A Verdadeira História de Jesus E. P. Sanders
A Verdadeira História de Jesus E. P. Sanders
A Verdadeira História de Jesus E. P. Sanders
Esta obra foi digitalizada e corrigida pelo Serviço de Leitura Especial da Biblioteca
Municipal de Viana do Castelo. Destina-se unicamente a pessoas com necessidades especiais e
não tem fins comerciais.
e-mail: leituraespecial@cm-viana-castelo.pt
BADANA DA CAPA
JESUS CRISTO. Está na base da maior religião mundial: dois mil milhões de seres humanos
reclama-se hoje da fé nele e dizem-se cristãos. A sua figura foi de tal modo determinante que a
Historia se divide em antes e depois de Cristo. Durante dois mil anos, em seu nome ergueu-se o
que se chama a Igreja, construíram-se catedrais e hospícios, proclamou-se a dignidade infinita
de ser Homem e também se instruiu a Inquisição, veio ao mundo amor e sofrimento. Ninguém
tem dúvidas de que sem ele a Historia seria diferente.
No entanto, viveu num canto remoto do Imperio Romano, a sua intervenção pública pode não
ter chegado aos dois anos, foi condenado à cruz – a execução própria dos escravos -, como
blasfemo religioso e subversivo social e politico. Aparentemente, deveria ter sido o fim. O que
se passou para que, precisamente após a sua morte, tivesse começado um movimento que
transformou o mundo?
O seu enigma para nós é o da passagem do Jesus da história ao Cristo da fé, de tal modo que o
seu nome agora é Jesus Cristo. Assim, a pergunta decisiva é esta: o que se pode saber hoje com
rigor histórico sobre Jesus, o Cristo, independentemente da fé? Precisamente a esta pergunta
responde esta obra modelar, saudada entusiasticamente pela crítica especializada, que sublinha
dois aspetos essenciais: justamente o rigor e a acessibilidade.
Anselmo Borges
CONTRA CAPA
Para crentes e não crentes (numa época que discute o “Código da Vinci”, o sentido da violência
e da paz e a responsabilidade das confissões religiosas nestes domínios) é fundamental entender
as convicções dos que “fizeram grupo” com jesus Cristo, o significado de milagres e
exorcismos, o âmbito de projetos de mudança da história pessoal e coletiva e o alcance de um
“Reino de Deus”.
Que parentesco há entre o sentido e a salvação?
A complacência, a tolerância, a predileção pelos marginais, os conflitos e os equívocos do
tempo, a Paixão e a Ressureição são marcos de uma trajetória. O saber (prefigurado por
abundantes hipóteses de leitura) convoca à sensibilidade e à alteração de critérios de viver.
Com minucia de interprete e transparência de Mestre, o Prof. E. P. Saunders tenta reconstituir a
fisionomia histórica de Jesus através da fidelidade às fontes, à releitura das comunidades
nascentes e aos contextos de uma Pessoa. É uma delícia cultural a travessia de muitas das suas
páginas!
D. Januário Torgal Ferreira, Bispo das Forças Armadas e de Segurança
«Um feito memorável.»
Professor Jaroslov Pelikan, Universidade de Yale
« é, hoje, o maior especialista americano na investigação sobre a vida de Jesus… Espero que
esta obra (…) constitua um antidoto saudável contra algumas teses extravagantes sobre o jesus
histórico que tem aparecido recentemente.»
Professor John B. Meier, Universidade Católica
«Soberbo… A Verdadeira Historia de Jesus destaca-se pela sua clareza e equilíbrio, o seu senso
comum e, acima de tudo, pela sua honestidade.»
Professor Wayne A. Meeks, Universidade de Yale
«Um estudo não dogmático e não religioso sobre a verdade acerca da vida e percurso de Jesus,
desenvolvido por um dos maiores especialistas.»
Professor Paul Johnson, “Sunday Times”
BADANA DA CONTRA CAPA
Depois de dois bacharelatos no Texas, o seu estado natal, E. P. Sanders prosseguiu os estudos
universitários em Gottingen, Jerusalém, Oxford e Nova Iorque, que culminaram num
doutoramento em Teologia pelo Union Theological Seminary. Em 1984, tornou-se professor de
Exegese na Universidade de Oxford. Seis anos mais tarde mudou-se para a Universidade de
Ciências da Religião. Foi professor no Trinity College, de Dublin, e na Universidade de
Cambridge.
O seu campo de estudo centra-se no judaísmo e cristianismo no mundo greco-romano. Paul and
Palestinian Judaism (1977) ganhou vários prémios nacionais. Jesus and Judaism (1985) recebeu
o Premio Grawemeeyer de Religião e foi escolhida pelo Dunday Correspondent como uma das
obras de referência da historia religiosa publicada nos anos 80. Escreveu igualmente The
Tendencies of the Synoptic (1969), Paul, the Law and the Jewish People (1983), Studyng the
Synoptic Gospels, com Margarete Davies (1989), Jewish from Jesus to the Mishnah (1990),
Paul: Past Master (1991) e Judaism: Pratice and Belief 63 BDE – 66 CE (1992).
Recentemente, E. P. Sanders recebeu novos Títulos: coutor em Letras pela Universidade de
Oxford e doutor honoris causa em Teologia pela Universidade de Helsínquia. É membro da
Academia Britânica.
A chave hermeutica de Jesus do Prof. E. P. Sanders reside no tema da «restauração
escatológica». Como ninguém, Sanders conhece profundamente a cultura teológico-literária
judaica da escatologia e conclui que o Deus da Aliança com o seu povo de Israel consuma em
Jesus essa mesma aliança da restauração escatológica.
Pe. Carreira das Neves Professor da Universidade Católica Portuguesa
ISBN 972-46-1529-4
(Edição original: ISBN 0-14-014499-4)
© E. P. Sanders, 1993
Direitos reservados
EDITORIAL NOTICIAS
Rua Bento de Jesus Caraça, 17
1495-686 Cruz Quebrada
E-mail: geral@editorial.noticias.pt
Internet:www.editorialnoticias.pt
JRPENTRETENIMENTO
Título original: The Historical Figure of Jesus
Tradução: Teresa Martinho Toldy
Marian Toldy
Revisão: Domingas Cruz
Capa: Maria Manuel Seixas
Edição: OI 04 0057
I .ª edição: Setembro de 2004
Depósito legal n.º 216622/04
Pré-impressão, impressão e acabamento:
Multitipo - Artes Gráficas, Lda.
BIOGRAFIAS
Nesta coleção:
JOÃO PAULO Il - A VIDA DE KAROL WOJTYLA Tad Szule
YITZHAK RABIN - MISSÃO INACABADA
The Jerusalém Report
EMÍDIO GUERREIRO - UMA VIDA PELA LIBERDADE
A. Encarnação Viegas
ALINA - MEMÓRIAS DA FILHA DE FIDEL CASTRO
Alina Fernández
POR TIMOR - BIOGRAFIA DE D. XIMENES BELO
Arnold S. Kohen
LULA - DO AGRESTE AO PLANALTO
João Nascimento
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JESUS
E. P. Sanders
Abreviaturas
Antig. Josefo, Antiguidades Judaicas, citado de acordo com a edição inglesa: Jewish
Antiquities, in Work, ed. e trad. H. St. J. Thackeray, Ralph Marcus, Allen Wikgren e Louis
Feldman, Loeb Classical Library, 10 vols., Londres e Cambridge MA 1926-1965
a.e.c. antes da época cristã (= a. C.)
e.c. época cristã (= d. C.)
HJP Emil Schürer, History of the Jewish People in the Age qf Jesus Christ, revisto e editado por
Geza Vermes, Fergus Millar e Martin Goodman, oS vols. em 4 partes, Edimburgo, 1973--1987
J&J E. P. Sanders, Jesus and Judaism, Londres e Filadélfia, 1985
JLJM E. P. Sanders, Jewish Law from Jesus to the Mishnah: Five Studies, Londres e Filadélfia,
1990
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NRSV New Revised Standard Version ofthe Bible
P&B E. P. Sanders, Judaism: Practice and Belief 63 BCE - 66 CE, Londres e Filadélfia, 1992
RSV Revised Standard Version of the Bible
SSG E. P. Sanders e Margaret Davies, Studying the Synoptic Gospels, Londres e Filadélfia,
1989
Guerra Josefo, A Guerra Judaica, citado de acordo com a edição inglesa: The Jewish War, in
Works (edição já mencionada)
/ / paralelo a (Mt 9, 14-17 / / Mc 2, 18-22 significa que as passagens são paralelas uma à outra)
Tabela cronológica
597 a.e.c. - Nabucodonosor da Babilónia conquista Jerusalém; os líderes judaicos são levados
para o exílio na Babilónia
559-332 - Palestina sob o domínio persa
538 - início do regresso a Jerusalém
520-515 - reconstrução do Templo
333-332 - Alexandre Magno conquista a Palestina
cerca de 300-198 - Palestina sob Ptolomeu do Egipto
198-142 - Palestina sob Selêucidas da Síria
175-164 - Antíoco IV (Epífanes), rei da Síria
167 - profanação do Templo; início da revolta dos Asmoneus (Macabeus)
166-142 - os Asmoneus lutam pela autonomia total
142-137 - período dos Asmoneus
63 - Pompeu conquista a Judeia
63-40 - Hircano II, sumo sacerdote e etnarca
40-37 - Antígono, sumo sacerdote e rei
37-4 - Herodes Magno, rei
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31 - batalha de Actium: Octaviano (mais tarde, intitulado Augusto) torna-se imperador romano
4 a.e.c. - 6 e.c. - Arquelau etnarca, administrador da Judeia
4 a.e.c. - 39 e.c. - Antipas tetrarca, administrador da Galileia e da Pereia
cerca de 4 a.e.c. - nascimento de Jesus de Nazaré
6-41 e.c. - Judeia governada por prefeitos romanos
14 - Tibério sucede a Augusto como imperador
cerca de 18-36 - José Caifás, sumo sacerdote dos judeus
26-36 - Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia
cerca de 30 - morte de Jesus
37 - Gaio (Calígula) sucede a Tibério como imperador
41 - Cláudio sucede a Gaio
41-44 - Agripa I, rei, governa sobre o anterior reino de Herodes
44-66 - Judeia, Samaria e uma parte da Galileia governada por procuradores romanos
48-66 - Agripa II recebe uma parte do reino do seu pai revolta dos judeus contra Roma
66-74 – revolta doa judeus contra Roma
70 - queda de Jerusalém, destruição do Templo
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Prefácio
A maioria dos investigadores que escrevem sobre o mundo da Antiguidade sente-se obrigada a
avisar os seus leitores de que o nosso conhecimento do objeto, na melhor das hipóteses, é
incompleto e de que raramente se chega a uma certeza. Um livro sobre um judeu do século I,
que viveu numa parte bastante insignificante do Império Romano, deve ser prefaciado por este
aviso. O que sabemos acerca de Jesus provém de livros que foram escritos algumas décadas
após a sua morte, provavelmente, por pessoas que não faziam parte do círculo daqueles que o
seguiram em vida. Estes citam-no na língua grega, que não era a sua primeira língua, e, de
qualquer modo, as disparidades existentes entre as nossas fontes demonstram que o estado de
conservação das suas palavras e dos seus atos não é perfeito. Possuímos poucas informações
sobre ele, para além das obras escritas com intenção laudatória. Atualmente, não estamos bem
documentados sobre regiões tão longínquas como a Palestina e os autores das nossas fontes
também não o estavam. Não possuíam arquivos ou registos oficiais de qualquer espécie. Nem
sequer tinham acesso a mapas. Estas limitações, normais na Antiguidade, resultam num elevado
nível de insegurança.
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Reconhecendo estas e muitas outras dificuldades, os exegetas do Novo Testamento passaram
várias décadas - entre 1910 e 1970 - a afirmar que não sabemos nada, ou praticamente nada,
sobre o Jesus histórico. O exagero provoca reação e, nas últimas décadas, a nossa confiança em
nós mesmos aumentou, aliás, a tal ponto que a literatura exegética recente inclui aquilo que eu
considero serem afirmações precipitadas e infundadas sobre Jesus - hipóteses sem provas que as
sustentem.
Considero o estudo dos Evangelhos um trabalho extremamente difícil. Compreendo os exegetas
que desistiram de recolher muitos dados empíricos úteis sobre Jesus. Penso, contudo, também
que o trabalho compensa tanto quanto é de esperar quando se trata de investigação da história da
Antiguidade.
Este livro apresenta as dificuldades e os resultados bastante modestos, que considero
simultaneamente fundamentais e relativamente seguros - bastante seguros, tendo em conta os
nossos restantes conhecimentos da Palestina antiga, em geral, e das figuras religiosas do
judaísmo, em particular. Sabemos muito sobre Jesus, muito mais do que sobre João Baptista,
sobre Teudas, sobre Judas, o Galileu, ou sobre qualquer outra das figuras cujos nomes
conhecemos e que são, mais ou menos, da mesma época e região.
Enquanto escrevia, apercebi-me de que as páginas com o material de introdução se estavam a
amontoar. Apesar da minha intenção de as reduzir, elas aumentavam continuamente de rascunho
para rascunho. Continuo a pensar que seria desejável que o leitor pudesse chegar mais
rapidamente ao cerne da questão, mas julgo que os capítulos introdutórios são necessários. Os
conhecimentos dos Evangelhos continuam a estar muito difundidos, mesmo nos nossos tempos
secularizados, mas a compreensão dos problemas críticos que estes colocam é mais rara.
Detesto dizer que existe uma dificuldade sem explicar de que dificuldade se trata: é a isto que se
deve uma grande parte do material. Também descrevi mais pormenorizadamente do que é
habitual o cenário político e religioso no qual decorreu a vida de Jesus, porque é muito
frequente estes aspetos serem mal apresentados nos livros sobre Jesus, quer sejam da autoria de
amadores, quer sejam de profissionais.
Fiz, no entanto, algumas economias, sobretudo nas indicações bibliográficas. Evito tanto
debates com outros especialistas como notas bibliográficas, remetendo para as minhas obras
anteriores, nas quais discuti mais pormenorizadamente tanto as fontes primárias como a
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literatura secundária. Esforcei-me igualmente por limitar ao mínimo a discussão de termos e
expressões estrangeiras.
As citações bíblicas, regra geral, seguem a Revised Standard Version, que eu continuo a
considerar a tradução inglesa mais satisfatória, embora tenha usado ocasionalmente a Neto
Revised Standard Version. Por vezes, modifiquei a tradução, em ordem a ser mais fiel ao
fraseado do texto grego.
Rebecca Gray leu e comentou dois rascunhos do livro, pelo que lhe estou muito grato. Agradeço
igualmente a Frank Crouch, que elaborou um índice das passagens bíblicas, e a Marlena Dare,
que o datilografou. Gostaria de agradecer também a Peter Carson e Miranda McAllister, da
Penguin Books, pelos conselhos muitíssimo úteis e pela grande paciência, assim como a Donna
Poppy, pelo seu trabalho minucioso sobre o texto dactilografado.
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1. Introdução
Numa manhã primaveril, por volta do ano 30 da era cristã, as autoridades romanas executaram
três homens na Judeia. Dois eram salteadores - homens que deviam ter sido ladrões ou
bandidos, cujo único interesse era o seu próprio proveito, mas que também podiam ter sido
insurretos cujo banditismo tinha um objetivo político. O terceiro foi executado como um outro
tipo de criminoso político. Não tinha roubado, pilhado, assassinado, nem sequer acumulado
armas. Foi condenado, no entanto, com base na acusação de ter afirmado que era «rei dos
judeus» - um título político. Aqueles que assistiam - entre os quais se encontravam algumas das
mulheres que tinham seguido o terceiro homem - pensavam, certamente, que as suas esperanças
de uma «insurreição» bem sucedida tinham sido destruídas e que o mundo quase não daria pelo
que tinha acontecido naquela manhã de Primavera. De facto, durante algum tempo - tal como
demonstram os vestígios literários da elite do Império Romano -, o mundo quase não registou
este acontecimento. É evidente que o terceiro homem, Jesus de Nazaré, acabou por se tornar
uma das figuras mais importantes da história da Humanidade. A nossa tarefa consiste em
compreender quem foi e o que fez este homem.
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Não vou tentar explicar por que razão este homem tem sido tão importante ao longo dos séculos
subsequentes à sua morte. Isto é uma outra questão que exige o estudo da evolução da teologia
cristã nos séculos posteriores à execução de Jesus, sobretudo nos quatro séculos que se lhe
seguiram. Jesus tornou-se o centro de uma nova religião e transformou-se numa figura
teológica: não só o fundador histórico de um movimento religioso, mas alguém cuja
personalidade e obra constituíram tema do pensamento filosófico e teológico. Durante quase
dois mil anos, a maioria dos cristãos considerou os ensinamentos de Jesus e as suas outras
atividades na Palestina como algo menos importante do que a sua relação com Deus Pai e do
que o significado que Deus atribuiu à sua vida e, sobretudo, à sua morte: a sua morte constituiu
um sacrifício pelos pecados do mundo inteiro.
Direi um pouco mais sobre o Cristo dos credos cristãos no capítulo x: aqui, gostaria apenas de
explicar que este livro constitui uma teologia. Não discutirei aqui nem o que Deus realizou
através da vida e morte de Jesus, nem a forma como Jesus participa ou não na Divindade.
Abordarei Jesus como um ser humano, que viveu numa determinada época e num determinado
local, e procurarei provas e apresentarei explicações - tal como qualquer historiador que escreve
sobre uma figura histórica.
É óbvio que a teologia desempenhará um papel importante nesta obra num outro sentido. Tanto
Jesus como os seus seguidores tinham ideias teológicas. Aqueles que transmitiram e
desenvolveram as tradições sobre Jesus, assim como os autores dos Evangelhos, atribuíram-lhe
um papel importante na sua compreensão da ação divina no mundo. Mencionarei, por vezes, a
teologia dos primeiros cristãos, porque é importante fazê-lo para analisar o que eles escreveram
sobre Jesus, e abordarei mais pormenorizadamente a teologia do próprio Jesus, porque isto
constitui uma parte essencial da pessoa que ele foi. No entanto, não tentarei harmonizar estas
doutrinas teológicas com os dogmas cristãos posteriores. Creio que existe uma continuidade
entre aquilo que o próprio Jesus pensava e aquilo que os seus discípulos pensaram depois da sua
morte, assim como entre aquilo que estes pensavam e aquilo em que os cristãos dos séculos
posteriores acreditavam. Mas também houve alterações e evoluções. Não seguiremos esta
história interessante para além da data do último Evangelho, isto é, cerca do ano 80.
A teologia do próprio Jesus e as teologias dos seus primeiros seguidores constituem questões
históricas, que devem ser exploradas da
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mesma maneira como se investiga o que Jefferson pensava sobre a liberdade, o que Churchill
pensava sobre o movimento operário e sobre as greves de 1910 e de 1911 ou o que Alexandre
Magno pensava sobre a reunião dos Gregos e dos Persas num só Império, bem como o que
pensavam os seus contemporâneos sobre estes grandes homens.
Visto que alguns leitores não estarão habituados a explorar historicamente a vida e o
pensamento de Jesus, gostaria de perspetivar o presente trabalho dizendo algumas palavras
sobre os outros temas históricos que acabei de mencionar. Eles envolvem graus de dificuldade
distintos e requerem a utilização de vários tipos de material. O pensamento de Jefferson sobre a
liberdade e o governo representa um tema vasto, que exige um estudo minucioso, mas cujas
fontes são excelentes, devido, em parte, à vasta correspondência de Jefferson, a qual foi
conservada cuidadosamente.' As medidas que Churchill tomou a respeito da greve dos mineiros,
em 1910, e de uma greve dos caminhos de ferro, em 1911, e, sobretudo, as ordens que deu à
polícia e ao exército quanto à utilização da força foram bastante discutidas na imprensa da
época; além disso, desenvolveram-se opiniões populares que perduraram até aos dias de hoje,
embora sejam, frequentemente, incorretas. O historiador tem de examinar cuidadosamente os
vários relatos, incluindo os boatos e as bisbilhotices, para determinar com precisão aquilo que
Churchill fez e pensou sobre questões que excitaram tão fortemente os ânimos. Segundo parece,
uma investigação exaustiva de todos os documentos; tanto públicos quanto privados, ilibam-no,
em grande parte, das acusações que lhe são feitas." A questão de saber o que Alexandre Magno
pensava sobre as suas conquistas sem precedentes é uma questão por esclarecer, à qual não se
pode responder inequivocamente com base nas provas existentes. Sabemos que conquistou o
Império persa, que casou com uma princesa persa e que
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ordenou a alguns dos seus oficiais que casassem com mulheres da nobreza persa. Mas não
podemos saber o que ele pensava exatamente. Podemos concluir, genericamente, que o seu
objetivo era estabelecer uma espécie de união ou harmonia entre os seus oficiais macedónios e a
nobreza persa, mas não podemos dizer com precisão o que ele pretendia.
Estas questões assemelham-se todas às questões sobre Jesus num aspeto fundamental: as
personagens principais são figuras lendárias. As pessoas falavam sobre elas, transmitiam
histórias sobre elas durante o tempo da sua própria vida e, com o passar dos anos, alguns aspec-
tos da vida destas figuras foram salientados, enquanto outros foram esquecidos. Quem faz
investigação sobre Jefferson ou Churchill dispõe de fontes excelentes que lhe permitem ir para
além das lendas e dos boatos. O biógrafo de Jefferson pode apoiar-se numa quantidade imensa
de fontes, enquanto o biógrafo de Churchill fica quase imerso em documentação. Descobrir
aquilo que Jesus pensava assemelha-se muito mais à investigação sobre o Alexandre histórico.
Não se conservou nada que tenha sido escrito pelo próprio Jesus. Os documentos mais ou
menos contemporâneos a ele, abstraindo os do Novo Testamento, não esclarecem realmente
nada sobre a vida e a morte de Jesus, apesar de revelarem muito sobre o ambiente social e
político. As fontes principais do nosso conhecimento do homem Jesus, os Evangelhos no Novo
Testamento, têm, para o historiador, o defeito de terem sido escritas por pessoas cujo objetivo
era exaltar o seu herói. Contudo, as fontes para Jesus são melhores do que aquelas que se
debruçam sobre Alexandre. As biografias de Alexandre originais perderam-se todas e só as
conhecemos porque foram utilizadas por autores mais recentes - muito mais recentes." As fontes
primárias sobre Jesus foram redigidas numa fase mais próxima da época em que ele viveu e as
pessoas que o tinham conhecido ainda estavam vivas. Este é um dos motivos para se dizer que
sabemos mais sobre Jesus do que sobre Alexandre. Por um lado, Alexandre alterou tanto a
situação política numa grande parte do mundo que os traços fundamentais da sua vida pública
são, de facto, bastante conhecidos. Jesus não alterou a situação social, política e
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económica da Palestina. Mesmo assim - como veremos aprofundadamente mais adiante -,
possuímos uma ideia bastante correta sobre o percurso da sua vida exterior e, sobretudo, sobre a
sua vida pública. A superioridade das provas existentes sobre Jesus, em comparação com
Alexandre, torna-se patente, quando perguntamos o que ele pensava. Os seus discípulos
iniciaram um movimento que se baseava, em parte, naquilo que o próprio Jesus tinha pensado e
feito. Se conseguirmos descobrir quais são as ideias que eles assumiram de Jesus, saberemos
muito sobre o seu pensamento. O estudo minucioso dos Evangelhos permite distinguir
frequentemente entre aquilo que se preservou das ideias do próprio Jesus e as opiniões dos seus
discípulos, como veremos mais pormenorizadamente adiante. O facto de algumas das nossas
fontes serem independentes entre si aumenta a nossa segurança. Em Paulo encontram-se
indicações importantes sobre algumas das perspetivas e expectativas de Jesus e as cartas de
Paulo foram escritas antes dos Evangelhos. Por outro lado, as suas cartas foram coligidas e
publicadas depois de os Evangelhos terem sido redigidos; por conseguinte, Paulo não conhecia
os Evangelhos e os autores dos Evangelhos não conheciam as epístolas de Paulo.
Mesmo assim, as nossas fontes deixam muito a desejar. Os Evangelhos transmitem palavras e
atos de Jesus numa língua que não era a sua (ele ensinou em aramaico e os Evangelhos estão
escritos em grego) e colocam cada peça de informação num cenário imaginado pelos seus
discípulos, sendo que se trata habitualmente de discípulos que se encontravam a uma certa
distância temporal em relação a ele. Mesmo que soubéssemos que estamos perante as suas
próprias palavras, teríamos sempre de recear que ele tivesse sido citado fora de contexto.
O historiador que investiga a vida de um grande homem e faz um relato completo das suas
descobertas escreverá, quase com certeza, algumas coisas que os admiradores da pessoa em
causa prefeririam não ler. As pessoas, cuja imagem de Jefferson foi criada imaginando o
carácter do autor da Declaração da Independência, podem ficar chocadas com um estudo sobre a
sua vida amorosa e o seu consumo de álcool. Quem pensa em Churchill como o homem que
«mobilizou a língua inglesa e a mandou para a guerra» (como se lhe referiu John
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F. Kennedy), achará menos interessante a descrição de Churchill como representante da política
interna. Isto não constitui um aviso de que eu vá revelar algo verdadeiramente chocante sobre
Jesus, como uma promiscuidade sexual, por exemplo. Limitar-me-ei ao material empírico que
não diz absolutamente nada sobre temas deste género. Se Jesus teve alguma falta séria, não
temos possibilidade de a conhecer. Mas também não me limitarei a escrever como ele era
simpático, nem ignorarei os aspetos da sua vida e do seu pensamento que os seus admiradores
mais fervorosos gostariam de ver desaparecer. Temos de compreender por que motivo provocou
controvérsias e porque tinha inimigos. A visão cristã tradicional, segundo a qual os judeus o
odiavam porque ele era um homem bom e porque defendia o amor, ao qual eles se opunham,
não serve. Esforçar-me-ei por lidar com ele e com os seus contemporâneos de uma forma mais
realista.
A pesquisa sobre o Jesus da História já tem mais de 200 anos. Nos finais do século XVIII,
alguns europeus corajosos começaram a aplicar os métodos da crítica literária e histórica aos
livros do Novo Testamento que, até ali, tinham estado fora do seu alcance - eram demasiado
sagrados para a investigação laica da Renascença e do Iluminismo. A leitura das descrições de
Jesus, escritas neste período de dois séculos por investigadores sérios e empenhados, revela que
as conclusões foram extraordinariamente díspares, o que levou muitos a pensar que não
sabemos realmente nada. Esta reação é exagerada; sabemos bastante. O problema está em
conciliar o nosso conhecimento com as nossas esperanças e aspirações. A importância que Jesus
e o movimento que ele iniciou alcançaram posteriormente leva a que queiramos saber tudo
sobre ele, especialmente, sobre os seus pensamentos mais íntimos, como, por exemplo, o que
pensou de si mesmo. Como já disse, penso que temos bons indícios sobre algumas das ideias de
Jesus. No entanto, é, normalmente, ilusório pensar que se tem acesso aos pensamentos íntimos,
mesmo que seja de pessoas cuja vida pública está bem documentada. O que pensava Lincoln de
facto, no fundo do seu coração, sobre a libertação dos escravos? É uma pergunta difícil, apesar
de dispormos de muito material sobre Lincoln, e embora saibamos o que ele
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fez e com que consequências. Com Jesus, a situação é semelhante, embora a nossa
documentação não seja tão completa: conhecemos algumas das coisas que ele fez, uma
quantidade razoável sobre o que ensinou e bastante sobre as suas consequências. A partir daí,
temos de inferir quais eram os seus pensamentos mais profundos. Não deveríamos ter receio de
fazer essas inferências, mas deveríamos reconhecer que elas são menos seguras do que as suas
palavras e os seus atos - sobre os quais já é bastante difícil chegar a provas seguras.
O objetivo do livro é apresentar, tão claramente quanto possível, aquilo que podemos descobrir
recorrendo aos métodos de investigação histórica habituais, assim como fazer uma distinção
entre isto e as inferências, classificando-as inequivocamente como tal. A discussão geral dos
milagres e da doutrina de Jesus incluirá algumas passagens de cuja fiabilidade duvido (como
esclarecerei no lugar devido), mas as provas que eu considero certas controlarão os temas, as
categorias e as conclusões.
Este objetivo é modesto, mas difícil de cumprir. É frequente os autores gostarem de descrever as
dificuldades do seu objeto para despertarem a compaixão dos leitores. Claro que espero ter
leitores benévolos, mas também penso que é, realmente, mais difícil escrever livros sobre Jesus
do que sobre outras pessoas acerca das quais dispomos de documentação comparável. Já chamei
a atenção para o facto de pessoas que se contentam com uma informação geral sobre outras
figuras da Antiguidade quererem saber muito mais no caso de Jesus. Põem-se outros problemas
específicos. Um deles consiste no facto de as fontes principais, os Evangelhos do Novo
Testamento, constituírem uma leitura amplamente divulgada e serem de acesso direto para o
público que lê. Isto exige que o autor esclareça com algum detalhe a forma como utiliza as
fontes - tarefa que os biógrafos de outras figuras da Antiguidade podem realizar rapidamente ou
mesmo omitir. Todos os historiadores têm opiniões sobre as suas fontes, mas, habitualmente, só
têm de as explicar a outros investigadores. A discussão dos problemas postos pelas fontes da
Antiguidade é quase necessariamente técnica, o que impõe um fardo suplementar aos leitores.
Problema mais importante ainda é o de praticamente toda a gente ter a sua própria opinião sobre
Jesus e, portanto, ter uma ideia preconcebida sobre aquilo que um livro sobre ele deveria dizer.
Salvo raras exceções, estas opiniões são extremamente favoráveis. As pessoas querem estar de
acordo com Jesus e isto significa, frequentemente, que o veem concordando com elas.
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Os ensinamentos éticos de Jesus, em particular, são aplaudidos em quase todos os campos. Os
ensinamentos recolhidos no sermão da montanha (Mt 5-7), sobretudo, o mandamento do amor
aos seus inimigos e a oferta da outra face, a par das parábolas em Lucas, como, por exemplo, a
história do bom samaritano, serviram, muitas vezes, como súmula da verdadeira religião no
pensamento dos grandes e famosos, incluindo daqueles que não tinham simpatia por nenhuma
ou quase nenhuma religião organizada. Thomas Jefferson rejeitava a ideia de uma igreja
estabelecida (quer dizer, de uma religião oficial de Estado); e esta perspetiva foi incluída na
Constituição dos Estados Unidos da América. Mas Jefferson foi ainda mais longe: escreveu que
tinha «jurado sobre o altar de Deus uma inimizade eterna por qualquer forma de tirania sobre o
espírito humano», incluindo, em particular, as doutrinas de muitas confissões cristãs. No
entanto, considerava Jesus um «mestre obreiro», cujo «sistema moral foi, provavelmente, o
mais benéfico e sublime alguma vez ensinado». Segundo Jefferson, Jesus era «sensível à
incorreção das opiniões dos seus antecessores sobre a Divindade e a moral» e «fez tudo para os
conduzir aos princípios de um deísmo puro e a noções mais corretas dos atributos de Deus, a
fim de reformar as suas doutrinas morais de acordo com as normas da razão, da justiça e da
filantropia e para inculcar a fé num estado futuro». Por outras palavras, Jesus era muito parecido
com Jefferson.
Charles Dickens era mordaz em relação à Igreja vitoriana. Assim, escreveu que, num dia de
Outono em Coketown (a cidade fictícia de Disckens, na qual era suposto todos os desastres
sociais e económicos da revolução industrial tornarem-se patentes), «as cotovias cantavam,
apesar de ser um domingo».'? Dickens debruça-se pormenorizadamente sobre os horrores do
domingo numa extensa passagem na sua obra intitulada Little Dorrit. Clennam, uma das
personagens do romance, recorda uma legião de domingos passados, «todos eles dias de uma
amargura e angústia absurdas». No entanto, o autor estabelece um contraste entre os
desconsoladores dias de descanso vitorianos e a «história benévola do Novo Testamento»,
acerca da qual Clennam
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nunca ouviu falar durante as muitas horas que tinha passado na igreja. u Perto do fim do livro, a
heroína insta a dura senhora Clennam a não se agarrar à sua religião vingativa, mas sim a
deixar-se apenas guiar por aquele «que curava os doentes, ressuscitava os mortos, o amigo de
todos os que sofriam e estavam sobrecarregados, o bom Mestre que derramou lágrimas de
compaixão pelas nossas fraquezas». O desagrado de Dickens em relação aos domingos não se
estendia a Jesus. Os domingos em Coketown poderiam ser sombrios, mas o verdadeiro
problema era que os homens que mandavam, como, por exemplo, o senhor Gradgrind,
pensavam que o «bom samaritano» era um «mau economista.»
Winston Churchill, embora não tivesse nada contra o cristianismo oficial, tinha a mesma
opinião sobre Jesus. Segundo um cronista, numa longa conversa com Harry Hopkins e outros,
em 1941, Churchil ventilou a questão da tarefa de reconstrução do mundo quando a Guerra
acabasse, finalmente. «Não podíamos encontrar um fundamento melhor do que a ética cristã e
quanto mais seguirmos o sermão da montanha, tanto mais probabilidade teremos de ser bem
sucedidos nos nossos esforços.» Onze anos mais tarde, Churchill continuava a ver no sermão da
montanha «a última palavra em matéria de ética.»
O facto de Jesus gozar de uma aprovação tão generalizada prova que os autores dos Evangelhos
cumpriram bem a sua tarefa. Eles pretendiam que as pessoas se convertessem a ele, que o
admirassem e acreditassem que ele tinha sido enviado por Deus e que segui-lo levaria à vida
eterna. Raramente as expectativas foram cumpridas de forma tão total. Na perspetiva dos
autores, a admiração por Jesus e a fé nele iam a par. Mateus e Lucas (aos quais devemos o
sermão da montanha e a parábola do bom samaritano) não teriam gostado que os ensinamentos
de Jesus fossem separados da própria convicção teológica, que eles próprios possuíam de que
Deus o tinha enviado para salvar o mundo. Apesar disso, a forma como construíram os seus
livros permite ao leitor escolher aquilo que lhe agrada e foi isso que muitos leitores
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fizeram, admirando Jesus, mas discordando da teologia cristã. Nestes casos, alguns dos
objetivos dos evangelistas foram alcançados.
É destino do historiador ser a pessoa que submete os Evangelhos a um tratamento severo. Ele
pode aderir ou não à teologia dos Evangelhos, isto é, à ideia de que Deus atuou através de Jesus.
Seja como for, tem de ter consciência de que os autores tinham convicções teológicas e de que é
provável que tenham revisto os seus relatos para que estes apoiassem as suas convicções. O
historiador também tem de suspeitar que a doutrina ética que impressionou tanto o mundo tenha
sido acrescentada através da sua utilização homilética e dos aperfeiçoamentos redaccionais
ocorridos entre o tempo de Jesus e o surgimento dos Evangelhos. Independentemente destas
suspeitas, o historiador tem a obrigação profissional de submeter as fontes a um interrogatório
cruzado rigoroso: «Tu afirmas que "todos os habitantes de Jerusalém" foram ouvir João Baptista
(Mc 1,5) e que Jesus curou "todas as doenças e todos os males" (Mt 4,2.3). Eu digo-te que estás
a exagerar muitíssimo.» É óbvio que, nestas duas passagens, o historiador não observa senão
exageros de retórica. Mas é necessário colocar outras questões: «Tu afirmas que os seus
inimigos eram astuciosos e cheios de maldade. Eu digo-te que alguns eram sinceros, honestos e
piedosos e que, por isso, o conflito não se reduzia a um esquema a preto e branco, como se fosse
um western:» E o exame continua ao longo de todo o relato. Portanto, ao contrário dos políticos,
romancistas ou moralistas, o historiador não pode limitar-se a escolher aquelas partes do
Evangelho que testemunham nobreza e que podem servir de inspiração a outros. O historiador
escolhe, mas com base em critérios diferentes: o que pode ser provado, o que não pode, o que
está entre uma coisa e outra?
O livro tem a seguinte estrutura: nos próximos cinco capítulos apresento mais material
introdutório. O capítulo 2 constitui um esboço preliminar da vida e da época de Jesus; o capítulo
.3 consiste numa breve apresentação da situação política que se vivia na Palestina no século I; o
capítulo 4 consta de algumas questões fundamentais sobre o Judaísmo como religião; nos
capítulos 5 e 6 são debatidos alguns dos problemas inerentes às nossas fontes. O cerne do livro é
constituído pelos capítulos nos quais se procura proceder a uma reconstrução histórica daquilo
que Jesus fez e ensinou, dos seus conflitos com outros e da sua morte. No epílogo, faço uma
reflexão sobre as narrativas da sua ressurreição.
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3. Situação política
Quando Jesus nasceu, o Mediterrâneo oriental estava dominado por Roma. A sua execução foi
ordenada por um administrador romano. No entanto, durante a maior parte da sua vida não
esteve sujeito ao poder direto das autoridades romanas. Vamos examinar o ambiente político, no
qual ele viveu e trabalhou, visto que temos de saber quem tinha poder sobre vários aspetos da
vida nas diversas regiões da Palestina. No final dos anos vinte e no início dos anos trinta, havia
uma tripartição do poder. Herodes Antipas era o tetrarca da Galileia e de Pereia, Pôncio Pilatos
era o prefeito da Judeia e da Idumeia (que, naquela época, englobava três zonas geográficas
(Samaria, Judeia e Idumeia) e José Caifás era o sumo sacerdote em Jerusalém. Esta divisão é
mais fácil de compreender se começarmos com um breve resumo da história política que esteve
na sua origem. Mas, primeiro, vou apresentar o homem a cujos escritos devemos a maior parte
dos nossos conhecimentos sobre a Palestina na época de Jesus.
Josefo, filho de Matatias, nasceu no ano 37 e.c., pouco tempo depois da execução de Jesus,
numa família aristocrática de sacerdotes. Josefo era um grande conhecedor da lei e da história
bíblicas, tendo estudado, também pormenorizadamente, os partidos religiosos mais importantes
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da sua época (os essénios, os saduceus e os fariseus). Era promissor e ainda um jovem quando
foi mandado a Roma para persuadir Nero a libertar alguns reféns judeus. Quando a revolta
contra Roma eclodiu, em 66 e.c., foi-lhe entregue o comando da Galileia, apesar de ter apenas
vinte e nove anos de idade. As suas tropas foram derrotadas, mas ele sobreviveu à derrota,
graças à sorte e à habilidade. Teceu elogios ao general romano vitorioso, Vespasiano,
vaticinando que ele haveria de se tornar imperador. Quando isso aconteceu, em 69, Josefo subiu
na vida. O filho de Vespasiano, Tito, que ganhou a guerra contra os judeus, utilizou Josefo
como intérprete e porta-voz para os judeus que defendiam Jerusalém. Depois da guerra, Tito
levou Josefo consigo para Roma, onde lhe ofereceu casa e uma pensão. Josefo escreveu a
história da guerra (Guerra judaica). Esta foi publicada nos anos setenta. Mais tarde, escreveu
uma grande história dos judeus (Antiguidades Judaicas) que publicou nos anos noventa.
Escreveu também uma defesa do Judaísmo contra os seus críticos (Contra Apion) e uma Vida
apologética. Era um bom historiador, para os critérios da época, e dispunha de fontes exce-
lentes para algumas partes das suas narrativas históricas. As exposições históricas que se
seguem baseiam-se, em grande medida, em Josefo, visto que ele constitui a nossa única fonte
para grande parte delas.
Roma constituía o sucedâneo dos impérios anteriores: o persa, o de Alexandre Magno, e os
vários impérios helenísticos que se seguiram a este." Apesar de os impérios terem surgido e
desaparecido, os seus sistemas não se alteraram muito. Os povos subjugados pagavam tributo ao
imperador; em contrapartida, eram protegidos das invasões e era-lhes permitido viver em paz -
se estivessem dispostos a fazê-lo. Por vezes, os estados subjugados eram governados por
autoridades locais «independentes», outras vezes, por um governador do império, que recorria
às autoridades locais para a administração do dia-a-dia. Existem várias
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situações análogas na história moderna. Nos impérios coloniais do século XVIII e XIX, as
potências colonizadoras nomeavam um governador e estacionavam tropas no país, mas
utilizavam, em certa medida, nativos na administração e na polícia; estes serviam, por vezes,
como intermediários entre o governo e a população." A União Soviética recorreu a uma forma
alternativa de governo imperial depois da Segunda Guerra Mundial. Estabelecia governos
«independentes» nos países da Europa Oriental e só intervinha com as suas próprias tropas
quando havia uma insurreição grave ou uma ameaça efetiva ao seu poder hegemónico.
Entre o século VI e meados do século II a.e.c, os judeus da Palestina constituíam uma nação
muito pequena no interior de um dos grandes impérios, um povo cujo território se limitava às
montanhas da Judeia, sem qualquer acesso ao mar e fora das grandes rotas de comércio. Era
governado pelo sumo sacerdote e o seu conselho, que deviam prestar contas ao governador do
Império ou diretamente à capital do mesmo. Neste período de cerca de 400 anos, não existiram
quaisquer conflitos substanciais entre a Judeia e o poder imperial. Os judeus viviam pacifi-
camente sob o governo dos monarcas persas e helenistas.
A partir do ano 175 a.e.c., com a subida de Antíoco IV Epifânio ao trono do império selêucida,
a situação começou a alterar-se. Alguns dos sacerdotes aristocráticos em Jerusalém queriam
adoptar um estilo de vida mais helenista, incluindo a introdução de um gymnasion, uma das
principais instituições da civilização grega. O gymnasion educava rapazinhos e jovens e uma
parte da educação consistia em exercícios físicos a nu. Isto tornou patente uma diferença
fundamental entre a cultura helenista e a judaica: os judeus do sexo masculino eram
circuncidados, em sinal da aliança feita entre Deus e Abraão (Gn 17), enquanto os
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gregos, que acreditavam numa mente sã em corpo são, abominavam a circuncisão como
mutilação. Alguns judeus submeteram-se a uma operação para disfarçar a sua circuncisão (1
Mac, 1, 14 e segs.).
Estes passos extremos provocaram uma reação. Os judeus não se opunham a todas as formas de
influência estrangeira. Assumiram numerosos aspetos da religião e da cultura persa durante o
período deste império e, em 175, também já tinham aceite alguns aspetos do helenismo. Mas o
gymnasion ia longe de mais, porque levava à remoção da circuncisão, o símbolo da aliança.
Prescindimos de uma descrição pormenorizada dos acontecimentos que se seguiram. A
resistência judaica levou à tomada de medidas coercivas por parte de Antíoco, para impor a
helenização dos judeus. O Templo em Jerusalém foi profanado por sacrifícios pagãos, os judeus
foram obrigados a fazer sacrifícios aos deuses pagãos e alguns judeus foram obrigados a comer
carne de porco, assim como a transgredir a Lei de outras maneiras. Isto levou, por sua vez, a
uma revolta liderada pelos Asmoneus, uma família de sacerdotes, também conhecidos pelo
nome de «Macabeus», por causa de uma alcunha dada a um dos irmãos que liderou a
insurreição. O movimento dos Asmoneus acabou por ser bem sucedido, tendo contado, para
tanto, com a grande ajuda das guerras de sucessão no império selêucida, após a morte de
Antíoco IV.
Os Asmoneus fundaram uma nova dinastia. Governavam a Palestina judaica como sumos
sacerdotes e acabaram por assumir o título real. O Estado judaico totalmente independente
durou cerca de 100 anos, tempo durante o qual os reis sacerdotais Asmoneus aumentaram
consideravelmente o seu território, até este acabar por ter aproximadamente a mesma dimensão
do reino de David. Os conflitos internos entre dois irmãos da família dos Asmoneus, Hircano II
e Aristóbulo II, puseram fim à independência judaica. Durante a sua luta pelo poder, ambos
apelaram à ajuda do general romano Pompeu. Ele respondeu, conquistando Jerusalém e
separando uma parte do território recém-conquistado (63 a.e.c.). Nomeou Hircano II sumo
sacerdote e «etnarca» («regente da nação», um grau inferior ao de rei); além disso, empossou
um idumeu, chamado Antipatro, como uma espécie de governador militar. Em seguida,
Antipatro nomeou dois dos seus
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filhos, Fasael e Herodes (que seria conhecido, mais tarde, por Herodes Magno) para
governadores da Judeia e da Galileia, respetivamente.
A invasão de Pompeu alterou a posição do governo judaico. Este deixou de ser completamente
independente para passar a ser semi-independente. Hircano II tornou-se soberano vassalo.
Pagava tributo a Roma e era obrigado a apoiar a política e as ações militares dos romanos no
Mediterrâneo oriental. Em contrapartida, gozava de autonomia no seu território; Roma assumiu
a obrigação tácita de o proteger e de o manter na sua posição. Aristóbulo II não estava satisfeito
com este regime. Ele e o seu filho Antígono revoltaram-se. Aristóbulo foi assassinado por
amigos de Pompeu, mas o seu filho prosseguiu a luta, aliando-se aos Partos, a principal ameaça
militar contra Roma naquela época. No ano 40 a.e.c., os Partos esmagaram o Médio Oriente,
prenderam Hircano II e Fasael e empossaram Antígono como rei e sumo sacerdote. Herodes
fugiu e conseguiu chegar a Roma. Foi nomeado rei da Judeia pelo Senado romano, com o apoio
de Marco António e de Octaviano (que viria a ser chamado Augusto); além disso, recebeu o
apoio das tropas romanas para reclamar o seu direito ao trono.
Herodes foi escolhido porque era forte, um soldado excelente e leal a Roma; no entanto, a sua
nomeação também estava em consonância com a política do Império Romano. Herodes tinha
sido um apoiante de Hircano lI, a primeira escolha de Roma. Ao nomearem Herodes e ao
apoiarem-no militarmente, os romanos apoiavam o seu protegido, opondo-se ao partido de
Aristóbulo II e Antígono, que se aliou, ele próprio, ao adversário de Roma. Herodes venceu a
guerra civil com a ajuda das tropas romanas. O rei vitorioso mandou Antígono a Marco
António, que o mandou executar. No ano 37, Herodes restabeleceu a Palestina judaica como
«estado independente» - melhor, como um reino vassalo semi-independente.
A ênfase que coloquei na relativa independência da Palestina judaica deve-se ao facto de os
investigadores do Novo Testamento, em particular, pensarem que Roma «dominava» ou
«ocupava» a Palestina no tempo de Jesus, com soldados romanos em cada esquina. A situação
variou de época para época e de local para local (como veremos), mas, em geral, Roma
governava à distância, contentando-se com a cobrança do tributo e com a preservação de
fronteiras estáveis,
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a maior parte das vezes, mesmo a execução destas tarefas era deixada aos governadores e líderes
locais leais a Roma.
Herodes e a sua família eram idumeus, originários de uma região no sul da Judeia, que tinha
sido conquistada pelos judeus com a força das armas durante o tempo dos Asmoneus. Muitos
judeus consideravam-no só meio-judeu e tinham uma atitude de ressentimento em relação ao
seu governo. Além disso, ele tinha suplantado a família dos Asmoneus, que, embora estivesse
parcialmente desacreditada devido a conflitos internos, continuava a contar com a fidelidade de
uma grande parte da população. Herodes casou com Mariamne, uma princesa Asmoneia, mas
sabia que isto não era suficiente para ser amado pelo povo. Receava uma revolta e, ao longo dos
anos, foi eliminando os membros que restavam da família dos Asmoneus, incluindo Mariamne e
os dois filhos que teve dela.
Depois de ter conquistado a Palestina, dominou-a com mão forte, até à sua morte, 33 anos
depois. As tropas romanas, que o tinham ajudado na conquista, retiraram-se para outras regiões
e Herodes era senhor absoluto na sua própria casa. É claro que não podia agir contra os inte-
resses romanos: Augusto tinha a última palavra nas questões decisivas; mas, nas restantes,
Herodes governava o seu reino como lhe apetecia. Lançou-se em grandes projetos de construção
que empregaram dezenas de milhares de trabalhadores, promoveu o negócio e aumentou a
prosperidade das terras reais. Esmagou impiedosamente qualquer oposição, nem que fossem
protestos mínimos. No fim da sua vida mandou executar três dos seus filhos por ter suspeitado
que eles eram traidores. Augusto, que aprovou o julgamento dos primeiros dois filhos,
comentou que preferia ser o porco de Herodes do que o seu filho", Herodes seguia a Lei judaica
com bastante rigor e não comia carne de porco.
Tudo somado, Herodes era um bom rei. Não quero com isto dizer que lhe devêssemos conceder
a nossa aprovação moral, mas que as suas fraquezas, para os critérios daquele tempo, não eram
demasiado graves, sendo, em parte, compensadas por qualidades mais positivas.
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Os ideais que motivam as democracias modernas ainda não tinham surgido. Em comparação
com Augusto, um dos seus patronos, Herodes era desnecessariamente cruel e de visões curtas.
No entanto, se o compararmos com os quatro imperadores romanos que se seguiram a Augusto
(Tibério, Calígula, Cláudio e Nero), ele parece quase benévolo e misericordioso e era mais
eficaz como governador. O que o distingue como um bom rei é o facto de ter aumentado a
importância da Palestina no mundo, de ter prosseguido a política do seu pai no sentido da
obtenção de benefícios para os judeus fora da Palestina, de não ter permitido que estalasse a
guerra civil, que tinha deteriorado a situação no tempo dos Asmoneus e que haveria de se
reacender na insurreição contra Roma e de, mais importante ainda, ter mantido os cidadãos
judeus à distância dos soldados romanos. Enquanto a Palestina judaica fosse estável e forte,
Roma deixava-a em paz.
Quando Herodes morreu, no ano 4 a.e.c., Augusto analisou os testamentos que ele tinha deixado
(eram dois) e decidiu dividir o reino entre três filhos. Arquelau recebeu o título de «etnarca» e
foi nomeado governador da Judeia, Samaria e Idumeia. Antipas e Filipe foram nomeados
«tetrarcas», «governadores de um quarto»; Antipas herdou a Galileia e a Pereia, enquanto Filipe
recebeu as regiões mais remotas do reino de Herodes. Antipas revelou-se um vassalo fiel e
governou a Galileia durante quarenta e três anos, até 39 e.c. Arquelau teve menos sorte; os seus
súbditos protestaram contra algumas das suas medidas e Roma deu-lhes razão, destituindo-o e
exilando-o (6 e.c.). Augusto nomeou, então, um funcionário romano para governar a Judeia, a
Samaria e a Idumeia.
Herodes fundou uma pequena dinastia e, ao que parece, os seus sucessores assumiram - ou,
melhor, foi-lhes atribuído - o seu próprio nome. Tal como os sucessores de Júlio César se
chamaram «César», os sucessores de Herodes receberam o nome de «Herodes». Em
consequência disto, no Novo Testamento, há várias pessoas chamadas Herodes. A nota
identifica os vários «Herodes» do Novo Testamento. Designarei sempre os filhos e os netos de
Herodes pelos seus nomes próprios.
37
O judaísmo comum
1. Monoteísmo. Os judeus acreditavam que só havia um Deus verdadeiro. Ele tinha criado o
mundo e continuava a governá-lo. Muitos judeus acreditavam em outros seres sobrenaturais -
anjos e demónios. O apóstolo Paulo, que representa a opinião judaica habitual nestas questões,
considerava que as divindades pagãs eram demónios (1 Cor 10, 20). Chamava até «deus deste
mundo ao arquidemónio, Satanás, (2 Cor 4,4; sobre «Satanás», ver 2 Cor 11, 14). Estas ideias
não significavam uma negação do monoteísmo, do ponto de vista dos judeus daquela época. No
fim, todos os outros poderes se submeteriam ao Deus único (1 Cor 15, 24-26; FI 2, 10 e segs.).
Entretanto, só esse Deus é que era digno de ser adorado. Os gentios (na opinião dos judeus)
deveriam ter sido capazes de reconhecer isto, visto que é possível deduzir o criador a partir da
sua criação, tal como é possível deduzir a existência de um oleiro a partir de uma vasilha de
barro. Seja como for, os judeus eram os recetores da revelação e era-lhes estritamente proibido
ter qualquer relação com divindades pagãs.
2. A eleição divina e a Lei. Os judeus acreditavam que Deus tinha escolhido Israel e feito uma
aliança com o povo judeu que os obrigava a obedecer-lhe, assim como obrigava Deus a guiá-los
e a protegê-los. Os três momentos mais importantes na história desta aliança foram chamamento
de Abraão (Gn 17), o êxodo do Egipto (Ex 14) e a revelação a Moisés da Lei divina, no monte
Sinai (Gn 19, 16 até ao fim do Dt).
3. Arrependimento, castigo e perdão. As pessoas que transgrediam a Lei deviam reparar a sua
falta, caso tivessem prejudicado outras pessoas com o seu ato, deviam arrepender-se e
apresentar um sacrifício. As transgressões que não tinham prejudicado outra pessoa (como tra-
balhar inadvertidamente ao sábado) exigiam o arrependimento e o sacrifício. Deus perdoaria
sempre ao pecador arrependido. Aqueles que não se arrependiam eram sujeitos ao castigo
divino, que se revelava, por exemplo, numa doença. Se aceitassem isto como o castigo de Deus
56
pelos delitos cometidos, continuavam a ser membros dignos da aliança. Em geral, este sistema
também se aplicava ao povo judeu como um todo. As suas transgressões levavam ao castigo
nacional, como o exílio na Babilónia, por exemplo. E as catástrofes levavam à contrição
humilde. Deus salvaria sempre o seu povo e o povo, apesar dos erros ocasionais, permanecer-
lhe-ia sempre fiel.
Os acontecimentos que conduziram ao estabelecimento da aliança (o chamamento de Abraão, o
êxodo, a entrega da Lei) proporcionaram a Israel o seu carácter inconfundível; no entanto, a
revelação de Deus ao povo e as Suas ações em prol do mesmo não acabaram com Moisés. Deus
deu a terra da Palestina aos israelitas. Depois, falou-lhes através de profetas. Os israelitas eram o
povo de Deus; Ele tinha pro- metido que os defenderia e faria deles uma grande nação, assim
como lhes garantiu a salvação. Esta promessa constituía um elemento essencial da eleição.
No século I, o termo «salvação» possuía vários significados (como vimos anteriormente, pp. 49-
52). Alguns judeus esperavam uma libertação nacional num sentido sociopolítico bastante
secularizado, outros ainda esperavam uma salvação individual no momento da morte, outros
contavam com um grande acontecimento que transformaria o mundo, elevaria Israel acima de
todos os outros povos e persuadiria os gentios a converterem-se. Enquanto esperavam, os judeus
deviam cumprir a Lei de Deus e procurar o Seu perdão, caso a transgredissem.
Estas crenças constituíam o cerne da «ortodoxia» judaica («opinião correta»), E incluíam a
exigência da «ortopraxia» («prática correta»), Enumeraremos agora algumas das principais
práticas características dos judeus cumpridores, sobretudo aquelas que os distinguiam dos
gentios.
1. Os judeus deviam adorar ou servir Deus (como se vê no segundo dos dez mandamentos, que
proíbe «servir» a outros deuses: Ex 20, 4; Dt 5,8). Isto significava, acima de tudo, adorá-lo no
Templo de Jerusalém. A Bíblia exige que os judeus varões visitem o Templo três vezes por ano,
isto é, durante as festas ligadas às peregrinações. A dispersão do povo judeu no século I tornou
impossível cumprir esta
57
obrigação; os judeus das regiões mais remotas da Palestina vinham, provavelmente, uma vez
por ano ao Templo, mas os judeus que viviam em outros países (denominados coletivamente
como Diáspora), muito raramente faziam a peregrinação. Quer visitassem ou não o Templo, os
judeus continuavam a pagar o imposto de Templo para a realização dos sacrifícios que eram
apresentados em nome de toda a comunidade. No entanto, o culto judaico não se limitava ao
Templo. O Deuteronómio 6, 5-7 exige que os judeus repitam os mandamentos mais importantes
duas vezes por dia «ao deitar e ao levantar»). A maioria dos judeus obedecia, provavelmente, às
instruções desta passagem: a primeira coisa que faziam de manhã e a última à noite era
pronunciar as palavras decisivas do texto de Deuteronómio «amarás o Senhor, teu Deus, com
todo o teu coração»), assim como alguns dos mandamentos mais importantes. Também
aproveitavam estes momentos de manhã e à noite para a oração. Existiam sinagogas, que se
chamavam habitualmente em grego «casas de oração», em praticamente todas as comunidades
judaicas. As pessoas reuniam-se nelas ao sábado para estudar a Lei e rezar. Por conseguinte,
para além do culto ocasional a Deus, no Templo de Jerusalém os judeus veneravam-No todos os
dias em casa e, semanalmente, na sinagoga. (Falaremos mais pormenorizadamente sobre as
sinagogas no capítulo 8.)
2. Os judeus circuncidavam os seus filhos do sexo masculino. Deus fez esta exigência ao povo
na Sua aliança com Abraão (Gn 17).
3. Os judeus não trabalhavam ao sábado, o sétimo dia da semana (quarto mandamento, Ex 20,8-
11; Dt 5, 12-15). A Bíblia estende o dia de descanso a todos os membros da família, aos criados,
aos estrangeiros que viviam nas cidades judaicas e ao gado. Além disso, de sete em sete anos, os
agricultores judeus na Palestina não plantavam qualquer produto agrícola e a terra ficava em
poisio.
4. Os judeus evitavam determinados alimentos que eram considerados «impuros» e
«abomináveis» (Lv 11, Dt 14). A carne de porco e os crustáceos são os alimentos mais
conhecidos proibidos na Bíblia, mas há muitos outros, como, por exemplo, a carne de aves de
rapina, de roedores e de cadáveres de animais.
5. Os judeus tinham de se purificar antes de entrar no Templo. As principais fontes de impureza
eram o esperma, o sangue de menstruação, outras secreções da zona genital (como, por
exemplo, as que eram provocadas por gonorreia e abortos), o parto e os cadáveres (Lv 11 e 15,
Nm 19). A purificação religiosa antes do culto no Templo fazia
58
parte integrante de todas as religiões da Antiguidade. A Lei judaica exigia que os processos
corporais que se relacionavam mais intimamente com a vida e a morte ficassem afastados
daquilo que era sagrado e imutável: a presença de Deus. No século I, alguns grupos alargaram
as regras de pureza para além das exigências bíblicas fundamentais. Assim, por exemplo, alguns
lavavam as mãos antes da oração e alguns antes ou depois das refeições.
Estes são os aspetos principais das práticas que distinguiam os judeus do resto da humanidade.
Isto não significa que fossem práticas únicas. Longe disso: são apenas formas especiais de
práticas gerais que estavam muito difundidas no mundo antigo. Todos sacrificavam animais aos
deuses e custeavam os templos. O que distinguia os judeus era o facto de terem apenas um
templo e de adorarem apenas um Deus. Do mesmo modo, todos no mundo greco-romano
observavam dias sagrados, mas não o sétimo dia de todas as semanas. Os gregos e os romanos
purificavam-se quando entravam nos templos e antes da apresentação de um sacrifício, aspergir-
se com água e lavar as mãos era um ritual comum. Os judeus na Palestina e, possivelmente,
também em alguns lugares na Diáspora, mergulhavam todo o corpo na água, o que era único
(tanto quanto sei). Quase todas as culturas possuem normas relativas à alimentação, apesar de
serem poucas as que atribuem estas prescrições a Deus. São poucas as ementas em que
aparecem abutres, doninhas, ratos, mosquitos e semelhantes. Os gregos e os romanos,
normalmente, não comiam cães. O tabu judeu em relação à carne de porco e aos crustáceos é
quase exclusivo; no entanto, os sacerdotes egípcios não comiam carne de porco. No que diz
respeito à circuncisão, as coisas são mais complicadas. Também existem paralelos com os
sacerdotes egípcios; além disso, os outros semitas praticavam igualmente a circuncisão
masculina. No entanto, os judeus eram conhecidos pela exigência da circuncisão, visto que esta
desempenhava um papel tão importante na sua cultura.
Como os exegetas modernos do Novo Testamento atacam frequentemente - a palavra não é um
exagero - os judeus do século I por causa de observarem algumas destas normas religiosas
(especialmente as prescrições que regulavam os sacrifícios, a alimentação e a pureza), gostaria
de realçar que esta crítica serve apenas para dizer que os judeus da Antiguidade não eram
cristãos protestantes modernos ou humanistas seculares - o que seria possível dizer com menos
animosidade
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e presunção do que aquela que estes estudiosos demonstram quando discutem o judaísmo. Os
judeus não eram únicos por terem regras e costumes ou por terem regras e costumes que
abrangiam estas questões. Toda a gente os tinha, mais ou menos.
Apesar de as práticas dos judeus terem paralelos em outras religiões, os gentios consideravam-
nas algo especial e alguns ridicularizavam-nos. Pensavam que um templo sem um ídolo era algo
estranho e que era antissocial recusar-se a venerar os deuses gregos e romanos. Também
consideravam que as normas judaicas sobre os alimentos eram estranhas, visto que a carne de
porco era a carne mais apreciada nos países do Mediterrâneo. A recusa dos judeus em
trabalharem ao sábado era a terceira prática que provocava mais comentários por parte dos
gentios. Estas práticas judaicas eram extravagantes por causa de os judeus serem tão fiéis aos
seus costumes. Os judeus que viviam na Diáspora - e, em algumas zonas, eram muito
numerosos - recusavam a assimilação cultural. Esta recusa tem uma explicação óbvia,
revelando, simultaneamente, a característica distintiva do judaísmo. O que é característico do
judaísmo é o facto de a Bíblia apresentar tantas práticas sob o título de «mandamentos divinos».
Os «costumes» judaicos eram disposições contidas na Lei que Deus deu a Moisés, no monte
Sinai. Enquanto todos os outros tinham hábitos alimentares convencionais, os judeus tinham
mandamentos divinos que prescreviam a alimentação. O mais impressionante na Lei judaica é
que ela submete todos os aspetos de vida, incluindo as práticas cívicas e domésticas, à
autoridade de Deus. Os judeus não podiam assimilar-se: não podiam adotar os feriados dos
outros e abandonar os seus; não podiam comer alguns dos alimentos que os outros comiam. Na
perspetiva dos judeus, estes e muitos outros costumes não eram meras convenções sociais, mas
sim mandamentos de Deus.
No judaísmo, a «religião» não consistia apenas em festas e em sacrifícios, como era o caso em
grande parte do mundo greco-romano, mas envolvia toda a vida. «A religião orienta todas as
nossas ações, trabalhos e palavras; o nosso legislador não deixou nada destas coisas por
examinar ou por determinar.» (Josefo, Contra Apion 2, 171.) Todas as culturas pensam que os
negociantes deveriam utilizar balanças corretas; os judeus atribuíam a Deus o mandamento de
utilizar pesos e medidas justas (Lv 19,35 e segs.). Todos eram a favor da caridade, como
princípio teórico; na Bíblia Hebraica, Deus exige a caridade e especifica como esta deve ser
praticada (Lv 19, 9 e segs.). Isto significa que,
60
no judaísmo, Deus exige moralidade na vida pública e na vida privada. Quando o Levítico
atribui as leis morais ao mesmo Deus que exige a pureza, enaltece as leis morais. O mundo
antigo acreditava em Deus (ou nos deuses) e todas as pessoas pensavam que os mandamentos
divinos exigiam que elas se purificassem e oferecessem sacrifícios. Tudo o resto possuía um
estatuto mais baixo no que diz respeito à sua origem e ao seu carácter absoluto. O judaísmo
elevou todos os aspetos da vida ao mesmo nível corno um culto a Deus (conferir, sobretudo, Lv
19). O judaísmo atribuía a Deus a perspetiva segundo a qual a honestidade e a caridade eram tão
importantes como purificações.
Hoje em dia, a maioria das pessoas que avaliam as religiões fazem-no em termos humanistas:
uma boa religião é aquela que inculca valores humanos. Alguns vão mais longe e querem saber
que posição assume a religião em relação à totalidade do Universo. Os pensadores judeus do
século estavam preparados para avaliar e defender a sua religião do ponto de vista humanista;
alguns também chamavam a atenção para as vantagens da sua religião para as partes não
humanas do Universo. Os judeus reclamavam para si a tão exaltada virtude da filantropia, o
«amor por toda a humanidade». Os mestres judaicos podiam resumir a Lei, citando Lv 19, 18,
onde se encontra o mandamento do amor ao próximo." Josefo chamou a atenção para o facto de
uma das virtualidades da Lei ser o respeito pelos inimigos na guerra; a Lei proibia, por exemplo,
às tropas judaicas cortarem as árvores de fruto dos seus adversários (Dt 20, 19; APion 2,212). O
argumento mais convincente a favor das qualidades «humanistas» da Lei talvez se torne patente
olhando para além da vida humana, para o bem-estar dos animais, das plantas e da terra. Deus
exigiu o descanso ao sétimo dia e o mandamento inclui os animais de trabalho (Apion 2,213).
Josefo até chama a isto filantropia. Por que razão ordenou Deus o ano sabático? Ele poderia ter
proibido os judeus de trabalharem no sétimo ano, mas não o fez; em vez disso, mandou deixar a
terra em pousio. Se Ele apenas tivesse proibido o trabalho dos judeus, a terra podia ser
arrendada
61
aos gentios. Ao que parece, Deus agiu (na opinião de Filo) por «respeito pela terra»
(Hypothetica 7, 18).
Depois das suas exposições sobre este e outros aspetos, Filo apercebeu-se de que muitos leitores
(sem conhecimentos sobre ecologia e direitos dos animais) considerariam que tudo isto era
trivial e respondeu: «Talvez penses que estas coisas não têm importância, mas grande é a Lei
que as ordena e incansável o cuidado que ela exige» (Hypothetica 7,9). Na perspetiva judaica, a
grandeza da Lei consistia, em parte, no facto de cobrir todas as trivialidades da vida e da
criação. Josefo também era de opinião de que Moisés fez bem em não deixar «nada, por muito
insignificante que fosse, ao juízo e ao capricho do indivíduo» (Apion 2,173). Os rabis diziam o
seguinte sobre o mesmo tema, apesar de não estar em causa a questão dos animais: «Ben Azzai
disse: corre para cumprir a obrigação mais pequena tal como para cumprir a obrigação mais
importante e foge da transgressão, porque uma obrigação traz consigo a outra obrigação e uma
transgressão traz consigo outra.» (Avot 4,2) A vida é encarada aqui como um todo. É possível
cumprir ou não cumprir a vontade de Deus em todos os aspetos e uma coisa leva à outra. O
mundo é o jardim de Deus; os seres humanos não são as Suas únicas criaturas.
5. Fontes externas
As principais fontes para o conhecimento de Jesus são (tal como foi notado anteriormente) os
Evangelhos do Novo Testamento. Neste capítulo, porém, consideraremos fontes «externas»;
debaterei alguns exemplos de informações provenientes da literatura não cristã e que são
relevantes para a vida de Jesus; além disso, recorrerei a uma disciplina científica: a astronomia.
Datas e astronomia
Gostaria de explicar agora um pouco mais pormenorizadamente os nossos problemas com as
datas. É muito difícil determinar inequivocamente datas da história antiga, por uma diversidade
de motivos, um dos quais se prende com o facto de o mundo antigo não ter um calendário
uniformizado, o que leva a que as nossas fontes se refiram às várias épocas de formas muito
diversas. Dois exemplos, um do Evangelho de Lucas e o outro de Josefo:
No décimo quinto ano do reinado do imperador Tibério, quando Pôncio Pila tos era governador
da Judeia e Herodes [Antipas], governava a Galileia e o seu irmão Filipe era governador da ... e
Lisânias era governador de ... durante o sumo sacerdócio de Anás e Caifás ... (Lc 3, 1-2.)
78
Esta desgraça [a ocupação de Jerusalém por Herodes, no ano 37 a.e.c.] abateu-se sobre a cidade
de Jerusalém enquanto Marco Agripa e Caninius Gallus eram cônsules em Roma, durante a
centésima octogésima quinta olimpíada; no terceiro mês, no dia de jejum, como se fosse uma
repetição da desgraça que aconteceu aos judeus, no tempo de Pompeu, visto que foi
precisamente no mesmo dia, mas vinte e sete anos antes, que a cidade foi conquistada por Sôsio.
(Antiguidades 14, 487)
Estas passagens são extraordinariamente elaboradas, mas ilustram os problemas que se colocam
devido à ausência de um calendário comum. Teria sido muito mais simples falar do ano «29
e.c.» e do ano «37 a.e.c.», mas os autores da Antiguidade que escreveram em grego para um
público que abrangia todo o Império Romano não dispunham da possibilidade de uma datação
deste género." Eram obrigados a utilizar uma série de marcos temporais; o acontecimento em
causa ocorreu no momento de cruzamento de vários outros acontecimentos. Era difícil manter a
clareza. A ausência de um calendário comum significava que, até os historiadores da
Antiguidade, que estavam habituados às suas próprias formas de datação, tinham mais
dificuldades do que nós em registar e recordar datas. Também tinham poucos recursos, tais
como arquivos de jornais para os ajudarem.
A citação de Lc 3, 1-3, onde se fala do sumo sacerdócio de «Anás e Caifás», evidencia a
ausência de arquivos. Não podia haver mais do que um sumo sacerdote simultaneamente. As
pessoas mencionadas desempenharam a função de sumo sacerdote em épocas diferentes. O
facto de Lucas conhecer ambos os nomes é um dado positivo; não seria de esperar a perfeição,
dadas as circunstâncias. A citação de Josefo ainda é mais problemática, apesar de eu não ir fazer
uma referência pormenorizada às dificuldades. Na obra de Schürer intitulada History if the
79
Jewish People, são necessárias quase duas páginas com letra miúda para apresentar os
problemas mais importantes e os vários caminhos para a sua solução. Mencionarei apenas um
dos problemas: o estudo de todas as provas sobre a conquista de Jerusalém por Pompeu e, mais
tarde, por Herodes, tornaram praticamente impossível acreditar que Herodes conquistou (com a
ajuda do general romano Sósio) Jerusalém exatamente vinte e sete anos depois da conquista da
cidade por Pompeu. O que acontece é que Josefo gostava de situar uma catástrofe no dia do
aniversário de uma desgraça anterior. Podemos ignorar pura e simplesmente esta parte da
declaração, mas as dificuldades mantêm-se. Existem, fundamentalmente, três tipos de
problemas no que diz respeito às datas do nascimento e da morte de Jesus. Referir-me-ei
sucessivamente a cada um deles.
1. As referências a datas, pessoas e acontecimentos nos Evangelhos entram, por vezes, em
contradição. Como vimos, tanto Mateus como também Lucas situam o nascimento de Jesus no
fim da governação de Herodes (isto é, nos anos 6-4 a.e.c.). Mas Lucas indica também uma data
inconciliável com esta, a saber, o ano do censo sob Quirino (6 e.c.). Quirino não era o legado da
Síria no tempo de Herodes (apesar de Lc 1, 5.26; 2, 2). No momento da morte de Herodes, o
legado era Varus.
2. Por vezes, é difícil harmonizar os dados dos Evangelhos com os de Josefo. Por exemplo, em
Antiguidades, 18, Josefo menciona Jesus e João Baptista. Refere-se a Jesus no contexto de
diversos acontecimentos, a maioria dos quais se situa nos anos 15-19 e.c. As suas referências a
João parecem situá-lo no período entre 034 e 037 e.c. Os Evangelhos estabelecem, obviamente,
uma relação muito estreita entre a vida pública de ambos. Segundo estes, João iniciou a sua vida
pública antes de Jesus, foi preso pouco tempo depois de o ter batizado e foi executado ainda
durante o ministério deste.
Há dois casos nos quais temos dificuldades em conciliar os Evangelhos com a astronomia.
Segundo Mateus, apareceu uma estrela na época do nascimento de Jesus que atraiu a atenção de
homens sábios
80
do Oriente. A ciência investigou acontecimentos astronómicos que pudessem explicar esta
passagem. O segundo caso no qual a astronomia desempenha um papel na avaliação dos dados
dos Evangelhos refere-se à morte de Jesus. Os quatro Evangelhos são unânimes em dizer que
ele foi executado numa sexta-feira. Segundo João, nessa sexta-feira, em particular, foram
sacrificados os cordeiros para a festa da Páscoa: por conseguinte, no calendário judaico, tratava-
se da sexta-feira 14 de Nisan. Os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), contudo,
situam a crucificação na sexta-feira, 15 de Nisan, no dia seguinte no que se refere ao mês, mas
no mesmo dia da semana. Isto constitui, em parte, um conflito interno (categoria I), mas
também um problema de conciliação dos Evangelhos com os nossos conhecimentos
astronómicos actuais, uma vez que é difícil encontrar um ano no final dos anos vinte ou no
início dos anos trinta, no qual o dia 15 de Nisan tivesse calhado a uma sexta-feira; isto coloca os
sinópticos em conflito com a astronomia. (O dia 15 de Nisan é como o dia 25 de Dezembro:
nem sempre calha no mesmo dia da semana. Em alguns anos, calha na sexta-feira, mas não em
todos.)
É possível que a situação pareça pior do que é de facto. Tal como escrevi no capítulo 2, não
existem dúvidas realmente substanciais acerca da época e do local em que Jesus viveu. Também
sabemos aproximadamente quando Herodes conquistou Jerusalém, embora o parágrafo de
Josefo sobre a data do acontecimento esteja cheio de dificuldades. No que diz respeito ao
período no qual Jesus viveu, os Evangelhos mencionam o imperador Augusto (31 a.e.c.-14 e.c.)
no momento do seu nascimento, e Tibério (14-37 e.c.) numa fase posterior da sua vida (Lc 2, 1;
3, 1). Pôncio Pilatos era prefeito da J udeia (26-36 e.c.) e Caifás, sumo sacerdote (18-36 e.c.)
(Mt 26-27 e outras passagens). Estes dados levam-nos a concluir que Jesus morreu entre 26 e 36
e.c. Este quadro amplo baseia-se em informações «de grande calibre». Tibério, Pilatos e Caifás:
toda a gente na Palestina conhecia estes três nomes e sabia quando as pessoas em causa tinham
desempenhado as suas funções. Devemos confiar nestas informações, a não ser que tenhamos
bons motivos para não o fazer, isto é, a menos que as histórias
81
nos Evangelhos contenham tantos anacronismos e tantas anomalias que sejamos obrigados a
considerá-las fraudulentas. Não é o caso, pelo que não existe nenhum motivo razoável para
duvidar deste leque temporal.
No entanto, é verdade que as datas exatas do nascimento e da morte de Jesus são incertas. Não
temos quaisquer informações sobre o mês e o dia do seu nascimento e existe uma contradição
no que diz respeito ao ano aproximado do mesmo (por volta do ano da morte de Herodes, 4
a.e.c., ou na época do recenseamento de Quirínio, no ano 6 e.c.). Mesmo que aceitemos a
opinião geral segundo a qual Jesus nasceu no final da vida de Herodes, continuamos a não saber
qual o ano exato (ver p. 11). Os Evangelhos também entram em contradição uns com os outros
no que diz respeito ao dia da morte de Jesus. Isto significa, por seu lado, que não sabemos em
que ano morreu. Mesmo que aceitemos a versão dos sinópticos e concordemos que Jesus foi
executado na sexta-feira, dia 15 de Nisan, não conhecemos o ano exato, visto que os cálculos
atuais com base no antigo calendário judaico não apresentam um ano no qual o dia 15 de Nisan
tenha calhado numa sexta-feira.
Estas incertezas não tornam Jesus uma figura única ou, sequer, invulgar. Como no Ocidente
cristianizado dispomos, há tanto tempo, de um calendário único, habituámo-nos a contar com
datas seguras. Na perspetiva atual, é estranho que os investigadores não saibam quando Jesus
nasceu e quando morreu. Isto não surpreenderá aqueles que estão familiarizados com as
discussões académicas sobre a história da Antiguidade. Os aspetos incertos na cronologia da
vida de Jesus não levam a concluir que ninguém sabe nada, nem significam que qualquer
reconstrução dos acontecimentos é possível, devido à falta de pontos de referência fixos.
Sabemos muito acerca de Jesus. Necessitamos apenas de proceder cuidadosa e prudentemente, e
não de maneira precipitada e radical. Jesus nasceu, muito provavelmente, no ano 5 ou 4 a.e.c. e
morreu entre 29 e 31 e.c. (apesar de muitos investigadores preferirem o ano 33).
O interesse pela questão da data da execução de Jesus voltou a recrudescer recentemente;
acrescentei um apêndice sobre esta questão. Aqui, gostaria apenas de comentar genericamente
os erros (eu, pelo menos, considero-os como tal) dos cientistas que apresentam propostas
extremas sobre o assunto, afirmando, por exemplo, que Jesus teria sido executado em 26 ou em
36. O facto de o material empírico ser
82
diversificado e difícil de conciliar com exatidão leva à tendência para escolher um dado,
declarando-o decisivo e moldando as provas restantes no sentido da forma necessária. Isto
significa que existe um perigo de um fundamentalismo esporádico no estudo dos textos antigos
- não só da Bíblia. O «fundamentalismo» refere-se à convicção de que alguns textos da
Antiguidade - ou a literatura da Antiguidade, em geral - contam a verdade pura e simples. Mas o
fundamentalismo é sempre esporádico: os fundamentalistas acreditam que algumas pessoas
nunca exageraram, nunca erraram ou nunca confundiram as suas notas, ou, pelo menos, que
determinados parágrafos em determinados textos são absolutamente credíveis. A leitura das
investigações cronológicas sobre o Novo Testamento revela muito fundamentalismo -
normalmente, esporádico. Um investigador, por exemplo, considera a cronologia de João
melhor do que a de Marcos e de Mateus (e portanto que a cronologia destes não é correta). O
próximo passo consiste na adoção da perspetiva de João em numerosos pontos em que este
diverge dos três restantes: houve três festas da Páscoa e não só uma durante a vida pública de
Jesus, ele foi executado no dia 14 de Nisan e não no dia 15, e, durante o seu ministério, ele
estava na casa dos quarenta «ainda não tinha cinquenta anos», Jo 8, 57) e não dos trinta anos,
como afirma Lucas. Depois de terem rejeitado a cronologia de Mateus, de Marcos e de Lucas,
alguns investigadores atiram-se à história da estrela que se encontrava por cima do local onde
Jesus nasceu, de acordo com Mateus, tentando fazê-la coincidir com o aparecimento de um
cometa - sem notar, ao que parece, que esta estrela especial, de acordo com a única descrição
que existe da mesma, não deixou qualquer rasto luminoso no céu, ficando «parada por cima do
lugar onde estava o menino» (Mt 2, 9). Porque se há-de pressupor que a estrela da história de
Mateus é um astro real e ignorar o que o autor diz sobre o assunto? Por que motivo se há-de dar,
sequer, atenção à estrela de Mateus, se ele estava enganado quanto à data da morte de Jesus (da
qual João estava perfeitamente ciente)?
Estes mesmos investigadores são aqueles que decidem que alguns parágrafos em Josefo são
literais e absolutamente verdadeiros, relatando os acontecimentos tal como eles ocorreram, sem
alterar uma palavra, enquanto outros parágrafos nem sequer contam: como Josefo
83
coloca a sua referência a Jesus numa secção anterior das Antiguidades àquela na qual se refere a
João Baptista, uma delas é absolutamente correta, enquanto a outra tem de ser removida. (Na
realidade, estas secções da obra de Josefo não obedecem a uma ordem cronológica;
A história da Antiguidade é difícil. Exige, sobretudo, bom senso e sensibilidade para as fontes.
As nossas fontes contêm informações sobre Jesus, no entanto, não podemos abordá-las
decidindo dogmaticamente que algumas frases são a pura verdade e outras são ficção.
Normalmente, a verdade está no meio. Como já disse várias vezes e, provavelmente, irei repetir
várias vezes, sabemos bastante sobre Jesus a nível relativamente geral. No que diz respeito à
cronologia, sabemos que a sua vida pública se situou entre 26 e 36 e.c. É errado tentar
transformar os Evangelhos - aliás, como Josefo - em artigos de enciclopédias modernas ou
pressupor que uma afirmação é absolutamente correta, enquanto as outras são absolutamente
erradas.
Isto leva-nos ao próximo capítulo, aos problemas específicos que se colocam no estudo das
nossas fontes principais, isto é, dos Evangelhos. Que tipo de escritos são os Evangelhos? Qual o
melhor uso a dar-lhes?
84
Anonimato
Não sabemos quem escreveu os Evangelhos. Atualmente, eles intitulam-se «segundo Mateus»,
«segundo Marcos», «segundo Lucas»
92
e «segundo João». Os nomes Mateus e João referem-se a dois dos primeiros discípulos de Jesus.
Marcos era um seguidor de Paulo e, provavelmente, também de Pedro; Lucas era um dos
convertidos por Paulo." Estes homens - Mateus, Marcos, Lucas e João - existiram, de facto; no
entanto, não sabemos se eles escreveram os Evangelhos. Aquilo que sabemos hoje indica que os
Evangelhos permaneceram sem nome até à segunda metade do século 11. Eu reuni estas provas
num outro lugar." pelo que não gostaria de as repetir aqui, exceto num ponto. Os Evangelhos,
tal como os temos atualmente, foram citados na primeira metade do século II, mas sempre sob
anonimato (tanto quanto podemos dizer, com base nas provas que chegaram até nós). Os nomes
apareceram subitamente por volta do ano 180. Naquela altura, havia uma série de evangelhos,
não só os nossos quatro, e os cristãos tiveram de decidir quais tinham autoridade. Isto era uma
questão decisiva acerca da qual existiam divergências de opinião muito grandes. Sabemos quem
triunfou: aqueles que consideravam que havia quatro Evangelhos, nem mais, nem menos, que
eram os relatos sobre Jesus que possuíam autoridade.
Embora hoje conheçamos o resultado, no fim do século II, ele era muito incerto. Alguns cristãos
queriam que houvesse mais evangelhos a serem reconhecidos oficialmente, outros, menos.
Comentarei apenas uma parte da história: a existência de evangelhos que acabaram por não ser
reconhecidos na cristandade católica. Estes evangelhos, que se designam habitualmente como
evangelhos «apócrifos» («ocultos»), fascinaram as pessoas durante muito tempo. Alguns deles
(como, por exemplo, o Evangelho dos Egípcios) perderam-se e são conhecidos apenas através
de algumas breves passagens citadas por autores cujas obras chegaram até nós. Atualmente, é
possível ler a tradução de numerosos outros evangelhos apócrifos, mas a maior parte deles foi
escrita depois de 180.8 Dois deles são relativamente antigos e contêm material interessante: o
Evangelho da Infância, de Tiago, e o Evangelho de Tomé. O primeiro é um evangelho especial:
como o título
93
sugere, trata apenas do nascimento e da infância de Jesus. O Evangelho de Tomé é uma coleção
de ditos que foram encontrados no Egipto, entre os manuscritos gnósticos. (O gnosticismo
consistia numa visão da realidade que considerava mau tudo o que era material; o deus que
criou o mundo era um deus mau e a sua criação era má. Os gnósticos que também eram cristãos
acreditavam que o Deus bom tinha enviado Jesus para salvar as almas das pessoas, mas não os
seus corpos, e que Jesus não era verdadeiramente um ser humano. Os cristãos que rejeitavam
estas opiniões acabaram por os declarar heréticos.)
Partilho a convicção da maior parte dos investigadores, segundo a qual é pouquíssimo daquilo
que, nos evangelhos apócrifos, poderia conceber-se como remontando ao tempo de Jesus. Os
evangelhos apócrifos são lendários e mitológicos. De todo o material apócrifo, apenas alguns
ditos no Evangelho de Tomé merecem ser analisados. Isto não significa que possamos fazer
uma distinção clara entre os quatro Evangelhos históricos e os evangelhos apócrifos lendários.
Existem traços lendários nos quatro Evangelhos do Novo Testamento, bem como uma certa
quantidade de material criado de novo (como já vimos). No entanto, é nos quatro Evangelhos
canónicos que temos de procurar os vestígios do Jesus histórico.
Voltamos agora à história da atribuição de nomes aos Evangelhos. Para os membros da fação
vencedora (aqueles que não queriam mais de quatro Evangelhos), era importante poder atribuir
os Evangelhos «certos» às pessoas que tinham proximidade histórica com Jesus ou com os seus
maiores apóstolos. Os detetives de entre os cristãos deitaram mãos ao trabalho e tiraram
conclusões sobre a autoria de cada um dos Evangelhos a partir de pormenores nos mesmos que
eles consideravam como indícios relativos aos seus autores. Para dar um exemplo: no
Evangelho que se encontra atualmente no quarto lugar no Novo Testamento, destaca-se um
«discípulo amado» cujo nome não é revelado. No entanto, este Evangelho não menciona João,
apesar de ele ter sido um dos discípulos principais (como sabemos dos outros Evangelhos, dos
Atos dos Apóstolos e da Carta aos Gálatas). Os detetives cristãos do século II chegaram,
provavelmente, à conclusão de que o quarto Evangelho tinha sido escrito por João, que preferiu
referir-se a si próprio como o «discípulo amado»; e daí resultou que, hoje, designamos o quarto
Evangelho como «Evangelho segundo João». Neste caso, os cristãos do século II deduziram a
autoria a partir da ausência de um nome.
94
O trabalho «detectivesco» do século II foi bastante as tu cioso. Na realidade, é precisamente
com base em indícios de pormenor que nós tentamos dizer alguma coisa sobre os autores de
obras anónimas. Os seus nomes podem-nos escapar, mas as suas características seguramente
que não. No entanto, as conclusões a que os cristãos do século II chegaram no que diz respeito
aos nomes eram muito mais firmes do que as suas provas. Em João (isto é, no Evangelho que
tem o seu nome), o autor pretendia dizer algo através das suas referências frequentes ao
«discípulo amado». Também tem a sua visão própria no que diz respeito aos nomes dos outros
discípulos, que são um tanto diferentes dos nomes apresentados por Mateus, Marcos e Lucas
(abaixo, pp. 120-122). Mas não podemos ter a certeza de que o seu tratamento especial dos
discípulos pretendesse constituir uma indicação do seu próprio nome. É possível que os
primeiros leitores do Evangelho tenham compreendido o que o autor pretendia. Por que razão
não foi o nosso Evangelho atribuído imediatamente a João? A resposta mais provável é que a
atribuição foi tardia e baseada mais numa suposição do que numa tradição sólida.
É improvável que os cristãos conhecessem os nomes dos autores dos Evangelhos, mas que não
os mencionassem na literatura que chegou até nós (e que é bastante), mais ou menos, durante
um século. Também é intrinsecamente provável que os títulos iniciais fossem apenas «o
Evangelho [a boa nova] de Jesus Cristo» ou qualquer coisa semelhante, sem os nomes dos seus
autores. Os autores queriam, provavelmente, eliminar interesse pela pessoa que tinha escrito a
história, para que o leitor se concentrasse no assunto. Mais importante ainda: uma história
anónima possuía mais autoridade do que a de uma obra com autor. Um livro anónimo na
Antiguidade, tal como acontece hoje com um artigo de enciclopédia, reclamava implicitamente
um conhecimento e uma credibilidade totais. O Evangelho de Mateus não teria tido o mesmo
impacto se o autor tivesse escrito: «esta é a minha versão», em vez de escrever: «foi isto que
Jesus disse e fez».
Referir-me-ei sempre aos Evangelhos pelos nomes que são, agora, familiares. Designarei, por
exemplo, o autor do Evangelho de Lucas como «Lucas» e designarei também o próprio
Evangelho como «Lucas», sendo que utilizarei uma expressão descritiva em caso de
ambiguidade (por exemplo, «o evangelista Lucas» é o autor). Utilizo os nomes exclusivamente
por motivos práticos. Na minha opinião,
95
todos os Evangelhos foram escritos anonimamente e os nomes só lhes foram atribuídos depois
de 150, com base em indícios do tipo daqueles que apresentei para o Evangelho de João.
Os sinópticos e João
No capítulo anterior mencionámos brevemente que a cronologia de João se distingue da dos
outros três Evangelhos. Pretendo explorar agora esta e outras diferenças, que são muito
consideráveis.
Mateus, Marcos e Lucas são designados coletivamente como «Evangelhos sinópticos» porque,
no século XVIII, os investigadores começaram a estudá-los em livros com colunas paralelas,
chamadas «sinopses», o que significa literalmente «visão de conjunto». Portanto, é possível
imprimir os textos de Mateus, Marcos e Lucas, colocá-los lado a lado e fazer muitas
comparações diretas. O esquema geral da vida de Jesus é igual e muitas das sequências também.
Veremos exemplos nos capítulos 11, 12 e 16. João é um caso à parte. O plano narrativo é
diferente e o material discursivo tem pouca semelhança com os ditos dos Evangelhos sinópticos.
Comecemos pelo plano narrativo:
Os sinópticos só falam uma vez da festa da Páscoa e a ação parece ter-se desenrolado toda em
menos de doze meses. Em Me 2, 23-28 é possível comer trigo na espiga, o que situa o
acontecimento no início do Verão; em 6, 39, é Primavera, uma vez que a erva está verde; nessa
mesma Primavera, Jesus vai a Jerusalém para a festa da Páscoa (Mc 11; sobre a festa da Páscoa
ver 14,1. 12). Se as indicações relativas às estações do ano são corretas e se encontram no lugar
certo, o ministério de Jesus decorreu todo entre o início de um Verão ou o fim de uma
Primavera e a Primavera seguinte. Em João, pelo contrário, Jesus vai a Jerusalém, para uma
festa da Páscoa (2, 13), no início da sua vida pública e antes da última (11, 55; 13, 1; 18,28),
ainda há uma outra Páscoa (6, 4). Sendo assim, o ministério público de Jesus ter-se-ia
prolongado por um pouco mais de dois anos. Além disso, a narrativa de João situa uma grande
parte do ministério de Jesus na Judeia, enquanto os relatos dos sinópticos situam tudo, exceto a
última semana, na Galileia. No capítulo anterior, também referimos que João coloca a execução
de Jesus no dia 14 de Nisan, enquanto os sinópticos se referem ao dia 15 de Nisan.
96
Há mais dois aspetos da apresentação de João que merecem ser mencionados. A «purificação do
Templo», que aparece nos sinópticos como o motivo principal para a execução de Jesus, em
João, acontece logo no início do seu ministério, durante a sua primeira viagem a Jerusalém (2,
13-22), sem que tenha havido consequências graves. O conteúdo do relato joanico sobre a
audiência perante as autoridades judaicas distingue-se consideravelmente da versão dos
sinópticos. Nos Evangelhos sinópticos, há um processo formal perante o tribunal judaico, o
Sinédrio. São chamadas testemunhas, que fazem depoimentos; por fim, é interrogado o próprio
Jesus. O sumo sacerdote formula uma acusação formal: culpado de blasfémia. Em João, Jesus é
interrogado, ao que parece, em privado, primeiro por Anás (que tinha sido sumo sacerdote e era
pai dos cinco sumos sacerdotes que se lhe seguiram) e depois por Caifás, o sumo sacerdote em
exercício, que é apresentado como genro de Anás (Jo 18, 12-40). Não se fala nem de
testemunhas, nem de uma acusação formal.
A cena do julgamento descrita por João é muito mais plausível do ponto de vista da
probabilidade intrínseca do que a dos sinópticos. Quem ler Josefo aperceber-se-á que João
descreve um tipo de processo que teria sido considerado adequado num caso sem grande
importância: o sumo sacerdote ouviu conselheiros (neste caso, Anás, um antigo sumo sacerdote)
e fez uma recomendação ao prefeito, que agiu em conformidade. Isto é mais provável do que a
existência de um processo completo perante um tribunal formal durante a época festiva.
Portanto, no que diz respeito ao processo, João parece ser melhor. No entanto, no que diz
respeito à colocação da «purificação do Templo» na sequência narrativa, a descrição dos
sinópticos, que situa o acontecimento mais tarde, é muito mais plausível do que a de João. Diz-
se que Jesus tentou interferir nos negócios de compra e venda que eram necessários para a
manutenção do serviço no Templo - um serviço que resultou de uma ordem expressa de Deus.
Isto deve ter causado um escândalo, sendo muito provável que tenha existido uma estreita
relação entre aquilo que Jesus fez no Templo e a sua execução.
Quanto à duração do ministério de Jesus, é difícil decidir. João coincide, certamente, com o
ritmo da vida na Palestina judaica, marcada por três festas anuais. Além das três festas da
Páscoa, João menciona uma outra festa, sem especificar qual (5, 1), enquanto os acontecimentos
do capítulo 7 são situados durante a Festa das Cabanas
97
(ou Tabernáculos). A tabela que se segue compara as referências que João faz às festas que
teriam ocorrido se tivesse havido três Páscoas durante o ministério de Jesus:
Páscoa (Primavera)-------------------------------- Jo 2, 13
Festa das Semanas
(Pentecostes, início do Verão) ----------------- talvez Jo 5, 1
Festa das Cabanas
(Tabernáculos, Outono) ------------------------ não mencionada
Páscoa ------------------------------------------- Jo 6, 4
Festa das Semanas ----------------------------- não mencionada
Festa das Cabanas ------------------------------ Jo 7
Páscoa ------------------------------------------- Jo 11,55
Apesar de existirem lacunas, o esquema geral de João é perfeitamente plausível. Mas o dos
sinópticos também. É o seguinte: quando João Baptista foi preso, surgiu um outro profeta -
Jesus; ele pregou e curou durante alguns meses, causando alguma agitação, mas não a ponto de
assustar Antipas, foi a Jerusalém, para a festa da Páscoa, teve uma intervenção aparatosa no
Templo, fez algumas observações provocatórias sobre o tema da autoridade e do «Reino» e foi
rapidamente eliminado. Esta descrição é perfeitamente razoável. As referências de Josefo a
outras figuras proféticas são compatíveis com carreiras muito curtas. Estes profetas prometiam
«sinais de salvação» no deserto, as massas seguiam-nos e os romanos enviavam tropas
rapidamente - que não precisavam de esperar por um processo formal perante um tribunal
judaico antes de usarem as suas espadas. (Sobre estes profetas, ver pp. 49 e segs.) Existem
outros indícios que tornam o ministério breve dos sinópticos mais credível do que o de João. Ao
que parece, Jesus era um pregador itinerante e os seus seguidores mais próximos abandonaram
as suas ocupações normais para estarem com ele. Há notícias de apoios exteriores (Lc 8, 1; ver
p. 109), contudo, o material não nos revela nada sobre o modo de vida do pequeno grupo, sobre
o local onde dormiam os seus membros e sobre quem pagava as despesas. (Jo 13, 29 afirma que
os membros do grupo juntavam dinheiro de uma maneira não especificada.) Esta ausência geral
de informação é um pouco mais fácil de explicar na hipótese de um ministério curto, baseado na
improvisação de meios. Um ministério mais longo implica mais organização e seria de esperar
encontrar mais vestígios desta nos
98
Evangelhos. (Sobre a vida errante, ver pp. 145-149.) O enquadramento dos sinópticos é pelo
menos tão plausível quanto o de João e, talvez, até um pouco mais convincente.
Esta discussão parece pressupor que temos de aceitar um dos dois: João (três festas da Páscoa;
purificação do Templo no início; processo informal) ou os sinópticos (uma festa da Páscoa;
purificação do Templo perto do fim, processo semiformal). É tentador alternar entre ambos,
com base na plausibilidade ou na probabilidade intrínseca, fazendo um compromisso na questão
da duração: um ministério de onze a vinte e cinco meses (compromisso); purificação do Templo
perto do fim (sinópticos); processo informal (João). No entanto, também temos de considerar
outra possibilidade: talvez nenhum dos autores soubesse nem o que aconteceu, nem quando
ocorreram os acontecimentos (exceto o processo e a crucificação, como é óbvio). É possível que
tivessem reunido pedaços de informações dispersas, a partir das quais construíram narrativas
credíveis que contêm uma grande quantidade de suposições. Ou talvez nem sequer se tenham
preocupado com a ordem cronológica, juntando o material de acordo com outro plano (por
exemplo, temático). A consequência teria sido, então, um espalhar completamente acidental de
indícios cronológicos que não permitiria tirar quaisquer conclusões razoáveis. A cena em
Marcos 2, 23-28, que ocorre no Verão, talvez nem sequer devesse estar colocada antes da cena
da Primavera em Marcos 6, 39; talvez se tenha passado no Verão seguinte e não no Verão
anterior. Nesta secção de Marcos (2, 1-3, 6), os textos estão ordenados por tema e é muito
possível que Marcos tenha colocado 2, 23-28 no seu lugar atual apenas porque é compatível
com o tema da secção (pequenos conflitos sobre a Lei, na Galileia).
Se desviarmos a nossa atenção do esquema narrativo para o conteúdo, verificamos que João e os
sinópticos voltam a ser muito diferentes.
1. Nos Evangelhos sinópticos, há muitas curas feitas por Jesus, algumas delas com um
significado central para a história, que consistem em exorcismos. Em João, não há exorcismos.
(Sobre o exorcismo e outros milagres, ver capítulo 10.)
2. Nos sinópticos, quando pedem a Jesus um «sinal» da sua autoridade, ele recusa-se a dá-lo
(Mc 8, 11 e segs.). Um dos aspetos mais salientes de João consiste numa série de «sinais» que
provam a posição e a autoridade de Jesus (10 2, 11. 23; 3, 2; 4, 4,8. 54; 6, 2.14; 7, 31; 9, 16;
11,47; 12,8.37; 20, 30).
99
3. O Jesus dos sinópticos pergunta aos discípulos quem pensam as pessoas que ele é (Me 8, 27),
mas não comenta explicitamente o assunto. Quando desafiado sobre a sua autoridade, limita-se
a perguntar qual era a autoridade de João Baptista, mas não diz nada sobre a sua (Mc 11, 27-33).
Em João, pelo contrário, o tema principal dos discursos de Jesus é a sua própria pessoa - a sua
posição, a sua identidade e a sua relação com Deus e com os discípulos. Estes temas não consti-
tuem o conteúdo de comunicações privadas aos seus íntimos, mas sim a substância do seu
ensinamento público.
4. O tema principal do material discursivo nos sinópticos é o Reino de Deus. Em João, este
termo só aparece uma vez (3, 3-5).
5. A diferença mais evidente talvez seja a do estilo do ensinamento. Nos sinópticos encontramos
discursos breves sobre diversos temas. Os únicos discursos substanciais consistem numa série
de ditos deste tipo. A outra forma literária predominante é a parábola, na qual se utiliza uma
história simples para afirmar algo sobre Deus e o seu Reino. A comparação exprime-se através
da expressão «é como»: o Reino de Deus é como a história que se segue. Literariamente, as
parábolas sinópticas baseiam-se numa comparação e muitas delas não são mais do que
comparações desenvolvidas. Em João, há discursos metafóricos inseridos no texto, aos quais
falta a palavra «como», pelo que não constituem comparações. O traço característico dos
discursos metafóricos de João consiste nos ditos que começam com a frase: «eu sou», como, por
exemplo, «Eu sou a videira verdadeira» (15, 1). Isto é uma metáfora na qual o autor identifica
Jesus com a realidade indicada pelo símbolo. A videira é um símbolo da vida; Jesus é a
verdadeira videira; portanto, Jesus é a vida. Ele não é corno qualquer coisa - neste caso, uma
videira -, ele é a única videira verdadeira. Assim, Jesus é também o pão (Jo 6, 35), isto é, o
único pão verdadeiro; todas as outras coisas a que se chama pão não passam de uma imitação
insignificante. Ao contrário do material de ensinamento dos sinópticos, em João não existem
histórias, nem ações que revelem a forma como Deus procede com as pessoas. Tal como não
existem comparações ou parábolas em João no sentido dos sinópticos, também não há metáforas
simbólicas nos sinópticos.
É impossível imaginar que Jesus tivesse passado o seu breve ministério a ensinar de duas
maneiras completamente diferentes e a transmitir conteúdos tão díspares e que houvesse
simplesmente duas
100
tradições, remontando a Jesus, transmitindo cada uma delas 50% daquilo que ele disse quase
sem sobreposições. Por isso, nos últimos 150 anos, os investigadores tiveram de escolher.
Concluíram quase unanimemente - e penso que de forma absolutamente correta - que os
ensinamentos do Jesus histórico se devem procurar nos Evangelhos sinópticos e que João
representa um desenvolvimento teológico no qual as meditações sobre a pessoa e a obra de
Cristo são apresentadas na primeira pessoa, como se tivessem sido proferidas pelo próprio
Jesus. O autor do Evangelho de João seria o primeiro a insistir que isto não significa que os
discursos que ele atribuiu a Jesus sejam «falsos»; ele concordaria tão pouco com a ideia de que
o rigor histórico e a verdade são sinónimos como com a ideia de que a verdadeira videira era um
vegetal. Na perspetiva de João, a «verdade», por definição, não é uma coisa que parece rigorosa.
A verdadeira água mata a sede para sempre, propriedade que a substância molhada que a água
parece ser não possui (Jo 4, 13).
João exprime, de uma maneira inequívoca, a sua própria visão do material de ensinamento
incluído no seu Evangelho (atribuindo-o, obviamente, a Jesus):
Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não as podeis compreender por agora. Quando o
Espírito da Verdade vier, há-de guiar-vos para a Verdade total, pois Ele não falará por si
próprio, mas há-de dar-vos a conhecer tudo quanto ouvir e anunciar-vos as coisas que estão para
vir. (Jo 16, 13.)
De maneira semelhante, em 14, 23, o autor de João diz que Jesus «virá» aos seus seguidores, no
futuro, e, em 14, 25, que o Espírito Santo «virá» e ensinar-lhes-á tudo. O autor revela que
escutou o Espírito da Verdade que veio a ele; este Espírito também pode chamar-se «Jesus».
João tem uma visão meta-histórica de Jesus: os limites da história comum eram inadequados e
Jesus ou o Espírito (não é possível distingui-los claramente) continuou a ensinar depois da
crucificação.
Todos os cristãos concordavam com João até certo ponto. O Senhor continuava a falar com eles
em visões e na oração, como já vimos. É de supor que algumas destas mensagens tenham
entrado nos Evangelhos sinópticos. Mas o autor de João foi mais longe: escreveu um Evangelho
baseado nesta premissa. Ele pensa que a sua obra contém
101
muitos ensinamentos do Espírito Santo, ou de Jesus, que «veio» ao autor depois da sua
crucificação e ressurreição, revelando-lhe verdades que os discípulos não tinham ouvido.
Uma vez concluído que devemos seguir os Evangelhos sinópticos no que diz respeito ao
ensinamento do Jesus histórico, qual é o impacto disto na questão do plano narrativo? A
sequência de acontecimentos em João está tão marcada pela teologia do autor como o seu
material discursivo? Há dois casos nos quais temos de dar uma resposta afirmativa a esta
questão. Já mencionámos que, segundo João, Jesus morreu numa sexta-feira, dia 14 de Nisan, e
não numa sexta-feira, dia 15 de Nisan, como afirmam os sinópticos. A razão para tal é que o
autor queria apresentar Jesus como o cordeiro pascal, que era tradicionalmente sacrificado no
dia 14 de Nisan. Na descrição da morte de Jesus, João escreve que os soldados não lhe
quebraram as pernas, tal como fizeram com os outros dois crucificados, visto que a Escritura (a
Bíblia Hebraica) (Ex 12,46) diz que: «Não se lhe quebrará um só osso» (lo 19, 36). Esta citação
refere-se ao cordeiro pascal (SI 34, 20; Ex 12,46; Nm 9, 12). Em João 1,36, Jesus é designado
como o «Cordeiro de Deus» e a comparação entre Jesus e o cordeiro determinou o dia em que
João situa a crucificação. À mesma hora em que os cordeiros pascais estavam a ser sacrificados
no Templo, o verdadeiro cordeiro de Deus morria fora das muralhas da cidade. Dada a estreita
ligação existente entre a data e a teologia de João, estamos inclinados a preferir os sinópticos,
concluindo que Jesus foi executado no dia 15 de Nisan.
O lugar onde João coloca a purificação do Templo também se deve atribuir, provavelmente, a
um motivo teológico. Os adversários de Jesus no Evangelho de João são «os judeus», os quais
fazem parte do mundo que é mau e que rejeita Jesus e os discípulos (Jo 1,9-13; 15, 18 e segs.).
A colocação do incidente no Templo quase no início do Evangelho condiz com este conflito
teológico. A vida pública de Jesus começa com um confronto grave entre ele e a religião judaica
tradicional.
Destas considerações resulta que não podemos afirmar nem que João só foi criativo nos
conteúdos relativos ao ensinamento, nem que ele dispunha de uma boa fonte para a sua narração
e que a seguiu fielmente. Gostaria de aceitar a descrição que João faz do julgamento de
102
Jesus pelas autoridades judaicas, porque é muito mais fidedigna do que o processo dos
Evangelhos sinópticos, mas seria arbitrário escolher esta parte, se não posso provar que Jo 18,
12 e segs. 24 se baseia numa boa fonte - e eu não posso prová-lo. É possível que João apenas
conhecesse melhor a realpolitik do que os outros evangelistas, portanto, que tenha escrito uma
história mais verosímil. O processo judaico descrito por João é parecido com os processos que
eram habituais na Judeia e nas outras províncias romanas governadas da mesma forma. Outra
questão é se se trata de uma descrição exata do que aconteceu em Jerusalém naquela noite
concreta.
Os Evangelhos sinópticos devem ser preferidos como fonte fundamental de informações sobre
Jesus. No entanto, os seus autores também eram teólogos e possuíam criatividade. Tal como não
podemos estabelecer uma alternativa absoluta entre os Evangelhos apócrifos, que são lendários
e mitológicos, e os Evangelhos históricos, canónicos (visto que os Evangelhos do Novo
Testamento também possuem elementos lendários e mitológicos), também não podemos traçar
uma linha de separação clara entre o Evangelho teológico de João e os sinópticos históricos,
visto que os Evangelhos sinópticos também são obra de teólogos. Não existe nenhuma fonte que
nos ofereça a «verdade nua e crua»; o «verniz» da fé em Jesus reveste tudo. Contudo, os
sinópticos não homogeneizaram o seu material, como fez João. As articulações e as costuras são
visíveis e os conteúdos são bastante diferentes. Não existe nada comparável à uniformidade dos
monólogos joanicos. Em resumo, os sinópticos não fizeram uma revisão do material tradicional
tão profunda como fez João.
7. Dois contextos
Os contextos apresentam-se sob todas as formas e tamanhos. Sabemos, hoje, que vivemos num
Universo enorme que parece continuar a expandir-se. Entretanto, o nosso próprio planeta está a
encolher; é cada vez mais difícil encontrar nele um canto isolado. Biologicamente, nós, seres
humanos, somos mamíferos. Estes são os nossos próprios contextos gerais: somos formas de
vida, concretamente, mamíferos, que vivem num determinado canto de um vasto Universo. O
conhecimento destes contextos dá-nos uma perspetiva e, por vezes, uma informação muito
direta sobre o nosso comportamento. Os cientistas explicam frequentemente os comportamentos
que são comuns a todos os seres humanos, enquadrando-os no contexto do comportamento ani-
mal em geral: nós protegemos o nosso território, sopramos, inchamos e ficamos vermelhos
quando estamos enfurecidos, etc. Estas e outras reações aos perigos, bem como à hostilidade,
são explicadas através da referência a um contexto extremamente englobante: somos animais. A
sabedoria popular utiliza frequentemente uma técnica de explicação muito semelhante: «é a
natureza humana», diz-se, quando se quer explicar e, por vezes, também desculpar, as ações dos
indivíduos, que manifestam ganância, egoísmo e outras propriedades pouco simpáticas.
109
Também vivemos numa determinada parte do mundo, num determinado período da sua história.
As nossas cidades natais, concelhos, estados e países fornecem-nos um sem-número de
contextos. E, no nosso ambiente próximo, está a família, os amigos e os colegas. Estes
contextos ajudam-nos a sermos aquilo que somos e ajudam a explicar aquilo que fazemos.
Explicamos frequentemente comportamentos, como, por exemplo, a frieza, a gabarolice e a
gesticulação, atribuindo-os ao país ou ao país de origem da pessoa em causa: o britânico é frio,
o texano é gabarola, o italiano gesticula.
Os contextos próximos possuem uma força explicativa ainda maior. Apelamos à História muito
recente ou às situações em curso para compreender quase tudo. Para explicar que o meu pulso
acelera quando estou excitado tenho de procurar um contexto muito abrangente; mas só um
contexto muito próximo pode explicar por que razão o meu pulso fica acelerado em
determinado momento. Também existem muitos contextos intermédios. Por exemplo, nos
últimos tempos, os Estados ocidentais deixaram de construir armas que podiam destruir a União
Soviética para começarem a dar ajudas a algumas das regiões da mesma. Esta mudança é fácil
de compreender à luz da História recente. Se, séculos mais tarde, alguém descobrir apenas
ambos os factos da produção de armas e das ajudas, terá de deduzir que o contexto mudou. Mas
as democracias ocidentais aproximaram-se politicamente da União Soviética? Ou foi o
contrário? Sem conhecer o contexto, não sabemos, normalmente, o que se passa ou o
significado de um acontecimento. Há, no entanto, algumas ações que oferecem indicações rela-
tivas ao seu próprio contexto ou (o que é, provavelmente, mais habitual) que nos dão dois ou
três contextos diferentes a escolher.
Os ideais e as ideologias também criam contextos, isto é, contextos que nós temos sempre
presentes, na nossa cabeça. Estes contextos são muito mais complicados, visto que não
consistem em acontecimentos e lugares, mas sim em constructos mentais. Isto torna-os, a eles e
aos seus efeitos, muito mais difíceis de estudar, visto que não podemos ler as mentes. No
entanto, estes contextos existem e exercem poder sobre as ações humanas. Para dar um
exemplo: os americanos podem encontrar uma justificação para uma guerra perante si próprios
se a conseguirem associar à ideologia nacional dominante: a aspiração à liberdade e à
democracia. Se um governo dos EUA quer empenhar-se militarmente, em geral, tenta enquadrar
o seu procedimento no contexto da ideologia americana. É muito mais difícil vender à opinião
pública guerras
110
que têm por objetivo a defesa de interesses económicos. Isto é, muitos americanos possuem um
contexto ideológico no qual existe lugar para a guerra. Se a guerra não couber nesse contexto
específico, eles têm dificuldades em encontrar um outro contexto que a justifique. Não é preciso
dizer que, por vezes, as pessoas se enganam a si mesmas e os líderes procuram iludir
deliberadamente a opinião pública por causa daquilo que consideram ser interesse nacional
superior. A manobra de ilusão prova, em ambos os casos, a força da ideologia. Os contextos
ideológicos deste tipo são interessantes do ponto de vista histórico: podemos ver
retrospetivamente como as pessoas consideraram uma determinada ação adequada ao contexto
em causa, o que explica o seu comportamento. As formas ideológicas de perspetivar o futuro
oferecem um contexto que ajuda a configurar o comportamento aqui e agora. Se eu considero
que a liberdade e a democracia estão ameaçadas, talvez esteja mais disposto a entrar em guerra
do que quando penso que o que está em causa são os lucros de algumas grandes indústrias.
Compreenderíamos Jesus muito melhor se soubéssemos tudo sobre o seu mundo e a sua
História, incluindo o que as pessoas do seu tempo pensavam e quais eram os seus ideais.
Necessitamos de um conhecimento maior dos contextos do que aquele que nos foi oferecido
pelos capítulos iniciais deste livro. Também ajudaria se pudéssemos desvendar as circunstâncias
precisas em que os Evangelhos foram escritos. Neste capítulo, porém, pretendo esclarecer
apenas os dois contextos que nos serão mais úteis para a compreensão dos Evangelhos e da pes-
soa de Jesus. O primeiro consiste no enquadramento teológico (ou ideológico) nos quais os
Evangelhos sinópticos, sobretudo Mateus e Lucas, inserem a história. A maior parte dos
primeiros cristãos partilhavam esta conceção, mas eu gostaria de limitar o debate aos Evan-
gelhos sinópticos, ainda que fazendo algumas referências a Paulo, a título de mais um exemplo.
O segundo contexto é aquele que nos é fornecido pelo nosso conhecimento daquilo que
aconteceu imediatamente antes de Jesus ter iniciado a sua missão e imediatamente depois do
termo desta: o contexto imediato da sua vida pública.
É impossível que ambas as histórias sejam corretas. É improvável que alguma delas o seja.
Concordam apenas em dois «factos»: na História real, Jesus era de Nazaré; na história da
salvação, ele tinha de ter nascido em Belém. Não existe concordância na questão do domicílio
original da família, assim como na mudança desta de um local para outro. O esquema de Lucas
é fantástico. Segundo a genealogia do próprio Lucas (3, 23-38), David tinha vivido quarenta e
duas gerações antes de José. Que razão teria José para se registar na cidade natal de um dos seus
antepassados quarenta e duas gerações antes dele? O que pretendia Augusto, o mais inteligente
de todos os imperadores? Com um decreto deste tipo, o Império Romano teria ficado
completamente às avessas. Além disso, como saberia um homem para onde deveria ir?
Ninguém podia recuar na sua genealogia até à quadragésima segunda geração e, mesmo que
pudesse fazê-lo, descobriria que tinha miríades de antepassados (o número ascende já a um
milhão depois da vigésima geração). E, naquela altura, David tinha, certamente, dezenas de
milhares de descendentes. Era possível identificá-los a todos? Se fosse, como poderiam eles
registar-se todos numa pequena aldeia? É óbvio que é possível rever o que Lucas escreveu, de
modo a ser um pouco menos fantástico: César decretou, de facto, que determinados varões que
acreditavam ser
118
descendentes de família real de cada um dos reinos do império se registassem desta forma. No
entanto, esta revisão não resolveria o problema, As pessoas refugiam-se neste tipo de revisões
para salvarem o texto: o texto tem de ser verdade e, se o revirmos, podemos continuar a afirmar
que ele é verídico. Mas a revisão mina o princípio. É que a proposta segundo a qual só os
membros das famílias reais tiveram de se registar nas suas terras natais ignora o facto de, na
Palestina, haver uma família real no poder: a de Herodes. Augusto apoiava Herodes. Ele não
teria pedido a membros de uma família real que não estava no poder havia mais de 500 anos e à
qual se tinham seguido duas outras dinastias (os Asmoneus e os Herodinianos) para se
recensearem de acordo com um processo especial. Ele não teria querido a tensão social que a
revivescência das esperanças de um reino de David teria gerado.
Não é razoável pensar que houve, sequer, um decreto que exigisse às pessoas que viajassem a
fim de se registarem para fins fiscais. O recenseamento de Lucas levanta muitas dificuldades.
Uma das dificuldades consiste no facto de Lucas datar o recenseamento no tempo próximo da
morte de Herodes (4 a.e.c.), bem como dez anos mais tarde, quando Quirino era legado da Síria
(6 e.c.). Sabemos através de Josefo, sendo a informação confirmada por uma inscrição antiga,
que, no ano 6 e.c., quando Quirino era legado, Roma realizou de facto um recenseamento das
pessoas que viviam na Judeia, em Samaria e na Idumeia - mas não na Galileia e não pedindo-
lhes que viajassem. Maria e José, que, de acordo com Lucas, viviam na Galileia, não teriam sido
afetados pelo recenseamento de Quirino, que só abrangeu a população que vivia em ambas as
províncias romanas da Judeia e da Síria. Galileia (como foi descrito no terceiro capítulo) era
independente e não uma província romana. Além disso, o objetivo dos recenseadores da
Antiguidade era verificar quem possuía bens imobiliários sujeitos a impostos. Isto significava
que não eram os contribuintes que tinham de viajar, mas sim os recenseadores. É possível que
Lucas tenha misturado as duas datas porque houve motins tanto depois da morte de Herodes, no
ano 4 a.e.c., como durante o censo no ano de 6 e.c. Isto é um erro histórico relativamente
insignificante para um autor antigo
119
que trabalhava sem arquivos ou sem um calendário oficial sequer e que viveu oitenta anos
depois do período sobre o qual escreveu. A explicação mais provável para o relato de Lucas é a
seguinte: Lucas ou a sua fonte combinaram por engano o ano 4 a.e.c. (a morte de Herodes) com
o ano 6 e.c. (o censo de Quirino); quando «descobriram» um censo na época da morte de
Herodes, decidiram criar o acontecimento, justificando, assim, a viagem de José da sua cidade
natal, Nazaré, para Belém." De qualquer modo, a verdadeira fonte para a opinião de Lucas de
que Jesus tinha nascido em Belém era, quase com certeza, a convicção de que Jesus cumpriu a
esperança de que, um dia, haveria de aparecer um descendente de David para salvar Israel.
Zacarias tinha profetizado que Deus «levantaria um chifre de salvação para nós, na casa do seu
servo David» (citado em Lc 1, 69); Jesus era esse «chifre de salvação»; portanto, Jesus nasceu
na cidade de David.
A história de Mateus é mais verosímil. Herodes era impiedoso, matando as pessoas quando
pareciam constituir uma ameaça para o seu reinado, incluindo (como vimos) a sua esposa
preferida e os seus dois filhos, assim como um filho de uma outra sua esposa. Será que ele
mandou realmente «matar todos os meninos de Belém e de toda a região que tinham de dois
anos para baixo» (Mt 2, 16)? É improvável. Josefo narra uma série de histórias sobre a
crueldade de Herodes, mas não esta. É provável que Mateus tenha ido buscar esta informação à
história do Êxodo (1, 21 e segs.), segundo a qual Moisés, em criança, esteve ameaçado por uma
ordem semelhante do faraó egípcio. Mateus viu em Jesus um segundo Moisés, superior ao
primeiro (assim como o filho de David) e apresentou uma parte considerável dos seus capítulos
iniciais nos termos das histórias sobre Moisés. O relato da fuga para o Egipto e do regresso
lembra ao leitor a História de Israel e do êxodo do Egipto. Mateus cita uma afirmação de
Oseias: «Do Egipto chamei o meu filho» (Mt 2, 15). Isto referia-se originalmente a Israel como
filho (coletivo) de Deus que Moisés retirou do Egipto (note-se a forma passada).
120
Mateus aplicou a citação a Jesus, que ele considerava o Filho de Deus e a afirmação em Oseias,
que fazia alusão ao êxodo no tempo de Moisés, era, provavelmente, a única fonte que Mateus
tinha para a sua história sobre Jesus e a sua família. Em Mateus 5, Jesus sobe a uma montanha
(tal como Moisés, quando recebeu a Lei) e fala sobre alguns dos Dez Mandamentos e sobre
outras passagens da Lei de Moisés (Mt 5, 21-48). Há uma secção do seu Evangelho em que
Mateus coloca dez milagres (Mt, 8-9), talvez para lembrar os dez milagres de Moisés no Êxodo
7,8-11; 10. Os três sinópticos dizem que Jesus ficou quarenta dias no deserto, em parte, para
recordar os quarenta anos de permanência no deserto, no tempo de Moisés. Estes paralelos com
Moisés tornam ainda mais provável que Mateus tenha tirado elementos da narrativa do
nascimento das histórias sobre Moisés. Podemos verificar que Lucas, ao contrário de Mateus,
não atribuiu a Moisés a importância de um «tipo», de um percursor de Jesus. A sua narrativa do
nascimento concentra-se exclusivamente em David e sublinha que as afirmações que Mateus
coloca no sermão da montanha foram feitas numa planície (6, 17). Em Lucas, Jesus não é um
segundo Moisés. Lucas e Mateus concordam que Jesus se enquadra na história da salvação
judaica, mas discordam quanto aos pormenores. Lucas pensava que Jesus tinha cumprido as
profecias judaicas e que era o filho de David prometido, mas não o via como um novo Moisés.
As narrativas do nascimento constituem um caso extremo. Mateus e Lucas utilizam-nas para
situar Jesus na história da salvação. Parece que eles tinham pouquíssimas informações históricas
(no nosso sentido do termo) sobre o nascimento de Jesus e, por isso, seguiram uma das outras
suas fontes, isto é, a Escritura judaica. Não existe mais nenhuma parte significativa dos
Evangelhos que dependa tanto da teoria de que a informação sobre David e Moisés pode ter
sido, pura e simplesmente, transferida para a história de Jesus. Mas temos de constatar que os
primeiros cristãos consideravam que isto era algo perfeitamente legítimo. Do seu ponto de vista,
era legítimo. Na perspetiva deles, Deus tinha planeado tudo: o chamamento de Abraão, a vida
de Moisés, o êxodo do Egipto, o reino de David, a vida de Jesus. Eles também pensavam que
Deus dava indicações antecipadas - sinais, presságios, profecias - daquilo que iria fazer.
Estavam convencidos de que Deus tinha enviado Jesus para salvar o mundo e, portanto,
pensavam que Ele tinha dado indicações prévias
121
sobre aquilo que pretendia fazer e que os seus profetas o tinham profetizado. Muitos outros
escritores judeus do século I pensavam da mesma forma.
Mas havia limites, tanto na redação dos Evangelhos, como na restante literatura judaica. Os
Evangelhos estão cheios de ecos da Escritura judaica, mas, apesar disso, ninguém confundiria o
Jesus dos Evangelhos, nem com Moisés, nem com David. Apesar de a história de Jesus, tal
como Mateus a conta, apresentar uma série de paralelos com as histórias sobre Moisés, também
existem diferenças evidentes. Jesus não trouxe tábuas de pedra da montanha; não casou, como
Moisés, não contou com o apoio do seu irmão, como Moisés com o de Aarão, não viveu 120
anos; não morreu sozinho. Os Evangelhos também afirmam a existência de uma ligação entre
Jesus e David, mas não apresentam Jesus, de maneira nenhuma, como David. Não existem
paralelos reais: não existem equivalentes para Saul, Jonatan, Betsabé ou Absalão, e Jesus
também não é um grande guerreiro.
Os Evangelhos não representam, de maneira alguma, um caso único de adaptação das
esperanças tipológicas judaicas a circunstâncias diferentes. Pelo contrário, houve outros
escritores do tempo que invocaram a história da salvação utilizando nomes e títulos do passado,
mas fazendo, simultaneamente, alterações substanciais. Apresentarei aqui dois exemplos aos
quais voltaremos mais tarde, uma vez que envolvem os títulos de «Messias» e de «Filho de
David». Um hino escrito por volta de 63 a.e.c., no tempo da conquista de Jerusalém por
Pompeu, anseia pelo momento em que um filho de David purificará Jerusalém dos ímpios. No
entanto, este futuro Filho de David «não confiará em cavalo, cavaleiro e arco, nem juntará ouro
e prata para a guerra. Tão-pouco fomentará numa multidão a esperança de um dia de guerra».
(Salmos de Salomão, 17, 33.) Isto significa que ele será completamente diferente do próprio
David. A seita conhecida através dos Rolos do Mar Morto também esperava duas figuras
messiânicas, das quais um seria um descendente do sacerdote Aarão e o outro descendente de
David. O filho de David parece não ter qualquer função, enquanto a autoridade estará nas mãos
do Messias sacerdotal. Segundo um dos rolos (A Guerra entre os Filhos da Luz e os Filhos das
Trevas), haverá uma grande batalha e os Filhos da Luz combaterão os Filhos
122
das Trevas. O Messias davídico não desempenha qualquer papel na guerra. Os sacerdotes, sim;
tocam trombetas e dão ordens. Um exército recrutado das doze tribos de Israel traz estandartes e
marcha de um lado para o outro. Mas a batalha real é travada por anjos e o golpe final é dado
pelo próprio Deus. Portanto, havia outros judeus que esperavam um Messias da casa de David
que não levavam esta expectativa ao ponto de descreverem a figura futura em termos derivados
das histórias bíblicas sobre David. O título - «Messias» ou «Filho de David» - era a única
ligação existente entre ambos.
Os judeus que esperavam um futuro melhor queriam relacioná-lo com o seu passado, com a
história da relação de Deus com Israel, por isso, utilizavam nomes e títulos que eram
importantes na Bíblia. Mas os tempos tinham mudado. Os romanos seriam muito mais duros do
que os cananeus e os filisteus e os judeus sabiam que precisavam da ajuda de um exército
celeste. Um David não era suficiente. Mais: havia muitos judeus no tempo de Jesus que não
queriam uma monarquia. Embora alguns de entre eles, como, por exemplo, os membros da seita
do Mar Morto, ainda falassem de «David», nem mesmo eles pareciam já interessados neste tipo
de monarquia. Os reis tinham tendência para ser ditadores e a seita do Mar Morto preferia uma
forma de governo mais democrática ou teocrática.
Por conseguinte, quando os autores dos Evangelhos situam a história de Jesus no contexto da
história da salvação judaica, utilizam motivos da Escritura, sobretudo motivos relacionados com
Abraão, Moisés e David, mas não modelam o seu próprio Messias à luz destas personagens
bíblicas. É óbvio que se conservou algo do Jesus verdadeiro e os autores introduziram também
os seus próprios ideais, que parecem ser bastante diferentes dos ideais do Génesis, do
Deuteronómio, do 2 Samuel ou do 1 Reis. Eles pensavam que Jesus tinha ultrapassado Moisés e
que era um tipo de rei completamente diferente de David. Por isso, Jesus não representa
nenhuma reprodução «em papelão» de Moisés ou de David.
Também não existem quaisquer indícios seguros que nos digam quando uma passagem nos
Evangelhos foi inventada como um para- lelo com uma fase anterior da história da salvação,
quando uma passagem
123
foi trabalhada para poder servir realmente como um paralelo e quando o próprio Jesus (ou João
Baptista) criaram intencionalmente uma reminiscência. Temos de estudar o material, de
examinar até que ponto o paralelo é estreito e de utilizar o senso comum. No entanto, nunca
devemos esquecer que o objetivo dos autores não era escrever história académica. É
perfeitamente razoável que tentemos obtê-las deles, mas não podemos esperar que eles
colaborem connosco. Eles queriam convencer os leitores de que Jesus cumpriu as promessas
que Deus tinha feito a Israel. Estas promessas incluíam não só a redenção do povo de Israel,
mas também a salvação dos gentios. Os Evangelhos descrevem Jesus como o salvador do
mundo inteiro, mas ele é um salvador universal que pertence à história da salvação judaica.
Os autores queriam convencer os seus leitores de que Jesus era o redentor judaico universal
porque acreditavam que isto era absolutamente verdade. Isto não impede que, tal como vimos,
eles discordem em pontos importantes (como, por exemplo, na questão de saber se Jesudevia ou
não ser compreendido como o cumprimento do «tipo» mosaico). Esta divergência de opiniões é
esclarecedora para o historiador. Seria insensato da parte de um historiador discutir se o Jesus
histórico era ou não uma reminiscência de Moisés, assim como ter esperança de poder resolver
este problema através de uma comparação entre Mateus e Lucas. Mateus atribuiu à Lei um
papel mais importante na religião do que Lucas, pelo que o Jesus de Mateus é mais doutor da
Lei do que o Jesus de Lucas. Isto é uma divergência teológica no quadro de um acordo teológico
mais amplo: Jesus cumpriu «tipos» escriturísticos. Pelo contrário, não seria insensato da parte
de um historiador procurar saber se as passagens isoladas, nas quais Mateus transmite palavras e
atos de Jesus, dão a ideia de que Jesus era um legislador. Será que os pormenores de Mateus
subvertem a sua visão teológica?
Neste caso específico, a resposta será «em parte, sim; em parte, não». Mateus e Lucas tinham
perspectivas teológicas que, no essencial, estão fora do alcance da nossa investigação histórica:
podemos constatar que as tinham e podemos investigar como as obtiveram, mas não podemos
ocupar-nos da questão da sua «veracidade» ou falsidade. Este facto não impede que os
Evangelhos contenham material que não resulta das perspectivas teológicas dos mesmos. Além
disso, existem três Evangelhos sinópticos, com perspectivas teológicas um tanto diferentes e
estas divergências, por vezes, permitem-nos descobrir quais são as partes do material que não
são explicáveis como componentes integrantes de uma
124
construção teológica. Gostaria de voltar a dizer que este tipo de análise não agradaria nada aos
autores dos Evangelhos - e, provavelmente, a maior parte dos primeiros cristãos. Os autores
estavam convencidos de terem escrito a verdade e apelavam ao leitor para que este acreditasse
nela. O historiador responde que deseja distinguir um tipo de verdade da outra e estudar apenas
o segundo tipo, isto é, a verdade profana. Suspeito que os autores dos Evangelhos estavam
menos interessados neste segundo tipo de verdade. Se isto for assim, então a tarefa de descobrir
alguns elementos da história comum no grande contexto da história da salvação estará facilitada.
Se os autores dos Evangelhos não estivessem interessadíssimos em adaptar todos os pormenores
à sua teologia, não teriam feito grandes alterações de pormenor.
Galileia
As pessoas que se reuniam nas sinagogas das cidades e das aldeias da Galileia viviam, na sua
maioria, da agricultura e da pesca no mar da Galileia. Além disso, existiam as outras ocupações
normais da vida rural própria das pequenas cidades. Os barcos navegavam ao longo da costa do
pequeno mar interior, permitindo relações comerciais com outras aldeias da Galileia e com as
cidades da Decápolis, a leste do lago (sobre este assunto, ver mais adiante). O comércio com as
cidades fora da Galileia significava a presença de funcionários alfandegários nos portos. No
entanto, a produção de alimentos constituía a ocupação principal. A Galileia era muito fértil e o
clima fazia dela uma região agrícola ideal. À volta do mar da Galileia cresciam
«nogueiras, que precisavam de um clima particularmente frio ... palmeiras, que necessitam do
calor, bem como figueiras e oliveiras, que precisam de um clima mais ameno ... A terra não só
tem o mérito surpreendente de dar fruta tão diversa, como também a conserva: a terra produz
este tipo de frutos, as uvas e os figos. E estes últimos podem secar-se e conservar-se durante dez
meses consecutivos. (Guerra 3,517-519)
No entanto, o carácter de Cafarnaum era, provavelmente, determinado pelo facto de a localidade
se encontrar junto do mar. O mar da Galileia, também designado de Genezaret, é um mar muito
pequeno, motivo pelo qual alguns autores da Antiguidade (Lucas, Josefo e Plínio, o Velho) lhe
chamam «lago». É alimentado a norte pelo rio Jordão, que segue para sul, na direção do mar
Morto. O mar da Galileia tem cerca de 20 quilómetros de comprimento e 12 quilómetros de lés
a lés. O peixe é diferente do dos outros lagos e rios e muitas das espécies que se encontram nele
e no Jordão não existem em outros lugares. Os barcos eram, provavelmente, bastante pequenos.
Josefo descreve uma batalha naval ocorrida no mar da Galileia durante o levantamento judaico
contra Roma (66-74 e.c.). Os judeus tinham pequenos esquifes, com «um punhado de homens».
Os romanos abateram árvores e construíram grandes jangadas, nas quais cabiam muitos
soldados; ganharam o confronto sem grande esforço, massacrando-os judeus até ao último
homem, o que deixou o lago vermelho de sangue.
Segundo Josefo, os esquifes foram utilizados para «pirataria» ou «assaltos». Isto talvez queira
dizer que serviam para contrabando,
138
visto que é difícil imaginar uma frota inteira de piratas num mar tão pequeno. Os esquifes talvez
fossem também barcos de pesca transformados, o que explicaria o facto de albergarem «um
punhado de homens» (Guerra 3, 522-531). Os relatos evangélicos fazem supor que os barcos de
pesca eram tripulados por dois ou três homens (Mc 1, 16-20 e par.)
A pesca era sobretudo de arrasto, isto é, com uma rede munida com pesos e boias que era
arrastada atrás de um barco. Jesus refere-se a este tipo de rede (a «rede varredoura») numa
parábola: o Reino dos Céus é semelhante a uma rede de arrasto lançada ao mar que apanha tanto
peixe bom, como peixe mau. É necessário fazer uma escolha (Mt 13,47-50). Também era
utilizado um outro tipo de rede, uma tarrafa, que podia ser lançado do barco ou da margem e
depois novamente recolhido. Parece ser esta rede que está em causa na história de Simão e
André relatada por Marcos (Mc 1, 16). Eles estão a lançar as suas redes ao mar e deixam-nas
para seguir Jesus; não se fala de um barco. Tiago e João, porém, encontravam-se no seu barco,
consertando as suas redes (Mc 1, 19). É possível que houvesse uma distinção social entre
aqueles que podiam ter barcos e redes de arrasto de maior dimensão e aqueles que tinham de
lançar as suas redes da margem. A pesca com redes de arrasto era, quase com certeza, mais
lucrativa.
A maioria das povoações à volta do lago era bastante pequena. Marcos 1, 33, chama «cidade» a
Cafarnaum, o domicílio de Jesus, mas esta designação é exagerada. Aqui, como noutros lugares
no Evangelho, o conceito é utilizado de uma forma vaga. Josefo refere-se a Cafarnaum como
uma «aldeia» (Vida 403), mas «vila» seria, provavelmente, a designação mais adequada. As
ruínas da povoação antiga encontram-se num estreito ao longo da costa, com cerca de 500
metros de comprimento e 350 metros de largura. Um dos arqueólogos calcula que esta
superfície oferecia espaço vital a 1500 a 2000 habitantes, descontando o espaço necessário para
as ruas e os edifícios públicos. Atualmente, é possível visitar as ruínas de uma sinagoga muito
requintada, existente no local. A sinagoga tinha 22 metros de comprimento e dois pisos. No
entanto, é do século III, o período em
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que foram construídas muitas sinagogas grandes na região. É provável que a sinagoga do tempo
de Jesus se situasse no mesmo local, mas que fosse menor.
Jesus também pregava e curava em outras cidades e aldeias da Galileia. Ouvimos falar de Maria
Madalena, presumivelmente de Magdala, também perto do mar. Os Evangelhos mencionam
outras aldeias próximas, como Corazim, que ficava cerca de três quilómetros a norte de
Cafarnaum, e Betsaida, provavelmente uma pequena localidade junto do mar." Em Mateus
11,20-24 / / Lucas 10, 13-15, encontra-se um lamento profundo de Jesus por causa de Corazim,
Betsaida e Cafarnaum não se terem convertido, quando Jesus fez os seus «atos poderosos»:
«Serei mais tolerante para Tiro e Sídon no dia do juízo do que para vós.» Trata-se de uma
passagem elucidativa porque indica que existia uma tensão maior entre Jesus e as cidades
marítimas do que os Evangelhos nos deixariam supor. Marcos e os outros sinópticos descrevem
Jesus como alguém muito popular nestas pequenas cidades e nos seus arredores. Além disso,
Jesus recrutou os seus discípulos nestas localidades. No entanto, é óbvio que não encontrou ali a
resposta que esperava.
O mesmo se pode dizer da sua cidade natal, Nazaré, onde a sua mensagem foi rejeitada: «E não
pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Estava
admirado com a falta de fé daquela gente.» (Mc 6, 1-6) Sabemos ainda menos sobre Nazaré
antiga do que sobre Cafarnaum. Devia ter sido uma aldeia insignificante, visto que o seu nome
não aparece nem na Bíblia Hebraica, nem em Josefo, nem na literatura rabínica. Não se
encontrava numa estrada principal, mas ficava apenas alguns quilómetros a sul de Séforis, uma
cidade importante no interior da Galileia. Atualmente, há alguns investigadores que desejam ver
a proximidade de Nazaré em relação a Séforis como um factor muito importante. Imagina-se
que os habitantes de Nazaré beneficiavam da cultura supostamente greco-romana de Séforis.
podiam assistir a peças de teatro gregas, ouvir filósofos gregos e adquirir, em geral, maneiras
cosmopolitas. Isto é altamente improvável. A vida da aldeia era dominada pelo trabalho. As
140
pessoas trabalhavam seis dias por semana e a liberdade de movimento ao sábado era limitada a
um perímetro de cerca de 900 metros. É improvável que muitos habitantes de Nazaré tivessem
passado muito tempo em Séforis. Quando tinham alguns dias livres durante uma ou várias festas
de peregrinação, não viajavam para Séforis, mas sim para Jerusalém, que se encontrava no Sul.
É possível que muitos fossem levar alimentos ou outros produtos a Séforis para os vender no
mercado, como é óbvio. Nesse caso, tinham de se levantar antes do nascer do Sol, de moer grão
e preparar um farnel, comer, carregar o burro, ir com ele a pé até Séforis (uma viagem de uma a
duas horas) e vender a sua mercadoria. Quando o dia de mercado terminava, embrulhavam as
coisas e iam para casa. Não podiam regressar com o burro à aldeia depois do pôr-do-sol, visto
que o animal podia ferir-se. Não ganhavam o suficiente para ir ao teatro ou para passar a noite
na cidade. Em resumo, os aldeões de então, como os de todos os tempos, até hoje, viviam na sua
aldeia e raramente viajavam, exceto para vender ou trocar os seus produtos.
A leste do mar da Galileia e do rio Jordão ficava a Decápolis, «Dez Cidades» de origem
macedónia e grega politicamente independentes. No século III a.e.c., os sucessores de
Alexandre Magno fundaram muitas cidades novas (ou refundaram as antigas), dando-lhes uma
constituição grega e liberdade política (sob supervisão geral exclusivamente do poder
governante). Estas cidades eram muito importantes para impérios cujas tropas serviam durante
anos em regiões muito remotas:
141
os conquistadores davam terras aos soldados aposentados e a promessa de terra própria era um
fator importante no recrutamento das tropas. Os homens estabeleciam-se e casavam -
eventualmente, com uma mulher que tinha seguido o exército nas suas campanhas. Tornavam-se
agricultores, artesãos ou algo semelhante: bons, bravos cidadãos, leais ao império. As cidades
Decápolis serviam de escudo aos reinos helenistas contra ataques provenientes do deserto. Os
reis Asmoneus, sobretudo Alexandre Janeu, conquistaram muitas destas cidades. Roma adquiriu
o controlo delas quando Pompeu conquistou a Palestina. Da perspetiva das cidades helénicas,
ele libertou-as do domínio judaico; as suas moedas comprovam que Pompeu era encarado como
o fundador de uma nova era. Os descendentes dos soldados macedónios e helénicos transferiram
a sua lealdade para o Império Romano.
Segundo Marcos, Jesus foi duas vezes à região da Decápolis, mas, ao que parece, sem visitar as
cidades em si.12 Também foi uma vez à «região de Tiro e de Sídon» (Me 7, 24), duas
importantes cidades não-judaicas na costa fenícia, mas também não visitou as cidades.
Ficaremos com uma ideia mais aproximada da Galileia no tempo de Jesus e talvez o
compreendamos um pouco melhor se dissermos algumas palavras sobre as principais cidades da
Galileia, que contrastavam com as regiões em que ele desenvolveu o seu ministério. Séforis foi
durante muitos anos a cidade mais importante da Galileia. Foi destruída (ou parcialmente
destruída) no ano de 4 e.c., durante os levantamentos posteriores à morte de Herodes Magno.
Segundo Josefo, o legado da Síria, Varus, queimou a cidade e vendeu a população como
escravos, embora a maioria não tivesse nada a ver com os revoltosos e não os tivesse ajudado
(Guerra 2, 56; 2, 58).13 Antipas mandou reconstruir e repovoar imediatamente a cidade,
transformando-a na «joia de toda a Galileia» (Antiguidades 18, 27). Séforis foi a sua capital
durante algum tempo e o lar da nobreza da Galileia. A população era composta
maioritariamente por judeus, embora também houvesse
142
alguns gentios. A cidade permaneceu fiel aos romanos durante a revolta judaica (66 e.c.); as
autoridades civis pediram e receberam uma guarnição romana (Guerra 3, 30-34; cf. 2, 511). Os
galileus que aderiram à revolta detestavam Séforis de todo o coração, naturalmente, mas é
provável que a inimizade tivesse raízes mais profundas: é possível que a cidade, rica e
aristocrática, já não fosse particularmente popular antes da guerra e o facto de ter apoiado Roma
durante a guerra reflete a sua orientação fundamental, que causou ressentimento a muitos
galileus.
Antipas construiu Tiberíades no ano 25 e.c., fazendo dela a nova capital. A cidade fica nas
margens do mar da Galileia, o que permitia um acesso às várias regiões da tetrarquia de Antipas
melhor do que aquele que Séforis possuía. A população de Tiberíades era mista, embora os
judeus estivessem claramente em maioria. Tiberíades foi construída em parte sobre um velho
cemitério e os judeus religiosos recusavam-se a viver nela, porque andar por cima de um túmulo
significava contrair a impureza dos cadáveres. Esta impureza, segundo a Lei bíblica, não é
errada: supõe-se que os vivos cuidem dos mortos, tornando-se, portanto, impuros. A pureza
adquiria-se através de um ritual que durava sete dias. As únicas coisas que a impureza impedia
eram o acesso ao Templo e a participação na ceia pascal, pelo que, na Galileia, não tinha
quaisquer consequências práticas. Mesmo assim, havia muitos judeus piedosos que não
desejavam ser sempre impuros. Por isso, a capital de Antipas atraía gentios e judeus
relativamente pouco piedosos; alguns só eram persuadidos a viver ali através da oferta de casa e
de terra. É provável que Tiberíades, tal como Séforis, também fosse encarada com desconfiança
por muitos judeus da Galileia.
A terceira cidade, Citopólis, foi fundada como uma cidade grega no lugar da antiga Beth Chean.
Tal como foi observado anteriormente, embora Citopólis fizesse parte da Galileia em termos
geográficos, era independente do ponto de vista político; não era governada por Antipas, tal
como não o tinha sido por Herodes. Era a única cidade da Decápolis na margem ocidental do rio
Jordão. Embora a cidade fosse de fundação grega, no tempo de Jesus, tinha uma população
mista. Quando o levantamento começou, em 66 e.c., os cidadãos judeus (cerca
143
de 13 000 pessoas) foram obrigados a ajudar os gentios na defesa da cidade contra os rebeldes
judeus. Apesar disso, a população gentia massacrou os judeus (Vida 26).
De acordo com as informações dos Evangelhos, Jesus só conhecia uma cidade digna desse
nome: Jerusalém. No entanto, é possível que tenha visitado Séforis, pelo menos,
ocasionalmente. Ele não era um cosmopolita; baseou a sua atividade nas pequenas cidades e
aldeias da Galileia, sobretudo naquelas que se encontravam na margem do mar. Apesar de Jesus
ter ficado dececionado com a receção que teve nas aldeias da Galileia, tendo-se lamentado em
relação a algumas delas, Séforis, Tiberíades e Citopólis nem sequer isto receberam.
É difícil saber o peso que devemos atribuir ao facto de Jesus ter evitado os centros urbanos (ao
que parece). Veremos mais adiante que ele prometeu o Reino aos excluídos e aos pecadores,
incluindo aos cobradores de impostos e às prostitutas. Poderia pensar-se que tal missão o teria
levado a Tiberíades, a capital. Ele podia ter ido a Séforis para protestar contra a riqueza da
aristocracia. O desejo de atingir todo o Israel podia tê-lo levado aos centros de maior
concentração populacional. Contudo, Jesus atuou entre os seus: habitantes das aldeias, artesãos,
negociantes, camponeses e pescadores.
Talvez o tenha feito simplesmente porque eram seus iguais. Ele identificava-se com os fracos e
os oprimidos - eles eram, por natureza, os destinatários da sua missão. Além disso, tal como
muitos profetas e visionários, ele não fez cálculos do tipo dos nossos. A pergunta implícita no
último parágrafo - «se queres converter os pecadores, então, porque não vais a Tiberíades?» -
não lhe diria nada. Quando pensava em «todo o Israel», não fazia cálculos, perguntando-se:
«como posso alcançar o maior número possível de pessoas da maneira mais eficaz?» Pensava,
certamente, em termos simbólicos e, provavelmente, representativos - os doze discípulos
simbolizavam e representavam todo o Israel (ver, mais adiante, pp. 159-160,234 e segs.).
Sabemos que Paulo, Pedro, Tiago e João pensaram o mesmo alguns anos mais tarde.
Distribuíram a missionação do mundo entre eles - Pedro, para os judeus, Paulo, para os gentios
(GI 2, 9) - mas ninguém foi a Alexandria. Paulo, depois de ter fundado comunidades em cerca
de uma dúzia de cidades da Ásia Menor e da Grécia, disse que tinha «completado» os
evangelhos e que não tinha mais campo de ação naquela região, pelo que tinha de ir para
Espanha (Rm 15, 19. 23s). Este «completamento» era apenas simbólico e representativo.
144
Portanto, Jesus era um homem proveniente de uma aldeia na Galileia, cuja atividade se limitou a
outras aldeias e pequenas cidades na região e nas redondezas - e, no entanto, estava convencido
de que a sua missão era importante para todo o Israel.
Um movimento itinerante
Vimos que os Evangelhos descrevem Jesus e os seus discípulos como itinerantes. Alguns deles,
se não todos, tinham casa e família, mas passavam muito tempo em viagem e não existem
referências de que trabalhassem durante a vida pública de Jesus. Por um lado, estavam ocupados
com o anúncio do Reino e, por outro lado, o chamamento dos discípulos mais íntimos tinha
como condição que eles deixassem tudo. No entanto, tinham de ter algum apoio financeiro. As
aves do céu comem de graça (Mt 6, 26), mas as pessoas, não. Em Mateus 10, os discípulos são
encarregados de uma missão. Na sua forma atual, a passagem reflete o conhecimento da igreja
pós-ressurreição, mas, mesmo assim, pode fornecer informações sobre a forma como era
suposto viverem os seguidores de Jesus:
Não leveis nem ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho,
nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento. Em
qualquer cidade ou aldeia onde entrardes, procura i saber se há nela alguém que seja digno, e
permanecei em sua casa até partirdes. (M tIO, 9-11)
As cartas de São Paulo mostram que alguns dos missionários cristãos seguiam estas instruções
depois da morte de Jesus. Segundo Paulo, o Senhor ordenou «que aqueles que anunciam o
Evangelho vivam do Evangelho» (1 Cor 9, 14), o que corresponde, mais ou menos, à citação de
Mt 10,9-11. Paulo escreve que, embora ele e Barnabé não aceitassem dinheiro, e apesar de ele
viver do trabalho das suas mãos, não era isso que se passava com os outros apóstolos. Eles
viviam e viajavam juntamente com as suas mulheres à custa das igrejas (1 Cor 9,3-7). No
entanto, Paulo não abdicou completamente deste direito apostólico: durante a sua atividade em
Corinto, recebeu dinheiro de outras igrejas (2 Cor, 11, 8s) e a Carta aos Filipenses (4, 14-16)
informa-nos do apoio que a igreja local lhe prestou enquanto
145
ele esteve na Macedónia. Por fim, na Carta aos Romanos 16, 2, Paulo menciona uma mulher,
Febe, como sua patrona e de outros. Por conseguinte, Paulo viveu frequentemente de acordo
com a afirmação do Senhor: «o trabalhador merece o seu sustento» - isto é, da caridade.
De acordo com João (21, 1-3), os discípulos de Jesus regressaram à pesca depois da execução
deste. Contudo, os Atos dos Apóstolos afirmam que eles iniciaram imediatamente a sua
atividade em Jerusalém, onde não tinham qualquer apoio financeiro visível. O movimento con-
quistou seguidores que dispunham de bens, como Barnabé, por exemplo (Act 4, 36 e segs.), que
colocavam o seu dinheiro e os seus haveres num cofre comum. Os apóstolos dependeram do
apoio financeiro de outros desde o início da sua atividade.
Por conseguinte, as fontes dos primeiros tempos da igreja indicam que os seguidores de Jesus
esperavam ser apoiados por outros durante a sua atividade missionária. Esta expectativa
derivava, provavelmente, da sua prática enquanto seguidores de Jesus durante a sua vida. Os
Evangelhos mostram, de vez em quando, Jesus e, por vezes, os discípulos, a comer em casa de
alguém. É o que acontece em Marcos 2, 15-17.16 Em Lucas 7, 36-50, Jesus come com Simão,
um fariseu, em 11, 37-44, come em casa de um outro fariseu e em 19, 1-10 fica em casa de
Zaqueu, um cobrador de impostos. Não sabemos se estes pormenores correspondem à verdade,
mas podemos aceitar o sentido geral destas passagens: ao deslocarem-se de aldeia em aldeia,
Jesus e os seus seguidores encontraram alguém disposto a oferecer-lhes comida e um
alojamento simples. Segundo Lucas, Jesus e os seus discípulos dispunham de meios de sustento
ainda mais amplos: enquanto andavam pela Galileia, Jesus e os Doze faziam-se acompanhar por
mulheres, incluindo «Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios, e Joana,
mulher de Cuza, administrador de Herodes, e Susana e muitas outras, que os serviam com os
seus bens.» (Lc 8, 1-3.)
146
O autor de Lucas, que também escreveu os Atos dos Apóstolos, queria chamar a atenção para as
mulheres importantes que apoiavam primeiro Jesus e, depois, também os seus apóstolos: em
Tessalónica, «alguns deles ficaram convencidos e juntaram-se a Paulo e a Silas, bem como o
fizeram grande número de crentes gregos e muitas mulheres importantes.» (Act 17, 4) Lucas
tinha um interesse especial pela piedade das mulheres e pelo seu papel na religião, em geral;
além disso, queria demonstrar que o cristianismo atraía as classes mais altas. Por isso, é possí-
vel que a passagem citada (8, 1-3) exagere a dimensão do apoio dado a Jesus e aos seus
seguidores pelas mulheres, entre as quais se encontrava uma com algum estatuto social (a
mulher do camareiro de Antipas).
De qualquer modo, é evidente que estas mulheres existiram, realmente, no início do
cristianismo. Já mencionámos Febe, que era patrona de Paulo e de outros. De Corinto,
conhecemos Cloé, que era suficientemente rica para enviar os seus escravos ou servos livres
com uma mensagem para Paulo (1 Cor 1,11). Além disso, há fenómenos análogos: as mulheres
constituíam, por vezes, as principais apoiantes de outros movimentos religiosos. Foi isto que
aconteceu, por exemplo, numa fase inicial do farisaísmo. Embora Herodes Magno se opusesse
aos fariseus, estes eram, em parte, protegidos e apoiados por mulheres da corte. Na opinião de
Nicolau de Damasco, o cronista da corte de Herodes, este facto constituía um descrédito para os
fariseus: só atraíam mulheres.!? Portanto, ao sublinhar o papel das mulheres, Lucas não estava,
necessariamente, a apresentar Jesus e o seu movimento de uma forma que os leitores de então
considerassem favorável.
Parece, portanto, que podemos aceitar a afirmação de Lucas como provável em termos gerais:
Jesus e os outros eram apoiados, em parte, por mulheres abastadas e algumas de entre elas
também o «seguiam». Em que sentido é que eram seguidoras?
Em Lucas 8, 1-3, as mulheres acompanhavam Jesus e os seus discípulos do sexo masculino
quando estes iam «de cidade em cidade, de aldeia em aldeia». Além disso, as mulheres
encontravam-se no grupo das pessoas que acompanharam Jesus entre a Galileia e Jerusalém.
Segundo Mateus '2.7, 55 e segs., havia «muitas mulheres», entre elas «Maria de Magdala,
Maria, a mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos
147
de Zebedeu». Lucas não menciona nomes nesta passagem, referindo-se apenas a «mulheres que
o tinham seguido desde a Galileia» (23, 55). Marcos menciona «Maria de Magdala, Maria, a
mãe de Tiago Menor e de José, e Salomé», acrescentando que estas também o seguiam na
Galileia e que o «serviam». Acrescenta que «também havia muitas mulheres que tinham vindo
com ele para Jerusalém» (15, 40-41). A palavra grega aqui traduzida com «servir» é diakoneo, a
mesma palavra utilizada em Lc 8, 3, que significa, provavelmente, «apoiado». Penso que é
provável que as mulheres só muito raramente seguissem Jesus no sentido físico do termo, como,
por exemplo, em peregrinações a Jerusalém, nas quais era geralmente aceitável que homens e
mulheres viajassem juntos em grupos. Se as mulheres tivessem, de facto, viajado com Jesus e
com os seus discípulos em outras ocasiões e passado a noite pelo caminho, encontraríamos nos
Evangelhos um eco da crítica que este comportamento escandaloso teria provocado. As apoian-
tes desempenharam, provavelmente, o seu papel mais tradicional, arranjando alojamento e
alimentação.
Jesus disse que «as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não
tem onde reclinar a sua cabeça». (Mt 8, 20). Será que ele e os seus discípulos mais próximos
ficavam, por vezes, sem alojamento durante a noite? Será que o seu ministério era sasonal? Não
temos respostas certas para estas perguntas. A temperatura média em Tiberíades no mês de
Janeiro situa-se, hoje, entre os 10 e os 18 graus e o número de dias de chuva situa-se entre os
trinta e os cinquenta por ano, sendo que chove sobretudo entre o início de Dezembro e o início
de Março.l'' No entanto, muitos dias são mais desagradáveis do que revelam estas temperaturas.
Além disso, Jesus e os seus discípulos passaram parte do tempo afastados do mar da Galileia,
portanto, em regiões com um clima um pouco mais rigoroso. Não é possível que o grupo
regressasse a Cafarnaum sempre que o tempo estava mau. Jesus deve ter levado uma vida de
pobreza e sem lar durante a sua vida pública; mas, por vezes, tanto ele como os seus
acompanhantes, devem ter encontrado alojamento e camas, em especial, quando viajavam no
Inverno.
148
Estas considerações fazem-nos regressar à questão do período de duração da missão de Jesus
(ver, atrás, pp. 96-99), mas não a resolvem. Mesmo que o seu ministério só tivesse durado
alguns meses, terminando com a Páscoa, na Primavera, teria tido que passar um Inverno e, para
tal, ele e os seus acompanhantes necessitavam de um certo apoio. Temos de adivinhar como
seria a sua vida, a partir de alguns indícios: não tinha casa; viajava na companhia dos seus
discípulos, um grupo composto - pelo menos, durante uma parte do tempo - por mais pessoas do
que apenas os «Doze»; o grupo quase não tinha reservas financeiras; por vezes, podiam comer e
dormir confortavelmente, graças ao facto de Jesus ter encontrado alguns apoiantes abastados,
sobretudo, mulheres.
149
10. Milagres
Marcos coloca a ênfase da parte inicial do seu Evangelho nos milagres. Observámos
anteriormente que, embora o Evangelho refira que Jesus ensinava, fornece pouco material de
ensinamento, enquanto narra as histórias de milagres com bastante pormenor. Os grandes
corpos de material de ensinamento em Mateus e Lucas e, especialmente, o sermão da montanha
em Mateus (capítulo 5-7), levaram a maioria das pessoas a pensar em Jesus sobretudo como um
mestre. Não há dúvida de que ele ensinava e de que aquilo que ensinava é tão importante como
empolgante. Mas os seus contemporâneos também atribuíram um grande significado àquilo que
ele fez, sobretudo, aos seus milagres. Num dos primeiros sermões cristãos, Pedro descreve Jesus
como um homem cujos milagres (<<gestos poderosos», «prodígios» e «sinais») demonstraram
que ele era «atestado por Deus» (Act 2, 22).
Os milagres de Jesus desempenharam um papel decisivo na avaliação que o mundo moderno fez
do cristianismo. Alguns consideraram os milagres como ficções óbvias, concluindo que o
cristianismo se baseia numa fraude, enquanto outros descobriram neles uma prova de que Jesus
era mais do que um ser meramente humano, isto é, que
173
era o Filho de Deus encarnado. Veremos que estas duas visões extremas não compreendem a
perspetiva antiga, que considerava os milagres algo impressionante e significativo, mas não
como um sinal de que aquele que fazia milagres era algo mais do que um simples ser humano.
Apesar de, hoje, muitas, se não a maioria das pessoas nos países industrializados, não acreditar
que haja milagres verdadeiros, na Antiguidade, a maior parte acreditava em milagres ou, pelo
menos, na sua possibilidade. Jesus não foi, de maneira alguma, o único a quem foram atribuídos
milagres. Os primeiros cristãos pensavam que Jesus era o Messias, o Filho de Deus e alguém
que fazia milagres. Este facto levou muitos cristãos do nosso tempo a pensar que os judeus do
século I esperavam um Messias que fazia milagres e que os contemporâneos de Jesus teriam
concluído que aquele que fazia milagres era o Messias. Esta perspetiva é incorreta. As poucas
referências a um Messias que virá, existentes na literatura judaica, não o descrevem como
alguém que faz milagres. Nem sequer existiam expectativas da vinda de um Filho de Deus. Tal
como outros povos da Antiguidade, os judeus também acreditavam em milagres, mas não
pensavam que a capacidade de fazer milagres constituísse uma prova de um estatuto superior.
Os cristãos são os únicos a combinar os títulos de «Messias» e de «Filho de Deus» com a
capacidade de fazer milagres, em consequência da atribuição de ambos os títulos a Jesus,
conhecido, naquela época, como alguém que fazia milagres.
A discussão deste tema é difícil, porque existe uma série de problemas que se cruzam e porque
as questões estritamente históricas se entrelaçam ainda mais do que é habitual com aquilo que as
pessoas pensam e creem hoje em dia. Referi-me a vários temas nos três parágrafos anteriores.
Talvez seja mais simples enumerá-los. Ao estudarmos os milagres de Jesus, não podemos
esquecer uma série de perspectivas, algumas antigas, e outras atuais:
1. Antiguidade:
a) o que as pessoas da Antiguidade pensavam sobre os milagres, em geral;
174
b) o que pensavam os judeus que não aceitaram Jesus sobre os seus milagres;
c) o que pensavam os judeus que aceitaram Jesus;
2. Atualidade:
d) o que pensam as pessoas de hoje sobre os milagres, em geral;
e) o que pensam as pessoas de hoje sobre os milagres de Jesus (I. quando são cristãs; lI. quando
não são cristãs);
f) que importância pensam elas que os seguidores de Jesus atribuíram aos seus milagres;
g) o que pensam elas que é suposto os cristãos acreditarem no que diz respeito aos milagres de
Jesus.
Este capítulo limitar-se-á aos temas referidos no ponto 1, isto é, o que pensavam as pessoas
naquela época. Porém, é difícil discutir os milagres de Jesus do ponto de vista histórico, porque
as convicções sobre aquilo em que os cristãos acreditam ou deveriam acreditar interferem
bastante. Gostaria de dedicar uma página aos temas mencionados no ponto 2. Trata-se apenas de
um exercício de esclarecimento inicial, de uma tentativa de demonstrar que os milagres devem
ser estudados à luz de outros milagres daquela época e não no contexto da doutrina cristã
subsequente sobre a natureza humana e divina de Jesus.
Muitos cristãos e, possivelmente, ainda mais não cristãos, pensam que a convicção segundo a
qual Jesus podia fazer milagres porque era mais do que um mero ser humano é algo central para
o cristianismo. Tomemos como exemplo a caminhada sobre a água. Uma larga maioria das
pessoas pensa, atualmente, que é impossível caminhar sobre a água. Alguns cristãos, ainda que
não todos, sentem-se obrigados a acreditar que Jesus podia fazê-lo; ele era o único que possuía
essa capacidade porque era mais do que um ser humano. Muitos não cristãos também pensam
que os cristãos têm de acreditar nisso. Além disso, muitos cristãos e não cristãos pensam que a
fé dos primeiros cristãos dependia dos milagres de Jesus.
Nada disto corresponde à verdade histórica. Na parte central deste capítulo veremos que, no
século I, os milagres de Jesus não eram decisivos para a aceitação ou não da sua mensagem,
nem eram considerados uma «prova» para os seus contemporâneos de que ele era mais do que
humano. A ideia de que ele não era um ser realmente humano só surgiu
175
no século n, mantendo-se durante algum tempo, mas acabou por ser condenada como heresia.
Desde o século v (quando a questão foi decidida oficialmente) que a ortodoxia cristã acreditou
que Jesus era «verdadeiro ser humano de verdadeiro ser humano» e que a sua divindade (que
também foi afirmada) não se misturou nem interferiu com a sua humanidade; ele não era uma
mistura estranha. É herético afirmar que a sua natureza divina lhe permitiu boiar, enquanto os
seus pés tocaram levemente na água. A palavra definitiva nesta questão é que ele é «da mesma
natureza humana que nós; em tudo igual a nós, exceto no pecado» - não «exceto na capacidade
de caminhar por cima da água».
A explicação de como é possível a uma pessoa ser cem por cento humana e cem por cento
divina, sem que uma coisa interfira na outra ultrapassa as minhas pobres capacidades como
intérprete da teologia dogmática. A definição do Concílio de Calcedónia (451 e.c.), na qual se
encontra a citação que fiz, é sobretudo defensiva e não construtiva. O crente ortodoxo aprende
mais sobre aquilo que não deve dizer do que sobre como falar acerca de Jesus de uma forma que
faça sentido. Os Padres da Igreja pensavam que era prejudicial negar que Jesus era humano e,
por isso, afirmaram-no; era prejudicial negar que ele era divino e, portanto, afirmaram-no
também. Seria interessante estudar por que razão consideravam ambas as negações erradas, mas
a discussão desta questão está bastante para além dos objetivos deste livro. Permito-me dizer
apenas duas frases: a negação da verdadeira e plena humanidade de Jesus teria resultado numa
desvalorização do mundo material; felizmente, os cristãos ortodoxos mantinham a visão do
Génesis: Deus declarou que a criação é boa. Eles defenderam esta visão contra ataques muito
graves e parte desta defesa consistia na afirmação de que Jesus era um ser humano verdadeiro.
Afirmaram reiteradamente que a divindade de Jesus não interferia, de maneira alguma, na sua
humanidade, nem lhe concedia poderes não humanos.
Pretendo que esta breve discussão dos tópicos e) até g) seja negativa, de acordo com o espírito
do Concílio de Calcedónia, apesar de a minha perspetiva ser histórica e não dogmática. Do
ponto de vista histórico, é um erro pensar que os cristãos têm de acreditar que Jesus era sobre-
humano, assim como é um erro pensar que, no tempo de Jesus, os seus milagres fossem
considerados como uma prova parcial ou total da sua divindade. Gostaria de me dedicar, agora,
aos tópicos a) a c), apesar de fazer algumas menções ocasionais à perceção
moderna dos milagres d).
176
Exorcismos
Os exorcismos, uma importante subcategoria das curas, merecem uma discussão mais exaustiva.
Eles eram muito importantes no ambiente cultural de Jesus, assim como o foram na sua própria
atividade. A importância da demonologia no judaísmo tinha crescido desde os dias da Bíblia
Hebraica, que atribui numerosos milagres aos profetas (como Elias e Eliseu), mas não contém
quaisquer histórias de exorcismo.
192
O exorcismo é, contudo, o tipo de cura mais proeminente nos Evangelhos sinópticos. O volume
de testemunhos torna extremamente provável que Jesus tivesse tido, de facto, reputação de
exorcista. Apresento aqui um catálogo completo das histórias de possessão demoníaca
existentes nos sinópticos
Milagres naturais
Os Evangelhos atribuem a Jesus outro tipo de milagres, além das curas. Estes são designados
geralmente como «milagres naturais», embora o termo nem sempre seja completamente
apropriado.
Um dos mais impressionantes e mais complicados consiste numa história elaborada de um
exorcismo [indicada anteriormente na alínea (flJ. Jesus e os seus seguidores atravessavam o mar
da Galileia, a caminho de Gerasa (Marcos e Lucas) ou de Gadara (Mateus). Encontraram
198
um possesso que era incontrolável.!" Os habitantes da cidade tinham tentado prendê-lo com
correntes, mas ele quebrava-as. «Andava sempre, dia e noite, entre os túmulos e pelos montes, a
gritar e a ferir-se com pedras.» Viu Jesus, correu ao seu encontro e prostrou-se diante dele. Ele -
ou antes o demónio nele - gritou: «Que tens a ver comigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?
Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes» Jesus perguntou-lhe o seu nome. Ele respondeu:
«O meu nome é Legião, porque somos muitos.» Estava uma vara de porcos ali perto e os
demónios pediram a Jesus para os mandar para dentro dos porcos. Jesus consentiu «e a vara,
cerca de uns dois mil, precipitou-se no mar, afogando-se». Os guardas dos porcos contaram o
sucedido e muitas pessoas foram ver o que se passara. Aquele que antes estivera possesso estava
sentado, «vestido e em perfeito juízo». As pessoas pediram a Jesus que se fosse embora. Ele
entrou num barco e o homem curado suplicou-lhe que o deixasse ir com ele. Jesus recusou,
dizendo que ele deveria ficar e contar a história de como Deus tinha tido misericórdia dele. O
homem curado assim fez, apregoando na Decápolis o que Jesus fizera por ele (Mc 5, 1-20). Em
Mateus, contudo, a história termina com o pedido da população para que Jesus se fosse embora
(Mt 8, 28-34).
A história é estranha em todos os aspetos. É de longe o mais dramático de todos os exorcismos
atribuídos a Jesus, ligando, além disso, o exorcismo à «natureza» - aos porcos. Um dos
pormenores referidos na história torna-a inverosímil. Gerasa fica a cerca de 45 quilómetros de
distância do mar da Galileia, não existindo outras águas de grande superfície nas proximidades.
Mateus desloca a cena para Gadara, que se encontra a 10 quilómetros de distância do mar,
talvez pensando que isto diminuía o problema - apesar de um salto de 10 quilómetros ser tão
impossível como um de 45 quilómetros. Tenho dificuldades em explicar a história no sentido de
encontrar um núcleo histórico. Os evangelhos apócrifos dos séculos posteriores descrevem, por
vezes, Jesus a realizar milagres igualmente fantásticos e grotescos, alguns dos quais, ainda mais
cruéis do que a destruição dos porcos, apresentando, por exemplo, Jesus a matar os seus
companheiros de jogo de infância e, em seguida, a ressuscitá-los ou a transformá-los em cabras.
Isto significa, por vezes, que o desejo dos autores cristãos em
199
apresentar Jesus como alguém que dispunha de um poder sobrenatural era tão forte que o
descreveram como não sendo melhor do que um deus mal-humorado da mitologia grega.15 A
maior parte do material dos evangelhos canónicos não possui esta tendência. No entanto, aqui, o
poder espiritual de Jesus sobre os demónios está tão enfatizado que resultou numa história sem
interesse. Na realidade, o que se pretendia era colocar a ênfase na cura de um homem possesso.
O milagre natural mais famoso está relacionado com uma tempestade no mar (Mt 14,22-33 / /
Me 6, 45-52). Jesus tinha estado a ensinar. Despediu a multidão a quem tinha ensinado e foi
orar para o monte, enquanto os discípulos atravessavam o mar num barco. Levantou-se uma
tempestade e o barco ficou numa situação difícil. De repente, os discípulos viram Jesus a
caminhar ao encontro deles. Assustaram-se, pensando: «é um fantasma». Jesus tranquilizou-os,
mas Simão Pedro pediu-lhe uma prova de que era de facto ele, dizendo-lhe que o mandasse
caminhar também a ele, Pedro, sobre as águas. Pedro saiu do barco e começou a caminhar ao
encontro de Jesus. Levantou-se vento e Pedro teve medo e começou a afundar-se. Jesus
estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe: «Homem de pouca fé, por que duvidaste?» Entraram
novamente na barca e o vento amainou. Os discípulos convenceram-se de que Jesus era o Filho
de Deus. Isto, pelo menos, na versão de Mateus. Marcos 6, 45-52 não inclui a parte sobre Pedro,
nem a conclusão categórica de que os discípulos acreditaram que Jesus era o Filho de Deus.
Segundo Marcos, eles não compreenderam.
Existe uma outra história sobre uma tempestade no mar (Me 4, 35-41 e par.) Os discípulos e
Jesus estavam no barco quando se levantou uma tempestade e o barco estava prestes a ir ao
fundo. Jesus estava a dormir. Os discípulos acordaram-no, dizendo-lhe: «Mestre, não queres
saber que pereçamos?» Jesus levantou-se, repreendeu o vento e disse ao mar: «Acalma-te, cala-
te!», e o mar acalmou-se.
200
Tal como existem dois milagres relacionados com o mar, existem também dois milagres
relacionados com a comida. De acordo com o primeiro (Me 6,30-44/ / Mt 14, 13-21), Jesus e os
seus discípulos tentavam escapar à multidão que não lhes dava tempo, sequer, para comerem.
Entraram no barco deles e foram para um «local isolado», que não permaneceu isolado durante
muito tempo, porque as pessoas «acorreram a pé àquele lugar, vindas de todas as cidades e
chegaram primeiro que eles». Jesus começou a ensinar a multidão e, entretanto, fez-se tarde. Os
discípulos insistiram que ele mandasse as pessoas embora para que pudessem encontrar comida.
Ele respondeu: «Dai-lhes vós mesmos de comer.» Isto não era razoável, uma vez que eles não
tinham dinheiro suficiente para comprar comida para a multidão. Jesus perguntou, então,
quantos pães tinham consigo. Os discípulos encontraram cinco pães e dois peixes. A multidão
sentou-se, Jesus pronunciou uma bênção e partiu os pães. Os peixes também foram divididos.
Apesar da pequena quantidade inicial de comida, «todos comeram e ficaram saciados», e ainda
sobrou comida. De acordo como Marcos, estavam presentes 5000 homens; Mateus especifica:
«sem contar mulheres e crianças». No segundo caso (Mt 15,32-39// Me 8, 1-10), sete pães
(segundo Marcos; Mateus acrescenta «e alguns peixinhos») foram suficientes para saciar 4000
pessoas.
O aspeto mais curioso dos milagres naturais é a falta de impacto que estes eventos tiveram
segundo os Evangelhos. A única coisa que os autores dos Evangelhos dizem acerca da reação da
multidão à primeira refeição é que: «comeram até ficar saciados» (Mc 6, 42 e par). O
comentário depois da segunda refeição é quase idêntico (Mc 8, 8 / / Mt 15, 37). Nem sequer os
discípulos fazem comentários. A história de Jesus a andar sobre as águas encontra-se, tanto em
Mateus, como em Marcos, entre estes dois milagres da refeição. Marcos escreve que os
discípulos «ainda não tinham entendido o que se dera com os pães, mas tinham o coração
endurecido» (Me 6, 51 e segs.). Mateus, como vimos, tem um final mais reverencial: «Os que se
encontravam na barca prostraram-se diante de Jesus, dizendo: "Tu és, realmente, o Filho de
Deus!"» (Mt 14, 33.) O acalmar do mar, o primeiro milagre natural em Mateus e Marcos,
provoca apenas espanto: «Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?» (Mc 4, 41, Mt
8, 27.)
Se nos lembrarmos de que Marcos atribuiu um grande impacto a um milagre de uma
importância relativamente menor, a um único
201
exorcismo (Mc 1,28: «A sua fama logo se espalhou por toda a parte»), é difícil explicar por que
motivos os autores dos Evangelhos tiveram tão pouco a dizer sobre o impacto público de um
milagre tão grandioso como alimentar uma multidão. Não podemos resolver inteiramente o
enigma, mas parte da resposta está no facto de os primeiros cristãos terem de levar em conta um
facto histórico grave: eram poucas as pessoas que acreditavam em Jesus como o último e mais
importante enviado de Deus. A 1 a Carta aos Coríntios 15, 6, dá a impressão de que Jesus teve
algumas centenas de seguidores e de simpatizantes (p. 165). Contudo, os autores dos
Evangelhos acreditavam que ele era o Filho de Deus e que tinha realizado sinais dramáticos que
demonstravam a sua relação íntima com a divindade. Mas se ele fez realmente milagres e se os
milagres constituíam uma prova, então, devia haver mais pessoas a acreditar nele. Os autores
dos Evangelhos não tinham dúvidas de que Jesus tinha feito milagres, mas tinham de admitir
que eram poucas as pessoas que acreditavam nele. Isto deixou-os com um dilema. Marcos, em
particular, tentou resolver o problema afirmando que Jesus tinha ordenado silêncio: talvez
poucas pessoas acreditassem porque Jesus tenha restringido a divulgação das notícias. Todavia,
Marcos também diz que as pessoas que receberam estas ordens do silêncio não as observaram,
mas proclamavam Jesus publicamente e que este era acossado pela multidão. No entanto,
quando estas mesmas multidões assistiram a um milagre (a multiplicação dos pães e dos
peixes), não reagiram, praticamente. O leitor moderno está inclinado a pensar que esta situação
curiosa resulta, em parte, da tensão entre o acontecimento real e o relato que os evangelistas
fizeram dele. Talvez Jesus não tenha feito realmente muitos milagres espetaculares, pelo que,
naturalmente, não havia muitas pessoas a quem os milagres convencessem a segui-lo. Tal
significaria que a tradição cristã aumentou e enalteceu as histórias de milagres a fim de as tornar
muito impressionantes. Por conseguinte, poderia pensar-se que a reação foi reduzida do ponto
de vista histórico porque houve poucos milagres grandiosos, ao passo que, nos Evangelhos, há
grandes milagres, mas uma reação inexplicavelmente pequena. É possível que os milagres de
Jesus fossem relativamente insignificantes, não causando senão uma agitação temporária do
público. Isto constitui uma solução especulativa, apesar de razoável, na minha opinião.
Consideraremos, no entanto, a possibilidade de uma reação pública aos milagres de Jesus mais
significativa.
202
Nós, os vivos, os que O sinal do Filho do Homem O Filho do Homem há-de vir
ficarmos para a vinda do aparecerá no céu e, então, na glória do seu Pai, com os
Senhor, não precederemos os todas as tribos da Terra se la- seus anjos, e então retribuirá a
que faleceram. mentarão e verão o Filho do cada um conforme o seu
Pois o próprio Senhor descerá Homem vir sobre as nuvens procedimento. Em verdade
do Céu, ao sinal dado, à voz do céu, com poder e glória. vos digo: alguns dos que
do arcanjo e ao som da Ele enviará os seus anjos, estão aqui presentes não hão-
trombeta de Deus, e os com uma trombeta de experimentar a morte,
mortos em Cristo ressurgirão altissonante e eles reunirão os antes de terem visto chegar o
primeiro, depois nós, que seus eleitos desde os quatro Filho do Homem com o seu
estamos vivos ... seremos ventos, de um extremo ao Reino.
arrebatados juntamente com outro do céu.
eles sobre as nuvens, para
Irmos ao encontro do Senhor
nos ares.
O pequeno rebanho
Jesus tinha uma forma de pensamento tradicional em relação a Deus e a Israel: Deus tinha
escolhido todo o Israel e, um dia, salvaria o povo. Este aspeto da visão de Jesus é
frequentemente ignorado por causa da força e da preponderância do ensinamento que se dirige
às pessoas, individualmente. Uma das coisas mais surpreendentes no que diz respeito a Jesus é o
facto de, apesar da sua expectativa da chegada iminente do fim e apesar da sua reflexão
abrangente sobre o Reino futuro, ele ter deixado um corpo de ensinamentos riquíssimos que
acentua a relação entre o indivíduo e Deus, aqui e agora. A orientação para o futuro poderia tê-
lo levado a ser indiferente às pessoas individuais: os escatologistas pensavam frequentemente
em blocos de pessoas que seriam salvas ou destruídas no fim, sem se preocuparem muito com o
bem-estar espiritual dos indivíduos que constituíam cada bloco.
Jesus podia advertir e ameaçar cidades inteiras de uma só vez:
Ai de ti; Corazaim! Ai de ti; Betsaida! Porque, se os milagres realizados entre vós tivessem sido
jeitos em Tiro e em Sídon, estas há muito se teriam convertido, vestindo-se de saco e com cinza.
Mas eu digo-vos: No dia do juízo, haverá mais tolerância para Tiro e Sídon do que para vós.
(Mt 11, 20-22)
Trata-se de um julgamento tradicional a «preto e branco», típico de um escatologista. Mas não é
isto que domina a mensagem de Jesus e a sua visão da atitude de Deus em relação aos seres
humanos. Jesus não encarava Deus meramente como um juiz, à espera de condenar os
imperfeitos e pronto para aniquilar cidades inteiras, mas sim como um pai amoroso, que se
preocupava e procurava o bem-estar de cada pessoa.
Olhai as aves do céu: não semeiam, nem ceifam, nem recolhem em celeiros e, no entanto, o
vosso Pai celeste alimenta-as. Não valeis vós mais do que elas? (Mt 6, 26)
246
Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? E nem um deles cairá por terra sem o
consentimento do vosso Pai. Mas até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Por isso,
não temais, pois valeis mais do que muitos pássaros. (Mt 10, 29-.31)
Não temais, pequeno rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino. (Lc 12, .32)
Uma parte significativa do ensinamento de Jesus consiste na garantia de que Deus ama cada
pessoa individual, independentemente das suas imperfeições, e que deseja o regresso mesmo do
pior de todos. O amor de Deus pelos excluídos, mesmo que estes, em geral, não obedeçam à Sua
vontade, constitui o tema de algumas das maiores parábolas de Jesus. Examiná-las-emos mais
pormenorizadamente no próximo capítulo; aqui, mencionarei apenas duas delas: Deus é como
um pastor que vai à procura de uma ovelha perdida; Deus é como um bom pai que aceita com
alegria o regresso do seu filho pródigo.
Do ponto de vista humano, Jesus exortava as pessoas a ver Deus como um pai em quem se pode
confiar completamente, a aceitar o Seu amor e a retribuir-lhe a confiança. Se Deus cuida dos
lírios do campo e dos pássaros, muito mais cuidará dos Seus filhos.
Não vos preocupeis, dizendo: «Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?» Os
gentios, esses afadigam-se com tais coisas; porém, o vosso Pai celeste bem sabe que tendes
necessidade de tudo isso. Procura i primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos
será dado por acréscimo. (Mt 6, .31-.3.3)
Pedi, e ser-vos-á dado; procura i e encontrareis, batei e hão-de abrir-vos. Pois quem pede,
recebe; e quem procura, encontra; e ao que bate, hão-de abrir. Qual de vós, se o seufilho lhe
pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe, lhe dará uma serpente? Ora bem, se vós,
sendo maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está no Céu
dará coisas boas àqueles que lhas pedirem! (M t 7, 7-11)
Muitos dos ensinamentos de Jesus - a sua esperança da vinda de uma nova era; a sua confiança
de que Deus cuidará e salvará os Seus filhos; o seu apelo para que as pessoas confiem em Deus
e para que lhe
247
obedeçam - são resumidos na parte mais repetida do seu ensinamento: a oração do Senhor. Vou
citá-la em ambas as versões existentes:
As pequenas variações significam que não podemos ter a certeza absoluta no que diz respeito ao
texto, mas podemos presumir que estamos diante de uma oração que Jesus utilizava e ensinou
aos seus discípulos. Trata-se de uma oração que pode ser rezada por qualquer um a qualquer
momento. Ela não menciona as doze tribos de Israel, nem descreve os gentios como «cães»,
nem exalta Jesus e os seus discípulos. O Jesus desta oração é aquele que foi e é admirado
universalmente. No entanto, se o queremos compreender como uma figura histórica, temos de
ver todas as suas facetas. Se Jesus se tivesse limitado a inventar estas palavras, não teria feito
inimigos; mas ele tinha inimigos. Por enquanto, registamos que, nesta última parte, vimos uma
das facetas de Jesus que lhe mereceu o adjetivo de «grande», tanto por parte de não-crentes,
como por parte dos crentes.
248
Tradições positivas
São muitas as passagens em que Jesus é descrito como alguém que corroborava vários aspectos
da Lei. Quando lhe perguntaram qual era o maior mandamento, ele respondeu:
«Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua
mente.» Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: «Amarás o teu
próximo como a ti mesmo.» Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas. (Mt
22, 37-40)
O mandamento do amor a Deus é uma citação do Deuteronómio (6,4 e segs.), uma passagem
que todos os judeus devotos repetiam duas vezes por dia. O mandamento do amor ao próximo é
citado do Levítico J 9, 18. Muitos judeus do tempo de Jesus consideravam que estes dois
mandamentos resumiam as duas «tábuas» da Lei judaica: os mandamentos que regulavam as
relações com Deus (encabeçado pelo mandamento do «amor a Deus») e os mandamentos que
regulavam as relações com outros seres humanos (resumidos no mandamento do «amor ao
próximo). A resposta de Jesus não se limita a ser correta do ponto de vista acadêmico, ele cita
estas leis, aprovando-as. Numa outra passagem, recomenda aos seus seguidores: «o que
quiserdes que as pessoas vos façam, fazei-o também a elas», caracterizando esta declaração
como «a Lei e os profetas» (Mt 7, 12). Isto constitui uma
280
forma epigramática de dizer «amarás o teu próximo como a ti mesmo». O epigrama é muito
parecido com um outro, conhecido dos mestres judeus, que eles também consideravam um
resumo da Lei.
Além destes indícios de uma aprovação incondicional da Lei e dos seus mandamentos
fundamentais, existem outras passagens que demonstram concordância com os mesmos. Já nos
referimos ao facto de Jesus, depois da cura de um leproso, ter dito ao homem curado para ele se
mostrar aos sacerdotes e para apresentar um sacrifício como Moisés tinha mandado (Me 1, 40-
45, anteriormente, pp.I68 e segs.). Jesus disse aos seus seguidores que, quando fossem ao
Templo, deviam ter a certeza de estarem reconciliados com as pessoas que podiam ter ofendido,
antes de apresentarem o sacrifício (M5 5, '23 e segs.) - mais uma vez, um conselho habitual do
judaísmo, o que reflete a adesão ao sistema sacrificial. Jesus estava manifestamente convencido
de que Isaías e os outros profetas eram realmente profetas de Deus, visto que os citava com
aprovação (por exemplo, Mt 11, '2-6). O facto indiscutível de Jesus pensar que as escrituras dos
judeus continham a palavra que Deus tinha revelado e que Moisés tinha emitido mandamentos
que deviam ser seguidos, deveria levar-nos a hesitar muito na aceitação da opinião comum dos
exegetas do Novo Testamento de que ele se opunha, realmente, à Lei judaica. Isto é tanto mais
verdade, obviamente, quanto as passagens em que existem discórdias sobre a Lei não revelam
uma oposição direta à mesma.
Outras questões legais e possíveis temas de conflito
Acabei de propor que Jesus concordava e aprovava a Escritura judaica na sua totalidade (<<a
Lei e os profetas»). As passagens nas quais algumas pessoas encontram uma oposição à Lei não
a revelam de facto. Mesmo que ignorássemos a retrojecção e as dúvidas quanto à autenticidade,
só encontraríamos uma passagem em que Jesus permite lima transgressão: Me 7, 15-18
(«declarava todos os alimentos puros»; «nada há fora do homem que, entrando nele, o possa
tornar impuro»). A reconsideração dos Atos dos Apóstolos, das cartas de Paulo e dos
281
outros Evangelhos sinópticos mostra que Jesus não disse, de facto, aos seus discípulos que eles
não necessitavam de observar as normas da Lei relativas aos alimentos.
Se voltarmos à nossa lista de níveis possíveis de discórdia, apresentada anteriormente (pp. 260 e
segs.), veremos que a posição de Jesus em relação à Lei não se insere na categoria (a) ou (b).
Quer isto dizer que Jesus não pensava que a Lei escrita estivesse errada e devesse ser revoga da,
nem dizia aos seus seguidores que deveriam desobedecer a alguns aspetos da mesma. É neste
contexto geral que temos de considerar o conflito na Galileia. Jesus não estava envolvido num
combate mortal com os defensores da Lei por uma questão de princípio. Todos, incluindo Jesus
e os seus seguidores, estavam convencidos de que Deus tinha dado a Lei a Moisés e de que
também tinha inspirado as outras Escrituras. Se Jesus discordou de outros intérpretes em
questões de pormenor, as disputas não foram mais importantes do que as disputas entre os
partidos judaicos e até dentro de cada partido.
Existem, contudo, dois pontos em que Jesus afirmou a sua própria autoridade de formas que
eram ou podiam ser questionáveis. Nestes dois tópicos, trata-se, provavelmente, mais de
questões semilegais do que de questões legais. O primeiro diz respeito à ordem que Jesus dá
para que «deixem que os mortos enterrem os mortos». O segundo consiste no seu chamamento
de «pecadores».
Um homem que queria ser discípulo disse que seguiria Jesus, mas quis enterrar primeiro o seu
pai morto. Jesus respondeu: «Segue-me e deixa os mortos sepultar os seus mortos» (M t 8, 21-
22). Há muitos leitores que consideram esta resposta um aforismo: deixa os mortos (no sentido
espiritual) enterrar os mortos (no sentido espiritual). Mas um aforismo deste tipo é tão ofensivo
que é improvável. A ideia de não enterrar os mortos ainda era mais repugnante para a moral
antiga do que para a nossa. A realidade era tão ofensiva que uma metáfora que se baseasse nela
não seria apelativa. Os judeus partilhavam a aversão dos gregos a deixar o corpo por sepultar.
Segundo os rabis, mesmo
282
um sacerdote - aos quais era normalmente proibido enterrar os mortos ou entrar, sequer, num
cemitério, para não contraírem a impureza do cadáver, ficando incapacitados de servir no
Templo - deveria enterrar um cadáver se não existisse ninguém para o fazer. A ordem de
«deixar os mortos sepultar os mortos» não só era contrária à sensibilidade humana normal,
como também era contrária a qualquer interpretação razoável da Lei judaica, que manda honrar
pai e mãe. O carácter ofensivo da afirmação torna improvável que «enterrar os mortos» seja
uma metáfora. O pai do homem candidato a seguidor tinha morrido, provavelmente, e Jesus
disse-lhe: «Deixa os mortos (no sentido espiritual) sepultar os mortos (no sentido físico).»
Nesse caso, Jesus pensava que segui-lo deveria ser mais importante do que qualquer outra coisa.
Estamos perante um caso que apresenta alguma analogia com o do homem rico que desejava ser
«perfeito» e a quem foi dito que deveria vender tudo para seguir Jesus. Jesus não colocou este
tipo de exigência a todos, mas a alguns exigiu uma abnegação total. A diferença no caso do
homem a quem o pai tinha morrido reside no facto de a abnegação implicar uma transgressão do
mandamento de honrar os próprios pais. Jesus ordena aqui uma exceção à regra, que, em termos
legais, deve ser vista, provavelmente, como um apelo a uma circunstância atenuante: a
necessidade de o seguir era tão grande que devia ser mais importante do que as obrigações
normais da piedade.
No entanto, isto parece ter sido um incidente único que não representa a prática geral de Jesus.
Se os fariseus ou outros devotos da Lei tivessem ouvido esta afirmação de Jesus, teriam ficado
escandalizados. Mas parece que não aconteceu nada. A passagem não nos diz que Jesus se
opunha ao mandamento de honrar pai e mãe, mas que tinha uma atitude em relação à sua
própria missão que poderia levar a ignorar a Lei, se fosse necessário. O seu chamamento era
mais importante do que sepultar os mortos. É possível que algo desta atitude tenha sido
transmitido ao público e que muitos tenham ficado profundamente ofendidos. Apesar de este
incidente particular não ter tido quaisquer consequências, a atitude de Jesus teve-as, como
vamos ver agora.
A convicção de Jesus de que a sua missão tinha prioridade sobre qualquer outra coisa exprime-
se mais claramente na passagem sobre os «pecadores». Jesus chamou um cobrador de impostos
(Levi, em Marcos e Lucas, Mateus, em Mateus), para que este o seguisse, e o homem aceitou o
chamamento. Jesus foi acusado, subsequentemente,
283
de comer com cobradores de impostos e com pecadores (Mc 2, 14-17 & par.). Isto parece ter
sido uma verdadeira ofensa: ele fez de facto algo que ofendeu realmente as pessoas. As
passagens mais fidedignas sobre os pecadores são aquelas em que Jesus discute sobre João Bap-
tista e se coloca a si próprio em contraste com ele. João «veio até vós, ensinando-vos o caminho
da justiça» (Mt 21, 32) e era um asceta «que não comia, nem bebia» (Mt 11, 18). Veio Jesus
(<<o Filho do Homem», designação utilizada aqui pelo próprio Jesus), que «come e bebe»; mas
também foi rejeitado: «Aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos
e de pecadores!» (Mt 11, 19.)
Porque é que a associação de Jesus com cobradores de impostos e pecadores constituía uma
razão para o rejeitar? O termo «pecadores», na Bíblia Hebraica, quando utilizado em termos
gerais, refere-se a uma classe de pessoas, não àqueles que transgridem ocasionalmente a Lei,
mas àqueles que estão à margem da Lei de alguma maneira fundamental. Para podermos
compreender o significado do termo «pecadores», deveríamos ter em conta a descrição dos
«ímpios» nos Salmos. Eles são colocados em contraste com os «pobres». Os ímpios atormentam
os pobres e dizem nos seus corações que Deus não existe ou que, se existe, não os chamará à
responsabilidade (SI 10, 4.8-13). As traduções inglesas modernas dos Salmos Hebraicos
utilizam, de uma forma bastante correta, a palavra «ímpios», nesta passagem, o que constitui a
melhor tradução para a palavra hebraica resha'im. No entanto, os judeus que traduziram a Bíblia
Hebraica para grego utilizaram a palavra «pecadores» hamartoloi" e este tornou-se o termo que
os judeus que falavam grego utilizavam para designar pessoas que estavam fundamentalmente
fora da aliança com Deus porque não observavam a Sua Lei. A palavra «pecadores» no grego
dos judeus podia referir-se a gentios (que, por definição, não observavam a Lei judaica) ou a
judeus verdadeiramente ímpios. A força do termo pode ser observada na censura que Paulo faz a
Pedro: «Nós, que, por nascimento, somos judeus, e não pecadores gentios ... » (GI 2, 15); isto é,
«não somos gentios, que são completamente ímpios porque vivem totalmente fora da Lei». Nos
Evangelhos, a palavra grega hamartoloi refere-se a judeus que transgridem sistemática ou
flagrantemente a Lei e que, por isso,
284
eram como gentios, só que ainda mais culpados. Tal como Elisha ben Avuyah, eles conheciam
Deus, mas optaram por lhe desobedecer. Referir-me-ei a eles como os «ímpios», visto que esta é
quase de certeza a palavra utilizada por Jesus e pelos seus críticos. (Eles falavam aramaico e não
hebraico, mas a palavra é a mesma.)
A importância do facto de Jesus ter sido um amigo dos ímpios estava no seguinte: ele contava
entre os seus seguidores com pessoas que eram geralmente consideradas como alguém que vivia
fora da Lei de uma maneira notória.
A expressão «cobradores de impostos e pessoas ímpias» aparece frequentemente nos
Evangelhos sem qualquer explicação, não sendo imediatamente claro por que razão estes dois
grupos são referidos em conjunto. A explicação provável é que os cobradores de impostos eram
considerados desonestos. Nesse caso, eram ímpios, visto que a sua desonestidade era
sistemática. Uma pessoa que utilizasse o seu cargo para encher o seu próprio bolso, estava a
fazer quase exatamente aquilo que os ímpios fazem nos Salmos: oprimir as outras pessoas e
viver como se Deus não existisse ou como se não concedesse justiça. Esta é a descrição que Filo
faz do homem que, cerca de 40 d. C., tinha a função de cobrador de impostos na província da
Judeia: «Capito é o cobrador de impostos para a Judeia e despreza a população. Quando chegou
lá, era um homem pobre, mas, graças à sua rapacidade e ao peculato, acumulou muita riqueza
sob várias formas (Embaixada 199). A palavra traduzida como «imposto», significa «tributo»,
no sentido mais literal; Capito era responsável pelo envio do tributo da Judeia para Roma ou
para a base romana na Síria. Cobrava mais do que tinha de enviar e ficou rico.
Na obra de Josefo existe uma referência mais favorável a uma outra espécie de cobradores de
impostos: o funcionário alfandegário. Os judeus da Cesareia estavam incomodados com
construções que bloqueavam ou dificultavam o seu acesso a uma sinagoga. João, o funcionário
alfandegário, subornou o procurador romano, Florus, para que este decidisse a disputa a favor
dos judeus. O procurador aceitou o dinheiro e, depois, saiu da cidade, deixando às duas partes a
resolução da questão (Guerra 2, 285-288). Este funcionário alfandegário era judeu e atuou de
acordo com os judeus notáveis da cidade. Ao contrário deles, ele era suficientemente rico para
dispor de uma grande quantidade de dinheiro para o suborno: oito talentos de prata. Um talento
pesava cerca de 35 kg, embora as estimativas dos especialistas
285
variem muito. Se este número for mais ou menos correto, podemos calcular o valor de oito
talentos de prata em moedas contemporâneas. A prata está a ser negociada a cerca de 4,30
dólares americanos por onça; isto significa que os oito talentos valem, aproximadamente, 41280
dólares americanos. Nesta história, o vilão é Florus. Se um político honesto é alguém que resiste
ao suborno, então Florus era desonesto e os resultados foram catastróficos. O conflito por causa
do acesso à sinagoga na Cesareia foi o primeiro numa série de acontecimentos que levaram à
grande revolta dos judeus contra Roma.
Mas o nosso interesse centra-se em João, o funcionário alfandegário. Ele era o único judeu na
Cesareia capaz de oferecer um grande suborno. O funcionário alfandegário que controlava o
porto de Cesareia (pressupondo que este era o cargo de João) estava numa posição muito boa.
As exportações que passavam pelo porto eram muito mais valiosas do que as importações, visto
que o porto de Cesareia se encontrava numa das rotas possíveis através da qual os produtos de
luxo do Oriente chegavam à Ásia Menor, à Grécia e à Itália. As taxas eram cobradas,
provavelmente, tanto sobre as exportações como sobre as importações e, portanto, a maior parte
dos custos suportada pelos consumidores em outros países. João podia cobrar demasiado, ou
tirar para si o melhor, sem causar prejuízo aos habitantes da Cesareia.
Os cobradores de impostos nos Evangelhos, tal como João, eram funcionários alfandegários e
não cobradores de tributos. As pequenas cidades à volta do mar da Galileia eram menos
prósperas do que Cesarei a e as mercadorias exportadas, bem como as importadas, eram mais
básicas do que os bens de luxo que passavam pelo porto de Cesareia. A Galileia produzia
muitos alimentos, mas tinha de importar muitos bens manufaturados. Os cobradores de
portagens na Galileia cobravam taxas sobre coisas que eram utilizadas pelos camponeses
comuns da região. É provável que os cobradores de portagens se tornassem relativamente ricos -
não tão ricos como um cobrador de tributo ou um funcionário alfandegário numa cidade tão
grande como Cesareia, mas mais ricos do que a maioria dos agricultores e pescadores da Gali-
leia. Os habitantes da Galileia consideravam, provavelmente, os funcionários alfandegários
«ímpios»: regra geral, eles eram desonestos.
Muitos investigadores, incluindo eu próprio, pensavam que os cobradores de impostos na
Galileia eram considerados colaboradores, habitantes que atuavam em nome de um poder
imperial. Cobravam impostos ao serviço de Antipas, mas ele pagava tributo a Roma; por
286
conseguinte, ajudavam Roma, indiretamente. Já não estou muito seguro desta opinião. Basta
dizer que eles eram suspeitos de cobrar de mais e, por conseguinte, de pilhar a população. Por
isso, eles viviam como se Deus não existisse ou como se não reagisse; eram «ímpios».
O único outro grupo de pessoas que os Evangelhos mencionam como pertencente aos ímpios
era o das prostitutas. Segundo Mt 21, 31 e segs., os cobradores de impostos e as prostitutas
entrarão no Reino de Deus antes de «vós» - ao que parece, os sumos sacerdotes e os anciãos
(ver 21,23) - porque acreditaram em João Baptista e arrependeram-se. Nunca se diz que Jesus
tinha uma ligação íntima com prostitutas. Lucas conta a história de uma mulher que era uma
«pecadora» e que ungiu os pés de Jesus, mas isto aconteceu na presença de um fariseu, pelo que
está fora de questão um comportamento impróprio (Lc 7, 36-50). Se queremos colocar a questão
da relação entre Jesus e os ímpios, temos de nos limitar aos cobradores de impostos.
Já registámos a crítica generalizada ao facto de Jesus ter sido amigo de cobradores de impostos
e de ímpios (Mt 11, 19). Existem duas histórias concretas das quais já referimos uma: Jesus
chamou um cobrador de impostos a segui-lo e, depois, jantou com cobradores de impostos. «Os
escribas dos fariseus» perguntaram-lhe porque o tinha feito e ele respondeu: «Não são os que
têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos» (Mc 2, 14-17). Isto faz supor que ele
queria curá-los, isto é, levá-los a deixarem de ser desonestos. A outra história também se centra
numa renovação moral bem sucedida. Quando Jesus atravessava Jericó, o chefe dos cobradores
de impostos, Zaqueu, subiu a uma árvore para o ver. Jesus levantou os olhos e disse a Zaqueu
que ficaria em casa dele. Isto levou a multidão a murmurar que Jesus ia ficar com alguém que
era ímpio. Zaqueu prontificou-se imediatamente a dar metade dos seus bens aos pobres e a
restituir quatro vezes mais a todos aqueles que tinha defraudado. Jesus comentou que a salvação
tinha chegado à casa de Zaqueu e acrescentou: «O Filho do Homem veio procurar e salvar o que
estava perdido» (Lc 19, 1-10).
Zaqueu ofereceu muito mais do que o exigido por Lei; de acordo com esta, uma pessoa que
defraudasse outra devia restituir-lhe o que tinha roubado, acrescentar 20 por cento como multa
e, depois, sacrificar um carneiro como sacrifício de reparação (Lv 6, 1-7). Uma pessoa que
fizesse isto e que não voltasse à sua vida anterior, deixava de ser ímpia. Se Jesus tivesse
conseguido persuadir outros funcionários alfandegários a fazer aquilo que Zaqueu fez, teria sido
um herói local.
287
Mas parece que foi criticado. Como havemos de entender isto? Tendo em conta estas e outras
questões, que explanarei em seguida, sugeri num dos trabalhos anteriores que, apesar da história
da conversão maravilhosa de Zaqueu, Jesus não era um pregador de arrependimento: ele não
era, em primeiro lugar, um reformador e a sua associação a cobradores de impostos não tinha o
objetivo de os persuadir a fazer aquilo que Zaqueu fez.
Tal como eu tinha previsto, esta sugestão foi mal recebida. Gostaria de voltar a tentar explicar o
meu ponto de vista. A história de Levi e dos outros cobradores de impostos (Mc 2, 14-17) não
afirma que eles se tivessem arrependido, restituído o dinheiro, acrescentado 20 por cento e
apresentado um sacrifício no Templo. Além disso, as palavras «arrepender-se» e
«arrependimento» são muito raras em Mateus e em Marcos. Se o objetivo de Jesus fosse levar
as pessoas desonestas ao arrependimento, poderíamos esperar que a palavra «arrepender-se»
fosse uma palavra proeminente no seu ensinamento. Gostaria de recapitular brevemente a
ocorrência destas palavras (tanto do verbo, como do substantivo) nos Evangelhos sinópticos. O
sumário que Marcos apresenta da pregação de Jesus inclui um apelo ao arrependimento (Mc 1,
15), mas não dá nenhum exemplo específico. Além disso, Marcos atribui só uma mensagem de
arrependimento a João Baptista e aos doze discípulos (1, 4; 6, 12). Mateus apresenta o mesmo
resumo da mensagem de Jesus (Mt 4, 17) e uma descrição alargada da mensagem de João que
sublinha o arrependimento (3, 2.8.11). Em Mt 11,20 e segs., Jesus critica Corozaim, Betsaida e
Cafarnaum pelo facto de não se arrependerem. Mt 12,41 louva Nínive por se ter arrependido
depois de ter ouvido a pregação de Jonas. Mateus 21, 32 (como já vimos) critica os chefes dos
sacerdotes e os anciãos por não se arrependerem com a pregação de João. Lucas apresenta
paralelos com os versículos sobre João Baptista (Lc 3, 3.8), as cidades da Galileia (10, 13) e
Nínive (11,32). Enquanto em Mateus e Marcos, quando Jesus defende a sua atitude de jantar
com cobradores de impostos, diz que veio para chamar os pecadores, em Lucas, diz que veio
para chamar ao arrependimento (Lc 5, 32). Segundo Lucas, Jesus concluiu a parábola sobre a
ovelha perdida dizendo: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte, do
que por noventa e nove justos que não necessitam
288
de conversão», uma conclusão que não se encontra na versão de Mateus (Lc 15, 7; Mt 18, 14).
A parábola sobre a dracma perdida, em Lucas, tem um fim semelhante (Lc 15, 10). Há outras
afirmações em Lucas que recomendam o arrependimento (16, 30 e 17, 3 e segs.) e a história de
Zaqueu, que acabámos de debater, versa sobre o arrependimento.
Esta recapitulação demonstra que o arrependimento tem uma importância em Lucas que não
possui em Mateus e em Marcos. Note-se igualmente que o arrependimento tem uma
proeminência nos Atos dos Apóstolos, escritos pelo autor de Lucas, que não possui no resto do
Novo Testamento, com exceção do Apocalipse. As principais palavras gregas para «arrepender-
se» e «arrependimento» aparecem 62 vezes no Novo Testamento, 14 das quais em Lucas, 11
nos Atos dos Apóstolos e 12 no Apocalipse. No que diz respeito aos outros Evangelhos, os
números ascendem a 10 em Mateus, 3 em Marcos e O em João. Se nos perguntarmos sobre a
utilização dos termos «arrepender-se/arrependimento» no ensinamento atribuído a Jesus,
excluindo os debates sobre João Baptista e outros, os números descem: 6 em Mateus, 1 em
Marcos (o resumo do próprio Marcos) e 11 em Lucas. Se, em lugar do número de vezes que as
palavras aparecem, contarmos o número de passagens que as incluem, chegamos ao seguinte
resultado:
Mateus: João Baptista 1; Jesus 4, Judas 1
Marcos: João Baptista 1, Jesus 1, os discípulos
Lucas: João Baptista 1, Jesus 8
Uma das quatro passagens em Mateus na qual a palavra «arrepender-se» é atribuída a Jesus,
refere-se, de facto, a João Baptista: os sumos sacerdotes e os anciãos não se arrependeram
depois de terem ouvido a pregação de João (Mt 21, 22). Isto reduz ainda mais o número de
passagens que provam que Jesus chamou as pessoas ao arrependimento.
Detenhamo-nos agora no substantivo utilizado na mensagem central de Jesus - o «Reino» - em
ordem ao estabelecimento de uma comparação. A palavra aparece 55 vezes em Mateus, 20
vezes em Marcos, 46 em Lucas, 5 vezes em João, 162 vezes em todo o Novo Testamento. Em
termos estatísticos, «Reino» é a palavra mais importante em todos os três sinópticos, ao passo
que as palavras «arrepender-se/arrependimento» são significativas em Lucas, nos Atos dos
Apóstolos
289
e no Apocalipse. A explicação mais razoável é que o autor de Lucas/ Atos dos Apóstolos
gostava especialmente de sublinhar o arrependimento e que este não era um dos temas centrais
da mensagem do próprio Jesus.
Compreendo que esta afirmação parece algo estranha ao leitor, visto que todos, sejam religiosos
ou não, consideram o arrependimento um elemento central e fundamental da religião. E isto é
verdade. O arrependimento constituía um tema central no judaísmo e, mais tarde, no início do
cristianismo. Continuou a ser uma característica dominante de ambas as religiões. Por isso, é
surpreendente que o arrependimento desempenhe um papel tão reduzido no ensinamento de
Jesus, segundo Mateus e Marcos. O seu papel reduzido nestes dois Evangelhos torna-se ainda
mais notável se repararmos que ambos utilizam a palavra nos seus resumos do ensinamento de
Jesus (Mc 1, 15; Mt 4, 15). Eles não tinham qualquer interesse em desvalorizar o tema; contudo,
este tema é pouco significativo. Qual é a explicação para tal?
Não é que o arrependimento desagradasse a Jesus e que ele tivesse pensado que as pessoas
nunca deviam sentir remorsos e rezar pelo perdão. Ele era favorável a tudo isto. Pensava que as
prostitutas que se arrependeram quando ouviram a pregação de João Baptista, assim como os
habitantes de Nínive que se arrependeram depois de terem ouvido a pregação de Jonas, fizeram
bem (Mt 21, 31 e segs.; 12,41) e que as cidades da Galileia se deviam ter arrependido (Mt 11,
20 e segs.). A parábola sobre o servo que não perdoou (Mt 18, 23-35) debate os apelos à
clemência e ao perdão de forma a não deixar qualquer dúvida de que aquele que fala lhes atribui
grande valor. Não é isto que está em causa. Existem duas questões. A primeira é saber o que
desagradou aos críticos de Jesus na sua ligação com as pessoas ímpias. Se as outras pessoas
ímpias tivessem respondido como fez Zaqueu, que se arrependeu e distribuiu generosamente a
sua riqueza, qual poderia ser a acusação? Nenhuma, penso eu.
Isto leva à segunda questão: em que consistia a missão do próprio Jesus? Que objetivo tinha ele
estabelecido para si próprio? Será que o seu objetivo de vida era persuadir as pessoas más a
começarem a ser honestas ou persuadir os ricos a partilharem o seu dinheiro? Para responder a
estas questões temos de perguntar o que os Evangelhos dizem exatamente sobre a associação de
Jesus com os ímpios. Esta investigação revela que apenas Lucas apresenta histórias concretas
em que Jesus chama pessoas ao arrependimento e que só Lucas era de
290
opinião que Jesus tinha persuadido os ímpios a arrepender-se e a devolver os seus lucros obtidos
desonestamente. Isto é, o Jesus de Lucas, que levou os cobradores de impostos ao
arrependimento e à restituição, não teria irritado ninguém, pelo menos, não neste ponto. Mas,
visto que Jesus encontrou oposição por causa da sua atitude para com os pecadores, inclino-me
a pensar que Jesus não deve ser definido como um pregador do arrependimento. Jesus era
favorável ao arrependimento, mas, se o classificarmos como um tipo e descrevermos como ele
encarava a sua missão, temos de concluir que ele não era um reformador orientado para o
arrependimento.
No Novo Testamento, este título pertence claramente a João Batista. Jesus tinha consciência
daquilo que o distinguia de João Batista e comentou-o várias vezes. As prostitutas
arrependeram-se com a pregação de João - não com a de Jesus. João era um asceta; Jesus comia
e bebia. Além disso, Jesus era amigo de cobradores de impostos e de pecadores - não daqueles
que já tinham sido cobradores de impostos e pecadores, como Zaqueu, depois do seu encontro
com Jesus - mas daqueles que ainda eram cobradores de impostos e pecadores. Penso que Jesus
era bastante mais radical do que João. Jesus pensava que o apelo de João ao arrependimento
devia ter sido eficaz, mas, de facto, só o foi em parte. De qualquer modo, o seu estilo era
diferente; ele não repetiu as táticas de João Baptista. Pelo contrário, comia e bebia com os
ímpios e dizia-lhes que Deus os amava especialmente e que o Reino estava próximo. Será que
esperava que eles mudassem o seu estilo de vida? Provavelmente, sim. Mas a sua mensagem
não era «mudem agora ou serão destruídos». Esta era a mensagem de João. A mensagem de
Jesus era: «Deus ama-vos.»
A diferença entre a mensagem de Jesus e de João torna-se mais explícita na parábola da Ovelha
Perdida. Se um homem tivesse cem ovelhas e uma delas se perdesse, o homem deixaria as
noventa e nove entregues a si próprias e iria procurar a ovelha perdida (M t 18, 12-14; Lc 15, 3-
7). Segundo a versão de Mateus, a moral da história é a seguinte: «A vontade do meu Pai que
está no Céu não é que se perca um só destes pequeninos.» Lucas apresenta a declaração que já
registámos: «Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte do que por noventa
e nove justos que não necessitam de conversão.» A ênfase da conclusão de Mateus está de
acordo com a da própria parábola: o pastor vai à procura da ovelha perdida. A ênfase de Lucas é
diferente: a ovelha perdida tem de se decidir a regressar. Isto colide
291
com a orientação geral da parábola e é na própria parábola que encontramos a perspetiva do
próprio Jesus. O pastor é Deus: assumindo um risco bastante elevado para o rebanho (as ovelhas
não cuidam muito bem de si próprias), Deus vai à procura de uma única ovelha perdida. É certo
que Deus deseja que os pecadores voltem, mas a ênfase recai totalmente na procura de Deus,
não no arrependimento do pecador. Esta é uma parábola de boa nova sobre Deus, não uma
ilustração do valor do arrependimento.
Esta boa nova sobre Deus constitui uma mensagem potencialmente muito mais poderosa do que
uma exortação habitual a abandonar a impiedade e a começar uma vida nova. Num mundo que
acreditava em Deus e no julgamento existiam, apesar disso, algumas pessoas que viviam como
se Deus não existisse. Elas deviam sentir alguma ansiedade por causa disso nas horas sombrias
da noite. A mensagem de que Deus as amava, apesar de tudo, podia transformar a sua vida. No
entanto, tenho de me apressar a acrescentar que não sei se a mensagem de Jesus foi eficaz na
mudança efetiva de perspetiva e, por conseguinte, de vida dos ímpios da Galileia. Tal como as
mulheres que seguiram Jesus foi Jerusalém, o viram morrer e regressaram para o ungir, os
ímpios dos Evangelhos desapareceram. Nem sequer sabemos o que aconteceu a Levi, o
funcionário alfandegário que Jesus chamou. É difícil encontrar espaço para pessoas deste tipo na
igreja de Jerusalém, liderada por Tiago, o Justo (como a tradição chamava ao irmão de Jesus,
que era muito submisso à Lei). Talvez elas tenham acabado a sua vida na Galileia, esperando
que o homem que tinha feito com que se sentissem tão especiais voltasse.
Este olhar prospetivo para a situação da Igreja no seu início é muito útil para compreender
Jesus. Se ele tivesse sido um reformador da sociedade, teria tido de enfrentar o problema da
integração dos ímpios num grupo social mais justo. Nesse caso, deveriam ter existido regras
explícitas sobre os parâmetros de comportamento, bem como algum tipo de política sobre as
fontes de receitas. Não existe nada disto. Jesus não teve de lidar com problemas deste tipo, uma
vez que pensava que Deus estava prestes a mudar as condições no mundo. Ele era uma pessoa
de absolutos. Exigiu a algumas pessoas, aqueles que o seguiam de facto, que abandonassem
tudo. A outros prometeu o Reino, sem estabelecer muitas cláusulas e condições. O Reino estava
próximo; Deus pretendia incluir mesmo os ímpios. Jesus não queria que os ímpios
permanecessem ímpios até lá,
292
mas não estabeleceu um programa que permitisse a cobradores de impostos e a prostitutas
ganhar a vida de maneira menos dúbia.
Quanto à falta de planos específicos para a integração dos ímpios numa sociedade mais justa, é
de registar que não existe nenhum caso no qual Jesus exija aos ímpios que eles façam aquilo que
a Lei estipula, a fim de se tornarem justos. Já vimos estes requisitos: aqueles que tinham tirado
proveito da impiedade deviam restituir aquilo que tinham roubado, acrescentando um quinto do
valor como multa, levar um carneiro ao Templo como sacrifício de reparação, confessar o peca-
do com uma mão colocada na cabeça do carneiro, sacrificar o carneiro e alcançar, assim, o
perdão (p. ex., Lv 6, 1-7). Na história de Lucas sobre Zaqueu, o cobrador de impostos prometeu
restituir quatro vezes o valor daquilo de que se tinha apropriado injustamente, o que é mais do
que a Lei exigia, mas continua a não existir qualquer alusão a um sacrifício e a uma obtenção de
perdão no Templo.
Existem duas explicações possíveis para a ausência deste tema. Uma é que Jesus, aqueles que o
ouviam, os discípulos e todos os primeiros cristãos pressupunham, pura e simplesmente, o
sistema sacrificial. As pessoas ímpias que decidiram mudar as suas vidas, tal como Zaqueu,
sabiam que a Lei exigia um sacrifício, portanto, na visita seguinte a Jerusalém, apresentavam
um sacrifício de reparação. A segunda possibilidade é que Jesus tenha pensado e dito que os ím-
pios que o seguiam, embora não se tivessem «arrependido» no sentido técnico do termo e
embora não se tivessem tornado justos da forma exigida por lei, entrariam no Reino, aliás,
«antes» daqueles que eram justos aos olhos da Lei. Caso tenha sido esse o objetivo do
chamamento que Jesus fez a ímpios, ele teria constituído um perigo para a compreensão comum
e óbvia que os judeus tinham da Bíblia e da vontade de Deus. Considero esta segunda
possibilidade mais provável do que a primeira, visto que a atitude de Jesus para com os
pecadores foi criticada. Vemos aqui como Jesus era radical: muito mais radical do que alguém
que se limitasse a cometer pequenas infrações ao sábado e às normas relativas aos alimentos.
Ele não só era muito mais radical como também muito mais arrogante, de acordo com a opinião
comum. Jesus parece ter pensado que aqueles que o seguiam faziam parte dos eleitos de Deus,
apesar de não cumprirem aquilo que a própria Bíblia exigia. Lembremo-nos da conclusão de
uma das parábolas de Jesus: os servos do rei «saíram pelas ruas e reuniram todos aqueles que
encontraram, maus e bons; e a sala do
293
banquete encheu-se de convidados» (Mt 22, 10). Os servos não exigiram que todos os maus se
tornassem, primeiro, bons: trouxeram-nos de qualquer maneira.
Penso que esta é a explicação para o facto de a associação de Jesus com cobradores de impostos
ímpios ser ofensiva. Como a minha proposta não é aquilo de que a maioria dos leitores estará à
espera, vou repeti-la brevemente. Os Evangelhos afirmam que Jesus foi criticado por se associar
a cobradores de impostos, que eram considerados «ímpios» - pessoas que transgrediam
sistemática e habitualmente a Lei. A maioria dos intérpretes do Novo Testamento presume que a
história de Zaqueu, apresentada em Lucas, revela o objetivo de Jesus: ele queria que os
cobradores de impostos se arrependessem, restituíssem aquilo que tinham roubado,
acrescentassem um pagamento de 20 por cento como multa e abandonassem a sua prática
desonesta. Eu sugeri que isto não é correto. Primeiro, apenas Lucas apresenta Jesus como um
reformador. Segundo, ninguém teria discordado se Jesus tivesse convencido os cobradores de
impostos a abandonar o grupo dos ímpios: os outros teriam sido todos beneficiados com isso. Se
ele tivesse sido um reformador de cobradores de impostos desonestos bem sucedido não teria
sido alvo de crítica. Mas, de facto, ele era criticado por causa da sua associação com cobradores
de impostos. Isto é difícil de explicar e eu apresentei uma hipótese de explicação para a crítica
de que Jesus foi alvo: ele anunciou aos cobradores de impostos que Deus os amava e disse às
outras pessoas que os cobradores de impostos entrariam no Reino de Deus antes das pessoas
justas. Isto é, ele parece ter dito, de facto, que, se eles o aceitassem a ele e à sua mensagem,
Deus os incluiria no Reino - apesar de não se terem arrependido e emendado, tal como a Lei
exigia (restituição, 20 por cento de multa, sacrifício de reparação). Isto teria sido ofensivo sob
dois aspetos: Jesus não tentou fazer valer os mandamentos da Lei judaica que estipulam como
uma pessoa se transforma de ímpia em justa; Jesus considerava-se a si próprio como alguém que
tinha o direito de dizer quem entraria no Reino.
A reivindicação do significado da sua própria missão e autoridade constituiu, provavelmente, a
ofensa mais séria. Em rigor, a reivindicação de Jesus em relação a si próprio não era contra a
Lei. Ele não dizia às pessoas para não apresentarem sacrifícios; pelo contrário, há duas
passagens, referidas anteriormente, em que ele aprova os sacrifícios (o leproso Me 1,40-45; «vai
primeiro reconciliar-te com o teu irmão,
294
Mt 5, 23 e segs.). Embora não se opusesse à Lei, ele sugeria que o mais importante era aceitá-lo
e segui-lo. Isto poderia acabar por levar à ideia de que a Lei era desnecessária, mas parece que
Jesus não tirou, ele próprio, esta conclusão e que também não foi acusado de tal. O que
sobressai nas passagens sobre os pecadores é a convicção que Jesus tinha da importância da sua
missão.
Vemos aqui a mesma compreensão de si mesmo que é evidente nos milagres. Jesus estava
convencido de que Deus atuava direta e imediatamente através dele, não cumprindo os preceitos
acordados e sancionados biblicamente, dirigindo-se às ovelhas perdidas da casa de Israel apenas
através das palavras e dos atos de um homem - ele próprio. Esta é, pelo menos, a conclusão
mais óbvia a tirar das passagens sobre os ímpios. Esta visão de si próprio e da importância vital
da sua missão era ofensiva em termos gerais - não porque ele se tivesse oposto à obediência à
Lei, mas porque considerava a sua própria missão como algo decisivo. Se a coisa mais
importante que as pessoas podiam fazer era aceitá-lo, a importância de outras exigências era
reduzida, mesmo que Jesus não tenha dito que estas exigências não eram válidas.
295
Títulos
Sabemos, substancialmente, o que Jesus pensava sobre si mesmo. Agora, queremos saber se ele
atribuiu ou não um título a si mesmo. Os autores do Novo Testamento interessavam-se por
títulos e os cristãos modernos seguiram o seu exemplo. Existem poucos temas de pesquisa que
tenham dado origem a tantas publicações científicas. Todos nós pensamos que compreendemos
uma coisa melhor se conhecermos a palavra correta para a designar, mas, neste caso específico,
esta perspetiva é, provavelmente, incorreta. A demanda do título correto - a palavra que encerra
a compreensão que Jesus tinha de si mesmo, assim como a compreensão dos primeiros
discípulos - pressupõe que estes títulos tenham sido definidos claramente e que basta descobrir-
mos a definição de cada um deles. Se o título a quer dizer x e se Jesus utilizou a para si próprio,
sabemos que ele pensava ser x. Na minha opinião, o pressuposto de base de que os títulos
possuíam definições estipuladas é errado.
Comecemos com o título que foi aplicado mais frequentemente a Jesus desde os seus dias:
«Messias» ou «Cristo». É conveniente repetir aqui a origem destas palavras. A palavra
«Messias» constitui uma transliteração aproximada da palavra hebraica meshiah ou da palavra
aramaica mashiha, palavras que significam «ungido». Em grego, a palavra meshiah traduz-se
por christos, da qual provém a palavra «Cristo». Portanto, «Messias» e «Cristo» têm o mesmo
significado. A maior parte dos autores do Novo Testamento, que escreveram em grego,
utilizavam a palavra christos, mas, por vezes, escreveram messias, mostrando, assim,
conhecimento da palavra semita subjacente. Nas cartas de Paulo, a palavra christos já tinha
começado a ser utilizada como se não se tratasse de um título, mas de uma parte do nome de
Jesus:
299
«Jesus Cristo». O nosso interesse atual concentra-se no significado do título de «Messias» na
cultura de Jesus. Que significado tinha este título para os judeus que viviam na Palestina no
século I?
Na Bíblia Hebraica havia três grupos de pessoas que eram ungidas: os profetas, os sacerdotes e
os reis. A tradição cristã fixou-se cedo no terceiro destes grupos como indício para a identidade
de Jesus: ele era descendente do rei David e era o Messias da casa de David - descendente
carnal de David, escolhido por Deus (<<ungido» espiritualmente) para desempenhar uma tarefa
semelhante à de David. Os investigadores do Novo Testamento aceitaram a definição de «Mes-
sias» como referência a um Messias real, um segundo David. Esta definição levaria as pessoas
que a aceitam a pensar que Jesus pretendia reunir um exército e expulsar os inimigos de Israel.
Como ele não fez nada disso, os investigadores tiveram de especular sobre o motivo que levou
os seus discípulos a chamarem-lhe «Messias». Mas será que a definição do Messias davídico
como um rei guerreiro é correta? Vimos anteriormente que existem duas fontes judaicas
inquestionavelmente pré-cristãs que são relevantes para a compreensão do conceito de
«Messias», especialmente do conceito de «Messias davídico» (pp. 122 e segs.). Repetirei
brevemente o que está em causa. Nos Salmos de Salomão 17, um filho de David é descrito
como alguém que purifica Jerusalém dos gentios e dos judeus perversos. Ele monta um cavalo,
pelo que parece um líder militar. Contudo, não são as suas tropas que cumprem a tarefa, mas
sim o próprio Deus. Aqui temos um filho de David que age, em alguns aspetos, como David.
Contudo, a conceção mudou: não haverá qualquer combate real.
A segunda fonte que lança luz sobre o título de «Messias» consiste na biblioteca encontrada
perto das margens do mar Morto. Em alguns destes documentos existem dois Messias: um que é
filho de David e outro que é filho de Aarão, o primeiro sumo sacerdote. O segundo, o Messias
sacerdotal, lidera. O outro Messias não faz nada. Haverá uma grande guerra (de acordo com um
dos Rolos), mas os Messias não participam nela.
300
Não podemos ler estes textos e, depois, afirmar que sabemos o que o título de «Messias»
significa e, por conseguinte, o que os primeiros cristãos tinham em mente quando chamavam
«Messias» ou «Cristo» a Jesus. Mesmo a expressão «filho de David» permanece um pouco
vaga. Talvez ela aponte mais claramente para um líder militar e político do que o título de
«Messias», mas os Rolos do Mar Morto mostram que ela não exige esta definição. Tudo o que
podemos saber realmente, quando vemos a palavra «Messias», é que a pessoa à qual este título
era aplicado era considerada como o «ungido» de Deus, ungido para alguma tarefa especial.
Os autores dos Evangelhos e outros cristãos, tanto antes como depois deles, pensavam que Jesus
era o Messias - isto é, que ele era uma espécie de Messias. No entanto, as passagens nos
Evangelhos sinópticos tornam duvidoso que Jesus aplicasse este termo a si próprio. Em
Cesareia de Filipe, em resposta à pergunta de Jesus: «Quem dizem os homens que Eu sou», os
discípulos responderam: «João Baptista, outros, Elias, e outros, que és um dos profetas.» Jesus
insistiu: «E vós, quem dizeis que Eu sou?»: e Pedro respondeu: «Tu és o Messias» (em grego,
christos). Jesus ordenou-lhes «que não dissessem a ninguém» (Mc 8, 27-.'30), possivelmente,
para evitar problemas ou porque não concordava completamente com a correção do título.
Depois, continuou a falar de si próprio como o Filho do Homem (8, .'31).
Quando Jesus entrou em Jerusalém para a sua última festa da Páscoa, montando um jumento,
algumas pessoas gritaram: «Hossana! Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Bendito é o
Reino do nosso pai David que está a chegar!» (Me 11,9 e segs.). De acordo com Mateus, a
multidão saudava Jesus como «Filho de David» (21, 9), segundo Lucas, como «o Rei» (19,
.'38). Esta passagem não oferece comprovação suficiente para dizer o que a multidão pensava,
nem podemos saber como Jesus encarava estas aclamações. No entanto, se Jesus decidiu
deliberadamente entrar em Jerusalém montado num jumento, para «cumprir» a profecia de
Zacarias 9,9 («o teu rei vem ... sobre um jumentinho»), sabemos que ele não considerava o
título de «rei» completamente inadequado." Mas a palavra não tem de desencadear
necessariamente toda a série de características que os investigadores imaginam estar associadas
aos termos de «Messias» e «Filho de
301
David». Pelo contrário, havia muitos judeus que não desejavam um rei do tipo militarista (ver p.
66). Não é, de modo algum, inimaginável que a entrada de Jesus sobre um jumento tivesse
constituído um sinal deliberado: «"rei", sim, de certo modo, mas não um conquistador militar».
Quando Jesus foi julgado perante o sumo sacerdote, este interrogou-o: «És o Messias [christos],
o Filho do Bendito?» (Mc 14, 61 & par.). De acordo com Marcos, ele respondeu que «sim», de
acordo com Lucas, fugiu à questão, enquanto, segundo Mateus, ele disse, efectivamente: «não»
(Mc 14, 62; Lc 22, 67 e segs.; Mt 26, 64).4 Jesus referese, de novo, imediatamente ao Filho do
Homem (Mc 14, 62 & par.)
Por conseguinte, não existe qualquer certeza de que Jesus se considerasse a si próprio como
portador do título de «Messias». Pelo contrário, é improvável que o tivesse feito: apesar de
todos os evangelistas considerarem Jesus como o Messias, não podem citar muitas provas
diretas; Marcos é o único que tem um «sim» em resposta a uma pergunta direta sobre o título.
Pedro, que talvez pensasse mais em termos de um Messias mundano do que o próprio Jesus,
recebeu esta repreensão: «Vai-te da minha frente, Satanás!» (Mc 8, 33). Jesus conheceu a
tentação do sucesso mundano (M t 4, 1-11), mas voltou a rejeitar a oferta de Satanás.
Na realidade, a verdadeira pretensão de Jesus pode ter sido mais elevada: não só o porta-voz de
Deus, mas o Seu vice-rei e isto não só num reino político, mas no Reino de Deus. Isto infere-se
da reivindicação implícita que Jesus faz para si mesmo discutida anteriormente e não porque ele
próprio tivesse atribuído a si próprio um título explícito.
Visto que a questão do significado do termo «Messias», quando aplicado a Jesus, é complexa,
enumerarei os pontos principais, a título de resumo: 1) A literatura judaica anterior ou
contemporânea a Jesus não oferece uma definição única da palavra «Messias». 2) É provável
que Jesus não considerasse o título de «Messias» como o melhor para descrever aquilo que ele
era. 3) No entanto, depois da morte e ressurreição de Jesus, os seus discípulos decidiram que
este título, um dos mais honoríficos que podiam imaginar, lhe pertencia. 4) Este título
correspondia, num sentido muito geral, à compreensão que Jesus tinha de si mesmo: ele seria o
líder no Reino que estava prestes a chegar. 5) No entanto, os discípulos também podiam
lembrar-se de que ele tinha
302
rejeitado a ambição que Pedro tinha para ele, e que, mais tarde, três deles (Pedro, Tiago e João)
tiveram uma visão na qual viam Jesus glorificado juntamente com Moisés e Elias (Mc 9, 2-13).
Segundo a Bíblia, Elias tinha sido levado em corpo para o Céu e a tradição judaica concedia
frequentemente a mesma honra a Moisés. A presença de Jesus com Elias e Moisés, na visão dos
discípulos, atesta o seu estatuto verdadeiramente elevado - mais uma vez, exatamente o estatuto
de «Filho de David» ou de «Messias». Tanto Elias como Moisés eram «profetas». 6) Por fim, os
primeiros cristãos mantiveram o título de «Messias», mas redefiniram-no de acordo com a sua
própria experiência: Jesus tornou-se para eles um novo tipo de Messias, um Messias que tinha
agido como operador de milagres e como profeta, durante a sua vida, mas que também era o
Senhor do Céu que regressaria no fim. Esta definição de Messias - profeta, operador de milagres
e Senhor do Céu - é uma definição post factum: os primeiros cristãos viam-no desta maneira e
também lhe chamavam «Messias». Tanto quanto sabemos, o termo «Messias» nunca tinha sido
definido assim anteriormente.
O título de «Filho de Deus» ainda é mais vago do que o de «Messias». Graças às narrativas
sobre o nascimento de Mateus e Lucas, os leitores modernos pensam frequentemente que «Filho
de Deus» significa «um varão concebido sem esperma humano» ou até «um varão semi-humano
e semidivino, gerado quando deus fertilizou um óvulo humano, sem esperma». Quando
discutimos os milagres (pp. 205-208), vimos que esta ideia era perfeitamente compatível com o
mundo de língua grega. Contava-se uma história semelhante sobre Alexandre Magno: ele era
filho de Zeus. A sua mãe foi atingida por um raio, antes de ter consumado o seu casamento com
Filipe da Macedónia, pelo que Alexandre era um filho híbrido." Tanto quanto sabemos, nenhum
judeu da Antiguidade utilizava a expressão «Filho de Deus» neste sentido tão grosseiramente
literal. A utilização judaica comum era genérica: os judeus eram todos «filhos de Deus» (neste
caso, o masculino incluía o feminino). A utilização do singular «Filho de Deus» para se referir a
uma pessoa específica teria sido surpreendente, mas não teria levado os ouvintes a pensar numa
forma de conceção não natural e
303
numa descendência híbrida. Tal como observámos no capítulo 10, o título podia sugerir uma
posição especial diante de Deus e um poder fora do comum para fazer o bem.
É difícil dizer com precisão aquilo que os autores do Novo Testamento queriam dizer com o
título de «Filho de Deus», embora dispúnhamos dos seus escritos e possamos estudá-los.
Mateus e Lucas, que têm histórias da conceição de Maria através do Espírito Santo (Mt 1, 20,
Lc 1, 34) traçam igualmente a genealogia de Jesus através de José, marido de Maria (Mt 1, 16;
Lc 3, 23). Os Evangelhos possuem outras formas de definir Jesus como Filho de Deus, para
além das histórias da sua conceição e do seu nascimento. Na história do batismo de Jesus, uma
pomba desce sobre ele e uma voz do céu dirige-se a Jesus: «Tu és o meu Filho muito amado»
(Mc 1, 11 / / Lc 3, 22).6 Trata-se de uma citação do Salmo 2, 7, onde «Filho de Deus» se aplica
ao rei de Israel - que era um ser humano comum. Parece que, em Marcos, a expressão «Tu és o
meu Filho» é entendida como uma declaração de adoção; Deus concedeu a Jesus um estatuto
especial quando ele foi batizado. De acordo com uma passagem nas cartas de Paulo, Jesus foi
«designado» ou «declarado» Filho de Deus em poder pela sua ressurreição, não no momento da
sua conceição (Rm 1,4). O facto de, na opinião de Paulo, «Filho de Deus» não se referir ao
modo como Jesus foi concebido também é indicado nas passagens em que Paulo diz que os
cristãos se tornam filhos de Deus.
Pois todos os que se deixam guiar pelo Espirito são filhos de Deus. Pois vós não recebestes um
espírito que vos escravize ... ; mas recebestes um espírito de adoção. Quando clamamos: «Abbâ!
Pai!» é esse mesmo espirito que dá testemunho de que somos filhos de Deus. Ora, se somos
filhos de Deus, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo,
pressupondo que com Ele sofremos, para também com Ele sermos glorificados. (Rm 8, 14-17;
cf. GI 4, 4-7)
Esta é outra passagem que mostra a definição de filiação como uma adoção. Paulo não escreveu
que os cristãos eram gerados através de um substituto divino do esperma, mas sim que eram
adotados, tornando-se, assim, irmãos de Cristo e seus co-herdeiros - e Jesus tinha
304
sido declarado Filho, não gerado literalmente por Deus. Numa outra passagem, Paulo escreveu
que as pessoas que têm fé são filhas de Deus (GI 3, 26). Na correspondência que chegou até
nós, Paulo não chama a ninguém «Filho de Deus» no singular, exceto a Jesus, mas não existe
nenhuma sugestão nas suas cartas de que ele pensasse que o título, quando aplicado a Jesus,
significava que ele fosse apenas semi-humano. O título também não exige uma história de
conceição milagrosa. Jesus era o Filho de Deus, mas os outros podem tornar-se filhos de Deus.
O próprio Jesus era de opinião que as pessoas podem tornar-se filhos de Deus: ele disse aos seus
seguidores que, se amassem os seus inimigos, tornar-se-iam «filhos de Deus».
Os primeiros cristãos, depois, utilizaram o título de «Filho de Deus» para designar Jesus, mas
não pensavam que ele fosse um ser híbrido - semidivino e semi-humano. Eles consideravam o
título «Filho de Deus» uma designação elevada, mas não podemos ir muito para além disso.
Quando os gentios convertidos começaram a aderir ao novo movimento, é possível que tenham
entendido o título à luz das histórias sobre Alexandre Magno ou da sua própria mitologia: Zeus
assumiu a forma de um cisne, teve relações com Leda e gerou Helena e Polideuses. No entanto,
os primeiros seguidores de Jesus, quando começaram a chamar-lhe «Filho de Deus», tinham em
mente algo mais vago: uma pessoa que tinha uma relação especial com Deus, que a escolheu
para cumprir uma tarefa de grande importância.
Se falei tanto sobre a ideia de Jesus ser um híbrido é porque há muitas pessoas - tanto cristãos
como não cristãos - que pensam que é esta a fé dos cristãos. Mateus e Lucas, nas suas narrativas
sobre o nascimento, semeiam as sementes desta perspetiva, mas nem estes relatos presumem de
uma forma sistemática que Deus fosse diretamente pai de Jesus, uma vez que as genealogias
apresentam Jesus como descendente de David, através de José (Mt, 1,2-16; Lc 3, 23-38). De
qualquer modo, as narrativas de nascimento não configuram a ideia que os primeiros cristãos
tinham sobre Jesus como «Filho de Deus»; no resto da literatura do início do cristianismo -
incluindo o resto do material de Mateus e de Lucas - o título não é tão literal. Jesus é um «Filho
de Deus» especial que vive numa nação de «Filhos de Deus». Devo também recordar ao leitor
um ponto mencionado anteriormente: os credos cristãos, quando os Padres da Igreja procuraram
definir o conceito de «Filho de Deus», são 100 por cento contra a definição «meio/meio». Em
termos de credo, isto é uma heresia.
305
Os Evangelhos sinópticos aplicam a Jesus o título «Filho de Deus» em alguns outros contextos,
para além das narrativas sobre o nascimento. Alguns deles já foram referidos, mas por uma
questão de conveniência e de clareza, reunirei aqui as passagens mais importantes: (1) a voz do
Céu chama «Filho» a Jesus durante o batismo deste (Mc 1, 11 e par.), declaração que se repete
na história da transfiguração (Mc 9, 7 e par.); (2) os demónios chamam-lhe «Filho de Deus»
(Me 3, 11; Lc 4, 41 e outras passagens); (3) nas histórias das tentações em Mateus e Lucas, o
diabo dirige-se a Jesus como o possível Filho de Deus («se tu és o Filho de Deus» Mt 4, 3-7 / /
Lc 4, 3-9); (4) durante o processo de Jesus, o sumo sacerdote pergunta-lhe se ele é Filho de
Deus (Mc 14, 61 e par.); (5) o centurião que assistiu à morte de Jesus confessa que ele era Filho
de Deus (Me 15, 39 / / Mt 27, 54). A única passagem que pode ter um significado «metafísico»
- isto é, que poderia afirmar que Jesus era algo mais do que puramente humano - é a da pergunta
durante o processo, visto que, depois dela, quando Jesus não nega o título, o sumo sacerdote
exclama que se trata de uma «blasfémia». Retomaremos esta passagem no próximo capítulo. No
que diz respeito às outras passagens, podemos ver que o título significa que Jesus tinha um
estatuto especial e o poder para exorcizar; isto não significa que ele não fosse completamente
humano. Além disso, apenas podemos perguntar o que tinham os outros em mente quando
utilizavam este título para designar Jesus, visto que ele nunca se chamou a si próprio «Filho de
Deus (exceto na cena do processo apresentada por Marcos, que vamos debater no próximo
capítulo).
O terceiro título que desempenha um papel importante nos Evangelhos sinópticos é o de Filho
do Homem. Na Escritura judaica, esta expressão tem vários significados. Em Ezequiel, «Filho
do Homem» é simplesmente um título que o profeta atribui a si próprio: Deus fala-lhe como
«Filho do Homem» que a NRSV traduz, muito apropriadamente, por mortal» (p. ex., Ez 12, 2).
Em Daniel, a expressão «um como Filho do Homem» refere-se à nação de Israel ou, talvez, aos
seus representantes angélicos. Nas visões desta parte do Livro de Daniel, os outros reinos do
mundo são representados por animais fantásticos; Israel, pelo contrário, é representado através
de uma figura semelhante a um ser humano (Dn 7, 1-14). Numa das partes que constitui a obra
pseudoepigráfica do I Enoch, o Filho do Homem é uma figura celeste
306
que julga o mundo (p. ex., I Enoch, capítulos 46, 48 e 69, 26-29). No entanto, não é possível
provar que esta parte do livro é pré-cristã. Por conseguinte, não podemos afirmar que a
escatologia judaica já tivesse estabelecido a ideia de que uma figura celeste chamada «o Filho
do Homem» iria julgar a humanidade no fim da história comum, embora isto seja possível.
O título «Filho do Homem» é utilizado nos Evangelhos fundamentalmente em três sentidos:
1. Por vezes, constitui uma circunlocução para «uma pessoa» ou para o próprio orador, tendo o
significado de «eu»: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O Filho
do Homem é Senhor até do sábado» (Mc 2, 28). Aqui, a expressão poderia significar «eu
próprio», mas é mais provável que constitua simplesmente um paralelo com a expressão
«humanos» na frase anterior, significando, portanto, que «um ser humano é senhor do sábado».
Há outros casos, no entanto, em que «Filho do Homem» significa certamente o próprio Jesus:
ele disse àqueles que o queriam seguir que «as raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos;
mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Mt 8, 20 / / Lc 9, 58). Isto é um aviso
da dificuldade que espera aqueles que seguem Jesus.
2. Quando Jesus anuncia a sua própria morte, fala do «Filho do Homem»: «Começou, depois, a
ensinar-lhes que o Filho do Homem tinha de sofrer muito» (Mc 8, g 1). Nestas passagens, a
expressão também significa «eu».
3. A pessoa que virá do céu e que precede o Reino de Deus é chamada «Filho do Homem».
Vimos anteriormente que Paulo esperava que «o Senhor» descesse do Céu «à ordem dada, à voz
do arcanjo e ao som da trombeta de Deus» (1 Ts 4, 16). Ele diz que esta profecia é «palavra do
Senhor» (4, 15). Os sinópticos atribuem afirmações semelhantes a Jesus, mas, em vez de «o
Senhor», falam do «Filho do Homem». Os paralelos mais evidentes com as afirmações de Paulo
307
encontram-se em Mateus". «o Filho do Homem há-de vir na glória de seu Pai, com os seus
anjos» (16, 27); o «sinal do Filho do Homem» aparecerá no céu e todos os povos verão «o Filho
do Homem vir sobre as nuvens do céu, com grande poder e glória, e ele enviará os seus anjos,
com uma trombeta altissonante» (43, 50 e segs.). Tal como Paulo, Jesus esperava que isto
acontecesse em breve: «Em verdade vos digo: alguns dos que estão aqui presentes não hão-de
experimentar a morte, antes de terem visto chegar o Filho do Homem no seu Reino» (Mt 16, 28
/ / Mc 8, 38 / / Lc 9, 26). Parece que a afirmação de Jesus - «o Filho do Homem virá do céu» -
em Paulo, se transformou na expressão: «o Senhor virá do céu». Com «Senhor», Paulo quer
dizer Jesus: esta é uma profecia da «segunda vinda», quando o Senhor ressuscitado voltará. No
entanto, é menos certo o que Jesus tinha em mente quando profetizava a vinda do «Filho do
Homem».
Pressupúnhamos que estes três grupos principais são palavras autênticas de Jesus." O que não é
certo é se Jesus se referia ou não a si próprio quando falava do Filho do Homem futuro. Note-se
que nenhum dos dois significados aparece simultaneamente. Não encontramos a afirmação de
que «o Filho do Homem tem de sofrer e morrer e regressar», assim como não é claro que
tenhamos de combinar o grupo 2 com o grupo 3. Além disso, durante o seu processo, Jesus
parece ter feito uma distinção entre si próprio e o Filho do Homem futuro.
o Sumo Sacerdote disse-lhe: «Intimo-te, pelo Deus vivo, que nos digas se és o Cristo, o Filho de
Deus.» Jesus respondeu-lhe: «Tu o disseste. Mas Eu digo-vos: Vereis um dia o Filho do Homem
sentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.» (Mt 26, 63 e segs.)
A palavra «mas» (plen, em grego) é adversativa: «mas, por outro lado», e, por conseguinte,
segundo Mateus, Jesus afirmou que esperava uma figura celeste e não o seu próprio regresso.
Marcos combina os
308
títulos: Jesus aceita as designações de «Messias» e de «Filho de Deus» e acrescenta que o Filho
do Homem virá sobre as nuvens (Mc 14, 61 e segs.).
É impossível chegar a uma conclusão segura sobre a utilização que Jesus fez da expressão
«Filho do Homem». Ele utilizou-a; por vezes, aplicou-a a si próprio; ele esperava que o Filho do
Homem viesse do céu; mas não é certo que se identificasse a si próprio com o Filho do Homem
futuro.
Visto que os títulos atribuídos a Jesus suscitavam sempre tanto interesse, quis apresentar um
esboço dos vários significados possíveis e da sua utilização nos Evangelhos sinópticos.
Pretendo, no entanto, voltar ao tema principal. Não ficamos a saber com exatidão o que Jesus
pensava sobre si próprio e qual era a sua relação com Deus através do estudo dos títulos.
Existem três razões para tal. A primeira é que, no judaísmo do tempo de Jesus, não existiam
definições claras de «Messias», «Filho de Deus» ou «Filho do Homem». Mesmo que ele tivesse
atribuído constantemente a si mesmo estes três títulos, só podemos ficar a saber o que ele
pensava sobre si próprio se estudarmos a sua pessoa - não estudando os títulos em outras fontes.
A segunda razão é que não sabemos se ele se atribuiu os títulos a si próprio. É evidente que ele
rejeitava o título de «Messias». Tanto quanto sabemos, não se apelidava a si próprio de «Filho
de Deus». Referiu-se a si próprio como «Filho do Homem», mas não sabemos em que sentido.
Sobretudo, não sabemos se ele pensava que seria o Filho do Homem futuro que virá sobre as
nuvens.
O terceiro motivo pelo qual o estudo dos títulos não nos diz nada sobre o que Jesus pensava
sobre si próprio está relacionado com o facto de dispormos de informações melhores. Jesus
pensava que os doze discípulos representavam as tribos de Israel, mas também que iriam julgá-
las. Jesus estava claramente acima dos discípulos; uma pessoa que está acima dos juízes de
Israel está, de facto, numa posição muito elevada. Sabemos igualmente que ele considerava a
sua missão como sendo algo de absoluta importância e que estava convencido de que a forma
como as pessoas respondiam à sua mensagem era mais importante do que outras obrigações
importantes. Ele pensava que Deus estava prestes a trazer o Seu Reino e que ele, Jesus, era o
último enviado de Deus. Por isso, pensava que era, de certa maneira, «rei». Entrou em
Jerusalém montado num burro, evocando uma profecia
309
sobre o rei montado num burro, e foi executado por ter reivindicado ser «rei dos judeus» (ver o
próximo capítulo). Não existia nenhum título na história do judaísmo que transmitisse tudo isto
plenamente e Jesus parece ter tido bastante relutância em adotar um título para si próprio. Penso
que nem «rei» é um título completamente correto, visto que Jesus considerava Deus como rei.
Eu próprio prefiro o título de «vice-rei» para a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Deus
era rei, mas Jesus representava-O e iria representá-Lo no Reino futuro.
310
A previsão é a seguinte:
Ao sair do Templo, um dos discípulos disse-lhe: «Olha, Mestre, que pedras e que construções
maravilhosas!» Jesus respondeu: «Vês estas construções grandiosas? Não ficará pedra sobre
pedra; será tudo destruído.» (Me 13, 1 e segs.)
320
De acordo com Mateus, Jesus disse isto aos «discípulos», não só a um deles (Mt 24, 1 e segs.),
e, segundo Lucas, ele dirigiu-se a «algumas pessoas» (21, 5 e segs.). A coisa mais importante a
registar é que a previsão não se cumpriu completamente. Quando os romanos tomaram a cidade
em 70 e.c., deixaram uma grande parte dos muros do Templo de pé; de facto, uma grande parte
deles continua a existir, suportando a atual área sagrada dos muçulmanos. A maior parte das
pedras no muro que resistiu pesa entre duas e cinco toneladas, mas algumas, especialmente as
pedras angulares, são muito maiores. Uma delas tem 12 metros de comprimento e pesa quase
400 toneladas. Jesus disse que não ficaria pedra sobre pedra.
Quando as «profecias» são escritas depois do acontecimento - isto é, quando um autor posterior
compõe uma profecia fictícia - é habitual a profecia e o acontecimento coincidirem
perfeitamente. Se a previsão de Me 13, 1 e segs. & par. tivesse sido escrita depois do ano 70,
seria de esperar que dissesse que o Templo seria destruído por um incêndio e não que os muros
seriam completamente derrubados. Portanto, esta profecia, provavelmente, tem a sua origem no
período anterior ao ano 70 e é possível que seja do próprio Jesus.
E a ameaça? Os autores dos Evangelhos esforçam-se por nos garantir que Jesus não ameaçou
realmente destruir o Templo.
E alguns ergueram-se e preferiram este falso testemunho contra ele: «Ouvimo-lo dizer:
"Demolirei este Templo construído com as mãos e, em três dias, edificarei outro que não será
feito com as mãos."» Mas nem assim o depoimento deles coincidia. (Mc 14,57-59)
Mateus tem, no essencial, a mesma tradição, mas não tem as expressões: «feito com as mãos» e
«não será feito com as mãos». As acusações contra Jesus enquanto ele estava pregado na cruz
não o citam diretamente: «Olha o que destrói o Templo e o reconstrói em três dias» (Mc 15, 29 /
/ Mt 27, 40).
Enquanto Mateus e Marcos atribuem esta acusação a «testemunhas falsas», Lucas omite-a
completamente. Trata-se de uma forma extrema de negar que Jesus tenha dito isto. Os primeiros
cristãos não queriam que Jesus fosse visto como um rebelde ou, sequer, como uma
321
pessoa conflituosa. Eles queriam defender que o cristianismo gerava bons cidadãos, cidadãos
leais; os governantes das cidades e províncias da Síria, da Ásia Menor, da Grécia, da Macedónia
e da Itália não tinham nada a temer. Esta é a preocupação central do autor do Evangelho de
Lucas, como se pode ver nos Atos dos Apóstolos, onde ele culpa constantemente todos, exceto
os apóstolos cristãos, pelo facto de haver sempre uma certa perturbação civil em todos os
lugares onde eles iam. Esta preocupação explica, provavelmente, por que é que Lucas não
contém, sequer, esta ameaça e por que razão Mateus e Marcos defendem tão vigorosamente que
Jesus não tinha proferido qualquer ameaça contra o Templo.
Eles protestam demasiado. É provável que ele tenha feito algum tipo de ameaça. Veremos isto
mais claramente se considerarmos a possibilidade de Jesus, na realidade, só ter previsto que,
mais cedo ou mais tarde, o Templo seria destruído. Isto significaria que, tal como os Evangelhos
afirmam, os inimigos de Jesus decidiram dizer que ele tinha ameaçado o Templo. Eles teriam
conspirado para prestar um falso testemunho contra ele, mas esqueceram-se de combinar o
conteúdo deste, pelo que a acusação foi rejeitada pelo tribunal. Esta espécie de conspiração mal
preparada não é convincente. É mais provável que Jesus tenha dito e feito algo que os presentes
consideraram uma ameaça e que os alarmou verdadeiramente. Eles transmitiram isto às
autoridades. Mas quando foram ouvidos no tribunal, contaram coisas ligeiramente diferentes -
tal como acontece com as testemunhas oculares. Não podemos saber o que Jesus disse
exatamente. Vou presumir que ele fez uma previsão ameaçadora da destruição do Templo; isto
é, previu a destruição de tal forma que algumas pessoas pensaram que ele estava a fazer uma
ameaça.
É perfeitamente razoável associar o gesto de Jesus contra os cambistas à sua declaração sobre a
destruição do Templo. Os autores dos Evangelhos quiseram dissociar estes dois elementos:
numa ocasião, Jesus limpou o Templo, numa outra, previu a sua destruição. É provável que
existisse uma ligação entre estes dois acontecimentos. Pelo menos, foi assim que a sua ação foi
interpretada por outros. Se estes estabeleceram uma ligação entre uma afirmação sobre a
destruição e a sua ação simbólica de virar as mesas, podemos compreender por que razão lhes
pareceu que Jesus estava a ameaçar o Templo. Isto causou uma ofensa profunda que veio à
superfície quando ele estava a ser julgado por causa da sua vida, quando estava na cruz e, mais
tarde,
322
durante o julgamento de Estêvão. Não podemos atribuir aos autores dos Evangelhos esta
tradição persistente de uma ameaça contra o Templo, eles desejavam que ela tivesse
desaparecido.
Se Jesus ameaçou o Templo ou previu a sua destruição pouco tempo depois de ter virado as
mesas na área comercial deste (o que teria resultado na mesma coisa), não foi pensando que ele
e o seu pequeno grupo seriam capazes de deitar abaixo os muros, de modo a não ficar pedra
sobre pedra. Ele pensava que seria Deus a destruí-lo. Enquanto um bom profeta judaico, podia
ter pensado que Deus utilizaria um exército estrangeiro para esta destruição; mas, enquanto
escatologista radical do primeiro século, é provável que tenha pensado que seria o próprio Deus
a fazê-lo.
As pessoas na Antiguidade não pensavam que a destruição ou a preservação de um templo
dependia completamente da força relativa de dois exércitos. O prognóstico político
verdadeiramente secular correto não é, de facto, uma opção para a compreensão de Jesus. Se os
persas danificaram o templo de Atena, em Atenas, foi porque Atena decidiu permitir que eles o
fizessem ou porque a própria deusa era mais fraca do que os deuses dos persas e não foi capaz
de defender a sua morada. Josefo mostra como este pensamento estava profundamente
enraizado no judeu piedoso comum. Ele descreve numerosos maus presságios sobre a destruição
iminente do Templo. Na festa das Semanas, por exemplo, os sacerdotes ouviram, primeiro, «um
abalo e um ruído» e, depois, «uma voz coletiva que dizia: "Estamos a ir-nos embora.?» Esta
partida permitiu a destruição do Templo. Jesus também estava convencido de que Deus
habitava, de certo modo, no Templo. Segundo Mt 23, 21, ele disse que a pessoa «que jura pelo
Templo, jura por ele e por aquele que nele habita». Se Jesus pensava que Deus habitava no
Templo, dificilmente podia ter pensado que os romanos poderiam destruí-lo contra a Sua
vontade. Eles podiam ser Seus instrumentos, mas não podiam impor-Lhe a sua vontade.
323
Caso Jesus tenha dito, sequer, alguma coisa sobre a destruição iminente do Templo, o que ele
queria dizer era que seria Deus a destruí-lo ou a mandar destruí-lo através dos seus
instrumentos. Isto, associado a um gesto hostil, podia constituir uma ameaça. Mas ninguém -
nem Jesus, nem aqueles que o ouviram e viram, nem o sumo sacerdote, nem Pila tos - pensava
que ele podia deitar realmente abaixo os muros do Templo. No entanto, se ele disse apenas o
que Deus iria fazer, por que razão foi preso? Se Deus podia fazer tudo o que quisesse, por que
razão é que o sumo sacerdote e os outros não podiam ter-se limitado a discordar de Jesus? As
pessoas tinham sempre medo dos profetas, pelo menos, um pouco. Antipas (ou Antipas e
Herodíade) temiam João Baptista." Antipas tinha tropas suficientes para reprimir uma multidão
enfurecida, se fosse necessário, e tanto ele como a sua família foram criticados frequentemente.
Mas ele decidiu silenciar João, em vez de o deixar continuar a pregar. Numa data anterior,
houve um grupo de judeus que esperava que o profeta Honi amaldiçoasse um outro grupo de
judeus. Ele não quis. Eles estavam todos convencidos de que a sua maldição seria eficaz e,
quando ele se recusou a proferi-la, mataram-no. Os profetas eram perigosos. Podiam despertar
uma multidão que podia descontrolar-se facilmente (especialmente na Páscoa). E eram
perigosos a um outro nível, porque Deus lhes dava ou podia dar ouvidos.
Concluo que a ação simbólica de Jesus que consistiu em virar as mesas no Templo foi
compreendida em relação com uma afirmação sobre a destruição e que, na opinião das
autoridades, a ação e a afirmação constituíram uma ameaça profética. Além disso, penso que é
altamente provável que tenha sido intenção do próprio Jesus predizer a destruição do Templo e
não simbolizar a necessidade de purificação deste. No entanto, é impossível provar que a
afirmação sobre o «covil de ladrões» não tenha sido realmente proferida por Jesus ou que ele
tivesse dito: «eu destruirei o Templo». Tenho de confessar que duvido da autenticidade da
afirmação sobre o «covil de ladrões». Parece-me uma expressão que o evangelista teria
facilidade em tirar do Livro de Jeremias para fazer Jesus parecer politicamente inócuo
324
aos olhos dos leitores gentios de língua grega. Muitas pessoas, tanto naquela altura como hoje,
pensavam que a reforma periódica do sistema é uma coisa positiva. Apolónio de Tiana ficou
bastante famoso como reformador do culto. No entanto, um verdadeiro reformador teria um
programa de reformas mais vasto do que Jesus parece ter tido. Se as pessoas não pudessem
comprar pombas sacrificiais na área comercial do Templo, como podiam adquiri-las? Se as
trouxessem dos pombais que tinham em casa, as aves podiam tornar-se impuras. E os cambistas
ofereciam maior comodidade aos peregrinos. O Templo exigia o pagamento do respetivo
imposto numa moeda segura, que não fosse falsificada através da adição de uma quantidade
excessiva de metais vis (um método utilizado frequentemente pelos governantes, quando tinham
dificuldades financeiras). As pessoas podiam adquirir esta moeda de Tiro em qualquer lado; isso
não importava ao Templo, mas, ao que parece, muitos preferiam trazer a sua própria moeda e
cambiá-la no Templo. Portanto, com que substituiria Jesus estes dois negócios, se os
eliminasse? Jesus, o previdente planeador social e económico, novamente em voga, não existe,
pura e simplesmente, nos Evangelhos. Ele podia ter falado sobre o «covil de ladrões», mas uma
afirmação não bastava para o transformar em reformador.
Ele era um profeta, um profeta escatológico. Pensava que Deus estava prestes a destruir o
Templo. E depois? A afirmação continua, segundo os seus acusadores, com a expressão: «em
três dias, edificarei outro», e Marcos acrescenta «que não será com as mãos» (Mc 14,58 / / Mt
26, 61). É provável que Jesus pensasse que, na nova era, quando as doze tribos de Israel
voltassem a reunir-se, haveria um Templo novo e perfeito, construído pelo próprio Deus. Este
era um típico pensamento escatológico ou da nova era. O Apocalipse diz que, quando a nova
Jerusalém descer do céu, não haverá nenhum Templo, mas a explicação é cristológica: «pois, o
senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são o seu Templo» (Ap 21, 22). Quando o
Apocalipse foi escrito, os cristãos acreditavam que a era do Templo tinha terminado e que o
mundo ideal dispensaria sacrifícios de animais, uma vez que o verdadeiro Cordeiro tinha sido
sacrificado, mas não era isto que os judeus não cristãos pensavam. Seguindo os profetas
bíblicos, eles esperavam um Templo novo e glorioso: «A glória do Líbano virá sobre ti, o
cipreste, o abeto e o pinheiro, para adornar o lugar do meu santuário,
325
e mostrar a glória do trono em que me sento» (Is 60, 13). O autor de uma das secções do I
Enoch fala de uma visão:
E eu levantei-me para ver até eles terem desmontado a casa antiga; e todos os pilares, e todas as
vigas e ornamentos da casa foram desmontados ao mesmo tempo e eles levaram-nos ... E eu
olhei até o Senhor... ter trazido uma nova casa, maior e mais grandiosa do que a primeira e a ter
colocado no lugar da primeira ... : e os seus pilares eram novos e os seus ornamentos eram
novos e maiores do que os da primeira casa ... (I Enoch 90, 28 e segs.)
Estas citações exemplificam tanto a expectativa de um Templo novo ou melhor como uma
evolução importante no pensamento judaico. Com o passar dos anos, as pessoas, em geral,
pensavam que Deus faria mais no contexto da nova era: as suas expectativas tornaram-se mais
grandiosas e mais sobrenaturais. No período clássico da profecia israelita (do século VIII ao
século v a. C.), os profetas pensavam que, geralmente, Deus intervinha na História através de
governantes e exércitos humanos. Esta ideia não desapareceu completamente, mas muitos
judeus começaram a olhar para trás, para tempos mais dramáticos, como modelo da atuação
futura de Deus. Deus tinha aberto o mar uma vez, produzido o maná no deserto, feito o Sol
parar, derrubado os muros de Jericó. No futuro, Ele faria prodígios tão grandes como estes, e até
mais grandiosos. Nas décadas a seguir a Jesus, Teudas pensava que Deus dividiria a água do rio
Jordão e o Egípcio esperava que Ele provocasse a queda dos muros de Jerusalém. Acabámos de
ver que um dos autores de I Enoch esperava que Deus trouxesse um Templo novo e maior e o
autor do Rolo do Templo tinha a mesma esperança.? Referi mais do que uma vez provas que são
pertinentes para esta questão. Para repetir brevemente: o autor do Rolo da Guerra, de Qumran,
esperava que os anjos, liderados por Miguel, combatessem em vez dos exércitos judaicos, mas
que o golpe final fosse dado pelo próprio Deus. O autor dos Salmos de Salomão esperava que o
Messias davídico não «confiasse em cavalos, nem em cavaleiros e arcos», nem «juntasse ouro e
prata para a guerra», nem «edificasse a esperança
326
sobre uma multidão para um dia de guerra»; em vez disso, ele confiaria em Deus (Salmos de
Salomão 17, SS e segs.).
É isto que eu quero dizer quando afirmo que Jesus era um «escatologista radical». Ele esperava
que Deus agisse de uma forma decisiva, de modo a mudar as coisas radicalmente. Jesus, tal
como praticamente todos os outros judeus do século I, pressupunha que continuaria a existir um
Templo. No entanto, neste, como em outros aspetos, não revelou pormenores.
Este debate em torno das afirmações sobre o Templo foi longo. Alguns leitores podem pensar
que dei demasiada importância à questão. Penso que é quase impossível dar demasiada
importância ao Templo no século I da Palestina judaica. Atualmente, as pessoas têm tanta
facilidade em pensar na religião sem sacrifícios que não são capazes de compreender que esta
ideia é nova. O judaísmo teve de acabar por abandonar a ideia do regresso ao culto sacrificial a
Deus e o cristianismo acabou por ver a morte de Jesus como a substituição completa do culto do
Templo. Mas, no tempo de Jesus, estas ideias pertenciam ao futuro. Jesus tinha de aceitar o
Templo, de se opor a ele ou de o reformar. Parece que o aceitou, mas que pensava que ele seria
substituído na nova era. Depois da sua morte e ressurreição, os seus seguidores continuaram a
participar no culto do Templo. Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo foi preso por ter tentado
levar um gentio ao Templo. Estas atitudes são compatíveis com a convicção de Jesus, tal como
eu a reconstruí.
Voltemos, agora, ao terceiro gesto simbólico da última semana de Jesus: a última ceia. A
passagem, em termos gerais, possui a mais sólida confirmação que é possível, possuindo o
mesmo nível de certeza da afirmação sobre o divórcio. Existem duas formas ligeiramente
diferentes, que chegaram a nós através de dois canais independentes - a tradição sinóptica e as
cartas de Paulo. Vou citar as três versões, para que o leitor possa compará-las.
327
A prisão de Jesus
Debrucemo-nos, agora, sobre a nossa segunda questão importante: por que razão mandou o
sumo sacerdote prender Jesus? No essencial, já respondemos a esta questão: a razão mais
imediata para a prisão de Jesus foi a sua manifestação profética no Templo. Houve algumas
pessoas que pensaram que ele tinha ameaçado o Templo. Se o sumo sacerdote Caifás e os seus
conselheiros soubessem que Jesus tinha sido aclamado como «rei» quando entrou em Jerusalém,
já estariam preocupados por causa dele. O gesto no Templo decidiu o seu destino. A cena do
julgamento em Marcos parece pressupor que o sumo sacerdote tinha conhecimento de ambos os
acontecimentos. Jesus começou por ser acusado de ter ameaçado o Templo. No entanto,
329
havia contradições entre as testemunhas. Depois, Caifás perguntou a Jesus se ele era «o
Messias, o Filho do Bendito» (Me 14, 61). No capítulo anterior, debatemos brevemente as
várias versões da sua resposta. Segundo Marcos, ele respondeu: «sim»; segundo Lucas, ele
respondeu apenas: «Vós dizeis que eu sou»; e segundo Mateus, ele disse: «Tu o disseste; mas
[por outro lado] eu digo-vos: Vereis o Filho do Homem ... » Fosse qual fosse a resposta de
Jesus, registamos que a questão implica algum conhecimento da pretensão de Jesus ou (o que é
mais provável) o conhecimento das aclamações dos seus seguidores, durante a sua entrada na
cidade. Jesus também tinha ensinado sobre «o Reino» enquanto estava em Jerusalém, o que
teria reforçado a impressão negativa. O sumo sacerdote desejava a sua morte pela mesma razão
pela qual Antipas desejava a morte de João: ele podia causar problemas.
Vimos anteriormente (pp. 44-46) que o sumo sacerdote era responsável pela ordem na Judeia,
em geral, e em Jerusalém, em particular. Caifás exerceu a sua função durante mais tempo do
que qualquer outro sumo sacerdote no período de governo direto dos Romanos e este facto
constitui uma boa prova da sua capacidade. Se o sumo sacerdote não mantivesse a ordem, o
prefeito romano interviria militarmente e a situação podia descontrolar-se. Enquanto os guardas
do Templo, agindo como a polícia do sumo sacerdote, efetuassem prisões e enquanto o sumo
sacerdote estivesse envolvido nos processos judiciais (embora não tivesse poder para mandar
executar ninguém), existia uma possibilidade relativamente reduzida de um confronto direto
entre os judeus e as tropas romanas. Se o sumo sacerdote queria manter a sua função, tinha de
manter o controlo, mas um sumo sacerdote que fosse decente - e Caifás era muito decente -
também tinha de se preocupar com a população judaica. O sumo sacerdote tinha outras
obrigações em relação à população para além de se limitar a prevenir confrontos com as tropas
romanas. Também devia representar as opiniões da população perante o prefeito, assim como
defender os costumes e as tradições judaicas. Ele era o mediador. Esta segunda responsabilidade
era importante, mas não desempenha qualquer papel na nossa história.
330
O sumo sacerdote, juntamente com os seus conselheiros, tanto formais como informais, tinha
frequentemente a tarefa de prevenir problemas e de imobilizar provocadores. Gostaria de
ilustrar este facto decisivo da vida política apresentando alguns resumos muito breves da autoria
de Josefo sobre três acontecimentos distintivos.
1. Por volta do ano 50 e.c., durante um confronto entre peregrinos da Samaria e da Galileia em
trânsito através de Samaria, um dos peregrinos foi morto. Veio uma multidão da Galileia,
desejando a vingança, mas os «notáveis» foram ter com o procurado romano, Cumanus,
pedindo-lhe para ele enviar tropas e punir os assassinos, pondo, assim, termo à questão. Ele
recusou-se a fazê-lo. As notícias chegaram a Jerusalém e muitas pessoas acorreram à Samaria,
embora «os magistrados» ou «governantes» tenham tentado impedi-las. No entanto, os
magistrados não desistiram; vestidos de serapilheira e com as cabeças cobertas de cinzas (dois
sinais de luto), foram atrás dos exaltados e tentaram persuadi-los a não fazerem nada
precipitadamente, visto que uma batalha levaria, certamente, a uma intervenção severa por parte
de Roma. Este apelo foi eficaz e a multidão dos judeus dispersou (se bem que alguns bandos
mais pequenos tenham ficado para pilhar). Os samaritanos «poderosos» foram à Síria para expor
o seu caso perante o legado romano e os judeus «notáveis», incluindo o sumo sacerdote, fizeram
o mesmo. O legado foi a Cesareia e a Lida, onde ordenou as execuções de alguns dos grupos de
criminosos. Enviou outros para Roma, para serem julgados por Cláudio: dois homens
«muitíssimo poderosos», isto é, Jonatan, chefe de sacerdotes, e o sumo sacerdote em exercício,
Ananias, assim como o filho de Ananias, outros judeus «notáveis» e os samaritanos «mais
distintos» (Guerra 2, 232-244).
Este acontecimento ocorreu durante uma festa e exigiu uma atitude na Samaria. É duvidoso que,
nestas circunstâncias, o sumo sacerdote tenha sido um dos líderes judeus que foi à Samaria
conter a multidão. Mas podemos ver, mesmo aqui, que Roma o considerava responsável: ele foi
à Síria, para falar com o legado romano, e teve de ir a Roma para ser julgado. Ele não teve nada
a ver com o problema na Samaria, mas, mesmo assim, era responsável pela ordem. Podemos ver
igualmente que o sumo sacerdote era apenas o «primeiro
331
entre iguais». A responsabilidade pela prevenção dos problemas recaía, até certo ponto, sobre
todos os cidadãos de elite.
2. Em 62 e.c., durante um período breve em que não houve nenhum procurador romano
residente na Palestina, o sumo sacerdote saduceu Ananus convocou «um conselho [.rynedrionJ
de juízes»27 e mandou executar Tiago, o irmão de Jesus, e, provavelmente, outras pessoas.
Alguns cidadãos com sentido de justiça e clemência, os mais rigorosos no que dizia respeito às
leis, protestaram, mas a execução cumpriu-se. Muitos investigadores pensam que aqueles que se
opuseram à execução eram fariseus, o que me parece provável. De qualquer modo, o protesto
foi, em parte, bem sucedido: Ananus foi deposto (Antiguidades 20, 199-203), visto que tinha
transgredido a norma romana, de acordo com a qual, numa província administrada por um
cavaleiro romano, a única pessoa que podia ordenar uma execução era o funcionário romano
supremo.
3. A prisão de Jesus assemelha-se mais ao terceiro caso, que diz respeito a um outro Jesus, o
filho do Ananias, e ocorrido cerca de trinta anos após a execução de Jesus de Nazaré. Jesus,
filho de Ananias, foi ao Templo na Festa dos Tabernáculos, um período que era pacífico, e
exclamou: «Uma voz do leste, uma voz do oeste, uma voz dos quatro ventos; uma voz contra
Jerusalém e o santuário, uma voz contra o noivo e a noiva, uma voz contra todo o povo.» Esta
previsão de destruição - e é óbvio que se trata de tal, dada a referência ao noivo e à
332
noiva, tirada de Jer 7, 34 -levou ao seu interrogatório e à sua flagelação, primeiro pelas
autoridades judaicas e, depois, pelos romanos. Respondeu às questões «repetindo
incessantemente as suas «lamentações sobre a cidade» e acabou por ser libertado como louco.
Manteve as suas lamentações durante sete anos, especialmente durante as festas, mas, de resto,
não se dirigiu à população. Acabou por ser morto por uma pedra de uma catapulta romana
(Guerra 6,300-309).
Se utilizarmos este caso como uma orientação, podemos compreender por que razão Jesus de
Nazaré foi executado e não simplesmente açoitado. A ofensa do nosso Jesus foi pior do que a de
Jesus, filho de Ananias. Jesus de Nazaré tinha seguidores, talvez não muitos, mas, apesar disso,
alguns. Tinha ensinado durante algum tempo sobre o Reino de Deus. Tinha feito uma
intervenção material no Templo. Não era louco. Portanto, era potencialmente perigoso. É
possível imaginar que ele se pudesse ter salvo da execução se tivesse prometido que levaria os
seus discípulos, regressaria à Galileia e ficaria calado. Parece que não tentou fazê-lo.
Em conjunto, estas três histórias ilustram como a Judeia era governada enquanto província de
Roma, administrada formalmente por um romano. Já descrevi este sistema de governação (pp.
41-47), mas gostaria de o repetir aqui. O prefeito ou procurador romano tinha de manter a paz
no território e de cobrar o tributo. Ele transferia ambas as tarefas para a aristocracia judaica,
especialmente a aristocracia sacerdotal, liderada pelo sumo sacerdote. A escolha do sumo
sacerdote pelos romanos respeitava a tradição judaica. A Judeia tinha sido governada por sumos
sacerdotes durante vários séculos. Quando Herodes chegou a rei acabou com este sistema e
Roma restabeleceu o antigo sistema, no momento em que o herdeiro deste (Arquelau) se revelou
incapaz de governar com sucesso. Ao ordenar a prisão de Jesus, Caifás estava a cumprir os seus
deveres, de entre os quais um dos principais era prevenir levantamentos.
Mencionarei brevemente outras duas teorias sobre a razão pela qual Jesus foi preso. Uma delas é
que ele foi mal compreendido. Caifás e Pilatos teriam pensado que ele tinha em mente um reino
deste mundo e que os seus seguidores estariam prestes a atacar o exército romano; eles teriam
executado Jesus como rebelde por engano. Esta
333
opinião baseia-se essencialmente em Jo 18, 33-38, que constitui uma longa discussão sobre o
tipo de «rei» que Jesus afirmava ser. No entanto, é altamente improvável que Caifás e Pilatos
tivessem pensado que Jesus liderava um grupo armado e planeava um golpe militar. Se tivessem
pensado isto, Caifás também teria mandado prender os lugar-tenente de Jesus e os seus
seguidores teriam sido executados - como aconteceu mais tarde aos seguidores de outros
profetas, que cometeram o erro de andar em grupos maiores. A execução apenas do líder mostra
que eles receavam que Jesus pudesse instigar a multidão e não que tivesse criado um exército
secreto. Por outras palavras, eles compreenderam muito bem Jesus e os seus seguidores.
De acordo com a segunda teoria, Jesus foi preso por causa de divergências teológicas com a
massa dos judeus liderados pelos fariseus. Ele acreditava no amor e na compaixão, ideias que os
fariseus abominavam, e discordava do legalismo e do ritualismo mesquinhos, que eles
favoreciam; por isso, eles teriam conspirado contra ele, para o matarem. Os investigadores que
defendem esta opinião não explicam o mecanismo que levou os fariseus a conseguirem a prisão
de Jesus, contentando-se em sustentar que a oposição dos fariseus desempenhou um papel. Não
repetirei aqui os meus numerosos esforços para levar os cristãos a verem os fariseus numa
perspetiva mais correta, mas limitar-me-ei a comentar que estes desentendimentos imaginários
não explicam nada em termos históricos. Os judeus, por vezes, matavam-se uns aos outros, mas
não por causa de desacordos deste género. O nível das disputas acerca da Lei entre Jesus e os
outros estava completamente dentro dos limites de um debate normal e não existe qualquer
razão para pensar que eles estivessem em conflito por causa do amor, da misericórdia e da
graça. É possível que Jesus se opusesse às opiniões dos fariseus, por exemplo, na questão dos
produtos que devem ser considerados como alimentos e que devem ser submetidos ao
pagamento do dízimo (Mt 23, 23), mas críticas deste tipo não constituem uma questão de vida
ou de morte. Além disso, os fariseus estão quase completamente ausentes dos últimos capítulos
dos Evangelhos e completamente ausentes das histórias da prisão e do processo. Segundo as
provas existentes, eles não tiveram nada a ver com estes acontecimentos.
334
As descrições do sumo sacerdote e do seu conselho que se encontram nos sinópticos
correspondem completamente à descrição que Josefo faz da forma como Jerusalém era
governada no tempo em que fazia parte de uma província romana. O sumo sacerdote e o chefe
dos sacerdotes são os atores principais e os fariseus não desempenham qualquer papel.
A teoria aqui apresentada - que Caifás mandou prender Jesus, porque tinha a responsabilidade
de reprimir aqueles que causavam problemas, sobretudo durante as festas - é perfeitamente
compatível com todas as provas. Jesus tinha alarmado algumas pessoas por causa do seu ataque
contra o Templo e da sua afirmação sobre a destruição do mesmo, porque elas receavam que ele
pudesse influenciar realmente Deus. No entanto, é altamente provável que Caifás estivesse
sobretudo ou exclusivamente preocupado com a possibilidade de Jesus incitar um motim.
Mandou guardas armados para prenderem Jesus, interrogou-o e recomendou a sua execução a
Pilatos, que a aceitou prontamente. É assim que os Evangelhos descrevem os acontecimentos e
foi assim que as coisas aconteceram realmente, tal como provam as numerosas histórias de
Josefo.
A recomendação da execução
Podemos dizer mais alguma coisa sobre a razão que levou Caifás e os seus conselheiros a
mandarem Jesus a Pila tos para este o executar? As cenas do processo nos Evangelhos
proporcionam as únicas provas possíveis. Já as debati brevemente, mas, agora, iremos observá-
las mais de perto. Penso que estas cenas são suficientemente exatas na generalidade, mas
existem problemas nos pormenores. Gostaria de pressupor aqui que, tanto Mateus como Lucas,
baseiam em Marcos as suas descrições do julgamento judaico." Não penso que possamos
confiar plenamente na descrição do julgamento feita por Marcos, como se fosse uma transcrição
dos registos no tribunal, mas ela constituirá a base para a nossa análise.
335
Marcos e Mateus apresentam duas narrativas do julgamento de Jesus: uma que constitui um
simples relato dos factos e outra que consiste numa descrição mais longa. Estas narrativas
encontram-se agora em Marcos e Mateus como se estivessem em causa dois julgamentos
separados: a versão breve encontra-se em Mc 15, 1 / / Mt 27, 1 e segs.: «Logo de manhã, os
sumos sacerdotes reuniram-se em conselho com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio; e,
tendo manietado Jesus, levaram-no e entregaram-no a Pilatos.» A segunda narrativa do jul-
gamento descreve uma interrogatório. Já abordámos duas das suas partes mais importantes.
Testemunhas falsas acusaram Jesus de ter ameaçado o Templo, mas os seus testemunhos não
foram coincidentes. Então, o sumo sacerdote perguntou a Jesus: «És Tu o Cristo, o Filho do
Bendito?» Jesus respondeu: «Sim» (Marcos) ou «Tu o disseste; [mas, por outro lado] Eu digo ...
» (Mateus). Em Marcos e Mateus, Jesus, depois de ter respondido à pergunta do sumo
sacerdote, profetiza que o Filho do Homem virá em breve. O sumo sacerdote rasga então as suas
vestes (um sinal de luto), dizendo que não necessitavam de testemunhas, visto que tinham
ouvido uma blasfémia (Me 14, 55-65 / / Mt 26, 59-68).
Lucas apresenta uma narrativa ligeiramente diferente. Só houve um julgamento que se iniciou
com os interrogadores a perguntarem a Jesus se ele era o Cristo. Jesus deu uma resposta
evasiva, acrescentando que, «doravante, o Filho do Homem vai sentar-se à direita do poder de
Deus». Só então os interrogadores perguntaram se ele era o Filho de Deus, o que provocou a
resposta: «Vós dizeis que Eu o sou» (Lc 22, 66-71). Os juízes reunidos disseram que não
precisavam de mais testemunhas. Tinham-no ouvido da sua própria boca. Lucas não utiliza a
palavra «blasfémia».
Na opinião de Marcos, Jesus foi condenado por ter reivindicado títulos para si mesmo e esta
reivindicação constituía uma blasfémia aos olhos dos outros judeus - ou, pelo menos, aos olhos
de um deles, Caifás. Nas décadas que se seguiram à morte e à ressurreição de Jesus, os cristãos
atribuíram a Jesus ambos os títulos (Messias e Filho de Deus), interpretando-os de formas que
alguns judeus consideravam blasfemas.
O título de «Filho de Deus», sobretudo, viria a significar que Jesus não era um simples mortal.
Vimos no capítulo 15 que estes títulos, em si mesmos, não têm este significado. A pergunta que
se encontra em Marcos - «És Tu o Cristo, o Filho do Bendito?» - pressupõe que estes dois
títulos estão associados, interpretando-se reciprocamente.
336
Mas isto é obra dos cristãos. A simples combinação já é suspeita e a afirmação de que os dois
títulos, quando interligados, constituem uma blasfémia também parece ser produto da
criatividade dos cristãos. Alguns dos primeiros cristãos queriam atribuir a morte de Jesus à con-
fissão da cristologia da igreja. A cristologia tinha separado o novo movimento das suas raízes e,
naturalmente, eles queriam fazer remontar a Jesus as suas próprias perspectivas distintivas. Os
títulos desempenharam, porém, um papel tão insignificante nos Evangelhos sinópticos, que
temos de duvidar que tivessem constituído realmente a questão central no julgamento.
No entanto, se nos afastarmos da preocupação dos cristãos com os títulos que definem,
supostamente, a pessoa de Jesus e olharmos com novos olhos para a cena do julgamento
apresentada em Marcos, descobrimos que ela é perfeitamente razoável. Se constituísse uma
transcrição, se esta troca de palavras entre Caifás e Jesus tivesse acontecido precisamente como
Marcos a descreve, continuaríamos a ter de concluir que os títulos não constituíram o verdadeiro
problema. O que a passagem diz é o seguinte: Jesus ameaçou o Templo e fez-se importante. O
sumo sacerdote mandou prendê-lo por causa da sua atitude contra o Templo e esta foi a
acusação contra ele. O testemunho foi rejeitado pelo tribunal porque as testemunhas não foram
coerentes. No entanto, o sumo sacerdote tinha decidido que Jesus tinha de morrer, por isso, não
estava disposto a deixar cair o caso. Ele desafiou Jesus a dizer qualquer coisa sobre si próprio e,
depois, gritou «blasfémia» e rasgou as suas vestes. O resto do tribunal associou-se a ele. Isto é,
de acordo com a História, o sumo sacerdote não quis julgar Jesus com base nos títulos que este
reclamava, mas por causa do Templo. Ele recorreu aos títulos e declarou que a resposta de Jesus
era uma blasfémia - independentemente daquilo que este disse. Não temos de decidir se Jesus
respondeu que «sim» ou «talvez». O sumo sacerdote já tinha decidido.
Rasgar as vestes constituía um sinal poderoso de luto e mostrar os sinais de luto tinha poder
persuasivo. Já vimos que os «magistrados» ou «governantes» de Jerusalém puseram cinzas
sobre as suas cabeças e vestiram-se de serapilheira (outros sinais de luto) quando tentaram
prevenir a violência da multidão na Samaria. No caso do sumo sacerdote, rasgar as vestes
constituía o sinal mais extremo de luto, visto que a Bíblia lhe proibia rasgar as suas vestes ou
sequer desgrenhar os seus cabelos (Lv 21, 10). A transgressão da lei por parte de Caifás
337
mostrou o seu horror. Poucos judeus lhe teriam negado aquilo que ele queria e, certamente, não
os seus próprios conselheiros. Jesus foi enviado a Pilatos.
Proponho duas formas de ler Marcos. Uma delas consiste na perspetiva do próprio Marcos.
Jesus não reclamou títulos para si próprio durante o seu ministério e procurou silenciar aqueles
que lhe chamavam «Messias» ou «Filho de Deus». Portanto, de acordo com o Evangelho de
Marcos, os títulos não explicam a decisão que levou à sua prisão. Caifás mandou prender Jesus
porque pensou, erradamente, que Jesus tenha ameaçado o Templo. Jesus não o tinha feito e o
seu processo ilibou-o desta acusação. O sumo sacerdote colocou-lhe, contudo, uma pergunta
capciosa sobre os títulos. Jesus aceitou os termos de «Messias» e de «Filho do Bendito (Deus)»
como títulos que se lhe aplicavam e o sumo sacerdote acusou-o de blasfémia. A segunda leitura
consiste numa interpretação crítica de Marcos. Resulta, em parte, da observação de que Marcos
atribui um significado aos títulos de «Messias» e de «Filho de Deus» que estes não tinham antes
do desenvolvimento da cristologia da Igreja. Por isso, podemos oferecer uma interpretação
histórica melhor do julgamento e da execução de Jesus, mesmo que aceitemos a narrativa de
Marcos. 1. Durante o seu ministério de ensinamento e de cura, Jesus não atribuiu quaisquer
títulos a si próprio; quando lhe perguntavam diretamente, ele recusava-se a dizer quem era. 2.
Jesus foi preso porque ameaçou o Templo. 3. Quando as testemunhas divergiram no que diz
respeito à ameaça que Jesus tinha feito ao Templo, Caifás não mandou açoitá-lo e, depois,
libertá-lo. Em vez disso, decidiu voltar a pô-lo à prova. Isto mostra que ele pretendia mandar
executá-lo desde o início. 4. Então, perguntou a Jesus se ele era o Messias e o Filho de Deus. 5.
Jesus disse que sim. 6. Estes títulos não constituíam, em si, uma blasfémia. 7. O sumo sacerdote
decidiu considerá-los uma blasfémia porque já tinha tomado a decisão da execução. 8. Em vez
de continuar a investigar o que estes termos significavam para Jesus, Caifás fez uma
manifestação extravagante de luto, persuadindo assim os seus conselheiros a juntar-se a ele na
condenação do Galileu. A reconstrução histórica do processo tal como ele está descrito em
Marcos revela que os títulos foram um expediente e que a ameaça sobre o Templo constituiu a
causa imediata da execução. Gostaria de distinguir a minha própria opinião dos oito pontos que
acabei de apresentar e que oferecem uma reconstrução daquilo que a narrativa de Marcos
significaria, caso se tratasse de um relato textual
338
de um julgamento. Penso que a cena do julgamento apresentada por Marcos não constitui uma
transcrição e que temos de avaliar os motivos dos vários actores num contexto mais geral. Se
tivermos em conta a forma como os sumos sacerdotes cumpriam as suas responsabilidades
cívicas sob os prefeitos e procuradores romanos, temos de concluir que Caifás cumpriu as suas
obrigações tal como estava prescrito: Jesus era perigoso porque podia causar um tumulto, que
seria reprimido pelas tropas romanas com muitas perdas de vidas humanas. O autor de João
atribui a Caifás uma afirmação completamente adequada: « ... convém que morra um só homem
pelo povo, e que não se perca a nação inteira» (Jo 11, 50).32 Embora tenha sido a cena do
Templo que decidiu a questão, é provável que tenham existido outros fatores que contribuíram
para a decisão: a entrada de Jesus em Jerusalém e o seu ensinamento sobre o Reino de Deus.
Não sabemos o que Caifás sabia sobre estas outras questões, mas seria razoável pensar que,
depois de ter sido informado sobre o ataque de Jesus aos vendedores de pombas e as cambistas,
e antes de ter ordenado a prisão de Jesus, ele tenha procurado e obtido mais informações sobre
este. Como veremos imediatamente a seguir, é provável que ele tenha transmitido a Pilatos o
facto de Jesus pensar que era «rei». Esta reivindicação para si mesmo está implícita na entrada
de Jesus em Jerusalém, sobretudo se este acto simbólico for combinado com o ensinamento de
Jesus. Embora tenha dúvidas no que diz respeito à combinação que Marcos faz entre «Messias»,
«Filho de Deus» e «blasfémia», não tenho dúvidas de que Caifás e os seus conselheiros sabiam
que Jesus ensinava sobre o Reino de Deus e reivindicava para si um papel importante neste
Reino.
Sendo assim, penso que Caifás tomou uma única decisão: prender e executar Jesus. Se assim
foi, fê-lo não por causa de divergências teológicas, mas por causa daquilo que constituía a sua
principal responsabilidade política e moral: preservar a paz e prevenir tumultos e derramamento
de sangue. O que levou o sumo sacerdote a agir foi a compreensão que Jesus tinha de si mesmo,
revelada, especialmente, no Templo, mas também no seu ensinamento e na sua entrada na
cidade.
339
A decisão de Pilatos
Por que razão ordenou Pilatos a execução de Jesus? Porque o sumo sacerdote lha recomendou e
porque lhe forneceu uma acusação forte: Jesus pensava que era rei dos judeus. Pilatos percebeu
que Jesus era um potencial rei sem exército e, por isso, não fez nenhum esforço por perseguir e
executar os seguidores deste. É provável que o tenha considerado um fanático religioso, cujo
fanatismo se tinha tornado tão extremo que se tinha transformado numa ameaça à Lei e à ordem
pública.
Os Evangelhos, sobretudo Mateus e João, pretendem que Jesus foi condenado pela multidão dos
judeus, contra a opinião de Pilatos. Pilatos estava preocupado, foi avisado pela sua mulher para
não fazer nada, consultou a multidão, argumentou a favor de Jesus; por fim, dada a sua
fraqueza, não conseguiu resistir ao clamor da multidão, por isso, mandou executar Jesus (Mt 27,
11-26; Jo 18,28-19,16). Estes elementos da história das últimas horas de Jesus devem-se ao
desejo dos cristãos de se darem bem com Roma e de apresentarem os judeus como os seus
verdadeiros adversários. É muito provável que Pilatos tenha aceite a acusação de Caifás, tenha
mandado açoitar e interrogar brevemente Jesus e, como as respostas não foram completamente
satisfatórias, tenha mandado crucificá-lo sem pensar duas vezes. Filo, contemporâneo de
Pilatos, escreveu um apelo ao imperador Gaio (Calígula) que incluía uma descrição de Pilatos.
Filo escreveu sobre «os subornos, os insultos, os roubos, os ultrajes, a crueldade incessante e
extremamente penosa» que marcavam a governação de Pilatos (Embaixada a Gaio 302). Aliás,
Pilatos acabou por ser demitido do seu cargo devido a ter mandado fazer execuções mal
avisadas em grande escala (Antiguidades 18,88 e segs.). Este testemunho coincide perfeitamente
com a sequência de acontecimentos relatados nos Evangelhos: Jesus compareceu diante de
Pilatos e foi quase imediatamente executado, sem mais testemunhas e sem um julgamento. As
histórias da relutância e da fraqueza de Pilatos explicam-se melhor como propaganda dos
cristãos; elas constituem uma espécie de desculpa para a atitude de Pilatos que diminui o
conflito entre o movimento dos cristãos e a autoridade romana.
A execução
De manhã cedo, na sexta-feira do dia 15 de Nisan, Jesus e dois outros foram levados para fora
das muralhas da cidade, crucificados e
340
deixados a morrer. Apenas alguns seguidores corajosos assistiram ao acontecimento. Jesus
morreu antes do anoitecer da sexta-feira, portanto, mesmo antes do início do sábado. Um
admirador à distância, José de Arimateia, ofereceu um túmulo e Jesus foi sepultado. Algumas
das suas seguidoras assistiram ao enterro. Os seus discípulos, receosos de serem os próximos,
esconderam-se.
As narrativas da crucificação de Jesus estão cheias de citações do Salmo 22 e de alusões ao
mesmo: «repartiram entre si as suas vestes, tirando-as à sorte» (Mc 15, 24) é uma citação do
Salmo 22, 18; «abanando as suas cabeças» (Mc 15,29) é do Salmo 22, 7; o grito de Jesus: «Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Me 15, 34) é do Salmo 22, 1. Tal como é habitual
nestas circunstâncias, não sabemos que elementos fazem realmente parte do acontecimento.
Suponho que ° grito de Jesus foi a sua própria reminiscência do Salmo e não apenas um motivo
introduzido pelos primeiros cristãos. É possível que, quando Jesus bebeu o seu último cálice de
vinho e previu que voltaria a bebê-lo no Reino de Deus, pensasse que o Reino de Deus viria
imediatamente. Depois de estar na cruz durante algumas horas, desesperou e exclamou que
tinha sido abandonado. Esta especulação constitui apenas uma explicação possível. Não
sabemos o que ele estava a pensar quando estava na cruz, em agonia. Morreu, depois de um
período relativamente curto de sofrimento e alguns dos seus seguidores e simpatizantes
sepultaram-no apressadamente.
341
Algumas destas divergências não são difíceis de explicar. O autor de Lucas e dos Atos dos
Apóstolos era um escritor artístico e pensava que repetir-se a si próprio não era de bom gosto
estilístico. Por isso, o Senhor ressuscitado só ficou algumas horas com os discípulos, de
347
acordo com Lucas, e durante quarenta dias, de acordo com os Atos dos Apóstolos. A segunda
narrativa é diferente, para além de que, procura garantir ao leitor que os discípulos sabiam
exatamente o que Jesus queria: ele debateu-o longamente com eles. João 21 constitui um
apêndice, acrescentado, provavelmente, por um autor posterior que queria tratar do difícil
problema resultante do facto de, no tempo em que escreveu, todos os discípulos já terem
morrido (ver pp. 229 e segs.). Uma explicação mais genérica para todos os Evangelhos con-
siste em dizer que os seus autores tinham de apresentar narrativas. Paulo fez uma lista, mas eles
precisavam de histórias. Ao contarem estas histórias, os autores seguiram cada um o seu
caminho. Mas, apesar desta e das outras explicações razoáveis para as disparidades, estamos
perante um problema impossível de resolver. Os seguidores de Jesus tinham a certeza de que ele
tinha ressuscitado, mas não estavam de acordo quanto às pessoas que o tinham visto.
Não considero a fraude deliberada uma explicação útil. Muitas das pessoas que se encontram
nestas listas passariam o resto das suas vidas proclamando que tinham visto o Senhor
ressuscitado e várias delas iriam morrer pela sua causa. Além disso, uma ilusão calculada
deveria ter produzido maior unanimidade. O que parece é que estavam a competir entre si: «Eu
vi-o primeiro!» «Não, fui eu!» A tradição de Paulo, de acordo com a qual houve 500 pessoas
que viram Jesus ao mesmo tempo, levou alguns a sugerir que os seguidores de Jesus sofriam de
uma histeria coletiva. Mas a histeria coletiva não explica as outras tradições. O testemunho de
Paulo parece mais sugestivo a muitos. Ele não distingue aforma como Jesus lhe apareceu da
forma como apareceu aos outros. Se ele teve uma visão, talvez os outros também a tenham tido.
Mas, então, por que razão é que Paulo insiste que viu um «corpo espi- ritual»? Podia ter falado
de «espírito».
348
Na minha opinião, é um facto que os seguidores de Jesus (e, mais tarde, Paulo) tiveram
experiências da ressurreição. Mas não sei que realidade suscitou estas experiências.
Há muitos aspetos do Jesus histórico que permanecerão um mistério. Nada é mais misterioso do
que a história da sua ressurreição, que tenta retratar uma experiência que os próprios autores não
conseguiam compreender. Mas, no meio do mistério e da incerteza, não nos devemos esquecer
de que sabemos muito sobre Jesus. Sabemos que iniciou a sua vida pública sob João Baptista,
que teve discípulos, que esperava o Reino, que foi da Galileia para Jerusalém, fez algo hostil ao
Templo, foi julgado e crucificado. Por fim, sabemos que, depois da sua morte, os seus
seguidores fizeram experiência de algo que descreveram como a «ressurreição»: a aparição de
uma pessoa viva, mas transformada, que tinha realmente morrido. Eles acreditaram nisso,
viveram-no e morreram por isso. Neste processo, criaram um movimento que foi muito para
além da mensagem de Jesus, em muitos aspetos. O seu movimento cresceu e espalhou-se em
termos geográficos. Cerca de vinte e cinco anos mais tarde, Paulo - um convertido, não um
discípulo inicial - continuava à espera do regresso de Jesus durante a sua própria vida. Mas o
Senhor tardou.
O «atraso» levou a uma reflexão teológica criativa e estimulante, que se pode observar
especialmente no Evangelho de João; mas o material sinóptico não foi, de forma alguma, imune
aos desenvolvimentos teológicos. Entretanto, o homem que esteve por detrás de tudo isto
tornou-se remoto. Em consequência disto, é necessário um trabalho preliminar e minucioso para
penetrar através das camadas da devoção cristã e para recuperar o núcleo histórico. A
reconstrução histórica nunca é absolutamente certa e, no caso de Jesus, por vezes, é muitíssimo
incerta. Apesar disso, temos bastante noção das linhas principais do seu ministério e da sua
mensagem. Sabemos quem ele era, o que fez, o que ensinou e porque morreu; e, talvez o mais
importante, sabemos como inspirou os seus seguidores, que, por vezes, não o entenderam, mas
que lhe foram tão fiéis que mudaram a História.
349
Apêndice I: cronologia
O estabelecimento das datas de acontecimentos da Antiguidade é uma tarefa muito difícil, em
parte, porque o mundo mediterrânico antigo não possuía um calendário universalmente aceite. A
maioria dos autores da Antiguidade trabalhava, além disso, sem poder usufruir de arquivos e,
frequentemente, com base em informações orais. Hoje, sabemos mais sobre a sequência de
acontecimentos na Palestina do que Lucas sabia (por exemplo). Podemos comparar Josefo com
fontes romanas e, por vezes, com inscrições. É possível que Lucas dispusesse da obra de Josefo
(isto é uma questão discutida), mas não podia fazer o tipo de cruzamento de dados que os
investigadores modernos podem fazer. Já vimos que ele situa os acontecimentos da primeira
parte do seu Evangelho durante o reinado de Herodes (Lc 1, 5), mas que também datou o
nascimento de Jesus no tempo de um censo ordenado por Quirínio dez anos depois da morte de
Herodes (os acontecimentos deram-se no ano 4 a.e.c e 6 e.c., respetivamente). Isto mostra, pura
e simplesmente, as limitações das suas fontes.
No entanto, neste apêndice, pretendo debater um outro ponto: o ano da morte de Jesus. De
acordo com Lc 3, 1, João Baptista iniciou a sua missão no décimo quinto ano do reinado do
Tibério e Jesus,
351
pouco tempo depois. Tibério sucedeu a Augusto no ano 14 e.c.; portanto, Lucas situa o início do
ministério de Jesus por volta do ano 30. Isto não passa, porém, de um cálculo. Lucas não
escreveu que Jesus iniciou a sua vida pública precisamente um ano depois de João, pelo que a
sua informação não pode dizer quando Jesus morreu. Além disso, não sabemos quanto tempo
durou o ministério de Jesus. Mateus e João mencionam Caifás como o sumo sacerdote que
condenou Jesus (Mt 26, 3; Jo 11, 49; 18, 13 e segs.), e os quatro Evangelhos, assim como os
Atos dos Apóstolos, estão de acordo que Pila tos era o governador romano da Judeia (p. ex., Mt
27,2 & par.; Jo 18,29; Act 3, 13). Isto oferece-nos apenas um leque amplo de datas: Caifás foi
sumo sacerdote entre 18 e 36, Pilatos foi prefeito entre 26 e 36.
As datas que se referem ao ministério de Paulo e sobre as quais temos informações nas cartas do
próprio Paulo e nos Atos dos Apóstolos também são relevantes para a questão da data da morte
de Jesus. A cronologia de Paulo constitui, em si, uma questão complexa e difícil que não vou
tentar explicar. A conclusão geral de muitos estudos é, no entanto, que o ministério de Paulo,
especialmente as referências cronológicas na sua carta aos Gálatas, faz mais sentido se
situarmos a morte de Jesus nos finais dos anos vinte ou no início dos anos trinta e.c. Se
optarmos pelas datas mais antigas ou mais recentes durante a prefeitura de Pilatos (anos 27 e
36), os dados sobre o ministério de Paulo não são muito fáceis de conjugar.
As datas que Lucas apresenta para o início do ministério de João Baptista, o período da
administração de Pilatos e o testemunho derivado da cronologia de Paulo levaram a maioria dos
investigadores a contentar-se com a afirmação de que Jesus foi executado algures entre 29 e 33
e.c.
É possível, contudo, que a astronomia nos possa proporcionar uma data mais precisa. Os
Evangelhos indicam o dia da semana e o mês em que Jesus foi executado. De acordo com os
Evangelhos sinópticos, a execução aconteceu numa sexta-feira, o décimo quinto dia do mês
judaico de Nisan (o dia a seguir à Páscoa). De acordo com João, ele foi executado quando o dia
14 de Nisan (Páscoa) calhou numa sexta-feira.
352
Isto é o mesmo que dizer que algo aconteceu quando a véspera de Natal, dia 24 de Dezembro ou
o dia de Natal, 25 de Dezembro, calharam a uma quinta-feira. Nos últimos anos, tal aconteceu
em 1987, 1992 (24 de Dezembro) e 1986 (25 de Dezembro). Em que anos calharam os dias 14
ou 15 de Nisan numa sexta-feira?
Infelizmente, existem numerosos estudos que não conseguiram decidir a contento de todos. Para
mostrar onde está o problema, terei de explicar o calendário judaico. Este era (e continua a ser)
lunissolar. O ano estava dividido em meses e estes eram calculados estritamente segundo as
fases da Lua. O mês lunar começa com a lua nova e dura cerca de 291/2 dias; por isso, os meses
tinham 29 ou 30 dias. Doze meses deste tipo constituem um ano lunar de cerca de 354 dias, 11
mais curto do que um ano solar sazonal, que é determinado pela posição da Terra em relação ao
Sol. Num ano estritamente lunar, os meses recuam. Os meses começam todos os anos cerca de
11 dias mais cedo do que no ano anterior. Em consequência disso, as festas da Primavera
depressa começam a chegar no Inverno. Para manterem os meses na estação correta, os judeus
«intercalavam» um décimo terceiro mês de dois em dois ou de três em três anos. Por isso,
enquanto a maior parte dos anos tinha 354 dias, alguns tinham 383 ou 384. Num ciclo de
dezanove anos,
353
o número total de dias coincide com o número de dias de um ano solar. É por isso que dizemos
que o calendário judaico é um calendário lunissolar: os meses são lunares, mas o número de
meses é ajustado, a fim de se conseguir compatibilizar o calendário com o ano solar.
Este calendário dá-nos uma perspetiva para considerar o atual calendário ocidental. Nós
ignoramos as fases da Lua. Temos meses, mas os meses não começam com a lua nova se não
por acaso. Em média, os nossos meses têm cerca de 301/2 dias e não 291/2 dias. Doze meses
com 301/2 dias (isto é, seis meses de 30 dias e seis de 31 dias) constituem um ano que é um
tanto longo de mais em termos do ano sazonal. Por isso, há um mês, Fevereiro, que é encurtado.
Mas temos de intercalar um dia de quatro em quatro anos para mantermos os meses na estação
correta. Se não o fizéssemos, o Natal acabaria por começar a chegar no Outono. (Se não fosse o
ano bissexto, cada 120 anos, os nossos meses começariam 30 dias mais cedo no ano sazonal).
Para determinar quando um dia ocorreu em termos astronómicos (de acordo com a inclinação da
Terra no seu eixo e a fase da Lua), temos agora de saber quais foram os anos bissextos.
Podemos projetar o nosso próprio calendário no passado, contando os anos bissextos e atribuir,
assim, datas absolutas a acontecimentos da Antiguidade (isto é, as datas em perfeita
consonância com o calendário ocidental moderno). Teoricamente, também podemos retrojetar o
calendário judaico e, depois, relacioná-lo com o nosso calendário. Para retrojetarmos o
calendário judaico e determinarmos quando o dia 14 ou o dia 15 de Nisan calhou numa sexta-
feira, necessitamos de saber quais eram os meses que tinham 29 dias, quais tinham 30 dias e que
anos foram anos bissextos (duraram 13 meses). Atualmente, os astrónomos podem determinar
quais os meses que deveriam ter tido 29 dias, quais deveriam ter tido 30 dias e que anos
deveriam ter sido bissextos. No entanto, o calendário judaico não se baseava num cálculo
astronómico, mas sim numa observação. Os observadores judeus tinham de olhar para «o pri-
meiro brilho pálido da lua crescente, depois da conjunção com o sol», visto que a lua nova não é
visível, por definição. Não temos possibilidade
354
de de saber nada sobre as condições atmosféricas locais há 2000 anos atrás e estas contribuíram
para determinar o calendário. Os judeus da Antiguidade sabiam quando deviam começar a
observar; a chegada de uma lua nova nunca surpreendeu ninguém, mas, mesmo assim, os obser-
vadores tinham mesmo de a ver. Isto introduz alguma incerteza. Gostaria de citar de um
exemplo do tratamento clássico do tema, retirado de J. K. Fotheringham, que prefere a sexta-
feira, dia 14 de Nisan de 33 e.c., como a data da execução de Jesus. O autor comenta os esforços
dos investigadores para seguirem os sin6pticos e datarem a crucificação numa sexta-feira, dia 15
de Nisan do ano 30 e.c. Fotheringham aceita João e, por isso, acredita que este esforço é inútil.
Em vez disso, ele sugere sarcasticamente o ano 31, mas ao fazê-lo, torna claro o grau de
incerteza:
No ano de 31, o dia 14 de Nisan deve ter calhado a uma terça-feira, dia 27 de Março. Podemos
deslocá-lo para uma quinta-feira, supondo que Nisan começou um mês mais tarde e que o
aparecimento da lua se atrasou devido à existência de nebulosidade ... Os observadores de
eclipses sabem que nunca se pode contar com a ausência de nuvens. Se alguém quer descobrir
um ano que coincida com a data indicada pelos sinópticos, posso certamente aconselhar-lhe
situar Nisan um mês mais tarde e o aparecimento da lua crescente um dia mais tarde no ano 31,
em vez de, tal como Gerhardt; colocar o aparecimento da lua crescente um dia mais cedo, no
ano 30.
Isto dá uma ideia do problema. Quando as datas são fixadas através da observação, existe um
grande leque de possibilidades, algumas mais prováveis do que outras.
Quando as autoridades na Antiguidade fixaram a data da Páscoa, tiveram de tomar em
consideração não s6 a visibilidade da Lua, mas também a estação, determinada pela temperatura
e pelo crescimento dos cereais. A Páscoa tinha de calhar na Primavera. Durante a Festa dos
Ázimos, que se seguia à Páscoa, concretamente, eram oferecidos no Templo os primeiros frutos
da cevada. Os sacerdotes poderiam
355
intercalar um mês adicional, se temperaturas demasiado baixas para a estação do ano
significassem que a cevada não podia ser apresentada durante a festa.
Se os judeus da Antiguidade tivessem fixado os meses e os anos através de um cálculo
astronómico e se tivéssemos de escolher entre a cronologia de João e a cronologia dos
sinópticos com base no nosso cálculo astronómico, escolheríamos João. Dadas as duas
possibilidades para o dia do mês (sexta-feira, dia 14 de Nisan, e sexta-feira, dia 15 de Nisan) e
dado o intervalo de anos estabelecido pelo testemunho literário (29-33 e.c.), a melhor escolha,
em termos astronómicos, é a sexta-feira, dia 14 de Nisan do ano 33 e.c. (que corresponderia ao
dia 3 de Abril no nosso calendário)." Mas, na realidade, não podemos ter a certeza de que a
retroprojeção astronómica moderna para o calendário judaico coincide com o cálculo de datas
realizado de facto no século I. A cronologia dos sinópticos não pode ser confirmada pela
astronomia, mas também não pode ser refutada. A maioria dos investigadores continua a aceitá-
la por causa da forte coincidência entre a cronologia do quarto Evangelho e a sua cristologia:
Cristo era o cordeiro pascal. Isto leva a suspeitar que foi João que alterou o dia da execução.
Consideremos, agora, outro tipo de leitura de algumas das provas literárias que levou alguns
investigadores a decidirem-se por uma data posterior para a execução de Jesus, concretamente,
o ano 35 ou 36. Esta teoria que teve alguma divulgação em décadas anteriores, foi recuperada
recentemente por Nikos Kokkinos." A prova diz respeito à data de João Baptista. De acordo
com Me 6, 14-29 (com passagens parcialmente paralelas em Mateus e Lucas), Antipas pensava
que Jesus podia ser João Baptista ressuscitado. A passagem esclarece que Antipas mandou
executar João porque este tinha criticado o seu casamento com Herodíade. Me 1, 14 / / Mt 4, 12
situa o início do ministério público de Jesus imediatamente depois da prisão de João (Marcos)
ou
356
quase em simultâneo com a prisão deste (Mateus). Portanto, de acordo com os Evangelhos, a
sequência foi a seguinte: João batizou Jesus; João foi preso; Jesus começou o seu ministério;
João foi executado; Jesus foi executado.
Os investigadores que datam a execução de Jesus no ano 36 observam que Josefo narra o
casamento de Antipas com Herodíade depois da história da morte de Filipe, irmão de Antipas,
que ocorreu no final do ano de 3S ou no início do ano 34. Este casamento levou Aretas a invadir
a Galileia e provocou a derrota do exército de Antipas. Vitélio, o legado romano da Síria,
comandou uma expedição punitiva contra Aretas. Esta expedição ocorreu em 37, porque foi
interrompida pela morte de Tibério nesse mesmo ano." De acordo com os Evangelhos, a crítica
que João fez ao casamento de Antipas levou à sua execução. Se Antipas casou com Herodíade
depois de 34 e.c., é óbvio que João foi executado depois desta data. Isto leva à conclusão de que
a vida pública de Jesus se situa em meados dos anos trinta e que ele foi executado em 36, pouco
antes de Pilatos ter sido chamado a regressar a Roma. De acordo com esta teoria, tanto João
como Jesus têm de ser situados no período de tempo entre a morte de Filipe, que ocorreu em 33
ou 34, e a expedição de Vitélio, em 37.
O que é problemático nesta teoria é que, nesta secção das Antiguidades de Josefo, muitas das
histórias não estão ordenadas cronologicamente. Elas são introduzidas por expressões como, por
exemplo, «naquela altura», «mais ou menos na mesma época» e «entretanto». Vejamos a
sequência em que Josefo menciona as pessoas e os acontecimentos que nos interessam, assim
como alguns outros acontecimentos que podem ser datados com segurança. Coloco entre
parênteses as datas para as quais existem provas cronológicas muito fortes.
1. nomeação de Pilatos, Antiguidades 18, 35 (26 e.c)
2. morte de Germanicus, 18, 54 (19 e.c.)
3.. vida de Jesus, 18,63
357
4. escândalo em Roma por causa do culto de Ísis e um outro escândalo que envolveu judeus,
também em Roma, 18, 65-85 (19 e.c.)
5. demissão de Pila tos, 18, 89, indicando uma data específica: quando Pilatos chegou a Roma,
Tibério já tinha morrido (37 e.c.)
6. destituição de Caifás, 18, 95
7. carta de Tibério a Vitélio, 18,96
8. morte de Filipe, 18, 106 (33/34 e.c.)
9. acordo de Antipas para o casamento com Herodíade, 18, 110
10. viagem da filha de Aretas ao encontro do seu pai, 18, 111-113
11. invasão de Aretas, 18, 114
12. morte de João Baptista, 18, 116-119
13. expedição punitiva contra Aretas durante a qual Tibério morreu, 18, 120-126 (37 e.c.)
Na narrativa de Josefo, a vida de Jesus situa-se entre dois acontecimentos ocorridos em 19 e.c. e
a execução de João, entre acontecimentos sucedidos em 33 e 37 e.c. A sugestão de que a vida
pública de Jesus decorreu entre cerca de 34 e 36 requer que acreditemos que Josefo situa a
morte de João Baptista na data correta, mas não a vida de Jesus. Para a vida de Jesus, temos de
aceitar a ligação entre João e Jesus estabelecida pelos Evangelhos. Como «conhecemos» a data
da morte de João, temos de deslocar a vida pública de Jesus para mais tarde.
Não surpreende que alguns investigadores tomem o caminho oposto: conhecemos a data da
morte de Germanicus - ano 19 e.c. Há outros acontecimentos nesta secção das Antiguidades que
também podem ser datados, com toda a certeza, no período entre 15 e 19 e.c. A nomeação de
Pilatos precede este acontecimento, na narrativa de Josefo, portanto, ele foi nomeado antes 19
e.c .. Por conseguinte, a vida pública de Jesus ocorreu muito antes de 26-36. Na realidade, ele
foi crucificado em 21 e.c,"
358
Estas teorias partem ambas do princípio de que há uma parte do Livro 18 das Antiguidades de
Josefo que situa os acontecimentos na sua sequência real, mas não estão de acordo entre si em
relação à parte de que se trata. 10 Seja como for, a carroça vai à frente dos bois. Há um ponto
fixo que oferece uma data precisa para as histórias contíguas e, depois, o resto da prova é
forçada a adaptar-se. Para a teoria segundo a qual Jesus morreu pouco tempo antes de 37, Josefo
refere-se à sua vida demasiado cedo. Para a teoria segundo a qual ele morreu em 21, Josefo
refere-se a João Baptista demasiado tarde. De acordo com ambas as teorias, ele estava certo no
que diz respeito a um dos acontecimentos e completamente errado no que diz respeito a outro.
Em vez de permitirmos que um ponto supostamente fixo determine a data de todos os outros
acontecimentos, deveríamos recuar e olhar para a prova em termos mais gerais. Nesta parte da
sua obra, Josefo não está a narrar acontecimentos na sua ordem cronológica exata. Tibério
morre, depois escreve uma carta e, depois, morre (ver 5, 7 e 13). Uma parte da sequência é
casual (à exceção de que tudo está relacionado com o período de governação de Tibério), tanto
quanto posso dizer, mas uma parte é temática. O ponto 4, já referido, aparece onde está porque
termina com uma tentativa de Roma para forçar os judeus a servirem num exército que era
contra a lei relativa ao sábado (18, 84). Isto relaciona-se vagamente com uma das afrontas de
Pila tos à Lei judaica, relatada por Josefo em 18, 60-62. Por isso, um acontecimento do ano 19
(escândalos em Roma) parece ter ocorrido entre 26 e 36 (a prefeitura de Pilatos na Judeia). No
entanto, os escândalos de 19 e.c. estão fixados por fontes romanas de uma forma demasiado
clara para permitir que a colocação que Josefo faz dos mesmos iluda os biblistas. É óbvio que
Jesus e João Baptista não podem ser datados com exatidão através de fontes romanas, visto que
o seu impacto imediato foi demasiado insignificante, pelo que podem ser deslocados, no caso de
se supor que existe alguma sequência de Josefo que seja exata.
359
Gostaria de fazer mais alguns comentários à teoria de Nikos Kokkinos, assumida recentemente
pelo eminente historiador Robin Lane FOX.II Como vimos, o argumento fundamental de
Kokkinos é que, nas Antiguidades, a história sobre João Baptista aparece depois da morte de
Filipe e antes da expedição contra Aretas, dois acontecimentos que podem ser datados com
precisão: 33/34 e 37, respetivamente. Não há dúvida de que a expedição punitiva contra Aretas
se relacionou com o facto de Antipas ter decidido casar com Herodíade. A sequência deve ter
sido a seguinte: Antipas planeou levar Herodíade para a Galileia; a sua primeira mulher, filha de
Aretas, fugiu para o seu pai; Aretas invadiu a Galileia; as tropas romanas na Síria
desencadearam uma expedição punitiva contra Aretas. É razoável pensar que o novo arranjo
doméstico de Antipas tenha ocorrido imediatamente antes da invasão de Aretas. Se João
Baptista criticou o novo casamento, e se Aretas respondeu prontamente, quando a sua filha foi
substituída, então João estava vivo muito próximo do ano 37. Kokkinos, seguindo esta linha de
raciocínio, escreve: «logo que a aliança entre os dois reis [Antipas e Aretas] foi quebrada [pelo
divórcio], Aretas utilizou o pretexto de uma disputa fronteiriça e declarou guerra a Antipas»;
Esta especulação é plausível no que diz respeito ao divórcio e à retaliação de Aretas. Mas trata-
se de uma especulação. Não sabemos o que significa «logo que»: esta é a questão, não
necessariamente a resposta. Josefo escreveu que a filha de Aretas «chegou ao seu pai e contou-
lhe o que Herodes [Antipas] planeava fazer. Aretas iniciou assim hostilidades fronteiriças no
distrito de Gamalas. «Iniciou assim» não significa necessariamente «logo que»; pelo contrário, é
de supor que tenha passado algum tempo entre o divórcio e a guerra. O segundo argumento que
Kokkinos apresenta para defender a sua teoria é que os judeus
360
consideraram a derrota de Antipas uma vingança justa por causa de ele ter mandado executar
João. «É enganador argumentar que os judeus tinham consciência de que a vingança de Deus
não ocorria imediatamente depois do ato. Circunstâncias no passado recente mais do que no
passado distante levariam mais provavelmente os judeus a falar de uma punição divina.»!"
Trata-se, em parte, de pura suposição e, em parte, de um argumento fraco. Não seria enganador
dizer que os judeus pensavam que a vingança de Deus tardava, se fosse isso que eles pensavam.
Kokkinos parece imaginar que eles tinham escolha e decidiam a favor de uma retribuição
rápida, em vez de uma retribuição demorada. Mas, como João era muito respeitado e a sua
execução foi extremamente impopular, aqueles que condenaram a ação de Antipas teriam
esperado que lhe acontecesse algo de facto sério, antes de declararem que Deus tinha vingado
João. Teria sido desejável um golpe imediato, deste ponto de vista, mas os muitos admiradores
de João tinham de aceitar aquilo que podiam receber. Se a pior coisa que aconteceu a Antipas
durante os cinco anos seguintes foi torcer o tornozelo ao sair do banho, então a multidão teria
esperado que lhe acontecesse algo pior. Quando Aretas derrotou o exército de Antipas, aqueles
que tinham estado à espera - não sabemos durante quanto tempo - declararam que Deus tinha
retribuído.
É preferível pensar que a história de Antipas, de Herodíade e da execução de João é um
«regresso ao passado», fora da sua sequência histórica." De facto, é bastante óbvio que a
história da execução de João é um «regresso ao passado»: Josefo refere-se a ela depois do acon-
tecimento que é suposto ter sido provocado por ela. Josefo ordena o material de toda esta parte
(9-13) por temas; isto explica por que motivo a história de Herodíade, a invasão de Aretas e a
execução de João aparecem tão seguidas. A sua proximidade na narrativa de Josefo não
prova, de modo algum, que elas tivessem ocorrido, de facto, numa sequência rápida. Retomando
a lista apresentada anteriormente, vemos que os acontecimentos datáveis se encontram referidos
nos números 8 e 13. Os acontecimentos mencionados nos números 9-12 aparecem onde estão
porque se relacionam com o número 13, do ponto de vista
361
temático. Não sabemos se estes acontecimentos podem ser todos concentrados no período entre
8 e 13.16 Por conseguinte, não sabemos quando Antipas encontrou Herodíade, quando a sua ex-
mulher fugiu para o seu pai e quando João foi executado.
Não estou a tentar provar ou refutar uma data ou outra. A minha intenção foi dar ao leitor uma
«ideia» das dificuldades históricas que as nossas fontes apresentam, assim como ilustrar como
as pessoas podem agarrar-se a um ponto, tentando adaptar tudo a ele. Fazemos melhor se
aceitarmos que as fontes estão corretas em termos mais gerais. Isto permite que não só uma
delas, mas mesmo todas sejam imprecisas ou erradas em alguns pormenores. A cronologia
oferece o melhor exemplo para isso. A sequência de datas não importa realmente para a nossa
compreensão da vida de Jesus, desde que situemos a sua morte durante o período em que Pilatos
era prefeito (26-36 e.c.). A precisão das datas é, de facto, mais importante quando se estuda a
igreja primitiva, incluindo a vida de Paulo, visto que necessitamos de saber quanto tempo temos
de conceder para o desenvolvimento do cristianismo primitivo. Para termos um número redondo
conveniente, e tendo em conta que não podemos ter a certeza, aceitarei o ano 30 e.c. como
sendo, aproximadamente, o ano da morte de Jesus.
362
João
Natanael
Isto perfaz catorze nomes. Além disso, Marcos e Lucas referem
Levi como um cobrador de impostos que seguiu Jesus.
364
lindice
Abreviaturas----------------------------------------------------------------------------------- 7
Tabela cronológica -.--------------------------------------------------------------------------9
Prefácio ---------------------------------------------------------------------------------------11
1 Introdução ----------------------------------------------------------------------------------15
2 Esboço da vida de Jesus -------------------------------------------------------------------25
3 Situação política ----------------------------------------------------------------------------31
4 O judaísmo como religião -----------------------------------------------------------------55
5 Fontes externas -----------------------------------------------------------------------------75
6 Os problemas das fontes primárias -------------------------------------------------------85
7 Dois contextos -----------------------------------------------------------------------------109
8 O cenário e o método do ministério de Jesus -------------------------------------------133
9 O início da missão de Jesus ---------------------------------------------------------------151
10 Milagres -----------------------------------------------------------------------------------173
11 A vinda do Reino -------------------------------------------------------------------------217
365
12 O Reino: Israel, gentios e indivíduos ----------------------------------------------------241
13 O Reino: inversão de valores e perfeccionismo ético ----------------------------------249
14 Controvérsia e oposição na Galileia -----------------------------------------------------259
15 A forma como Jesus encarava o seu papel no plano de Deus -------------------------297
16 A última semana de Jesus -----------------------------------------------------------------311
17 Epílogo: a ressurreição --------------------------------------------------------------------341
18 Apêndice I: cronologia --------------------------------------------------------------------351
19 Apêndice Il: discípulos de Jesus ---------------------------------------------------------363
366