A Sociedade Disruptiva
A Sociedade Disruptiva
A Sociedade Disruptiva
O
presente artigo se insere na tradição do gê-
nero de ensaio em ciências humanas. Nele
se pretende discutir alguns aspectos sociais
e políticos vinculados ao modo como se tem
disseminado na população as mudanças tec-
nológicas em curso. Como está sendo so-
cialmente construída a aceitação das novas
tecnologias e suas implicações políticas (Ber-
ger & Luckmann, 2011), em especial aquelas
ligadas com a adoção das bases digitais,
robótica e IA (inteligência artificial). Com
maior liberdade no trato das contribuições de
outras ciências, como cabe ao texto ensaísti- tem suscitado pesquisas sobre quais as re-
co, o artigo pretende contribuir sobre como duções de ocupações que seriam produzi-
as narrativas das mudanças tecnológicas têm das em diferentes economias na medida da
sido elaboradas no senso comum, e como sua disseminação no mundo do trabalho.
o relativo distanciamento da população em Os prognósticos variam de 40% a 60% de
relação ao que se discute na universidade redução de carga de trabalho para os hu-
pode ter graves consequências nas políticas manos, impactando inclusive funções que
sociais e nas representações políticas. exigem habilitação universitária (Nedelkoska
Tem surgido a figura da tecnologia hu- & Quintini, 2018). Médicos radiologistas não
manizada, com ou sem robôs, o que nos precisam mais procurar por sinais brancos
faz questionar qual a sua ética e suas re- nas chapas reveladas, sistemas automatiza-
lações com os humanos. dos processam as imagens, identificam os
Não há dúvidas quanto aos avanços em sinais e soltam diagnósticos. Claro que essa
capacidade produtiva e de utilidade que as realidade ainda é diferente quanto aos países
inovações tecnológicas ao longo do tempo e ao tipo de serviço. No Brasil o serviço
propiciaram ao homem no que diz respeito público é majoritário quanto ao modo de
a resolver problemas da vida (Landes, 1994). chapas reveladas no lugar das imagens digi-
Ainda mais com os atuais programas e máqui- tais. Para a população mais pobre tal fato é
nas de grande capacidade de processamento um atraso, com despesas correntes maiores e
das informações – big data – envolvendo uma falhas de diagnóstico mais frequentes. Con-
quantidade de dados muito além dos limites tadores e advogados já devem se preparar
do cérebro humano. Medicina, engenharia, para enfrentar os sistemas que emitem de-
direito, educação, comunicação, empresas, monstrativos e petições automáticas. Bastará
enfim, grande número de áreas e locais tem assinar... Por enquanto. Trabalhadores em
sido impactado positivamente quanto à qua- linhas de montagem são substituídos por
lidade e rapidez na solução de problemas e sistemas robotizados integrados com ou-
são exemplos notórios e acompanhados pela tros sistemas digitais na chamada indústria
população em geral. Portanto, não há o que 4.0 provocando a diminuição gradativa da
discutir aqui sobre essa ampliação nas possibi- necessidade de operários.
lidades de se resolver problemas, fato que deve Evidentemente há um apelo da eficiência,
ser preservado e estimulado. Entretanto, tal qualidade e segurança nesses e noutros casos.
perspectiva técnica tem produzido uma euforia A questão é que tais sistemas são pensados
mercadológica que, do lado social, prescinde majoritariamente em substituição ao humano,
de validações quanto às suas aplicações e quando poderiam ser pensados junto a uma
articulações com a realidade da pólis, de tal solução social e política de convívio: friendly
sorte que políticas públicas sejam discutidas automation or friendly robotic. Que alterna-
para ampliar os efeitos positivos, mas tam- tiva haveria para continuar com os benefí-
bém evitar ou mitigar os negativos como se cios técnicos da automação cognitiva e das
deve no âmbito de um projeto civilizatório. rotinas, sem levar as ocupações de médicos,
O fato mais notório é o impacto sobre engenheiros, advogados e operários à extinção
o emprego. A adoção da IA, por exemplo, ou redução? Há por outro lado um discurso
do usuário, levada a cabo pela transformação por narrativas ficcionais e de não ficção, em
digital que se faz dotando as interações com última análise com mensagens percebidas
a chamada redução de atritos de humanos como de não ficção, estabelecendo as bases
com humanos. Já é argumento técnico de dos comportamentos e opções políticas dos
qualidade e design moderno buscar soluções agrupamentos humanos, de comunidades, na-
ou serviços que não precisam de interação ções, organizações e, agora no século XXI,
com outro humano. Redução de atritos. em redes virtuais, influenciando as diversas
O desequilíbrio das narrativas, pendendo esferas do cotidiano dos indivíduos em seu
para o lado utópico, pode levar a externali- senso comum, que, apesar dos especialistas,
dades negativas das tecnologias sem regu- são hoje a base das decisões da vida política.
lação, com o acirramento da segregação e Há, entretanto, substancial diferença nesse
diminuição da interação social no cotidiano, processo entre séculos exatamente no atual
com consequências políticas e possibilidade momento histórico; as narrativas são im-
em marcha da redução da abertura e controle pulsionadas de tal maneira pela tecnologia
por todas as camadas sociais. tanto em mensagem quanto em meios, le-
vam às novas práticas e ações, e delas se
SOCIEDADE DISRUPTIVA, alimentam, tornando múltiplas suas origens
com processos de constituição e aceitação
UM FENÔMENO DE MUDANÇAS diversos, fragmentados e multicêntricos em
MULTIDIMENSIONAIS uma escala, se não exponencial, ao menos
de grandeza muito além do registro recente,
Desde os tempos da Grécia Antiga, nos tanto que o termo “exponencial” tornou-se
séculos V a IV a.C., os historiadores, tendo senso comum, e aqui, de passagem, como
em elevada conta Heródoto e Tucídides, con- termo que exemplifica e evidencia pontual-
sideravam e resgatavam o modo de narrar os mente a distinta narrativa do atual Zeitgeist
eventos humanos mais antigos apresentando- de uma sociedade disruptiva.
-os como narrativas que tinham autoridade, Sociedade disruptiva é o termo aqui
e assim formaram o senso comum dos gre- empregado para designar este espírito dos
gos. Se os deuses de fato existiam ou não, tempos utilizando o conceito que Christen-
se aquelas histórias míticas eram reais ou sen (1997) estabeleceu no âmbito de suas
não, esse já era um tema de debate; toda- pesquisas sobre inovação, nos anos 90. Ele
via o fato era que elas serviam em grande descreveu como novidades surgem desajei-
medida ao povo grego como narrativas que tadas, de baixo desempenho, não assustan-
transmitiam ensinamentos sobre as coisas da do, mas com o passar do tempo superam o
natureza (física), o comportamento (ética) e modelo ou padrão vigente e em seguida o
a natureza dos deuses (teologia). destrói ou relega-o ao limbo.
Passados os séculos entre aqueles pri- Em ciências humanas, no século passa-
meiros registros das origens da civilização do, a partir dos trabalhos de Thomas Kuhn
ocidental, com contribuições dos povos egíp- (2018) na filosofia e na história da ciência,
cios e persas, também coletadas pelos gre- difundiu-se o termo “paradigma” para as
gos, os tempos históricos foram preenchidos mudanças sucessivas dos modelos científi-
BIBLIOGRAFIA