Dissertação Inês Costa Neves
Dissertação Inês Costa Neves
Dissertação Inês Costa Neves
Mestrado em Direitos
Mestrado em Direito
Aos meus pais, pelos infinitos esforços dedicados ao meu sucesso e pelo amor, que
me ensina o significado de entrega incondicional e que não me permitiu, em momento
algum, sucumbir nos momentos mais frágeis.
Ao meu irmão Gonçalo, cuja irreverência reflete um diálogo saudável com o seu
forte sentido de determinação e disciplina e que será sempre alvo da minha maior
admiração. E ao Frederico, a minha mais recente fonte de inspiração.
A toda a minha família. Nomeadamente aos meus tios, que de inúmeras formas
apoiaram o meu percurso e me deram a conhecer o significado que as palavras família e
dedicação devem ter.
Aos meus amigos e, que veem em mim o meu melhor e me inspiram a evoluir
todos os dias. Em especial à Sarah, que não me permitiu deixar de acreditar, à Marta,
minha companheira nesta luta e Ser que eu tanto admiro, e à Isabel, cujo apoio e amizade
tanto me acrescentaram.
Por fim, e de forma especial, ao Professor José Alberto Azeredo Lopes, pela sua
orientação e pela tremenda sensibilidade e compreensão. E também por todas as críticas,
que me levaram a querer fazer melhor.
Cientes dos grandes desafios que a situação ambiental global exige à humanidade,
propusemo-nos, com a presente dissertação, a analisar duas abordagens de Direito à
proteção ambiental. Uma - tradicional e dominante - antropocêntrica, e outra - recente e
inovadora - biocêntrica, à qual dedicámos atenção central.
Aware of the great challenges that the global environmental situation demands of
humanity, we have proposed ourselves, with the present dissertation, to analyze two
approaches of Law to environmental protection. One - traditional and dominant -
anthropocentric, and another - recent and innovative - biocentric, to which we have given
central attention.
With the cases study, namely from Ecuador and Bolivia, where the proposal was
pioneered, and from other countries, where it was also embraced, but less integrated or,
if we wish, complete, we inquired some legal repercussions of this proposal.
INTRODUÇÃO …………………………………………………………………………9
2.1 O Antropocentrismo………………………………………………………….13
2.2 O Biocentrismo………………………………………………………………17
internacional……………………………………………………………………23
2.2 A Jurisdição…………………………………………………………………….33
CONCLUSÃO………………………………………………………………………….45
BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………….46
INTRODUÇÃO
Num artigo3 elaborado por uma equipa de cientistas liderada por Johan Rökstrom,
apresentada infra, afirma-se que, apesar da evidência de uma aceleração das pressões
antropogénicas nos processos biofísicos do sistema terrestre, os atuais paradigmas de
governação e gestão globais carecem de um posicionamento eficaz, que reconheça e atue
sobre estes riscos planetários. A equipa sugere, desde o atual contexto dos limites
planetários por eles exposto, a necessidade de novas e adaptativas abordagens
governativas na escala global, regional e local.
1
Ver relatório de síntese sobre as últimas informações cientificas sobre o clima, elaborado pelo Grupo
Consultivo de Ciência da Cimeira de Ação Climática das Nações Unidas 2019, disponível em:
https://ane4bf-datap1.s3-eu-west-1.amazonaws.com/wmocms/s3fs-
public/ckeditor/files/United_in_Science_ReportFINAL_0.pdf?XqiG0yszsU_sx2vOehOWpCOkm9RdC_
gN
2
ONU, “Cientistas alertam que mudanças climáticas estão acontecendo ‘antes e pior’ do que o previsto”,
in: https://nacoesunidas.org/cientistas-alertam-que-mudancas-climaticas-estao-acontecendo-antes-e-pior-
do-que-o-previsto/. Consultado a: 10/Out/2019
3
ROCKSTÖRM, 2009.
9
reconhecimento destes direitos. Ordenadamente: o antropocentrismo, o biocentrismo, e a
influência indígena. Num segundo capítulo, abordamos a aplicabilidade dos ditos direitos,
primeiro desde algumas manifestações tendentes ao seu reconhecimento à escala global
e, depois, pelo seu estudo a partir dos casos do Equador e da Bolívia. Apresentamos ainda
nesse segundo capítulo casos onde o seu reconhecimento se deu de forma específica e
isolada, e por fim, refletimos sobre alguns obstáculos a uma integração biocêntrica destes
direitos.
10
CAPÍTULO I - Pensar os Direitos da Natureza
Ainda nenhum Acordo Global sobre Direitos Humanos (doravante, DH), até hoje,
inclui explicitamente um direito ao meio ambiente são. Porém, nas últimas duas décadas
muitos organismos de DH interpretaram direitos universalmente reconhecidos, como o
direito à vida ou à saúde, como fonte de obrigação dos Estados de tomar medidas de
proteção ambiental com vista à fruição desses direitos. Isto levou a um acelerado greening
dos DH. Em 1990, na sequência de uma reunião de Associações de Direito Ambiental,
4
BORRAS, 2016, p. 115.
5
Para Crespo o direito ambiental começa a ganhar forma com a Carta Magna do direito ambiental norte
americano, o National Environmental Political Act (NEPA). Já Raúl Brañes, afirma que este ramo é tão
antigo como a humanidade, já que as civilizações antigas já estipulavam normas que regulavam as relações
com o meio ambiente. PLAZA, 2003, p. 13; BRAÑES, 1994, p. 36.
6
BORRAS, 2016, p. 98.
7
Reconhece, no seu princípio 1, que “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao
desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma
vida digna e gozar de bem estar” e que, em contrapartida, tem “a solene obrigação de proteger e melhorar
o meio ambiente para as gerações presentes e futuras.” Esta ideia é também expressa no Preâmbulo da
Declaração.
11
em França, foi adotada uma Declaração que recomendava o reconhecimento claro e
explícito, internacional e nacionalmente, do direito do homem ao ambiente8. A
Constituição portuguesa de 1976 foi a primeira a adotar um direito a um meio ambiente
humano são e ecologicamente equilibrado, no seu artigo 66, ao qual corresponde uma
série de obrigações destinadas à sua proteção9.
8
Sobre a Declaração de Limoges, RONCONI, 2012. Ainda neste ano, a Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento fez uma proposta de Princípio Legal “Todos os seres humanos têm o direito
fundamental a um meio ambiente adequado à sua saúde e bem estar”; BORRAS, 2016, p. 117.
9
BORRAS, 2016, p. 124; “Artigo 66º CRP - (Ambiente e qualidade de vida) 1. Todos têm direito a um
ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. (…)”.
10
Ver UN Doc. A/RES/45/94, disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/45/94
11
Ex.: Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países
Independentes, Genebra (Suiça), 27 Junho 1989, em força 5 Set. 1991, disponível em:
https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C169;
Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), Nova Iorque (EUA), 9
Maio 1992, em força 21 Mar. 1994, disponível em: https://unfccc.int/resource/docs/convkp/conveng.pdf;
Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), Rio de Janeiro (Brasil), 5 Junho 1992, em força 29 Dez.
1993, disponível: https://treaties.un.org/doc/Treaties/1992/06/19920605%2008-
44%20PM/Ch_XXVII_08p.pdf (Neste documento faz-se referência ao valor intrínseco da biodiversidade);
12
Quanto ao desacordo relativo ao significado que “ambiente” deveria ter no ramo do direito ambiental,
existem pelo menos três posições a respeito: uma posição restritiva, que considera que o ambiente é
composto pelos recursos naturais, a água e o ar; uma posição moderada, com a qual partilhamos a
perspetiva, que engloba no conceito todo o ambiente onde tem lugar o desenvolvimento de seres vivos,
adicionando-lhe a fauna e a flora; e uma posição ampla, patente nas Declarações do Rio de Janeiro de 1992,
que o define como todo o ambiente que rodeia os seres humanos, seja ele natural, artificial ou social.
RODRIGUEZ, 2014, p. 99.
13
BORRAS, 2016, p. 127.
12
impessoal, indiferenciado” e em certas ocasiões “dano futuro incerto”14. A justiça
ecológica, sustentada pelos Direitos da Natureza (doravante DN), discorre em paralelo e
é distinta da justiça ambiental, na medida em que a Natureza passa a ser sujeito de direitos,
e o papel da justiça o de garantir a sua integridade e restauração, quando afetada, ao invés
de se focar na proteção dos DH face a danos ambientais que os afetem. Com este critério,
exige-se a reintegração do ambiente danificado, através de procedimentos de restauração,
remediação ou recuperação, ao invés da típica compensação pela imposição de multas15.
2.1 O Antropocentrismo
14
RODRIGUEZ, 2014, p.100 (traduzido pela autora).
15
GUDYNAS,2011a, pp. 273, 274.
16
ABIDIN, LAPENTA, 2007, p. 13. Ainda que outros autores nos digam que o foco primordial do direito
ambiental seja o de prevenir e remediar apenas problemas ambientais que diretamente afetem o ser humano,
ou numa necessidade de demonstrar, para fins de proteção ambiental, uma afetação direta do ser humano
- BRUCKERHOFF, 2008, pp. 618, 628. A este respeito, consideramos que o conceito de afetação poderá
se referir a um nexo causal do dano, ou do eventual dano, claro e visível - que se terá que verificar
igualmente, ainda que de forma reduzida, nos casos de afetação indireta ou mediata. Considera-se que
poderá haver afetação clara e visível, tanto por danos que possam afetar gerações presentes ou aqueles que
cujos efeitos se manifestem em gerações futuras. Quanto a estes últimos, julgamos ser a eles que os
primeiros autores se referem aquando da utilização da terminologia “afetação indireta”, e que, portanto,
estão também abrangidos pela referida “afetação direta” expressa pelo segundo autor de forma mais
extensiva. Na nossa perspetiva, ambos os autores apontam para uma circunscrição da proteção ambiental
aos casos onde se verifique esse tal nexo claro e visível. Seja como for, o enfoque antropocêntrico do direito
ambiental estará no interesse humano que justifica e motiva a proteção ambiental.
17
GUDYNAS, 2011a, p. 259. O processo de mudança cultural europeia, marcado pela eleição do
antropocentrismo como perspetiva dominante no Ocidente desde o séc. XV, afincou a conceção do ser
humano como algo exterior à natureza, definindo-se aquele em contraposição a esta. ACOSTA, 2012, p.
29. Francis Bacon e René Descartes foram dois filósofos e pensadores que abandonaram a perspetiva
predominante organicista da Idade Média. Estes pensadores determinaram fortemente o pensamento
ocidental que passou a conceber uma Natureza separada da sociedade humana, a partir de uma racionalidade
13
influências do pensamento de Kant, que justificaram a construção antropocêntrica do
Direito. Abordando a capacidade de auto legislação do ser humano, liberdade que traduz
em autonomia – aquilo que diferencia seres racionais e lhe garante dignidade intrínseca,
o autor distingue pessoas de coisas. Na primeira categoria encaixa-se aquilo que tem valor
por si mesmo, e tem-no por ser dotado de racionalidade, atributo exclusivo dos seres
humanos. Portanto, coisa será tudo aquilo que não detenha racionalidade e, por isso, deixa
de ser considerado um fim em si, passando a ser um meio. A uma coisa, ao invés de
dignidade, corresponde um preço. Esta lógica teve preponderância na teorização do
Direito Moderno Ocidental18. Para esta aceção jurídica só o Homem, considerado
individualmente ou em conjunto, pode ser sujeito de direitos. Desde a Teoria do Direito
podemos atribuir, então, ao modelo antropocêntrico o conceito Natureza-objeto, em
oposição à Natureza-sujeito associada ao modelo biocêntrico. A Natureza-objeto reflete
uma visão jurídica da natureza na sua forma de coisa, passível de ser apropriada e
economicamente utilizada afim de satisfazer os fins da humanidade19.
dualista, agora entendida em função da forma como poderia ser útil e manipulada pelo e para o ser humano-
resultando numa perspetiva antropocêntrica. GUDYNAS, Eduardo 2010ª, pp. 268, 269.
18
JÚNIOR, 2014, p.31
19
RODRIGUES, 2013, p. 120. Para Kant, “(n)o reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade.
Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando
uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade”, KANT,
1785, p.78.
20
Lembrar que o conceito dado ao termo “Natureza” deriva de uma construção social, é um produto
cultural, GUDYNAS, 2011a, p. 262, podendo, portanto, ser concebido de diversas formas, que nem sempre
coincidem. Seja como for, para consideração dos Direitos da Natureza, entenderemos o conceito num
sentido amplo, que abarca todas as estruturas capazes de cumprir e integrar uma função ecológica.
21
GUDYNAS, 2011a, pp. 259, 260 (traduzido pela autora).
14
manipulação22. Esta ideia, que coloca o ser humano tanto por fora da Natureza como
acima dela, e de que esta é valiosa, na medida em que for valiosa para o ser humano,
chega à América Latina como uma imposição cultural europeia perante os povos
nativos23.
22
No entanto, é necessário considerar que esta ideia é mais a interpretação que é feita de Descartes que uma
ideia defendida pelo autor. Se Descartes evoca a possibilidade, pelo homem, de se tornar «como mestre e
possessor da natureza», no Discurso do método, a questão está então em compreender o significado do
comparativo «como». Descartes não defende nenhuma “desnaturação”, na medida em que o homem não é
mestre das leis da natureza, nem tem a possibilidade de transformá-las (dado que estas são uma instituição
divina). Trata-se, melhor, de um incentivo para conhecer estas leis, de maneira a puder agir no mundo por
elas regido, sem as ultrapassar. Ser mestre e possessor da natureza é antes de tudo conhecer as suas leis e
agir nos seus limites. Menos que um incentivo para manipular a natureza de maneira a transformá-la, trata-
se mais, no pensamento de Descartes, de um incentivo ao seu conhecimento, o qual define os limites da
ação humana possível. (Interpretação retirada da aula de Jean-François Surrateau, dada no Lycée Henri IV
em Paris, 2016)
23
GUDYNAS, 2010a, p. 269.
24
Ainda que na veste de pessoas coletivas, entidades públicas ou qualquer entidade formada por indivíduos
e reconhecida pelo Estado como detentora de direitos e deveres, sendo que o Estado é, ele próprio, dotado
de personalidade jurídica.
A partir do momento em que se atribui personalidade jurídica independente e diferenciada às entidades
relativamente à(s) pessoa(s) física(s), membro(s) e representante(s) dessa entidade, a personalidade jurídica
deixou de ser uma caraterística inerente às qualidades do ser humano para ser um instrumento de proteção.
Neste sentido, releva considerar a utilização deste instrumento para a atribuição de maior proteção à
Natureza.
25
RODRIGUEZ, 2014., p. 101, 102.
26
Ibidem, p. 100.
27
WALDMÜLLER, 2015, p. 8.
15
antropogenia, mas que há que se lhe acrescentar a componente utilitarista daquilo que é
valorado28.
A própria Igreja Católica veio já, com a Carta Encíclica Laudato Si’ do Papa
29
Francisco “Sobre o Cuidado da Casa Comum” , expor, no seu ponto três, o
antropocentrismo que
Ainda assim, tendo que a espécie humana é a única que possui a consciência para
reconhecer a moralidade de direitos, e que os interesses e deveres desta são, no nosso
entendimento, inseparáveis33 da proteção da biodiversidade e do meio ambiente, é
imprescindível aceitar que um certo grau de antropocentrismo pode ser indispensável à
proteção ambiental34, e que esta aceitação não contraria os interesses da biodiversidade
28
A valoração é um ato unicamente humano, inerente ao indivíduo cognoscente, volitivo e racional. Por
isto se fala de antropogenia quando nos referimos ao ato de valorar. O que não significa que o valor em si,
embora sempre antropogénico, seja necessariamente antropocêntrico e instrumental. Esse valor pode
transcender o interesse humano egoístico e considerar aquilo que é valorado por si mesmo. GUDYNAS,
2011a, pp. 250, 251; COCKS, SIMPSON, 2015, p. 218.
29
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
30
Considere-se aqui a afetação expressa num vínculo causal visível e claro, já debatida em ponto anterior.
31
TAYLOR, 1998, pp. 351-352; BORRAS, 2016, p.128.
32
BRUCKERHOFF, 2008, p. 624. Consideramos adequado articular esta ideia com a expressa pelo
princípio de direito, por nós conhecido, periculum in mora. Enquanto princípio impulsionador de uma
atuação urgente do Direito afim de assegurar o seu fim primordial, esta ideia, destacada do âmbito da
proteção cautelar, poderá servir a integração no direito de uma proteção biocêntrica do meio ambiente.
33
Relativo ao nexo entre a proteção da biodiversidade e a proteção de direitos humanos, consultar:
BRUCKERHOFF, 2008, pp. 619-621.
34
BORRAS, 2016, p. 128.
16
ou Natureza, nem ameaça o reconhecimento do valor intrínseco da mesma. Mas
implicaria um desenvolvimento da compreensão e assimilação do que é “interesse
humano” em moldes biocêntricos.
Seja como for, uma postura crítica relativa à atribuição e conceção de direitos, bem
como à teoria e prática dos direitos ambientais, abre portas para um ponto de partida
concetual para a consideração de abordagens jurídicas alternativas de proteção ambiental.
2.2 O Biocentrismo
35
MARTINEZ, 2017, pp. 2942, 2943.
36
RODRIGUEZ, 2014, p. 102.
37
RECASENS, 2014, p.62.
38
GUDYNAS, 2011a, p. 247.
39
Ibidem, p. 245.
17
um objeto ou conjunto de objetos que serve como meio para o alcance de fins humanos,
para ser tomada como um sujeito de direitos40.
40
Ibidem, p. 246.
41
BORRAS, 2016, p. 129.
42
Ibidem; GUDYNAS, 2011a, p. 270.
43
GUDYNAS, 2011a, pp. 263, 264.
44
Conceitos similares cuja construção histórica se deu pelos povos indígenas da área andina da américa do
sul. Faz referência à consecução de uma vida plena, uma boa vivência regida pelos princípios da harmonia
e do equilíbrio com o todo que é a vida. SIMBAÑA, 2011, p.222.
45
Respetivamente de 2008 e 2009, sumak kawsay em língua quíchua e suma qamaña em língua aymara.
BLANCO, 2017, p. 56.
18
milenares46. No preâmbulo da Constituição da Bolívia de 2009, a recuperação da ordem
pré-colonial estabelecida pelos povos indígenas, nomeadamente no que respeita à relação
do Homem com a Natureza, bem como a abertura para a integração da pluralidade cultural
do país, são asserções claras47. A forma das culturas indígenas andinas conceberem as
relações entre seres humanos e a natureza não pode ser compreendida à margem do Buen
Vivir- cosmovisão milenar que tem procurado se redefinir, afim de se afirmar como
alternativa ao modelo de desenvolvimento atual. É esta noção, a do sumak kawsay para
os povos originários andinos equatorianos e suma qamaña para os povos originários
andinos bolivianos, que nos dá o referencial de reconhecimento de direitos da natureza,
já que este é requisito para o seu alcance48.
46
Ibidem, pp. 56-57.
47
“En tiempos inmemoriales se erigieron montañas, se desplazaron ríos, se formaron lagos. Nuestra
amazonia, nuestro chaco, nuestro altiplano y nuestros llanos y valles se cubrieron de verdores y flores.
Poblamos esta sagrada Madre Tierra con rostros diferentes, y comprendimos desde entonces la pluralidad
vigente de todas las cosas y nuestra diversidad como seres y culturas. Así conformamos nuestros pueblos,
y jamás comprendimos el racismo hasta que lo sufrimos desde los funestos tiempos de la colonia.”
Constituição Política do Estado da Bolívia, de 2009, disponível in:
https://www.oas.org/dil/esp/Constitucion_Bolivia.pdf
48
MURCIA, 2011, p. 295.
Na Constituição do Equador de 2008, o sumak kawsay concretiza-se numa nova forma de convivência
cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, no respeito, em todas as dimensões sociais, pela
dignidade de todas as pessoas e coletividades. Este princípio é expresso noutros preceitos constitucionais,
“El buen vivir requerirá que las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades gocen efectivamente de
sus derechos, y ejerzan responsabilidades en el marco de la interculturalidad, del respeto a sus
diversidades, y de la convivencia armónica con la naturaleza” (art. 275º); “Para la consecución del buen
vivir, serán deberes generales del Estado: 1. Garantizar los derechos de las personas, las colectividades y
la naturaleza” (art. 277º). Daqui se retira a relação entre o reconhecimento biocêntrico dos Direitos da
Natureza e o da cultura dos povos indígenas andinos.
49
SANTOS, 2012, p. 39.
19
o debate autorreferente das perspetivas antropocêntricas e biocêntricas na compreensão
do procedimento. Para o intelectual indígena equatoriano Floresmilo Simbaña,
A vida humana não pode persistir sem a natureza. Por isto dentro do conceito
de sumak kawsay subjaz o conceito de Pachamama, que faz referência ao universo,
como a mãe que dá e organiza a vida. Portanto garantir a boa vivência da sociedade,
implica considerar a Natureza como “sujeito.50
Apesar de entendido por alguns como construção abstrata ou moral individual capaz
de gerar obrigações somente no que diz respeito à redistribuição dos benefícios do
desenvolvimento, o sumak kawsay aspira a bem mais do que isso. A sua integração num
ordenamento jurídico exige uma verdadeira restruturação do modelo socioeconómico
para que funcione na sua plenitude51 e permita o estabelecimento de um sistema que
rompa com o antropocentrismo da cultura moderna e recupere uma cultura construída a
partir de uma visão biocêntrica da Natureza52. Azeredo Lopes fala-nos dos povos
indígenas como tertium genus entre minorias e povos. Ao conceito povo associa-se, de
forma automática, o direito a autodeterminação, não totalmente reconhecido aos povos
desta específica natureza (indígena). Às minorias cabe um estatuto menor, mas o conceito
não parece incorporar aspetos essenciais que caraterizam os primeiros53. A inclusão
íntegra e manifesta da cultura desta categoria específica de povos, tal como a integração
Buen Vivir no Equador e na Bolívia, fortalece e subscreve o crescente reconhecimento
internacional do seu direito à autodeterminação54, aproximando-os, de forma
emancipatória, à categoria mais simplista de “povos”.
Importa referir que muitos intelectuais não indígenas participaram também desta
construção discursiva55. Andreu Viola Recasens aponta para a ausência de referências à
literatura etnográfica sobre comunidades andinas e de dados empíricos sobre a economia
política da agricultura andina em obras que pretendem divulgar e reivindicar a conceção
andina de buen vivir. O que sucede é que o indígena empírico, de carne e osso e atual,
não parece estar representado no conceito, que faz transparecer a imagem de um “índio
50
SIMBAÑA, 2011, p.222.
51
Ibidem, p. 223.
52
RODRIGUEZ, 2014, p. 111.
53
LOPES, 2003, pp. 250-252.
54
Estabelece a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígena, de 2007, no seu artigo
terceiro “Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam
livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento económico, social e cultural.”
55
BLANCO, 2017, p.57.
20
hiper-real” abstrato e metafísico. O mundo andino é representado, em boa parte da
literatura sobre buen vivir, como uma entidade “monolítica, homogénea e atemporal, sem
matizes nem contrastes internos”, e certos factos, como a presença massiva de indígenas
nas cidades, não parecem ser expressos56. O autor aponta o risco do conceito se tornar
vazio de significado, pela omnipresença e indefinição do mesmo- que podem funcionar
como permissão ao interlocutor de lhe atribuir a conotação que lhe convenha. Um outro
risco associa-se à apontada idealização essencialista e a-histórica do mundo rural andinos,
que minimiza as sérias ameaças e tensões internas vividas atual e concretamente por estas
populações57.
Além da Natureza formar parte ativa da cosmovisão indígena, note-se que a ideia
de a dotar de direitos tem antecedentes no mundo ocidental. Italo Calvino, já em 1957,
56
RECASENS, 2014, pp. 64, 65 (traduzido pela autora).
57
Ibidem, pp. 68, 69; BLANCO, 2017, p. 60.
58
BLANCO, 2017, p. 61.
59
LEFF, 2004, p.15.
60
Ibidem, p. 16.
61
BLANCO, 2017, p. 62.
21
explorou esta ideia no seu romance “o barão desenfreado”62. No seio da Ecologia
Profunda, autores como James Lovelock e Lynn Margulis, caraterizam a Terra como um
superorganismo vivo, a qual denominaram de Gaia - esta teoria justificaria a atribuição
de direitos à Natureza, na medida da função que todas as espécies têm para o
desenvolvimento sistémico do planeta63. A formulação destas visões implica o
reconhecimento, pelos seus autores, das “inter-retro-conexões transversais entre todos os
seres”, integradas no conceito de Pachamama64.
62
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2932, 2933.
63
RODRIGUEZ, 2014, pp. 112, 113.
64
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, p. 2933.
65
De tal modo que a noção de terras é elemento fundamental à identificação dos povos indígenas. LOPES,
2003, pp. 265-267.
66
Esta relação é fortemente protegida pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos
Indígenas. Dispõe o seu artigo 25 que “(o)s povos indígenas têm o direito de manter e de fortalecer a sua
própria relação espiritual com as terras, territórios, águas, águas costeiras e outros recursos que
tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir as responsabilidades que a esse respeito lhes
cabem relativamente às gerações futuras.
22
CAPÍTULO II - Pensar a Aplicabilidade dos Direitos da Natureza
67
Sierra Club v. Morton 405 U.S. 727, pp. 741-43 (1972).
68
GARZÒN, 2017, p. 15.
69
Sierra Club v. Morton, 405 EUA 727, pp. 742-3 “The critical question of 'standing' would be simplified
and also put neatly in focus if we fashioned a federal rule that allowed environmental issues to be litigated
before federal agencies or federal courts in the name of the inanimate object about to be despoiled, defaced,
or invaded by roads and bulldozers and where injury is the subject of public outrage. Contemporary public
concern for protecting nature's ecological equilibrium should lead to the conferral of standing upon
environmental objects to sue for their own preservation. This suit would therefore be more properly labeled
as Mineral King v. Morton”
70
Ibidem, p.743. “Inanimate objects are sometimes parties in litigation. A ship has a legal personality, a
fiction found useful for maritime purposes. The corporation sole - a creature of ecclesiastical law - is an
acceptable adversary and large fortunes ride on its cases (...) So it should be as respects valleys, alpine
meadows, rivers, lakes, estuaries, beaches, ridges, groves of trees, swampland, or even air that feels the
destructive pressures of modern technology and modern life.”
71
World Charter for Nature 1982-83, A/RES/37/7, disponível em:
https://www.refworld.org/docid/3b00f22a10.html. (traduzido pela autora)
23
No ano de 2000 foi adotada pela UNESCO a Carta da Terra72, aprovada pela ONU
em 2002, que apela ao entendimento da Vida como uma unidade. Este documento admite
que “o destino comum chama-nos para encontrar um novo começo”, assumindo que
“todos os seres estão interligados e que cada forma de vida tem o seu valor, independente
da sua utilidade para os seres humanos”.
A campanha de Polly Higgins para levar a ONU a adotar uma lei que altere o
Estatuto de Roma e reconheça a destruição em massa de ecossistemas, como um crime
internacional contra a paz, configura outra tentativa de proteger a Natureza como sujeito
de direitos. Na elaboração do Estatuto de Roma, o crime de ecocídio77 foi incluído na lista
de “crimes internacionais”. Porém, a ideia foi abandonada aquando da adoção do Estatuto
em 1966. Fundado no dever de cuidar do planeta, este crime internacional seria punível
inclusive para Estados que não se vincularam ao Tribunal Internacional Criminal e
verificável quer em período de guerra, quer em período de paz (a destruição em massa do
ecossistema quando em tempo de guerra já é hoje crime), e não seria necessário
demonstrar intenção do agente em produzir o dano78. Dez países já reconhecem
internamente uma forma de crime de ecocídio e, desde janeiro de 2014, 112 000 pessoas
assinaram uma petição da Iniciativa Cidadã Europeia para a elaboração de uma Diretiva
72
Carta da Terra 2000, disponível em: https://www.cm-
seixal.pt/sites/default/files/documents/30cmseixal_320_01_carta_terra_v01_r00.pdf
73
Washington, DC (EUA), 2 Dez. 1946, em força 10 Nov. 1948, disponível em:
http://library.arcticportal.org/1863/1/1946%20IC%20for%20the%20Regulation%20of%20Whaling-
pdf.pdf
74
Bonn (Alemanha), 23 Jun. 1979, em força 1 Nov. 1983, disponível em:
http://ambientecplp.org/documentos/biodiversidade-e-conservacao-da-natureza/convencao-sobre-
conservacao-das-especies-migratorias-selvagens-cms-pdf.aspx
75
Rio de Janeiro (Brasil), 5 jun. 1992, em força 29 Dez. 1993, disponível em:
http://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/dec21-1993.pdf
76
Ramsar (Irão), 2 Fev. 1971, em força 21 Dez. 1975, disponível em:
https://www.ramsar.org/sites/default/files/documents/library/scan_certified_e.pdf
77
Definido como "perda ou dano ou destruição do(s) ecossistema(s) de um determinado território(s), de tal
forma que o seu desfrute pacífico pelos habitantes tenha sido, ou será, severamente diminuído”. Arquivo
de informação legal sobre lei para Ecocídio, disponível em: https://ecocidelaw.com/.
78
HIGGINS, et. al., 2013, pp.251-266.
24
da UE para o Ecocídio79. O número foi insuficiente para exigir ação subsequente da
Comissão Europeia, mas a iniciativa angariou apoiantes e vários grupos voluntários têm
feito campanha pela criminalização do ecocídio80. Esta questão voltou a ganhar
protagonismo na Cimeira dos G7 de 26 de agosto, na sequência dos fogos florestais da
Amazónia81.
79
Ibidem
80
Iniciativa designada “Acabemos com o Ecocídio na Europa: uma iniciativa de cidadãos para dar Direitos
ao Planeta Terra”. Mais informações em: https://ec.europa.eu/citizens-
initiative/public/initiatives/obsolete/details/2013/000002
81
CARVALHO, 2019. ANJOS, Mafalda. Sobre a Cimeira, mais informações em:
consilium.europa.eu/pt/meetings/international-summit/2019/08/24-26/
82
Adotada na Conferência Internacional dos Povos sobre Alterações Climáticas e Direitos da Mãe Terra,
Cochabamba (Bolívia), 22 de Abril de 2010, disponível em: http://therightsofnature.org/universal-
declaration/
83
Resolução adotada pela Assembleia Geral a 27 de Julho de 2014 “The Future We Want”, ONU Doc.
A/RES/66/288, disponível em:
https://www.un.org/en/development/desa/population/migration/generalassembly/docs/globalcompact/A_
RES_66_288.pdf, “We recognize that planet Earth and its ecosystems are our home and that “Mother Earth”
is a common expression in a number of countries and regions, and we note that some countries recognize
the rights of nature in the context of the promotion of sustainable development.”
84
ROCKSTRÖM, 2009. Os processos críticos pelos Limites Planetários são: alterações climáticas, situação
da camada de ozono da estratosfera, acidificação dos oceanos, integridade da biosfera (biodiversidade),
libertação de poluição química, mudança do uso da terra, consumo de água, fluxos biogeoquímicos (de
azoto e fósforo para a biosfera e oceanos) e carga de aerossóis na atmosfera. Em três destes processos
críticos para a manutenção de um espaço seguro para o desenvolvimento humano, os limites já foram
ultrapassados: as alterações climáticas, ciclo de nitrogénio e biodiversidade.
25
Planetários”85 com vista ao seu reconhecimento e respeito, bem como à responsabilização
internacional pela salvaguarda destes processos de danos sérios ou irreversíveis.
Este raciocínio permite escapar a uma forma de atuação ambiental limitada pelas
regras do “jogo do prisioneiro”. Estes desenvolvimentos, acolhendo uma lógica
85
Disponível em: http://planetaryboundariesinitiative.org/about-2/declarations/draftonpb/.
86
AZEVEDO, 2018; ISSBERNER, LÉNA, 2018; CRUTZEN, 2006.
87
Ibidem; “Message from “Common Home of Humanity” to Secretary-General of the United Nations Mr.
António Guterres as a contribution to the Report under preparation as per Resolution A/RES/72/277
“Towards a Global Pact for the Environment” adopet by the General Assembly on May 2018”.
88
Ibidem; Ver MAGALHÃES, Paulo, “A Terra o nosso condomínio: Paulo Magalães at TEDxGuimarães”,
TEDx Talks, 01/abr/2013, https://www.youtube.com/watch?v=OrZvsJ1MOJI, consultado a: 08/out/2019
26
antropocêntrica, não deixam de refletir uma consideração ecológica da Terra e uma forma
de a proteger, que se aproximam do propósito dos DN na medida em que consideram a
vida como um todo, apesar de atuarem de forma paralela e fundamentalmente díspar.
De seguida, importa considerar os casos práticos dos países onde, a nível interno,
se deram alterações legislativas que, de forma inovadora, acolhem a abordagem
biocêntrica que acima expusemos.
89
BORRAS, 2016, pp. 133,134.
90
BALDIN, 2014, p.30.
91
Pertinente lembrar Gustav Radbruch quando nos fala do reconhecimento do “direito como acontecimento
cultural, como obra humana, partícipe da gravidade terrestre, mas também do impulso à ascensão”.
RADBRUCH, 1999, p.4.
92
“CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra
existência (…) Decidimos construír: Una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía
con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay (…)” Constituição da República do Equador,
também conhecida por Costituição de Montecristi, disponível em:
https://www.oas.org/juridico/mla/sp/ecu/sp_ecu-int-text-const.pdf
93
Equador em 2008 e Bolívia em 2009.
27
decorrentes da atividade da indústria extrativista94, fator relevante à compreensão da
origem deste salto na proteção ambiental. Os altos preços das matérias primas
desencadeiam enormes pressões sobre os Estados para a expandir os empreendimentos
mineiros, petrolíferos ou as novas monoculturas de exportação que configuram um estilo
de desenvolvimento insustentável, com alto impacto socioambiental, e que perpetuam
contínuos conflitos sociais.
94
BORRAS, 2016, pp. 134.
95
RODRIGUEZ, 2014, p. 105.
96
WALDMÜLLER, 2015, p.18.
97
GUDYNAS, 2011a, p. 25.
98
GUDYNAS, 2011b, p.88.
99
Ibidem; GUDYNAS, 2010b, p.79.
100
BORRAS, 2016, pp. 135.
28
equilíbrio adequado entre estes direitos e o Buen Vivir, recorrendo a uma ponderação de
interesses101. A tutela dada à Natureza, entendida como sujeito de direitos102, inova as
obrigações dos Estados a respeito da proteção ambiental103.
101
PERRA, 2017, p.187.
102
Art.º 10 da Constituição de Montecristi “ (…) La naturaleza será sujeto de aquellos derechos que le
reconozca la Constitución.” O reconhecimento da “Mãe Terra”, na Bolívia, concebe-a enquanto “interesse
público coletivo”. Em vez de diretamente atribuir personalidade jurídica à natureza, a lei boliviana retira às
pessoas o seu domínio sobre todos os outros “pedaços” da natureza. Em vez disso, a toda a natureza -
incluindo aos “pedaços” humanos - são atribuídos os direitos (“humanos”) que a lei enumerar. Essa
construção está ligada à base holística da lei- proteger a natureza como um sistema, em vez de atender
isoladamente aos seus componentes (ver art.º 5 da Ley de Derechos de la Madre Tierra, n. 071) GORDON,
2018, p.55.
103
GORDON, 2018, p.55.
104
A melhor dizer, no seu capítulo sétimo, reservado aos Direitos da Natureza. O art. 71º é claro: “La
naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente
su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos
evolutivos.
Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de
los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios
establecidos en la Constitución, en lo que proceda.
El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza,
y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecossistema.”
105
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2934, 2935.
29
Já o art.º 278, direcionado às pessoas singulares e coletivas, consagra as obrigações
de participação ativa nas políticas de gestão pública e de produzir, comercializar e
consumir bens e serviços com responsabilidade social e ambiental.
106
A maior imposição de obrigações decorrentes do reconhecimento dos DN coincide com a Diretiva
2004/35/CE da UE quando, no seu ponto 13, frisa que a responsabilidade não serve a resolução de todos os
danos ambientais por não ser, por exemplo, “instrumento adequado para tratar a poluição de carácter
disseminado e difuso, em que é impossível relacionar os efeitos ambientais negativos com actos ou
omissões de determinados agentes individuais”. Diretiva disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32004L0035&from=PT
107
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2934 – 2937.
108
BORRAS, 2016, pp. 135. São estas: a Ley nº 071 de Derechos de la Madre Tierra seguida, em 2012,
pela Ley Marco nº 300 de la Madre Tierra y Desarrollo Integral para Vivir Bien, disponíveis em :
http://www.madretierra.gob.bo/attachments/article/93/Ley%20N%C2%BA%20071.Pdf e
http://files.harmonywithnatureun.org/uploads/upload655.pdf, respetivamente.
30
entre si. A referida lei, de acordo com o art.º 3, visa estabelecer as diretrizes para um
acesso aos recursos naturais de uma forma equilibrada109.
No contexto dos danos causados à Natureza, importa distinguir entre o dano que já
se produziu e o possível dano futuro, ou o dano eventual. Para estes últimos a pergunta
que surge é se tais danos podem ser evitados com políticas e ações de prevenção110.
109
PERRA, 2017, pp. 187, 188.
110
Ibidem.
111
STUTZIN, 1985, p.113. Sobre a reparação do dano à Natureza, o autor idealiza, para certos casos, o
pagamento de uma indemnização a ser revertida para o que designa como “Fundo da Natureza”.
112
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2936 – 2937. Isto leva-nos a pensar a construção de Canotilho relativa
à distinção entre danos ambientais enquanto “danos provocados a bens jurídicos concretos através de
emissões particulares ou de um conjunto de emissões emanadas de um conjunto de fontes emissoras” de
danos ecológicos, os quais define como “lesões intensas causadas ao sistema ecológico natural sem que
tenham sido violados direitos individuais.” CANOTILHO, 1994. Atendendo a este último aspeto, da
ausência de uma afetação de direitos privados, consideramos que mais das vezes a um dano ecológico
corresponde a sua impunibilidade. A reparação do dano não se dá por não haver interesses humanos
afetados. Aqui, onde se exige mais que a reparação da situação humana afetada, onde se reconhece Direitos
à Natureza, o alcance da responsabilização por danos ecológicos será maior e mais exequível.
31
Quer no Equador (art.º 396), quer na Bolívia (art.º 347), os sujeitos da obrigação de
prevenir danos à Natureza são o Estado e cada um dos atores dos processos de produção
e comercialização, bem como os utilizadores de bens ou serviços. No Equador a
responsabilidade por danos ambientais é objetiva, i.e., independente de culpa, cabendo ao
Estado uma ação imediata e subsidiária que garanta a saúde e restauração dos
ecossistemas (art.º 397).
Quanto à legitimidade ativa numa ação de responsabilidade por estes danos, esta é
de qualquer pessoa, física ou jurídica, coletividade ou grupo humano, e é sobre o gestor
da atividade, ou o demandado, que recai o ónus da prova da inexistência de dano potencial
ou real. A novidade dos DN não está em que magicamente as árvores ou os rios passem
a aparecer nos tribunais, mas sim em que distintos seres humanos podem agora
comparecer perante os juízes invocando a sua representação. Não terão que demonstrar
uma perda económica ou afetação na sua propriedade privada, mas poderão defendê-los
desde a necessidade de assegurar a sua sobrevivência e permanência como espécie113. A
Natureza-sujeito será representada por pessoas que velem pelos seus direitos114
113
GUDYNAS, 2011a, pp. 276, 277.
114
STUTZIN, 1985, p. 107.
32
reparação ao ser humano, releva a importância que se dá à prevenção da ocorrência de
danos e à obrigação de proporcionar meios de prevenção adequados115.
2.2 A Jurisprudência
115
PERRA, 2017, p. 188.
116
Ibidem, pp. 189-192.
117
Veja-se: Corte Constitucional Sentencia N°. 218-15-SEP-CC. Registro Oficial Suplemento N°. 629, 17
de novembro de 2015; Corte Constitucional Sentencia N°. 166-15-SEP-CC. Registro Oficial Suplemento
N°. 575, 28 de agosto de 2015.
118
Corte Constitucional para el período de transición. Sentencia N°. 017-12-SIN-CC. Registro Oficial Su-
plemento N° 743, 11 de julio de 2012.
119
Ibidem. (traduzido pela autora)
120
Corte Constitucional Sentencia N°. 218-15-SEP-CC. Registro Oficial Suplemento N°. 629, 17 de
novembro de 2015. Quando se pronuncia no sentido de que o respeito aos DN deve sobrepor-se a qualquer
interesse económico individual.
121
PERRA, 2017, p. 190.
33
são comunidades ou organizações da sociedade civil e os casos protagonizados por
instituições do Estados. Os primeiros, diz-nos Esperanza Martínez e Alberto Acosta, regra
geral são descartados, e os segundos procedem e terminam em condenações que afetam
partes fragilizadas122. A título de exemplo, apontam os autores, “não se aceita um caso
referente aos Direitos da Natureza para proteger o Yasuni123, um dos últimos espaços,
refúgio do jaguar; mas aceita-se e condena-se um camponês que matou um jaguar”124.
Este projeto estava em andamento há três anos sem qualquer análise relativa ao seu
impacto ambiental, e violava diretamente os DN ao aumentar o fluxo do rio e
consecutivamente o risco de desastres ambientais. O casal recorreu à figura da injunção
constitucional126, a favor da Natureza, e o tribunal pronunciou-se reconhecendo ser este
o meio adequado à remediação imediata do dano ambiental, sublinhando a indiscutível
importância da natureza e considerando as evidências do processo de degradação. Além
disso, invocou o princípio da precaução como fundamento para justificar a devida
inclinação dos juízes constitucionais para proteção imediata dos DN, na ausência de uma
demonstração objetiva de que o projeto não produza contaminação ou leve à danificação
do ambiente.
122
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2953- 2955.
123
Sobre o caso ver o Veredito do Tribunal Ético pelos Direitos da Natureza, in:
https://therightsofnature.org/veredicto-del-tribunal-caso-yasuni/ Consultado a 14/Out/2019.
124
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2953-2954.
125
GREENE, 2016.
126
Gobierno Provincial de Loja, juicio 11121-2011-0010, de 30 Março 2011. Disponível in:
https://elaw.org/system/files/ec.wheeler.loja_.pdf?_ga=2.216170774.1641331849.1572013526-
774285648.1571262573.
127
Ibidem.
34
Um caso128 que levou à consideração dos DN como direitos universais, foi o
demandado contra a BP pelo derrame no Golfo do México, que ocorreu em 2010 e foi
uma das maiores tragédias ambientais da história. Tratava-se de uma empresa que não
operava no Equador e o incidente ocorreu fora da área marítima nacional. Apesar do caso
ser rejeitado, os argumentos levantados foram de extrema pertinência129.
Posto isto, passamos a abordar casos de reconhecimento ad hoc dos DN, que não
consubstanciam, portanto, normas de Direito com caráter geral e abstrato.
128
Accion de Proteccion n 17111-2013-00002. Receção da primeira sala civil do tribunal de justiça
provincial de Pichincha, disponível em: https://www.derechosdelanaturaleza.org.ec/wp-
content/uploads/2018/04/SENTENCIA-APELACI%C3%93N-BP.pdf
129
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2954-2955.
130
“EQUADOR- Ambientalistas denunciam a petroleira British Petroleum (BP) por derramamento no
Golfo do México”, Amigos da Terra, 20/nov/2010,
https://amigosdaterrabrasil.wordpress.com/2010/11/30/ecuador-ambientalistas-demandan-a-petrolera-
british-petroleum-bp-por-derrame-en-golfo-de-mexico-oilwatch-sudamerica/, consultado a: 14/out/2019.
131
“Se presentó demanda en Ecuador contra la British Petroleum”, America Latina en movimiento,
29/nov/2010, https://www.alainet.org/es/active/42632, consultado a: 14/out/2019.
132
Sentencia Constitucional Plurinacional N° 1422/2012, 24 de setembro de 2012; Sentencia
Constitucional Plurinacional N° 0778/2014, 21 de abril de 2014.
35
3. Reconhecimento de Direitos da Natureza mesmo sem previsão
constitucional.
Mais uma vez marcados pela integração correspondente dos direitos dos povos
indígenas ou pela assimilação flagrante de uma cultura, abordaremos, de forma breve, o
caso de três países onde ocorreu o reconhecimento de direitos a determinados elementos
da Natureza pela atribuição de personalidade jurídica a estes. São eles: Nova Zelândia,
Índia e Colômbia.
Na Ilha do Norte da Nova Zelândia, para a tribo Maori Tuhoe, o Te Urewera- uma
área maioritariamente florestal, e pouco povoada- é tido como uma fortaleza ancestral da
natureza, viva e com história. Representa, para o seu povo, um lugar com enorme valor
espiritual e com identidade própria133. Em 2014 o Te Urewera Act veio substituir o
National Parks Act de 1980 na governação e gestão do Te Urewera, fazendo com que este
deixasse de ser um parque nacional para ser uma entidade jurídica, representada pelo
Conselho estabelecido pela lei para agir em seu nome. O Conselho seria inicialmente
composto por quatro representantes da Coroa e quatro representantes Tuhoe e, após três
anos, por três representantes da Coroa e seis representantes Tuhoe134. Durante séculos
esta região deu casa ao povo Tuhoe, também conhecido como “filhos da névoa”. As
tradições deste povo são fortes e sua conexão com a terra, enquanto território, é muito
antiga. Após muitos anos de disputa e reivindicações, o Te Urewera deixou de estar sob
a alçada da Coroa e passou a ter “todos os direitos, poderes, deveres e responsabilidades
de uma pessoa jurídica”135. De acordo com o Ministro Chris Finlayson o ato, o primeiro
desta índole em todo o mundo, foi positivo para a Coroa, que anteriormente violou de
forma abusiva os direitos deste povo136. Reconheceu-se o significado desta terra para o
seu povo e a necessidade ambiental de restauração e conservação da área,
133
“Te Urewera Act”, Environment Guide, 17/nov/17. http://www.environmentguide.org.nz/regional/te-
urewera-act/. Consultado a: 14/out/19.
134
Ibidem.
135
“Legal personhood for nature has legal ramifications”, Lane neave. https://www.laneneave.co.nz/legal-
personhood/. Consultado a: 14/out/19.
Secção 11 Te Urewera Act 2014, disponível em:
http://www.legislation.govt.nz/act/public/2014/0051/latest/whole.html (traduzido pela autora)
136
“Tūhoe claims settlement and Te Urewera bills passed”, Department of Conservation, 24/Jul/14.
https://www.doc.govt.nz/news/media-releases/2014/tuhoe-claims-settlement-and-te-urewera-bills-
passed/. Consultado a: 14/out/2019.
36
providenciando-se uma espécie de compensação cultural e financeira pelo sofrimento do
povo na mão da Coroa137.
Como o Te Urewera, o rio Whanganul, Te Awa em maori, foi por muito tempo alvo
de reivindicações, no sentido do reconhecimento da condição do rio como sujeito
ancestral da tribo Maori, Iri138. A sua conexão com o rio é muito profunda - há mais de
setecentos anos controlava, cuidava e dependia dele. Em meados do ano 1800, a
autoridade tradicional da tribo acabou por ser extinta por Decreto do governo e, desde
então, os Iri assistiram à forte degradação do rio, apesar de considerado uma maravilha
cénica. O ato mais grave, considerado como uma grave afronta cultural, foi o desvio das
águas superiores do rio para uma diferente bacia hidrográfica, na sequência de um
esquema de instalação de energia hidroelétrica. Para os Maori, isto configurou uma
decapitação da entidade que é o rio. Mas, em março de 2017 o Whanganui River Claims
Settlement ou Te Awa Tupua, veio reconhecer legalmente que o rio é uma entidade viva,
indivisível e, mais uma vez, possuidora de “todos os direitos, poderes, deveres e
responsabilidades de uma pessoa jurídica”139. O rio, efetivo proprietário legal das suas
terras é representado pelo Te Pou Tupua, composto por uma pessoa nomeada Iwi e uma
pessoa nomeada pela Coroa, que dará a cara e agirá em nome do Te Awa Tupua. Estas
mudanças legislativas revolucionárias vêm reavaliar o lugar dos interesses humanos na
sua relação com a natureza (assumindo uma posição biocêntrica), mas também carrega
uma necessidade de reparação dos erros cometidos contra os povos indígenas, as suas
terras e valores culturais140.
Pouco depois deste ato, o Supremo Tribunal Uttarakhand, na Índia veio garantir aos
rios Ganga e Yaumna e seus tributários direitos semelhantes aos de um humano menor.
Estes são dois dos rios mais sagrados do país, que providenciam sustento físico e
espiritual na região e que têm uma importância central para cerca de metade da população
indiana. O seu reconhecimento enquanto entidades vivas configura uma “medida
extraordinária” tomada para dar resposta à “situação extraordinária” do seu alto nível sua
137
“Legal personhood for nature has legal ramifications”, Lane neave. https://www.laneneave.co.nz/legal-
personhood/. Consultado a: 14/out/19.
138
Ibidem.
139
WARNE, 2019.
Parte 2, subparte 2 do Whanganui River Claims Settlement, disponível em:
http://www.legislation.govt.nz/act/public/2017/0007/latest/whole.html (traduzido pela autora).
140
“Legal personhood for nature has legal ramifications”, Lane neave. https://www.laneneave.co.nz/legal-
personhood/. Consultado a: 14/out/19.
37
deterioração141. Três oficiais do governo foram designados para agir legalmente como
“pais” dos rios e para defender e representá-los142.
Na sequência de uma demanda interposta por vinte e cinco jovens colombianos que
demandava vários organismos governamentais à adoção de ações imediatas para reduzir
a zero a desflorestação da Amazónia colombiana, até 2020, com vista à garantia de um
141
DAS, 2017.
142
Ibidem;
143
Sentença T-622/16 da Corte Constitucional da Colômbia, disponível em:
http://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2016/t-622-16.htm
144
Ibidem.
145
Ibidem, 5.9 “Consideraciones preliminares sobre la riqueza natural y cultural de la nación”. O Tribunal
expões em sentença que a perspetiva ecocêntrica tem precedentes na prática jurisdicional do país, expressa,
nomeadamente, nas decisões C-595 de 2010 e C-632 de 201. Esta última afirma que atualmente a natureza
não se concebe tão só como meio ambiente dos seres humanos, mas também como um sujeito com direitos
próprios que devem ser protegidos e garantidos.
146
Para mais, quanto aos Guardiães do rio Atrato:
http://tierradigna.org/pdfs/SomosGuardianesDelAtrato.pdf. Consultado a: 14/Out/2019.
38
meio ambiente são para as futuras gerações, a Suprema Corte de Justiça veio se
pronunciar de forma inovadora. Com base na sentença que reconheceu direitos ao Rio
Atrato, a demanda foi recebida e, à luz dos princípios jurídicos ambientais de precaução,
equidade intergeracional e solidariedade. Na decisão147 de 2018, a Amazónia Colombiana
foi reconhecida como sujeito de direitos148. Trata-se de uma decisão histórica, a primeira
tutela contra as alterações climáticas na América Latina149, onde o reconhecimento de
direitos vem acompanhado da ordenação de uma série de medidas com vista ao fim da
desflorestação.
147
Sentença STC4360-2018 da Suprema Corte de Justiça, disponível em:
https://elaw.org/system/files/attachments/publicresource/Colombia%202018%20Sentencia%20Amazonas
%20cambio%20climatico.pdf?_ga=2.15149619.484430592.1571262573-774285648.1571262573
148
MAZO, 2018.
149
CALLE, 2018.
150
Para uma leitura científica sobre questões ambientais atuais ver:
sciencedaily.com/news/earth_climate/environmental_issues/.
151
RODRIGUEZ, 2014, pp. 106-108.
39
independente da valoração que dela façam os seres humanos152. E mais, este argumento
olvida considerar os casos dos seres humanos que não podem assumir diretamente os seus
direitos ou exigi-los judicialmente, como os incapacitados por questões de saúde mental,
e nem por isso são privados dos seus direitos153.
152
GUDYNAS, 2011a, p. 259.
153
ZAFFARONI, 2011, p. 54.
154
ÁVILA, 2011, p. 183.
155
ZAFFARONI, 2011, p. 127.
156
ACOSTA, MARTINEZ, 2011, p. 213.
157
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, p. 2943.
158
GUDYNAS, 2011a, pp. 260-262.
40
naturais do que o direito ambiental, e que estes últimos já têm muitas dificuldades em se
fazer cumprir, faz sentido avançar com o seu reconhecimento? Para alguns críticos este
reconhecimento não passa de uma construção retórica incapaz de gerar grandes
consequências reais. Em primeiro lugar, a eficácia simbólica destes direitos não pode ser
desconsiderada, já que paulatinamente vai gerando uma mudança relativa às
representações que, no âmbito do direito, se fazem da natureza e, consequentemente a
forma como os humanos se relacionam com ela. A afirmação de um direito ecológico
projeta à sociedade a sua inspiração conservacionista e cumprirá a função educadora que
lhe é inerente e cuja meta se situa além da mera observância dos seus preceitos legais159,
aliás já se está a fazer sentir a manifestação social do cumprimento desta função no
Equador160. Além disto, o reconhecimento constitucional de DN amplia a legitimidade
ativa na reclamação dos seus direitos pelo que é de que se motive a sua defesa161. E o
mesmo sucede com a atribuição isolada de personalidade jurídica a certos elementos
naturais, porque acompanhada de designação de representantes legais especialmente
encarregues de defendê-los.
A cultura pode ser uma barreira para a aceitação de uma conceção biocêntrica da
natureza que lhe reconheça direitos, nomeadamente quando pensamos na cultura
ocidental. A este respeito, urge recorrer a um diálogo intercultural no debate sobre o tema
e, lembramos, a institucionalização dos DN impulsiona abertura a este diálogo162.
Mas consideramos, pelo estudo dos casos do Equador e da Bolívia, que a grande
dificuldade do direito ecológico é a sua compatibilização com a promoção simultânea dos
direitos socioeconómicos. Nestes países, o Buen Vivir ainda não se conseguiu posicionar
como um modelo económico verdadeiramente alternativo, capaz de transformar a
estrutura tradicional de produção e exportação de bens primários163. Os Direitos da
Natureza implicam uma rutura com formas governativas que optam pelo crescimento
económico como forma privilegiada de desenvolvimento e que apelam à minimização ou
flexibilização do que consideram ser obstáculos ambientais164. E isto sucede tanto em
modelos mais conservadores como nos considerados progressistas. Nos países referidos,
o neoextrativismo progressista, ou também chamado extrativismo emancipador, que visa
159
STUTZIN, 1985, p. 109.
160
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, pp. 2949, 2950.
161
ZAFFARONI, 2011, p. 133.
162
RODRIGUEZ, 2014, pp. 109-113.
163
BLANCO, 2017, p. 66.
164
GUDYNAS, 2011a, p. 279.
41
captar excedentes a fim de aplicá-los ao desenvolvimento social e humano. Ainda que
não se identifique totalmente com a lógica neoliberal do crescimento económico ilimitado
e que as atividades extrativistas estejam sujeitas a uma maior dose de regulação e controlo
e, por isso, o seu impacto possa ser menor, não deixa de ser extrativismo165. O
reconhecimento dos DN implica uma “desmercantilização” da natureza. Isto exigiria dos
governos, para a sua plena integração, a adoção de uma estratégia a longo prazo que
modificasse a matriz produtiva a fim de superar a dependência da exportação primária e
que caminhasse para uma política do mínimo extrativismo. Uma estratégia de transição
para uma nova forma de organizar a economia, que avance por caminhos “pós-
crescimento” e “pós-extrativismo”. Mas sabemos que os projetos políticos não dispõem
de tempo, ainda mais quando se trata de aplicar transformações emancipadoras em
contextos nacionais definidos pela pobreza e exclusão generalizada. Pelo que o grande
dilema surge quando se trata de pôr em marcha um projeto verdadeiramente ecologista e,
em simultâneo, desenvolver um projeto socioeconómico de justiça social e igualdade,
quando se trata de compatibilizar objetivos estratégicos necessários e irrenunciáveis166.
Este debate é muito necessário e acreditamos que deve ser, cada vez mais empreendido
nos espaços académicos e políticos.
165
BLANCO, 2017, p. 67.
166
Ibidem, pp. 68-70.
42
CAPÍTULO III - Pensar os Direitos da Natureza à escala internacional
167
AA. VV., 1981, p. 39.
168
ONU, “Declaração de Inger Anderson sobre os incêndios em andamento na Floresta Amazónica”,
disponível em: https://www.unenvironment.org/pt-br/noticias-e-reportagens/statement/declaracao-de-
inger-andersen-sobre-os-incendios-em-andamento-na. Consultado a: 14/Out/2019.
169
Ibidem.
170
ONU, “Secretário-geral alerta para “dramática emergência climática” em encontro do G7”, disponível
em: https://news.un.org/pt/story/2019/08/1684651. Consultado a: 14/Out/2019.
171
Ver: https://www.independent.ie/world-news/frances-emmanuel-macron-says-real-ecocide-going-on-
in-amazon-rainforest-38431441.html. Consultado a: 14/Out/2019.
172
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, p. 2956.
43
Christopher Stone reconhece que a constante transformação de recursos naturais
em capital tem se refletido no tão falado desenvolvimento humano, mas,
independentemente disso, defende o “preservacionismo” como melhor opção quando
pensamos nas trocas entre o bem-estar humano presente e o futuro. Como forma de
preservar a existência do que considera ser os elementos que constituem a identificação
e prospeção da espécie humana173, o autor propõe a implementação de direitos da natureza
específicos acompanhada de uma “Tutela Global”174 sediada, por exemplo, na ONU. E
ainda, a criação de um “Fundo Fiduciário para Bens Globais” 175. Para operar enquanto
representantes legais, seriam selecionados pessoas e organismos treinados a nível
regional, nacional e internacional que configurariam a figura de “guardiãs da Natureza”.
Encarregados de reclamar os seus direitos e dar-lhe corpo na necessária imposição de
restrições às formas de abordagem do desenvolvimento individual e coletivo, para que
este se desse em seu respeito176.
173
STONE, 2010, pp. 117-124.
174
Ibidem, p. 106.
175
Ibidem, p. 125.
176
WALDMÜLLER, 2011, p. 20.
177
GUDYNAS, 2011a, p. 278.
44
CONCLUSÃO
178
MARTINEZ, ACOSTA, 2017, p. 2930.
45
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