Plinio Pacheco - Direito e Norma Jurídica
Plinio Pacheco - Direito e Norma Jurídica
Plinio Pacheco - Direito e Norma Jurídica
E PROBLEMÁTICOS
Plínio Pacheco Oliveira1
1. Introdução
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Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre e bacharel em Direito pela Faculdade
de Direito do Recife (Universidade Federal de Pernambuco). Foi Visiting Researcher na University of Oxford
(Reino Unido) e desenvolveu estágio doutoral junto à Università di Bologna - Alma Mater Studiorum (Itália).
Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (Abrafi), a secção brasileira do
Internationale Vereinigung für Rechts und Sozialphilosophie (IVR). Advogado. Professor da Faculdade de
Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco (FACESF).
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Conforme observou Herbert Hart (um dos mais importantes juristas do século
passado), poucas questões relativas à sociedade têm sido feitas com tanta persistência e
respondidas de maneiras tão diferentes quanto a questão “o que é o direito?”. Contudo, no
lugar da pergunta “o que é o direito?”, sugerimos que você se questione o seguinte: “como é
usada a palavra direito?”. Seguindo essa orientação pragmática, talvez você observe de um
modo mais nítido a seguinte circunstância: a palavra “direito” é usada em diferentes sentidos
para identificar realidades muito diferentes entre si, realidades que muitas vezes apresentam
mais diferenças do que semelhanças. O que há em comum, por exemplo, entre o direito no
Brasil atual e as ordens jurídicas nas antigas civilizações da Mesopotâmia? Você pode,
certamente, identificar elementos semelhantes. Contudo, ao lado das semelhanças, existem
muitos fatores (econômicos, religiosos, culturais, etc.) que tornam as vivências jurídicas muito
diferentes entre si. Podemos dizer que a compreensão mais precisa em relação ao direito deve
ter em vista a experiência singular, o contexto histórico específico. Nesse sentido, toda teoria
geral do direito (ou simplesmente “teoria do direito”) é limitada, já que qualquer
generalização implica a desconsideração de aspectos singulares que podem ser relevantes para
o entendimento acerca do direito. Assim, é cabível entender que todo conceito de direito é
limitado. Ou o conceito de direito é tão amplo que não é capaz de revelar as singularidades
das diversas manifestações que são chamadas de “direito”, ou é restrito de um modo tal que é
suficiente para retratar bem um ordenamento jurídico específico – como o brasileiro –, mas é
inadequado para retratar genericamente as muitas manifestações consideradas como “direito”.
No livro “O Conceito de Direito” (um dos livros mais influentes da teoria do
direito no século XX), Hart não apresenta uma definição de direito. E justifica essa sua
postura indicando que nada suficientemente conciso para ser reconhecido como uma definição
poderia dar uma resposta satisfatória à pergunta “o que é o direito?”. Para ilustrar como o
direito pode ser visto de diferentes maneiras – o que acaba provocando divergências no uso da
expressão “direito” –, podemos examinar diferentes caracterizações que são dadas ao direito
por visões jusnaturalistas e teorias juspositivistas. Inicialmente, analisemos alguns aspectos
do jusnaturalismo. É importante que você perceba que não há “um” jusnaturalismo, mas
muitos jusnaturalismos. Sob o rótulo de “jusnaturalismo”, são identificadas teorias muito
diferentes entre si, mas que sustentam, igualmente, uma perspectiva fundamental: além do
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direito criado pela sociedade, existem regras jurídicas justas que independem da vontade
humana e dos atos sociais, e que são, nesse sentido, “naturais”. Efetivamente, a tradição
jusnaturalista é amplíssima, e envolve uma grande quantidade de autores situados em
contextos históricos muito distintos. Ante tal horizonte teórico heterogêneo composto pelo
jusnaturalismo, você pode visualizar divergências em relação à fonte do direito natural e aos
conteúdos éticos que expressam o direito natural. Dessa maneira, por exemplo, São Tomás de
Aquino, no decorrer do século XIII, sustentou o entendimento de que o direito natural
emanava da razão divina, enquanto Grócio (um expoente do jusnaturalismo racionalista no
século XVII) firmou o entendimento de que a fonte do direito natural é a natureza humana
racional – e não diretamente a razão divina. No que se refere à divergência quanto ao
conteúdo do direito natural, você pode observar, por exemplo, que há autores jusnaturalistas
que defendem, tal como John Locke (um dos principais filósofos da modernidade), que a
propriedade privada é um direito natural. Porém, como bem percebeu Hans Kelsen (um dos
juristas mais importantes do século XX), há autores jusnaturalistas que divergem de tal
entendimento, e argumentam que o direito natural é a propriedade coletiva dos bens, e não a
propriedade privada (vista, desse modo, como ofensa ao direito natural da propriedade
coletiva).
Por outro lado, apresenta-se o “positivismo jurídico”. De acordo com o que foi
apontado por Hart, a observação do termo “juspositivismo” a partir do seu uso demonstra uma
pluralidade de sentidos e de critérios para a sua definição. Dessa maneira, se você buscar na
doutrina o conceito de “positivismo jurídico”, provavelmente achará alguma divergência entre
os teóricos. Porém, entre os usos dados à expressão “positivismo jurídico”, é cabível destacar
um sentido específico (em virtude da sua importância histórica e da sua proeminência nos
debates contemporâneos acerca do positivismo jurídico) segundo o qual o juspositivismo é
um conjunto heterogêneo de teorias que são caracterizadas por duas posturas fundamentais:
1) “a tese social”, para a qual o direito é uma construção social, e só é admitido
caráter jurídico no direito positivo (“posto” socialmente). Desse modo, não existe o “direito
natural”, não há direito que foi estabelecido independentemente da vontade ou conduta
humana. Todo direito é um produto da sociedade;
2) não há vínculo necessário entre o direito e qualquer conteúdo ético –
compreensão referida como a “tese da separação”. Dessa maneira, entende-se que qualquer
conteúdo ético pode ser jurídico. Tenha em foco que a “validade jurídica é a qualidade de
pertencer ao ordenamento jurídico”, e indica que o enunciado normativo foi criado de
acordo com as normas superiores do sistema jurídico. Para o positivismo jurídico, a validade
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jurídica não implica um conteúdo justo, dotado de conformidade com a moral. Admite-se,
assim, que as normas jurídicas podem não ter vínculos morais, e que não são os conteúdos
éticos que delimitam o conceito de direito. O positivismo jurídico sustenta o argumento de
que há uma diferença fundamental entre o reconhecimento da “existência do direito” e o
reconhecimento da “existência da justiça” – o problema da validade e o problema da justiça
não se identificam. De acordo com o que foi observado por Hans Kelsen, o direito positivo
não vale pelo fato de ser justo, e vale mesmo que seja injusto. Desse modo, admite-se que as
normas jurídicas podem refletir quaisquer faces do bem e do mal, e não que a positivação do
direito encerra a questão da justiça.
Portanto, podemos concluir que as diversas formas de entender o direito
provocam divergências relativas ao conceito de direito. Concordamos com Hart no que se
refere ao caráter limitado das definições de direito. As diversas experiências identificadas pelo
nome “direito” não podem ser plenamente retratadas nos limites de um conceito.
entendimento que prevalece ante o ordenamento jurídico brasileiro é ainda ligado a uma visão
antropocêntrica segundo a qual apenas os seres humanos têm personalidade jurídica
(possibilidade de adquirir direitos e contrair deveres).
Por outro lado, podemos examinar a segunda pergunta sugerida: o direito regula
qual tipo de conduta humana? Nesse ponto, é firmado o entendimento de que as normas
jurídicas regulam a conduta humana interpessoal. O direito é uma forma de controle social, e
regula a conduta humana na medida em que ela é projetada no plano da intersubjetividade, na
esfera de interesses de outros seres humanos. Desse modo, sob o entendimento de que as
normas jurídicas regulam relações entre pessoas, a bilateralidade é apresentada como uma
característica das normas jurídicas. O termo “bilateralidade” decorre da percepção de que as
condutas juridicamente relevantes envolvem uma relação entre duas ou mais pessoas. Nesse
sentido, podemos argumentar que as normas jurídicas tratam da conduta humana na medida
em que se referem ao “outro” – e a “alteridade” (termo usado como sinônimo de
bilateralidade) também é apresentada como uma característica do direito. É cabível dizer,
entretanto, que a bilateralidade não é uma característica exclusiva do direito. Diversos
fenômenos normativos, como a moral e as regras de jogos, por exemplo, apresentam também
a bilateralidade.
você mentir, e, portanto, descumprir tal determinação moral, é possível que você sofra
consequências negativas que podem advir da mentira – como o desprezo dos seus colegas ou
da sua família. Nesse caso, o desprezo dirigido ao mentiroso serviria como uma sanção para o
enunciado normativo moral. Porém, a coercibilidade – a possibilidade de imposição da força,
da violência física (ou seja, imposição de uma sanção punitiva) para que haja o cumprimento
de um enunciado normativo – é uma característica típica do direito, e representa um elemento
que serve para distinguir o direito das outras ordens sociais. Portanto, você pode considerar
que as diversas expressões da ética (como o direito, a moral e a etiqueta) apresentam sanções,
mas a coercibilidade é uma nota distintiva do direito.
Deve-se ressaltar, todavia, que a característica marcante do direito não é a efetiva
imposição da força, da coação, mas sim a “possibilidade” de coação. Com efeito, o
cumprimento das disposições normativas jurídicas é, ordinariamente, garantido pela
“possível” coação, mas nem sempre a coação é “concretizada”. Nesse sentido, se o preceito
normativo é respeitado, não deve haver coação. Assim, por exemplo, o Código Penal
brasileiro estabelece que o homicídio é um crime que deve ser punido com uma pena privativa
de liberdade. Porém, se você não praticar tal delito, não deverá ser imposta sobre você uma
sanção punitiva que visa a garantir a proteção à vida. Portanto, você deve ter em vista que o
direito é marcado pela coercibilidade (a qualidade do que “pode trazer coação”), e não pela
coercitividade (qualidade do que “efetivamente traz a coação no momento atual”).
Ademais, você também deve ter em mente que nem todo enunciado normativo jurídico é
coercível. Assim, por exemplo, não haverá punição para os deputados estaduais que
desrespeitarem a Constituição Federal ao aprovarem uma lei que trata de uma matéria de
competência exclusiva do legislador federal. Nesse caso, não são coercíveis os enunciados
normativos da Constituição Federal que regulam as competências legislativas. Todavia, a lei
estadual será inválida, inconstitucional.
Efetivamente, você pode encontrar diferentes respostas que foram dadas a essas
perguntas no decurso da história das ideias jurídicas. Passaremos, então, a examinar algumas
posturas teóricas que apresentam abordagens diferentes em relação a esses questionamentos.
Você deve perceber, contudo, que a interpretação é hoje realçada como uma
atividade que se desdobra sobre o que é incerto, tendo a função de apresentar um
entendimento sobre o que pode ser visto de diversas maneiras, sem que a variedade de
perspectivas represente falhas dos intérpretes. Com efeito, abordagens como a de Hart e a de
Kelsen abriram caminhos para além da separação entre a criação e a aplicação do direito.
Kelsen compreendeu que as palavras e as sequências de palavras têm uma pluralidade de
significações, e que o julgador se encontra diante de várias significações possíveis em relação
à “norma”. Os textos normativos, assim, são percebidos como “molduras” que comportam
várias possibilidades interpretativas. Dessa maneira, entre as várias significações possíveis (as
que podem ser inscritas na moldura interpretativa), não há uma que possa ser identificada
como a única correta. No entanto, tenha em vista que, para Kelsen, é juridicamente correta
qualquer interpretação cabível nos limites do enunciado normativo, e cabe ao intérprete
aplicador do direito escolher algum caminho interpretativo entre outros possíveis. Por sua vez,
Hart compreendeu que a linguagem dotada de autoridade em que a regra é expressa pode
guiar apenas de modo incerto, e que o aplicador do direito realiza, ordinariamente, escolhas
interpretativas ante um conjunto de diversas interpretações possíveis.
Nesse sentido de reconhecer que a interpretação é uma atividade produtiva de
normas jurídicas, Friedrich Müller (jurista alemão contemporâneo que integra a chamada
Jurisprudência Hermenêutica) fez uma separação entre “texto” e “norma”. Esse autor
entendeu que os textos normativos são “significantes” e as normas são “significados” que
surgem apenas como resultado da interpretação. Dessa maneira, os textos legais são
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considerados somente como “pré-formas legislatórias” da norma jurídica, que está por ser
produzida no decurso temporal da decisão. A ideia fundamental no argumento de Müller é de
que as palavras (significantes) não têm significados intrínsecos, e que um mesmo texto
normativo pode ser interpretado de diferentes modos. A norma, assim, seria o sentido
atribuído ao enunciado normativo, e um mesmo texto normativo é capaz de dar lugar a
diferentes normas. Dessa maneira, por exemplo, um texto normativo que prescreve o “respeito
à igualdade” pode ser entendido de diferentes maneiras, e sua concretização, na prática
interpretativa, pode dar lugar a diferentes normas.