no Brasil, ou seja, antes do julgamento do acórdão.
Por esse tratado internacional, foi determinado que os governos devem consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas
instituições representativas, quando houver previsão de medidas legislativas ou admi-
nistrativas suscetíveis a afetá-los diretamente, como é o caso do projeto de construção
de rodovia federal.
Ainda, cabe ao Estado o estabelecimento dos meios pelos quais os povos interessados
possam participar livremente, no mínimo, na mesma medida em que outros setores da
população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou orga-
nismos administrativos (e de outra natureza) responsáveis pelas políticas e programas
que lhes sejam concernentes. Por adição, é dever estatal estabelecer os meios para o pleno
desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer
os recursos necessários para este fim.
Ressalta-se que as consultas realizadas na aplicação da Convenção 169 deverão ser
efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de firmar
um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Para Svampa (2016,
p. 150), em situações de resistência e expressa assimetria de forças, a demanda do direito
de Consulta Prévia, Livre e Informada é uma ferramenta fundamental, para conseguir o
controle ou recuperação do território ameaçado pelo atual modelo de desenvolvimento.
Então, a reforma da sentença foi fundamentada pela violação da legislação ambiental
que obriga a efetuação do EIA/RIMA, desconsiderando a inexistência de Consulta Prévia.
Desta feita, a Quinta Turma do TRF1 não garantiu o Direito à Consulta Prévia, Livre
e Informada, embora este seja um direito fundamental, reconhecido no ordenamento
jurídico brasileiro e internacional.
da OIT, mas também expressa o seu teor democrático, palco de deliberação dos povos
indígenas (SOUZA FILHO, SILVA, OLIVEIRA, MOTOKI, 2019).
Além disso, entende-se que o protocolo é um instrumento de jusdiversidade, o qual
é um conceito compreendido a partir da noção de autorreconhecimento, diversidade
cultural, diversidade de sistemas jurídicos próprios vinculados a determinado território
e territorialidade, conformando a jurisdição indígena ou tradicional (SOUZA FILHO,
2021).
Com relação ao “Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye’kwana”, em
específico, este é resultado de um processo de construção coletiva em que participaram
lideranças, incluindo, homens e mulheres Yanomami e Ye’kwana de diferentes regiões
da Terra Indígena Yanomami e das sete associações que os representam, segundo Vieira
(2019). O documento está digitado tanto na língua materna, quanto em português e
é composto pelas seguintes seções: a) Por que fizemos esse protocolo de consulta?; b)
Quais são as regras gerais para consultar os Yanomami e Ye’kwana?; c) Como consultar
os Yanomami e Ye’kwana: passo a passo e d) Quais são as Leis que amparam nosso direito
de sermos consultados?
No início do protocolo, os indígenas informam que, na Terra Indígena Yanomami,
já aconteceram muitas tragédias, como na década de 1970, quando os governantes cons-
truíram uma estrada que atravessou o território, a Perimetral Norte. Posteriormente, o
território foi invadido por mais de 40.000 garimpeiros. Estes, não consultaram os indígenas
previamente, conforme Vieira (2019). Neste sentido, os povos originários pretendem
evitar a repetição destas violências.
Por conta disso, em 2019, os Yanomami e os Ye’kwana decidiram elaborar o próprio
protocolo de consulta, chamado “Yanomami yama kixë, Ye’kwana pëxë, Yëmakamayotima
Protocolo de Consultar siki”, visando à proteção da terra e da comunidade, assim como,
almejando fortalecer as suas decisões influentes no presente e no futuro de seu povo
(VIEIRA, 2019). Sabe-se que, em 2004, o Brasil assinou a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e que é garantido, pelo ordenamento jurídico brasi-
leiro, o direito de cada povo ser consultado e decidir livremente acerca das circunstâncias
passíveis a afetar a sua existência.
Consta no protocolo que os povos que vivem na TI Yanomami têm as suas próprias
formas de tomar decisões. Entre os Ye’kwana, são as lideranças e os sábios que tomam as
decisões, sendo estas válidas para todo o coletivo. Já entre os Yanomami, nenhuma comu-
nidade possui único líder, porque são as famílias que deliberam, junto com as lideranças
e os xamãs. É desse modo que as decisões cotidianas são firmadas, por exemplo, decidir
uma área para arado, organizar uma festividade, etc.
O protocolo determina que as reuniões devem ser pautadas na honestidade e
40 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
transparência, consoante Vieira (2019). O governo, por sua vez, tem o dever de consul-
tar os Yanomami e Ye’kwana com boa-fé, clareza e transparência. Aos representantes do
governo, não é permitido ocultar informações dos indígenas. Assim, quando ocorrem
reuniões com os representantes dos povos indígenas, os informes e discussões precisam
ser proferidos em discursos simples e claros, até que todas as nossas dúvidas e questiona-
mentos sejam sanados.
Somado a essas regras, o protocolo estabelece que o governo tem a obrigação de
solicitar a consulta dos Yanomami e dos Ye’kwana sempre que houver um projeto que
possa impactar estes povos. Os assuntos que afetam toda a TI Yanomami são decididos
no Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana. O papel do Fórum é discutir, construir
soluções e tomar decisões, a partir de um pensamento coletivo sobre as questões que afetam
toda a TI, por isso, este sempre deverá ser convocado para as consultas.
Durante reuniões com o governo, o protocolo prevê que os indígenas devem rece-
ber a assessoria do MPF, da FUNAI e de parceiros qualificados que acreditarem possuir
competência para auxílio. Todos eles poderão participar das reuniões, todavia não deverão
tomar decisões em nome do Povo Yanomami. Inclusive, se a proposta do governo não
contemplar os interesses indígenas, estes têm o direito de dizer “não”. Determinação que
deve, obrigatoriamente, ser respeitada pelo governo, uma vez que o direito ao veto está
previsto no protocolo, conforme Vieira (2019).
É importante elucidar que, de acordo com as informações do Instituto
Socioambiental — ISA (2021), o território Yanomami é composto por oito povos, quais
sejam: Isolados da Serra da Estrutura, Yanomami, Isolados do Amajari, Isolados do Auris/
Fronteira, Isolados do Baixo Rio Cauaburis, Isolados Parawa u, Isolados Surucucu/Kata-
roa e Ye’kwana. Considerando que os povos isolados não participaram do processo de
construção do protocolo, este não abrange aqueles. Assim, demonstra-se a preocupação
em respeitar o direito de decisão entre os próprios povos que vivem na TI Yanomami:
Na nossa Terra Indígena Yanomami vivem povos em isolamento voluntário, como os Moxi
hatëtëa e outros grupos, que não podem ser contatados. Qualquer consulta feita aos Yano-
mami e Ye’kwana não envolve o Protocolo de Consulta dos Povos Yanomami e Ye’kwana o
consentimento dos grupos isolados. Por isso, qualquer ação que possa prejudicar a vida deles
é totalmente inviável, sem discussão.
Decide a Sexta Turma, por unanimidade, dar parcial provimento aos recursos de apelação
interpostos pelos réus e, reformando em parte a sentença recorrida, afastar a declaração de
nulidade da licença prévia emitida ao empreendimento Projeto Volta Grande do Xingu,
condicionando a validade da licença de instalação à elaboração do ECI a partir de dados pri-
mários, na forma exigida pela FUNAI, bem como à consulta livre e informada dos indígenas
afetados, em conformidade com o protocolo de consulta respectivo, se houver, em atenção ao
que dispõe a Convenção nº 169 da OIT, mantida, assim, a suspensão da LI. Ressaltar, por fim,
que a manutenção da validade da licença prévia já emitida não impede sua posterior alteração,
a depender das conclusões do ECI e da consulta prévia ora exigidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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www.planalto.gov.br/ccivil_03/dnn/anterior_a_2000/1992/Dnn780.htm. Acesso em:
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CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS E AS INTERPRETAÇÕES PLURAIS DO
JUDICIÁRIO BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS
INTRODUÇÃO
1 Acadêmica do 4º período do curso de Direito da Faculdade de Direito e Relações Internacionais (FADIR) da Universidade Federal
da Grande Dourados (UFGD). Bolsista vinculada ao Observatório de Protocolos Comunitários De Consulta e Consentimento Prévio,
Livre e Informado/Subprojeto Jurisprudência sobre Consulta Prévia e Protocolos Autônomos (PUCPR/Ford Foundation). E-mail:
julia.g.oliveira@hotmail.com.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos pela Universidade Federal da Grande Dourados (PPGFDH/
UFGD). Bacharela em Direito (FADIR/UFGD). Advogada. Bolsista vinculada ao Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta
e Consentimento Prévio, Livre e Informado/Subprojeto Jurisprudência sobre Consulta Prévia e Protocolos Autônomos (PUCPR/Ford
Foundation). E-mail: jeovanagavilan@gmail.com.
3 Doutora em Direito Socioambiental (PUCPR). Professora de Direitos Humanos e Fronteiras da Faculdade de Direito e Relações
Internacionais (FADIR/ UFGD) e do Programa de Pós-Graduação em Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade Federal da Grande
Dourados (PPGFDH/UFGD). Coordenadora do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio
e Informado (Projeto Universal CNPq). E-mail: lianasilva@ufgd.edu.br.
4 A perspectiva integracionista se trata de entendimento norteado pela intenção racista de considerar o pertencimento à etnia indígena como
condição passageira e transitória que pode ser superada através da inserção, sem respeito ao modo de ser e conhecimentos étnico-culturais
indígenas, à comunidade não-indígena, cujas características culturais são compreendidas como superiores diante daquelas referentes aos
povos tradicionais.
48 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Entretanto, além dos referidos artigos, é preciso destacar que a Constituição de 1988
expõe que, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, estão a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I), a erradicação da
pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, inciso
III) e o objetivo de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV).
No tocante à legislação internacional, destaca-se a Convenção n.º 169 da Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT), aprovada em Genebra em 1989, referente aos povos
indígenas e tribais, pois se trata de um tratado internacional de direitos humanos que sur-
giu para revisar e substituir a Convenção n.º 107 da OIT de 1957 dedicada às populações
indígenas e membros de comunidades tribais e semitribais. Logo de início, é importante
notar essa diferença nos termos “povos”, “populações” e “membros”, o que demonstra o
caráter integracionista presente na Convenção de 1957. Por sua vez, a Convenção de
1989, um marco legal de suma importância, trata sobre o direito à livre determinação e
direito ao autorreconhecimento (autoidentificação). Do mesmo modo, é significativo
que se ressalte a importância do termo “povos indígenas” em substituição a “índios”, visto
que, de acordo com Pedro Peruzzo (2017), o segundo se trata de termo abstrato trazido
pelo colonizador e que não representa realmente a pluralidade dos povos (p. 9), os quais
devem ter reconhecidos seus diferentes costumes, culturas, línguas e organização.
A Convenção n.º 169 da OIT é muito importante para esse estudo, pois, assim
como a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Direitos dos Povos
Indígenas em seus artigos 19 e 32, trata do direito à consulta e ao consentimento livre,
prévio e informado, principalmente em seu artigo 7º, garantindo que os povos sejam
consultados adequadamente sobre qualquer medida que possa afetar-lhes e atingir seus
costumes, mantendo um diálogo transparente. Essas medidas que podem afetar o modo
de vida dos povos indígenas ou de outras comunidades tradicionais podem ser legislativas,
administrativas ou relacionadas às obras que interferem no território desses grupos, seja
por reduzirem a vazão de rios ou por contaminá-los através de atividade mineradora.
No Brasil, a Convenção de 1989 passou pelo processo de ratificação em 2002
(Decreto Legislativo n.º 143/2002), entrou em vigor no ano de 2003 e foi promulgada
através do Decreto n.º 5.051 no dia 19 de abril de 2004. Contudo, no dia 5 de novembro
de 2019, o Decreto n.º 10.088 revogou o Decreto de 2004 e outros decretos a fim de
consolidar os atos normativos que dispõem sobre promulgação de convenções e reco-
mendações da OIT que foram ratificadas pelo Brasil. Ademais, sobre os sujeitos dessa
Convenção no Brasil, Liana Lima da Silva (2019) pontua:
No Brasil, os sujeitos da Convenção n. 169 são identificados como povos indígenas e povos
tradicionais, incluindo quilombolas e os diversos povos e comunidades tradicionais, grupos
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
ÇÕES PLURAIS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS | 49
Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
Todavia, a despeito dos avanços ocorridos com a substituição da Convenção n.º 107
de 1957 pela Convenção n.º 169 de 1989, ambas da OIT, bem como apesar da ratificação
desta pelo Brasil e do progresso democrático através da Constituição Federal de 1988,
o Poder Judiciário ainda parece encontrar empecilhos para interpretação e aplicação de
inúmeros direitos abstratamente previstos em favor dos povos tradicionais, inclusive da
Convenção n.º 169 da OIT, principalmente no que diz respeito ao direito à consulta
prévia. De fato, muitas decisões sequer mencionam a consulta aos povos e comunidades
tradicionais e, quando o fazem, costumam trazer divergentes interpretações sobre os ritos
do exercício desse direito.
Diante desse contexto, em 2018 foi submetido e aprovado pela chamada Universal
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vincu-
lado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, o projeto de pesquisa intitulado
“Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio Livre
e Informado: Direitos Territoriais, Autodeterminação e Jusdiversidade”, sob coordenação
da Prof.ª Dra. Liana Amin Lima Silva (UFGD). A partir de 2020, o projeto passou a
contar com Bolsas de Fomento à Pesquisa por meio de Convênio com a PUCPR e apoio
da Fundação Ford (Ford Foundation), sob coordenação do Prof. Dr. Carlos Frederico
Marés de Souza Filho (PUCPR) e Prof.ª. Dra. Liana Amin Lima da Silva (vinculada ao
pós-doutorado, PUCPR). Em 2020, lançamos o Mapa dos Protocolos Autônomos e
página web do projeto.5 O subprojeto “Jurisprudência sobre Consulta Prévia e Protocolos
Autônomos” vinculado ao Observatório de Protocolos é coordenado também pelo Prof.
Dr. Joaquim Shiraishi Neto (PUCPR/UFMA) e Prof.ª. Dra. Isabella Cristina Lunelli.
As acadêmicas Ana Júlia Gonçalves Oliveira e Jeovana Lima Gavilan, autoras do presente
artigo, igualmente participam do projeto de pesquisa como pesquisadoras bolsistas.
Entre os objetivos do Observatório de Protocolos, destacamos: (I) acompanhar
casos de construção de protocolos de consulta por povos e comunidades tradicionais
na América Latina e os conflitos socioambientais que estão inseridos, (II) monitorar os
casos de violação de direitos humanos e direitos socioambientais, além de (III) verificar o
potencial dos protocolos comunitários de contribuição para a efetivação dos direitos dos
povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, no que diz respeito à observân-
cia e caráter vinculante do direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado
pelos Estados latino-americanos.
5 Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. Disponível em: http://observatorio.
direitosocioambiental.org. Acesso em 29 jun. 2021.
50 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Para conseguir a posse dessas áreas e tornar real a extinção de indígenas no papel, foram
empreendidas tentativas de extinção física desses povos, chegando a oferecer alimentos enve-
nenados, causando contágios propositais, sequestros de crianças e massacres com armas de
fogo (PERUZZO, 2017, p. 11).
desses povos, não os consultando previamente sobre essas intervenções e causando diversas
consequências. Vale destacar que é com esse discurso de “desenvolvimento nacional” que
atuais parlamentares brasileiros justificam o seu apoio a esses grandes empreendimentos
e ainda afirmam que os povos e comunidades tradicionais “atrasam” e “atrapalham” esse
desenvolvimento.
Com empresários e líderes políticos exercendo grandes pressões, os povos indígenas
e as comunidades tradicionais resistem e lutam defendendo seus territórios de invasões,
contaminações e ataques, em geral vindos de empresas, garimpeiros, madeireiros, seringuei-
ros, entre outros. Dessa forma, percebemos mais claramente a concepção e lógica perversa
capitalista de que a terra é uma mercadoria e que, quanto mais vazia estiver, melhor para
o desenvolvimento econômico, mais valorosa e com menos entraves (SOUZA FILHO,
2015). Carlos Marés de Souza Filho (2015) afirma que a natureza só é preservada por conta
da presença dos povos, sendo eles grande empecilho para a ambição desenvolvimentista
capitalista, fazendo com que haja estratégias que trabalham lado a lado para liberar e
esvaziar o território, tornando a terra mercadoria: o uso das políticas integracionistas e o
uso da política de negação da existência dos povos, que fazem com que eles sejam crimi-
nalizados e expulsos (p. 66). Como afirma o mesmo autor, essas políticas são utilizadas
mesmo com a presença de direitos expressos:
Mesmo no caso dos índios, cujos direitos são claramente expressos na Constituição brasileira
de 1988 como direitos territoriais originários, os poderes públicos, incluído o Supremo Tri-
bunal Federal, procuram interpretar as normas desligando os índios da ocupação territorial,
seja interpretando que ocupação deveria ser exata no dia promulgação da Constituição, seja
dificultando o processo de reconhecimento da territorialidade ou mesmo da indianeidade
(SOUZA FILHO, 2015, p.66).
Todos esses discursos são uma maneira de tentar retirar esses povos de seus territó-
rios, os acusando de atrasarem o desenvolvimento e desvalorizarem a “mercadoria” terra,
justamente por não a possuírem sob concepção de propriedade privada. Tais discursos
são ameaças à existência dos povos indígenas e comunidades tradicionais, principalmente
quando são proclamados e defendidos por políticos e lideranças nacionais. Entretanto, tais
povos e comunidades resistem não somente para manterem a própria cultura e modo de
vida, mas também para continuarem cuidando da terra e do meio ambiente que, na maioria
dos casos, é agredido, seja com os grandes empreendimentos ou com as queimadas para
formação de pastagens e crescimento agropecuária, medidas que trazem diversos riscos.
Tratando-se de riscos, é importante perceber a grandiosidade deles e do quanto
podem afetar as pessoas, o meio ambiente e o bem-estar geral. Esses grandes empreen-
dimentos nos remetem a sociedade de risco vislumbrada por Ulrich Beck (2010), pois
esses projetos trazem consigo diversas ameaças que podem ser catastróficas, que é uma
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
ÇÕES PLURAIS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS | 53
Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
característica da proporção atual deles segundo Beck, pois já não são meros riscos pes-
soais, mas possivelmente globais (BECK, 2010, p. 25), o que fica claro quando se pensa
em questões de radioatividade, da contaminação por minérios, agrotóxicos e a questão
das mudanças climáticas.
Os riscos referidos dizem respeito àqueles socioambientais que são causados por
projetos e obras, como barragens, hidrelétricas e portos. Tais ameaças podem envolver
impactos negativos em uma determinada população, seja em relação à saúde ou costumes,
danos ambientais nacionais e internacionais, contaminação da água, diminuição da vazão
de rios, ataque à fauna e à flora, dentre tantos outros.
Uma amostra da “sociedade de risco” foi a tragédia ambiental do rompimento da
barragem da Mineradora Samarco em 2015 no município de Mariana, em Minas Gerais,
que fez com que milhões de metros cúbicos de rejeitos fossem liberados, destruindo casas,
matando 19 pessoas, provocando a morte de toneladas de peixes e organismos, atingindo
áreas de preservação permanente, impactando a vida de povos indígenas e contaminando a
Bacia do Rio Doce, as águas subterrâneas da região e águas internacionais, pois os rejeitos
chegaram ao mar (ABREU; SANTOS, 2017).
Assim, os riscos são grandes quando se trata desses empreendimentos e atividades
madeireiras ou mineradoras, e as consequências são catastróficas. Por isso, quando se refere
a projetos que vão afetar os povos indígenas e as comunidades tradicionais, é de extrema
importância que seja respeitada a consulta e consentimento prévio, os direitos humanos
e a sustentabilidade ambiental.
Como mencionado anteriormente, a Convenção n.º 169 da OIT foi crucial por
trazer a ruptura com o pensamento indigenista integracionista, por dispor novos direitos
aos povos e comunidades tradicionais, por reconhecer a autodeterminação dos povos, a
autonomia deles e os direitos de participação e consulta prévia, e por atribuir o poder de
decisão aos povos interessados (LIMA DA SILVA, 2017, p. 126-127).
Trata-se da convenção internacional de direitos humanos que foi internalizada ante-
riormente à reforma estabelecida pela Emenda Constitucional n.º 45/2004 que instituiu
o artigo 5º, §3º, da Constituição Federal de 1988. Ainda que prevaleça a tese do status
supralegal dos tratados de direitos humanos pela interpretação do Supremo Tribunal
Federal, cumpre-nos considerar que a Convenção integra o bloco de constitucionalidade,
com base no artigo 5º, §2º, por ser materialmente constitucional ao dispor sobre direitos
e garantias fundamentais dos povos. Logo, enquadra-se também como cláusula pétrea
(artigo 60, § 4º).
54 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Neste sentido, o artigo 7º da Convenção n.º 169 dispõe que os povos devem possuir
o direito de decidir sobre suas próprias prioridades e sobre quaisquer medidas que pos-
sam interferir em suas vidas, costumes, territórios, crenças e bem-estar, e de controlar seu
próprio desenvolvimento econômico, social e cultural até onde for possível (LIMA DA
SILVA, 2017, p. 204). Ademais, pontua que o governo é responsável por realizar estudos
em conjunto com esses povos para avaliar os impactos que projetos possam gerar, sendo
que o governo é, ou deveria ser, responsável por adotar medidas que protejam e preservem
o meio ambiente da área em que esses povos habitam.
Destaca-se ainda que, além desse artigo, há outros que preveem o direito à consulta
e consentimento prévio, sendo eles os artigos 6º, 15, 16, 17, 22, 27 e 28 que, unidos ao
7º, esclarecem que é responsabilidade do Estado consultar os povos e comunidades sobre
quaisquer ações que os afetem. Tal consulta deve ser realizada de maneira adequada, ou
seja, através dos procedimentos apropriados estipulados por cada povo e comunidade,
entrando em contato com as respectivas instituições representativas (SOUZA FILHO,
2019, p. 31).
Contudo, mesmo com todos esses dispositivos normativos, uma grande questão
circunda a forma de condução do processo de consulta. Em primeiro plano, a consulta
deve ser prévia, assim como o próprio nome já prediz, devendo ser considerada tanto no
processo legislativo como no desenvolvimento e implementação de projetos e políticas
públicas que acometam vidas e territórios tradicionais (LIMA DA SILVA, 2017, p. 199).
Em segundo plano, ela deve ser livre e de boa-fé, o que Lima da Silva (2017) acredita ser
um “processo consultivo livre de interferências externas, no sentido de não gerar coerção,
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
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Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
Dessa forma, não são as empresas que devem efetuar a consulta, mas sim o Estado,
esperando-se que todas as fases sejam respeitadas, que o Ministério Público esteja pre-
sente, que os povos e comunidades tradicionais permaneçam como protagonistas e que
seja mantida a imparcialidade por parte do Estado. Entretanto, sabe-se que, na realidade,
não ocorre desta forma e há denúncias dos povos tratando sobre o desrespeito da consulta
prévia e sobre pressões exercidas pelas empresas, que sem consulta já começam a ingres-
sar nos territórios e regiões, fazer propagandas nas cidades locais, ameaçar diretamente
os povos e comunidades tradicionais e, em diversos casos, realizar o empreendimento
completamente sem consultá-los anteriormente, causando danos irreparáveis. Sobre esse
último caso, Lima da Silva (2017) pontua os procedimentos a serem tomados:
Nos casos de violações já ocorridas, casos judicializados com pedidos de reparações, também
deverá ser respeitada a consulta prévia, a fim de que haja uma reparação efetiva e adequada ao
caso concreto. Além dos danos ambientais, ao se implementar a consulta prévia, o governo
deverá levar em conta os bens intangíveis diretamente associados à integridade étnica e cultural
de cada comunidade em particular. (p. 213)
6 OIT - Organização Internacional do Trabalho. Convênio número 169 sobre pueblos indígenas y tribales: un manual. Genebra: OIT,
2003, p. 16.
7 Corte IDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Saramaka vs. Suriname. Sentença de 28 nov. 2007, p. 42.
8 CIDH - Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Pueblos indígenas, comunidades afrodescendientes y recursos naturales:
protección de derechos humanos en el contexto de actividades de extracción y desarrollo. 31 de dez. de 2015. Disponível em: http://www.
oas.org/es/cidh/informes/pdfs/industriasextractivas2016.pdf. Acesso em 15 mai. 2021.
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
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Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
consulta prévia até certo ponto, no entanto, a obtenção daquele deve ser um dos objetivos
desta (ANAYA, 2009, p. 18). Trata-se de mais um requisito a ser respeitado pelo Estado
antes de aprovar qualquer grande medida ou empreendimento que afete os territórios dos
povos e comunidades tradicionais a ponto de violar seus direitos fundamentais. Assim,
mesmo que a Convenção não conceda poder de veto, exige-se que sejam tomadas medidas
para obter o consentimento dos povos para estes casos específicos de grandes projetos
com impactos significativos.
necessário, principalmente se o projeto estiver fora das terras dos povos e comunidades
tradicionais9. Acerca disso, o artigo 15 da Convenção n.º 169 da OIT é muito claro em
afirmar que os Estados devem consultar os povos interessados “antes de se empreender
ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas
suas terras”. No mesmo sentido, o livro “Direito à Consulta e Consentimento de Povos
Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais” esclarece:
Nesse sentido é que se afirma que a consulta não é uma simples reunião, mas um processo que
juntamente com a participação das comunidades indígenas e tribais interessadas negociam
com o Estado suas propostas e intenções. É por esse motivo que se afirma que a consulta prévia
não é um único encontro, nem um fim em si mesmo, é apenas um instrumento de diálogo.
Antes de tudo, o lugar de reflexão e avaliação da medida legislativa ou administrativa proposta
pelo governo há de ser discutida primeiro na própria comunidade, informada dos aspectos do
projeto e seus efeitos na vida da tribo.
É relevante salientar que a possibilidade de participação da comunidade está relacionada à
informação prévia como o empreendimento a atingirá.
Desse modo, faz-se importante destacar que a consulta é prévia, ou seja, anterior
à medida administrativa ou legislativa. Entretanto, essa consulta anterior é só uma das
fases do processo, pois o direito à consulta livre, prévia e informada, tem por sua essência
a participação dos povos e comunidades tradicionais em todo o desenrolar, que levará
ou não à aplicação dessa medida estudada. Sobre isso, Liana Amin Lima da Silva aponta:
9 BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 0000709-88.2006.4.01.3903. 5ª Turma. Rel Des.
Federal Selene Maria de Almeida. Decisão de 9 de nov. de 2011. Voto Des. Federal Maria do Carmo Cardoso, fls. 09/12.
BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Recurso Extraordinário n.º 1999.01.00.109279/RR. 6ª Turma. Rel.
Des. Federal Souza Prudente, Conv. Juiz Federal Moacir Ferreira Ramos, DJ de 29 de jan. de 2007. (Decidiu que a autorização do Congresso
Nacional, nos termos do artigo 231, §3º, da Constituição Federal, deveria anteceder até mesmo os Estudos de Impacto Ambiental, sob pena
de dispêndios indevidos de recursos públicos).
10 Posicionamento apoiado pelo Juiz Federal Frederico Pereira Martins na decisão de 9 de nov. de 2018 da Ação Civil Pública de n.º
0000387-03.2017.4.01.3606 (TRF-1/Subseção Judiciária de Juína) sobre o licenciamento da UHE SACRE 14.
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
ÇÕES PLURAIS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS | 59
Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
De acordo com Lima da Silva (2017), existem etapas mínimas a serem cumpridas
no processo de consulta. Primeiramente, o Estado e os povos e comunidades tradicionais
devem traçar um plano e as regras para realização da consulta. Segundo, em uma etapa
informativa, o projeto e sua natureza devem ser apresentados aos envolvidos, antes mesmo
da realização do Estudo de Impacto Socioambiental (EIA), o qual estará presente na
próxima fase e deverá ser efetuado com a participação dos povos e comunidades, levando
em consideração os aspectos socioambientais e analisando todos os impactos, danos e
possíveis benefícios. Ademais, o Estado será responsável por possibilitar a realização de
reuniões dos povos e comunidades envolvidos, sem que interfira nelas e deixando eles se
organizarem em relação à quantidade e data dos encontros. Será dessas reuniões que surgirá
o parecer dos povos, que podem consentir a medida e realizar um acordo com o Estado,
ou vetar a medida a partir do não consentimento. Por fim, saindo da “etapa deliberativa”,
caso o projeto tenha sido acatado, existirá uma “etapa de seguimento”, quando ocorrerá
uma espécie de fiscalização que visa garantir principalmente o cumprimento dos acordos
e das medidas de mitigação de danos11.
Dessa maneira, compreende-se que a realização da consulta se dá através de um
processo, devendo este ser planejado, informado e de boa-fé. Por conseguinte, não se pode
trocar todo esse procedimento por um ato uno e singular. Da mesma forma, não deve
haver confusão em relação à consulta e a audiência pública, pois esta ocorre somente após
conclusão do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) com a finalidade
de expor o seu conteúdo e também a natureza do empreendimento, abrindo espaços
para dúvidas e críticas, nos termos do artigo 1° da Resolução CONAMA n.º 09/1987.
Portanto, audiência pública e reunião informativa não substituem a consulta prévia, livre
e informada.
QUANTO À COMPETÊNCIA
11 Todas as etapas foram retiradas do quadro “Etapas do Processo de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado” reproduzido
e revisado da tese de doutorado da co-autora: LIMA DA SILVA, Liana Amin. Consulta prévia e livre determinação dos povos indígenas e
tribais na América Latina: re-existir para co-existir. Curitiba: PPGD/PUCPR. 2017, p. 203.
60 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
tradicionais e pela cooperação com eles para proteger e preservar seus interesses e territó-
rios, ainda há situações nas quais se debate, inclusive, a possibilidade de delegação dessa
prerrogativa.
No tocante a competência de realizar a consulta, Yrigoyen Fajardo (2009) afirma:
A consulta sempre deve ser feita pelo Estado, pois é o Estado (e não as empresas) que adota
medidas administrativas (como concessões) ou legislativas (como leis, regulamentos e outras
normas). A consulta deve ser feita através das organizações representativas dos povos indígenas,
de boa-fé, fornecendo informação prévia e suficiente, e mediante procedimentos adequados
(por exemplo, nos idiomas que os povos indígenas compreendam, em datas, momentos e
lugares adequados para que possam participar, etc) (p. 384)12.
QUANTO À INDIVIDUALIDADE
12 Traduzido do espanhol.
13 BRASIL. Justiça Federal. Subseção Judiciária de Juína-MT. Ação Civil Pública n.º 0000387-03.2017.4.01.3606. Vara Federal Cível
e Criminal. Juiz Federal Frederico Pereira Martins. Sentença de 02 de julho de 2020.
CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
ÇÕES PLURAIS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS | 61
Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
CONSIDERAÇÕES FINAIS
14 BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível n.º 0002505-70.2013.4.01.3903/PA. 6ª Turma.
Rel Des. Federal Jirair Aram Meguerian. Acórdão de 6 de dezembro de 2017.
62 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
tradicionais não deixaram de lutar por seus territórios e costumes, obtendo conquistas
legislativas importantes tanto no âmbito nacional quanto internacional.
Por meio da Constituição Federal de 1988 e, principalmente, da Convenção n.º
169 da OIT, os direitos à consulta e consentimento livre, prévio e informado surgiram
para somar a essa luta, sendo instrumentos de defesa que os povos podem utilizar para
exigirem a participação em projetos e medidas que os impactem.
Apesar do conteúdo exposto, é inegável que, como resultado de muita luta dos povos
e das comunidades tradicionais, avanços já ocorreram no que tange ao reconhecimento
da obrigatoriedade da consulta prévia pelo Poder Judiciário brasileiro. Isso é perceptível,
principalmente, quando nos deparamos com o aumento de suspensões de licenciamentos
ambientais pela falta da consulta prévia nas decisões mais recentes15. Ademais, também é
notável quando tratamos do inédito caso do povo Mura de Autazes (AM), o qual realizou
um acordo judicial com a empresa Potássio do Brasil para que houvesse a paralisação do
projeto enquanto fosse construído o seu protocolo e realizada a devida consulta prévia.
No entanto, ainda é necessário que esta luta continue, para que, além da sua obri-
gatoriedade, se exija também a realização de fato da consulta nos moldes da Convenção
n.º169 da Organização Internacional do Trabalho. Logo, a consulta precisa ser bem-feita,
pautada na boa-fé objetiva, com ausência de vícios, com imparcialidade e observando os
protocolos dos povos e comunidades.
A aplicação, tanto da consulta quanto do consentimento, pelo Judiciário Brasileiro
ainda caminha a passos lentos, o que só parece ser justificado ou pelo não conhecimento
de muitos aplicadores da lei sobre a temática ou pelo apoio deles ao discurso de desen-
volvimento nacional extrativista capitalista, sustentado pelo próprio governo há anos e
agora mais forte do que nunca. A Constituição Federal do Brasil e a Convenção n.º 169
da OIT não são normas tão recentes onde se pode alegar desconhecimento, e seus artigos,
unidos aos documentos nomeados de protocolos de consulta prévia, são claros no sentido
de que os povos e comunidades possuem o direito de fala, de participação, de opinar e
de se posicionar previamente sobre qualquer medida que os afetem, sendo respeitadas as
suas diversidades e especificidades.
Por outro lado, mesmo se fossem consideradas normas recentes, isso não justifica-
ria a não aplicação de seus artigos. A Convenção n.º 169 da OIT, bem como o direito
a consulta e ao consentimento, por diversas vezes, já foram mencionados e esclarecidos
em relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU), em relatórios da Comissão
15 BRASIL. Justiça Federal. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública n.º 0000387-03.2017.4.01.3606/MT. Juiz
Federal Frederico Pereira Martins. Decisão de 09 de novembro de 2018.
BRASIL. Justiça Federal.Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Ação Civil Pública n.º 0000377-75.2016.4.01.3902/PA. Juiz Federal
Érico Rodrigo Freitas Pinheiro. Decisão de 12 de abril de 2016.
BRASIL. Justiça Federal.Tribunal Regional Federal da 1ª Região.Ação Civil Pública n.º 1001906-73.2020.4.01.3902 /PA. Juiz Federal
Felipe Gontijo Lopes. Decisão de 16 de maio de 2020.
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Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
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nível em: https://www.fcr.edu.br/ojs/index.php/saberesamazonia/article/view/187/231.
Acesso em 29 jul. 2020.
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por Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2010.
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de Audiências Públicas. Publicação DOU, de 05 de julho de 1990. Disponível em: http://
www2.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=60. Acesso em 05 mai. 2021.
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CONSULTA PRÉVIA AOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E AS INTERPRETA-
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Ana Júlia Gonçalves Oliveira, Jeovana Lima Gavilan e Liana Amin Lima da Silva
LIMA DA SILVA, Liana Amin. Consulta prévia e livre determinação dos povos indígenas
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Biblioteca de Teses da PUCPR. Curitiba: PPGD/PUCPR. 2017.
LIMA DA SILVA, Liana Amin. Segunda parte: Sujeitos da Convenção n. 169 da Organi-
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Livre e Informado (CCPLI). In: MOTOKI, Carolina; OLIVEIRA; Rodrigo Magalhães
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Verena (Orgs.). Protocolos de Consulta Prévia e o Direito à Livre Determinação. São
Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, CEPEDIS, 2019. P. 47-107.
PERUZZO, Pedro Pulzatto. Direito à consulta prévia aos povos indígenas no Brasil.
Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662017000402708. Acesso em 25 jun.
2020.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Primeira parte: A Força Vinculante do
Protocolo de Consulta. In: MOTOKI, Carolina; OLIVEIRA; Rodrigo Magalhães de;
SILVA, Liana Amin Lima da; SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de; GLASS,
Verena (Orgs.). Protocolos de Consulta Prévia e o Direito à Livre Determinação. São
Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, CEPEDIS, 2019. P. 19-45.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Terra mercadoria, terra vazia: povos,
66 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
INTRODUÇÃO
1 Graduando em Direito (FADIR/ UFGD) e Agente de Saúde Indígena (SESAI/DSEI/MS) na Terra Indígena Panambi Lagoa Rica. Bolsista
(PUCPR/Ford Foundation) do “Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais, autodeterminação e jusdiversidade.”
Contato: clevelleepirelly@hotmail.com.
2 Mestrando em Antropologia (PPGAnt/UFGD). Bacharel em Direito (FADIR/UFGD). Bolsista (PUCPR/Ford Foundation) do
“Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais, autodeterminação e jusdiversidade.” Contato: gabriel.drocha01@
gmail.com.
3 Professora Adjunto A de Direitos Humanos e Fronteiras (FADIR/ PPGFDH/UFGD). Pós-doutoranda em Direito (PUCPR).
Coordenadora do Projeto de Pesquisa CNPq “Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais, autodeterminação e
jusdiversidade”. Contato: lianasilva@ufgd.edu.br.
4 Para mais informações sobre a presença terena na região de Dourados, consultar a dissertação de mestrado de Juliana Mota (2011, p. 183-
190), bem como o artigo de Almires Martins Machado (2019, p.77-93), o qual indica que, com a criação da reserva, três povos inimigos se
viram obrigados a viver em um espaço reduzido, perceberam ser a última terra onde poderiam estar, desterrados em seu próprio território,
por causa da ganância das elites econômicas brancas da região.
5 Embora as terras devolutas escolhidas para a criação das reservas fossem indicadas pelo SPI, elas estavam sob o domínio do Estado de
Mato Grosso, por isso esta unidade federativa oficializou a criação de oito reservas indígenas na região. (CAVALCANTE, 2019, p.27-30).
68 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Esta Reserva é cortada pela Rodovia estadual MS-156, que foi recentemente dupli-
cada. Neste artigo, indicaremos como essa duplicação foi realizada sem respeitar o direito
à consulta livre, prévia e informada dos moradores dessa reserva.
A RID é a reserva indígena mais populosa do país. Ela é dividida em duas aldeias,
Jaguapiru e Bororó, com população de 15.621 indígenas, segundo dados obtidos do
CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA E A DUPLICAÇÃO DA RODOVIA MS-156: VIOLAÇÕES E
AMEAÇAS AOS DIREITOS DOS POVOS GUARANI, KAIOWÁ E TERENA EM DOURADOS-MS | 69
Clevelee Sanabrio Isnarde, Gabriel Dourado Rocha e Liana Amin Lima da Silva
DSEI-MS em 2017. Além das três etnias que habitam a RID, alguns indivíduos de outros
grupos étnicos, como Bororo e Kadiwéu, bem como alguns não índios, também vivem
na RID, estabelecendo uma complexa rede de relações sociais e políticas (TROQUEZ,
2019, p.96-97).
Apesar de ter sido criada com 3.600 hectares, a medida atual, segundo a FUNAI, é
de 3.474,59 hectares. Mais de 100 hectares da área inicialmente demarcada foram irregu-
larmente ocupados ou transferidos a terceiros. Parte dessa área foi reocupada pelos indí-
genas, apesar da resistência dos proprietários locais que pediram a reintegração de posse,
suspensa para realização de perícia acerca do pertencimento da área à aldeia (MPF, 2013)
Isto exemplifica bem o cenário conflituoso da região. A densidade demográfica na
aldeia é de 0.3 hectares/pessoa. O procurador do Ministério Público Federal em Dourados,
Marco Antonio Delfino de Almeida, indica que esta condição demográfica é comparável
a um verdadeiro confinamento humano, pois em espaços tão diminutos é impossível a
reprodução da vida social, econômica e cultural indígena. Conforme indicado anterior-
mente, a população indígena em Mato Grosso do Sul é a segunda maior do país, apesar
disso, a área ocupada pelas terras indígenas no Estado é de apenas 0,2% (MPF, 2015).
A superpopulação inviabiliza a agricultura de subsistência, por falta de espaço físico,
agravado com a diminuição da área demarcada, o que levou a várias retomadas de áreas
em diversos pontos no entorno da reserva, gerando sérios conflitos com os proprietários.
Anteriormente, na década de 1960 e 19706, com a chegada de outras famílias indígenas
à RID, ensejou-se um acirrado dissenso interno, que culminaria em um grande conflito
interno em meados de 1984, com diversos mortos e expulsos, além de outros que ficaram,
com a promessa de não se interpor nas questões internas (MACHADO, 2019, p. 88-90).
Nesse momento, ocorreu ainda maior concentração populacional nas reservas da
região sul do Estado de Mato Grosso do Sul, conforme indica Antonio Brand:
Passado o auge das atividades de derrubada da mata que se estendeu pelas décadas de 1960 e
1970, a mão de obra indígena foi canalizada para a roçada dos pastos e para o plantio de pas-
tagens exóticas. E, finalmente, durante a década de 1980, passou a ser a mão de obra preferida
para os trabalhos de plantio e colheita da cana nas usinas de álcool. A atividade nas usinas
de álcool, que absorve a quase totalidade da mão de obra indígena ao contrário do desmata-
mento e da limpeza de pastos, que se caracterizou pelo esparramo, exigiu o confinamento e
a sua concentração. (…)
Com o fim do desmatamento e, portanto, do esparramo, o processo se inverteu. As fazendas
estavam formadas e a presença de famílias e aldeias indígenas, mesmo que nos fundos das
fazendas, representou um atrapalho. Assim, os Kaiowá/Guarani foram, compulsoriamente,
confinados dentro das Reservas, extinguindo-se qualquer alternativa de oguata (caminhar) ou
de buscar outros refúgios. Este processo atingiu seu auge durante a década de 1980. (BRAND,
1997, p. 90, apud ALMEIDA, 2014, p.42).
6 Durante a década de 1970, a rodovia estadual, que posteriormente seria denominada MS-156, foi construída transpassando o território
da RID.
70 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Por outro lado, apesar dessa retirada dos kaiowás dos seus tekohas e confinamento
nas reservas, vem se fortalecendo as retomadas, ou seja, o retorno aos seus territórios
tradicionais, diante da omissão estatal em demarcar esses territórios (CHAMORRO,
2015b, p. 208-224).
Além de alguns acampamentos localizados nas bordas da RID, como Ñu Vera e
Boqueron, há outras áreas indígenas (retomadas) localizadas em torno do município de
Dourados: Ñu Vera, Boqueirão, Itahum, Picadinha, Pakurity, Apyka’i, Ñu Porã, Califórnia,
Passo Piraju (CASTILHO, 2015).
Os Guarani Kaiowá e Ñhandeva estão na posse de apenas 29,04% das 31 terras
reconhecidas pelo Estado brasileiro. Com uma população de mais de 50 mil pessoas, eles
ocupam somente 70.370 dos 242.370 hectares reconhecidos oficialmente como territórios
tradicionais. Desse modo, a ocupação de terras para esse povo representa 1,2 hectare por
pessoa. (RANGEL, 2020, p.45). No caso da RID, o confinamento é quatro vezes maior
que esta média, pois a concentração populacional representa 0,3 hectare por pessoa (MPF,
2015), situação que representa mais que limites estreitos para viver, e sim um genocídio.
Sem dúvida, trata-se de um longo processo de espoliação, com diversos processos
demarcatórios pendentes de conclusão na região, como a demarcação da Terra Indígena
Panambi-Lagoa Rica ou a Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I, esta última identi-
ficada pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), com uma
extensão total de 55.600 hectares, conforme o mapa abaixo:
Assim como em outros territórios, nessas áreas ocorreram ataques de milícias pri-
vadas, a mando dos fazendeiros da região, contra os kaiowás. Essa breve explicação é
necessária para que o leitor compreenda minimamente o contexto genocida em que se
encontra a Reserva Indígena de Dourados e a duplicação da Rodovia MS-156, concluída
aproximadamente em 2012.
Artigo 6º
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente,
72 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas
ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente,
pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na ado-
ção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza
responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos
e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e
de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir
o consentimento acerca das medidas propostas.
7 Artigo 18. Os povos indígenas têm o direito de participar da tomada de decisões sobre questões que afetem seus direitos, por meio de
representantes por eles eleitos de acordo com seus próprios procedimentos, assim como de manter e desenvolver suas próprias instituições
de tomada de decisões.
Artigo 19. Os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas,
a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem. (...)
Artigo 32. 1. Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização
de suas terras ou territórios e outros recursos. 2. Os Estados celebrarão consultas e cooperarão de boa fé com os povos indígenas interessados,
por meio de suas próprias instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre e informado antes de aprovar qualquer projeto
que afete suas terras ou territórios e outros recursos, particularmente em relação ao desenvolvimento, à utilização ou à exploração de recursos
minerais, hídricos ou de outro tipo. 3. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a reparação justa e eqüitativa dessas atividades, e
serão adotadas medidas apropriadas para mitigar suas conseqüências nocivas nos planos ambiental, econômico, social, cultural ou espiritual.
CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA E A DUPLICAÇÃO DA RODOVIA MS-156: VIOLAÇÕES E
AMEAÇAS AOS DIREITOS DOS POVOS GUARANI, KAIOWÁ E TERENA EM DOURADOS-MS | 73
Clevelee Sanabrio Isnarde, Gabriel Dourado Rocha e Liana Amin Lima da Silva
assim como informada. Reforça ainda a conexão entre o direito à consulta, à propriedade
comunal com o direito à identidade cultural (SILVA, 2017, p.186).
Em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos visitou Mato Grosso
do Sul e repudiou a grave situação humanitária que vivem os povos guarani kaiowá, que se
deriva, em grande medida, da vulneração de seus direitos territoriais (CIDH, 2018, p. 12).
Enfatizamos o aspecto territorial, a necessidade das demarcações, pois a falta de
acesso ao território tradicional gera diversos danos às comunidades guarani kaiowá em
um contexto de discriminação estrutural. A Comissão condenou o ataque denominado
“Massacre de Caarapó”, realizado por milícias privadas após a publicação do relatório de
identificação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá, bem como concedeu medidas
cautelares para proteger a comunidade Guyra Roka, que ocupa menos de 05% do seu
território já identificado pelo FUNAI (idem).
Assim como a Comissão Interamericana, a Relatora Especial para Direitos dos Povos
Indígenas da Organização das Nações Unidas, Victoria Tauli-Corpuz, em visita à região
sul de Mato Grosso do Sul em 2016, condenou o “Massacre de Caarapó”, bem como a
falta de acesso ao território tradicional pelos indígenas da região. Naquela oportunidade,
a relatora denunciou a interpretação denominada “marco temporal”, introduzida pelo
judiciário no caso Raposa Serra do Sol e aplicada também contra a comunidade Guyra
Roka, como altamente controversa e completamente contrária às previsões constitucio-
nais sobre direitos territoriais indígenas, bem como denunciou o sistemático atraso do
executivo para demarcar as terras indígenas (ONU, 2017, p. 15-17).
Além do minúsculo tamanho das áreas de confinamento em que se encontram os
indígenas no sul de Mato Grosso do Sul, essas áreas de confinamento encontram-se em
sua maioria atravessadas por rodovias de intenso trânsito, conforme indica Lucia Helena
Rangel, assessora do Conselho Indigenista Missionário e professora da Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo:
Não bastasse o roubo dos territórios tradicionais, as áreas de confinamento estão, praticamente,
todas atravessadas por rodovias de intenso trânsito. Geram um grande número de mortes por
atropelamento, atingindo pessoas que vivem nos acampamentos na beira da estrada. Entre
2003 e 2010, só no Mato Grosso do Sul, morreram atropelados o mesmo número de indígenas
que no restante do país.
Nesse sentido, a Rodovia MS-156 que corta a RID gera vários acidentes com víti-
mas indígenas fatais, por isso os indígenas de Dourados protestam ameaçando fechar a
rodovia caso as autoridades competentes não tomem providências no sentido de garantir
a segurança viária nesse trecho (TROQUEZ, 2019, p.56).
Apesar de o direito à consulta e consentimento prévio, livre e informado ser garan-
tido pela Convenção nº 169 da OIT, o Estado, de maneira sistemática, se recusa a consultar
74 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Vieira (Orgs.) Reserva Indígena de Dourados: Histórias e Desafios Contemporâneos.
Ebook, p. 95-110, São Leopoldo: Karywa, 2019.
1 INTRODUÇÃO
1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do grupo Natureza, Territórios, Povos e Comunidades
Tradicionais na Amazônia Brasileira (CNPQ). Bolsista do projeto Jurisprudência Socioambiental dos Povos e Comunidades Tradicionais
( JUSP/PROPESP) da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA/UFPA). Membro do grupo Estudos Constitucionais
Compartilhados (CNPQ). E-mail: hannah.silva@icj.ufpa.br.
2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista do projeto Jurisprudência Socioambiental dos Povos e
Comunidades Tradicionais ( JUSP/PROPESP) da Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA/UFPA). E-mail: yasmin.correa@
icj.ufpa.br.
3 Doutoranda e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Bolsista
do projeto Jurisprudência Socioambiental dos Povos e Comunidades Tradicionais ( JUSP/PROPESP) da Clínica de Direitos Humanos da
Amazônia (CIDHA/UFPA). Email: eymmysilva@ufpa.br.
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4 Destaca-se que esse número não é absoluto e existem divergências. Segundo Arruti et al (2021, p. 4), há 6.023 localidades quilombolas
no país, distribuídas por 1.674 municípios. De acordo com os autores, “a discrepância entre essas contagens e estimativas é também reflexo
de uma invisibilidade histórica, tanto quanto um obstáculo para a elaboração (e cobrança) de políticas adequadas ao atendimento dessas
comunidades.”
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enfrentam problemas de habitação, saneamento, luz elétrica, vias de acesso aos seus locais
de moradia, infraestrutura para cuidados básicos a fim de evitar a proliferação da doença,
não há aparelhos públicos de saúde e ações efetivas e coordenadas pela esfera federal do
poder executivo na garantia de direitos durante esse período pandêmico.
Em abril de 2020 a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas (CONAQ) alertou acerca da disseminação do SARS-CoV-2 nas
comunidades quilombolas do Brasil, havendo, inclusive, óbitos. Desde então, conforme
atualização de 25 de junho de 2021, o Observatório da Covid-19 nos Quilombos conta-
bilizou 5431 casos confirmados, 1487 casos monitorados e 279 óbitos (ISA; CONAQ,
2021), os quais estão distribuídos por Unidade Federativa conforme a figura 2 abaixo:
Além disso, o Ministério da Saúde só passou a incluir dados de cor nas atualizações da
Covid-19 após um mês do início da crise, devido à pressão da Coalizão Negra de Direitos.
Diante desse cenário, cumpre destacar a violação quando se pensa em direito à saúde, à
educação e à assistência social, violação ao pluralismo, à autodeterminação dos povos, à
diversidade étnico-racial e às garantias individuais visando a preservação da organização
socioeconômica e das práticas culturais.
Como aduzido, em julho de 2020 foi sancionada a Lei nº 14.021/2020, a qual
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5 Almeida e Dourado (2013) destacam que dos vinte e dois países que ratificaram a Convenção 169 da OIT até junho de 2013, quinze
deles encontram-se no continente americano, sendo oito na América do Sul e os demais na América Central, à exceção do México. Apenas
Noruega, Dinamarca e Holanda, no continente europeu, a ratificaram.
6 Em 2019, o Decreto nº 5.5051/2004 foi revogado pelo Decreto nº 10.088/2019, que veio consolidar atos normativos editados pelo
Poder Executivo Federal que tratam sobre a promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT
ratificadas pela República Federativa do Brasil (BRASIL, 2019a).
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licenciamento ambiental, por se tratar de condição sine qua non para a sua realização
(BRASIL, 2018, p. 13, grifos no original).
A consulta deve ser livre tendo em vista que precisa estabelecer os meios através dos
quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida
que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições
efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e
programas que lhes sejam concernentes (BRASIL, 2004).
Além disso, os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele
afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que
ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural. Desse modo, esses povos deverão participar
da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional
e regional suscetíveis de afetá-los diretamente (BRASIL, 2004, art. 6, b).
Por fim, a consulta deve ser informada, haja vista que deve ser realizada mediante
procedimentos apropriados e, particularmente, por meio de suas instituições represen-
tativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis
de afetá-los diretamente (BRASIL, 2004, art. 7, inciso 1.).
Destaca-se que as consultas realizadas conforme a Convenção 169 da OIT deverão
ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se
chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. Inclusive,
a melhoria das condições de vida, de trabalho e do nível de saúde e educação dos povos
interessados, com a sua participação e cooperação, deverá ser prioritária nos planos de
desenvolvimento econômico global das regiões onde eles moram. Os projetos desenvol-
vimentistas para essas regiões também deverão ser elaborados de forma a promoverem
essa melhora.
Ademais, os governos deverão adotar medidas em cooperação com os povos inte-
ressados para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios que eles habitam, bem
como zelar para que, sempre que for possível, sejam efetuados estudos junto aos povos
interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e sobre
o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses
povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais
para a execução das atividades mencionadas (BRASIL, 2004).
Mesmo quando a Convenção nº 169 da OIT trata sobre povos indígenas e tribais,
no Brasil, o entendimento mais adequado do ponto de vista dos direitos socioambientais
das comunidades tradicionais é de que as disposições também se aplicam às comunidades
remanescentes de quilombos e aos ribeirinhos, uma vez que, no seu artigo 1º, 1. “a”, a
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sua aplicação se destina a povos “[...] cujas condições sociais, culturais e econômicas os
distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou par-
cialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial” (BRASIL,
2018, p. 4).
Além disso, a consulta não se confunde com a audiência pública, que é obrigatória
em procedimentos de licenciamento ambiental em que há significativo impacto ambiental
(art. 3º da Resolução CONAMA nº 237/1997). Trata-se de institutos com objetivos dis-
tintos, mas que se complementam, uma vez que garantem a publicidade e a participação
ativa das comunidades que serão impactadas pela atividade a ser licenciada. Frisa-se que
devem ser realizadas antes e durante qualquer decisão administrativa, para possibilitá-los
a influência nas decisões tomadas pelos órgãos oficiais no que diz respeito a atividades
que irão repercutir no seu modo de vida. Já a audiência pública do procedimento de
licenciamento ambiental, tem por objetivo informar à sociedade em geral e fomentar a sua
participação quanto aos impactos ambientais (art. 225 da Constituição) (BRASIL, 2018).
Desse modo, a finalidade da consulta às comunidades tradicionais, nos moldes
da Convenção 169 da OIT, é assegurar a sua participação plena e efetiva na tomada de
decisões que possam afetar sua cultura e seu modo de viver.
As exigências fundamentais que a consulta instalada pelo Estado deve observar: 1)
a oitiva da comunidade envolvida prévia, anterior à autorização do empreendimento; 2)
os interlocutores da população indígena ou tribal que será afetada precisam ter legitimi-
dade; 3) exige-se que se proceda a uma pré-consulta sobre o processo de consulta, tendo
em vista a escolha dos interlocutores legitimados, o processo adequado, a duração da
consulta, o local da oitiva, em cada caso, etc.; 4) a informação quanto ao procedimento
também deve ser prévia, completa e independente, segundo o princípio da boa-fé; 5)
o resultado da participação, opinião, sugestões quanto às medidas, ações mitigadoras
e reparadoras dos danos causados com o empreendimento será refletida na decisão do
Estado (BRASIL, 2012).
No entanto, quando se trata do instituto da consulta prévia e da efetivação desse
direito no Brasil, pode-se dizer que é recente o seu reconhecimento e ainda não é ple-
namente aplicado (ALMEIDA; DOURADO; 2013, MARTINS; DIAS, 2020). “Os
sucessivos governos têm privilegiado um modelo de desenvolvimento apoiado na eco-
nomia agroexportadora de commodities, sacrificando a economia camponesa de base
familiar e os territórios de uso comum de povos e comunidades tradicionais” (ALMEIDA;
DOURADO; 2013, p. 18).
Esse direito tem sido constantemente desrespeitado, inclusive no contexto da pan-
demia da COVID-19, e vem trazendo graves violações aos Povos e Comunidades Tradi-
cionais. Desde o início da pandemia, tem-se observado várias tentativas de deslegitimar
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o instituto ou reduzir a sua amplitude. Martins e Dias (2020) explicam que muitas vezes,
quando a “consulta” ocorre, se dá por vias duvidosas, com uma simples reunião ou uma
audiência pública que não tenha a intervenção da comunidade envolvida.7, de forma
acelerada e guiada pelo interventor, não pela comunidade/povo afetada.
Além do mais, verifica-se a continuidade e o estímulo do Estado frente aos grandes
empreendimentos, como agronegócio, mineração8, construção de estradas e ferrovias.
Essas atividades não foram paralisadas, mesmo diante do contexto da pandemia, e foram
realizadas dentro de terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, quilombolas
e tradicionais, agravando a contaminação em crescimento (MARTINS; DIAS, 2020;
ALMEIDA; MARIN; MELO, 2020). Enquanto isso, observa-se que o direito à consulta
prévia, livre e informada tem sido violado pelos grandes interesses econômicos, os quais
se sobrepõem ao isolamento social e agravam a crise sanitária no país.
Nesse sentido, a construção de protocolos autônomos e comunitários de Consulta
Prévia são instrumentos que traduzem as regras dos povos para condução do procedi-
mento de consulta, ao mesmo tempo que são um exercício de autonomia e protagonismo
popular. São verdadeiros instrumentos de empoderamento, por meio dos quais os povos
e comunidades tradicionais dizem quais regras devem ser observadas durante a consulta
(MARTINS; DIAS, 2020).
A partir da luta dos povos e comunidades tradicionais, foi protocolado o Projeto
de Lei nº 1142, que cria o plano emergencial para povos indígenas e estabelece medidas
emergenciais para quilombolas e comunidades tradicionais, especificamente direcionadas
às questões de saúde, aprovado no Senado Federal em 16 de junho de 2020, aguardando
sanção presidencial.
Outra questão que deve ser observada diz respeito às flexibilizações da legislação
ambiental e agrária, a relativização do direito à vida pelos governos e iniciativa privada
devido a continuidade das atividades de empreendimentos de infraestrutura, mineração,
agronegócio, inclusive dentro de territórios tradicionais, agravando a contaminação pelo
SAR-COV-2. Nesse sentido:
Argumenta-se que “O Brasil não pode parar”, que a economia não pode estacionar, ferindo
orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que já atestou o isolamento social como
meio mais eficaz para contenção da pandemia. Há violação das orientações internacionais no
campo da saúde e da consulta prévia pela continuidade ou liberação de atividades não essenciais
nesse contexto (MARTINS; DIAS, 2020, n.p.).
7 Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já se posicionou no sentido de que a consulta prévia, livre e informada, nos termos
da Convenção 169 da OIT, não se confunde com a audiência pública, reuniões, oitivas (BRASIL, 2012).
8 Destaca-se que durante a Pandemia, as atividades minerárias foram declaradas essenciais por decreto do governo federal, nesse sentido, a
negligência do governo federal diante dos direitos dos povos indígenas e quilombolas é entendida como uma violação do direito a respirar,
conforme colocado por Nascimento (2020).
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9 Segundo informações do CIMI (2020, n.p.), uma “consulta online” realizada durante a pandemia pelo DNIT a indígenas do Oiapoque
sobre a pavimentação de uma rodovia na Terra Indígena Uaçá foi citada durante uma audiência virtual temática da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos como exemplo de violação ao protocolo de consulta destes povos e à recomendação da própria CIDH. Segundo o
relatório, “o governo federal, por meio de diferentes órgãos, tem tentado realizar consultas virtuais, num claro atentado ao direito à consulta”.
Outra situação ocorreu no Estado do Piauí (2020, n.p.), onde o Instituto de Terras do Estado noticiou que “Com a duração de duas horas,
o Instituto de Terras do Piauí (Interpi) realizou uma Consulta Prévia na manhã deste sábado (13), para consultar as lideranças indígenas
Kariri de Serra grande, no município de Queimada Nova, na região sul do Estado, sobre a doação de terras para a comunidade. Devido as
orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) de prevenção e as determinações do Governo do Piauí de suspensão das atividades
presenciais durante a pandemia da COVID-19”.
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Famílias e laços de amizade não foram respeitados na definição dos novos locais de assenta-
mento, separando as pessoas e rompendo suas relações e tradições. A perda do espaço tradi-
cional também gerou violações ao direito de manutenção à cultura quilombola, insegurança
alimentar, proibição de livre circulação no território, falta de acesso às políticas públicas de
educação, saúde, saneamento básico e transporte. (PORTO; PACHECO; LEROY, 2019).
10 Em 1999, o MPF requereu a suspensão das audiências públicas designadas pelo IBAMA, bem como a complementação do Estudo e
Relatório de Impacto Ambiental como condicionante à autorização de implantação do CLA, sob a justificativa de que a INFRAERO não havia
dado a devida publicidade e prévia comunicação às entidades representativas da comunidade, com vistas à aprovação do EIA/RIMA. No caso
em questão, após decisão interlocutória favorável ao MPF ter sido agravada, foi proferida sentença acolhendo parcialmente o pedido do órgão,
considerando que as audiências foram realizadas no decurso a partir de decisão suspensiva no Agravo, e determinando a complementação
do EIA/RIMA nos seguintes pontos: impactos no patrimônio cultural daquela cidade; impactos dos reassentamentos nas comunidades
- realizados e a realizar; impactos nas comunidades remanescentes de quilombos; análise do perfil antropológico, social e econômico das
comunidades impactadas e salvaguarda das referências históricas e culturais; e adoção das medidas mitigadoras e compensatórias em relação
às comunidades afetadas pelos reassentamentos. (BRASIL, 2006, p. 843-855). Posteriormente, o IBAMA recorreu juntando informações
apresentadas pela Agência Espacial Brasileira (AEB) que, por sua vez, assumiu a competência do licenciamento e o fragmentou em quatro
partes, bem como colacionou termo de referência com o objetivo de determinar a abrangência, os procedimentos e os critérios para a
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elaboração do Plano de Controle Ambiental (PCA), instrumentos subsidiários à regularização. Por fim, solicitou a extinção do processo
sem resolução de mérito, alegando a ausência de interesse processual. Em contrapartida, o MPF sustentou que o desdobramento a pedido
do empreendedor não foi capaz de afetar a substância do problema quanto ao patrimônio cultural de Alcântara e dos impactos decorrentes
do reassentamento de grande contingente populacional, bem como quanto aos impactos causados às comunidades remanescentes de
quilombos. Além disso, considerou insuficientes as informações sobre o perfil antropológico, social e econômico das comunidades impactadas
e suas salvaguardas, bem como medidas compensatórias e mitigadoras, destacando a distinção entre o TR e o EIA/RIMA. Esse recurso
foi recebido apenas com efeito devolutivo, ou seja, entendendo-se pela ausência de comprovação de dano irreparável, o licenciamento não
foi suspenso novamente.
11 Em agosto de 2003, foi ajuizada a Ação Civil Pública (ACP), em face da União, da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da AEB. Os principais pedidos do MPF, nos autos da ACP, consistiram na
condenação da FCP e da União: 1 – na obrigação de fazer, consistente na promoção, andamento e conclusão do procedimento administrativo
voltado para o reconhecimento, como remanescentes de quilombos, das comunidades identificadas no laudo antropológico, executando as
seguintes atividades: identificação dos aspectos étnicos, históricos, cultural e socioeconômico do grupo; estudos complementares de natureza
cartográfica e ambiental; levantamento dos títulos e registros incidentes sobre as terras ocupadas e a respectiva cadeia dominial, perante
o cartório de registro de imóveis competente, delimitação das terras consideradas suscetíveis de reconhecimento e demarcação; parecer
jurídico, e se for o caso, a titulação e registro imobiliário das terras ocupadas; 2 – na obrigação de não fazer, consistente em não remanejar
as famílias integrantes das comunidades diretamente afetadas pelo projeto de expansão do CLA; 3 – na obrigação de dar, consistente no
pagamento de valor já apurado e quantificado, relativo à aplicação da multa diária, no valor estabelecido pelo d. Juízo em tutela antecipada.
O MPF interpôs Agravo de Instrumento em face das decisões interlocutórias proferidas que, respectivamente, indeferiram os pedidos de
reconhecimento da incompetência da 8ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão (especializada apenas em matéria agrária e meio ambiente)
para julgar o feito e da obrigação de não fazer, a fim de que nenhuma comunidade quilombola seja remanejada. Em decisão monocrática, o
pleito do MPF foi indeferido em 25 de maio de 2018. Posteriormente, o INCRA e a FCP apresentaram conjuntamente suas contrarrazões,
bem como a AEB e a União. A ação principal (0008273-53.2003.4.01.3700) ainda não foi julgada.
12 Art. 6º - O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas: I - Diagnóstico ambiental da área
de influência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a
situação ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando: [...] c) o meio socioeconômico - o uso e ocupação do solo, os
usos da água e a socioeconômica, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de
dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos. (CONAMA, 1986).
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13 O documento foi assinado em Washington, durante a visita do Presidente Jair Bolsonaro aos EUA, e, em seguida, debatido e aprovado
no Congresso Nacional brasileiro. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, “com a entrada em vigor do AST, o Brasil poderá se inserir
no mercado espacial mundial como um forte participante do segmento de lançamentos, gerando desenvolvimento científico tecnológico e
socioeconômico, com criação de empregos e ampliação do empreendedorismo e de negócios de base local e nacional.” (BRASIL, 2019c, n. p).
Em 19 de novembro de 2019, o texto do Acordo foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 64, de 2019 (BRASIL, 2019b) e foi promulgado
por meio do Decreto nº 10.220, de 05 de fevereiro de 2020 (BRASIL, 2020b).
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Hannah Ádrea Farias da Silva, Yasmin Silva Corrêa e Eymmy Gabrielly Rodrigues da Silva
No mérito, a Resolução n.º 11, de 26 de março de 2020, mais do que apresentar propostas
ou subsídios para a ação executiva daquele que detenha a competência legal para tanto, esta-
belece comandos para a antecipada ocupação dos territórios das comunidades de quilombos
de Alcântara pelo Poder Público, tudo em função das atividades do Programa Espacial Bra-
sileiro. Mesmo uma leitura superficial do ato normativo permite perceber o risco oriundo da
expansão das atividades espaciais em prejuízo dos direitos fundamentais dos quilombolas. As
ações e obras já repartidas entre os ministérios e autorizadas podem ser executadas a qualquer
momento, sem obediência a qualquer comando normativo. As informações necessárias para
avaliar os impactos socioambientais no frágil ecossistema da região, decretado sítio Ramsar,
por sua vez, resultantes da execução das mudanças de realocação de centenas de famílias de
suas terras, praias e recursos naturais de uso tradicional, nem sequer foram suscitadas. Os
ditames estabelecidos pela Resolução causará interferência direta no mínimo existencial-e-
cológico das comunidades, com reflexos negativos no patrimônio material e imaterial dos
grupos (grifos do autor).
Ainda sobre a referida Resolução, Serejo Lopes e Pereira Junior (2020, p. 646) obser-
vam que, ao mesmo tempo que há poucas condições reais de se operacionalizar a vontade
governamental, uma vez que se trata de um documento juridicamente frágil e que pode
ser facilmente questionado judicialmente, especialmente no momento da pandemia da
COVID-19, existe uma lógica racista presente na Resolução nº 11/2020, na qual o Estado
brasileiro, em meio à pandemia, coloca em curso o AST, enquanto um “projeto genocida”.
Desse modo, verifica-se que o contexto da pandemia global da COVID-19 não tem
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impedido que o governo brasileiro continue as violações aos direitos das comunidades
de Alcântara, por meio da edição de atos administrativos – leis, decretos e resoluções.
A realização da consulta e consentimento prévio, livre e informado, conforme dispõe
a Convenção n.º 169 da OIT são procedimentos inegociáveis e imprescindíveis para a
realização de qualquer atividade que impacte os direitos territoriais das comunidades
remanescentes de quilombo. Logo, qualquer ato administrativo que seja realizado sem
observar este instrumento, deve ser considerado ilegal. É nessa perspectiva que a Ação
Popular nº 1016857-96.2020.4.01.3700/MA foi ajuizada em 2020, como veremos adiante.
14 Este requisito decorre da constatação de que a decisão a ser proferida na ação popular poderá repercutir juridicamente em inúmeras
comunidades remanescentes de quilombos situadas no Município de Alcântara (BRASIL, 2020c).
15 A representatividade adequada do postulante decorre da comprovação da histórica atuação institucional na defesa de direitos das
comunidades remanescentes de quilombos do Município de Alcântara, pois o STTR possui atuação “voltada para a defesa dos Direitos
e interesses individuais e coletivos dos trabalhadores rurais agricultores e agricultoras familiares”, que possui “dentre os seus quadros de
funcionários/prestadores de serviço/voluntários (...) advogados, pesquisadores de ciências humanas, com atuação nacional e internacional”
e que, “desde a década de 1980, tem realizado reiteradas denúncias a órgãos nacionais e internacionais sobre o processo de remoção/ameaças
de remoção das famílias afetadas pelo Centro Lançamento Aeroespacial, tem realizado encontros, seminários e contribuído com inúmeras
publicações sobre a realidade das comunidades quilombolas alcantarenses” (BRASIL, 2020c).
16 A utilidade da intervenção pode ser verificada neste caso, uma vez que a atuação do STTR possibilita a pluralização do debate, ao inserir
uma entidade que participa diretamente do contexto social (realidade da vida) das comunidades de Alcântara, o que reforçará a legitimidade
da atividade jurisdicional (BRASIL, 2020c).
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dos autos. A peculiaridade dessa ferramenta tem natureza democrática, o que reforça
a participação popular em um contexto de crise da legitimidade da democracia social,
principalmente em relação à tutela do meio ambiente, seja ele natural, artificial, cultural
ou do trabalho, e dele extraindo-se “a relevância do poder judiciário como instrumento
de promoção da defesa dos direitos fundamentais e da inclusão social” (MARQUES;
HAONAT, 2016, p. 126).
Cabe ressaltar que, em hipótese de grande afetação à uma comunidade, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos entende que a Consulta possui caráter vinculativo,
ou seja, não se trata de mera formalidade, mas de condicionante à decisão. Até o momento,
foi concedida tutela provisória de urgência satisfativa no referido processo para suspen-
são temporária dos procedimentos previstos, decisão agravada pela União. O Agravo de
Instrumento e o processo originários permanecem pendentes de decisão terminativa.
Somada a essa situação, Serejo Lopes e Pereira Junior (2020) relatam que durante a
pandemia, o município de Alcântara não dispõe de estrutura hospitalar para enfrentar a
crise sanitária. Na contramão disso e para tentar evitar uma tragédia em seus territórios,
algumas comunidades decidiram extremar e passaram a controlar seus principais acessos,
numa tentativa de evitar a sua extinção, ou melhor, seu genocídio por omissão dolosa do
Estado. Assim, como medida de autoproteção as comunidades de Mamuna, Samucan-
gaua, Canelatiua, Aru e Mato Grosso, dentre outras, instituíram controle de circulação
de pessoas nas comunidades.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; MARIN, Rosa Elizabeth Acevedo; MELO,
Eriki Aleixo (Org). Pandemia e Território. São Luís: UEMA Edições/ PNCSA, 2020,
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ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; DOURADO, Sheilla Borges. Apresentação. In:
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; DOURADO, Sheilla Borges; SEREJO LOPES,
Danilo da Conceição; SILVA, Eduardo Faria (Org). Consulta e participação: a crítica
à metáfora da teia de aranha. Manaus: UEA Edições, PPGSA/PPGAS -UFAM, 2013.
p. 11-34.
ARRUTI, José Maurício et al. O impacto da Covid-19 sobre as comunidades quilombolas.
AFRO - Informativo Desigualdades raciais e Covid-19. Disponível em: https://cebrap.
org.br/wp-content/uploads/2021/01/Informativo-6-O-impacto-da-Covid-19-sobre-as-
-comunidades-quilombolas.pdf. Acesso em: 20 mai. 2021.
BBC. Covid-19: Brasil volta a ser país com mais mortes diárias por covid-19. 23 jun. 2021.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57585145. Acesso em: 25 jun.
2021.
BRASIL. Decreto Legislativo nº 64, de 2019. Aprova o texto do Acordo entre o Governo
da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre Sal-
vaguardas Tecnológicas Relacionadas à Participação dos Estados Unidos da América em
Lançamentos a partir do Centro Espacial de Alcântara, assinado em Washington, em 18
de março de 2019. 2019b. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/31750291.
Acesso em: 25 mar. 2021.
BRASIL. Lei nº 14.021, de 07 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de proteção social
para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 nos territórios indígenas; cria
o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas; estipula
medidas de apoio às comunidades quilombolas, aos pescadores artesanais e aos demais
povos e comunidades tradicionais para o enfrentamento à Covid-19; e altera a Lei nº 8.080,
de 19 de setembro de 1990, a fim de assegurar aporte de recursos adicionais nas situações
emergenciais e de calamidade pública. 2020d. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14021.htm. Acesso em: 15 mai. 2021.
BRASIL. Ministério Público Federal. Governo garante a MPF que não irá remover
102 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 742 MC. Relator(a): Marco Aurélio. Rela-
tor(a) p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021. DJe 29 abr.
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MARQUES, Vinicius Pinheiro; HAONAT, Ângela Issa. A tutela do meio ambiente por
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MARTINS, Camila Ceci; DIAS, Vercilene. Como fica o Direito à Consulta Prévia no
Contexto da Pandemia? Terra de Direitos. Artigos sobre a COVID-19. 22 jun. 2020.
Disponível em: https://terradedireitos.org.br/covid19/artigos/como-fica-o-direito-a-
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Serra Grande. 13 jun. 2020, 17h30. Disponível em: https://www.pi.gov.br/noticias/
interpi-realiza-consulta-previa-virtual-com-comunidade-indigena-kariri-de-serra-grande/.
Acesso em: 20 mai. 2021.
SHIRAISHI NETO, Joaquim et al. Quando o Estado não protege o seu povo. Curi-
tiba: Letra da Lei, 2021.
DIREITO A CONSULTA: OBRIGATORIEDADE NA
REALIZAÇÃO DE CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA
NA TERRA INDÍGENA XIKRIN DO CATETÉ
INTRODUÇÃO
1 Mestranda em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do
Pará (NAEA/UFPA). Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA/ESA). Pós-Graduanda
em Direito Agroambiental pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA/ESA). Advogada. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-3020-8326. E-mail: brunastrindade@outlook.pt.
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Direito Ambiental pelo Centro
Universitário do Estado do Pará (CESUPA/ESA). Advogada. E-mail: tatirov@yahoo.com.br
3 Médico Veterinário efetivo da Secretaria de Estado de Saúde Pública (SESPA). Mestrado em Saúde e Produção Animal na Amazonia pela
Universidade Federal Rural da Amazonia (UFRA) com área de concentração em saúde e meio ambiente. E-mail: neuderwesley@gmail.com
4 Paragominas até Rio Branco.
106 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
tradicionais, como no caso da UHE de Tucuruí no Rio Tocantins, responsável por inundar
parte de três reservas indígenas (FEARNSIDE. 2015). No que tange aos impactos resul-
tantes de projetos minerários na Amazônia, podemos apontar os projetos Salobo, Sossego,
S11D e Mineração Onça Puma, subsidiarias da Vale S/A, projetos largamente conhecidos
por afetar, não só territórios indígenas, mas também comunidades quilombolas.
O Projeto Carajás e sua vasta expansão de exploração mineraria no Estado do Pará
com a extinta Companhia Vale do Rio Doce (1943) trouxe consigo grandes problemas
socioambientais que permanecem até os dias atuais. “A mina de Carajás divide-se em qua-
tro setores: Serra Norte, Serra Leste, Serra São Feliz e Serra Sul, além das quatro minas de
Carajás, a Vale S/A conta ainda com as minas Salobo (cobre), Azul (manganês), Sossego
(cobre) e Onça Puma (níquel)” (COELHO, 2014, p. 29 e 30).
A Vale S/A é a mineradora com maior número de conflitos socioambientais
pelo mundo, aparecendo na terceira posição no Brasil. É de notório conhecimento, a
expressividade dos riscos causados pelas atividades da mineração nas comunidades qui-
lombolas, ribeirinhas e indígenas. Dentre os povos indígenas mais impactados pelos
projetos da Vale, estão os povos indígenas Xikrin do Cateté e Xikrin do Djudjekô Xikrin,
residentes nas proximidades de Carajás (COELHO, 2014).
Das violações presentes nos empreendimentos Vale S/A, a ausência de Consulta
Prévia (Convenção nº 169, OIT), instrumento ratificado pelo Estado Brasileiro com
implementação obrigatória em virtude do seu status de tratado internacional, demanda
atenção de todos, principalmente em razão a recorrência do seu descumprimento. A
Convenção nº 169, OIT conta com a garantia de cortes e órgãos internacionais e regionais
de direitos humanos para sua execução. O Brasil vincular-se-á essa ordem internacional
de proteção aos direitos humanos por força de decisão da própria Constituição Federal
de 1988, que em seu art. 4º, II, determina a regência de suas relações internacionais com
fundamento no princípio da prevalência desses direitos. Tal preceito é enfatizado pelas
normas ampliativas do rol de direitos fundamentais (DUPRAH, 2015).
Outro mecanismo protetivo continuamente violado pelos projetos da Vale S/A e
por outros empreendimentos exploradores de recursos, são as oitivas constitucionais pre-
vistas no art. 231, §3º da CF/88. O instrumento possui forma sui generis de participação
exclusiva dos povos indígenas. A Constituição Federal de 1988 exige que o Congresso
Nacional ouça os povos indígenas antes da autorização de atividades especificas, sejam
elas, aproveitamento de recursos hídricos e minerais em seus territórios (PONTES e
OLIVEIRA, 2015).
Desta feita, o presente estudo tem como temática principal, o debate acerca da
ausência de realização de consulta prévia, livre e informada (Convenção n. 169, OIT) e o
direito que os povos Xikrin tem em ser consultados. O trabalho enfatizará pontos, como
HANNAH ÁDREA FARIAS DA SILVA, YASMIN SILVA CORRÊA E EYMMY GABRIELLY RODRIGUES DA SILVA
Bruna dos Santos Trindade, Tatiane Rodrigues Vasconcelos e Neuder Wesley França da Silva
| 107
empreendimentos Vale S/A (Mineração Onça Puma, Salobo Metais S/A e Mina S11D),
não garantiu a realização da consulta prévia, livre e informada diante dos projetos Vale S/A.
dos animais e dos vegetais causadores de doenças mortais e epidemias (AÇÃO CIVIL
PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - Nº 0002383-85.2021.4.01.3901,
2012).
O ponto de vista dos Xikrin sobre território refere-se a aspectos econômicos, geográ-
ficos, históricos, simbólicos e arqueológicos, grande parte das vezes a demarcação física dos
territórios indígenas não respeita a territorialidade abarcada por cosmologia, o processo
acaba excluído locais de grande importância simbólica, ritualística e econômica, como
o exemplo da aérea da Flona, onde funciona um outro projeto da Vale: Salobo Metais
(AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - Nº 0002383-
85.2021.4.01.3901, 2012).
A aldeia está localizada em um lugar denominado Serra Vermelha, ela fica entre as
Serras do Onça e do Puma, local de extração de níquel. Conforme dados das associações
indígenas, os Xikrin do Cateté contam com 1300 indivíduos, divididos em três aldeias,
Pukatingró, situada a margem esquerda do rio Cateté, Djudjekô, também a margem
esquerda do rio Cateté e Odjã (AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO
FEDERAL - Nº 0002383-85.2021.4.01.3901, 2012).
A implementação do Projeto Carajás em 1982 para exploração mineral de jazidas
de ferro e outros minérios em área contígua aos Xikrin, acompanhou as políticas integra-
cionistas de ocupação e exploração econômica da época, como: a construção da Rodo-
via PA 279 ligando Xinguara a São Felix do Xingu; estabelecimento do núcleo urbano
de Tucumã; consolidação de grandes fazendas próximo a área indígena; exploração de
madeira na região etc. (LIMA, 2016).
O Congresso Nacional ao dar a concessão de exploração das minas de Ferro de
Carajás, condicionou a mineradora responsável inúmeras contrapartidas, dentre elas a
obrigação de amparar as populações indígenas na área de influência do empreendimento,
que abrange tanto as minas quanto a Ferrovia Carajás e o Porto da Ponta da Madeira em
São Luis/MA (LIMA, 2016).
É importante ressaltar que os povos indígenas, assim como, os povos quilombolas,
ribeirinhos e dentre outros classificados como povos e comunidades tradicionais no
Brasil, possuem modo de vida tradicional diferente da grande massa da sociedade. Para
os povos e comunidades tradicionais, a terra é uma forma de pertencimento deles aos
antepassados. O ordenamento jurídico a partir de 1988, passou a resguardar a proteção
territorial a esses povos, infelizmente, não de modo integral, ou da forma correta aos usos
e costumes culturais.
Na ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, atri-
buiu ao poder público e a sociedade, o dever de proteger o meio ambiente ecologicamente
equilibrado, vinculando esse dever ao compromisso a estabilização e a prevenção do quadro
de risco e degradação ecológica. E simultaneamente contempla a moderna teoria cons-
titucional, que avança para a sedimentação de um Estado Socioambiental de Direito, a
qual não permite a segregação de direitos fundamentais em categorias, pois compreende
a correlação e a complementação entre elas, resultando na legitimação do direito ao meio
ambiente sadio e de qualidade como direito fundamental necessário para garantir a saúde,
a vida, a moradia etc. (FERREIRA; SIMÕES; AMORAS, 2017).
O reconhecimento do dever a proteção ambiental como direito fundamental, inse-
rido como valor na CRFB/88 faz com que a efetivação desse dever passe a ser um objetivo
e uma tarefa estatal a ser realizada por meio de medidas administrativas e legislativas
relacionadas a tutela ecológica. O Estado deve atuar a luz do princípio da precaução,
objetivando evitar os riscos e considerando a proteção do meio ambiente, como um dever
(FERREIRA; SIMÕES; AMORAS, 2017).
Os riscos socioambientais são pontos de significativo debate, a julgar pelo aumento
do número de ocorrências e da intensidade de eventos extremos de diversas ordenas, seja
ambiental ou social. A proteção ao meio ambiente não configura apenas a conservação,
ela abrange também a coordenação e a racionalização do uso dos recursos com o obje-
tivo de preservar o futuro do homem e do planeta, para as presentes e futuras gerações
(CALGARO e PEREIRA, 2017).
No que tange, a garantia e aos direitos dos povos indígenas em âmbito constitu-
cional, o art. 231 da Carta Magna reconhece as sociedades indígenas sua organização,
social, línguas, crenças e tradições, assim como os direitos originários sobre as terras tra-
dicionalmente ocupadas por eles, sendo competência de a União realizar a demarcação,
a proteção e respeitar todos os seus bens (BRASIL, 1988).
A CRFB/88 traz ainda em sua redação a regulamentação do direito a terra, para
recuperar, conservar e prevenir os direitos indígenas desta e das próximas gerações. As
terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas estão destinadas à sua posse per-
manente, sendo deles, o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lados nelas
existentes. Ressalta-se ainda que, suas terras são inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis,
visto sua destinação para as futuras gerações, de acordo com o art. 225 da CRFB/88.
O art. 231, §6º da Carta Magna, determina a nulidade e a extinção, sem produção
de efeitos, aos atos que tem como finalidade a ocupação, o domínio, e a posse de terras
indígenas, ou a exploração de seus bens, riquezas e recursos naturais, salvo exceção fun-
dada em relevante interesse pública da União Federal, situação vinculada a edição de uma
Lei Complementar sobre o assunto e de autorização do Congresso Nacional que tem a
HANNAH ÁDREA FARIAS DA SILVA, YASMIN SILVA CORRÊA E EYMMY GABRIELLY RODRIGUES DA SILVA
Bruna dos Santos Trindade, Tatiane Rodrigues Vasconcelos e Neuder Wesley França da Silva
| 113
“O Estudo etnológico apontou possíveis impactos causados pelo empreendimento aos povos
indígenas, quais sejam: 1) intensificação do ‘estrangulamento’ territorial, com o cercamento
da TI Xikrin e outras pressões territoriais; 2) sensação de vulnerabilidade relacionada aos
impactos reais e potenciais da mineradora sobre o rio Cateté. Assunto de extrema preocu-
pação dos indígenas, pois o rio é perene; 3) intensificação de ruídos e a poluição do ar; 4)
estresses na comunidades, baseada na incerteza dos impactos causados na aldeia; 5) definição
de recursos financeiros da MOP para os Xikrin gera muita expectativa entre eles e por fim, 6)
preocupação relativa ao processo de organização das associações para a melhora do sistema de
gestão dos recursos provenientes das empresas, para assegurar a chegada efetiva dos resultados
as comunidades” (AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - Nº
0002383-85.2021.4.01.3901, 2012, p. 8-9).
Em 2006, a FUNAI detectou que o estudo etnológico elaborado por eles, demons-
trava deficiência em alguns pontos, como por exemplo:
“1) item sobre a territorialidade e recursos naturais (previstos no TR), o qual não estabeleceu
as relações de impacto e nem realizou o mapeamento das unidades de recursos naturais rela-
tivas ao sistema territorial socioeconômico Xikrin; 2) incompatibilidade entre o proposto
no zoneamento da TI, como área de proteção especial e a área definida para a exploração da
MOP; 3) dúvidas entre a sobreposição dos limites entre a TI e a mineradora; 4) ausência do
mapeamento de outros empreendimentos causadores de impactos, existentes ao entorno da
TI, como, estradas, linhas de transmissão etc.; e, por fim; 5) ausência de propostas de proje-
tos de vigilância e fiscalização dos limites da TI Xikrin do Cateté, frente a potencialização
das invasões” (AÇÃO CIVIL PÚBLICA – MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL - Nº
0002383-85.2021.4.01.3901, 2012, p. 10).
118 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
1) contaminação das águas do Rio Cateté com metais pesados, lesionando o principal recurso
hídrico das aldeias Xikrin; 2) enfermidades ocasionadas pelo consumo de água contaminada,
como por exemplo, angioedemas deformantes, lesões dermatológicas e cefaleias e doenças
não registras nas comunidades antes do início das atividades da mineradora; 3) aumento
anormal de casos de malformação e deficiências congênitas em recém-nascidos das aldeias
indígenas (SUSPENSÃO LIMINAR – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – Nº 933
ED/PA, 2017, p. 08).
MOP, construiu-se uma bacia de contenção de acordo com as análises realizadas, entre-
tanto a bacia de contenção retem apenas um dentre os vários metais pesados encontrados
no Rio Cateté (SABOIA, 2018).
A equipe técnica encontrou 9 (nove) locais de despejos de drenos clandestinos
compostos por tubos clandestino localizados próximos ao rio, outro ponto identificado
foi a estrada que liga a Mina da Puma até a Usina de Beneficiamento, com pequenos
canais de drenagem que levam esse líquido até o rio, de forma indevida. O resultado das
amostras coletadas apontam para a presença de ‘Ferro, cobre, níquel e cromo’ no Rio
Cateté (SABOIA, 2018, p. 04).
Em 2017, a equipe técnica em visita de monitoramento aos portos dos povos Xikrin
do Cateté, atestou o estado de degradação do rio, com a presença de material particulado
de cor característico dos metais pesados, com a cor laranja sedimentada nas margens.
O material encontrado apresentou metal oxidado, em especial o ferro. É importante
recapitular que o minério lavrado pela MOP é o ferro-níquel “lateríco”. Consequência
da poluição ministrada pela MOP, o rio entrou em processo de assoreamento obrigando
as famílias indígenas buscarem locais de maior profundidade do rio (SABOIA, 2018).
Conforme os relatórios do professor Dr. João Filho, indígenas da TI Xikrin do
Cateté apresentaram doenças influenciadas pela exposição deles aos metais pesados despe-
jados pela empresa no rio, dentre as doenças estão: “disritmia cerebral (cobre e chumbo),
pralactinoma (cobre), Encefalocele (cobre e chumbo), encefalopatia em recém-nascido
(cobre e ferro), psicose paranoide (cobre, chumbo e ferro), depressão (cobre e chumbo),
carcinoma do colo do útero (cromo, chumbo e ferro)” e outras. Entre os anos de 2016 e
2017 foram identificados 111 (cento e onze casos (SABOIA, 2018, p. 12).
No relatório parcial de monitoramento do Rio Cateté de dezembro de 2019 a março
de 2020 realizado pela equipe técnica da Universidade Federal do Pará, foram encontrados
novos pontos clandestinos de lançamento de efluentes e drenos. Em visita de monitora-
mento a equipe encontrou “um sistema estruturado por calhas, tubulações, canais e bacias
de sedimentação que transportam efluentes vindos desde o Empreendimento Minerário
Onça Puma (MOP) até o Rio Cateté” (SABOIA, 2020, p. 7).
É significativo recapitular toda a problemática recorrente no processo de
regularização do empreendimento, como citado, as oitivas indígenas e a consulta prévia,
são instrumentos com o objetivo de prevenir, mitigar e compensar os impactos presentes
e futuros aos povos indígenas afetados. Estamos diante de um empreendimento ilegal,
inconstitucional, violador de princípios constitucionais, ambientais e humanos.
Cumpre ainda destacar que a TI Xikrin do Cateté sofre fortes impactos de outros
empreendimentos da Vale S/A, como a Salobo Metais S/A e do Projeto S11D, tais
empreendimentos, assim como da mineração onça puma, apresentam o mesmo quadro
HANNAH ÁDREA FARIAS DA SILVA, YASMIN SILVA CORRÊA E EYMMY GABRIELLY RODRIGUES DA SILVA
Bruna dos Santos Trindade, Tatiane Rodrigues Vasconcelos e Neuder Wesley França da Silva
| 121
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos fatos apresentados, conclui-se que a Mineração Onça Puma vem lesio-
nando o meio ambiente e as TI’s Xikrin do Cateté, e até o presente momento não foram
tomadas medidas pertinentes a mitigação, compensação e preservação das áreas atingidas.
Pontua-se que houve uma grande irresponsabilidade dos órgãos responsáveis nessa situa-
ção, principalmente FUNAI e SEMAS/PA.
O Estado do Pará através da SEMAS/PA apresentou uma postura inconsequente
ao conceder todas as licenças do empreendimento, sem as devidas cobranças relacionadas
a execução das condicionantes ambientais, que como já citado no presente trabalho, a
execução correta delas, deve ser vinculada a concessão de novas licenças ou renovações.
É clara a existência de ilegalidades no procedimento do licenciamento ambiental
do empreendimento com muitas agravantes, dentre elas: pareces técnicos deficientes,
licenças concedidas sem verificação das condições determinadas, e outros. Assim como é
122 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
REFERÊNCIAS
do Brasil. Organizado por Cláudio Brandão de Oliveira. Rio de Janeiro: Roma Victor,
2002. 320 p
YAMADA, Erika M.; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi; GARZÓN, Biviany Rojas. Pro-
tocolos autônomos de consulta e consentimento: Guia de Orientações. São Paulo: RCA,
2019. Disponível em https://rca.org.br/wp-content/uploads/2019/06/2019-Guia-de-
-Protocolos-RCA-vers%C3%A3o-web.pdf. Acesso em: 02 maio. 2021.
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO,
LIVRE E INFORMADO E SEU RECONHECIMENTO NA
JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA
INTRODUÇÃO
1 Mestrando em Antropologia (PPGAnt/UFGD). Bacharel em Direito (FADIR/UFGD). Bolsista (PUCPR/ Ford Foundation) do
“Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais, autodeterminação e jusdiversidade.” Contato: gabriel.drocha01@
gmail.com.
2 Mestre em Fronteiras e Direitos Humanos (PPGFDH/UFGD). Advogado. Bacharel em Direito (FADIR/UFGD). Bolsista (PUCPR/
Ford Foundation) do “Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais, autodeterminação e jusdiversidade.” Contato:
guigoliveiras@gmail.com.
3 Professora Adjunto A de Direitos Humanos e Fronteiras (FADIR/ UFGD) e PPGFDH/UFGD. Doutora e pós-doutoranda em Direito
Socioambiental (PUCPR). Coordenadora do Projeto de Pesquisa CNPq “Observatório de Protocolos de Consulta Prévia: direitos territoriais,
autodeterminação e jusdiversidade”. Contato: lianasilva@ufgd.edu.br.
128 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Quem vai dizer quem tem legitimidade na representatividade coletiva são os próprios povos
— por isso a importância dos protocolos autônomos de consulta, para mostrar para o Estado
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO E SEU RECO-
NHECIMENTO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA | 129
Gabriel Dourado Rocha, Guilherme Oliveira Silva e Liana Amin Lima da Silva
como deve ser um processo de consulta apropriado, em cada caso, com cada povo. O direito
à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado (CCPLI) está previsto nos artigos
6º, 7º, 15, 16, 17 e 22 da Convenção n. 169 e nos artigos 19 e 32 da Declaração das Nações
Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. (SILVA, 2019, p. 71).
Ainda há uma enorme dificuldade de se fazer com que os povos indígenas, qui-
lombolas e tradicionais sejam devidamente consultados antes de qualquer interferência
administrativa e legislativa por parte do Estado em seus territórios, apesar de reconhecido
internacionalmente e ratificado em diversos países, além da Colômbia (1991) e o Brasil
(2002), em países como, México (1990), Noruega (1990), Bolívia (1991), Colômbia
(1991), Costa Rica (1993), Paraguai (1993), Peru (1994), Honduras (1995), Dinamarca
(1996), Guatemala (1996), Equador (1998), Fiji (1998), Holanda (1998), Argentina
(2000), Dominica (2002), Venezuela (2002), Espanha (2007), Nepal (2007), Chile
(2008), Nicarágua (2010), República Centro-Africana (2010) e, recentemente, a Ale-
manha (2021), conforme dados da OIT.
A dificuldade de se efetivar esses direitos coletivos, já reconhecidos, é fruto de um
longo e antigo processo conflituoso dos Estados nacionais contra os povos indígenas,
quilombolas, comunidades afrodescendentes e demais povos tradicionais da América
Latina. Botelho (2020) lembra que a colonialidade do poder, saber e ser, foram impostas
aos colonizados, por isso há dificuldade de superar problemas, já que estão profundamente
enraizados em nossa sociedade e, portanto, pensar em soluções para a democracia, o
direito, as questões agroambientais, a sexualidade, sem passar por aqueles que nos colo-
nizam é algo dificultoso.
Por isso, a importância de se ter uma visão epistêmica diferente, já que a história
contada por aqueles que colonizaram desconsiderou os sujeitos que aqui viviam, deixando
um vácuo na história latino-americana contada. Na América latina, já existiam pessoas,
homens e mulheres, que discutiam e pensavam suas vidas e realidades de forma
racional, produziam conhecimento e saberes, obviamente com contextos diferentes,
assim como existiam, paralelamente, pessoas que discutiam suas realidades na
Europa do século XV, como lembra Botelho (2020).
Quijano (2005) reforça que, por meio da colonialidade, as relações de poder foram
e são baseadas na ideia de raça. Identidades, como a do indígena, do negro e do mestiço,
entre outras, aparecem nesse meio sempre em contraste e comparação em relação ao ideal
europeu civilizado. Assim, surgem as duas formas de pensamento que classifica e coloca em
pontos antagônicos o que for de minorias identitárias e dos colonizadores, por exemplo,
primitivo e civilizado, mítico e científico, irracional e racional, tradicional e moderno,
onde os primeiros estão sempre em condições de subordinação em relação aos segundos.
Holder e Silva (2013) enfatizam que a Convenção nº 169 da OIT foi inspirada nos
130 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
4 Souza Filho (2010) entende jusdiversidade como a liberdade de agir de cada povo segundo suas próprias leis, seu direito próprio e sua
jurisdição.
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO E SEU RECO-
NHECIMENTO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA | 131
Gabriel Dourado Rocha, Guilherme Oliveira Silva e Liana Amin Lima da Silva
O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado deve ser considerado tanto
no processo legislativo quanto na construção e implementação de políticas públicas e de pro-
jetos de grande escala de exploração econômica e de infraestrutura. O âmbito de aplicação
deve ser determinado frente a cada caso concreto, considerando-se a maneira como a decisão
possa constituir-se em uma hipótese de afetação aos interesses dos povos e comunidades
tradicionais, seja a nível local, regional ou nacional. (SILVA, 2019, p. 78).
A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002, pelo Decreto Legisla-
tivo nº 143 de 2002, posteriormente, o Presidente da República a promulgou pelo Decreto
nº 5.051, de 19 de abril de 2004 e, no atual governo federal, segue vigente pelo Decreto
nº 10.088/2019, reitera-se sobre a força supralegal da Convenção 169 no ordenamento
jurídico interno por se tratar de um tratado de direitos humanos, se comprometendo a
132 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
reconhecer os diversos direitos aos povos indígenas e tribais abordados pela Convenção.
A Convenção é considerada, portanto, o que há de mais avançado no que se refere a
legislação sobre povos indígenas e tribais.
A ratificação dessa convenção nos remonta ao ordenamento jurídico-constitucional,
tendo como cerne a autonomia dos povos, reforçando o que está presente no caput do
art. 231, da CF/88. Portanto, se a Constituição reconhece a plurietnicidade e multicul-
turalidade do Estado, a ratificação da Convenção nº 169 da OIT casa com essa afirmação,
como nos lembra Oliveira e Aleixo (2014).
Diante dessa diversidade étnica e cultural do país, em diversos momentos o direito
à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado dos povos e comunidades tradi-
cionais foram violados pelo Estado brasileiro. Casos em que foi necessária a provocação
do judiciário para que esse direito fosse garantido.
Buscando salvaguardar dos ataques aos direitos de comunidades tradicionais, algu-
mas destas passaram a criar protocolos autônomos de consulta prévia, livre e informada,
com o fim de garantir seus direitos e de mostrar ao poder público a sua autonomia.
Segundo Silva (2019), desde o ano de 2014, tem se registrado diversos protocolos autô-
nomos de consulta e consentimento livre, prévio e informado no Brasil, protocolos de
povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais, comunidades ribei-
rinhas, entre outros. Os protocolos autônomos são documentos elaborados pelos povos
tradicionais, nos quais estabelecem as regras para o procedimento da consulta prévia, livre,
informada e de boa fé, para que sejam respeitadas as especificidades culturais, os sistemas
jurídicos próprios, as formas de organização social e deliberação coletiva.
Entre esses casos, encontra-se decisão proferida em setembro de 2020, nos Autos da
Ação Civil pública nº 0000387-03.2017.4.01.3606, proposta pelo Ministério Público, na
subseção judiciária de Juína/MT. O caso envolve a construção de uma usina hidroelétrica
no rio Sacre, região do município de Brasnorte/MT, a denominada hidrelétrica PCH-Sa-
cre-14, faz parte de outras cinco usinas hidroelétricas que já existem naquele mesmo rio.
Ocorre que o megaprojeto desenvolvido pela empresa Pan Partners Administração
Patrimonial Ltda atinge povos e territórios indígenas da região, como os povos Manoki
e Myky. Nos referidos autos, entre diversos requerimentos, o MP recorreu para que fosse
garantido e respeitado o direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas,
além da revisão do estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA) referente ao componente
indígena (ECI).
Na decisão final, apesar da juntada do protocolo de consulta do Povo Manoki aos
autos e da referência do magistrado quanto a necessidade da efetiva realização do processo
de consulta livre, prévia e informada junto aos povos indígenas afetados daquela região,
ficou confuso e difícil de saber até que ponto a decisão de fato compreendeu e contemplou
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO E SEU RECO-
NHECIMENTO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA | 133
Gabriel Dourado Rocha, Guilherme Oliveira Silva e Liana Amin Lima da Silva
o protocolo autônomo do Povo Manoki juntado aos autos. Dos pedidos realizados pelo
MP, foram julgados parcialmente procedentes: em relação ao estudo de impacto sinérgico,
foi anulado o feito sem resolução de mérito e, ainda, decidido que não cabe ao judiciário
determinar estudo de impacto sinérgico.
É importante ressaltar que, na etapa dos estudos de impacto, é fundamental
a presença dos povos e comunidades na participação, pois é a partir deles, os
[...] são eles que poderão apontar a importância de determinados locais — tanto a importância
ambiental propriamente dita (nascentes de rios, por exemplo) quanto a importância cultural
imaterial, a exemplo de lugares sagrados ou que representam a identidade e memória daquele
povo, sua cosmologia e ancestralidade. Assim, a importância da conservação do ecossistema
está intrinsecamente ligada à noção de territorialidade e manutenção dos recursos naturais
necessários para a subsistência e modo de vida do povo ou comunidade afetada. (SILVA,
2019. p. 80)
Korina Juruna da Aldeia Paquiçamba e Povo Indígena Arara da Volta Grande do Xingu.
A região da Volta Grande do rio Xingu sofre com outros grandes empreendimentos,
que também foram judicializados, como o caso da usina hidrelétrica de Belo Monte, con-
forme a decisão proferida nos Autos da Apelação Cível nº 0000709-88.2006.4.01.3903,
prolatada pela quinta turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Seção
Judiciária do estado do Pará, Subseção Judiciária de Altamira. A usina hidrelétrica de Belo
Monte é uma da maiores do mundo, que impacta a vida e territórios de variados povos
e etnias daquela região do rio Xingu, como: Apyterewa; Arara; Arara da Volta Grande
do Xingu; Araweté do Igarapé Ipixuma; Cachoeira Seca; Juruna; Kararaô; Koatinemo;
Paquiçamba e Volta Grande do Xingu.
O acórdão proferido pelo Tribunal da Primeira Região, em novembro de 2011,
traz em seu texto importantes considerações acerca do direito de consulta prévia, livre e
informada, lembrando que ela deveria ser realizada antes do processo de licenciamento
e que, reuniões meramente informativas não substituem a consulta prévia, como as que
ocorrerem com a FUNAI e IBAMA, visto que essas devem ser ativamente participati-
vas. Nesse sentido, observamos que o entendimento da relatora sobre a consulta foi de
encontro com o previsto no art. 6, 1, da Convenção nº 169 da OIT, e em discordância
dos votos dos demais desembargadores, que compreenderam que as reuniões realizadas,
com os povos que seriam afetados pelo empreendimento, como uma consulta prévia.
Inclusive, a desembargadora Maria do Carmo, em seu voto, justifica seu entendi-
mento acerca da consulta prévia, baseado no art. 231, §3º, da Constituição Federal/19885,
considerando-a apenas como uma oitiva, sendo indispensável nos casos em que o empreen-
dimento não esteja sendo realizado dentro de um território tradicional. Vale ressaltar que,
segundo Silva e Souza Filho (2019) o artigo 7º da Convenção n. 169 nos mostra que
os povos interessados deverão ter o direito de decidir suas próprias prioridades no
as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que
ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio
desenvolvimento econômico, social e cultural.
Assim, por mais que a construção da hidrelétrica não esteja em território tradicional,
mas se devido a ela existir a possibilidade de ocorrer interferências na vazão do rio Xingu,
que consequentemente possa afetar na diversidade de peixes utilizados para a alimentação
dos povos, na qualidade do solo, entre outros fatores, já é o bastante para que as comuni-
dades e povos tradicionais afetados sejam devidamente consultados previamente.
5 Art. 231, §3º, da Constituição Federal/1988: O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a
lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO E SEU RECO-
NHECIMENTO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA | 135
Gabriel Dourado Rocha, Guilherme Oliveira Silva e Liana Amin Lima da Silva
No voto do desembargador Fagundes de Deus, ele justifica que não houve ofensa à
Convenção n.169 da OIT, alegando que a Convenção não estabelece que a consulta aos
povos indígenas deva ser anterior à autorização do Congresso, apenas antes do início das
obras do empreendimento. No entanto, Silva (2019) lembra que deve sempre existir a
etapa de pré-consulta, na qual é apresentada para o(s) povo(s) e comunidade(s) a intenção
de se iniciar o processo consultivo, antes de ter qualquer projeto pronto.
É no caso que envolve o projeto “Projeto Volta Grande de Mineração” da
empresa Belo Sun Mineração LTDA, da mineração de ouro, que a sentença faz
referência à existência dos protocolos de consulta como instrumentos que auxiliam
no processo de consulta prévia, livre e informada, conforme a Convenção n.º 169
XII – Reforma parcial da sentença, apenas para afastar a anulação da licença prévia do
empreendimento Projeto Volta Grande de Mineração, restando a emissão da licença de ins-
talação condicionada à elaboração do ECI a partir de dados primários, na forma exigida pela
FUNAI, bem como à consulta livre e informada dos indígenas afetados, em conformi-
dade com o protocolo de consulta respectivo, se houver, em atenção ao que dispõe a
Convenção nº 169 da OIT. Ressalte-se que a manutenção da validade da licença prévia já
emitida não impede sua posterior alteração, a depender das conclusões do ECI e da consulta
prévia ora exigidos. (grifo nosso).
Na sentença, o juiz ainda determina que o impacto sobre terras indígenas é suficiente
para justificar a competência federal do licenciamento ambiental, bem como o impacto
sobre o Rio Xingu e a sinergia com a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cabendo assim,
ao ente federal responsável, IBAMA, analisar o licenciamento do projeto.
Podemos notar que, o direito à consulta nos lembra que não há ninguém melhor
que os próprios povos e comunidades tradicionais para decidirem sobre suas próprias
vidas, cabem a eles decidirem, já que são eles que sofrem com os impactos causados pelos
empreendimentos. Quanto ao direito de decidir, Silva (2017, p. 274) diz que, em relação
ao art. 7º, 1, apesar de reconhecido o direito de decidir, onde a versão oficial em inglês,
refere-se a “the right to decide”, e em espanhol “derecho de decidir”, no caso brasileiro ela
acabou internalizada, pelo então vigente Decreto 5.051/2014, como “direito de escolher”
ao invés de “direito de decidir”, que, consequentemente, pode gerar restrições na inter-
pretação do que foi posto pela Convenção 169.
Assim, quando o Estado impõe a sua forma de consulta, está, por este simples fato, violando
o direito de consulta e, portanto, inutilizando-a para os fins da Convenção. Como só o povo
pode dizer que é um povo, só ele pode dizer como forma sua vontade coletiva, só ele conhece
suas prioridades, seus direitos intangíveis, sua forma de ser e seu sonho de futuro. Só ele pode
consentir em mudar sua vida. (SOUZA FILHO, 2019. p. 45).
136 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
A consulta se faz necessária justamente porque existe uma distância muito grande
entre a organização social dos povos tradicionais em relação a organização social hege-
mônica, por muitas vezes conflitantes. Através do que foi estabelecido na Convenção
nº 169 da OIT, o que se busca com os protocolos autônomos é que os procedimentos
estabelecidos pelos povos sejam atendidos, a fim de se evitar violações de direitos.
CASOS REFERENCIAIS NA JURISPRUDÊNCIA COLOMBIANA
Assim como o Brasil, a Colômbia é um país extremamente rico em diversidade étnica
e cultural. A população indígena colombiana é aproximadamente 4,4% da população
nacional, enquanto a população negra, afro colombiana, raizal e palenqueira (NARP)
corresponde a 9,3%. A consulta prévia é um direito não apenas desses grupos, mas também
de outras comunidades tradicionais, como os romanis (DANE, 2018).
Na Colômbia, corresponde ao Ministério do Interior propiciar assistência às comu-
nidades que participem de processos de consulta prévia. Em 1991, logo após a promul-
gação da Constituição Política da Colômbia, a Convenção 169 da OIT foi ratificada, e
em 1994 foi realizado o primeiro processo de consulta prévia de acordo a esse tratado,
em um caso relacionado à temática de exploração petroleira. Vinte anos depois, em 2014,
a Corte Constitucional da Colômbia já havia julgado 77 casos sobre consultas prévias,
considerando a consulta e participação prévia como direitos fundamentais (AMPARO
RODRIGUEZ, 2014b).
Nesse sentido, para a Corte Constitucional, a Convenção 169 da OIT, e concreta-
mente o direito dos povos indígenas e tribais à consulta prévia, conforma, junto com a
Constituição, o bloque de constitucionalidade, conforme a Sentença SU-383/03. Isso se
deve não apenas em razão dos artigos 53, 93 e 94 da Constituição Política da Colômbia
de 1991, mas
i) em virtude de que a participação das comunidades indígenas nas decisões que forem ado-
tadas sobre a exploração dos recursos naturais em seus territórios, prevista no artigo 330 da
Carta, não pode ser entendida como a negação do direito desses povos a ser consultado sobre
outros aspectos inerentes à sua subsistência como comunidades etnicamente distintas (artigo
94 da Constituição Colombiana),
ii) tendo em vista que o acordo em questão é o instrumento mais amplamente reconhecido
contra a discriminação sofrida por povos indígenas e tribais,
iii) porque o direito dos povos indígenas de serem previamente consultados sobre as deci-
sões administrativas e legislativas que os afetem diretamente é a medida de ação positiva que
a comunidade internacional gera e recomenda para combater as origens, causas, formas e
manifestações contemporâneas do racismo, discriminação racial, xenofobia e as formas de
intolerância relacionadas que afetam os povos indígenas e tribais (Declaração e Programa de
Ação de Durban, 2001) e,
iv) porque o artigo 27 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos estabelece que
não deve ser negado às minorias étnicas o direito à sua identidade. (AMPARO RODRIGUEZ,
2014a, p.51-52, tradução livre).
DIREITO À CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO E SEU RECO-
NHECIMENTO NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E COLOMBIANA | 137
Gabriel Dourado Rocha, Guilherme Oliveira Silva e Liana Amin Lima da Silva
causados à comunidade. Esta tutela foi impetrada pela Comissão Colombiana de Juristas
e ONIQ (Organización Nacional Indígena de Colombia).
Segundo Bonilla (2013, p. 259-264), nessas ações a Corte formulou a estrutura
básica de sua doutrina sobre a consulta prévia, que reafirma que cabe ao Estado realizar
a consulta prévia, e não empresas, bem como considerar as diferenças entre os diversos
grupos afrocolombianos e indígenas, com real participação por meio dos seus represen-
tantes, que devem acessar os reais interesses e consequências dos projetos que afetarão seus
territórios, sem decisões arbitrárias ou autoritárias quando nenhum acordo seja alcançado
entre as partes.
Por outro lado, na Colômbia, o mandato de consulta prévia do Foro Interétnico
Solidaridad Chocó (FISCH), assim como o protocolo de consulta prévia dos quatro povos
da Sierra Nevada de Santa Marta, são exemplos de re-existência coletiva inter-étnica, diante
dos conflitos econômicos e sociais do país (SILVA, 2017, p.257- 266).
Nesse sentido, a tentativa de regulamentar o direito à consulta e consentimento
livre, prévio e informado por meio do Projeto de Lei 442/2020 tem sido rechaçado pela
ONIC, com o apoio do Senador Feliciano Valencia Medina, que esteve presente no VIII
Congresso Brasileiro de Direito Socioambiental realizado em Curitiba em 2019, pois o
projeto de lei busca converter a consulta prévia em um simples procedimento administra-
tivo sem garantir o cumprimento das condições desenvolvidas pela jurisprudência nacional
e interamericana que respalda esse direito das comunidades e povos étnicas (ONIC, 2021).
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
GARZÓN, Biviany Rojas; YAMADA, Erika M.; OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à con-
sulta e consentimento de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica - RCS; Washigton, DPLf, 2016.
SILVA, Liana Amin Lima da; MORAES, Oriel Rodrigues de. Racismo ambiental,
colonialismos e necropolítica: direitos territoriais quilombolas subjugados no Brasil. In:
LIMA, Emanuel Fonseca; AURAZO DE WATSON, Carmen Soledad; TEDESCHI,
Losandro Antonio. (org.). Ensaios sobre os racismos. São Paulo: Editora Fi, 2019.
SILVA, Liana Amin Lima da. Consulta Prévia e Livre Determinação dos Povos Indí-
genas e Tribais na América Latina: Re-existir para Co-existir. Tese de Doutorado,
PUC-PR, 2017, 239 p.,
SILVA, Liana Amin Lima da. Sujeitos da Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e o direito à consulta e ao consentimento livre, prévio e informado.
Segunda Parte. In: GLASS, Verena (org). Protocolos de consulta prévia e o direito à
livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. 268 p.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A força vinculante do protocolo de consulta.
Primeira Parte. In: GLASS, Verena (org). Protocolos de consulta prévia e o direito à
livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. 268 p.
WOLKMER, Antonio Carlos; ALMEIDA, Maria Corrêa de. Elementos para a des-
colonização do constitucionalismo na América Latina: o pluralismo jurídico comu-
nitário-participativo na Constituição boliviana de 2009. In: Crítica Jurídica. México:
UNAM, 2012.
DIREITO À LIVRE DETERMINAÇÃO: OS PROTOCOLOS AUTÔNOMOS
DE CONSULTA E DA SOCIOBIODIVERSIDADE NO BRASIL
INTRODUÇÃO
1 Mestranda em Direito no programa da Pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Advogada e Bacharel
em Direito formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Pesquisadora associada do Centro de Pesquisa e Extensão
em Direito Socioambiental (CEPEDIS); Bolsista do convênio PUCPR e Ford Foudation, subprojeto de pesquisa e atividades vinculado ao
projeto “Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, livre e informado” do Programa de Pós-graduação
de Direito (PPGD) da PUCPR. E-mail: ana.leticia.vasconcellos@gmail.com
2 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Integrante do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação do Prof. Carlos Frederico Marés de Souza Filho. E-mail: julia_enaile@yahoo.com
3 outoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); pesquisadora do grupo de pesquisa e extensão EKOA: Direito, Movimentos Sociais e Natureza,
associada do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS); advogada. E-mail: thaisgisellediniz@gmail.com
144 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
consolidação (SOUSA FILHO, 2017, p. 109), motivo pelo qual o marco legal da biodi-
versidade brasileiro nasce com grave vício congênito (SILVA; DALLAGNOL, 2017),
ferindo a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é a
consolidação formal do direito à consulta prévia, livre e informada dos povos, o qual se
encontra especificamente descrito em seu artigo 66.
A despeito do vício congênito (SILVA; DALLAGNOL, 2017, p. 123), a lei n.
13.123/2015 encontra-se em vigor. Diante disso, é relevante frisar que a interpretação
dessa norma deve garantir os direitos dos povos, comunidades tradicionais e agricultores
tradicionais, não devendo servir a exploração predatória dos conhecimentos gerados pelos
coletivos que habitam o território nacional, para isso se faz necessário a arguição dos
preceitos Constitucionais e o cumprimento das Convenções Internacionais que foram
ratificadas pela Estado Nacional brasileiro (SOUSA FILHO, 2017, p. 104).
A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB)7 e o Tratado Internacional
sobre os Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura (TIRFAA)8 também
contemplam a participação, aprovação e repartição equitativa dos benefícios oriundos dos
conhecimentos, inovações e práticas da sociobiodiversidade, reforçando nesse sentido a
importância do direito à consulta, nos moldes da Convenção 169 da OIT.
No Brasil, são sujeitos passíveis de realizar e estruturar protocolos autônomos de
consulta e da sociobiodiversidade: os povos indígenas, comunidades quilombolas, povos
tradicionais e os agricultores tradicionais. Isto porque existem no ordenamento nacional
a construção sujeitos da Convenção 169, bem como o acréscimo da Lei 13.123/2015,
dos agricultores tradicionais, vejamos:
1. Povos indígenas: a Constituição de 1988, em seus artigos nos artigos 231 e 232, garante
explicitamente aos povos indígenas a sua integridade física e cultural e seus direitos sob
a natureza que habitam (MARÉS, 2017, p. 107).
2. Comunidades quilombolas: a Constituição de 1988, no art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), reconhece direitos territoriais as comunidades
quilombolas.
3. O decreto n. 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sus-
tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), define o que são os povos
e comunidades tradicionais em seu art. 3, I9. (SILVA, 2019, p. 57)
4. A Lei 13.1123/2015, no seu art. 2º, VII10, constitui a figura do protocolo comunitário
e define explicitamente que os agricultores tradicionais são sujeitos dessa ferramenta.
9 Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam
e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
10 Lei n. 13.123/15, Art. 2º, VII. Protocolo comunitário - norma procedimental das populações indígenas, comunidades tradicionais ou
agricultores tradicionais que estabelece, segundo seus usos, costumes e tradições, os mecanismos para o acesso ao conhecimento tradicional
associado e a repartição de benefícios de que trata esta Lei;
148 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
da estrutura utilizada.
Conforme anteriormente descrito, seguem abaixo os resultados obtidos a partir da
transcrição dos documentos e agrupamento em 3 corpus, “Protocolos da sociobiodiversi-
dade”, “protocolos de consulta” e “Corpusjuntos”, os quais foram submetidos ao software
para análise textual Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de
Questionnaires (IRAMUTEQ), pela seguinte técnica: I) Nuvem de palavras.
Figura 1
DIREITO À LIVRE DETERMINAÇÃO: OS PROTOCOLOS AUTÔNOMOS DE
CONSULTA E DA SOCIOBIODIVERSIDADE NO BRASIL | 149
Ana Leticia Maciel de Vasconcellos, Júlia Enaile Correa Costa e Thais Giselle Diniz Santos
Figura 2
Figura 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
estrutura muito similar, nos quais todos localizam especialmente as comunidades, descre-
vem suas características, a metodologia adotada, bem como a forma que deve ser realizada
a consulta dos sujeitos.
Importante também, observar que ao transformar os documentos em corpus, com
a descrição de toda a documentação, restou muito evidente que os documentos surgem
com a finalidade de exteriorização aspectos éticos e morais que permeiam os presentes
coletivos que são os sujeitos dos protocolos autônomos. Nesse sentido, são instrumentos
de análise concreta de jusdiversidades.
O corpus “protocolos da biodiversidade” gerou a figura 1, a qual demonstra espe-
cificidades os seguintes termos “comercialização”, “extrativista”, “produção”, “produto”,
“recurso”, “conhecimento” e “empresa”, os quais estão intrinsicamente relacionados à fina-
lidade, tendo por base o Protocolo de Nagoya e a Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), documentos que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção
e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para
conservação e uso sustentável da biodiversidade.
Ao nos depararmos com a figura 2, gerada pelo corpus “protocolos de consulta”,
observamos que são termos reproduzidos repetidamente são “comunidade”, “consulta”,
“reunião”, “governo”, “decisão”, “tradicional”, “povo”, “vida”, reflexo expresso da estrutura
do direito de consulta que está descrita na Convenção 169 da OIT11 e na Declaração das
Nações Unidades sobre Direitos dos Povos Indígenas12. É a demonstração material que
o reconhecimento que “os povos têm direito a ser povos”, ou seja, manter suas próprias
leis e hierarquias sem qualquer necessidade de integração com a sociedade hegemônica,
é uma conquista que está assimilada pelas documentações descritas.
Ainda, ao visualizar a figura 3, gerada pelo corpus “corpusjuntos”, observamos que há
destaque para os termos: “comunidade”, “consulta”, “governo”, “terra”, “reunião”, “decisão”,
“povo” e “tradicional”. Nesse sentido observamos que os protocolos autônomos analisa-
dos, tanto os que possuem a finalidade de consulta frente as medidas administrativas ou
legislativas os afetem, bem como os que tratam da sociobiodiversidade, são ferramentas
na qual cada povo deve demonstrar para o Estado como deve ser o realizada a sua consulta
de maneira apropriada.
REFERÊNCIAS
GARZÓN ROJAS, Biviany R., YAMADA, Erika M., OLIVEIRA, Rodrigo. Direito
à consulta e consentimento de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradi-
cionais. São Paulo: Rede de Cooperação Amazônica - RCA; Washington, DC: Due
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uploads/2016/08/2016-Livro-RCA-DPLf-Direito-a-Consulta-digital.pdf> cesso em:
21/04/2017.
MOREIRA, Eliane C. P.; PORRO, Noemi M.; SILVA, Liana A. L. (Org.). A “nova” lei
nº 13.123/2015 no velho marco legal da biodiversidade: entre retrocessos e violações
de direitos socioambientais. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2017.
SILVA, Liana Amin Lima da. Sujeitos da Convenção n. 169 da OIT e o direito à consulta e
ao consentimento livre, prévio e informado. In: GLASS, Verena (org.) et al. Protocolos de
consulta prévia e o direito à livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo;
CEPEDIS, 2019. p.47-107. Disponível em: http://direitosocioambiental.org/livros/>.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. A força vinculante dos protocolos de consulta.
In: GLASS, Verena (org.) et al. Protocolos de consulta prévia e o direito à livre deter-
minação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019. p.19-42. Disponível
em: http://direitosocioambiental.org/livros/>.
CAMARGO, Brigido Vizeu; JUSTO, Ana Maria. Tutorial para uso do software de
análise textual IRAMUTEQ. Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cog-
nição – LACCOS Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 2013.
LISTAS DE FIGURAS
.
ESTADOS AFRICANOS E A CONVENÇÃO 169 DA OIT1
INTRODUÇÃO
Nos últimos cinco séculos, o continente Africano vive o momento mais sombrio
da sua história. As violações aconteceram de diversas formas: a colonização, o tráfico e
comércio de seres humanos, bem como a aniquilação das instituições e dos modos de vida
dos povos tradicionais. Passados anos de suas independências, por meio de sangrentas
lutas, os países africanos desenharam a reconstrução do continente, contudo os povos
africanos seguem com suas dificuldades socio-políticas, econômicas e culturais e tentam,
de uma maneira ou de outra, superar os impactos da colonização.
A África, embora seja um continente velho, possui os Estados mais novos. A socie-
dade africana e os Estados nacionais, diferentemente do que aconteceu nos Estados Lati-
no-americanos, são formados por nativos africanos. Porém, essa relação entre a sociedade
e o Estado, para além de originar diferenças analíticas, levanta inúmeros problemas. Em
outras palavras, a conexão entre a sociedade africana e os seus Estados constitui um grande
paradoxo.
Esse paradoxo surge com a administração colonial, isso porque na África, existem
duas correntes opostas entre as populações. Ao mesmo em que existem indivíduos defen-
dendo os interesses estatais, baseados em direitos e valores culturais europeus, também
encontramos os povos e comunidades tradicionais que valorizam e conservam seus usos
e costumes e contrariam a sociedade hegemônica. (CHICO, 2020).
Dessa forma, esses Estados nacionais, formal ou informalmente, são administrados,
na prática, sob duas perspectivas: os centros urbanos, que seguem a racionalidade jurídica
ocidental, e os centros rurais, que seguem os usos e costumes dos povos tradicionais,
variando de acordo com a especificidade de cada povo. Essa realidade é consequência da
administração europeia que, no período de colonial, estabeleceu uma separação entre as
1 Pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto “Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e
Informado”, no Programa de Pós-graduação em Direito, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, por meio de convênio concedido
pela Fundação Ford.
2 Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutorando em Direito, na linha de pesquisa em Direito
Socioambiental e Sustentabilidade (PUC/PR). Pesquisador integrante do grupo de estudo Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e
Sociedade Hegemônica (PUC/PR) e do Projeto “Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre
e Informado” em parceria com a Fundação Ford. E-mail: hermelindochico@gmail.com
3 Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Integrante do Centro de Pesquisa e Extensão em Direito
Socioambiental – CEPEDIS. Pesquisadora integrante do grupo de estudo Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica
(PUC/PR) e do Projeto “Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado” em parceria
com a Fundação Ford. E-mail: paula_harumi@hotmail.com.
4 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Coordenador do Grupo
de Pesquisa “Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica” pela PUCPR e do Projeto “Observatório de Protocolos
Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado” em parceria com a Fundação Ford. E-mail: calosmares@terra.com.br
154 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
cidades, habitadas pelos colonizadores e nativos assimilados, isto é, africanos que adotaram
a cultura ocidental como padrão de vida, e as zonas rurais, povoadas pelos nativos que
resistiram ao padrão de vida ocidental colonial.
Logo após a saída dos colonizadores, os Estados independentes africanos se espe-
lharam, de modo geral, na racionalidade dos seus precedentes coloniais, quando seria
necessária uma efetiva reformulação dessas estruturas políticas coloniais, ou seja, após anos
de lutas pela emancipação africana, modelo administrativo que antes os oprimia continua
latente. Segundo Chico (2020), alguns estudiosos compreendem que a independência
nunca foi alçada, justamente devido a permanência das estruturas de matriz colonial.
Apesar dessa diversidade de modelos de desenvolvimento, quer seja político, social,
cultural ou econômico, o fato é que alguns fenômenos sociais em comum foram surgindo
entre os Estados africanos, como a tendência de centralizar os sistemas político-adminis-
trativos pelo regime de partido único, a partidarização da sociedade, o crescimento das
estratégias patrimonialistas para apropriação dos recursos e das trocas internacionais por
parte das elites no comando e, também, por uma crescente retração social (FLORÊN-
CIO, 2011).
Esse cenário sofreu alterações no início da década de 90 com as reformas adminis-
trativas associadas ao processo de transição democrática, que deram origem a uma nova
ordem constitucional com o Estado Democrático de Direito. Conforme Florêncio (2011),
essa mudança permitiu o surgimento de novos atores sociais nas arenas políticas, como o
surgimento de partidos políticos que eram movimentos de luta para libertação dos povos,
organizações cívicas, a consolidação das religiões e das autoridades tradicionais.
Seguindo a lógica colonial da partilha da África5, os Estados independentes africanos
e as suas constituições foram estruturados sem levar em consideração os povos indígenas.
Mas vai além, a institucionalização ou integração das unidades tradicionais no aparelho
do Estado, de modo informal ou formal, como é o caso de Angola e Moçambique, é
um ato político de imposição realizado sem consulta prévia e consentimento dos povos.
Dito de outro modo, o “futuro” dos indígenas foi projetado sem qualquer consideração
e participação dos povos e sem a representação dos seus líderes.
Dessa forma, os Estados independentes africanos passaram a admitir a existência das
formas de organizações sociais tradicionais como forma de “enquadrá-las e controlá-las
5 Conhecido como Conferência de Berlim, a partilha da África foi um ato político colonial ocorrido na Alemanha, que marcou o encontro
de líderes europeus. A conferência aconteceu de 15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885, e envolveu 14 países, nomeadamente:
Alemanha, Império Austro-Húngaro, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Itália, Países Baixos, Portugal, Inglaterra, Rússia, Suécia,
Noruega e Estados Unidos da América. Os Estados reuniram-se em Berlim com a finalidade de repartir a África e determinar ditatorialmente
fronteiras, que existem até hoje, para resolver os conflitos territoriais entre os países colonizadoras causadas pelas suas atividades na bacia
do Congo. Tudo surgiu quando o Império Luso (Portugal), receando perder os territórios ocupados em África, em benefício de outros
impérios, sugeriu uma conferência com a intenção de resolver cordialmente as divergências que opunham às ex-colónias e os colonizadores
de África. A proposta foi consagrada pelo antigo chanceler alemão, Otton Von Bismark, que a retomou e consultou as outras potências,
antes de convocar-se a Conferência de Berlim. A divisão de África foi feita sem qualquer consideração pela história da sociedade, sem ter
em conta as estruturas políticas, sociais, econ micas e culturais existentes.
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6 Essa inclusão acontece frequentemente em países lusófonos, aqueles que adotaram a cultura colonial e oficializaram a língua portuguesa.
7 Na concepção africana, esses líderes são compreendidos como instituições que representam suas comunidades tradicionais.
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autoridades tradicionais.
É a partir da tradicionalidade que se baseia o poder das autoridades. Assim, o poder
nas comunidades indígenas é baseado em uma relação de respeito e não de dominação,
contrariando a estrutura de poder colonial estatal. É por isso que a autonomia das tribos
reflete a vontade do povo e, através da coletividade, busca-se o equilíbrio e harmonia com
a natureza e proteção dos territórios. (CHICO, 2020). A partir da cosmovisão dos povos,
é possível associar o exercício das autoridades tradicionais africanas à espiritualidade, ou
seja, os líderes tradicionais são respeitados por serem aqueles que possuem o poder e o
conhecimento ancestral que permite dirigir a população com sabedoria havendo convívio
em comunidade e harmonia social. (CHICO, 2020).
Com a chegada dos europeus, mediante o processo de colonização sob o pretexto
civilizatório, a noção de poder e as formas das organizações locais foram distorcidas da
realidade de cada povo. Durante ocupação colonial, vários documentos e leis foram
implantados nos territórios, por exemplo, o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indí-
genas (EPCCI) e a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU). Segundo Guedes, et
al. (2003), a extensão desses documentos correspondeu a um interesse assimilacionista,
em que os territórios africanos eram encarados como província ultramarinas dos países
europeus. Com esses documentos, os povos nativos receberam o status de indígenas8 e
foi consolidada a separação entre indígenas e não-indígenas9. Uma das maiores conse-
quências dessas leis, foi a integração das unidades políticas locais (reinos e aldeias), na
lógica da divisão administrativa colonial (FLORÊNCIO, 2008, p. 373). Isto é, os líderes
tradicionais (reis e rainhas) passaram a integrar o núcleo das Autoridades Tradicionais,
em outras palavras, chefes administrativos locais e, desse modo, passaram a trabalhar em
nome dos colonizadores, deixando de lado a fenomenologia dos reinos e aldeias para a
afirmação das unidades tradicionais (CHICO, 2020).
A administração colonial estabeleceu uma separação entre as cidades, onde moravam
brancos e os nativos assimilados pelo Estatuto, e as regiões rurais, ondem moravam os
povos tradicionais, os indígenas ou não-civilizados. (CHICO, 2020). Tratava-se de uma
dominação colonial em que a soberania pertencia ao Estado colonizador. As sociedades
indígenas perderam a sua autonomia e passaram a integram o Estado, passando a ser
subordinadas politicamente. (MOREIRA, 1955). Os europeus definiram as suas políticas,
assim como implantaram as suas instituições e leis, sem levar em consideração a cultura
e o território no qual os povos exerciam seu poder.
Após as independências, por meios das leis nacionais, alguns Estados africanos
8 Nesse contexto, os termos tradicionais e indígenas abarcam esses povos que, desde o período anterior a colonização, mantêm seus valores,
usos e costumes.
9 Os não-indígenas, eram os nativos que adotaram a cultura estrangeira como padrão de vida, mediante o processo de colonização.
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aos regulamentos estatais, ao mesmo tempo que representam os valores ancestrais, usos
e costumes (CHICO, 2020).
Existe, dessa maneia, um cenário de conflito entre os povos tradicionais e o Estado.
As comunidades indígenas, além de não possuírem autonomia sobre seus territórios,
por restrição do próprio Estado, passam a ser completamente dependentes das ações
governamentais para continuidade dos seus modos de vida. Esse conflito se acentua com
a não adesão aos tratados internacionais, como a Convenção 169 da OIT, que obrigaria
os Estados a proteger e efetivar os direitos dos povos.
Na Convenção 169 da OIT são estabelecidos direitos aos povos indígenas e tribais,
entre eles o direito à autodeterminação, que está intimamente ligado ao direito à consulta
prévia, livre, informada e de boa-fé. Dessa forma, o Estado é obrigado a consultar os povos
todas as vezes que alguma medida administrativa e legislativa possa afetar seus direitos,
como prevê em seu artigo 6º (SOUZA FILHO, 2018).
O reconhecimento do direito à consulta representa a superação do modelo pater-
nalista, assimilacionista e etnocentrista do Estado, possibilitando a participação integral
de cada povo em processos de tomadas de decisões, sendo necessário um maior cuidado
para que a consulta não caia em apenas um aspecto formal e mero procedimento (SILVA,
2017).
Dessa forma, além de ser um direito humano, a livre determinação é, segundo Liana
Amin (2019), algo que conduz a jusdiversidade, onde os povos determinam livremente,
a partir de suas formas de vida, culturas e tradições, os seus direitos e jurisdição própria,
que integram e demostram a existência de uma diversidade de cultura, tradições e de
sistemas jurídicos próprios.
Por mais que se tenham reconhecimentos internacionais de direitos, a falta de rati-
ficação por parte dos Estados Nacionais acentua a exploração nos territórios. Não são
raros os exemplos de violação dos direitos como é possível perceber como os exemplos
retirados com base nos relatos disponíveis Natural Justice10:
Na África do Sul, encontram-se comunidades indígenas Khoikhoi e San, que lutam
pelo reconhecimento formal e pela existência enquanto povos tradicionais, de modo que
seja assegurada a igualdade com outras comunidades culturais. Os Khoi-San se formam
por dois grupos étnicos (Khoi-Khoi e os San) do sudoeste de África, que partilham os
mesmos usos e costumes e hoje se localizam no sul da África abrangendo quatro países:
África do Sul, onde encontram-se em maior número, Botswana, Namíbia e Angola.
No Zimbabwe, a comunidade Marange, integrante dos Manyika, que pertencem
ao subgrupo Xona, afrontam o Estado para que as suas terras sejam governadas com base
10 ONG de advogados cujo objetivo destina-se a defesa das comunidades tradicionais, meio ambiente e direitos humanos na África.
Disponível em: https://naturaljustice.org/.
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generalizada e homogênea como uma entidade estática e rigidamente definida. Isto contra-
diz as realidades locais e pode dividir e enfraquecer ainda mais as instituições tradicionais
e seus usos e costumes (BOSCH, 2003). Relembra Hermelindo Chico (2020, p. 64)
que, “as formas de modelagem de vida das comunidades, governadas pelas autoridades
tradicionais, variam de região para região, dada a diversidade cultural em África, o que
impossibilita abordar as autoridades tradicionais de forma generalizada”. Contudo, esse
desafio pode ser superado com leis que respeitem o direito à autodeterminação ( JONAS;
BAVIKATTE; SHRUMM, 2010, p. 65).
É nessa perspectiva que algumas comunidades tradicionais da África têm
desenvolvidos próprios protocolos de consultas, com apoio de ONGs, como a Justiça
Natural. Assim, os povos vão elaborando esses documentos como forma de resguardarem
os seus usos e costumes, suas terras e lutarem por seus direitos de ser e estar.
Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possível conceder à oralidade
a mesma confiança que se concede à escrita quando se trata do testemunho de fatos passados.
No meu entender, não é esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja
escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem. Não
faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os
primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro dos homens. Antes de colocar
seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo
mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou,
no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra (BÂ HAMPÂTÉ, 2010, p. 168).
ESTADOS AFRICANOS E A CONVENÇÃO 169 DA OIT | 161
Hermelindo Silvano Chico, Paula Harumi Kanno e Carlos Frederico Marés de Souza Filho
É nesse fundamento que os sons e as palavras possuem grandes valores para os povos
africanos. As palavras carregam um valor moral porque estão ligadas a essa espiritualidade
e forças ocultas. (CHICO, 2020). No entanto, com o advento da modernidade, mediante
o processo da expansão e exploração capitalista europeia nos territórios africanos, a escrita
foi ganhando espaço e aos poucos a tradição viva dos povos foi sendo esquecida.
Atualmente, são os povos indígenas que preservam e resguardam a importância da
oralidade, porém, a dinâmica moderna, que entende a escrita como único meio de prova
e credibilidade, viola constantemente seus protocolos orais. Assim, como forma de resis-
tência, o poder da palavra vem sendo formalizado em documentos e leis, já que são tidos
como único meio de acordo e compromisso para a sociedade moderna.
É nesse contexto, diante da realidade imposta, que algumas comunidades tradicionais
africanas, vendo sua humanidade negada, seus direitos desrespeitados, seus territórios
explorados, sua autonomia violada, seus modos de ser e estar sendo submetidos aos regu-
lamentos estatais, tendem a adotar os procedimentos de formalização moderna, escrita,
com intuito de protegerem suas terras e prosseguirem com os seus usos e costumes.
Começaram, assim, a surgir os protocolos escritos, conhecidos como bioculturais,
que refletem os valores dos povos e comunidades tradicionais com respaldo na lei, na
tentativa que seus direitos sejam respeitados, sendo utilizados como forma de responder
os problemas insurgentes.
PROTOCOLOS BIOCULTURAIS
11 Nas palavras de Kabir e Shrumm (2010, p. 50), o Protocolo de Nagoya representa, para os povos indígenas e comunidades locais, um
marco elevado na jurisprudência internacional, estabelecendo claramente uma série de importantes direitos bioculturais.
12 Os direitos bioculturais são direitos dos povos indígenas e comunidades locais sobre todos os aspectos dos seus modos de vida
162 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
que são relevantes para a conservação e utilização sustentável da biodiversidade. Estes aspectos incluem direitos relacionados,
entre outros, com os seus conhecimentos, inovações e práticas, recursos naturais, terras e águas, ocupações tradicionais, e leis e
sistemas de governação consuetudinários ( JONAS; BAVIKATTE; SHRUMM, 2010, p. 50).
13 A diversidade biológica não pode ser separada da diversidade cultural e linguística, uma vez que a diversidade da vida em todas as suas
manifestações está inter-relacionada (e provavelmente co-evoluidas) dentro de um sistema sócio-ecológico complexo de adaptação (MAFFI;
WOODLEY, 2010, p. 5).
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CONCLUSÃO
Grande parte dos movimentos de luta para a emancipação da África foram formados
e guiados por nativos que durante a ocupação colonial auferiram status de assimilados
por se converterem ao cristianismo e adotarem a cultura europeia como estilo de vida. Os
assimilados viviam nas cidades, zonas urbanizadas, e não eram caraterizados como indíge-
nas. Após a retirada dos colonizadores, os movimentos de luta convertem-se em partidos
políticos e alguns ascendem o poder, na maioria dos casos de forma não-consensual. Esses
movimentos, que se tornaram partidos políticos perderam sua conexão socioambiental
com as comunidades tradicionais.
A guerra civil que permeia o continente africano é um dos reflexos dos interesses
partidários, que se sobrepõem aos interesses da coletividade, impossibilitando a reconcilia-
ção e a reestruturação dos povos tradicionais. As mazelas da colonização africana seguem
negligenciando a participação dos povos tradicionais mesmo após as independências. Os
líderes tradicionais não tiveram espaço para contribuir, dar a voz e participar nos atos
políticos da África.
Com a institucionalização dos líderes tradicionais, a autonomia dos povos foi sendo
substituída pelos interesses estatais que utilizam dessas autoridades para controlar e usar
o território de acordo com seus interesses. Essa institucionalização se demonstra como
uma forma estratégica do Estado que, antes de introduzir a autoridade tradicional em seu
âmbito de poder, cria uma relação de dependência, retirando sua autonomia e impossibi-
litando a sobrevivência da comunidade, já que ficam subordinadas e integradas ao Estado.
A estratégia dos Estados nacionais africanos no reconhecimento das autoridades
tradicionais como um dos segmentos dos poderes do Estado, não passa de um modelo
político para a conquista dos espaços indígenas, que possuem seus direitos de ser e estar
constantemente violados, uma vez que não compartilham com a mesma realidade esta-
tal. Então, essa tendência em integrar as autoridades tradicionais ao governo local, sob o
discurso da descentralização administrativa, se apresenta como uma forma de submeter
os povos, ainda que implicitamente, às leis estatais.
Dessa maneira, existe um cooptação das instituições do poder tradicional pelo par-
tido Estatal que se encontra no poder, que atendendo seus interesses passam representar
essas comunidades em âmbito local, o que reflete na não ratificação da Convenção 169
da OIT, que representaria um importante instrumente na efetivação dos direitos dos
povos e obrigaria os Estados a respeitarem seus protocolos, que são instrumentos de uma
jurisdição própria e efetivam o direito à autodeterminação.
166 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
REFERÊNCIAS
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In. Revista da Faculdade de Direito da UFG. V. 42. N.3. p. 155-179. Set./dez. 2018.
Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/revfd/article/view/55075. Acesso em: 20
out. 2019.
INTRODUÇÃO
dos Cursos de Pós-Graduação e Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará. Advogado. E-mail: girolamo@ufpa.br.
3 Mestranda em Direitos Humanos (Direito Socioambiental) – PPGD/UFPA, email: tatirov@yahoo.com.br
170 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Por esta acepção, entendemos que o fato gerador do exercício do direito à consulta
e consentimento não será o procedimento de licenciamento ambiental, mas todos os atos
administrativos ou legislativos emanados pelo Estado a fim de autorizar ou possibilitar
a realização de uma política pública ou empreendimento que possa a vir afetar o modo
de vida ou o território dos povos e comunidades tradicionais, mais especificamente das
comunidades quilombolas objeto desse estudo.
A Consulta constitui-se em uma obrigação exclusiva do Estado, que decorre de sua
capacidade jurídica indelegável (CARRIÓN, 2012, p. 27). Desta forma, “a obrigação de
garantir consultas adequadas recai clara e explicitamente sobre os governos e não sobre
indivíduos ou empresas privadas” (OIT, 2013, p. 14, tradução nossa). Quanto ao signi-
ficado de ato administrativo, entende Perafán que,
[...] o direito à consulta prévia está consagrado na Convenção 169 e refere-se a qualquer
medida legislativa ou administrativa que possa afetá-los diretamente. Pode ser qualquer tipo
de lei, norma, regulamento, decreto, assinatura de tratado, a própria lei de consulta, concessão,
licitação, qualquer medida administrativa dada pelo Estado em qualquer matéria (PERAFÁN,
2012, p. 13, tradução nossa).
Em sentença concluiu a Corte IDH no Caso Kichawa de Sarayaku vs. Equador que:
[...] a estreita relação das comunidades indígenas com seu território tem, em geral, um com-
ponente essencial de identificação cultural baseado em suas próprias cosmovisões, e que,
como atores sociais e políticos diferenciados em sociedades multiculturais, devem ser espe-
cialmente reconhecidos e respeitados numa sociedade democrática. O reconhecimento do
direito à consulta das comunidades e povos indígenas e tribais está alicerçado, entre outros,
no respeito de seus direitos à cultura própria ou identidade cultural (pars. 212 a 217 infra), os
quais devem ser garantidos, sobretudo numa sociedade pluralista, multicultural e democrática
(BRASIL, 2014, p. 462).
[...] um processo de mão dupla. Não se trata simplesmente da condução de reuniões for-
mais ou audiências públicas, mas sim de um processo que envolve duas ações: informar e
ouvir. A consulta é o meio pelo qual um projeto engaja as pessoas e comunidades (as partes
interessadas) que podem ser afetadas pelo projeto, seja positiva ou negativamente, direta ou
indiretamente. É uma etapa essencial que pode determinar o êxito ou fracasso de qualquer
LICENCIAMENTO AMBIENTAL, PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS-AUTÔNOMOS DE
CONSULTA E CONSENTIMENTO E ESTUDO DE COMPONENTE QUILOMBOLA (ECQ) | 173
Johny Fernandes Giffoni, Girolamo Domenico Treccani e Tatiane Rodrigues de Vasconcelos
Além da Convenção n. 169 da OIT, uma série de outras normas internacionais que
o Brasil é signatário, fundamentam o Direito à Consulta e Consentimento dos povos tra-
dicionais. Como as seguintes: Convenção sobre Diversidade Biológica — CDB (1992);
Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005);
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007); Protocolo
de Nagoya sobre Acesso a Recursos Genéticos (2010) e a Declaração Americana sobre
os Direitos dos Povos Indígenas (2016) integram o chamado “bloco de constituciona-
lidade”, consistindo “no reconhecimento da existência de outros diplomas normativos
de hierarquia constitucional, além da própria Constituição” (RAMOS, 2018, p. 586).
Segundo Garavito e Salinas, tais normas internacionais constituem o denominado
“corpus normativo internacional do direito à consulta”, elencando dentre outras as seguin-
tes fontes normativas no campo do Direito Internacional:
Em primeiro lugar, aqueles emitidos pelo sistema das Nações Unidas serão revistos, começando
com a Convenção 169 da OIT e os pronunciamentos da Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas (Declaração dos Povos Indígenas) adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), os
pronunciamentos emitidos pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (Comitê de
Direitos Humanos), o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CEDR), o Comitê
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (CESCR) ), o Relator Especial das Nações Unidas
para os Direitos Humanos e as Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas e, finalmente, as
recomendações do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas das Nações Unidas (Fórum
Permanente) (GARAVITO; SALINAS, 2010, p. 9, tradução nossa).
O art. 6.º, 1. “a” da Convenção n. 169 da OIT prevê que os governos deverão con-
sultar os povos interessados, quando medidas legislativas ou administrativas forem susce-
tíveis em afetar diretamente esses povos. A Declaração da ONU sobre Direito dos Povos
Indígenas, no tocante ao instituto jurídico da consulta estabelece em seu artigo n.º 19
que ela deverá ocorrer de “boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas
instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado
antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem” (ONU,
2018, p. 12). Trata-se dever dos Estados e do poder público, celebrar a consulta junto aos
povos indígenas e aos povos tribais, buscando que:
(...) nos processos de decisões que os afetem tenham por objeto por fim ao modelo histórico
de exclusão do processo de adoção de decisões com o objetivo de que no futuro as decisões
importantes não se imponham aos povos indígenas e que estes possam prosperar como comu-
nidades distintas nas terras em que, em razão de sua cultura, estejam vinculados (ONU, 2009,
p. 16, tradução nossa).
174 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Em relação a esses povos, os Estados têm a obrigação específica de consultar e garantir sua
efetiva participação nas decisões sobre qualquer medida que afete seus territórios, levando
em consideração a relação especial entre os povos indígenas e tribais e a terra e os recursos
naturais, conforme previsto na Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas (OEA, 2015, p. 59, tradução nossa).
Para a Corte IDH, essa participação supõe a consulta dos povos de acordo com seus
costumes e tradições sobre todos os planos de desenvolvimento e exploração que possam
se realizados em seus territórios ou os afetem. Quanto ao consentimento entende ser
objetivo do processo de consulta, como a celebração de um acordo para a efetivação desse
consentimento. Desta forma, implica que devem ter os povos a capacidade de influenciar
de maneira significativa no processo e na tomada de decisões que serão adotadas logo após
a sua conclusão (OEA; CIDH, 2019, p. 35).
A contrário senso, está previsto o direito de veto, porque o objetivo é a obtenção
do consentimento, que deve ser oportunizada pelas ações do Estado, não havendo esse
consentimento é pelo motivo que o Estado não lançou mão de todos os esforços e de
todas as formas necessárias para efetivar o diálogo intercultural capaz de equacionar as
duas formas de desenvolvimento postas em diálogo.
AMBIENTAL
[...] o processo administrativo complexo que tramita perante a instância administrativa res-
ponsável pela gestão ambiental, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, e que tem
como objetivo assegurar a qualidade de vida da população por meio de um controle prévio e
de um continuado acompanhamento das atividades humanas capazes de gerar impactos sobre
o meio ambiente (FARIAS, 2015, p. 26).
[...] uma ferramenta de proteção do ambiente que remove uma proibição do exercício de dada
atividade antrópica, gerando efeitos declaratórios e constitutivos –, identifica-se a licença
ambiental com a essência ao que se sustenta na presente investigação. Recorde-se que, por
se tratar da manifestação de um dever fundamental, o processo administrativo ambiental (e,
deste modo, o ato administrativo que dele resulta) é balizado pelos pressupostos da proibição
do excesso de proteção deficiente (NIEBUHR, 2021, p. 177).
interessada na realização de um projeto, obra ou atividade que possa gerar grave impacto
ambiental, que deve ser avaliado através de procedimento técnico, administrativo, social
e econômico visado. identificar, prevenir, compensar ou mitigar efeitos adversos no meio
ambiente, efeitos na saúde humana, culturas e qualidade de vida das pessoas (RODRÍGUEZ,
2011, p. 60, tradução nossa).
Destaca-se o fato de que “as categorias classificatórias estatais são produtos típicos
de uma racionalidade moderna, autorizando ao governo classificar, medir ou ainda esta-
belecer denominações sociais” (GIFFONI, 2020, p. 226). O Estudo de Componente
Quilombola (ECQ) é conceituado pelo Anexo II da Portaria Interministerial n. 60/15,
referindo-se ainda a referida portaria ao Termo de Referência Específico (TRE), antes
competência da FCP e hoje competência do INCRA. O artigo 2.º da Portaria define o
Termo de Referência Específico (TRE), documento a ser elaborado pela FCP/INCRA
no processo de licenciamento ambiental devendo estabelecer o conteúdo necessário para
a análise dos impactos afetos as terras quilombolas (BRASIL, 2015a, n.p). Quanto ao
ECQ, define o Anexo II, que:
Conforme exigências estabelecidas pela legislação vigente, em especial a Convenção OIT 169,
o Ofício nº 07/2019/CACRQ/DPA/PR-FCP, e o Termo de Referência Específico/TRE,
o Estudo do Componente Quilombola – ECQ abordará informações pertinentes quanto:
a localização espacial, identificação e caracterização das comunidades remanescentes de qui-
lombo, com base na pesquisa etnográfica, caracterização ambiental, atividades produtivas e
aspectos econômicos, sociais, culturais e históricos de formação das comunidades quilombolas.
Apontará a importância local e regional das CRQs e seus vínculos de relação e interrelação, e
de como estes aspectos identitários e do modo de vida das Comunidades poderão ser afetados,
a partir da instalação, operação e manutenção da linha de transmissão, sendo relacionados
os impactos, bem como as diretrizes dos planos, programas e atividades, que proporcionarão
LICENCIAMENTO AMBIENTAL, PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS-AUTÔNOMOS DE
CONSULTA E CONSENTIMENTO E ESTUDO DE COMPONENTE QUILOMBOLA (ECQ) | 177
Johny Fernandes Giffoni, Girolamo Domenico Treccani e Tatiane Rodrigues de Vasconcelos
Como veremos esse critério viola o direito à territorialidade das comunidades Qui-
lombolas. Por outro lado, seu objetivo é o de propor medidas de mitigação e controle aos
impactos dos empreendimentos. Quanto ao processo de identificação das comunidades,
operacionalizado pelo Estudo de Componente Quilombola (ECQ), para Débora Bronz
essa atuação baseia-se em,
[...] mecanismos utilizados para classificar as comunidades locais fazem parte de uma estratégia
de relacionamento das empresas com a sociedade. É a partir das formulações destas que se
definem quais serão aqueles classificados como afetados. Nessa direção, mais importante do que
observar quais são os impactos sofridos por determinadas populações – o que normalmente é
objeto dos estudos técnicos no licenciamento – é perceber o que está em jogo na forma como
determinados grupos são selecionados como objetos de estudo e, posteriormente, público-alvo
das medidas de compensação que requerem destinação de recursos e investimentos (BRONZ,
2016, p. 48).
Nesse sentido, a Portaria Interministerial nº 60/2015 em seu Anexo I, orienta que para
empreendimentos lineares de transmissão de energia na região da Amazônia Legal, um raio
com distância de até 8 km deve ser considerado como Área de Influência Direta/AID, as
CRQs localizadas dentro deste raio de distância, deverão ser inseridas na construção de estudos
específicos, e necessários à complementação dos estudos socioambientais, exigidos no rito legal
do processo de Licenciamento Ambiental. Estes estudos devem ter abordagem na forma de
diagnósticos socioeconômicos, ambientais e culturais, com uso de ferramentas de diálogo,
capazes de proporcionar a interação e participação das comunidades. O intuito é de se levantar
o máximo de informações sobre seus modos de vida, bem como as formas de uso e ocupação
territorial, com base nos aspectos culturais e identitários (AMBIENTARE, 2020, p. 9).
A consultoria é quem definirá as áreas de estudo, as populações que deverão ser “ouvidas”, o
formato dos programas de compensação e a quem eles serão destinados. A explicação sobre a
dinâmica do licenciamento e os papéis desempenhados pelas instituições públicas; as infor-
mações sobre os direitos que a população será “impactada” possui e o que podem fazer para
que esses direitos sejam respeitados são tarefas que os consultores entrevistados comumente
desempenham. Os questionamentos políticos dos sujeitos passam, então, pela triagem dos
consultores, financiados pelos empreendedores, entendidos como expertos nas análises sobre
as causas dos problemas sociais (PINTO, 2019, p. 141).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Convenção n. 169 da OIT e os Estados Nacionais. – Brasília: ESMPU, 2015.
RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva
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SILVA, Liana Amin Lima da. Sujeitos da Convenção n. 169 da Organização Interna-
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TOMEI, Manuela; SWEPSTON, Lee. Povos indigenas y tribales: Guía para la aplica-
ción del Convenio núm. 169 de la Oit. Genebra: OIT, 1996.
O CONSENTIMENTO PRÉVIO E INFORMADO NO ACESSO AOS
CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS: DESAFIOS
APÓS A RETIFICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOIA
INTRODUÇÃO
1 Professor do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito Ambiental da Universidade de Caxias do Sul - UCS;
Graduado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do
Sul - UCS, Doutor em Direito Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental
Crítico - DAC/UCS. *Professor orientador da pesquisa. E-mail: agbergef@ucs.br.
2 Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, Pós-graduanda em Relações Internacionais com Ênfase em Direito
Internacional pela Damásio Educacional. Pesquisadora voluntária do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental Crítico - DAC/UCS. E-mail
mmbueno1@ucs.br
3 Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Damásio
Educacional, Pós Graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale,. Pesquisadora voluntária do Grupo de Pesquisa
Direito Ambiental Crítico - DAC/UCS. E-mail: lcpossenti@ucs.br
190 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Art 8.j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhe-
cimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de
vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica
e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse
conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição eqùitativa dos benefícios oriundos
da utilização desse conhecimento, inovações e práticas;
Já o artigo 15 da CDB traz entre outras definições quanto ao acesso aos recursos
genéticos: a) “o reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos
naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos
nacionais e está sujeita à legislação nacional, b) a exigência do “consentimento prévio
fundamentado” da “Parte Provedora dos recursos genéticos”, para o acesso aos usuários
aos recursos genéticos, c) o dever dos Estados partes adotarem “medidas legislativas,
administrativas ou políticas”, para “compartilhar de forma justa e equitativa os resulta-
dos da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os benefícios derivados de
sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses
recursos”. O “consentimento prévio fundamentado” também deve ser exigido para o
acesso aos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e populações
indígenas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de
seus componentes.
O terceiro objetivo da CBD - a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados
da utilização dos recursos genéticos (e dos conhecimentos tradicionais associados) - por
ter sido estabelecido de forma muito genérica no texto da convenção necessitava de um
regime internacional específico para sua operacionalização (ALBAGLI, 1998, p. 139-140)
Ao estabelecer um texto aberto com obrigações genéricas e não estabelecer regras
mais objetivas, a CDB deixou diversas lacunas a serem preenchidas por legislação específica
O CONSENTIMENTO PRÉVIO E INFORMADO NO ACESSO AOS CONHECIMENTOS
TRADICIONAIS ASSOCIADOS: DESAFIOS APÓS A RETIFICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOIA | 193
Aírton Guilherme Berger Filho, Marieli Machado Bueno e Comerlato Possenti
[...] a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos,
mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e à transferência adequada de
tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias,
e mediante financiamento adequado, contribuindo desse modo para a conservação da diver-
sidade biológica e a utilização sustentável de seus componentes.
O Protocolo de Nagoia tem sua aplicação voltada para o acesso aos recursos genéticos
194 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Tomando nota da relação entre os recursos genéticos seus conhecimentos tradicionais associa-
dos, e as comunidades indígenas ou locais que os detêm, o Protocolo de Nagoia reconhece a
importância da manutenção dessa rica herança cultural para conservação da diversidade bioló-
gica, da sua utilização sustentável e dos próprios meios de vida tradicionais dessas comunidades.
Conforme seu texto, o Protocolo busca fornecer uma estrutura segura principal-
mente para os provedores dos recursos genéticos, mas também deixa o usuário amparado,
pois o Nagoia elenca uma série de deveres que cada Parte assumirá para assegurar a execu-
ção da legislação interna e também dos seus requisitos regulamentadores para acessos aos
recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, tendo por foco a garantia da
repartição de benefícios. (DERANI, 2012, p. 158).
Em conformidade com as obrigações do protocolo de Nagoya, estão elencadas as
principais obrigações do Protocolo, quais sejam: obrigação de acesso, obrigações de com-
partilhamento de benefícios e obrigações de conformidade.
As obrigações de acesso, que ficam a cargo do provedor, são de criar uma segu-
rança jurídica, com clareza e transparência para o acesso, fornecer regras e procedimentos
justos para os possíveis usuários, estabelecer regras claras para o consentimento prévio
informado no termos mutuamente acordados , providenciar a emissão de uma licença
quando o acesso for concedido, criar condições para promover e incentivar pesquisas que
auxiliem a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, considerar a importância
dos recursos genéticos para alimentação e agricultura para segurança alimentar e prestar
atenção aos casos de emergência que ameacem a saúde tanto humana quanto vegetal ou
animal (CDB, p. 09)
O Protocolo de Nagoia estabeleceu aos países que o ratificaram uma série de obriga-
ções referente ao acesso aos recursos genéticos, aos conhecimentos tradicionais associados,
mais especificamente no que concerne à medidas de acesso em relação ao país provedor
e medidas de cumprimento por parte dos países usuários. Conforme, Ferreira (2021 p.
5), as obrigações de acessos podem ser definidas como a opção dos países de regulamen-
tar ou não o acesso aos conhecimentos tradicionais associados. Contudo, caso o país
escolha realizar a regularização deve seguir os parâmetros internacionais de acesso que
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conceito de patrimônio genético tido como “informação de origem genética”, destoa dos
conceitos estabelecidos na Convenção sobre Diversidade Biológica e do Protocolo de
Nagoia, os conceitos de “material genético”, “todo material de origem vegetal, animal,
microbiana ou outra que contenha unidades funcionais de hereditariedade” e “recurso
genético”, “material genético de valor real ou potencial”. Enquanto a CDB trata do acesso
ao objeto físico do “material” que contém “unidades funcionais de hereditariedade” e/
ou “valor real ou potencial”, a Lei 13.123/15 tutela o patrimônio genético diretamente
enquanto informação.
A Lei 13.123/15 no inciso II do artigo 2° conceitua o conhecimento tradicional
associado, termo repetido reiteradas vezes, mas não conceituado no Protocolo de Nagoia,
como “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricul-
tor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio
genético”.
Diferentemente dos tratados que utilizam-se dos termos “comunidades locais e
populações indígenas” (CDB) ou “comunidades indígenas e locais” (Protocolo de Nagoia)
e não conceituar esses termos a Lei 13.123/15 define comunidade tradicional como
“grupo culturalmente diferenciado que se reconhece como tal, possui forma própria de
organização social e ocupa e usa territórios e recursos naturais como condição para a sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas geradas e transmitidas pela tradição.”
A Lei 13.123/15 implementa as obrigações decorrentes do terceiro objetivo da
CDB e do Protocolo de Nagoia a partir da condição do Brasil e dos brasileiros (pessoas
físicas ou jurídicas) enquanto provedores ou usuários do patrimônio genético nacional
e dos conhecimentos tradicionais associados, mas não trata dos brasileiros enquanto
usuários de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados de outros Estados
nacionais. Assim como será visto o marco legal brasileiro do patrimônio genético e toda
sua regulamentação cumprem parcialmente com as obrigações do Protocolo de Nagoia,
mesmo estabelecendo um conjunto bastante extenso de bens, direitos e obrigações rela-
tivos: a) ao acesso ao patrimônio genético do País, encontrado em condições in situ,
inclusive as espécies domesticadas e populações espontâneas, ou mantido em condições
ex-situ, desde que encontrado em condições in situ no território nacional; b) ao acesso ao
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de comunidades tradicionais
que vivem no território nacional; c) ao acesso à tecnologia e à transferência de tecnologia
para a conservação e a utilização da diversidade biológica; d) à exploração econômica de
produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético ou
ao conhecimento tradicional associado encontrados no território nacional; e) a repartição
justa e equitativa dos benefícios derivados; f ) à remessa para o exterior de parte ou do
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O Protocolo de Nagoia, em seu texto, estipula trinta e sete obrigações que os paí-
ses membros devem cumprir. Reconhece de forma expressa o direito das comunidades
indígenas e locais, detentoras dos conhecimentos tradicionais associados a participar dos
benefícios oriundos do acesso aos conhecimentos tradicionais. A fiscalização para veri-
ficar o cumprimento das normas de acesso deverá ocorrer de ambas as partes (provedor
e usuários), ou seja, Nagoya, colocou os países membros como sujeitos ativos e passivos
das relações, visto que todos são possíveis usuários e provedores
Assim, quando o Brasil realizou a ratificação do Protocolo de Nagoia, este assumiu
todos os direitos e obrigações que estavam previstas no tratado, ressaltando que embora
tenha-se feito uma reserva para a sua ratificação, não há possibilidade de realizar tal ato,
pois, o Protocolo só pode ser ratificado em sua integralidade. (LIMA, 2016, p. 5).
Antes de adentrar a lei 13.123/2015 e suas lacunas frente ao protocolo, vale trazer
também as medidas que devem ser levadas em consideração para uma correta implantação
do Nagoia à legislação brasileira. Ferreira (2021, p. 6), traz que os principais desafios para
a implementação seriam a harmonização no uso das definições, o âmbito de aplicação do
protocolo de Nagoia e a obrigação dos usuários.
No que concerne à harmonização no uso das definições utilizadas no protocolo
de Nagoia, Ferreira (2021), defende a ideia de que estas deveriam ser ajustadas durante
as Conferências das Partes de Nagoia, contudo como o Protocolo reafirma o mérito e
a soberania das legislações nacionais sobre o acesso e repartição de benefícios, é pouco
provável que tais definições sejam definidas nas próximas CPO’s.
Billé, Chiarolla e Chabason, (2010, p. 2), afirmam que para ser possível a adoção
do Protocolo de Nagoya e uma aceitação da sua redação entre os países, diversos aspectos
do texto de Nagoya ficaram mal definidos dando espaços para diversas interpretações.
Contudo, esta heterogeneidade é totalmente prejudicial à implementação dos pro-
cedimentos na esfera administrativa da legislação brasileira, vez que alguns termos como
os recursos genéticos, acesso aos recursos genéticos e sua utilização, as diferenças de inter-
pretações acabam produzindo sérias consequências vez que interferem na interpretação
dos direitos e deveres aplicados
Outro ponto controverso levantado por Ferreira (2021, p. 29), é referente às obri-
gações de cumprimento do Protocolo de Nagoia, que não estão previstas, ou previstas
198 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
de forma parcial na Lei 13.123/2015. Essas obrigações incluem medidas que os países
que ratificaram o protocolo comprometem-se a realizar a sua implementação dentro da
legislação nacional de cada país.
Dessas obrigações, podemos destacar as medidas necessárias para assegurar que os
recursos genéticos que são utilizados dentro da jurisdição do país tenham sido acessados
com o devido consentimento prévio e informado, e que os termos tenham sido acordados
entre as partes (art. 16 do protocolo de Nagoia). O artigo 16 dispõe que:
O marco legal vigente cumpre em parte essa obrigação prevista no Nagoia, no ponto
que se refere aos conhecimentos tradicionais associados de povos indígenas e das comu-
nidades locais brasileiras, uma vez que quando se tratar de CTA’s de origem identificável,
o consentimento prévio e informado é obrigatório para que seja possível iniciar pesquisas
de qualquer gênero com esses materiais e/ou informações. O que deverá ser inserido na
Lei 13.123/2015 é a aplicação dessas garantias para os detentores de conhecimentos
tradicionais associados de outros países. (DIAS, SILVA, MARINELLO, 2021, p. 46)
Outras obrigações do protocolo de Nagoia que ainda não foram incorporadas total-
mente na legislação nacional são os artigos 5°, 6°, 7°, 15 e 17 do protocolo. No que tange
ao artigo 5° o Brasil ao realizar a ratificação do protocolo passou a assumir a obrigação de
garantir que todos os benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos acessados
serão repartidos de maneira justa e equitativa com a Parte provedora desses recursos, essa
repartição ocorrerá mediante termos mutuamente acordados.
Na Lei 13.123/2015, essa obrigação está disposta de forma parcial, pois foram
previstas as regras de repartição dos benefícios de produtos já acabados ou de material
reprodutivo derivado do acesso ao patrimônio genético e CTA, que podem ser monetárias
e não monetárias. Porém, essa repartição está prevista apenas para os usuários da biodi-
versidade brasileira, e não há regras referente ao uso da biodiversidade de outros países
por brasileiros no papel de usuários. Desta forma, ao incorporar o restante da obrigação
do artigo 5°, o legislador brasileiro deverá tomar um cuidado redobrado para não acabar
criando uma desconformidade em relação às legislações de outros países com as do Brasil.
O CONSENTIMENTO PRÉVIO E INFORMADO NO ACESSO AOS CONHECIMENTOS
TRADICIONAIS ASSOCIADOS: DESAFIOS APÓS A RETIFICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOIA | 199
Aírton Guilherme Berger Filho, Marieli Machado Bueno e Comerlato Possenti
Adotar medidas com vistas a assegurar que o conhecimento tradicional associado a recursos
genéticos detido por comunidades indígenas e locais seja acessado mediante o consentimento
prévio informado ou a aprovação e participação dessas comunidades indígenas e locais, e que
termos mutuamente acordados tenham sido estabelecidos
a tabela adaptada com os artigos que estão em desacordo entre o Protocolo de Nagoia e
a Lei 13.123/2015, e as mudanças que os autores julgam necessárias.
Obrigações
já previstas Obrigações que pre-
Artigo e
na Lei nº cisariam ser definidas
Obrigação prevista no Protocolo Inciso do
13.123/ 2015 na regulamentação do
Protocolo
e Decreto nº Protocolo de Nagoia
8.772/2016
Adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme
o caso, com vistas a assegurar que os benefícios derivados da
Definir as medidas legais
utilização dos recursos genéticos, bem como as aplicações e
quando um nacional
comercialização subsequentes, serão repartidos de maneira justa Artigo 5
em parte brasileiro utilizar recursos
e equitativa com a Parte provedora desses recursos que seja o país (1 e 3)
genéticos (RG) originados
de origem desses recursos ou uma Parte que tenha adquirido os
de outros países
recursos genéticos em conformidade com a Convenção. Essa
repartição ocorrerá mediante termos mutuamente acordados.
Adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas,
conforme o caso, com vistas a assegurar que os benefícios Definir as medidas legais
derivados da utilização dos recursos genéticos detidos por quando um nacional
comunidades indígenas e locais, de acordo com a legislação Artigo 5 brasileiro utilizar RG
em parte
nacional relativa aos direitos estabelecidos dessas comunida- (2 e 5) detidos por comunida-
des indígenas e locais sobre esses recursos genéticos, sejam des indígenas e locais
repartidos de maneira justa e equitativa com as comunidades originados de outros países
relacionadas, com base em termos mutuamente acordados.
Assegurar que o acesso a recursos genéticos para sua utili-
zação está sujeito ao consentimento prévio informado da Definir as medidas legais
Parte provedora desses recursos que seja país de origem quando um nacional
Artigo 6 (1) em parte
desses recursos ou uma Parte que tenha adquirido os recur- brasileiro utilizar RG
sos genéticos em conformidade com a Convenção, a menos originados de outros países
que diferentemente determinado por aquela Parte.
Definir as medidas legais
Adotar medidas com vistas a assegurar que se obtenha o
quando um nacional
consentimento prévio informado ou a aprovação e a par-
brasileiro utilizar RG
ticipação das comunidades indígenas e locais para acesso Artigo 6 (2) em parte
detidos por comunida-
aos recursos genéticos quando essas tiverem o direito
des indígenas e locais
estabelecido de conceder acesso a esses recursos.
originados de outros países
Adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas
necessárias para estabelecer normas e procedimentos justos e
não arbitrários sobre o acesso a recursos genéticos e repartição
de benefícios para proporcionar segurança jurídica, clareza e Definir as medidas legais
transparência, inclusive para conceder decisão escrita clara e quando um nacional
Artigo 6 (3) em parte
transparente pela autoridade nacional competente, de maneira brasileiro utilizar RG
econômica e em um prazo razoável; determinar emissão, no originados de outros países
momento do acesso, de licença ou seu equivalente como compro-
vante da decisão de outorgar o consentimento prévio informado
e do estabelecimento de termos mutuamente acordados.
Adotar medidas com vistas a assegurar que o conheci-
Definir as medidas legais
mento tradicional associado a recursos genéticos detido por
quando um nacional brasi-
comunidades indígenas e locais seja acessado mediante o
Artigo 7 em parte leiro utilizar conhecimento
consentimento prévio informado ou a aprovação e partici-
tradicional associado (CTA)
pação dessas comunidades indígenas e locais, e que termos
originados de outros países
mutuamente acordados tenham sido estabelecidos.
O CONSENTIMENTO PRÉVIO E INFORMADO NO ACESSO AOS CONHECIMENTOS
TRADICIONAIS ASSOCIADOS: DESAFIOS APÓS A RETIFICAÇÃO DO PROTOCOLO DE NAGOIA | 201
Aírton Guilherme Berger Filho, Marieli Machado Bueno e Comerlato Possenti
Ocorre que a Lei 13.123/2015 foi publicada antes de o Protocolo de Nagoia entrar
em vigor no Brasil, cerca de cinco anos antes, o que cria uma lógica inversa. Isso porque é
a legislação brasileira que deve se adaptar ao protocolo internacional, e não o contrário.
Sendo assim, é possível perceber que a referida lei possui algumas incongruências com o
protocolo, que deveriam ser analisadas, uma vez que é ela quem regulamenta o disposto
no protocolo.
Outro ponto importante a mencionar como empecilho é que a lei não foi bem aceita
pela comunidade indígena, (PORRO, 2016, p.3), além de ferir alguns princípios do Pro-
tocolo de Nagoia. Essa manifestação encontra-se na Carta Aberta de Recomendações da
Sociedade Civil Brasileira na 13ª Conferência das partes da Convenção da Diversidade
Biológica e seus Protocolos, de 05 de novembro de 2016.
Na carta, afirma-se que a Lei afronta, inclusive, a “obrigação de não contrariar o
objeto e finalidade de um Tratado antes de sua entrada em vigor em violação direta ao
art. 18 da Convenção de Viena sobre o direito dos Tratados (Decreto 7030/2009)”. Isso
ocorre, segundo eles, porque “o Brasil assinou o Protocolo de Nagoya sobre acesso e
repartição de benefícios demonstrando sua clara intenção de se tornar Parte”, enquanto
a lei, que foi “elaborada e aprovada antes que o Brasil ratificasse o Protocolo” entabulou
normas “flexibilizantes à repartição justa e equitativa de benefícios para os detentores de
conhecimentos tradicionais contrariando o escopo e nível de proteção do Protocolo de
Nagoya sobre acesso e repartição de benefícios”.
Nesse sentido, percebe-se que o ideal seria a formulação da legislação, apenas após
202 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
CONCLUSÃO
Ademais, percebe-se pela tabela acima elaborada, que deve haver a observância de
diversos outros dispositivos, como o artigo 17, por exemplo, que fala das medidas que
devem ser adotadas pela legislação.
Nesse sentido, importante destacar que existem algumas inconsistências com a lei e
o protocolo que deveriam ser sanadas, principalmente para que exista segurança jurídica
e garantia dos direitos das comunidades locais e populações indígenas com estilos de
vida tradicionais.
Observa-se que apesar de o Brasil ter legislação sobre acesso ao patrimônio genético e
conhecimentos tradicionais associados, a Lei 13.123/2015 necessita de diversas alterações
para que se adeque ao disposto no Protocolo de Nagoia, principalmente para, tornar os
seus procedimentos relativos ao acesso, conhecimentos tradicionais associados, formas
de repartição e identificação de patrimônio genético, mais claros para garantir uma maior
segurança jurídica das partes envolvidas.
Destaca-se ainda, a necessidade de estudos científicos e do debate democrático par-
ticipativo para a definição e deliberação sobre quais as alterações e inovações legais exige
a ratificação do Brasil ao protocolo de Nagoia.
REFERÊNCIAS
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Comentários e recomendações para regulamentar o Protocolo de Nagoia no Brasil.
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_171_-_recomendacoes.regulamentar_protocolo_de_nagoia_1_0.pdf. Acesso em: 29
jun. 2021.
LIMA, João Emanuel Cordeiro. Protocolo de Nagoya: dez questões fundamentais para
entender esse acordo internacional. outubro de 2016. Disponível em: <http://www.
nascimentomourao.adv.br/artigos/24-10-2016-artigo-protocolo-de-nagoya.pdf>. Acesso
em: 15 de jun. de 2021.
INTRODUÇÃO
mais do que o existir em um território achado, doado, conquistado, apropriado e tido como um
lugar natural e social legítimo de existência de uma comunidade de ocupação, o que qualifica
uma comunidade tradicional é o fato de que ela se tornou legítima através de um trabalho cole-
tivo de socialização da natureza. Um trabalho sem interrupções realizado ao longo de gerações
ou, no limite, através da geração presente. Assim, um lugar natural – não raro lembrado como
selvagem, intratável, vazio e doentio – que “não era assim”, “ficou assim” através e ao longo de
um múltiplo e complexo modo rústico de trabalho (BRANDÃO, BORGES, 2014, p. 10).
Povos indígenas e tribais precisarão de atenção especial diante das ameaças trazidas pelas forças
de desenvolvimento econômico a seus modos de vida – modos de vida estes que podem oferecer
às sociedades modernas muitas lições de manejo de recursos em complexos ecossistemas de
floresta, montanha e zonas áridas. Alguns destes povos estão ameaçados de virtual extinção
por um desenvolvimento insensível e sobre o qual não possuem controle. Seus direitos tradi-
cionais devem ser reconhecidos e deve ser-lhes dada voz decisória na formulação de políticas
de desenvolvimento dos recursos em suas áreas.
competente para esse fim o CGEN - Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (BRA-
SIL, 2001) (MOREIRA; CONDE, 2017, p. 178).
Ademais, durante toda a sua vigência, a biopirataria tornou grandes proporções, ao
passo que as empresas corporativistas destilavam críticas à uma excessiva penalização e
sanções aos infratores e uma demasiada burocracia para o acesso ao patrimônio genético
e conhecimentos tradicionais associados.
O texto da referida Medida Provisória apresentava diversos pontos polêmicos que
chegaram a ser discutidos no egrégio Supremo Tribunal Federal por meio de duas Ações
Diretas de Inconstitucionalidades (ADI) (AMARANTE; RUIVO, 2017). As introduções
trazidas pela MP 2.186-1/2001 alteraram de modo substancial o acesso à diversidade
biológica no país, bem como alteraram a vivência das comunidades tradicionais que habi-
tavam tais áreas de interesses comerciais.
Para tal, surge em 2015 a Lei n° 13.123/2015 promovendo uma significativa
mudança no marco regulatório vigente até então, que dispunha acerca do acesso ao patri-
mônio genético, ao conhecimento tradicional associado e à repartição justa e equitativa dos
benefícios provenientes, excluindo um efetivo debate com as comunidades interessadas,
sendo totalmente contrária a um processo participativo.
A referida legislação vai surgir com a premissa de fomentar um desenvolvimento
sustentável no Brasil a partir da riqueza da biodiversidade e das comunidades tradicionais.
Entretanto, promove diversas violações aos direitos dos povos, sem legitimação social,
uma vez que se pautou em interesses contrários às comunidades tradicionais locais.
No decorrer da pesquisa científica, pretende-se analisar os impactos ou retrocessos
da Lei. As comunidades tradicionais supracitadas, embora busquem pelo reconhecimento
de seus direitos, são alvos corriqueiros de violações. Ademais, é consensual que o direito
ao meio ambiente e os direitos dos povos, por consequência do colonialismo interno e
colonialidade do poder, têm sido negligenciados e violados ao longo da história. O meio
ambiente é alvo de constantes violações em nome do progresso da sociedade com a mer-
cantilização da natureza e dos saberes tradicionais.
BIOPIRATARIA
Ainda ao longo do texto constitucional, seu artigo 255 assegura o direito ao meio
ambiente a todos e ressalta que compete ao poder público e à coletividade defendê-lo e
preservá-lo. Ainda no mesmo artigo, o inciso II expressa que o poder público deve “pre-
servar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético”, outrossim, o poder público tem
a responsabilidade de fiscalizar se tal atividade resultará ou não em risco ao meio ambiente.
A defesa do meio ambiente e a proteção ao patrimônio cultural são um dos mais
diversos deveres do Estado. A exploração desenfreada e sem controle tanto do patrimônio
ambiental quanto dos conhecimentos tradicionais demonstra clara violação aos direitos
humanos, indo contra ao princípio basilar que veda o retrocesso dos direitos além de
normas internacionais. Conhecido como efeito cliquet, o conceito designaria que uma
vez garantidas as conquistas sociais, estas não poderiam retroceder.
Adentrando a Lei n° 13.123/2015, é possível visualizar a regressão, principalmente
no que tange ao consentimento prévio, livre e informado, deixando, não só as comunidades
desamparadas bem como a sociobiodiversidade brasileira. Em complemento, Ana Paula
Rengel Gonçalves e Paula Galbiatti Silveira (2017) vão dizer:
Acerca dos efeitos gerados por essa prática inconsequente, o autor supracitado vai
afirmar:
além de atingir o meio ambiente pela prática ilegal do contrabando de diversas formas de
vida da flora e fauna, acarreta problemas socioeconômicos aos países pobres e, sobretudo,
às comunidades tradicionais e povos indígenas residentes em tais países, tendo em vista a
apropriação e monopolização por empresas multinacionais dos conhecimentos desenvolvi-
dos por tais populações, ao longo de séculos, no que se refere ao uso dos recursos naturais
(RAMMÊ, 2012, p. 38).
produzidos localmente.
O marco legal em pauta no referido trabalho é alvo de críticas no que tange a sua
premissa de proteger a biodiversidade da problemática da biopirataria. A sua antecessora, a
Medida Provisória n. 2.186/2001 foi pautada pela incapacidade de combater diretamente
tal afronta aos direitos socioambientais.
Diversos setores industriais, o próprio agronegócio e setores científicos queixavam-se
da excessiva burocratização e das sanções impostas. Nesse ínterim de insatisfação, surge
em 24 de junho de 2014, pelo Poder Executivo, um projeto de lei que culminaria na
publicação da Lei n. 13.123/2015, cujo trâmite se deu em regime de urgência.
Por sua vez, a Lei n. 13.123/2015 desburocratiza cada vez mais o acesso a tal patri-
mônio. A participação das comunidades diretamente afetadas pela exploração da biodi-
versidade é questionada. O acesso ao patrimônio genético se desvanecia da necessidade
de prévia autorização, somente se necessita de um cadastro eletrônico no SISgen (artigo
12 Lei n.º 13.123/15).
De modo geral, para a atividade de acesso, basta que o usuário, físico ou jurídico,
se cadastre no SISgen, demonstre a área a ser explorada, a autorização da União, e uma
notificação do produto a ser advindo da exploração econômica, além de um documento
declaratório onde este alega cumprir todos os requisitos dispostos em lei.
Nesse contexto, a lei dispõe para que ocorra a exploração econômica haja obtenção
do consentimento prévio e informado e da apresentação do acordo de repartição de bene-
fícios, como forma de garantias dos povos e comunidades. Entretanto, a forma como tal
consentimento é obtido vai ser discorrido nos tópicos subsequentes.
Esta leitura “minoritária” é construída sobre a presença ocluída, parcial, da ideia de comu-
nidade que ronda ou duplica o conceito de sociedade civil, levando “uma vida subterrânea,
potencialmente subversiva no seu interior, porque se recusa a “ir-se”.
[...]
A comunidade perturba a grande narrativa globalizadora do capital, desloca a ênfase dada a
produção na coletividade “de classe” e rompe a homogeneidade da comunidade imaginada
da nação (BHABHA, 1998, p. 316).
Homni Bhaba (1998) ainda vai explicar que as comunidades, no geral, não são
alvos de políticas e estratégias de representação, onde grupos minoritários são objetos de
subversão do mercado globalizado. Sua presença no mundo atual é vista como um impasse
para os modos de exploração. Do mesmo modo, promover uma análise que inclua os
povos minoritários se faz de suma importância na sociedade atual.
Ademais, o reconhecimento da identidade cultural de um povo subalternizado é
um fator decisivo para a plena garantia de seus direitos. Para Bhabha (1998) “a luta se
dá frequentemente entre o tempo e a narrativa historicistas, teleológicos ou míticos, do
tradicionalismo e o tempo deslizante, estrategicamente deslocado, da articulação de uma
política histórica de negociação”.
[...] de acordo com esse ponto de vista, aqueles que, devido à pobreza, se vêem sistematica-
mente impedidos de usufruírem ao máximo dos seus direitos de cidadania têm sido relegados
para um estatuto de segunda categoria e necessitam de uma ação de compensação através da
igualdade (TAYLOR, 1994, p. 67).
tem como objetivo empoderar povos e comunidades tradicionais para dialogar com qualquer
agente externo de modo igualitário, fortalecendo o entendimento da comunidade dos seus
direitos e deveres e estabelecendo a importância da conservação da biodiversidade e de seu
uso sustentável (REDE GTA, 2015).
tradicionais, juntamente com outros povos, são alvos constantes de violações. A cons-
trução dos protocolos ainda é incipiente no território brasileiro, existem, apenas, quatro
protocolos do gênero no Brasil, comunidades tradicionais do Bailique, das Raizeiras do
Cerrado, do Riozinho do Anfrísio e Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônea.
Ambos serão abordados nos tópicos a seguir.
A comunidade dos Ashaninka é formada por, cerca de, 800 habitantes distribuídos
ao longo da Terra Indígena Kampa do Rio Amonea, no município Marechal Thaumaturgo,
situado no estado do Acre. A presença de tais povos na região é datada do século XIX,
em virtude da utilização destes como mão-de-obra para exploração dos recursos naturais.
Já na década de 80, o território sofreu uma invasão de madeireiros com maquinários
de grande escala causando diversos danos ao território. Ainda nesse período, foram incluí-
dos alguns gados no território como atividade econômica, contudo as comunidades com-
preenderam que tal atividade não era apropriada para a proteção do território e tradições.
Os Ashaninka decidiram elaborar o protocolo com o objetivo de construir diálogos
218 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
e parcerias através do conhecimento que tais comunidades possuem sobre a floresta devido
às suas culturas. O documento busca transparecer como seus serviços ambientais são
importantes para o planeta e como a reprodução cultural de seus ancestrais acarreta em
benefícios ao meio ambiente.
A Lei n°13.123 de 2015 surgiu como um novo marco legal acerca do acesso ao
patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado
e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade.
Ela possui como objeto a regulamentação de artigos da Constituição Federal de 1988 e
da Convenção sobre a Diversidade Biológica promulgada em 1998. Revogou a Medida
Provisória n° 2.186-16 que dispôs sobre a matéria por 15 anos.
A legislação surgiu com a premissa de ser uma resposta para as questões de desen-
volvimento sustentável, a partir da exploração sensata da biodiversidade e dos conheci-
mentos tradicionais. Em seu art. 2º vai definir os termos abrangentes da lei, tais como
patrimônio genético, conhecimento tradicional, protocolo comunitário, comunidade
tradicional, dentre outros.
Entretanto, desde a tramitação do processo legislativo em regime de urgência e com
sua promulgação, a lei foi alvo de diversas críticas, onde se nota um grave retrocesso aos
direitos socioambientais, além de fomentar uma exploração contrária ao desenvolvimento
sustentável, com uma regulação incipiente acerca do acesso ao patrimônio genético e
conhecimento tradicional associado no país (MAGARIO, 2015, p. 9 e 10).
Sheilla Borges Dourado (2017, p. 92) afirma que a lei feriu diversos mecanismos de
proteção ambiental, além de diversas normas de proteção aos direitos humanos, onde a
aplicação de normas sob o caráter jus cogens, se torna efetivamente necessária, o que não
ocorreu com a lei em questão. A autora ainda complementa:
Sob esse entendimento, a Convenção 169 da OIT, enquanto tratado internacional de direitos
humanos, compõe esse conjunto de normas qualificadas como jus cogens. Sob esse prisma, a
inobservância da Convenção 169 na elaboração da Lei n.º 13.123/2015 torna a validade desta
lei questionável perante o sistema internacional de direitos humanos, passível de se tornar
objeto de controle de convencionalidade. (MAZZUOLI, 2011 apud DOURADO, 2017).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n.º 13.123, de 20 de maio de 2015. Presidência da República. Casa Civil.
Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 2015. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13123.htm>. Acesso em 07 de maio de
2021
BHABHA, Homni. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 1998. 395 p.
Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Glaucia Renate Gonçalves.
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à Consulta Prévia no Processo de Elaboração. In: MOREIRA, Eliane Cristina Pinto;
PORRO, Noemi Miyasaka; SILVA, Liana Amin Lima da. A “nova” lei n° 13.123/2015
no velho marco legal da biodiversidade: entre retrocessos e violações de direitos socioam-
bientais. São Paulo: Instituto O Direito Por Um Planeta Verde, 2017. p. 117-125.
SILVA, Liana Lima Amin da. Sujeitos da Convenção n. 169 da Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT) e o Direito à Consulta e ao Consentimento Livre, Prévio e
Esclarecido (CCPLI). In: SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de; SILVA, Liana
Amin Lima da; OLIVEIRA, Rodrigo; MOTOKI, Carolina. Protocolos de Consulta
Prévia e o Direito à Livre Determinação. São Paulo: Rosa Luxemburgo, CEPEDIS,
2019. p. 47-107.
INTRODUÇÃO
Foi numa reunião de um grupo de pessoas atingidas que ouvi pela primeira vez que
no âmbito do processo de reparação pela Vale em Brumadinho faltava uma “ética”, um “cui-
dado” no trato da mineradora com as pessoas atingidas. Segundo Raimundo2: “[...] Acho
que a empresa deveria agir com uma ética em relação a nós, atingidos. Eles simplesmente
entram na nossa cidade, reviram tudo, agem de forma violenta”3. Raimundo é psicólogo e
atuou voluntariamente quando do rompimento da barragem e tem participação política
ativa na comunidade. Seu relato sobre a ética na reparação é compartilhado também pelo
Relator da Organização das Nações Unidas (ONU) Baskut Tunkak, que afirmou após
sua visita ao Brasil para investigar os processos de remediação e reparação em curso: “Após
os desastres de Mariana e Brumadinho, nenhum executivo corporativo da Vale, BHP ou
Samarco foi condenado por conduta criminosa, uma farsa de justiça sugerindo que alguns
no Brasil estão de fato acima da lei” (ANGELO, 2020).
A ideia de Raimundo, endossada pelo enviado da ONU, de que a reparação e a
remediação deveriam ser atravessadas por uma ética, também é compartilhada pelas Ins-
tituições de Justiça (IJ)4 com atuação no caso rio Doce, em que tem sido proposta uma
Abordagem Baseada em Direitos Humanos para a Resposta e a Reconstrução (ABDH)5.
Esta determina um conjunto de medidas necessárias a um processo reparatório balizado
pelos direitos humanos. Ao indagar, portanto, sobre como concretizar a ética reivindicada
pelas pessoas atingidas, encontrei6 nesta sistematização das normas de direitos humanos
sobre desastres um aporte fundamental, ao qual proponho: seja qualificado pelos pro-
tocolos locais de consulta prévia, livre e informada, cuja previsão encontra respaldo na
Convenção nº 169 da OIT7.
1 Mestrando, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, na Área de Estudos: Antropologia do direito, interlegalidades
e sensibilidades jurídicas. Correio eletrônico: leocustodiomg@gmail.com
2 Nome fictício adotado para proteger a identidade do interlocutor.
3 Relato compartilhado em um “grupo de atingidos” promovido pela AEDAS (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social),
organização que atua como assessoria técnica independente das pessoas atingidas pelo desastre da Vale S/A, em Brumadinho, Minas Gerais,
e na qual trabalhei como mobilizador social entre junho e outubro de 2020. Maiores detalhes sobre a AEDAS serão trabalhados no item
sobre o Protocolo dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa de Matriz Africana (PCTRAMA).
4 Neste trabalho a expressão Instituições de Justiça (IJ) define os seguintes órgãos: Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública
da União (DPU), Defensorias Públicas dos Estados de Minas Gerais (DPMG) e Espírito Santo (DPES) e Ministério Público de Minas
Gerais (MPMG).
5 A ABDH foi elaborada pela Fundação Getulio Vargas (FGV, 2019) definida pelo instrumento TACGOV (IBAMA, 2018) como Expert
do MPF para o diagnóstico dos danos socioeconômicos no caso do desastre no rio Doce. No item sobre o protocolo Krenak haverá um
aprofundamento sobre o desastre no rio Doce.
6 Sou pesquisador do Centro de Direitos Humanos e Empresas da FGV, um dos órgãos desta instituição responsáveis pelo Projeto Rio
Doce, que desenvolve o diagnóstico dos danos socioeconômicos.
7 O Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada (PCPLI) é um documento respaldado juridicamente pela Convenção n. 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT). Sua adoção internacional ocorreu em 1989, tendo o texto sido aprovado pelo Parlamento
226 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
do Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, tendo sido promulgado pela Presidência da República em 19
de abril de 2004 mediante o Decreto 5.051. Em 05 de novembro de 2019 foi objeto de consolidação legislativa junto com todas as demais
convenções da OIT, as quais figuram enquanto anexo do Decreto nº 10.088 (BRASIL, 2019).
8 Os POs foram endossados pela Assembleia Geral da ONU em 2011, por meio da Resolução nº 17/4 de 16 de junho de 2011 (ONU, 2016).
9 Para detalhes sobre os núcleos proteger e respeitar, remete-se o leitor para a publicação oficial dos POs no Brasil realizada pelo Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH, 202?).
LUANA CAROLINE ROCHA DA SILVA, GABRIELLE RIOS RODRIGUES E LIANA AMIN LIMA DA SILVA | 227
Leonardo Custódio da Silva Júnior
tribais, nos mais diversos âmbitos. O texto está dividido em dez partes: Política Geral;
Terras; Contratação e Condições de Emprego; Indústrias Rurais; Seguridade Social e
Saúde; Educação e Meios de Comunicação; Contatos e Cooperação Através de Fronteiras;
Administração; Disposições Gerais; e Disposições Finais.
No Artigo Primeiro, a norma cuida de definir a quem está endereçada, abrangendo
povos tribais de países independentes, cujos costumes e tradições apresentem distinção
em face de outros setores da coletividade nacional; e também aos povos indígenas. Ainda
neste dispositivo, no inciso segundo, estabelece o critério da autodeterminação como
possibilidade para a aplicação da norma.
Cabe ressaltar que no caso dos povos e comunidades tradicionais, estão amparados
pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tra-
dicionais, instituída pelo Decreto n. 6.040, de 07 de fevereiro de 2007 (BRASIL, 2007).
Nesta norma, está definido pelo Artigo Terceiro o conceito legal de povos e comunidades
tradicionais, bem como aquele que define os territórios, colacionados abaixo:
Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz
respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças,
instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma
forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico,
social e cultural.
Os governos deverão zelar para que, sempre que for possíve1, sejam efetuados estudos junto
aos povos interessados com o objetivo de se avaliar a incidência social, espiritual e cultural e
sobre o meio ambiente que as atividades de desenvolvimento, previstas, possam ter sobre esses
povos. Os resultados desses estudos deverão ser considerados como critérios fundamentais
para a execução das atividades mencionadas.
informada consistiram na “saída jurídica apontada pelos povos” (SILVA, 2017, p. 241).
De acordo com o entendimento da autora, o protocolo, trata-se de:
[...] um instrumento em que as comunidades expressam sua voz e seu direito próprio, como
exercício da jusdiversidade e da autodeterminação. Os protocolos próprios contêm as regras
mínimas e fundamentais que os povos estabelecem e exteriorizam para a sociedade envolvente
e para o Estado, apontando como se respeitar o direito próprio, suas jurisdições próprias e
formas de organização social em um processo de consulta prévia. (SILVA, 2017, p. 243).
institutos de direitos humanos, podendo ser lidos como complementares a uma aborda-
gem baseada em direitos humanos, conforme exposto no capítulo primeiro deste trabalho.
PROTOCOLO KRENAK
(...) o nome Aimorés pelo qual essa nação foi denominada até meados do século passado deve
derivar do Tupi Goyai-mura, ou seja, “inimigos que vagueiam”. Não precisamos esclarecer em
maiores detalhes como foi possível associar esse nome aos Aimarás da Bolívia. A denomina-
ção Botocudos, mais recente, é derivada indubitavelmente do português botoque (rolha de
tonel) e se refere aos discos de madeira que esses selvagens usavam nos lábios e nos lóbulos
das orelhas. (EHRENICH, 1887, p. 47)
Alguns dos etnômios dos subgrupos Botocudo comuns na historiografia são Giporok, Joaíma,
10 Para uma análise detalhadas dos processos de resistência empreendidos pelo povo Krenak remete-se o leitor para MOREIRA, 2019.
234 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Naknenuk, Aranã e Pojichá - este último tem sub-designações como Khrenhé e Krekmum.
Os Krekmum eram o povo mais temido de todos os Botocudos, uma dissensão deste grupo
no fim do século XIX originou um novo subgrupo: os Krenak. Sendo assim, Krenak - nome
pelo qual os Borum são atualmente conhecidos pela sociedade nacional - é a denominação
de um dos subgrupos que compõem o grupo de Borum que hoje vive à Beira do Rio Doce
(ARANTES, 2006, p. 11).
11 Não cabe aqui detalhar profundamente todos os desdobramentos relacionados à reparação, cujo processo descortinou novos
danos e colocou os povos indígenas em novas situações de vulnerabilidade. Por conta da limitação relacionada ao escopo deste
artigo, remeto o leitor: Para um detalhamento sobre o processo de privatização da reparação integral veja MILANEZ, SANTOS,
LUANA CAROLINE ROCHA DA SILVA, GABRIELLE RIOS RODRIGUES E LIANA AMIN LIMA DA SILVA | 235
Leonardo Custódio da Silva Júnior
Não poderão ser feitas reuniões de aldeia em aldeia a respeito de assunto que diz respeito a
todo o povo Krenak. Assim, também, não poderão ser consultadas lideranças de cada uma
das aldeias individualmente. Nenhuma liderança Krenak pode falar em nome de todo o nosso
povo (KRENAK, 2017).
PROTOCOLO PCTRAMA
Cerca de quatro anos após o desastre que atingiu o rio Doce, o vale do rio Paraopeba
sofreu com os danos causados pelo rompimento da Barragem I da mina Córrego do Fei-
jão, de propriedade da Vale S. A. Foram mortas 272 (duzentas e setenta e duas) pessoas,
tendo havido 11 (onze) desaparecidas até o momento de encerramento deste texto, em
30 de junho de 2021.
O desastre atingiu cerca de 19 (dezenove) municípios ao longo do curso do
Paraopeba. Na sequência de sua ocorrência, foi ajuizada Ação Civil Pública (ACP) pelo
Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) perante a 6ª Vara da Fazenda
Pública Estadual e Autarquias de Belo Horizonte. Além das medidas de resposta imediata
ao desastre, como fornecimento de água, abrigo e garantia de buscas das vítimas, o MPMG
estruturou as bases da reparação integral, que previu a contratação de Assessoria Técnica
Independente (ATI) para as comunidades atingidas (MPMG, 2019).
Os municípios foram agrupados em cinco regiões, e por meio de edital público, que
contou com processo de participação das comunidades, foi definido o escopo de trabalho
e foi feita a escolha das instituições.
Na Região 1, formada pelo município de Brumadinho, foi escolhida a Associação
Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS), que também foi eleita pelas comuni-
dades atingidas da Região 2, que envolve os municípios de Betim, Mário Campos, São
Joaquim de Bicas, Juatuba e Igarapé. O Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas
por Barragens (NACAB) foi escolhido para prestar assessoria técnica independente à
população atingida nos municípios de Esmeraldas, Florestal, Pará de Minas, São José da
Varginha, Fortuna de Minas, Papagaios, Maravilhas, Paraopeba, Pequi e Caetanópolis.
LUANA CAROLINE ROCHA DA SILVA, GABRIELLE RIOS RODRIGUES E LIANA AMIN LIMA DA SILVA | 237
Leonardo Custódio da Silva Júnior
uma foto de Tata Nindengue intitula-se como “Arranjo de flores para o dia da saída do
presente para o rio”.
O documento estrutura-se em quatro partes ( i ) Introdução; ( ii ) Quem somos; (
iii ) Como devemos ser consultados; ( iv ) Por que necessitamos de reparação integral.
De abertura, a Introdução reafirma o conteúdo dos Arts. 215 e 216 da Constituição
da República Federativa do Brasil (CRFB), a Política Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais, a Convenção nº 169 da OIT e o princípio da autoidentificação. Também
apresenta o conceito de autoidentificação (PCTRAMA, 2020, p. 06). Ao conceito de
consulta prévia, livre e informada é juntada a ideia da “boa fé”, qualificada da seguinte
forma: “quando a instituição não esconde informações, é honesta sobre os impactos e os
perigos do projeto dentro das comunidades” (PCTRAMA, 2020, p. 07). Nota-se a preo-
cupação com os impactos, inclusive na própria definição do que seria um protocolo: “É
um conjunto de regras feitas pelo próprio Povo ou Comunidade e que devem ser seguidas
pelo Estado ou demais organizações quando forem apresentar um projeto que impacta a
comunidade” (PCTRAMA, 2020, p. 07).
Na sessão Quem Somos? o documento se divide em perguntas geradoras, ganhando
destaque além da reafirmação da identidade tradicional, também a identidade destas
comunidades enquanto atingidas, cuja resposta foi assim apresentada: “Somos Povos e
Comunidades Tradicionais e os nossos danos estão para além dos materiais, são princi-
palmente espirituais” (PCTRAMA, 2020, p. 10).
Está delimitado um objetivo para o Protocolo de Consulta, relacionado ao processo
de aferição dos danos:
O objetivo desse Protocolo de Consulta é informar para a AEDAS como atender as espe-
cificidades dos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana
no seu trabalho como Assessoria Técnica Independente. Esse protocolo deve ser respeitado,
especialmente pela AEDAS, mas também pelos Povos e Comunidades de Tradição Religiosa
Ancestral de Matriz Africana (PCTRAMA, 2020, p. 11).
O documento contrasta com aquele produzido pelo povo Krenak, em que o proto-
colo abrange outros assuntos e tópicos, para além da reparação, senão, vejamos:
Nós, o povo Krenak, devemos ser consultados sobre todos os assuntos relacionados à nossa
cultura e ao nosso território, abrangendo tudo aquilo que envolve a nossa vida e que possa
vir a interferir nela.
Além disso, nós também devemos ser escutados e consultados a respeito dos assuntos rela-
cionados às políticas indígenas de maneira mais ampla, já que direta ou indiretamente essas
questões têm impacto sobre nós. (KRENAK, 2017)
“‘O rio é um fundamento, com tudo aquilo que o rio tem, com a vida que está nas águas, nas
suas margens’ Ogan João Pio” (PCTRAMA, 2020, p. 17).
“‘Temos uma relação visceral com o rio e todo o seu entorno. A nossa tradição e a nossa reli-
gião possuem saberes e fazeres que preservam esse bem material e imaterial que é o rio. O rio
nos alimenta e nós também o realimentamos. Ele é a cultura viva de nossa territorialidade e,
juntos, nos retroalimentamos. Há portanto uma simbiose! Trabalhamos e vivemos para esse
universo simbólico que é expressão de nossa cultura territorial’ Babá Edvaldo” (PCTRAMA,
2020, p. 17).
240 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
12 Trata-se de conceito emprestado da tese de Fernanda Monteiro (2019), que foi desenvolvido por ela a partir da obra de Robert Moraes
e Raimundo Faoro. A territorialização constitui elemento central na história de formação das sociedades na América Latina. Está associada
LUANA CAROLINE ROCHA DA SILVA, GABRIELLE RIOS RODRIGUES E LIANA AMIN LIMA DA SILVA | 243
Leonardo Custódio da Silva Júnior
os quais, o protocolo de consulta prévia, livre e informada, o qual pode ser compatibili-
zado com outras normas cumprindo o propósito de qualificar a remediação e a reparação
integral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
historicamente à colonização do espaço brasileiro, a qual se deu por meio de mecanismos jurídicos de titulação na forma de sesmarias
distribuídas aos proprietários com capacidade jurídica e econômica para escravizar pessoas negras e indígenas, e defender os espaços
dominados. Em suma, a territorialização trata-se de movimento histórico de conquista do espaço dos povos originários, sua subjugação
e transformação a serviço do acúmulo de capital por meio da exportação operada pela metrópole colonizadora, e da produção de víveres
para as regiões de mineração.
244 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
REFERÊNCIAS
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LUANA CAROLINE ROCHA DA SILVA, GABRIELLE RIOS RODRIGUES E LIANA AMIN LIMA DA SILVA | 247
Leonardo Custódio da Silva Júnior
INTRODUÇÃO
1 Caiçara, Cientista Social, Educadora Popular, atua em projetos e estudos sobre tradição, fortalecimento feminino e conservação
ambiental. Moradora da Comunidade da Enseada da Baleia, Ilha do Cardoso, Cananeia/SP, integra também o grupo das Mulheres Artesãs
da Enseada da Baleia (MAE); email: tatyana_jp@yahoo.com.br
2 Defensor Público do Estado de São Paulo, Mestre em Direito Socioambiental pela PUCPR e Doutorando em Direito Agrário pela
Universidade Federal de Goiás; email: toshiohayama@gmail.com
3 No sentido de que as lutas e resistências das comunidades tradicionais sempre existiram, mesmo que invisíveis e desconhecidas, porque
há, como explica Ailton Krenak, uma espécie de guerra permanente contra esses grupos, vale a advertência de GUEDES, 2016, p. 32: “Pelo
recurso à ideia de ‘desterritorialização’, a possibilidade da existência de uma memória relativa a tais processos de expropriação, assim como
de modalidades ‘populares’ e ‘pré-políticas’ de resistência a eles é quase automaticamente descartada. O próprio analista, por outro lado,
aparece como alguém pertencente ao mesmo mundo ‘moderno’ do qual se originam as ameaças atuais, alguém particularmente capaz não
só de compreendê-las como também de conhecer as formas adequadas de resistir a elas. Será que poderíamos identificar aí as raízes de certo
paternalismo pedagógico de militantes e cientistas sociais que, muitas vezes com a melhor das intenções, legitimam suas próprias ações
pela necessidade de ‘formar’ e ‘informar’ o ‘povo’ sobre o significado das forças e dos processos que lhe são ameaçadores e supostamente
desconhecidos?”
4 Conferir em http://observatorio.direitosocioambiental.org/protocolo-de-consulta-da-comunidade-caicara-da-enseada-da-baleia/.
Acesso em 28 de maio de 2021.
250 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
representando também a comunidade nos diversos espaços dos quais participa, como o
Coletivo de Comunidades Caiçaras da Ilha do Cardoso, o Fórum dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais do Vale do Ribeira e a Coordenação Nacional de Comunidades
Tradicionais Caiçaras.
O co-autor, Andrew Toshio Hayama, acompanha a Enseada da Baleia, como Defen-
sor Público, desde 2015, colaborando na formalização da Associação, ingressando em 2016
com Ação Civil Pública para reparação por danos socioambientais causados por ação do
município de Ilha Comprida e participando ativamente da ampla e complexa articula-
ção que viabilizou, no ano de 2017, o exercício do direito de realocação da comunidade
para outra área no interior do Parque Estadual da Ilha do Cardoso. Por fim, assessorou
a Enseada da Baleia no processo de elaboração do Protocolo Comunitário, objeto de
exame neste escrito.
A partir das experiências e vivências do/a autor/a, o artigo pretende resgatar e contar
a história, a trajetória e os resultados desse processo, por meio do registro da memória e dos
relatos orais dos membros da Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia, ou seja, a partir
das vozes das próprias protagonistas, pautado também, com relação ao procedimento de
investigação, na metodologia da pesquisa-ação participante.
Conforme as lições de Fals Borda, a medotologia de investigação-ação participante
propõe a superação das escolas funcionalistas/positivistas pretensamente neutras e obje-
tivas que tentam reproduzir os métodos das ciências exatas e naturais, pontuando a cons-
trução de investigação baseada: 1) na especificidade da metodologia nas ciências sociais
e valorização dos dados qualitativos, não somente quantitativos; 2) no rigor científico e
critério de validade fundados em formas comparativas de indução e dedução e submetidos
às consequências práticas da ação; 3) na construção conjunta e horizontal com os sujeitos
envolvidos de métodos e técnicas a partir de necessidades e interesses coletivos; 4) no
compromisso ético e político do/a investigador/a como observador/a participante; 5) no
respeito ao saber popular e na preocupação com a linguagem e comunicação (BORDA,
2015, p. 326-329).
Para a elaboração da escrita e compreensão aprofundada dos temas abordados,
recorrer-se-á à seleção bibliográfica de pesquisas promovidas na Ilha do Cardoso e na
Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia e de trabalhos sobre o Direito de Consulta
e Consentimento Livre, Prévio e Informado (DCCLPI) e o fenômeno dos Protocolos
Comunitários.
Um primeiro aspecto que chama a nossa atenção, nessa drástica passagem do “tempo da
fartura do sítio” para o “tempo da perseguição” é a desarticulação de relações sociais que se
constituíam em reciprocidade e em solidariedade. Sem o trabalho agrícola, já não havia mais os
mutirões e nem a alegria do fandango. Conseqüentemente, as relações de território, parentesco
e vizinhança perderam o significado de antes. Afinal, o que é a terra para um lavrador que não
pode cultivá-la? Essa desarticulação da rede de relações sociais que recobria a área da ilha e
entornos, traduziu-se em desunião: “por que o meu vizinho pode fazer roça, se eu não posso?”;
“por que o meu vizinho pode tirar madeira para fazer canoa, se eu não posso?”; por que meu
vizinho pode matar uma caça, se eu não posso?” Onde antes havia a obrigação de “dar, receber,
retribuir”, passou a haver uma enxurrada de denúncias, as quais atraíam a presença constante
do guarda florestal, e resultavam em inúmeras multas por atos infracionais que abrangiam
todas as suas atividades cotidianas. Mesmo quando não há violência explícita, proibir o cultivo
da terra de onde a família obtém o sustento há várias gerações, já se constitui em violência. E
também em triste ironia, quando é preciso trabalhar escondido. Entre populações tradicionais,
existe uma ética do trabalho. Obtivemos depoimentos nos quais as pessoas se orgulham de
pais muito trabalhadores, que saíam para suas roças antes do nascer do sol, e voltavam à casa
após o pôr do sol (CARVALHO; SCHMITT, 2012, p. 226).
Os números falam por si. O estudo de Jessica de Lima Silva estima a existência de 27
252 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
sítios e 500 famílias tradicionais antes da criação do PEIC, restando hoje nos territórios
por volta de 100 famílias caiçaras (SILVA, 2014, p. 88-94). O Relatório Antropológico
encomendado pela Fundação Florestal para a revisão do Plano de Manejo do PEIC, por
sua vez, retrata situação ainda mais alarmante, identificando 46 sítios e comunidades na
Ilha do Cardoso desde o período colonial até 1960, quando o Parque Estadual foi imposto
(CARVALHO; SCHMITT, 2012, p. 33), reduzidos, hoje, a apenas 08 comunidades
caiçaras, 01 indígena e outros poucos sítios isolados e em vias de desaparecimento.
Em função de uma racionalidade estatal racista que ignora e exclui formas diferentes
de existência e relação com a natureza, tornou-se inviável a reprodução e continuidade do
modo de vida caiçara em sua plenitude, o que acarretou e ainda provoca processos diretos
e indiretos de expulsão e migração territorial. A vedação da agricultura tradicional foi
a medida mais impactante ao modo de vida caiçara, motivo determinante para o exílio
de caiçaras da Ilha do Cardoso para a área urbana de Cananeia e periferias das cidades
desestruturadas do Vale do Ribeira (HAYAMA; CARDOSO, 2018, p. 622).
As Comunidades da Ilha do Cardoso que permaneceram e resistiram, totalizando
hoje 08 territórios caiçaras (CARDOSO et al., 2019, p. 143), obtiveram conquistas
especialmente na década de 1990, com a elaboração de Plano de Manejo participativo que
reconheceu oficialmente a existência caiçara na Ilha do Cardoso e incorporou algumas
reivindicações comunitárias (CARDOSO et al., 2019, p. 148).
Apesar de alguns avanços, no sentido do reconhecimento de direitos territoriais e de
parcela de autogoverno comunitário, agora a Comunidade da Enseada da Baleia e todas as
comunidades tradicionais do estado de São Paulo com territórios tradicionais superpostos
por Unidades de Conservação estão ameaçadas pela Lei Estadual nº 16.260/2016, que
autoriza a entrega desses espaços ambientalmente protegidos à iniciativa privada para a
exploração de turismo empresarial de massa (HAYAMA, 2018, p. 113-120).
Além dos riscos ambientais e aos ecossistemas, a medida ameaça o turismo comu-
nitário, hoje a principal fonte de renda da maior parte das comunidades caiçaras da Ilha
do Cardoso. A Enseada da Baleia, particularmente, desenvolve um exitoso e respeitado
turismo comunitário sustentável protagonizado e administrado por mulheres.
Na Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia, vivem hoje 09 famílias. O nome da
comunidade tem relação com as frequentes e históricas aparições de baleias, tratando-se
de rota de migração do animal (ARAKAKI, 2010, p. 2). O modo de vida comunitário
integra e se adapta às condições ecossistêmicas oferecidas pela natureza, consistente em
atividades como a agricultura itinerante, a pesca artesanal, a secagem de peixe ao sol (que
é o método utilizado para a conservação do pescado), o extrativismo e o turismo de base
comunitária.
PROTOCOLO DE CONSULTA AUTÔNOMO DA COMUNIDADE CAIÇARA
DA ENSEADA DA BALEIA: OS LÍRIOS NÃO NASCEM DA LEI | 253
Tatiana Mendonça Cardoso e Andrew Toshio Hayama
Na visão poética de Erci e Malaquias,5 casal do qual descendem todas as famílias que
hoje vivem na Enseada, “os filhos de uma mesma árvore formaram suas raízes com seus
filhos, netos e bisnetos”. A cada criança que nascia, uma árvore era plantada, como conta
Tatiana Mendonça Cardoso, neta de Erci e Malaquias, no belo e melancólico documen-
tário “Vazantes”, que retratou uma fase delicada da Enseada da Baleia e foi produzido, no
ano de 2009, por Fulô Filmes.6 Isso tudo diz muito a respeito das relações de parentesco,
do vínculo territorial e da integração com a natureza na cosmovisão comunitária.
No cotidiano de uma comunidade caiçara, onde a vida é simples e livre, dependente
apenas das condições ecossistêmicas e climáticas, a lua, o vento e a maré orientam o dia
do pescador, a época certa do plantio e a extração de materiais da floresta. E assim a
comunidade gostaria de continuar vivendo. Contudo, as pressões externas e as ameaças ao
território tradicional e ao modo de vida caiçara exigiram o desenvolvimento de novas habi-
lidades políticas e de articulação coletiva intercomunitária para além da Ilha do Cardoso.
Aos poucos, a Enseada da Baleia foi tomando conhecimento dos riscos representa-
dos, por exemplo, pelo modelo de pesca industrial, bem como da violência que sofriam
em razão da elaboração e execução de legislações e políticas públicas impostas de forma
autoritária e sem qualquer consulta a comunidades tradicionais afetadas.
Uma das principais preocupações da Enseada da Baleia era o processo de erosão na
Ilha do Cardoso que comprometia a integridade do território, tratando-se de fenômeno
persistente, mas lento e gradual. Malaquias, desde a década de 1960, já havia identificado o
processo erosivo e estimava que o mar avançava em média 01 metro por ano. A percepção
de Malaquias foi confirmada em 2010, quando monitoramento sistemático e periódico
passou a ser realizado pelo Instituto Geológico.
Para Malaquias e as pessoas mais velhas da comunidade, a erosão é causada por uma
intervenção humana na natureza, a partir da abertura do Canal do Varadouro (entre os
estados do Paraná e de São Paulo) que ocorreu na década de 1950, motivada por interesses
de comerciantes em escoar os produtos da região com mais agilidade e facilidade. Todavia,
a abertura desse Canal, que transformou o Superagui em uma ilha artificial, provocou
aumento na vazão de águas que vem alterando a geografia de várias comunidades, como
a Vila de Ararapira, e que acabou afetando também a Ilha do Cardoso.
O Ministério Público Estadual instaurou no ano de 2008 Inquérito Civil Público
para monitorar a situação. Para acompanhar o processo erosivo, Portaria da Fundação
Florestal instituiu, em março de 2013, Grupo de Trabalho para elaboração de Plano de
5 A respeito do casal, HAYAMA; CARDOSO, 2018, p. 625: “A origem e formação do núcleo comunitário da Enseada da Baleia remete à
figura do Senhor Antonio Cardoso, mais conhecido como Malaquias, apelido que ganhou em razão do sobrenome de sua mulher, Senhora
Erci Antonia Malaquias Cardoso. Ambos cresceram na Enseada da Baleia, ocupada pelo casal Antonio Valeriano Martins e Ernestina
Malaquias Martins, que fundaram a vila e se tornaram responsáveis por cuidar deles”. Malaquias faleceu no ano de 2010 e Erci no ano de 2017.
6 Conferir em: <https://vimeo.com/29681001>. Acesso em 18 de junho de 2021.
254 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
Trabalho das áreas da Enseada da Baleia, Vila Rápida e Pontal do Leste, comunidades
sobrepostas pelo Parque Estadual da Ilha do Cardoso.
A Comunidade Caiçara da Enseada da Baleia, assessorada pela Defensoria Pública
do Estado de São Paulo e com o aval do órgão gestor da Ilha do Cardoso, identificou área
no interior do Parque adequada à realocação, denominada Nova Enseada. Em Relatório de
Vistoria, produzido em novembro de 2016 por solicitação da Defensoria Pública, equipe
interdisciplinar do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em Áreas
Úmidas do Brasil (NUPAUB/USP) avaliou o território da Nova Enseada, sob os aspectos
antropológicos, ambientais e de segurança geológica diante do processo erosivo na Ilha do
Cardoso, concluindo que a área escolhida pela comunidade oferece segurança geológica,
reduzido impacto ambiental e adequação socioeconômica e cultural (NUPAUB, 2016).
O estudo subsidiou intervenção da Defensoria Pública em face do estado de São
Paulo, que no início resistiu em autorizar a realocação da Enseada para a área escolhida
pela comunidade no interior da Ilha do Cardoso. Técnicos da Fundação Florestal e do
Instituto Florestal chegaram a recomendar informalmente que as famílias da Enseada se
mudassem para a Comunidade Caiçara do Marujá, sob pena de terem que abandonar a
Ilha do Cardoso e migrar definitivamente para o centro urbano da cidade de Cananeia
(HAYAMA; CARDOSO, 2018, p. 631-632).
Após processo de intensa angústia e insegurança para a comunidade, finalmente, no
dia 7 de dezembro de 2016, em audiência com a Secretaria do Meio Ambiente do Estado
de São Paulo, que contou com a presença da Defensoria Pública do Estado de São Paulo,
Ministério Público Federal, Fundação Florestal, Instituto Geológico e Defesa Civil do
Estado de São Paulo, o Secretário Estadual do Meio Ambiente autorizou a realocação da
comunidade para a “Nova Enseada”, determinando que a decisão fosse cumprida imedia-
tamente pela Gestão do Parque Estadual da Ilha do Cardoso (HAYAMA; CARDOSO,
2018, p. 632).
Antes da mudança para a nova área, a mesma Comunidade Caiçara da Enseada da
Baleia enfrentou destruição socioambiental provocada pelo município de Ilha Comprida,
vizinho ao de Cananeia. Gerido pelo município de Ilha Comprida, o barco turístico
Catamarã começou a operar na região no final de 2014, partindo da porção norte da
Ilha Comprida e terminando seu trajeto na Comunidade Caiçara do Pontal do Leste.
No dia 07 de fevereiro de 2015 o Catamarã resolveu atracar na Enseada da Baleia,
que não estava no roteiro previsto, sem autorização prévia da comunidade. Antes, havia
passado devagar pela comunidade, demonstrando interesse no local, seguindo caminho
até Pontal do Leste. No retorno, o barco tentou parar, mais de uma vez, na área de con-
tenção construída pela comunidade, mas não conseguiu. As manobras para tentativade
atracação e para a saída da embarcação acionaram a potência máxima do motor do barco e
PROTOCOLO DE CONSULTA AUTÔNOMO DA COMUNIDADE CAIÇARA
DA ENSEADA DA BALEIA: OS LÍRIOS NÃO NASCEM DA LEI | 255
Tatiana Mendonça Cardoso e Andrew Toshio Hayama
partir porque a comunidade estaria segura na nova Enseada e trilhando um novo e promis-
sor caminho, como em seguida se confirmou. Finalmente, em agosto de 2018, o cordão
arenoso se rompe, engolindo as Comunidades Caiçaras da Enseada da Baleia e da Vila
Rápida e criando uma nova barra que dividiu a Ilha do Cardoso.
para que o/a morador/a receba melhor seu visitante e para que o/a visitante respeite o
modo de vida comunitário. As sugestões serão objeto de material informativo específico
para quem vai visitar a Enseada após a pandemia. Os oito encontros realizados produziram
informações para além do Protocolo, que servirão para a elaboração de Regimento Interno
Comunitário e de material de apoio para a organização da visitação na comunidade.
O terceiro eixo, resgatando os encontros anteriores, parte da premissa de que as rela-
ções entre comunidade e agentes externos são assimétricas. Além disso, o Estado, na gestão
da Unidade de Conservação, nunca promoveu diálogo horizontal, mas sempre exerceu
poder e impôs ordens. Sem desvalorizar a corajosa resistência histórica da comunidade
diante de condições desfavoráveis, o desafio que se colocava era como pensar fora dessa
lógica e romper com uma relação, por assim dizer, abusiva. Quer dizer, como inverter a
ordem vigente? Como viver a plena autonomia e liberdade que a elaboração do Protocolo
Comunitário permitia?
Além de questões comuns presentes em muitos protocolos já elaborados, que foram
estudados e serviram de referência à Enseada da Baleia, a comunidade estabeleceu regras
específicas sobre a forma como desejam ser consultadas e ouvidas: a) respeito ao tempo
e ritmo comunitários; b) decisões sempre coletivas e conjuntas, nunca individuais ou
setoriais; c) proibição de oferta de qualquer vantagem de qualquer tipo para membros
da comunidade como forma de convencimento ou cooptação; d) proibição de uso de
imagens ou informações comunitárias; e) espécies de reuniões: informativas, internas e
de negociação.
A Escola da Defensoria Pública realizou a edição do material, utilizando as ilustra-
ções elaboradas pela comunidade. A publicação oficial do documento7 se deu em evento,
muito prestigiado, promovido em abril de 2021, com o suporte do Centro de Pesquisa
e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS/PUCPR), contando com a partici-
pação do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e Igualdade Racial da Defen-
soria Pública (NUDDIR); do Observatório de Protocolos Autônomos de Consulta e
Consentimento Livre, Prévio e Informado; da Rede Sulamericana para as Migrações
Ambientais; do Ministério Público Federal; do município de Cananeia; da Fundação
Florestal; do ICMBio etc.8
Atualmente, o Protocolo Comunitário da Enseada da Baleia, adotado como proto-
colo de referência para todas as Comunidades Caiçaras da Ilha do Cardoso, está servindo
de instrumento de defesa em conflito socioambiental provocado por ação da Fundação
Florestal, que pretende entregar à iniciativa privada a exploração de turismo em área
7 O Protocolo Comunitário da Enseada da Baleia está disponível na página do Observatório de Protocolos Autônomos de Consulta e
Consentimento Livre, Prévio e Informado: http://observatorio.direitosocioambiental.org/protocolo-de-consulta-da-comunidade-caicara-
da-enseada-da-baleia/. Acesso em 19 de junho de 2021.
8 Conferir em: https://www.youtube.com/watch?v=9he676ZvE84. Acesso em 19 de junho de de 2021.
PROTOCOLO DE CONSULTA AUTÔNOMO DA COMUNIDADE CAIÇARA
DA ENSEADA DA BALEIA: OS LÍRIOS NÃO NASCEM DA LEI | 261
Tatiana Mendonça Cardoso e Andrew Toshio Hayama
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Otto, Saudade
REFERÊNCIAS
BORDA, Orlando Fals. Una sociología sentipensante para América Latina. México,
D. F.: Siglo XXI Editores; Buenos Aires: CLACSO, 2015.
SILVA, Liana Amin Lima da. Sujeitos da Convenção n. 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e o Direito à Consulta e ao Consentimento Prévio, Livre e Informado
(CCPLI). In: GLASS, Verena (organizadora). Protocolos de consulta prévia e o direito
à livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019.
PROTOCOLOS DE CONSULTA REALIZADOS PELOS POVOS
E COMUNIDADES TRADICIONAIS RELACIONADOS
À AGRICULTURA E À ALIMENTAÇÃO1
INTRODUÇÃO
1 Esta pesquisa é um subprojeto de pesquisa e atividades intitulado “OS POVOS E O DIREITO À CONSULTA PRÉVIA EM RELAÇÃO
ÀS SEMENTES E OS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS”, que é vinculado ao projeto “OBSERVATÓRIO DE
PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS DE CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO” do Programa
de Pós-Graduação em Direito.
2 Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Pesquisadora associada do Centro de Pesquisa e Extensão
em Direito Socioambiental (CEPEDIS); advogada. Bolsista do convênio PUCPR e FORD FOUDATION, subprojeto de pesquisa e
atividades vinculado ao projeto “OBSERVATÓRIO DE PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS DE CONSULTA E CONSENTIMENTO
PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO” do Programa de Pós-Graduação em Direito. Correio Eletrônico: ana.leticia.vasconcellos@gmail.com
3 Pós-Doutoranda em Direito Agrário pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG. Doutora em Direito
Direito Socioambiental
e Sustentabilidade. Pertence aos grupos de estudos: Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica (PUCPR) e
Coletivo de Estudos e Ações em Resistências Territoriais no Campo e na Cidade - CERESTA. Pesquisadora associada do Centro de
Pesquisa e Extensão em Direito Socioambiental (CEPEDIS). Bolsista do convênio PUCPR e FORD FOUDATION, SUBPROJETO
DE PESQUISA E ATIVIDADES VINCULADO AO PROJETO “OBSERVATÓRIO DE PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
DE CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO” do Programa de Pós-Graduação em Direito. Correio
eletrônico: hannah_agp@yahoo.com.br.
4 Mestranda no Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica - PR, com linha de pesquisa em Direito Socioambiental
e Sustentabilidade. Egressa da Turma Nilce de Souza Magalhães (PRONERA) na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Pertence ao grupo de estudo Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica (PUC/PR). Bolsista do convênio PUCPR
e FORD FOUDATION, SUBPROJETO DE PESQUISA E ATIVIDADES VINCULADO AO PROJETO “OBSERVATÓRIO DE
PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS DE CONSULTA E CONSENTIMENTO PRÉVIO, LIVRE E INFORMADO” do Programa
de Pós-Graduação em Direito. Correio eletrônico: isabelcortes750@gmail.com.
266 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
5 Para Richardson, a escolha do método qualitativo se deve às características do objeto, assim, “podemos afirmar que, em geral, as investigações
que se voltam para a análise qualitativa têm como objeto situações complexas ou estritamente particulares” (RICHARDSON, 1985, p. 39).
PROTOCOLOS DE CONSULTA REALIZADOS PELOS POVOS E COMUNIDADES TRA-
DICIONAIS RELACIONADOS À AGRICULTURA E À ALIMENTAÇÃO | 267
Ana Letícia Maciel de Vasconcellos, Anne Geraldi Pimentel e Isabel Cortes da Silva Ferreira
A Convenção dedica uma especial atenção à relação dos povos indígenas e tribais com a terra
ou território que ocupam ou utilizam de alguma forma, principalmente aos aspectos coletivos
268 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
O direito à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas e tribais encon-
tra-se descrito na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
mais especificamente em seu art. 6º6.
A consulta prévia deve ser implementada pelo Estado em qualquer ato administrativo
e legislativo que afete os povos e comunidades tribais e deve respeitar a princípios e critérios
que visem a participação e a autonomia. Ou seja, devem ser considerados cada povo em
particular e suas formas de constituir o consenso em seu território. (SILVA, 2017, 209).
Os protocolos autônomos de consulta são a ferramenta jurídica pela qual cada provo
demonstra ao Estado Nacional como dever realizada a sua consulta de maneira apropriada
(MARÉS DE SOUZA FILHO, 2019, 71). Nesse sentido, os protocolos comunitários de
consulta são ferramentas jurídicas de autodeterminação, que visam assegurar os direitos
coletivos fundamentais, dentre eles os direitos territoriais e culturais, de povos e comu-
nidades tradicionais. (SILVA, 2019, p. 100).
Contudo, garantir a participação efetiva dos povos indígenas, quilombolas e comu-
nidades tradicionais, nos processos de tomada de decisões do Estado que os afetam dire-
tamente, continua sendo um ideal muito distante da concretização no Brasil. Sobre as
dificuldades que permeiam esse processo, ainda observamos desconhecimento dos ges-
tores públicos e do judiciário nacional relacionados aos sujeitos de direito, ao objeto da
aplicação, oportunidade de implementação e forma de realização da consulta para que ela
seja de natureza prévia, livre, informada e de boa-fé. (ROJAS; OLIVEIRA; YAMADA,
2016, p. 2).
Para adequar o tratamento a realidade brasileira, os povos descritos na Convenção
como indígenas e tribais, são denominados nesta oportunidade como Povos Indígenas,
Comunidades Quilombolas e Povos Tradicionais. Isto porque, a Constituição de 1988,
garantiu explicitamente aos Povos Indígenas a sua integridade física e cultural e seus
direitos sob a natureza que habitam7. Além de reconhecer a propriedade permanente dos
remanescentes das comunidades quilombolas e determinar a proteção cultural de todos os
povos8. (MARÉS DE SOUZA FILHO, 2017, p. 107). O estado brasileiro, ainda, constrói
o sujeito coletivo “comunidade tradicionais”, os quais grupos possuem identidade étnica
e cultural diferenciada, modo de vida tradicional e territorialidade própria, conforme
descrito no decreto n. 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT). O Conselho Nacional de
Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), criado em 2016, tem em sua composição
os grupos identificados como os povos indígenas, as comunidades quilombolas, povos e
comunidades de terreiro, povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos, pes-
cadores artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalenses,
benzedeiros, ilhéus, raizeiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, veredeiros, apanha-
dores de flores sempre-vivas, pantaneiros, morroquianos, povo pomerano, catadores de
mangaba, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidades de fundos
e fecho de pasto, ribeirinhos, cipozeiros, andirobeiros, caboclos.
Acerca do direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado reforça-
mos que ele integra a concepção que “os povos têm o direito a ser povos”, mantendo suas
próprias leis e hierarquias sociais. (MARÉS DE SOUZA FILHO, 2019, 20). Nesse sen-
tido, entender e observar o que tem sido praticado na instrumentalização dos protocolos
comunitários de consulta, no que tange a agricultura, nos possibilita averiguar possíveis
desafios práticos e avanços que se refiram à proteção do direito à alimentação.
Os povos, seja dos campos, das florestas ou das águas, de formas diferentes, têm
uma relação com a natureza a partir de outra racionalidade, que não a da sociedade
moderna, que entende a natureza como um objeto apropriável produtora de riquezas
que se acumulam em mãos de uns poucos, mesmo que para isso seja necessário destruí-la
pela mineração, agricultura industrial, exploração ilegal de madeira e outras formas de
exploração da natureza.
A racionalidade dos povos, ao contrário, é de integração, para eles a natureza é a
provedora dos alimentos que mantém sua subsistência, por isso, a necessária proteção e
manutenção dela, tanto que há povos que a chamam de “Mãe”, como uma entidade sagrada
e provedora de vida, de todas as formas de vida. Por isso, esta pesquisa teve como objetivo,
verificar como os Povos e Comunidades Tradicionais têm explicitado essa relação nos
protocolos de consulta livre, prévia e informada, desta forma, foram escolhidas uma gama
de palavras que pudessem referenciar e indicar os protocolos em que houvesse menção a
esta relação. Assim, foram escolhidas as palavras “alimentação, agricultura, sementes, roça/
Podemos perceber, nas tabelas acima, que, pela mensuração definida na metodologia
272 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
1. NACIONAIS:
1. 1 - QUILOMBOLAS:
açaí é uma das principais fontes de alimento e renda da comunidade e tem sido ameaçado
pela instalação de indústrias mineradoras na região.
O Protocolo de Consulta Quilombolas de Gibrie de São Lourenço foi aprovado
em 17 de dezembro de 2017 após ser elaborado através de várias reuniões para debate sobre
a consulta e a elaboração do documento final do protocolo. Foram realizadas oficinas com
a participação da comunidade para estudo da convenção que teve como etapa final uma
assembleia geral para aprovação do documento da consulta. A comunidade decidiu que
tem direito a ser consultado todos aqueles que vivem na comunidade São Lourenço ou
tenham algum vínculo social, político e econômico: Equipe da coordenação da ACO-
QUIGSAL, Idosos, Mulheres, Homens, Jovens, Adolescentes e Crianças, todas as pessoas
que desenvolvem algum trabalho importante dentro da comunidade como: Professores/
as, Lideranças das Igrejas, Grupos Culturais (blocos carnavalescos, quadrilhas juninas, boi-
-bumbá), Time de Futebol, Ribeirinhos do Murucupi, Pesquisadores com conhecimento
de causa, convidados pela associação, pescadores, agricultores, universitários, parteiras,
curandeiros, PCD - Pessoas com Deficiência, e demais famílias de São Francisco, Laranjal,
Mujuquara, Novo Paraíso que estejam dentro do Território do São Lourenço. As tomadas
de decisões devem ser organizadas pela Associação da Comunidade Quilombola Gibrié
de São Lourenço - ACOQUIGSAL por meio de assembleias de forma coletiva. De forma
geral a comunidade estabelece que devem ser consultados quando qualquer intervenção
no território possa impactar no modo de viver da comunidade, dando ênfase aqui no
que se refere a intervenções nos períodos da plantação e da colheita, da safra dos frutos, e
demais situações ou eventos de modo geral em que a comunidade esteja envolvida naquele
período. A comunidade também inclui no documento uma série de medidas que devem
ser tomadas pelos órgãos públicos para garantir a dignidade das pessoas que vivem no
território, cite-se o Apoio e Incentivo aos projetos culturais de tradições da nossa comuni-
dade, Cursos de Qualificação e Capacitação na área de Agroecologia, Garantia de acesso
aos projetos sociais do governo de interesse da nossa comunidade.
O Protocolo de Consulta Prévia dos Quilombos Passagem, Nazaré do Airi e
Peafú do Município de Monte Alegre-PA, elaborado pelo povo quilombola dos Qui-
lombos Passagem, Nazaré do Airi e Peafú localizados no Município de Monte Alegre
– PA iniciou sua discussão em setembro de 2019 após diálogo com a Coordenação das
Associações das Comunidades Remanescentes de quilombos do Pará - MALUNGU
e a apresentação do Direito à Consulta Prévia Livre e Informada. Essas comunidades
se identificam como quilombolas, e dizem viver do plantio, do extrativismo, da caça e
da pesca. O trabalho, como relatado no protocolo, gira em torno do manuseio do açaí,
buriti, mandioca, côco, cajú, banana e até tabaco, como registrado nas gerações anterio-
res dessas comunidades. Se utilizam da floresta como um todo, para caçar e pescar nos
274 | JUSDIVERSIDADE E PROTOCOLOS COMUNITÁRIOS
igarapés, como do Ererê, mas não esgotamos os recursos naturais. Tem uma convivência
harmônica e de baixo impacto. Conforme relatado no protocolo “Nossos ancestrais são
importantes para nos dar forças e guiar nossos passos”. A ideia de fazer um protocolo
surge da necessidade de discutir coletivamente acerca das decisões que vêm a ser tomadas
pela comunidade, numa forma de se reafirmarem enquanto sujeitos de direitos. Para eles
o Protocolo simboliza uma ferramenta de defesa da natureza e de seus modos de pensar a
reprodução justa e equitativa da sociedade que poderemos caminhar rumo ao bem viver.
1. 3 - SOCIOBIODIVERSIDADE:
2. INTERNACIONAIS:
Bolívia. Por esta razão a estrutura burocrática deste documento é bem diferente dos demais
observados, sendo este um projeto de Lei nomeado como “Lei Marco de Consulta Prévia
da Autonomia Guarani Charagua Iyambae”9. O documento apareceu em nossa triagem
de palavras em razão do uso contínuo do termo “campesino”, o qual aparece por 8 (oito)
vezes. Ocorre que a maioria dessas vezes está descrita no tópico “antecedentes jurídicos”,
isto porque os termos “pueblos indígena originário campesinos” é citado ao fazer menção
ao texto constitucional, “pueblos campesinos, indígenas y originários” é utilizado duas
vezes para descrever a lei que reconhece os direitos de consulta e participação em razão de
desenvolvimento de atividades relacionadas a “atividades de hidrocarbonetos”10, “pueblos
indígena originário campesinos” também aparece duas vezes ao descrever lei específica, que
no art. 4, trata do exercício dos direitos políticos no marco da democracia intercultural
boliviana. Por fim, na página 15 do documento, o cabeçario muda e traz a autodenomi-
nação “Gobierno Autônomo Indígena Originário Campesino Charagua Iyambae” e ao
final, para promulgar o documento, observamos o uso do termo campesino novamente
como autodenominação. O documento legal tem a finalidade de estabelecer mecanismos
e procedimentos de consulta quando as terras e os territórios ancestralmente ocupados
por povos guaranis seja afeta, bem como quando tratem de seus direitos e interesses.
O Protocolo para la Consulta Previa, Libre e Informada con la visión del Pueblo
Uwottüja (Venezuela), foi elaborado pelo povo indígena Uwottüja originários do atual
estado do Amazonas na Venezuela. O presente instrumento de protocolo foi realizado
para proteger seus territórios da mineração ilegal e do turismo desorganizado, que vem
contaminando rios e tirando a paz desse povo, se tornando uma grave crise sociocultural
e ambiental. O povo Uwottüja se autodenominam de “herederos de la fuente espiritual,
sabios y administradores de los recursos naturales, somos agricultores, cazadores, pesca-
dores y recolectores, vivientes de la madre tierra del creador Mereya Änämäi”.
2.2 - ÁFRICA:
9 Tradução aproximada de “Ley Marco de Consulta Previa de La Autonomia Guarani Charagua Iyambae”
10 Tradução aproximada de “actividad hidrocarburífera”.
11 Tradução aproximada: Protocol on Access to Genetic Resources and the Fair and Equitable Sharing of Benefits Arising from their
Utilization.
PROTOCOLOS DE CONSULTA REALIZADOS PELOS POVOS E COMUNIDADES TRA-
DICIONAIS RELACIONADOS À AGRICULTURA E À ALIMENTAÇÃO | 279
Ana Letícia Maciel de Vasconcellos, Anne Geraldi Pimentel e Isabel Cortes da Silva Ferreira
alimentos.
Por isso, esta pesquisa teve como objetivo averiguar como os povos e comunida-
des tradicionais vêm se utilizando do instrumento jurídico dos protocolos de consulta
livre, prévia e informada para pensarem a questão de sua alimentação. Neste percurso foi
encontrado, por exemplo, o do protocolo do povo Nasa da Colômbia que identificam a
necessidade de proteger seu território de forma ampla, o que engloba também a proteção
à água, às sementes ou mesmo espíritos da natureza, entidades não visíveis, mas que em
sua cultura são fundamentais para a continuidade da vida. Ou mesmo o povo africano,
Khoikhoi, que considera a terra como um presente da natureza para ser cuidado. E tantos
outros povos e comunidades tradicionais que compreenderam a necessidade de proteger
a natureza, para defenderem também sua vida.
Foi verificado também, diversas formas de ameaças, possíveis ou concretas, sobre
seu território e seus modos de ser e estar. Como o caso de Unidades de Conservação de
Proteção integral, que impedem às comunidades de manterem suas tradições e culturas,
tanto a comunidade da Enseada da Baleia, quanto de Guarequeçaba, demonstram que
esse tipo de proteção ambiental, onde as comunidades são vistas como empecilho à con-
servação da natureza, baseadas no “mito moderno da natureza intocada” (DIEGUES,
1996), impedem a própria sobrevivência da comunidade, por proibirem, por exemplo, o
roçado, uma forma de plantio de alimentos para a subsistência da família.
Outro problema encontrado a que as comunidades se referem nos protocolos de
consulta, são as ameaças por poluição, que têm degradado o meio ambiente e ameaça várias
espécies de plantas e animais, que caçavam, pescavam ou colhiam para subsistência da
família, como relatam em seus protocolos os povos Uwottüja, a Comunidade Agroextra-
tivista do Pirocaba Abaetetuba, a comunidade Quilombola Bom Remédio, dentre outras.
Há, também, as comunidades que relatam em seu protocolo a luta pela preservação
de suas formas de agricultura, como relatam as comunidades Quilombolas do Vale do
Ribeira-SP, cujo sistema agrícola é reconhecido e titulado como um Patrimônio Cultural
brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); também
encontramos o relato das comunidades Quilombolas de Gibrie de São Lourenço que
requisitaram do poder público a atenção para a promoção de Cursos de Qualificação e
Capacitação na área de Agroecologia, Garantia de acesso aos projetos sociais do governo
de interesse da nossa comunidade; da mesma forma, a comunidade da Reserva extrativista
do Riozinho do Afrísio demonstram conhecimentos agrícolas, posto que conhecem e
relatam no protocolo uma tabela com os períodos de coleta, colheita, plantio; e por fim, o
protocolo das raizeiras do Cerrado, remetem à necessidade de proteção à biodiversidade,
principalmente em relação às sementes crioulas, e a implementação de políticas públicas
para o desenvolvimento de práticas tradicionais de cultivo e sistemas agroecológicos de
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Ana Letícia Maciel de Vasconcellos, Anne Geraldi Pimentel e Isabel Cortes da Silva Ferreira
produção de alimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na trajetória desta pesquisa foi possível perceber o quanto foi importante para os
povos do campo, das florestas e das águas o desenvolvimento de uma ferramenta jurídica
que pudesse dar visibilidade às suas lutas por território e vida. Neste sentido, também
verificamos que esses povos compreendem que a luta pelo território é também pelo ali-
mento que sustenta a vida, pois é da natureza, tornada território de vida, que provê seus
alimentos, seja o açaí, o palmito da palmeira jussara, o pescado, o pequeno roçado de
subsistência ou mesmo o plantio diversificado de alimentos pelas formas de produzir
agroecológicas ou agroflorestais.
Contudo, é necessária a proteção dos conhecimentos tradicionais e da forma como
estas comunidades produzem alimentos em seus territórios, pois sofrem investidas robustas
do capital, neste sentido é que os protocolos representam a forma dessas comunidades
se organizarem juridicamente contra essas investidas, bem como refletem a organização
interna para a composição deste instrumento jurídico, que enseja a capacidade de valorizar
suas práticas territoriais. Isso significa que não é o instrumento jurídico que dá valor às
práticas, mas a representação que essas comunidades fazem por meio de sua organização
e a discussão dos limites do capital e da sociedade hegemônica lhes impõe, o que cria o
embasamento para a construção da jusdiversidade em sua plenitude.
REFERÊNCIAS
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’ana. O mito moderno da natureza intocada. 6ª ed. rev.
e ampl. São Paulo: HUCITEC, 1996.
GARZÓN ROJAS, Biviany R., YAMADA, Erika M., OLIVEIRA, Rodrigo. Direito à
consulta e consentimento de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicio-
nais.
INTRODUÇÃO
1 Acadêmica do 3° período do curso de Direito da Faculdade de Direito e Relações Internacionais (FADIR) da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD). Bolsista de Iniciação Científica PUCPR/ Fundação Ford, vinculada ao Observatório de Protocolos Comunitários
de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. E-mail: luana.rocha01@outlook.com .
2 Acadêmica do 3° período do curso de Direito da Faculdade de Direito e Relações Internacionais (FADIR) da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD). Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/ CNPq/ UFGD, vinculada ao Observatório de Protocolos Comunitários
de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. E-mail: gabrielle.rodrigues@novaandradina.org .
3 Professor do Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais (PPGCSoc-UFMA). Doutorado em Direito pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Coordenador do Subprojeto de Jurisprudência de Protocolos Autônomos do Observatório de Protocolos Comunitários
de Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado. Email: shiraishineto@gmail.com.
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buscaram resistir com condições desiguais ante o poder estatal, da indústria bélica e capital.
Faz-se mister ressaltar que o conflito acarretou a inobservância de diversos dispositivos
de direitos humanos dispostos em tratados internacionais, constituição, leis e decretos.
Diante de tais pontuações, o presente trabalho tem como objetivo analisar o contexto
histórico da implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) e seus impactos
na vida das comunidades quilombolas do território sob a ótica do racismo ambiental
(BULLARD, 2000; 2004; HERCULANO; PACHECO, 2006) e da justiça ambiental
(ACSELRAD, 2004). Para tal concretização, utilizou-se como metodologia o levanta-
mento bibliográfico, documental e jurisprudencial a respeito do tema e, além disso, fez-se
necessário buscar e realizar a leitura do texto básico do Protocolo Comunitário sobre
Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado das Comunidades Quilombolas
do Território Étnico de Alcântara/MA, que serve para disciplinar os modos como essas
comunidades de quilombos desejam ser consultadas.
Uma das maiores e mais importantes revoltas contra o sistema de escravidão foi
marcada pela formação de quilombos. A luta pela liberdade, reconhecimento e contra
todo o processo colonial que os levaram às condições mais subalternas da humanidade
resultou em revoltas coletivas, as quais foram marcadas por fugas e consequentemente a
formação dos quilombos.
Para tal grupo, o conceito e significado de quilombo é muito próximo ao de união,
onde há uma grande referência aos modos de sobrevivência de seus ancestrais e as tradi-
ções que esses deixaram com o intuito de serem passadas de geração em geração, como
forma de herança cultural. Ademais, se consagra como uma expressão de territorialidade
e identidade étnica, construído de forma conjunta e comunitária, marcado pelo ser e estar
pertencente à terra.
Sob o viés naturalista, a raça seria o critério basilar para a definição da identidade
quilombola. Já acerca da ótica histórica, o fator predominante seriam os resíduos arqueo-
lógicos da ocupação, uma vez que demonstrariam a origem das comunidades quilombo-
las em plena sintonia com o território. Em complemento, Abdias do Nascimento, em
seu livro ‘O Quilombismo’ (1980, p. 32), ressalta que os quilombos são grupos que se
revoltaram contra o sistema escravista e colonial da época, e se formaram para resistir e
sobreviver de acordo com suas próprias organizações sociais, econômicas e políticas; sendo
que as situações envolvendo as comunidades de quilombos no Brasil apresentam-se de
forma distintas, como é o caso das comunidades de Alcântara que após a desagregação e
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Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos
(BRASIL, 1988).
Art. 3º Incumbirá ao Ministro de Estado Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, como
Presidente da Comissão Brasileira de Atividades Espaciais - COBAE, a missão coordenadora
das atividades dos diversos entes e órgãos da Administração Federal a atuarem na região em
que se situa o Centro de Lançamento de Alcântara - CLA.
Já na década de 90, o projeto foi ‘abandonado’ pelo governo federal e pelo então
presidente Fernando Collor, em virtude da extinção de certos órgãos e criação de outros,
como a Agência Espacial Brasileira (AEB). As famílias remanejadas, então, observaram
como única solução viável a busca de terras de cultivo para além das agrovilas, até mesmo
aquelas cobiçadas pela aeronáutica.
Como se pode observar, desde séculos passados, as comunidades ali presentes têm
sido alvo e objeto de violação de direitos humanos, até mesmo após a promulgação da
Constituição Federal de 1988, que reconhece o direito à terra a esse grupo étnico, con-
forme preceitua o artigo 68.
Ademais, até 2003, a Fundação Cultural Palmares ainda não havia iniciado os trâ-
mites para o reconhecimento da titularização das terras quilombolas abrangidas pelo
território localizado no Município de Alcântara. Para tal atraso, justificou-se alegando
que seria necessário o estabelecimento de convênios com o Estado do Maranhão (FÔN-
SECA, 2014, p. 45).
Diante do inegável atraso, foi ajuizada Ação Civil Pública pelo Ministério Público
Federal (MPF) ainda no mesmo ano (Processo n° 0008273-53.2003.4.01.3700) a fim de
efetivar, de uma vez, o direito à efetivação do território. Em complemento, o MPF impe-
trou um pedido liminar requerendo que a União se abstivesse de realizar remanejamentos
compulsórios alegando perigo iminente.
Com a alteração do Decreto 4.887/2003 em 2006, a competência acerca do pro-
cesso de titularização de terras foi transferida para o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA). Nesse ínterim, o MPF solicitou a inclusão do INCRA
como polo passivo da ação. Ressalta-se que, até então, o pedido liminar ainda não havia
sido apreciado (FÔNSECA, 2014, p. 46).
Na audiência de conciliação em 2006, o INCRA alegou que desde 2005 havia ini-
ciado o cadastro das famílias para a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID), rito inicial no processo de titulação. Em complemento, a Agência
Espacial Brasileira (AEB) alegou que instituiu um Grupo Executivo Interministerial
para acompanhar as ações de desenvolvimento sustentável no município de Alcântara.
Conforme preceitua o artigo 1° do Decreto Presidencial s/n de 27 de agosto de 2004:
Art. 1º Fica instituído o Grupo Executivo Interministerial para articular, viabilizar,
propor e acompanhar as ações necessárias ao desenvolvimento sustentável do Município
de Alcântara, que visam propiciar as condições adequadas à eficiente condução do Pro-
grama Nacional de Atividades Espaciais e o desenvolvimento das comunidades locais,
respeitando suas peculiaridades étnicas e sócio-culturais.
Nesse contexto, não foi concedido o pedido de liminar requerido pelo MPF, a fim
de que não fosse dada continuidade ao processo de expansão do Centro de Lançamento
até que houvesse sido concluído o processo de titulação das terras quilombolas. Ante a
este momento de fragilidade, a AEB deu início ao procedimento de expansão.
A luta judicial travada há mais de quinze anos, teve um pequeno avanço somente no
ano de 2020, adentrando a Ação Popular n° 1016857-96.2020.4.01.3700. Uma liminar
expedida pelo Juiz Federal da 8a Vara Federal Ambiental e Agrária de São Luís em maio
de 2020 definiu que fosse suspenso o processo de remanejamento das famílias quilombolas
que vivem na área de implantação do Centro de Lançamento de Alcântara.
O remanejamento das mais de 800 famílias ficará suspenso até que se cumpra o
observado na Convenção n° 169 da OIT, estabelecendo que seja realizada a consulta
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Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste
Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos
quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
Vale citar a ADI 3239, ação ajuizada pelo atual partido Democratas (DEM), o qual
questiona a constitucionalidade do Decreto 4887/2003. Como principais fundamentos,
o partido pontua: a necessidade de lei específica para tratar sobre o assunto, pois não é
possível que um regulamento autônomo tenha esse poder; o erro em utilizar o critério
de autoatribuição para a identificação dos remanescentes dos quilombos, pois segundo
o autor houve ampliação inadequada do art. 68 do ADCT para esse critério; a nulidade
de se caracterizar as terras quilombolas como aquelas que são utilizadas pelos próprios
interessados, pois o território precisa ser objeto de estudos histórico-antropológicos.
Além desses, o autor da ação ainda enfatiza que o Decreto fere o texto constitucional
quando faz referência a novos tipos de desapropriação que não estão positivadas na Carta
Magna, o que facilita o gasto com despesas públicas para futuras indenizações desnecessá-
rias e comenta, ainda, que um território só deverá ser reconhecido se, comprovadamente,
tenha se formado ainda na fase imperial do Brasil.
Contudo, o entendimento de terras ocupadas por remanescentes de quilombos
expresso no texto do Decreto 4.887/03 é constitucional e, além disso, é necessário para
a aplicação no direito brasileiro da Convenção 169 da OIT. (SARMENTO, 2008, p.38)
Contudo, a ADI foi julgada e rejeitada em 2018 pelo STF. A vitória tornou-se uma
grande conquista e referência histórica para as comunidades remanescentes de quilombos
frente a luta por seus direitos.
A ADI é um grande exemplo de como o racismo ainda estrutura e assola a sociedade
atual, é perceptível como houve a tentativa de tornar ilegal um direito já fundamen-
tado e expresso na Constituição Federal. Os argumentos presentes na ação e o próprio
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Luana Caroline Rocha Silva, Gabrielle Rios Rodrigues e Joaquim Shiraishi Neto
decidir o que lhes será mais cabível, sendo dever do Estado respeitar qualquer tomada de
decisão das comunidades e lhes passar honestidade diante todas as discussões ao longo
do processo.
Ainda sobre as suas características, a consulta também deve ser informada, assim,
é de suma importância que os agentes representativos do Estado consigam informar e
apresentar às comunidades todos os aspectos necessários e pertinentes, sejam eles positivos
ou negativos, para que estes possam tomar as devidas decisões. (SALES, 2015)
Em meados de 2018 quando tornou-se público um novo projeto para expandir o
Centro de Lançamento, as Comunidades Quilombolas de Alcântara decidiram, então,
elaborar seu próprio protocolo questionando e reivindicando o direito à consulta pré-
via, livre e informada que foi violado quando houveram tais empreendimento afetando
diretamente seu modo tradicional de vida.
Além disso, em março de 2019, houve o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST)
celebrado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos da América autorizando a
comercialização da Base Espacial, e junto deste, surge uma grande ameaça visando expulsar
aproximadamente oitocentas famílias do litoral do município (PROTOCOLO COMU-
NITÁRIO DE ALCÂNTARA, 2018).
A referida expulsão ainda acarretaria impactos negativos às demais comunidades das
outras regiões do território, uma vez que deverão prestar assistência às famílias desabrigadas
mesmo com os recursos de sobrevivência insuficientes para manter a todos.
Outrossim, as comunidades destacam no protocolo que a consolidação do AST
gera insegurança econômica, social e cultural, retrocedendo e constituindo mais uma
vez a violação de seus direitos igualmente como o ocorrido na década de 1980, as quais
seguem sem reparação até o presente momento.
Para a elaboração do documento, as comunidades se organizaram realizando reu-
niões a fim de discutir quais seriam os impactos do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas
(AST) em todo o território.
Para tal, foram colocadas em pautas as seguintes questões: a) Caso haja o deslo-
camento de algumas famílias para outras comunidades do município, a comunidade
anfitriã aceita receber as famílias desabrigadas? b) Há recursos suficientes para manter
todas as comunidades? c) Aceitam se deslocar e acomodar-se em outras comunidades
longe das famílias que sempre conviveu? d) Aceitam abrir mão das terras para ceder ao
programa aeroespacial brasileiro? e) Concordam com a expansão do CLA, visto que este
trará imensos impactos ao território? f ) Estão de acordo com o Acordo de Salvaguardas
Tecnológicas (AST)? Esses questionamentos nortearam a reunião das comunidades, e
as reflexões são importantes para as tomadas de decisões sobre o futuro do Território.
Os povos quilombolas de Alcântara ainda definem e discorrem, ao longo do texto,
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Luana Caroline Rocha Silva, Gabrielle Rios Rodrigues e Joaquim Shiraishi Neto
a forma que desejam ser consultados. Segundo eles, todos os moradores precisam passar
pelo procedimento de consulta, e o mesmo deve ocorrer por meio de suas associações
representativas, inclusive as comunidades que estão localizadas fora da área desapropriada
pelo governo federal em 1980, para implantação do Centro de Lançamentos de Alcântara
(CLA). Os povos ainda afirmam que se autodeterminam como uma comunidade única
do território Étnico Quilombola de Alcântara.
Estabelecem, ainda, que a consulta deverá ser feita através das lideranças e dos senho-
res, pois são eles que passam todas as informações para a comunidade e são os que sabem
contar toda a história, trajetória de vida e são os que têm mais conhecimento dos lugares
sagrados dentro do território. Ao final, toda a comunidade é reunida para discutir sobre
o que será feito.
Além desses, as mulheres também precisam ser consultadas porque entre elas existem
parteiras, líderes, trabalhadoras rurais e mulheres experientes que dividem informações
e, junto delas os jovens também precisam ser consultados, pois eles são a geração futura
e será através deles que as tradições serão mantidas. Todas as instituições representativas
são consultadas, mas nunca sozinhas porque as decisões das comunidades são elaboradas
em conjunto com todos os moradores.
O referido protocolo ainda enfatiza que é dever do Governo Federal orientar e
indicar quais órgãos farão o processo de consulta. Nunca, em hipótese alguma, o Estado
pode transferir essa obrigação a um ente privado, por exemplo. As instituições ligadas
diretamente à gestão do projeto aeroespacial não poderão liderar o processo de consulta,
mas deverão estar sempre dispostas a prestar todas as informações necessárias e pertinentes
às comunidades.
Com o poder de escolha, as comunidades decidem que o procedimento deve ser
realizado no próprio território, e em horário que não prejudique as atividades do grupo.
O documento ressalta que o representante do Estado deve permanecer o tempo que for
necessário no território mantendo um diálogo participativo, com transparência e sem
pressão.
No mais, as consultas deverão ser feitas por um representante que tenha poder de
decisão e, para que seja verdadeiramente livre, é inaceitável que tenha membros da esfera
policial dotados de armas durante o procedimento.
As comunidades ainda colocam que o Governo precisa comunicar as associações
comunitárias sobre os planos e propostas, fornecendo toda a documentação necessária,
tanto impressa quanto digital, para que toda a comunidade esteja ciente e por dentro
dos projetos antes que qualquer início, e todas as despesas serão custeadas pelo órgão
responsável pela consulta.
Sendo assim, os projetos só poderão ter início após um acordo firmado entre o Estado
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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