Teoria Da Lei Penal - Sebenta
Teoria Da Lei Penal - Sebenta
Teoria Da Lei Penal - Sebenta
No conceito de direito penal, existe uma necessidade de determinar o que é uma norma
penal. Isto tem alguma relevância prática, dado que só sabendo se uma norma legal é considerada,
também, uma norma penal, é que conseguimos desvendar se podem ser aplicados princípios
característicos do direito penal (como o da intervenção mínima ou o da proibição da retroatividade).
Ora, assim, uma norma tipicamente penal é uma norma que, primeiramente, tem uma
previsão com a descrição de uma conduta que constitui crime, ou seja, um facto punível – não
apenas em sentido estrito, mas que também inclui as omissões, em situações em que existe o
especial dever de agir (artigo 200º do CP). Seguidamente, tem uma estatuição que descreve a
consequência dessa mesma conduta; ou seja, uma ação de punição em sentido estrito (não
abrangendo omissões). Um exemplo será o artigo 131º: “Quem matar outra pessoa [previsão] é
punido com pena de prisão de 8 a 16 anos [estatuição]”. Tendo em conta que existem estes dois
elementos são fundamentais, existe uma discussão doutrinária sobre como designar este ramo do
direito – se como “direito penal” (dando mais importância à estatuição) ou como “direito criminal”
(dando mais importância à previsão).
De notar que todo o direito penal de Estados de Direito democráticos são direitos penais de
facto – ou seja, apenas se pune por factos (condutas) e não pela personalidade da pessoa
(punindo aqueles que não têm a personalidade que convém ao Estado). A Alemanha nazi, por
exemplo, não era um direito penal de facto.
Além disso, a norma penal tem ainda, obrigatoriamente, dois agentes: o agente próprio,
nomeadamente quem faz a ação punível; e o Estado, representado pelo juiz, que será aquele que
aplica a pena ou a medida de segurança. Cabe ao Estado e só ao Estado exercer o poder punitivo. A
existência de um ofendido não é obrigatória – por ex., numa tentativa de homicídio, este não existe.
Tendo a norma penal esta estrutura, podemos dizer que descreve uma das relações possíveis
entre o indivíduo e o Estado, relação essa provocada pela prática do crime. Esta relação, com esta
ação de punir, tem como função alcançar a prevenção da prática de futuros crimes, de forma a
proteger bens jurídicos. Assim, outra característica que uma norma tem que ter para ser considerada
norma penal é esta finalidade – que, para grande parte da doutrina, é a proteção de bens jurídicos
essenciais à vida em sociedade.
Nem sempre o direito penal teve esta função de proteger o bem jurídico – em estados
autoritários, por ex., continua a não ter essa finalidade, atuando como um mecanismo de
repressão do Estado.
Vejamos outro caso: o artigo 10º. Este não tem a estrutura típica de uma norma estritamente
penal, tal como foi descrito: não tem uma previsão, com descrição de uma conduta punível, nem
estatuição. No entanto, tem como função complementar a compreensão das normas estritamente
penais – ora, nesse sentido, protege indiretamente bens jurídicos essenciais à vida em sociedade,
ajudando na sua proteção direta. Isto significa que, em última análise, irá ter a mesma função que as
normas estritamente penais, sendo isso suficiente para a classificar como norma penal – não pela
estrutura típica, mas pela função. Na parte geral, existem uma série de normas assim, em que não é
fácil decidir se estamos perante uma norma penal ou não (ex: normas sobre a aplicação das normas
penais no tempo e no espaço).
De notar que o artigo 10º não interessa para crimes formais: Crimes que exigem apenas a
verificação de um comportamento, quer seja por ação (ex: violação de domicílio alheio, pois não se
consegue separar o momento de ação “entrar em casa alheia” não pode ser separável do resultado
“entrar em casa alheia” – artigo 190º) ou por omissão (ex: omissão de auxílio). Este artigo apenas
interessa para construir tipos de crime de resultado: Crimes que exigem, para além do
comportamento, a verificação de um resultado, separado temporalmente do comportamento a nível
temporal (ex: crime de homicídio – se a pessoa não for morta, o agente apenas poderá ser punido
por tentativa de homicídio).
Ora, o artigo 10º diz que, quando se trata de um crime de resultado efetivo, este abrange não só a
ação em si, como a omissão à ação adequada para evitá-lo. Além disso, um crime formal por
omissão só é punível se for praticado por quem tem o dever jurídico de pessoalmente evitar que o
crime acontecesse – ora, isto vem permitir punir as pessoas que praticam crimes de resultado por
omissão, ao abrigo do princípio da legalidade (ex: crime de homicídio por omissão).
Relativamente ao crime de omissão de auxílio, não se pode separar a ação do resultado – ou seja,
não é preciso que um resultado de efetive para o agente ser punido (ex: não ligar ao 112 quando se
passa por um acidente – não é preciso que a pessoa do acidente morra ou esteja até ferida para ser
condenada). Para tal, apenas é necessário que a pessoa pratique a ação descrita no tipo de crime.
Por outro lado, o artigo 81º do Código da Estrada já cabe no direito contraordenacional,
direito que faz fronteira com o direito penal. Não existe consenso sobre como distinguir estes dois
ramos, mas podemos concluir que a estatuição é diferente: no direito contraordenacional, o
legislador fala de coima, e não de pena de prisão. No entanto, há quem defenda que existe um
critério quantitativo – é a gravidade do delito que vai distinguir (ter 0.5gl é menos grave do que
1.2gl, logo existe a distinção entre contraordenação e crime) – ou um critério qualitativo, com o
direito contraordenacional a proteger bens jurídicos menos importantes.
Outras Subdistinções:
Relativamente a outras subdistinções, podemos também falar do direito penal
nuclear/primário – todas as normas que protegem os considerados bens jurídicos essenciais à vida
em comunidade – e o direito penal secundário – todo o direito penal que não vem na parte especial
do CP, mas em legislação avulsa, e que visa proteger sobretudo a atividade ecónomo-social e
financeira que o Estado Social deve proteger.
A par deste conceito de direito penal em sentido estrito falado, existe também o direito penal
em sentido amplo, que inclui, para além do sentido estrito, o direito processual penal e o direito de
execução das penas e das medidas de segurança – o chamado direito penal executivo. O direito
processual penal regula o processo penal, um conjunto de regras a ser seguido para se poder aplicar
o direito penal – princípio da jurisdicionalidade: não existe outra forma de aplicar o direito penal,
apenas através do processo penal, tendo este assim um carácter instrumental. Por sua vez, o direito
penal executivo regula a forma de aplicar as penas e as medidas de segurança. Ora, às vezes é dificil
olhar para uma norma e perceber se é direito penal estrito, direito penal executivo ou outros.
Enquanto Ciência
O Direito Penal abarga, para além do direito penal substantivo anterior, outras ciências:
política criminal e criminologia. Política criminal começou por ter como função propor ao
legislador estratégias e meios de luta contra a criminalidade; atualmente, está também preocupada
com que esses meios utilizados respeitem os direitos humanos – é por isso que a política criminal
assume um papel importante, estabelecendo os princípios fundamentais do próprio direito penal. A
criminologia, por outro lado, estuda o fenómeno criminal do ponto de vista empírico: por exemplo,
quais os fatores sociais, biológicos, etc. que constitui o crime. Por outras palavras, permite o
conhecimento da realidade social que compõe o crime.
Conceito de Crime
Conceito Material e Formal
De acordo com o conceito formal de crime, é crime tudo aquilo que o legislador
legitimamente considere como tal – ou seja, sempre que o legislador estabeleça a estatuição, temos
um crime. Já o conceito material de crime visa saber quais as qualidades que o comportamento
humano deve revestir para que o legislador se encontre legitimado a considerá-lo como crime.
Nesse sentido, diz-se que o conceito material de crime está acima do conceito formal, dado ser
anterior a este – por exemplo, a norma “quem estacionar em cima da rua é punido” não pode ser
considerada crime a nível material, porque não vai contra um bem jurídico essencial à vida na
sociedade.
Este conceito de crime vai, assim, buscar à constituição os valores e os princípios com que se pode
fundamentar a classificação de algo como crime. Algo assim seria inconstitucional, violando o
princípio da intervenção mínima: o direito penal só deve atuar se for para salvaguardar bens
jurídicos essenciais e quando foi necessário (mais nenhum outro ramo de direito poderá ser
utilizado) – artigo 18º, nº2. Só posso restringir a liberdade se for para garantir bens essenciais que
mais nenhum ramo conseguiria. Ora, à luz dos valores constitucionais, somos obrigados, com a
evolução da sociedade, a perceber que há certos bens jurídicos que não devem ser protegidos pelo
direito penal, e que será mais eficaz protegê-los noutros ramos do direito – ex: aborto,
descriminalizado até à 10º semana.
Isto para dizer que o conceito material de crime é extremamente relevante, na medida em
que está acima do conceito formal de crime – mas não da lei em geral –, servindo de guia ao próprio
legislador e ajudando-o a perceber quais as características que um comportamento deve ter para ser
considerado crime. Só um conceito material de crime que cumpra essa função é que pode valer,
pelo que não podemos dar ao conceito material e ao conceito formal o mesmo sentido.
Diferentes Teorias
Positivismo Sociológico:
Inicialmente, a teoria predominante era (antes do positivismo legal – era crime tudo o que a
lei considerasse crime, não existindo um conceito material anterior de crime) a do positivismo
sociológico. Segundo esta, tudo o que existe na sociedade como crime – ou seja, tudo o que à luz
da realidade social, o que a sociedade pensa que deve ser considerado como crime –, é ou deve ser
crime. Nesta lógica, crime são todas as condutas que causam danosidade social (ex: à piedade, à
propriedade, ofensivo dos valores da sociedade, etc.). Isto significa, assim, que o conceito material
de crime está acima do direito penal legislado, existindo na sociedade, primeiramente, e sendo,
depois de observado, legislado. Esta é uma diferença que atualmente ainda é importante, tendo em
conta que uma parte da doutrina considera que o direito contraordenacional se encarrega das
condutas que não são consideradas crime à luz da sociedade – ora, não tendo assim uma base
sociológica, são apenas consideradas crime porque o legislador as considera formalmente como
qual.
Esta teoria é passível de críticas. Por um lado, este conceito material de crime é bastante
impreciso, não se podendo definir com um mínimo de precisão em que é que se traduz essa
“danosidade social” enquanto conceito universal. Por outro lado, este conceito é demasiado
abrangente: há uma série de condutas que causam danos sociais, mas que não devem ser
consideradas crime (ex: mentir). Isto porque a punição deve ser o último recurso do Estado – se este
consegue proteger o bem doutra forma, não deve recorrer ao direito penal (princípio da intervenção
mínima).
Conceção Moral-Social:
Surge, posteriormente, a conceção moral-social, que introduz no conceito material de crime
um ponto de vista ético-social: define crime como comportamento violador de deveres morais-
sociais elementares, sendo a função do direito penal assegurar a validade desses valores e regras
éticas básicas conhecidas por todos.
No entanto, ao falar-se em regras “ético-morais”, poder-se-á levar o direito penal a tutelar a
moral. Ora, a relação entre o direito penal e a moral não é simples: ao visar proteger os bens de uma
necessária ordem jurídica, o direito penal irá proteger intrinsecamente os bens morais da mesma,
que influenciaram toda a estrutura jurídica. Mas esta relação íntima não faz com que o direito penal
possa tomar a moral, pois vivemos numa sociedade democrática e pluralista – tem de se respeitar os
valores das várias culturas existentes (desde que conforme aos direitos humanos). Por isso, o direito
penal não pode tomar uma moral como a “correta” e penalizar as outras em virtude de proteger esta.
Assim, esta conceção será afastada, mas não sem existir uma evolução na sociedade para
essa ideia de tolerância e aceitação: por exemplo, até 1995, o adultério era considerado crime, assim
como a homossexualidade, descriminalizada em 1982. Em ambos os pontos, o direito penal, ao
regular, estava ligado a uma certa função moral relacionada com a nossa cultura judaico-cristã,
função essa que não poderia ser tomada como tal.
Conceção Funcional-Racional:
Chegamos, finalmente, à conceção funcional-racional, que continua a ter largo apoio na
doutrina. De acordo com esta, o conceito de crime deve ser encontrado na função última do próprio
direito penal – nomeadamente, proteger os bens jurídicos fundamentais na sociedade. Assim, ao
partir-se desta função para chegar ao conceito correto material de crime, só deverá haver crime 1)
quando existir uma conduta lesiva dos ou que coloque em perigo determinados bens jurídicos
fundamentais; e quando 2) a intervenção penal seja necessária e eficaz para tutelar esses bens, não
podendo esta tutela ser feita por outro ramo de direito menos evasivo. Isto porque a função do
direito penal é a proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais, ao abrigo do princípio da
intervenção mínima do direito penal – artigo 18º, nº2 da CRP: o Estado só pode restringir a
liberdade através do Direito Penal quando tal se relevar essencial para assegurar um determinado
direito jurídico.
Concluindo, crime é todo o comportamento que lese bens jurídicos 1) fundamentais e 2)
dignos de tutela penal, sendo que só são dignos de tal se a intervenção do direito penal se revele
necessária e eficaz para a respetiva tutela do bem jurídico.
“Sociedade de risco”
Existe uma parte da doutrina que defende que, atualmente, se vive numa sociedade de risco,
o que faz com que seja inadequado atribuir ao direito penal apenas esta função de proteção de bens
jurídicos. Ao existirem novos perigos – nomeadamente associados à globalização, à tecnologia, à
inteligência artificial, ao ambiente –, o direito penal, para ser mais eficaz, terá de ser também ele um
meio de realização das políticas do Estado associados a estes riscos da sociedade. Por outras
palavras, o direito penal deve estar ao serviço da política do estado, de forma a evitar esses riscos,
sendo um “direito penal do risco”: deixa-se de ter um direito penal que protege bens jurídicos, para
se ter direito penal virado para os riscos.
No entanto, esta ideia tem vários problemas. Primeiramente, a própria ideia de “direito penal
do risco” é inconstitucional, ao abrigo do artigo 18º, nº2: não se pode restringir direitos, garantias e
liberdades a não ser para proteger outros bens.
Além disso, a ideia de que apenas atualmente se vive numa sociedade de risco é falsa; riscos sempre
existiram na vida em sociedade, fazem parte da mesma. O que existe, apenas, são novos riscos –
cujos bens jurídicos podem, no entanto, ser protegidos pelo direito penal sem que se lhe seja dado
esta função de realizar políticas do Estado: nomeadamente, através dos crimes de perigo abstrato,
como defende o professor Figueiredo Dias. Estes são crimes que, para estarem “preenchidos”, basta
uma conduta por parte do agente, não sendo exigível a verificação de um resultado derivado dessa
conduta. Ora, esta ideia de antecipação da tutela do bem jurídico (embora de forma cautelosa) pode
ser usada para responder a estes riscos – continuando, assim, o direito penal na esfera da
necessidade de proteção do bem jurídico (sendo ainda necessário a existência de uma conduta
abstratamente perigosa, que ponha em causa um bem jurídico); em vez de se dar ao mesmo a tal
função de realizar políticas do Estado.
Ex: Conduzir com álcool no sangue superior a 1.2gl – o legislador atua porque acha tal conduta
tão abstratamente perigosa, que decide antecipar a tutela dos direitos jurídicos, pelo que só é
necessário a pessoa ser apanhada a conduzir com álcool, mesmo que não tenha nenhum
acidente.
Esta doutrina do direito penal de risco significa, ainda, que eventualmente passe a existir
uma “acturial justice”, em que se regula um certo núcleo de atividades que se consideram perigosas
e, consequentemente, que leva a um “direito penal do agente”, e não do facto. Isto é extremamente
perigoso, na medida em que se passará a punir personalidades ou “grupos de risco”, em vez de
condutas específicas censuráveis – leva-se, assim, à criação de um direito penal puramente objetivo,
que está apenas interessado no autor do possível facto de risco.
Denota-se, aqui, que Stratenwerth defende que, face aos riscos globais, é necessário apostar, em
detrimento de um direito penal do resultado, num direito penal do comportamento, através do qual
se penalizem puras relações da vida como tais: isto é, normas que assegurem o controlo do
comportamento nos casos em que já existem riscos longínquos. Apesar de ainda focar no
comportamento, já se inclina mais para esta doutrina de “direito penal do agente”.
Já Jacobs entende que o direito penal dos bens jurídicos deve ser substituído, sendo a função
primordial do direito penal a estabilização contrafáctica das expectativas geradas pela existência de
uma norma incriminadora. Por outras palavras, a função última do direito penal é manter padrões de
ação que organizam as expectativas sociais sobre comportamento alheio. O ambiente, para ele, faz
parte do núcleo das condições essenciais da existência, pelo que merece proteção em face das
expectativas sociais quanto à relação pessoa. Define, assim, crime como “dano social objetivo”, e já
não como “conduta”. Esta é, no entanto, uma visão perigosa e demasiado normativa, já que estes
padrões a cumprir irão estar nas normas.
Em Suma:
À luz do conceito material de crime/conceção funcional-racional, para que o legislador
esteja legitimado a considerar certa conduta como crime, esta terá de ser lesiva de um 1) bem
jurídico individual essencial de terceiros, constitucionalmente protegido, à luz do artigo 18º da CRP
(algo que, causa problemas a nível dos direitos dos animais – que, embora não expressos, são de
facto constitucionalmente protegidos).
Além disso, esse bem jurídico terá de ser 2) merecedor da tutela penal, em conformidade com o
princípio da intervenção mínima: ou seja, a intervenção do direito penal só deve ocorrer se for
necessária (não podendo esse bem ser protegido por outro ramo de direito – análise por exclusão de
partes) e eficaz (terá de ser adequada, nomeadamente na prevenção da prática de futuros crimes).
De notar que a necessidade deixa de existir quando a proibição não é eficaz na prevenção de prática
de futuros crimes; ou quando tiver mais efeitos negativos do que positivos.
O conceito material de crime, em última análise, irá buscar às ciências sociais (sociologia,
psicologia e estatística) a necessidade ou não de haver uma intervenção do direito penal.
Teorias Preventivas
Para as teorias preventivas, o objetivo das penas é a prevenção da prática de futuros crimes.
Estas teorias são também chamadas de “teorias relativas”, dado serem relativas a um fim; ao
contrário das “teorias absolutas”, que não justificam a pena face a um fim, mas apenas pela prática
de um crime. As teorias preventivas dividem-se em teorias da prevenção geral e teorias da
prevenção especial.
O professor Silva Dias acrescenta que não é possível calcular o efeito intimidatório de uma
pena, a nível empírico. Logo, a adoção exclusiva desta teoria poderia levar a penas
indeterminadas, algo que é inconstitucional, na medida em que é incompatível com o princípio
da dignidade humana.
Esta lógica não encaixa com a existência de crimes ocasionais, provocados por uma emoção
forte: por exemplo, uma mulher, vítima de violência doméstica à 20 anos, que mata o marido
(artigo 133º CP – crime de homicídio privilegiado, no qual não entra o infanticídio), não voltará
a cometer o mesmo crime, pelo que não será necessário puni-la com pena de prisão para obter
esse fim.
Em Suma:
As teorias preventivas defendem que a finalidade da aplicação da pena é prevenir a prática
de futuros crimes, sendo que essa prevenção pode ser geral ou especial. Geral, quando se trata de
prevenir a prática de futuros crimes por parte da sociedade, através ou da intimidação, ou da
reafirmação da eficácia do direito. Especial, quando se trata de prevenir a prática de futuros crimes
por parte do indivíduo já reincidente, através da afirmação da aplicação do direito pela positiva.
Teorias Retributivas
Teorias Retributivas Superficiais:
De acordo com as teorias retributivas superficiais, a pena é um mal que se aplica devido a
um mal praticado – princípio do talião: “olho por olho, dente por dente”. Nesse sentido, estas
teorias são absolutas: a pena é um mal necessário, não tendo qualquer fim na sua aplicação.
Existem duas críticas feitas a estas teorias, nomeadamente:
1) O mal da pena, em si, não é um fim possível e legítimo do Estado: Só é racional pensar o fim da
pena como um bem; ora, o Estado não pode ter como finalidade aplicar um mal sem razão
aparente – ele tem de ter uma finalidade ao aplicar o mal, nem que seja por razões ético-morais.
2) O princípio do talião não tem em conta a culpa do agente: A culpa é um juízo de censura que se
faz ao agente do crime pelo facto de, tendo capacidade e possibilidade para se motivar pelo
direito, escolheu não o fazer. Esta teoria não tem em conta a culpa do agente porque aplica a
mesma pena a, por exemplo, todo o tipo de furto, independentemente de ser um furto por
necessidade (onde se exclui a ilicitude) ou um furto por profissão – ora, esta maneira de encarar
a punição é impensável.
O que distingue estas das teorias superficiais é que, aqui, a pena, apesar de ser devido a um
mal, tem um fim. Isto significa que colmata uma das críticas que é dada às teorias superficiais: a
lógica retributiva consegue fazer a distinção entre casos em que as pessoas atuam com culpa, e por
isso é-lhes aplicada uma pena; e casos em que as pessoas atuam sem culpa, em que lhes será
aplicada, por exemplo, uma medida de segurança.
Consequentemente, ao recear-se uma pena baseada na culpa e a reprovação social que ela implica,
essa relação da pena com a culpa vai ter mais eficácia na prevenção de prática de futuros crimes da
sociedade do que o receio de uma pena que não esteja ligada à ideia de culpa – porque, mais uma
vez, o agente sabe que a reprovação social será maior quanto maior for a sua culpa. Assim, esta
teoria de reparação atua melhor para a concretização da prevenção geral. Além disso, essa
responsabilização também terá um efeito formativo do próprio, pelo que também consegue atingir a
prevenção especial.
Teorias Unificadoras
Conclui-se que estas teorias, isoladas, não conseguem justificar completamente os fins das
penas. Por isso, a doutrina tem vindo a aderir a teorias “unificadoras”, que agregam várias teorias
dos fins das penas, dividindo-se entre: teorias que que atribuem uma maior relevância à reparação –
teorias unificadoras retributivas –; e teorias (maioritárias) que atribuem uma maior relevância à
prevenção – teorias unificadoras preventivas.
1. Momento da ameaça
O que justifica o Estado ameaçar com penas é a necessidade que este tem de assegurar a
proteção dos bens jurídicos, de forma a conseguir existir uma vida em comum ordenada, livre e sem
perigos. Ora, isto remete para a conceção funcional-racional de crime já estudada, relativa à função
do direito penal – aliás, estas ideias coincidem de tal forma que, para a professora Teresa Beleza, é
possível falar de fins mediatos de pena, e não de fins do direito penal.
Roxin diz, ainda, que a necessidade de proteção de bens jurídicos justificativa da ameaça
penal existe não só quando estão em causa bens jurídicos individuais, mas também bens jurídicos
sociais (ex: ambiente, Estado Social). Acrescenta também que esta ameaça deve ter natureza
subsidiária, sendo a última rácio do Estado – tendo de se demonstrar, por isso, que a intervenção do
direito penal é essencial. Além disso, o direito penal não pode punir condutas apenas por serem
imorais, de acordo com um certo grupo social: só poderá interferir se essas condutas morais lesarem
bens jurídicos.
Por último, Roxin defende que esta proteção dada aos bens jurídicos só pode ser preventiva,
na medida em que as normas jurídicas precedem temporalmente a conduta do sujeito. Conclui-se,
assim, que o fim da ameaça penal é proteger bens jurídicos essenciais à vida em comunidade,
através da prevenção de futuros crimes usando a intimidação.
2) Dentro desta medida, a pena vai, depois, determinar-se pela prevenção especial, quer positiva –
qual a pena necessária para ressocialização do agente e para prevenir a sua reincidência –, quer
negativa – qual a pena necessária para intimidar o agente.
3) Esta medida da pena, quer determinada pela prevenção geral positiva, quer pela prevenção
especial, está limitada pela culpa – ou seja, a culpa vai estabelecer o limite inultrapassável da
pena, sob pena de violar o princípio da dignidade da pessoa humana.
o O professora acha que, ao referir que a culpa determina uma medida exata da pena, o
professor Figueiredo Dias vai contra o legislador, dado que este faz variar as penas, segundo
a culpa, entre o máximo e mínimo.
2) De seguida, determina-se, através da prevenção especial, a medida exata da pena, que terá de ser
determinada dentro da medida da culpa OU abaixo do limite mínimo estabelecido pela culpa
(mas nunca dos limites legais, a não ser que haja atenuantes). Isto acontece, por exemplo, em
casos em que a pessoa não irá voltar a praticar o mesmo crime e que, por isso, uma pena mais
pequena visaria a sua reintegração melhor, dado ser esse o fim da pena – artigo 40º, nº1 CRP.
3) Por fim, a prevenção geral vai condicionar a medida da pena determinando o limite mínimo
necessário para a defesa dos bens jurídicos, algo que resulta não só do artigo 18º CRP – sobre a
restrição dos direitos –, mas também do artigo 71º, nº1 CP, que poderá fazer com que não se
possa ir abaixo do limite estabelecido pela culpa.
Medidas de Segurança
Como já foi falado, aos inimputáveis não se pode aplicar uma pena de prisão, mas apenas
medidas de segurança, pois não há culpa – princípio da culpa. Assim, os pressupostos para a
aplicação de uma medida de segurança são a 1) inexistência de culpa, 2) a prática de um ato ilícito
típico, e, além disso, 3) existência de perigosidade por parte do agente. Por outras palavras, a
medida de segurança, ao contrário da pena, tem como pressuposto não só a prática de um facto
criminalmente ilícito, mas também que se deve basear na perigosidade do agente – apoiada no
receio fundado da prática, por parte desse agente, de outros factos típicos graves. Assim, a medida
de segurança irá alcançar a defesa social, prevenindo a prática de futuros ilícitos por parte do
agente.
Para a maior parte da doutrina, a finalidade primordial das medidas de segurança é a
prevenção especial, no sentido de prevenir o perigo do cometimento de futuros crimes, através do
tratamento do inimputável. A tal recuperação do agente far-se-á, essencialmente, quer através do
internamento hospital, no caso de anomalia psíquica; quer através da reclusão em locais de
reeducação. No entanto, há, também, na medida de segurança, uma certa finalidade de prevenção
geral, no sentido de reafirmar a confiança comunitária nas normas – mas, para grande parte da
doutrina, esta prevenção geral apenas existe como efeito reflexo e dependente da prevenção
especial.
As normas relativas às medidas de segurança estão no capítulo VI, título III da parte geral do
CP; mas estas apenas regulam as medidas de segurança aplicáveis a imputáveis por anomalia
psíquica. As medidas de segurança aplicáveis a imputáveis em relação de idade, por sua vez,, estão
reguladas na Lei Tutelar Educativa.
Já o artigo 99º estipula uma figura que não se encaixa neste sistema de vicariato: se uma
pessoa pratica um facto como imputável, e depois como inimputável, é possível ser-lhe dada uma
pena pelo primeiro facto, e uma medida de segurança pelo segundo.
De notar, ainda, que nem todas as medidas de segurança são privativas da liberdade (artigos
100º a 103º): podem ser, por exemplo, interdição de certas atividades, entre outras. De qualquer
forma, para além de se provar que a pessoa sofre de anomalia psíquica; os peritos têm ainda de
provar que, no momento do facto, devido à anomalia, a pessoa não tinha capacidade de
compreender o que estava a fazer ou de se motivar pelo Direito.
É importante ter em atenção que os delinquentes por tendência não são inimputáveis, caso
contrário não lhes poderia ser aplicada uma pena, mas apenas uma medida de segurança.
Direito Contraordenacional:
Neste princípio refere-se, ainda, um ramo do direito muito próximo do Direito Penal,
nomeadamente o Direito Contraordenacional – ramo que inclui pequenas infrações rodoviárias, mas
também inclui infrações fiscais, económicas, ecológicas. O Regime Geral das Contraordenações
(DL nº433/82) estabelece o regime geral deste ramo, havendo, depois, leis como a Lei-Quadro das
Contraordenações Ambientais (Lei nº50/2006, de 29 de agosto) ou o Regime Sancionatório do
Setor Energético (Lei nº9/2013, de 28 de janeiro), que muitas vezes derrogam o regime geral. É de
tal forma a diversidade de contraordenações, que existe uma parte da doutrina que defende a
diferenciação entre as contraordenações tradicionais (menos graves) e as contraordenações
modernas (mais graves).
Formalmente, estes ramos são distinguidos pela constituição das respetivas normas: enquanto as
normas penais têm, na sua previsão, um crime, e na sua estatuição uma pena; as normas
contraordenacionais têm, na sua previsão, , na sua previsão, uma contraordenação, e na sua
estatuição uma coima (e não uma multa, que só se aplica a crimes). No entanto, em termos
materiais, percebe-se que o fundamento da sanção é diferente – assim, o que poderá levar o
legislador a considerar determinado comportamento como ou crime, ou contraordenação?
A maior parte da doutrina defende que o critério de distinção é qualitativo:
o Segundo o professor Figueiredo Dias, não devem ser abrangidas pelo Direito Penal aquelas
condutas cuja relevância ético-social é consequência das normas que as proíbem, e que, por
isso, não atingem bens que já existam anteriormente a essas normas. Interessa, assim, saber
se a conduta já era considerada relevante ético-socialmente antes: se sim, existe uma base
social para o crime; se não, será contraordenação. Por exemplo, a conduta de conduzir com
1.2gl é ético-socialmente relevante, e devido a este salto qualitativo, a conduta deve passar
a ser considerada crime – não é o facto de conduzir com qualquer quantidade de álcool no
sangue que é passiva de ferir bens jurídicos precedentes.
Crítica: Existem certas regras que não são eticamente neutras mas que, mesmo assim,
só devem ser consideradas contraordenações, devido ao princípio da intervenção
mínima.
o Já o professor Américo Taipa de Carvalho considera que os bens jurídicos protegidos pelo
Direito Penal pertencem à estrutura axiológica (valorativa) fundamental da vida
comunitária; enquanto o “direito de mera ordenação social” protege bens jurídicos que não
pertencem a essa estrutura. Ou seja, interessa a consequência da conduta, da qual resulta se
a conduta em si é socialmente perigosa ou não: se tiver consequências que põem em causa
bens jurídicos fundamentais à vida em comunidade, deve atuar o Direito Penal; se não, deve
atuar o direito contraordenacional. Por exemplo, a conduta de conduzir com menos de 1.2gl
continua a ser uma conduta ético-socialmente negativa, mas só a partir de 1.2gl é que a
conduta será de tal forma perigosa que o Direito Penal tem de atuar.
Crítica: Mais uma vez, este é um critério puramente formal, tal como o de Figueiredo.
Outra parte da doutrina entende que o critério deve ser misto – ou seja, consoante o termo de
comparação, varia o critério que se deve adotar.
o Segundo Roxin e Jacobs, em determinados casos, importa se bem jurídico protegido é ou
não considerado fundamental (critério qualitativo); mas, em outros casos, já só interessa a
gravidade do ilícito (critério quantitativo).
o O professor Silva Dias defende que não há uma resposta uniforme sobre o critério utilizado.
Isto porque, se se confrontar o crime de homicídio com a contraordenação de
estacionamento proibido, não há dúvida que a diferença entre as duas é apoiada num
critério qualitativo: o bem jurídico do primeiro é fundamental, mas o do segundo não o é.
No entanto, confrontando o crime de conduzir com 1.2gl ou mais, com a contraordenação
de conduzir com até 1.1gl, a diferença é apoiada num critério quantitativo.
o A própria professora pensa que este é o critério mais acertado: se se comparar o Direito
Penal Nuclear (relativo aos bens jurídicos fundamentais), este distingue-se do Direito
Contraordenacional segundo um critério qualitativo, assente na proteção de bens jurídicos
fundamentais; mas se se comparar o Direito Penal Secundário (relativo aos bens jurídicos
coletivo) com o Direito Contraordenacional, o critério de diferença será quantitativo, sendo
o princípio da subsidariedade que irá ajudar a colocar certa conduta no âmbito do Direito
Contraordenacional (menos grave) ou do Direito Penal (mais grave).
Além disso, a existência de uma maior gravidade baseia-se automaticamente a uma
lesão de bens jurídicos fundamentais; logo, uma relação entre os dois critérios é
necessário.
NOTA: Existe, ainda, o Direito Disciplinar Público ou Direito Disciplinar da Função Pública, que
tem como objetivo imediato os interesses específicos da boa organização e do eficaz funcionamento
dos serviços da administração pública – que não se confunde nem com o direito contraordenacional,
nem com o direito penal. Assim, quando um funcionário público viola tais deveres, pode ser punido
a nível disciplinar; mas, e dado à autonomia deste ramo de direito, nada obsta a que esta sanção
disciplinar se aplique, cumulativamente, uma sanção criminal ou contraordenacional.
Princípio da Culpa
Segundo o princípio da culpa, não há pena sem culpa; e a medida da pena não pode
ultrapassar a medida da culpa. Aqui, a culpa pode ser vista em dois sentidos:
Culpa em sentido estrito: Ou seja, a culpa enquanto elemento constitutivo do crime, analisado a
seguir à ilicitude do crime (“ação típica, ilícita, culposa e danosa). De notar que na ilicitude,
apenas se analisa a relação entre o comportamento e a ordem jurídica – ora, se um
comportamento viola normas jurídicas, e é desvalioso à luz da OJ, é ilícito. No entanto, nem
todos os atos ilícitos são culposos (nomeadamente, as ações de inimputáveis): isto porque a
culpa não se preocupa com o carácter desvalioso, mas sim com o agente –é um juízo de censura
que se faz ao agente, pelo facto dele possibilidade de se motivar pelo direito, mas não o ter feito.
Culpa enquanto ligação subjetiva do sujeito com o facto: Só se pode aplicar uma pena a quem
tenha atuado no âmbito da sua liberdade e autonomia. Aqui, interessa a capacidade de ação
alternativa por parte do sujeito; pelo que, se ele não tem capacidade de ação alternativa, não atua
no âmbito da sua autonomia (ex: sonâmbulo). Ora, quando se demonstra que uma pessoa não
tem capacidade de ação alternativa, não há sequer ação (voluntária), logo não haverá pena.
Este princípio não tem consagração constitucional expressa, sendo retirado do princípio da
dignidade humana: só se respeita a dignidade de uma pessoa se apenas a responsabilizar pelos atos
que praticou no âmbito da sua autonomia – ou seja, por atos que ela poderia ter evitado. Além disso,
também só se respeita a dignidade da pessoa se se a julgar segundo a sua culpa, e não segundo a sua
utilidade para a comunidade, nomeadamente a nível de prevenção: não se pode aplicar uma pena
apenas com base na ideia de prevenção de outras práticas de crime.
Existe, ainda, o artigo 27º, que consagra o direito à liberdade: ora, a culpa indica a liberdade de ter
uma ação alternativa e de poder motivar-se pelo direito – pelo que, ao julgar-se a pessoa pela sua
culpa, reconhece-se que ela é livre. Em última análise, a liberdade da pessoa resulta da sua
dignidade.
Princípio da Igualdade
Segundo o princípio da igualdade (artigo 13º CRP), não poderá haver discriminação no
Direito Penal consoante qualquer tipo de características (pessoais, físicas, sociais, etc.). Além disso,
existe uma necessidade de haver igualdade na aplicação da pena: ou seja, na determinação da pena
tem de se fundamentar o porquê da mesma, de forma a essa determinação ser igual para todos.
Princípio da Jurisdicionalidade
Segundo o princípio da jurisdicionalidade, o Direito Penal só se pode aplicar em processo
penal, ou seja, através do processo penal – ao contrário do direito civil, que pode ser aplicado, por
exemplo, num escritório de advogados) –, incluindo todos os princípios que estão no ramo de
processo penal. O direito processual penal é, por isso, um direito instrumental (autónomo) face ao
Direito Penal: a sua função é permitir a aplicação correta do Direito Penal.
Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade tem especial relevância em toda a teoria da lei pena, que dita que
não há crime nem pena sem lei prévia, escrita, certa, estrita. Este está consagrado
constitucionalmente, nos artigos 29, nº1, 3 e 4 CRP; mas também está na lei ordinária, nos artigos
1º e 2º, nº1 CP. A nível internacional, pode ser encontrado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos; na Convenção Europeia dos Direitos Humanos; e no Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos.
O fim deste princípio é proteger os direitos individuais dos cidadãos, face ao poder punitivo
do Estado: nomeadamente, ao não permitir que se surpreenda o cidadão com a criminalização de
condutas com as quais não podia contar – criando, dessa forma, segurança e certeza jurídicas. Dito
de outra forma, o seu fim primordial é impedir uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva e,
dessa forma, defender os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Desta ideia, conclui-se que o
princípio da legalidade não se dirige apenas ao legislador; dirige-se, também, ao aplicador do
direito.
Este princípio está ligado à ideia de Estado de Direito, sendo que este conceito pode ter dois
sentidos:
O Estado de Direito em sentido formal refere-se à subordinação do Estado ao direito que ele
próprio cria. Esta subordinação implica que a lei seja uma expressão da vontade democrática e,
por isso, soberana; e que toda a atividade do Estado é regulada pela lei – ideia que, por sua vez,
está relacionada com a ideia de divisão de poderes. Ora, o princípio da legalidade será uma
aplicação desse princípio da divisão de poderes, dado reservar a formulação do Direito Penal ao
poder legislativo, não sendo possível ao poder judicial criar (mas apenas aplicar) Direito Penal.
No entanto, o professor Figueiredo Dias vem relembrar que o princípio da legalidade está também
ligado à ideia de prevenção e de culpa. Para este, é possível retirar a necessidade de existência do
princípio da legalidade quer da ideia de prevenção geral, quer do princípio da culpa: por um lado,
para que uma norma cumpra a sua função de prevenção geral, é necessário dar a conhecer aos
cidadãos os comportamentos que podem ser considerados crime; por outro lado, uma pessoa só se
poderá motivar pelo Direito – e agir sem culpa – se conhecer esse mesmo Direito antes de atuar.
Âmbito de aplicação
Sabendo a função do princípio da legalidade, é possível, agora determinar o âmbito de
aplicação do princípio da legalidade. O artigo 165º, nº1, alínea c) CRP refere apenas “crimes, penas,
medidas de segurança e pressupostos” – mas o que significa, em concreto, este âmbito?
Para grande parte da doutrina, este só se irá aplicar a normas penais positivas, ou seja,
normas que fundamentam ou agravam a responsabilidade criminal – isto porque está-se perante
circunstâncias que, enquanto agravam, também definem o crime; e, por isso, são abrangidas pelo
artigo 165º (“definição dos crimes e penas”). Já às normas penais negativas, que são aquelas que
excluem ou diminuem a responsabilidade criminal, não se aplica este princípio, dado que tanto a
norma pela negativa como o princípio da legalidade têm o mesmo objetivo: afastar o poder punitivo
do Estado, protegendo os direitos individuais face ao mesmo – ora, tendo a mesma função, não é
preciso aplicar os dois.
No entanto, é necessário discutir a aplicação, dentro das normais penais negativas, às normas que
preveem causas de exclusão completa de responsabilidade criminal. Parte da doutrina defende o
princípio da legalidade não se aplica, visto que as causas têm o mesmo objetivo; no entanto, existe
outra parte da doutrina (como a professora Fernanda Palma) que resolve distinguir consoante a
circunstância ezimente. Assim:
Em circunstâncias ezimentes que permitem certas condutas que, em geral, são proibidas,
abrindo uma exceção, não aplicar o princípio da legalidade iria afetar as expectativas gerais e
diminuir a segurança dos cidadãos (ex: se, ao não se aplicar o princípio da legalidade, se
permitir escutas telefónicas noutras situações que não as explicitamente previstas pelo
legislador, põem-se em causa a segurança do cidadão, nomeadamente quanto à sua privacidade).
Se a causa que exclui essa conduta decorrer de um princípio geral de direito, esta é supralegal –
assim, a insuportabilidade da lesão do bem jurídico em questão justifica essa causa de exclusão,
à luz do princípio da dignidade humana, consagrado constitucionalmente; pelo que não se aplica
o princípio da legalidade (ex: legítima defesa preventiva, de modo a evitar que seja magoada).
o Já em circunstâncias ezimentes que visam alargar o âmbito da aplicação sem existir um
princípio geral de direito por detrás, enquanto norma penal negativa, este princípio também
não seria aplicado. No entanto, a professora Fernanda Palma defende a sua aplicação, dado
que, apesar da conduta do agente ser ilícita e provocar danos, esta não se enquadra no
esquema jurídico previsto – pelo que achando em contrário será afetar a expectativa dos
cidadãos (ex: aceitar que uma pessoa se possa defender legitimamente de um sonâmbulo que
lhe aponta uma arma, mesmo que este não tem possibilidade de controlar as suas ações –
para a professora Fernanda Palma, ampliar desta forma o âmbito de direito de necessidade
será contra o princípio da legalidade).
Relativamente à aplicação deste subprincípio a medidas de segurança, não existe consenso
doutrinário. No fundo, as medidas de segurança visam a prevenção especial, de tratamento do
próprio; ora, se face à lei atual, conclui-se que o tratamento deverá ser outro que não aquele previsto
quando a ação foi feita (em função da sua adequação), deverá optar-se por esse tratamento – logo,
supostamente, o princípio da legalidade não deve ser aplicado às mesmas. De qualquer das formas,
no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP, incluem-se medidas de segurança, logo tal é admitido
constitucionalmente (independentemente das opiniões da doutrina).
Subprincípio relativo às fontes:
Segundo este subprincípio, não há crime nem pena sem lei formal/escrita. Esta “lei formal”
encontra-se no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP, que estabelece uma reserva relativa da competência
legislativa da AR. Isto significa, então, que só pode ser fonte de Direito Penal uma lei da AR ou um
Decreto-Lei autorizado do Governo – pelo que a AR é sempre a fonte última do Direito Penal. Só
assim haverá segurança democrática, com todas as leis penais a decorrem da maioria democrática.
De notar que não basta demonstrar que o legislador, através de uma lei formal, prevê um crime
e uma pena/medida de segurança – este terá, também, de relacionar o crime à pena; ou/e a
medida de segurança aos seus pressupostos.
No entanto, e também à luz da CRP, parece ser possível ter como fonte de Direito Penal
algo que não lei formal, nomeadamente no caso do costume internacional. De acordo com o artigo
29º, nº2, este costume (convicção generalizada na sociedade internacional sob o carácter criminoso
de dada conduta) poderá ser fonte; mas este é limitado, pelo legislador, pela lei interna – isto porque
o costume internacional, enquanto fonte, apresenta algumas dificuldades. A lei penal terá de ser
certa e estrita, e a pena terá de estar determinada; ora, isso é algo que não é comum no costume
internacional. Assim, é necessário olhar para a lei interna, e ver quais as penas aplicadas para os
crimes próximos ao crime do costume internacional.
De notar que o Direito Internacional Penal não compreende apenas o costume internacional;
também abrange disposições constantes dos contratos e convenções internacionais a que o
Estado Português tenha aderido, como parte outorgante ou como posterior aderente (ex:
Tribunal Penal Internacional). Cada vez mais o Direito Português é “condicionado” por Direito
Penal Internacional, nomeadamente ao nível de Direito Penal Europeu (enquanto atos
legislativos adotados a nível da EU): existem instâncias comunitárias que têm o poder de impor
normas, por exemplo, através de diretivas, que se projetam depois no Direito Penal nacional.
De qualquer forma, o Direito Penal continua a ser um direito intraestadual por excelência, pelo que
a fonte formal e orgânica do mesmo são os órgãos estaduais. Por isso, o costume nacional é
proibido como fonte de Direito Penal, no sentido de fonte de normas penais positivas; mas pode ser
fonte de normais penais negativas, segundo a professora Conceição Valdágua (ex: o direito de
correção de uma mãe perante um filho, socialmente dado, é admissível como causa de exclusão de
ilicitude, se esta lhe der uma palmada para o prevenir de estar constantemente a tentar passar a
estrada sozinho).
Subprincípio da Tipicidade:
Outro subprincípio é o princípio da tipicidade, que tem a ver com o grau de definição do
crime: “não há crime nem pena/medida de segurança sem lei certa”. Segundo este, a ação criminosa
e os pressupostos da medida de segurança têm de estar determinados com suficiente precisão na
norma legal, dado que só uma ação objetivamente determinável se torna orientadora do
comportamento humano. Ou seja, o cidadão, para dirigir as suas condutas, tem de ter acesso a
normas de orientação de comportamento, que definem com precisão o comportamento que não
querem. Esta necessidade de determinação não é só quanto à conduta; mas também quanto às penas
aplicáveis: é necessário estarem determinadas as penas ou as medidas de segurança aplicáveis a
determinado comportamento, e a conexão que deve existir entre a conduta proibida e a pena
aplicada.
É por isso que existe uma parte da doutrina (professora Fernanda Palma) que, em vez de falar de
princípio da tipicidade, fala em princípio da determinação das normas penais.
Isto significa, consequentemente, que nenhum comportamento pode ser considerado
criminoso se não corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito
legal. O crime é uma ação típica: ou seja, é uma ação que tem de se subsumir, integrar,
corresponder, às palavras descritas no tipo legal de crime.
O facto de o tipo legal de crime ter de definir, com precisão, as circunstâncias, para que
determinada conduta possa ser considerada crime, não implica uma total determinação dos
conceitos pelas normas penais. O legislador pode, na mesma, recorrer a conceitos indeterminados
na redação das normas; desde que a conduta criminosa em si seja determinada com suficientemente
precisão (ex: artigo 132º sobre o homicídio qualificado – o essencial da conduta proibida, ou seja, a
ideia de existir uma especial censurabilidade no homicídio, está determinado; pelo que é possível
haver conceitos indeterminados como “motivo fútil”). Assim, desde que o essencial da conduta
criminosa esteja previsto, desde que há compreensão do que é que é ilícito, não há violação do
princípio da tipicidade.
Relativamente a este subprincípio, temos, em específico, o caso das leis penais em branco.
Uma lei penal em branco é, segundo a doutrina, uma norma cujo pressuposto de facto se configura
por remissão a normas de carácter não penal (ex: artigo 278º CP sobre danos contra a natureza – o
legislador, no início, remete para outras disposições de valor hierárquico inferior; sendo que o
mesmo se verificaria se fossem disposições de valor hierárquico superior).
Estas normas justificam-se porque estão relacionadas com outros ramos de direito, que não podem
estar a ser incluídas no direito penal pelo legislador; por isso, quando entra em normas relacionadas
com outros ramos de direito, este remete para esses mesmos ramos. Assim, desde que a norma
penal em branco continue a definir com suficiente precisão o que é necessário a conduta revestir
para ser considerada crime – normas relativamente em branco – não viola o princípio da tipicidade.
No entanto, normas que sejam totalmente remissíveis – normais penais absolutamente em branco –
já violam claramente o princípio da legalidade. Por outras palavras, uma norma penal em branco só
é admissível quando o conteúdo essencial da conduta que constitui crime está contido na norma.
As normas relativamente em branco são necessárias, dado serem uma forma de se poder
considerar como crime certas condutas relacionadas com outros ramos de direito: a explicação
técnica de certos conceitos estará nesses ramos (a nível, por ex., de conceitos indeterminados);
mas o conteúdo essencial relativamente à penalidade da conduta está na norma penal.
Caso prático:
Imagine que o Governo aprovou, ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo 198º da CRP, um
decreto-lei com o seguinte teor: “1) Quem infringir disposições regulamentares reguladoras da
venda de objetos na via pública, é punido com pena de prisão. 2) Se o facto for praticado sem
culpa, a pena será de multa até 120 dias”. Comente o texto apresentado.
Em primeiro lugar, este decreto-lei viola o princípio relativo às fontes, relacionado com o
princípio da legalidade, segundo o qual não há crime nem pena se não existir lei formal – entenda-
se, sem lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo, mas autorizado pela Assembleia
da República. Este está constitucionalmente consagrado no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP;
admitindo-se, também, o costume internacional como fonte de direito penal. No entanto, aqui, o que
está em causa é um decreto-lei do Governo ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo 198º da CRP,
relativo à competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da
República – sendo a matéria penal, como já se pode verificar, uma matéria especificamente
reservada à Assembleia.
Em segundo lugar, este decreto-lei é uma lei penal absolutamente em branco, na medida em
que remete todo o seu conteúdo para outras normas (nomeadamente, as “disposições
regulamentares reguladoras da venda de objetos na via pública”). Estas são proibidas no Direito
Penal, por violarem o princípio da tipicidade: não está minimamente determinado, nesta lei penal,
qual é o conteúdo necessário para que o agente possa ser punido com pena de prisão. Denote-se que
o Direito Penal permite as leis penais relativamente em branco, visto que o conteúdo essencial sobre
a conduta proibida está na lei penal; só a concretização de outros conceitos é que está noutros
diplomas.
Além disso, existe outra violação do princípio da tipicidade, na medida em que a lei não é clara: o
decreto-lei apenas prevê a possibilidade de pena de prisão, mas não estipula os limites mínimos e
máximos dessa pena de prisão, estipulada na estatuição.
Depois, este decreto-lei viola, ainda, o princípio da culpa, que estipula que não há crime nem
pena sem culpa do agente. Este princípio não tem consagração constitucional expressa, sendo
retirado do princípio da dignidade humana: só se respeita a dignidade de uma pessoa se apenas a
responsabilizar pelos atos que praticou no âmbito da sua autonomia. Ora, aqui, no nº2, está-se a
aplicar uma “pena” de multa sem que o agente, no entanto, tenha culpa da sua conduta, algo que
não é permitido em âmbito de Direito Penal.
Por fim, existe ainda uma violação do princípio da subsidariedade ou princípio da
intervenção mínima do Direito Penal. Segundo este, o Direito Penal apenas deverá atuar em
situações em que essa atuação seja necessária e eficaz, não podendo existir outro ramo de direito
que consiga proteger tais bens jurídicos fundamentais da mesma forma. Ora, neste caso, a conduta
que está a ser criminalizada, nomeadamente a violação de disposições regulamentares reguladoras
da venda de objetos na via pública, não abarca a violação de interesses fundamentais suficiente para
que se justifique a intervenção do Direito Penal, podendo os mesmos serem adequadamente
protegidos e garantidos por outros ramos de direito menos lesivos – por exemplo, o Direito
Contraordenacional.
Aplicação analógica
Importa discutir se é ou não possível, em Direito Penal, recorrer à analogia para a integração
de lacunas. Na analogia, existe um caso em concreto que não está previsto nem na lei, nem pelo
pensamento legislativo; mas é, no entanto, um caso semelhante àqueles que estão, de facto,
tipificados na lei. Assim, recorre-se à analogia quando se pode, por meio da mesma, integrar esse
caso não tipificado na lei, por partilhar semelhanças a outros que estão tipificados.
Ora, a nível penal, o artigo 1º, nº3 CP proibe expressamente o recurso à analogia; mas esta é
apenas proibida quando essa integração implique a fundamentação, a extensão ou a agravação da
responsabilidade do agente – analogia mala partem ou “contra réu” ou “desfavorável ao agente”
(artigo 1º, nº3 – “para qualificar um ato como um crime”). Assim, a analogia apenas pode ser
utilizada para afastar ou diminuir a responsabilidade criminal – analogia bonam parte. O artigo 29º,
nº1 e nº3 CRP também apoia esta idea.
Sendo o fim do princípio da legalidade proteger os direitos dos cidadãos face ao poder do Estado,
ao não permitir que ele seja surpreendido com a criminalização de condutas com o qual ele não
poderia contar, a analogia male partem não é admitida pois iria, precisamente, surpreender os
cidadãos nesse sentido. Só esta será, então, proibida, porque violaria as expectativas razoáveis do
cidadão – e o princípio da legalidade existe para que essas mesmas expectativas não sejam
contrariadas. A analogia bonam parte, por sua vez, não viola as expectativas razoáveis do cidadão,
apanhando-os desprevenidos quando a uma conduta, de repente, ser considerada ilícita, pelo que
será admitida no nosso ordenamento jurídico (ex: aplicar uma causa de exclusão de ilicitude a casos
análogo, dado que beneficia o dito responsável).
No caso do genocídio, poder-se-á concluir que, entre a segurança das expectativas e o respeito
pelos direitos humanos, o respeito pelos direitos humanos ganhou – e, consequentemente,
criminalizou-se o genocídio. No entanto, acaba por não se poder dizer propriamente que as
pessoas fossem surpreendidas com a criminalização do genocídio, na medida em que o ato de
matar já era considerado censurável pelo Direito.
Esta proibição de analogia male partem resulta dos fundamentos internos do princípio da
legalidade que o professor Figueiredo Dias falou. Segundo este, o Direito Penal apenas pode
cumprir a sua função preventiva, na medida em que as pessoas conheçam quais as condutas
consideradas crime. Ora, se se fosse recorrer à analogia, não se poderia cumprir essa função, dado
que as pessoas não sabiam que estavam a cometer um crime, visto que este não estaria previsto
como tal.
Outros professores acrescentam que a proibição desta analogia resulta, também, da competência
exclusiva da AR sobre matéria de lei criminal .O Direito Penal pode apenas ter como fonte lei da
AR ou Decreto-Lei autorizado do Governo (artigo 165º, nº1, alínea c) CRP), pelo que não se pode
deixar que os juízes, através da aplicação da analogia, criem, na prática, novas leis penais.
No entanto, a analogia mala partem é apenas proibida enquanto meio de integração de
lacunas – ou seja, para dizer que certo comportamento é crime, porque outro semelhante também o
é, mesmo não sendo formalmente previsto como tal pela lei. No entanto, esta proibição não implica
à analogia como meio de interpretar conceitos contidos na norma penal.
A norma penal contém conceitos indeterminados, pelo que, muitas vezes, para se conseguir decidir
se o caso concreto cabe naquele conceito, é necessário comparar o caso nuclear – isto é, o caso que
cabe perfeitamente naquele conceito – com os casos duvidosos. Ora, dessa comparação, dessa
analogia, é que se decide se o caso em concreto cabe, ou não, no conceito (ex: a utilização de
veneno para matar alguém pode ser considerado um meio insidioso, pois faz com que não se dê à
vítima qualquer possibilidade para se defender; mas matar alguém pelas costas pode ser discutível,
dado que a vítima pode ouvir o agressor e defender-se, dependendo das circunstâncias do caso
concreto).
Nota-se que uma parte da doutrina defende que este método de subsunção de interpretação e
aplicação da lei penal já não consegue explicar, de forma correta, a aplicação de lei penal, dado
que pressupoe a separação entre a lei e o caso – sendo o caso pena, sempre, um caso em
construção, não havendo essa separação. A professora não concorda, defendendo que, segundo
o método de subsunção, está-se sucessivamente a interpretar o caso e a interpretar a norma,
sendo dessa interpretação que se pode concluir se o caso se integra (ou não) na norma.
Problema da interpretação
De acordo com o critério tradicional, a interpretação extensiva ocorre quando o sentido a
atribuir à lei não está na letra da lei, mas é expressão dos desígnios do legislador – por isso se
costuma dizer que, na interpretação extensiva, existe um sentido com o mínimo de correspondência
verbal na lei. Já na interpretação declarativa lata, uma palavra ou conjunto de palavras são vistas no
seu sentido amplo. Pelo contrário, na interpretação declarativa restritiva, dos vários sentidos que a
palavra pode ter, conclui-se que o pensamento legislativo coincide com o sentido mais restrito da
mesma (ex: a palavra “homem”, se for interpretada em sentido lato, inclui pessoas de sexo
masculino e feminino; mas, se se interpretar pelo sentido restritivo, já só abarca pessoas do sexo
masculino).
Roxin e, entre nós, o professor José de Sousa Pinto, entendem, partindo destes conceitos
tradicionais de interpretação, que em Direito Penal não é possível interpretação extensiva. Isto
resulta do artigo 29º, nº3 CRP (“expressamente”): não é possível dar um sentido à lei que não esteja
expresso na mesma; ora, a interpretação extensiva não está expressa, apenas corresponde no seu
mínimo. No entanto, apesar não ser possível a interpretação extensiva, é possível a interpretação
declarativa lata, que atribui à lei um sentido que ainda cabe no sentido amplo das suas palavras.
Já o professor Figueiredo Dias defende que a distinção que importa fazer já não é entre
interpretação extensiva ou interpretação declarativa lata; mas sim entre interpretação permitida e
analogia proibida. Assim, se a interpretação permitida é considerada extensiva ou restritiva ou
declarativa lata não é importante. Concluindo, acaba por dizer que, em Direito Penal, só é possível
fazer uma interpretação se esta couber no quadro das significações possíveis das palavras da lei,
pelo que o mais importante será que não se saia do sentido possível das palavras; de outra forma,
estaria em causa a função do princípio da legalidade. Por outras palavras, não pode ser uma
interpretação que não esteja funcionalmente determinada.
Para as professoras Conceição Valdágua e Teresa Beleza, não há um espaço a percorrer
entre o sentido possível das palavras e ter o mínimo de correspondência verbal – ou seja, a
interpretação que tem o mínimo de correspondência verbal no texto da lei ainda cabe no sentido
possível das palavras. Assim, ambos tipos de interpretações são possíveis; sendo que a interpretação
a dar às palavras não é apenas das palavras em si, mas sim das palavras no contexto da lei – isso,
sim, será o sentido possível (ex: artigo 208º CP – aplica-se esta norma se alguém furtar um triciclo
com a intenção de devolver passados 3 dias depois de a usar? Ou poderá uma seringa infetada com
uma doença infeciosa ser considerada como uma arma?).
Para o professor Castanheira Neves, deve-se eliminar a distinção entre interpretação
extensiva e analogia e, em vez, disso, estabelecer a fronteira entre a interpretação permitida e a
interpretação proibida. Sempre que a interpretação não preveja uma imprevisibilidade e, por isso,
exista segurança e certeza jurídica, esta é permitida – sendo que tal ocorre sempre que a
interpretação ainda caiba no âmbito da proteção da norma. Assim, para uma interpretação ser
permitida, é preciso: 1) que o sentido a atribuir à norma caiba no sentido logicamente possível das
palavras da lei; e 2) que aquela interpretação revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir,
desde que compatível com outros valores do sistema e com a unidade do direito definida pelas
instâncias que a devem assegurar (ou seja, os tribunais). Este pensamento parece retirar qualquer
relevância ao momento da interpretação relacionado com o significado do texto, sendo o critério
central o da imprevisibilidade – ora, isso não só enfraquece o processo de fundamentação da
decisão jurídica, como vai contra o artigo 1º CP, na medida em que se recorre à analogia
(comparando uma conduta com outra) para perceber se algo é imprevisível ou não.
Para a professora Fernanda Palma, a divisão entre interpretação permitida e interpretação
proibida – feita por Castanheiro Neves – será fundamentada apenas na racionalidade da proibição
da analogia, desligando-se das categorias tradicionais. Assim, a interpretação permitida será aquela
que não ofenda as expectativas do cidadão, e que não ponha em causa a segurança jurídica e o
controlo democrático da aplicação da lei penal; mas (e ao contrário de Castanheiro Neves), tal
interpretação também não poderá prescindir nunca da relevância do texto jurídico, ou seja, do
sentido possível das palavras do texto. Ora, este sentido possível é dado pelo sentido
comunicacional percetível do texto – e não por qualquer sentido lógico não sustentável pela
linguagem social –, e delimita-se pela adequação do texto à essência do proibido, de acordo com as
valorações do sistema que a norma revela (ex: Ao furta uma rulote de atrelado para utilizar e,
depois, devolver, pode ser aplicar a norma do furto de uso? As rulotes são puxadas, não são um
veículo – logo, não seria aplicado, pois não cabe no sentido comunicacional das palavras).
Por fim, a professora defende que, para se determinar qual o sentido a dar à lei, é de toda a
utilidade saber a distinção entre interpretação e aplicação analógica (mesmo sendo estes conceitos,
em si, sempre discutidos pela doutrina): isto porque a aplicação analógica pressupõe a aplicação da
norma a um caso não previsto na lei – algo que está expressamente proibido, pela CRP e pelo CP.
O aspeto mais relevante nesta matéria é a proibição da analogia para fundamentar ou agravar a
responsabilidade criminal; se for para diminuir ou excluir a mesma, a doutrina deixa.
Caso prático:
Imagine que, certa noite, António se colocou num viaduto de uma autoestrada, e daí,
utilizando um potente foco de luz, o apontou a vários veículos em movimento, provocando um
encadeamento de alguns condutores e, consequentemente, o despiste de um deles. A pergunta é:
será possível, sem ultrapassar os limites da interpretação permitida em Direito Penal, punir
António pela prática do crime previsto no artigo 293º CP?
Aqui, a palavra “arremessar” indicia que o legislador está a pensar num objeto, em algo que
se possa mandar; por isso, há uma dificuldade em falar em “arremessar” uma luz enquanto projétil,
não sendo esta um objeto. Assim, para se aplicar tal norma à conduta de António, ter-se-ia de fazer
uma aplicação analógica – aplicação essa que é proibida, enquanto analogia male partem para
criminalizar certa conduta não prevista no Direito Penal, dado violar o princípio da legalidade
enquanto princípio basilar do Direito Penal: “não há crime nem pena sem lei prévia”. Não é
possível dar à lei um sentido extensivo àquele que o legislador queria. Aqui, era necessário
apresentar e discutir as diferentes posições da doutrina e decidir pela não aplicação analógica:
mesmo no sentido comunicacional, menos restritivo a nível doutrinário, da professora Fernanda
Palma, não cabe na letra da lei o sentido de “projetar luz”.
Assim, tal conduta não caberia neste artigo, podendo, no entanto, caber noutros como o crime do
homicídio (se no despiste a pessoa morresse) ou o crime de ofensa à integridade física
(nomeadamente, à visão da pessoa). O mais adequado será o artigo 290º, nº1, alínea d) CP, relativo
ao crime de atentado à segurança de transporte rodoviário. No entanto, se a conduta de facto
resultasse na morte de uma pessoa, iria existir um concurso entre este artigo e o artigo do
homicídio, concurso que poderá ser aparente (se uma das normas conseguir esgotar a análise do
caso, aplica-se apenas essa) ou real (quando se aplica mais do que uma norma, porque apenas uma
dela não esgota o comportamento completo criminal do agente).
Subprincípio da Aplicação da Lei Penal no Tempo:
Segundo este subprincípio, “não há crime nem pena sem lei prévia”, sendo esta lei prévia
uma referência a lei da AR ou Decreto-Lei autorizado do Governo, tendo em conta a função e o fim
do princípio da legalidade. No entanto, se a lei, não sendo prévia, for favorável, este princípio deixa
de vigorar, pelo que a expressão mais correta será: “não há crime nem pena sem lei que fundamente
ou agrave a responsabilidade criminal do agente”.
Este princípio resulta do artigo 29º, nº1, nº3 e nº4, primeira parte CRP, que fala na
necessidade de existência de “lei anterior” expressa. Este princípio também está na lei ordinária,
nomeadamente no artigo 1º, nº 1 e nº2 CP, assim como no seu artigo 2º, nº1.
Tal como os outros, este estende-se às medidas de segurança e aos seus pressupostos. No
entanto, há quem defenda que, a estas, não se deve aplicar este princípio: isto, porque se a lei atual
considera que as medidas de segurança devem ter certa eficácia, mas, de acordo com novos estudos
empíricos, existe outra eficácia a considerar, então devem estas medidas novas devem sobrepor-se
às já anteriormente previstas (mesmo sendo mais desfavorável) – mas é apenas uma discussão
teórica.
b) Imaginem que a nova lei passa a considerar o facto praticado por António como
contraordenação.
O Direito Contraordenacional não é de natureza penal, pelo que se conclui que houve uma
descriminalização a ter em conta: a nova lei deixou de considerar o facto como crime. Ora, isso
significa que a nova lei será mais favorável, eliminando o facto em questão enquanto ilícito
criminal, pelo que deve ser aplicada no caso de António (artigo 2º, nº2 CP; e artigo 29º, nº4 segunda
parte da CRP).
No entanto, o facto continua a ser sancionado. O Direito Contraordenacional faz fronteira
com o Direito Penal, pelo que o seu regime geral tem de ser tido em conta. Ora, quanto à aplicação
da lei no tempo, vigoram exatamente os mesmos princípios: ou seja, o princípio da proibição da
aplicação retroativa da lei contraordenacional mais desfavorável e o princípio da aplicação
retroativa da lei contraordenacional da lei mais favorável ao agente.
Ora, neste caso, a lei nova elimina um crime; mas introduz uma nova contraordenação, que não
existia antes, no momento em que António praticou a ação – pelo que, em abstrato, aplicar uma
coina a António seria mais desfavorável, sendo que antes não lhe seria aplicada tal coima. No
entanto, por outro lado, não faz sentido não aplicar essa coima quando o seu “paralelo” anterior era,
na realidade, uma pena de prisão – ora, uma coima é mais favorável ao agente do que a restrição da
sua liberdade., pelo que não se pode, propriamente, dizer que existe um tratamento menos
favorável.
O professor Figueiredo Dias conclui que o artigo 2º do Decreto-Lei que regula as regras
contraordenacionais só deve valer para os casos em que o facto ou 1) não era sancionado, ou 2)
era sancionado mais levemente – sancionado, aqui, no sentido geral, e não apenas restrito ao
Direito Contraordenacional.
Já o professor Taipa de Carvalho considera que a única hipótese para punir os agentes com uma
coima é incluir na nova lei, que passa a qualificar o facto como contraordenação, uma norma
transitória que estabeleça a punição como contraordenação dos factos praticados na vigência da
lei penal antiga. Ou, em alternativa, estabelecer no próprio regime das contraordenações, uma
lei que diga que, em situações de leis assim, os factos podem ser punidos com contraordenação.
Concluindo, para o professor, é necessário que exista, sempre, uma lei formal a permitir esta
ideia – ideia que é também partilhada pelo STJ.
2) Imagine que, devido à previsão de inúmeros atentados contra exemplares de fauna para o ano
de 2021, a 14 de dezembro de 2021, entrou em vigor a lei K, que agravava a moldura penal do
artigo 278º, nº1 do CP, para 10 a 15 anos de prisão. A lei K fixa o seu periodo de vigência até
31 de dezembro de 2022. Criticada a moldura excessiva dessa lei, a lei K é revogada por uma
nova lei, chamada lei W, que inicia a sua vigência a 27 de fevereiro de 2022, e que tal como a
lei K revogada, fixa o período de vigência até 31 de dezembro de 2022 – com a diferença na
moldura, isto é, a lei W reduz a pena de prisão para 2 a 8 anos. António, a 11 de janeiro de
2022, matou vários lobos no Parque Florestal do Gerês, contribuindo precisamente para fazer
desaparecer aquela espécie animal naquela região.
a) Sendo julgado hoje, a 2 de novembro de 2022, deve sê-lo à luz da lei K ou da lei W?
Havendo uma sucessão de leis temporárias, é necessário ver à luz de que lei a pena será mais
favorável ao agente – isto, por se debruçam sobre o mesmo facto, sendo que o legislador apenas
alterou a sua valoração relativamente a esse facto. Neste caso, será a lei W, pelo que será aplicada
esta, mesmo que o facto tenha sido praticado durante a vigência da lei K.
b) Se for julgado em janeiro de 2023, deve sê-lo à luz de que lei? Da lei K, da lei W, ou do
artigo 278º, nº1 CP?
Não apoiando a posição de Silva Dias, descrita anteriormente, será aplicada, na mesma, a lei
K, na medida em que é uma lei de emergência que será sempre mais favorável, dado as molduras
legais nunca se tocarem: tanto o limite máximo (8) como o limite mínimo (2) são mais favoráveis
(do que os limites de 10 e 15 anos).
3) O António decidiu matar o pai, utilizando um veneno que o mataria ao fim de 4 doses, que
foram por si administradas sucessivamente em agosto, setembro, outubro e novembro de 2007.
Imagine que, com a entrada em vigor, em 15 de setembro de 2007, da lei 59/2007, era alterado
o artigo 132º do CP, passando a punir-se o homicídio qualificado com uma pena entre 15 a 30
anos.
a) À luz de que versão do CP, a anterior ou a posterior à entrega em vigor da lei nº59/2007,
lhe parece que devia ser julgado o crime cometido por António?
Ao pressupor especial censurabilidade, o homicídio qualificado pressupõe especial culpa,
podendo esta ser evidenciada pelas alíneas do artigo 132º – sendo que uma delas pode ser matar um
familiar. No entanto, é necessário, além de se verificar estas alíneas, que essa situação específica
revele a tal especial censurabilidade do agente (ex: algo que não se irá revelar se, por exemplo, o pai
tivesse uma doença terminal e estava a sofrer).
Uma parte da doutrina (professor Silva Dias) defende que estas alíneas são apenas “exemplos
padrão”, sendo que o legislador exige que se verifique, não especificamente uma situação igual às
mesmas, mas uma situação que é valorativamente similar a uma dessas alíneas. No entanto, para a
professora, tal lógica implica a violação do princípio da proibição da analogia male partem como
fundamento. Assim, outra lógica a adotar será aquela que considera que o nº1, em si, já concretiza o
fundamento necessário para o homicídio qualificado – nomeadamente a “especial censurabilidade e
ou perversidade” –, sendo que o nº2 apenas consagra alguns exemplos, “entre outros”. O nº1, se
existisse sozinho, não violaria o princípio da legalidade, porque já é suficientemente concretizador
das circunstâncias necessárias para haver homicídio qualificado.
Para além da tentativa de homicídio, pode-se falar aqui do crime de ofensa à integridade
física ou, até, de violência doméstica. Se os elementos destes três crimes estiverem preenchidos,
existe um concurso aparente de crimes: isto porque um dos tipos de crime consegue esgotar a
avaliação da conduta praticada pelo agente. Assim, ir-se-á aplicar o crime que esgota a avaliação
dos outros – a tentativa de homicídio –, sob pena de se violar o princípio non bis in idem: ninguém
pode ser julgado duas vezes (neste caso, três) pelo mesmo facto.
O crime de homicídio só ocorre num momento: ou seja, aqui, o pai de António morre com a
ação de António de administrar, em novembro, a quarta dose – não o tendo feito, a vítima não teria
morrido, mesmo que as outras três doses tenham sido administradas. Por isso é que não existe, aqui,
um crime duradouro, mesmo que a execução deste crime se prolongue no tempo: António não está
todos os dias a matar o pai, mas apenas uma vez ao mês. Para falar de crime duradouro, tem de se
ter em conta o crime em si: ora, no caso de homicídio, em abstrato, ele verifica-se apenas com a
morte da pessoa, que só se dá num momento e, por isso, não é um crime duradouro, mesmo que o
autor tenha passado por várias etapas para o realizar. É, assim, um crime instantâneo, que ocorre
quando ocorre a morte; assim, as outras doses administradas são consumidas pelo crime de
homicídio qualificado – não se irá punir António pelas três doses administradas + a última que o
matou.
Isto significa que, em relação à aplicação de lei penal no tempo, neste caso específico, a
ação que provoca a morte (novembro) dá-se depois da lei (setembro) – pelo que, não existindo uma
sucessão de leis, aplicar-se-á a lei de setembro.
b) E se a nova lei passasse a punir o homicídio qualificado com pena de 10 a 20 anos, mas
estabelecesse que só teria efeitos a 1 de janeiro de 2008, não podendo ter efeitos retroativos
(quando o caso fosse julgado)?
Em princípio, a lei a aplicar será a lei mais favorável; mas, no caso concreto, é necessário
ver se, à luz da primeira lei, a medida concreta da pena seria, mesmo, favorável. No entanto, o facto
de o legislador dizer que esta lei, que sai em setembro, só terá efeitos em janeiro, sem efeitos
retroativos, é algo inconstitucional, dado que vai contra o princípio constitucional da retroatividade
da lei penal mais favorável. Assim, continuava-se a aplicar esta lei de forma retroativa, ignorando-
se apenas a parte inconstitucional – A seria julgado de acordo com esta lei, dado ser mais favorável
tendo em conta a lei anterior.
4) A lei antiga previa como crime conduzir com grau de alcoolémia de 1.2 gl A lei nova passa a
considerar como crime o conduzir com 1.2 gl e, desse modo, criar perigo para a vida.
a) À luz de que lei vai ser julgado António, que foi apanhado a conduzir com 1.4gl e criou,
desse modo, perigo para a vida de Bernardo, durante a vigência da lei antiga?
Um crime de dano ou de lesão é um crime que pressupoe, para estar preenchido enquanto
tipo, a lesão de um bem jurídico (ex: crime de homicídio lesa o bem jurídico vida). Os crimes de
perigo já não pressupõem essa lesão clara para estar preenchidos, sendo que se distinguem entre os
crimes de perigo abstrato – basta existir uma ação abstratamente perigosa para estar preenchido o
tipo – e os crimes de perigo concreto – é necessário, para além da ação perigosa, que se prove que
foi criado um perigo para o bem jurídico (possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico).
Ora, neste caso, a lei antiga previa um crime de perigo abstrato, enquanto a nova passou a
considerar este crime um crime de perigo concreto. No entanto, como António foi apanhado a
conduzir com grau de alcoolemia E criou, também com a sua conduta, um perigo para a vida, tal
conduta preenche as duas leis. Assim, preenchendo as duas, interessa é saber à luz de que lei a pena
é mais favorável ao A, sendo que depois seria essa a aplicada.
b) Imaginem que a criação do perigo concreto não ocorreu. Quid Iuris?
A conduta do António de conduzir com álcool, mas sem criar perigo concreto, foi
descriminalizada. A figura dos crimes de perigo abstrato é uma figura que o legislador deve utilizar
com muito cuidado porque, em última análise, ele está com esta a antecipar a tutela dos bens
jurídicos – na medida em que, nestes casos, não existe nenhum comportamento concreto (apenas
abstrato) a pôr em perigo bens jurídicos, tal como o conceito material de crime exige. De qualquer
das formas, não existindo a criação de perigo concreto contra a vida, e havendo, por isso, uma
discriminização da conduta do António com a lei nova, então António não será punido.
No entanto, se se considerar que, abstratamente, António preencheu a lei antiga,
consequentemente, existiria um preenchimento de tentativa do crime ditado pela lei nova – na
medida em que António teve uma intenção, no caso, de criar esse perigo (seria necessário ele ter
dolo). Ora, estando isso provado, e se a tentativa for punida, António será punido. No entanto, não
existindo provas, nesse sentido, do dolo do António, este não será punido, porque se aplica a pena
nova.
Segundo o professor Silva Dias, no caso concreto ter-se-á de, na mesma, considerar ambas as
leis, porque a ação abstratamente perigosa foi preenchida em ambas – pelo que, apesar de não
ter havido o preenchimento do perigo concreto, deve-se considerar na mesma a medida da pena
de ambas as leis; mas a professora não concorda com esta lógica.
5) Tendo descoberto que estava grávida, Antónia decidiu deslocar-se a Londres para abortar, o
que realmente fez a 10 de janeiro de 2006, quando decorria a 10º semana de gravidez. Com a
lei nº16 de 2007, a interrupção da gravidez a pedido da mulher durante as primeiras 10º
semanas foi despenalizada. Vamos supor que ainda em 2007 o Tribunal Constitucional viria a
declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, a referida norma. Em 7 de janeiro de
2008, Antónia é submetida a julgamento. Qual a lei penal aplicável a Antónia?
O professor Rui Pereira considera que uma lei inconstitucional não pode ser aplicada,
porque nem sequer produz efeitos – ou seja, existe uma repristinação da lei anterior. Logo, aqui, não
existe a violação do princípio da retroatividade da lei mais favorável, porque esse princípio implica
uma sucessão de leis no tempo, que não é o que acontece aqui, dado que a lei inconstitucional nunca
chegou a fazer efeito (artigo 232º). Para os casos em que o ato é feito durante a constitucionalidade
da lei, o professor acaba por dizer que a pessoa será julgada, mas sem culpa.
No entanto, há outra parte da doutrina que considera que, embora o efeito normal da decisão do TC
é fazer cessar a vigência da lei inconstitucional desde a data da sua criação e, consequentemente, o
repristinar da lei anterior, esse efeito entra em conflito com o princípio da retroatividade da lei penal
mais favorável. Ora, face ao choque entre os dois princípios em conflito, deve prevalecer o regime
da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, desde logo tendo em conta a tutela da confiança
dos destinatários da lei penal e o princípio da necessidade da pena inerente ao princípio da
retroatividade – nos casos em que o agente atuou durante a vigência da norma que, mais tarde, vem
ser declarada inconstitucional, foi essa a norma que orientou o seu comportamento. Assim, para
perceber qual a norma a ser aplicada, é necessário perceber se o ato foi cometido durante a
constitucionalidade da lei.
Neste caso, Antónia seria julgada de acordo com a lei inicial, dado que, por um lado, não foi
orientada pela lei nova, tendo esta saído depois da sua conduta e, por outro lado, porque existe uma
retroatividade dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pelo que esta não poderá ser vista
como alguma vez ter existido para efeitos de aplicação retroativa.
2) Factos cometidos no estrangeiro que não estejam abrangidos pelas alíneas anteriores, quando o
Estado português se tenha obrigado, internacionalmente, a aplicar a lei penal portuguesa –
situações de tráfico de droga ou pirataria aérea (nº2): Considera-se que este nº2 é um
prolongamento do princípio da aplicação universal (alínea c).
2) Se a lei estrangeira for concretamente mais favorável ao agente, aplicando, nesses casos, a pena
concreta que resultaria da aplicação da lei estrangeiro (artigo 6º, nº3). Em termos práticos, vai
dar ao mesmo se aplicarmos a lei estrangeira ou a lei portuguesa com a moldura penal
estrangeira: ir-se-á aplicar a pena concreta mais favorável.
o Esta possibilidade não se aplica nos casos previstos nas alíneas a) e b); o mesmo vai
acontecer nos crimes de terrorismo e de crimes de violação do direito internacional
humanitário.
2) Afasta-se o princípio da não extradição de nacionais, embora este afastamento não seja
obrigatório; existe, portanto, uma possibilidade de recusar a extradição de nacionais a título de
mandado de detenção europeu. Isto resulta do artigo 12º, nº1, alínea g) da lei nº65/2003.
4) Afasta-se as garantias constitucionais que constam do artigo 33º, nº4: Para entregar uma pessoa
com base no mandado, se o país prever prisão perpétua ou de duração indefinida, pode-se, à
mesma, entregar a pessoa – com a garantia de estar previsto, na ordem jurídica nesse Estado, 1)
a possibilidade de revisão da pena a pedido ou ao fim de 20 anos; ou 2) penas de clemência.
o Esta interpretação não oferece garantias suficientes em matéria de dignidade humana,
ultrapassando os seus limites; ao ponto de o Tribunal Constitucional alemão já ter declarado
algumas normas assinadas em convenção como inconstitucionais.
Hipóteses:
NOTA: Nos casos práticos, a sequência de alíneas a ser analisadas tem de ser seguida.
1) Madalena, que se encontra grávida de 13 semanas, decide interromper a gravidez. Sabendo
que, salvo situações especiais, previstas na lei penal, o aborto em Portugal só pode ser
praticado nas primeiras 10 semanas de gravidez (artigo 142º, nº1, alínea e), decide ir a um
país onde o aborto só é punível se for praticado depois das 16 semanas, a fim de aí interromper
a gravidez. Regressada a Portugal, pode Madalena ser julgada e condenada pelo crime de
aborto, previsto e punido no artigo 140º CP.
Primeiro, é necessário perceber em que lugar foi praticado o facto – conclui-se que foi mo
outro país (sendo aqui claro que é fora do território nacional). Isto faz com que se exclua a
aplicação do artigo 7º, pelo que se vai para as alíneas do artigo 5º.
A grande dúvida nesta hipótese é se é possível interpretar a expressão “contra português” no
sentido de abarcar, também, quando estão em causa bens jurídicos tutelados pela ordem jurídica
portuguesa – isto, porque o feto não é um português, dado que em Direito Penal, o crime de
homicídio apenas se confere a partir do trabalho de parto (segundo a professora). Ora, isto tem a ver
com a matéria da interpretação: nomeadamente, não é possível fazer analogia se for desfavorável, o
que neste caso é – logo, em princípio, é proibido interpretar dessa forma, porque seria para
incriminar.
No entanto, por outro lado, existe uma parte da doutrina portuguesa que considera que, quando se
está a falar de normas de aplicação da lei no espaço e no tempo, não devem ser aplicadas as mesmas
regras de interpretação que seriam aplicadas relativamente a todas as outras normas. Isto porque,
como são normas jurídicas que regulam, em termos gerais, a aplicação no tempo e no espaço, o
legislador tem necessariamente de recorrer a conceitos mais abrangentes do que nos tipos criminais.
A professora Fernanda Palma não concorda com esta posição, na medida em que se vai surpreender
o cidadão com a criminalização de uma conduta com que ele não poderia estar à espera –
nomeadamente, com a aplicação de lei portuguesa a condutas feitas no estrangeiro.
Se não se seguisse a doutrina da professora Fernanda Palma, além disso, poder-se-ia de
discutir se, relativamente à alínea b), se havia ou não intenção de fraude à lei; mas, partindo do
pressuposto que se segue a primeira corrente doutrinária, este não será um pressuposto a preencher.
De qualquer das formas, ainda será necessário outro requisito: ter habitação habitual em Portugal e
ter sido apanhada em Portugal – sendo ambas afirmações verdade, neste caso.
Concluindo, não existirá qualquer entrave à aplicação da lei portuguesa a Madalena: apesar
de o nº2 dizer que se aplica a lei mais favorável ao agente, sendo aqui a estrangeira (que não pune a
conduta); o nº3 afasta esta regra nos casos das alíneas a) e b).
2) Nuno envia de Marrocos, para a residência do banqueiro José, situada na cidade de Lisboa, e
a este dirigida, uma carta armadilhada, com o objetivo de, ao ser aberta, explodir e, assim,
provocar-lhe a morte, ou pelo menos lesões corporais graves. Sucedeu, porém, que numa
estação de correios espanhola, a carta foi desativada pela polícia espanhola. Tendo Nuno
regressado a Portugal 2 anos após o envio desta carta:
a) Têm os tribunais portugueses competência para julgar este caso?
Determina-se, primeiro, o lugar da prática do facto, de forma a ver se se aplica o artigo 7º
(princípio da ubiquidade): ora, aqui, a tentativa de homicídio foi, em teoria, praticada fora do
território nacional. No entanto, o legislador vai ao ponto de dizer que o sítio será o sítio em que a
pessoa queria que o resultado ocorresse, de acordo com a sua representação – ou seja, o sítio será
em Lisboa. Assim, os tribunais terão competência, com base apenas no princípio da territorialidade
(artigo 4º).
E se, na lei marroquina, a tentativa do crime de homicídio tivesse uma pena mais leve? Ou
seja, o artigo 6º funciona quando funciona o artigo 5º – mas a doutrina discute se o artigo 6º, nº2 se
pode aplicar, também, quanto ao princípio da territorialidade; e não apenas à aplicação da lei penal
portuguesa a factos praticados no estrangeiro. Uma parte da doutrina (professor Silva Dias) defende
que não, porque o princípio da territorialidade também salvaguarda a soberania do Estado e,
portanto, não se deve ter em consideração nunca a lei penal estrangeira. Já outra parte da doutrina
diz que sim, desde que essa analogia se justifique – ou seja, sempre que existam pontos de contacto
com a lei estrangeira, suficientemente fortes que justifiquem ter em consideração a medida concreta
da lei estrangeira (sendo um dos pontos de referência o conhecimento da lei estrangeira por parte do
agente que viveu durante muito tempo lá, por exemplo).
b) A solução seria diferente se o agente fosse um cidadão estrangeiro?
O princípio da territorialidade aplica-se na mesma, independentemente da nacionalidade do
infrator. Logo, temos a mesma resposta da alínea a) – só seria necessário explicar melhor esta
vertente do princípio da territorialidade.
c) A solução seria diferente se a carta tivesse explodido na estação dos correios em Espanha e
tivesse causado a morte de um funcionário que a manejava?
O princípio da territorialidade aplica-se na mesma, visto que continua a contar o sítio que
Nuno queria que essa explosão se desse, ou seja, Lisboa. Denota-se que este será punido em
concurso efetivo de crimes pela tentativa de homicídio José e pelo homicídio negligente do
funcionário.
Matéria nova: Quando há execução defeituosa – erro da execução –, a pessoa atinge um objeto
distinto do que visava ou do que representou atingir. Para grande parte da doutrina, ele deve ser
punido em concurso efetivo pela tentativa do crime de homicídio que queria, de facto, cometer;
e pelo crime de homicídio que realizou, na forma negligente.
Assim, aplicando o mesmo princípio, ir-se-ia ter a mesma resposta: a lei penal portuguesa
poderá ser aplicada; se bem que Espanha também se poderia julgar legitimada a julgar. No entanto,
o que interessa é evitar que ninguém se julgue competente; não é problema existirem várias ordens
jurídicas que tenham legitimidade e capacidade para julgar.
b) Relativamente à lei aplicável, podem ter em consideração a lei francesa, que consagra o
mesmo crime de coação de eleitor, mas com uma moldura penal mais favorável do que a da
lei portuguesa?
Estando em sede do artigo 5º, não se aplica a restrição à aplicação da lei portuguesa a factos
verificados no estrangeiro estipulada no artigo 6º, nº2 – assim, e em termos do nº3, estando em
causa interesses nacionais, não se poderá ter em conta a lei estrangeira, mesmo que esta seja mais
favorável.
5)
Alberto, português emigrante em França envolve-se numa acesa discussão com Benevides,
cabo-verdiano, num bar de Paris. Em determinado momento, Alberto completamente fora de si,
pega num bastão e acerta um violento golpe na cabeça de Benevides, provocando-lhe um
traumatismo craniano. De seguida, e perante o olhar atónito de todos que no bar se encontravam,
foge do local.
Sabendo que a polícia estava no seu encalço e descobrindo que Benevides era amigo de
Charles, francês e seu patrão, Alberto mediante a perspetiva de despedimento, sentiu-se na miséria
dado que ainda não tinha conseguido amealhar dinheiro algum. Decide então raptar Nicole,
francesa e filha de Charles, com objetivo de a este pedir um avultado resgate. Ocupando o iate de
Charle de matrícula francesa e mantendo Nicole em cativeiro, Alberto foge pela costa norte de
França e Espanha, atracando na sua cidade-natal: Viana do Castelo.
Ainda mal tinha pisado solo português, Nicole conseguiu libertar-se e escapar. Alberto
pede então ajuda ao seu amigo Duarte, português, residente em Matosinhos, e após longa
perseguição, alcançam Nicole, já em terras espanholas. Todavia, Nicole já se encontrava na
companhia de Igor, ucraniano e Gani, egípcio, capangas de Charles, que após tortura matam
Duarte.
Alberto mais uma vez consegue fugir e já em Portugal, numa entrevista ocasional de uma
estação de rádio portuguesa, difama gravemente o Presidente R por não assegurar o emprego para
todos no país. Um dia depois é detido pelas autoridades nacionais. Algumas semanas volvidas,
também Igor e Gani são detidos pelas autoridades nacionais num luxuoso hotel no Algarve. Após
leitura atenta do caso, responda às seguintes questões:
a) Para o crime de ofensa à integridade física grave (art 144º CP), suponha que a lei mais
favorável é a cabo-verdiana seguida da francesa e só depois da portuguesa. Qual a lei
aplicável a Alberto por este crime?
Em sede de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, é necessário, primeiro de tudo,
determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime de ofensa à integridade física de A
por B –, de acordo com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, tanto a ação de
agressão como o resultado típico relativo a B foram verificados em Paris, França – apesar de se
notar que o artigo 7º CP apenas exige que um destes se tenha passado em solo nacional.
Não tendo o facto sido verificado em Portugal, afasta-se o princípio da territorialidade do
artigo 4º. É, então, necessário ir para o artigo 5º, que estipula os princípios complementares
relativos a situações em que a lei penal portuguesa é aplicada a factos verificados fora do território
português. Este caso poderá ser integrado no princípio da universalidade ativa, descrito no nº1,
alínea e), primeira parte, estando todos os requisitos exigidos pelo legislador cumpridos: por um
lado, A, de nacionalidade portuguesa, foi encontrado em Portugal; por outro, a extradição era,
relativamente ao crime praticado, admissível para extradição por ser punido com pena superior a 1
ano (Decreto-Lei que regula a extradição), mas não pode ser concedida de acordo com o artigo 33º,
nº3.
No entanto, estando em sede do artigo 5º, é necessário verificar se existe alguma restrição à
aplicação da lei portuguesa a factos verificados no estrangeiro, que se encontram no artigo 6º. De
facto, e não estando no âmbito das alíneas a) e b) do artigo 5º, segundo o nº2 do artigo 6º, o caso
será julgado pela lei “do país em que o facto foi praticado” se esta for mais favorável do que
portuguesa. Ora, sendo a lei francesa mais favorável do que a portuguesa, a lei francesa é que será
aplicada., segundo o nº2 do artigo 6º, o caso será julgado pela lei “do país em que o facto foi
praticado” se esta for mais favorável do que portuguesa. Ora, sendo a lei francesa mais favorável do
que a portuguesa, a lei francesa é que será aplicada.
b) Para o crime de rapto (artigo 161º CP), admita que a lei mais favorável é a francesa
seguida da portuguesa e só depois da espanhola, qual a lei aplicável a Alberto para esse
crime?
Em sede de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, é necessário, primeiro de tudo,
determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime rapto de N por A –, de acordo com o
princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, o crime de rapto é um crime duradouro, o que significa
que a ação do crime é continuada, apenas se dando como concluída quando N conseguiu fugir; no
entanto, para este artigo, não é necessário que o local de ação tenha sido todo em Portugal, apenas
uma parte dela (“parcialmente”). A e N entrou em águas portugueses num iate civil com matrícula
francesa. Aqui, importa discutir se o princípio de pavilhão se aplica, consagrado no artigo 4º, alínea
b) CP: é considerado território português os navios e aeronaves portuguesas comerciais e militares.
Segundo a professora Fernanda Palma, este princípio não se aplica quando tal navio se
encontra em águas nacionais ou estrangeiras – o território do facto será a nacionalidade das águas,
independentemente de onde o navio civil se encontra registado. Isto terá fundamento, também, na
Convenção do Montego Bay, que avança que, logicamente, não faria sentido não considerar o
espaço aéreo e náutico pertencente a um país como extensão do território nacional do mesmo. Este
só será aplicado, então, em águas ou espaços aéreos internacionais (nos casos de transportes civis).
Adotando esta posição, o local da prática do facto será, neste caso, Portugal, pelo que se poderá
aplicar o princípio da territorialidade (artigo 4º). No entanto, importa analisar, ainda, se o artigo 6º,
nº2, relativamente às restrições à aplicação da lei penal portuguesa, se pode aplicar, também, quanto
ao princípio da territorialidade; e não apenas à aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados
no estrangeiro. Discute-se que sim, na medida em que tal analogia bona partem se encontra
justificada: existem pontos de contacto suficientemente fortes com a lei francesa, que justifiquem
ter em consideração a medida concreta da lei estrangeira – nomeadamente, o facto de A ser
emigrante em França e, por isso, poder ter um conhecimento da lei francesa, para criar a expectativa
que esta seria aplicada. Assim, a lei aplicável seria a lei francesa, mais favorável.
Segundo Taipa de Carvalho, pelo contrário, este princípio aplica-se quer as águas/o espaço
aéreo seja estrangeiro/nacional, quer seja internacional, mesmo em caso de veículos civis. Isto,
porque o legislador português não faz a distinção anterior explicada, pelo que os aplicadores do
direito também não a devem fazer.
Adotando esta posição, o local da prática do facto será, neste caso, França, pelo que se afasta
o princípio da territorialidade do artigo 4º. É, então, necessário ir para o artigo 5º, especificamente
para o princípio da universalidade ativa, descrito no nº1, alínea e), primeira parte, estando todos os
requisitos exigidos pelo legislador cumpridos: por um lado, A, de nacionalidade portuguesa, foi
encontrado em Portugal; por outro, a extradição era, relativamente ao crime praticado, admissível
para extradição por ser punido com pena superior a 1 ano (Decreto-Lei que regula a extradição),
mas não pode ser concedida de acordo com o artigo 33º, nº3.
No entanto, e não estando no âmbito das alíneas a) e b) do artigo 5º, segundo o nº2 do artigo 6º, o
caso será julgado pela lei “do país em que o facto foi praticado” se esta for mais favorável do que
portuguesa – o que significa que, neste caso, seria a lei francesa a ser praticada.
NOTA: De notar que navios ou barcos militares são sempre considerados como território de onde
estão registados (salvo tratado ou convenção em contrário).
d) Pressuponha, agora, que no dia em que Alberto difamou o PR decorria o terceiro dia de um
periodo de campanha eleitoral, justamente para a presidência da república. Para vigorar
durante esse periodo eleitoral, a saber 15 dias –, a lei X agravara em um terço os limites
mínimo e máximo da moldura penal sufragada pelo artigo 328º, em razão de um clima de
“crispação política”. Alberto é julgado um mês depois das eleições. Qual a lei aplicável?
Temos, aqui, uma lei de emergência ou lei temporária: leis que têm um período de vigência
determinado face a situações excecionais. Aplica-se, a estas, o artigo 2º, nº3 CP: tal lei será aplicada
a factos julgados depois de a lei já não estar em vigor, mas que foram praticados no âmbito da
mesma – existe, na mesma, uma “retroatividade”. Tal valoração ultra ativa não viola o princípio da
lei penal mais favorável, por um lado, porque dizer tal coisa seria frustrar a razão de ser das leis de
emergência; e, por outro lado, porque não há, verdadeiramente, uma alteração das valorações do
legislador. No entanto, tal tese não é partilhada por toda a doutrina: segundo Silva Dias, nas
situações de emergência existe uma alteração das valorações do legislador, por via das alterações da
conjuntura.
De qualquer das formas, seguindo a primeira tese, esta lei temporária é aplicável mesmo
sendo mais desfavorável ao agente para não desvirtuar (art. 2º, nº3 CP). Neste caso, a lei posterior à
lei de emergência não se debruça sobre o mesmo facto e, por isso, não há uma verdadeira sucessão
de leis – logo, não se viola o princípio da proibição da retroatividade da lei mais desfavorável ao
agente.
6) António, português, pratica um facto em território espanhol, cujo resultado deu-se em território
português, no mesmo momento em que passou a vigorar uma lei que o vem considerar crime.
É necessário determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime –, de acordo
com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, o local do facto terá sido em
Portugal, dado ter sido em território nacional que o resultado típico se projetou. Assim, aplica-se o
princípio da territorialidade: abstratamente, será aplicada a lei penal portuguesa a A.
No entanto, é necessário, ainda, avaliar a aplicação da lei penal portuguesa no tempo. Ora,
aqui, a lei mais desfavorável ao agente terá saído depois do momento da prática do mesmo – que é o
momento da atuação do agente, mas não da verificação do resultado típico (artigo 3º). Isto significa
que, de acordo com o princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal mais desfavorável
ao agente, tal lei não poderá ser aplicada a A, de forma a respeitar a expectativa do mesmo quanto
às suas ações – “não há crime nem pena sem lei prévia”.
Análise do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (595/11.3GTABF.E1):
No dia 24 de Junho de 2011, cerca das 11:00 horas, o arguido conduzia o veículo
automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ----LB, pela A2, km 235,300, área desta comarca,
sem que para tal se encontrasse legalmente habilitado, com a respetiva licença de condução, que
bem sabia se necessária para o efeito.
O arguido não era, à data, detentor de qualquer licença que o habilitasse a conduzir. O
arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e
punida por lei. Apurou-se, ainda, que o arguido exerce a profissão de motorista; e que não tem
antecedentes criminais.
O arguido vem acusado da prática de determinados factos que o terão feito incorrer num
crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº.1 e 2 do
Decreto-Lei n° 2/98, de 03 de Janeiro, que dizem os seguintes: 1) Quem conduzir veículo a motor
sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1
ano ou com pena de multa até 120 dias. 2) Se o agente conduzir, nos termos do número anterior,
motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Este trata-se de um tipo de crime de perigo abstrato, não se exigindo a produção de um
concreto resultado, um dano concreto, apresentando-se o perigo, tão-só, como a motivação do
legislador para punir tal conduta – está preenchido uma conduta abstratamente perigosa, não sendo
necessário pôr, em concreto, qualquer bem jurídico em perigo ou existir algum resultado típico.
No entanto, como bem nota o Ministério Público na motivação do recurso, o arguido
habilitou-se a conduzir em 29/12/1976, tendo a sua carta de condução caducado a 18/07/2008 – ou
seja, ele tinha a carta, mas estava caducada.
No entanto…
Tendo-se, o arguido, habilitado a conduzir automóveis em 29/12/1976, tendo a sua carta de
condução caducado no dia 18/07/2008 por ter então completado os 50 anos de idade, e tendo os
factos provados ocorrido no dia 24/06/2011, haveria que ter procedido à ponderação de regimes
penais que se sucederam no tempo.
Aliás, como pertinentemente assinala o Ministério Público, em 05/12/2012 entrou em vigor
o Decreto-Lei n.º 138/12012, que alterou o artigo 130.º, n.º 3, alínea d), n.º 5 e nº 7 do Código da
Estrada, os quais passaram a ter a seguinte redacção: nº 3, alínea d) — “O título de condução é
cancelado quando tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular
não seja portador de idêntico documento de condução válido”; nº 5 — “Os titulares de título de
condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os
veículos para os quais o título fora emitido”; e nº 7 — “Quem conduzir veículo com título
caducado é sancionado com coima de €120 a €600”.
Assim, à data dos factos, a carta de condução do arguido encontrava-se caducada, mas ainda não
cancelada. Sendo que a condução com título caducado (e ainda não cancelado) passou a ser
punida com coima (a partir de 05/12/2012), ou seja, passou a integrar infracção contra-
ordenacional.
Ou seja…
Aqui, houve una descriminalização da conduta de conduzir com a carta caducada em 2012;
sendo que o autor foi apanhado em 2011, e está a ser julgado em 2013. Isto significa que o facto que
era antes punido por pena de prisão deixou de o se – e esse facto deixou de ser considerado crime,
mas apenas uma contraordenação. Assim, aqui, aplica-se o artigo 2º, nº2 CP: o agente não pode ser
punido a título de responsabilidade criminal – princípio da aplicação retroativa da lei penal mais
favorável ao agente (artigo 4º).
No entanto, existe uma discussão na doutrina relativamente a saber se este poderia ser
punido com uma coima, dado que, quando o agente praticou o facto, este não era uma
contraordenação – isto, porque no direito contraordenacional também se aplica a proibição da
aplicação retroativa de contraordenações desfavoráveis ao agente. Ora, como vimos, Figueiredo
Dias defende que tal aplicação é possível, pois não existe uma frustração, a nível prático/negativo,
das expectativas do agente, dado que este pensava que o ato ia ser criminalizado. No entanto, a
doutrina maioritária (assim como Tribunal, neste acórdão), defende que a única forma de não violar
este princípio proibição da aplicação retroativa é incluir uma norma transitória que explicite a
possibilidade dessa aplicação, ou na lei nova ou mesmo no CP – não existindo essa norma, não
existe nem uma despenalização, nem uma contraordenação, pelo que se absolve o arguido.
Não havendo então norma transitória (como sucede no caso), as ações despenalizadas não
podem vir a ser então julgadas como contraordenações, pois assim resulta da proibição da
retroatividade da lei contraordenacional (que tem eficácia pós-ativa, como se disse – artigo 3º, nº
1 do Decreto-Lei 433/82). A criação de norma (transitória) é atividade reservada ao legislador. Na
ausência dela, resta ao tribunal declarar a despenalização.
Por tudo, concluímos que a conduta do arguido já não constitui crime, não era ainda
contraordenação à data da prática e, inexistindo norma transitória que trate a sucessão, impõe-se
fazer operar a lei descriminalizadora (artigo 2º, nº 2 do Código Penal e artigo 29º, nº 4 da CRP),
de acordo com o pedido formulado em recurso pelo Ministério Público.
2) Típica
É necessário que esta ação seja é típica: isto, em termos simples, significa averiguar se
aquela ação é conforme a previsão de um determinado tipo legal – ou, por outras palavras, se aquela
ação cabe na previsão de uma norma que prevê um tipo de crime, se subsume à previsão daquela
norma. Por exemplo, se A dispara sobre B, e B morre, é necessário averiguar se os elementos
previstos na previsão do artigo 131º estão presentes no caso concreto, nomeadamente 1) agente (A);
2) ação típica (matar); 3) objeto da ação (B); 4) resultado (morte); e 5) bem jurídico (vida).
De notar que a existência de causalidade é necessária, mas não suficiente, para que exista
uma ação típica; é necessário existir, ainda, uma imputação objetiva – ou seja, que o resultado
possa, de facto, ser atribuído à ação do agente: isto porque pode existir um nexo de causalidade,
mas o resultado não ser, na mesma, imputado ao agente, por não ser justo.
Por exemplo, se A dispara sobre B e B vai numa ambulância que tem um acidente, existe nexo
de causalidade na medida em que B estava na ambulância por causa do B – isto, porque a
causalidade basta-se com o juízo hipotético de que, eliminando a ação, o resultado não se
verifica. No entanto, este resultado não poderá ser imputado objetivamente ao agente.
Além disso, em Direito Penal, não basta a existência de elementos objetivos,
nomeadamente: ação, agente, objeto, resultado (se for um crime de resultado), e o dano do bem
jurídico. É também necessária a existência de elementos subjetivos, nomeadamente: dolo ou
negligência. Isto, porque em Direito Penal, ao contrário do Direito Civil, não há responsabilidade
pelo risco: não se pode responsabilizar alguém que violou apenas o dever de cuidar – é necessário
demonstrar sempre uma relação subjetiva entre o sujeito e o facto, nem que seja mínima
(negligência inconsciente: pune-se alguém que não previu a realização do facto, mas devia tê-lo
feito).
Relativamente ao exemplo anterior, existe dolo direto, porque A disparou sobre B.
3) Ilícita
Esta ação típica terá, ainda, de ser ilícita. Ora, em termos teóricos, para perceber se um facto
é ou não ilícito, aplica-se a técnica negativa da exclusão: ou seja, tem de se averiguar se, naquele
caso concreto, ocorre (ou não) alguma causa de exclusão da ilicitude. Se ocorrer, afasta-se a
ilicitude; se não ocorrer, não se afasta a ilicitude. As causas mais importantes de exclusão de
ilicitude são: legítima defesa, ação direta, estado de necessidade, consentimento, conflito de deveres
(artigos 31º e ss.).
4) Culposa
A ação terá, ainda, de ser culposa. Na culpa, analisa-se a capacidade do agente de se motivar
pelo Direito: ou seja, faz-se um juízo de censura ao agente pelo facto de este, tendo a capacidade e a
possibilidade de se motivar pelo Direito, não o ter feito. A técnica utilizada é a mesma da ilicitude,
nomeadamente a técnica negativa de exclusão: se se verificar uma causa de exclusão da culpa –
inimputabilidade, erro sobre a ilicitude não censurável (invocar desconhecimento da lei) –, então
esta será excluída (artigos 31º e ss.).
5) Punível
Por fim, a ação terá de ser punível: aqui, a punibilidade avalia-se de acordo com as que o
legislador acrescenta ao facto, para que ele possa ser digno de pena. Por exemplo, se A pratica uma
tentativa de um crime que não é punido por pena superior a 3 anos, esta não deverá ser punida.
Concurso de Normas
Introdução ao concurso de crimes
Não existe, na matéria dos concursos de crime, um consenso por parte da doutrina
relativamente a quando é que deve ser dada: se em teoria da lei penal, se em teoria do crime. A
professora defende que ambas as posições têm razões de ser: por um lado, deve ser dada em teoria
da lei penal, pois grande parte da matéria do concurso tem a ver com a aplicação e interpretação da
lei penal; mas, por outro lado, deve também ser dada na teoria do crime, pois existe um tipo de
concurso – concurso verdadeiro –, em que se tem de decidir pela aplicação de mais de um tipo de
crime.
O professor Figueiredo Dias, por exemplo, defende que o problema de concursos existe sempre que
um comportamento global, imputado a um determinado agente e levado à cognição do tribunal,
preencha mais que um tipo legal de crime. Ora, aí, é necessário saber se se vai punir apenas por um
tipo legal de crime, ou por todos os comportamentos por ele cometidos.
Já Teresa Beleza diz que não concorda que o comportamento fique bem avaliado só aplicando a
norma do furto – é preciso aplicar, aqui, um concurso efetivo de crimes, devendo A ser punido
pelo crime de furto e pelo crime de dano. Com o crime de dano, existe uma destruição definitiva
da coisa alheia e, portanto, há uma lesão mais forte do que apenas com o crime de furto. Isto
porque, caso só houvesse o crime de furto, se o agente fosse apanhado, podia sempre haver a
restituição da coisa; mas se se queimar o quadro, essa restituição já não é possível.
o Além disso, é também possível argumentar que existe concurso aparente ao ver o furto
como um meio para atingir um fim: o fim era estragar o quadro, mas, para isso, foi preciso
haver um furto. Assim, o furto é visto como instrumento para praticar o crime de dano.
o Em ambas as argumentações, o crime mais importante será o crime de dano; sendo que, na
segunda versão, o crime de dano acaba por “engolir” o crime de furto, pelo que acaba por
se ter, na mesma, um crime aparente – diferente do de Figueiredo Dias, pois aqui aplicar-se-
ia não o crime de furto, mas sim o crime de dano.
Mas como é que se sabe se uma norma esgota o ilícito criminal praticado? Esta questão gera
diversas dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência; contudo há já algumas certezas:
nomeadamente, quando se trata de tipos que protegem bens de carácter iminentemente pessoal, a
pluralidade de vítimas deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos de ilícito – e, por
isso, deve conduzir à existência de um concurso efetivo. Por exemplo, se A colocar uma bomba que
mata três pessoas, terá de ser punido por três crimes de homicídio, em concurso efetivo. De notar
que tal raciocínio se aplica, segundo a maior parte da doutrina, quer estejam em causa crimes
dolosos, quer crimes negligentes; assim como quer estejam em causa crimes por ação, quer por
omissão.
Isto faz com que, no caso de A mandar uma carta-bomba para um embaixador, mas que mata o
segurança, já existe concurso efetivo entre a tentativa de homicídio e o crime de homicídio
realizado, visto que estão aqui em causa bens eminentemente pessoais. A isto chama-se a aberratio
ictus, que pressupõe duas vítimas ou dois objetos.
Há uma parte da doutrina (professor Rui Pereira) que trata a aberratio ictus de forma diferente:
quando os tipos e objetos são idênticos, não se deve punir em concurso efetivo, mas sim por um
só crime doloso consumado. Isto porque, ao punir em concurso verdadeiro, não se consegue
provar os elementos dos dois tipos legais de crime – logo, é melhor dar o tratamento de um só
crime doloso, mesmo que haja mais que um. Assim, A seria punido pelo crime de homicídio
doloso, mesmo que não houvesse dolo quanto à morte do segurança.
Concluindo, o critério da unidade de sentido é o critério dominante (mas não unânime) para
distinguir o concurso aparente e o concurso verdadeiro, dizendo-nos que, apesar da conduta
preencher um conjunto de normas, se uma delas for dominante – no sentido de esgotar a avaliação
do ilícito típico praticado pelo agente –, aplica-se apenas uma das normas.
2. Unidade de ação típica: Existem várias ações em sentido natural, mas essas ações agrupam-se
num só tipo, ou seja, numa só ação típica. Isso pode acontecer quando:
o O próprio tipo exige para a sua realização uma pluralidade de atos (ex: crime de roubo);
o O próprio tipo legal abarca, numa unidade de valoração, uma série de atos, sendo que pode
haver uma situação em que 2.1) todos os atos são atos parciais, não autónomos, de um
mesmo delito (ex: tráfico de estupefacientes – abarca desde a aquisição com fim de venda
até à posse transitória); mas também uma situação em que 2.2) o tipo de crime descreve só
uma ação, mas essa ação abarca uma pluralidade de atividade individuais (ex: homicídio em
que o agente crava várias vezes uma arma branca no corpo da vítima – é punido apenas
pelo crime de homicídio qualificado).
3. Unidade natural da ação: Quando distintos atos particulares, em virtude da sua similitude e
proximidade espácio-temporal, são reunidos numa unidade de ação pelo juiz. Para isso ocorrer,
é necessário que haja 1) uma vontade unitária dirigida à prossecução de um resultado, através de
uma 2) pluralidade de atos uniformes e similares – sendo que esses atos, devido à sua conexão
espaço temporal estreita, 3) formem uma só ação segundo o modo de ver natural: ou seja, vistos
de fora, por um terceiro, aqueles atos pertencem de modo adequado ao mesmo grupo (ex: crime
de sequestro, que implica vários atos que não são punidos autonomamente).
Apesar da doutrina alemã ter estes critérios todos, na prática isto é muito complicado. A
doutrina portuguesa, por sua vez, aplica o critério de unidade de sentido de ilícito, que é equiparado
à unidade natural de ação dos alemães.
Critério da unidade ou pluralidade de tipos legais violados pela conduta do mesmo agente:
Este critério, defendido pelo professor Eduardo Correia, diz que o número de crimes se
determina pelo número de juízos de valor que, no mundo jurídico-criminal, correspondam a uma
certa atividade. Dessa forma, se diversos valores ou bens jurídicos são negados ou violados pela
conduta do agente, outras tantas ações existem na esfera jurídico-criminal, ou seja, no direito
criminal – já que tantos outros tantos juízos de valor são possíveis, por conseguinte, outros tantos
crimes existirão.
O professor defende, ainda, que se houver uma única decisão (do agente), isso será suficiente para
se falar em concurso aparente; ao passo de que, se houver uma pluralidade de decisões, existirá um
concurso verdadeiro. No entanto, acrescenta-se, a este primeiro momento, um segundo critério: isto
porque, pode acontece que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes (ex:
se A puser uma bomba e matar 5 pessoas, estará a violar várias vezes o mesmo bem jurídico, pelo
que deve ser punido tantas vezes quantos bens jurídicos violou).
O professor Figueiredo Dias considera que este critério, ao ter apenas em conta os tipos
legais de crime, deixa de lado os sentidos de vida jurídico penalmente relevantes, que radicam do
comportamento global do agente, ou seja, estão presentes no comportamento global do agente. Já a
professora critica este critério na medida em que, por vezes, apesar de haver uma só decisão, essa
pode ofender vários bens jurídicos pessoais – por exemplo, se o A, na mesma decisão, resolver
ofender o C e o B, é necessário defender os dois bens jurídicos, punindo as duas ofensas
(independentemente da unidade de decisão). Portanto, este critério não pode ser aplicado por si só.
No concurso verdadeiro:
Havendo concurso efetivo, há que ter em conta os artigos 77º e 78º, onde se faz uma
ponderação entre os vários crimes, falando-se do sistema da pena conjunta: em primeiro lugar, fixa-
se uma pena concreta para cada um dos tipos de crime preenchidos; depois, encontra-se o limite
máximo e o limite mínimo, segundo o artigo 77º nº2:
Se a pena a aplicar tem dois limites máximos, não pode 1) exceder a soma das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes; e 2) não pode ultrapassar o limite legal de 25
anos. A esta impossibilidade de ultrapassar os 25 anos chama-se cúmulo jurídico mitigado.
Quanto ao limite mínimo da pena final, este será o correspondente à pena (concreta) mais alta a
que corresponda concretamente um dos crimes cometidos.
Assim, enquanto o sistema da pena unitária calcula uma pena para o conjunto de crimes
praticados pelo agente, o sistema da pena conjunta (adotado pela nossa ordem jurídica) determina
uma pena para cada crime, soma essas penas e determina essa soma como o limite máximo da pena
aplicável o agente (nunca ultrapassando os 25 anos); correspondendo o limite mínimo à pena
concreta mais grave determinada. Por sua vez, a medida concreta da pena dentro desta moldura vai
ser determinada tendo em conta a personalidade do agente e a apreciação conjunta dos factos.
2) O bem jurídico em causa não pode ser eminentemente pessoal (ex: das ofensas corporais,
homicídio, liberdade sexual). Será que faz sentido que assim seja?
o O professor Figueiredo Dias discorda deste requisito porque nos casos de abuso sexual,
muitas vezes, um mesmo agente comete esse crime várias vezes; mas, por ser um crime
eminentemente pessoal, não existe um crime continuado, mesmo que se verifiquem todos
os restantes requisitos. Ora, a figura do crime continuado tem razões político-criminais: o
legislador criou esta figura porque quis evitar dificuldades práticas e, por vezes,
insuperáveis, de comprovar judicialmente cada uma das realizações que integram a
realização. Além disso, o crime continuado tem consequências desproporcionadas e
injustas: pune-se mais gravemente quem tenta matar uma pessoa 4 vezes, do que quem
efetivamente mata uma pessoa. Assim, não há razão para retirar da figura do crime
continuado os crimes que põe em causa os bens eminentemente pessoais.
No entanto, a sua posição acaba por ser intermédia: por um lado, critica a retirada da
possibilidade da aplicação da figura do crime continuados aos crimes que têm bens
jurídicos iminentemente pessoais; mas, por outro, acrescenta que se os bens em causa
são os que estão previstos no Título I da parte especial do CP, não se pode aplicar a
figura do crime continuado, dado que este “caráter iminentemente pessoal” dos bens
protegidos deve ser entendido em sentido estrito.
4) Todos os atos têm de ser praticados no quadro de uma mesma solicitação exterior, que facilita a
repetição da atividade criminosa, ao ponto de diminuir consideravelmente a culpa. Ou seja, é
necessário existir uma situação que facilite a repetição da atividade criminosa, que implique que
se torne cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente – sendo que,
no entanto, não se exige que haja dolo conjunto ou dolo inicial; apenas se exige uma situação
em que “nunca ninguém impediu o agente”, existindo uma facilitação da atividade criminosa e,
por isso, uma diminuição considerável da culpa do agente.
o Numa situação de conduta lesiva de bens jurídicos eminentemente pessoais
constantemente/de forma continuada, a jurisprudência recorre à figura do trato sucessiva: ou
seja, os juízes ficcionam que há dolo, por parte do agente, que abarca todas as condutas
praticadas até ao momento, de forma a combater a dificuldade de não haver crime
continuado nestes casos. Ora, como o dolo abarca todas as condutas que levaram àquele
resultado, o agente vai ser punido por uma única ação – muitas vezes, por uma questão de
prova ou para não haver penas excessivas. No entanto, isto é uma clara violação do princípio
da legalidade, dado que o poder judicial está a criar lei.
Uma parte da doutrina critica esta figura, por poder levar a um injustificado
privilegiamento do autor; pelo que não deve existir.
2. Relação de subsidiariedade
Nestas, o legislador, expressamente ou implicitamente, pretende que uma norma só se
aplique quando o agente não puder ser responsabilizado por outra norma mais grave. Na
subsidiariedade expressa, o legislador expressamente diz que o preceito se aplica se não se aplicar
outro – ou seja, é a própria lei que condiciona a aplicação de uma norma à não aplicação de outra
norma mais grave (ex: artigo 152º, nº1: “se pena mais grave não lhe couber”). Já na subsidiariedade
implícita ou tácita, apesar do silêncio do legislador e da lei, é possível retirar, através de
uma interpretação, que a aplicação daquela norma só deve ser feita se não se conseguir aplicar outra
norma que represente um estado evolutivo ou uma forma mais intensiva de agressão do mesmo bem
jurídico – ou seja, o legislador só quer a aplicação daquele tipo se não houver um tipo que puna
mais gravemente.
Independentemente do tipo de subsidiariedade, estes são casos em que o legislador entendeu
criar, para alargamento ou reforço da tutela, tipos legais abrangentes de factos que se representam
como estados evolutivos antecipados ou intermédios de um crime consumado; ou como formas
menos intensivas de agressão ao mesmo bem jurídico.
Por exemplo, quando A pede ao B que mate C, está a funcionar como instigador; no entanto, ao
mesmo tempo, A executa o facto com o B, pelo que é coautor. Portanto, em relação ao mesmo
facto, este poderá ser punido como instigador ou como coautor – no entanto, da interpretação da
lei, retira-se que a instigação só deve ser usada quando não se conseguir punir a pessoa como
autor, dado que ser autor é a forma de autoria mais grave e prevalece sobre a instigação. Assim,
A só será punido pela forma mais gravosa, coautor. A forma de autoria é a forma mais perfeita
de participação num crime; pelo que só se pune por outra forma de participação, caso não se
possa aplicar essa forma mais perfeita de participação.
o Já quando alguém provoca um acidente, colocando a pessoa numa situação de perigo, e
nada faz, será punido na posição de garante, já que criou o perigo – mas será punido por
omissão de auxílio juntamente com o crime de homicídio por omissão? Uma parte da
doutrina diz que o crime de homicídio por omissão abarca o ilícito; mas a professora Teresa
Quintela diz que a omissão de auxílio protege bens jurídicos que vão para lá da tutela do
crime de homicídio por omissão e, por isso, este último não abarca o ilícito – por exemplo,
o dever de solidariedade, sendo lesado, não é protegido pelo crime de homicídio por
omissão.
Por exemplo, A tenta matar B e não consegue, então abandona-o e ele acaba por morrer – aqui,
o crime de homicídio abarca tudo, na medida em que só se deve aplicar a figura da tentativa de
homicídio, se não se puder aplicar a figura do homicídio.
3. Relação de consunção
A professora Teresa Beleza, assim como Roxin, defende que há relação de consunção em
sentido estrito nos casos em que o conteúdo de um facto típico e ilícito inclui um de outro facto, de
tal forma que a condenação pelo ilícito típico mais grave consegue esgotar a avaliação do desvalor
de todo o comportamento. Dito de outra forma, a realização de um tipo de crime inclui, por norma,
a realização de um outro tipo de crime; um crime contém em si outro crime, não por necessidade
conceptual, mas de um modo típico (crime meio e crime fim).
Por exemplo, há quem diga que, no caso de furto com ofensas corporais, não existe uma relação
de especialidade, mas sim de consunção: isto, porque o crime de ofensas é um crime-meio para
alcançar o fim de furtar.
Ora, a consunção é pura quando a realização do tipo de crime punido mais gravemente inclui
a realização de um outro tipo de crime punido mais levemente – nestes casos, a norma que prevê o
crime menos grave é excluída. Pelo contrário, a consunção é impura quando o crime mais grave
acompanha um crime menos grave, sendo que a realização de um tipo de crime punido mais
levemente inclui a realização de outro tipo de crime punido mais gravemente.
Para uma parte da doutrina, na consunção impura, aplica-se a norma-meio porque pune-se mais
gravemente (ex: crime de roubo, mas a violência utilizada foi de tal maneira significativa que
constitui um crime de ofensa à integridade física grave – apesar de a ofensa ser o meio para o roubo,
essa norma-meio prevê uma pena superior, pelo que será a norma aplicável). No entanto, para o
professor Figueiredo Dias, aplica-se a previsão da norma-fim e a estatuição da norma meio: ou seja,
como o ilícito criminal está mais corretamente descrito através da norma fim, deve-se aplicar essa
previsão; mas como a pena que consegue abarcar todo o ilícito criminal é a que está na norma meio,
será essa que deve ser aplicada. De qualquer das formas, em termos práticos, aplica-se sempre a
pena mais grave, independentemente da tese defendida.
Na teoria do Figueiredo Dias, não existe uma violação do princípio da legalidade (recorrendo o
juiz à analogia para criar uma norma), porque ambas as normas são concretamente aplicáveis ao
caso, não se estando a violar as expectativas do agente baseadas nas leis aplicáveis. Ou seja,
está-se a aplicar a um facto previsto na lei e praticado pelo agente, uma pena atribuída a uma
previsão também por ele preenchida. Além disso, Figueiredo Dias também exclui esta crítica
defendendo que o princípio da legalidade não exige uma conexão formal entre o facto e a pena.
Denota-se, ainda, que não há concurso efetivo na consunção impura, dado que esta não
deixa de ser um meio. Falando, outra vez, do exemplo do crime de roubo com violência excessiva,
as ofensas têm uma gravidade tal que a pena que resulta das ofensas à integridade física grave é
superior à pena que resulta do roubo. Ora, neste caso, ter-se-ia de aplicar a pena das ofensas
corporais graves. No entanto, existe aqui uma unidade típica de lei, na medida em que o crime de
roubo já abarca as ofensas à integridade física grave – assim, se o professor Figueiredo Dias fosse
coerente, não existia um concurso efetivo nem aparente, mas sim uma relação de subsidiariedade.
No entanto, o professor Figueiredo Dias defende um conceito de consunção mais abrangente que
esta relação de meio-fim, indo buscar um conjunto de critérios para decidir quando existe uma
relação de consunção. Considera, ainda que a relação de facto posterior não punível está abrangida
pelo conceito amplo de relação de consunção. Em última análise, haver uma relação de consunção
para ele é a mesma coisa que dizer que há concurso aparente, existindo uma pluralidade de normas
típicas aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes efetivamente cometidos – ora, mais uma vez,
aplica-se o critério da unidade do ilícito. Isto, porque os sentidos singulares de ilicitude típica,
presentes no comportamento global, se conexionam de tal forma que, em definitivo, se deve
concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social –
ou seja, há uma norma que domina, abarca, esgota todo o ilícito típico praticado pelo agente.
Assim, há a dominância da norma e, por isso, opta-se pelo concurso aparente quando temos:
Critério de crime meio ou instrumental: O ilícito surge apenas como meio de realizar o ilícito
principal. Por exemplo, se alguém, para efetuar uma burla, falsifica um documento, será apenas
punido pela burla, visto que a falsificação foi um meio para a burla – sendo que, se o crime de
falsificação for punido mais gravemente, aplica-se, dessa norma, apenas a pena (Figueiredo
Dias).
o Há, no entanto, quem defenda um concurso efetivo, devendo o agente ser punido pelos
dois.
Critério da unidade do desígnio criminoso: Existe uma vontade unitária dirigida à prossecução
de um determinado resultado no mundo exterior – ora, se existe esta vontade unitária, tudo o
que o agente praticar por esse desígnio será abarcado por um só crime.
Critério da conexão espaço temporal das realizações típicas: Uma proximidade espácio-
temporal entre as condutas do agente pode levar a uma leitura unitária do sentido do ilícito do
comportamento total. Por exemplo, se alguém praticar atos sexuais de relevo sobre a mesma
vítima, numa unidade espácio-temporal igual, será tratado como um crime (mas não
continuado), porque há esta proximidade – para combater a dificuldade de provar quando este e
acaba.
Critério dos diferentes estados de evolução ou de intensidade da realização global, que não
possam ser considerados unidade de lei: Existe a prática de mais do que um crime, mas a
aplicação de apenas um dos tipos esgota a apreciação do ilícito criminal realizado pelo agente.
Critério de unidade de sentido ilícito : Este será o critério que prevalece, dado que todos os
outros acabam por apenas ajudar a perceber se a relação, em si, existe. Assim, o que se tem de
perceber é se a aplicação de uma norma consegue avaliar todo o sentido unitário do
acontecimento ilícito global – e, para facilitar a aplicação deste critério, o professor Figueiredo
Dias cria uma série de subcritérios que podem evidenciar que a relação de consunção existe.
OUTRAS NOTAS:
Existe uma grande discrepância entre os autores na distinção entre as várias relações de normas,
mas que não tem muita importância: na prática, é apenas necessário ter critérios para ver se
aquela norma, por si só, abarca a situação toda do facto ilícito.
Hipóteses
1. Júlio decidiu utilizar, sem autorização do dono, o trator de um vizinho. O juiz hesita entre
punir Júlio apenas por um crime de furto (artigo 208º – furto de uso); ou em concurso efetivo
por um concurso de furto do gasóleo (artigo 203º – furto simples) – uma vez que este, por
definição, foi definitivamente consumido, sem possibilidade de devolução. Quid Iuris?
O crime fim, que é o furto de automóvel, implica o crime meio, que é o furto do gasóleo –
ou seja, na moldura penal do crime fim, o legislador já prevê esse crime meio. Ora, punir J pelas
duas normas seria punir o mesmo crime duas vezes – pelo que está, aqui, em causa um concurso
aparente, por relação de consunção pura: o furto de uso é punido até dois anos, enquanto o furto
simples é punido até três anos. No entanto, denota-se que o que interessa será a medida concreta:
por exemplo, se fosse um camião tire, com muito gasóleo, se calhar a resposta seria diferente – na
medida em que o furto de uso teria, provavelmente, a pena máxima, ficando maior do que a pena
pelo furto simples.
Por norma, a pena acessória está associada à pena principal. O legislador, ao estabelecer que um
determinado crime pode ver aplicada uma pena acessória; mas isso não quer dizer que o
aplicador do direito a tenha de aplicar – o juiz, face ao caso concreto, pode julgar que a sua
aplicação não é necessária. Em última análise, querer o mais favorável quer ao nível da pena
principal, quer ao nível da pena acessória, é uma consequência do princípio da necessidade da
pena.
2. Pedro está desconfiado que Paulo lhe furtou um relógio e que o tem escondido em sua casa.
Certo dia, toca à porta da casa de Paulo e intimida-o a deixá-lo entrar, para verificar se lá se
encontra o dito relógio. Como este se recusa a deixá-lo entrar em sua casa, Pedro agride-o,
arromba a porta, e entra. O relógio não estava lá. O juiz de julgamento hesita em punir pedro
apenas pelo crime de violação de domicílio (artigo 190º) ou em concurso efetivo, pelos crimes
de ofensa à integridade física (artigo 143º) e de dano (artigo 212º).
Aqui, existiu um crime de dano, crime de violação de domicílio e crime de ofensa à
integridade física. Ora, a priori, com uma análise superficial do caso concreto, se se quer proteger
todos os bens jurídicos violados (direito à propriedade e integridade física), ter-se-ia de punir Pedro
pelos três crimes.
No entanto, no artigo 190º, nº3, o próprio legislador prevê um tipo de crime que abarca os
outros tipos de crime que o Paulo preencheu (crime de ofensa e crime de dano). Assim, conclui-se
que os outros tipos de crime são crimes meio para atingir o crime fim, que é a violação de
domicílio. Ora, a relação entre as normas é, por isso, de consunção – na medida em que existe,
obviamente, uma relação instrumental face ao crime fim. Consequentemente, existe um concurso
aparente com relação de consunção: a aplicação do artigo 190º, nº3 abarca todo o ilícito praticado
pelo agente, estando aqui presente o critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica
do comportamento.
Poderia, também, estar aqui presente o critério da unidade da ação típica, na medida em que o
próprio tipo reúne em si múltiplas ações.
3. Ana disparou sobre o marido com o objetivo de receber uma boa herança, só que o marido não
chegou a morrer. No entanto, ficou cego devido aos estragos provocados no cérebro pela bala.
Quid juris?
Existe, aqui, uma tentativa de crime homicídio qualificado (artigo 132º na forma de tentativa
+ artigo 22º sobre tentativa), na medida em que se demonstra a “especial censurabilidade e
perversidade”, existindo um motivo fútil para a morte do marido. Além disso, existe, ainda, o crime
de ofensas à integridade física grave (artigo 144º).
Ora, para o professor Figueiredo Dias, a solução correta só poderá ser concurso aparente com uma
relação de consunção. Isto porque, por um lado, ao negar o concurso de crimes, viola-se o critério
de esgotante apreciação do ilícito – porque, para além da tentativa de homicídio, existe um
resultado típico doloso não intencionado (nem todo o dolo implica intenção – ex: dolo eventual).
Mas, por outro lado, se se punir a Ana em concurso efetivo, não negando tal concurso de crimes,
estar-se-á a violar a proibição da dupla valoração: isto, porque ao nível do ilícito global, quando se
pune por tentativa de homicídio, já se está a avaliar as ofensas corporais graves. Assim, entre violar
um princípio fundamental constitucional e deixar de fora um resultado típico doloso não
intencionado, escolhe-se a segunda opção – teoria unitária.
O professor Luís Duarte d’Almeida defende que o problema da doutrina do Figueiredo Dias, de
deixar de parte o resultado adicional, pode ser resolvido se, na medida da pena, se tiver em
conta esse resultado típico adicional.
Há, no entanto, quem defenda a teoria da incompatibilidade: neste caso, há um concurso
efetivo, devendo o agente deve ser punido por tentativa de homicídio qualificado e ofensas
corporais graves consumadas, porque o dolo de homicídio não contém em si o dolo de ofensa – ou
seja, o conteúdo do desvalor das ofensas permanece mesmo punindo a tentativa. Assim, o crime de
homicídio não consegue esgotar o desvalor do crime de ofensa à integridade física; pelo que não
existe unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica do comportamento.
Esta teoria é criticável por claramente valorar duas vezes o mesmo facto, indo contra o princípio
nu bis in idem. A existência física de uma pessoa pressupõe o seu corpo, pelo que é impensável
destruir uma vida sem ser através da ofensa do seu corpo.
Já o professor Silva Dias defende uma teoria intermédia: se o resultado das ofensas ao
marido fosse uma ofensa corporal simples, existiria um concurso aparente, dado que o dolo de
homicídio consome o dolo das ofensas, sendo estas, por isso, secundárias – assim, A seria apenas
punida por tentativa de homicídio. No entanto, sendo essas ofensas corporais graves, já existe um
concurso efetivo, dado que essas não podem ser consideradas um “estado intermédio”: o desvalor
do ilícito dessas ofensas ultrapassa o desvalor do ilícito contido na tentativa de homicídio.
Além disso, o professor defende que punir por tentativa por homicídio qualificado e ofensas
integridade grave não põe em causa o princípio ne bis in idem, visto que os crimes desvaloram
diferentes coisas: nas ofensas, pune-se o resultado, enquanto o homicídio apenas desvalora a ação.
Por fim, o professor afasta o argumento de que a punição por concurso efetivo vai ter como
resultado uma moldura penal que ultrapassa em 4 anos e nove meses (20 anos) o limite máximo do
homicídio consumado (16 anos), defendendo que a pena aplicável, nestes casos, não dispensa o
cúmulo jurídico – na determinação da medida das penas, terá de ser averiguada a gravidade dos
factos. Ou seja, dadas as regras aplicáveis ao cúmulo jurídico, o limite máximo não seriam os 16
anos, mas sim os 20 anos.
A professora Paula Ribeira Faria também concorda, dizendo que existe, aqui, uma relação de
consunção: na ilicitude contida na tentativa de homicídio, está contida a ilicitude das ofensas
corporais, que é de tal forma forte que retira a autonomia às ofensas.
Conclui-se, portanto, pela posição do professor Figueiredo Dias, defendendo-se que, ao
punir A por ambos os crimes, estar-se-ia a punir duas vezes o desvalor da ação. Assim, deve-se
apenas punir pelo crime de tentativa de homicídio qualificado, podendo assim abranger o desvalor
das ofensas à integridade física. Isto porque, ao punir por ofensa à integridade física grave, estar-se-
ia a punir tanto o desvalor da ação, como o do resultado – algo que vai contra o princípio ne bis in
idem.
NOTA: Se, por exemplo, alguém viola outra, mas, para além de utilizar violência, fura-lhe um
olho. Tal conduta não tem carácter de conduta típica instrumental, pelo que o agente tem de ser
punido por ofensas à integridade física grave. Ou seja, o que é instrumental vê-se, principalmente,
em termos objetivos – avaliando se tal crime, em termos do habitual, é utilizado para a realização de
outro crime. Ora, se esse crime foge do que é típico, será muito difícil provarmos que tal é um meio;
saindo, assim, fora do crime fim.
4. C deu veneno ao D com intenção de o matar. O D acabou por morrer, ao final de 2 anos, de um
sofrimento profundo, provocado pelas dores extraordinariamente intensas, provocadas pela
ingestão do veneno. Deve Carlos ser punido apenas por um homicídio qualificado consumado
ou deve ser punido em concurso efetivo pelo crime de ofensa à integridade física grave e
homicídio qualificado consumado?
Segundo Roxin, se a punição por homicídio qualificado incluir a ofensa corporal grave,
através de uma circunstância qualificante do homicídio qualificado, C só é punido por crime de
homicídio qualificado. Este está, assim, previsto no artigo 132º como uma forma de especial
censurabilidade – sendo que a ofensa corporal pode ser abarcada por uma circunstância qualificante
do homicídio qualificado. Ou seja, se o resultado morte foi alcançado com uma ofensa corporal
grave, e essa ofensa puder ser abarcada pelas circunstâncias qualificantes do homicídio, o agente
deve ser punido por um só crime – o homicídio qualificado. Se, pelo contrário, o resultado não
puder ser abarcado numa circunstância qualificante, aí a ofensa corporal grave assume um desvalor
autónomo e, consequentemente, já existirá um concurso efetivo.
O nº1 do artigo 132º abarca todas as circunstâncias qualificantes do homicídio qualificado.
Há quem diga que existe, aqui, uma relação de subsidiariedade, dado que as ofensas são um
estado prévio em relação ao crime de homicídio qualificado; mas a professora acha que seria mais
de consunção. No entanto, em última análise, o que interessa é dizer que existe um concurso
aparente, porque a avaliação enquanto homicídio qualificado abarca todo o ilícito criminal praticado
pelo agente. Se se punir o agente por ambos os crimes, estar-se-ia a punir o agente duas vezes pelo
mesmo facto – violação do princípio ne bis in idem.
Acórdãos
Acórdão n.º 303/05 do TC:
Ver documento.