Da Verwerfung em Freud À Foraclusão em Lacan: Resumo
Da Verwerfung em Freud À Foraclusão em Lacan: Resumo
Da Verwerfung em Freud À Foraclusão em Lacan: Resumo
Da Verwerfung em Freud
à foraclusão em Lacan
Keylla Barbosa
Resumo
Propomos analisar nos textos de Lacan e seus interlocutores (sobretudo Freud e Hyppolite) a
formação da hipótese da foraclusão como alicerce teórico no que diz respeito à constituição das
psicoses. Para tal, iremos percorrer junto com Lacan a tomada da palavra “Verwerfung”, que
aparece no artigo de Freud sobre o “Homem dos Lobos”, e a sua transformação em “foraclusão”.
Examinaremos esse ato criativo de Lacan, a fim de situar esse novo conceito no plano epistemo-
lógico deixado por Freud e revisitado por Lacan.
pontuação de que uma rejeição é diferen- rece como “er vor ihr nichts wissen wollte
te de uma repressão ou um recalque1 abre im Sinne der Verdrängung” (Freud, [1914-
a possibilidade de se pensar em mecanis- 1918] 1924, p. 91).
mos de ação inconscientes diferentes O modo como essa frase é colocada
entre si e, consequentemente, em seus por Freud no texto em alemão apresenta
resultados. certa ambiguidade que possibilita a Lacan
Para Freud, o modo de operação do fazer dela uma leitura no sentido de iso-
aparelho psíquico culmina em diferen- lar a Verwerfung como um mecanismo de
tes tipos clínicos, sendo possível, a partir defesa diferente da Verdrängung. No se-
dessa hipótese, sugerir uma diferença de minário, livro 3: as psicoses ([1955-1956]
base entre a neurose e a psicose. Ao ob- 2010), bem como no artigo Resposta ao
servar essa abertura potente deixada por comentário de Jean Hyppolite ([1954]
Freud, Lacan eleva a Verwerfung à cate- 1998), Lacan deixa registrado que sua
goria de conceito fundamental em rela- tradução dessa frase é a seguinte: “le sujet
ção à psicose, propondo, assim, uma ex- ne voulait rien savoir de la castration même
plicação de base estrutural para isso que au sens du refoulemen” (Lacan, [1955-
se apresenta na clínica. 1956] p. 121),2 que na edição traduzida
Mais adiante, ainda no capítulo VII para o português se torna “o sujeito nada
do artigo sobre o Homem dos Lobos, en- queria saber da castração, mesmo no sen-
contramos o seguinte trecho a respeito tido do recalque” (Lacan, [1955-1956]
de uma possível resposta em relação à 2010, p. 177).
castração: Para completar, o autor leva ao ex-
tremo a afirmação de Freud de que, no
Já nos é conhecida a atitude inicial do caso do Homem dos Lobos, “era como se
paciente para com o problema da cas- [a castração] não existisse”, no original
tração. Ele a rejeitou e se ateve ao ponto “aber es war so gut, al sob sie nicht existier-
de vista da união pelo ânus. Ao dizer te” (Freud, [1914-1918] 1924, p. 91) e a
que a rejeitou, o significado imediato traduz como “il en fut aussi bien que si elle
da expressão é que não quis saber dela, n’avait jamais existé” (Lacan, [1954] 1966,
no sentido de que a reprimiu. Com isso p. 384-385), que na versão em português
não se pronunciava um juízo sobre a sua aparece como “foi exatamente como
existência, mas era como se não existisse se ela nunca tivesse existido” (Lacan,
(Freud, [1914-1918] 2010, p. 75). [1954] 1998, p. 389). Foi a partir dessas
traduções/interpretações que Lacan pôde
A frase na citação acima traduzida construir, para as psicoses, um mecanis-
como “Ele a rejeitou” em alemão se escre- mo que se coloca na base, ou melhor, na
ve “Er verwarf sie” (Freud, [1914-1918] estrutura de seu funcionamento.
1924, p. 91), ou seja, Freud aqui se utili- No decorrer do Seminário 3: as psi-
za do verbo verwerfen, que dá origem ao coses, podemos mapear, em vários mo-
substantivo Verwerfung, para falar sobre o mentos, exatamente os passos dados pelo
destino da castração nesse caso. A frase autor a partir do texto de Freud sobre o
que aparece na edição brasileira, citada Homem dos Lobos no caminho da cons-
acima, “não quis saber dela, no sentido trução do conceito de Verwerfung, expres-
de que a reprimiu”, na edição alemã apa- samente cunhado e lapidado desta forma:
1. A tradução da palavra “Verdrängung” para o português 2. Esta citação do Seminário 3 foi consultada no site
varia entre ‘repressão’ e ‘recalque’ a depender de como <www.stataferla.free.fr>, no seguinte link:
cada tradutor escolhe articular os conceitos de Freud. <http://staferla.free.fr/S3/S3%20PSYCHOSES.pdf>.
supõe a existência daquilo que ela nega, mária, e é a partir dela que o Real irá se
ou seja, daquilo que foi internalizado pela constituir como aquilo que fica para fora
ação do par Bejahung/Ausstossung, man- da Bejahung. O funcionamento desse jogo
tendo a separação entre representação entre incorporação e expulsão nada mais
e coisa, e agindo sobre uma representa- é do que o processo formador do simbó-
ção a serviço do retorno do recalcado. A lico. O que é afirmado constitui o simbó-
Verneinung age deformando o conteúdo lico, e o que é negado fica para o lado de
inconsciente para que este possa alcançar fora da simbolização.
o consciente; ela não é um processo de
defesa, mas opera a serviço de um. A Verwerfung, portanto, corta pela raiz
Dito isso, cabe a pergunta sobre o qualquer manifestação da ordem simbóli-
ponto em que se situa a Verwerfung nesse ca, isto é, da Bejahung que Freud enuncia
plano mítico da constituição do dentro como o processo primário em que o juízo
e do fora.3 Segundo Lacan, a Verwerfung atributivo se enraíza, e que não é outra
corta pela raiz aquilo que, internalizado coisa, senão a condição primordial para
pela Bejahung, é submetido ao juízo de que, do real, alguma coisa venha se ofe-
atribuição. Desse modo, a Verwerfung recer à revelação do ser (Lacan, [1954]
impede a formação do simbólico, o que 1998, p. 389).
só pode surgir por meio dos mecanismos
de negação explicados anteriormente. A grande diferença entre os dois
Qualquer significante incorporado pela modos de negação representados pela
Bejahung/Ausstossung pode ser lançado Verneinung e pela Verwerfung é que a pri-
fora pela Verwerfung e nunca mais será meira se faz com a lógica da simbolização,
encontrado. Não irá sobrar nenhum enquanto na segunda há um bloqueio do
vestígio da existência desse significante simbólico onde há um retorno do real
havendo uma alteração no juízo de atri- através de construções imaginárias. Esse
buição e existência, mantendo aquilo que momento trata não de uma relação do
foi foracluído como se nunca houvesse sujeito com o que há no mundo, mas sim
existido nem dentro, nem fora do apa- de um reconhecimento daquilo que é; o
relho psíquico. Tudo se passará como se que está envolvido nesses primeiros pro-
algo nunca tivesse sido introduzido nesse cessos psíquicos é uma relação do sujeito
primeiro corpo de significantes, o que, de com o ser.
certo modo, cria uma identidade entre Na resposta que Lacan escreve sobre
Ausstossung e Verwerfung (Rabinovitch, o comentário de Jean Hyppolite a respeito
2001, p. 26). da Verneinung freudiana, ele é bem claro
Nesse período da obra de Lacan, a ao situar sua hipótese da foraclusão como
Ausstossung configura a expulsão pri- aquilo que vem para se opor à afirmação
(Bejahung) primordial. Nesse caso, ou há
3. Segundo Jean Hyppolite em seu texto Comentário a Bejahung, ou o que se coloca em frente
falado sobre a Verneinung de Freud (que pode ser ao princípio de realidade é a Verwerfung.
encontrado tanto nos Escritos, de Lacan, bem
como no livro Ensaios de psicanálise e filosofia, citado
anteriormente) a questão da criação de um lugar O processo de que se trata aqui sob o
interior e outro exterior, que está em jogo nas nome de Verwerfung, e que não tenho
operações que dão origem ao aparelho psíquico,
pode ser entendida como um mito. Lacan reitera notícia de que algum dia tenha sido
essa opinião no texto Resposta ao comentário de Jean objeto de um comentário um pouquinho
Hyppolite (também encontrado nos Escritos) dizendo consistente na literatura analítica, situa-
que a aposta em entender esses processos no plano do
mito nos ajuda a não cair na armadilha de entendê-los se muito precisamente num dos tempos
como algo do nível do desenvolvimento. que Sr. Hyppolite acaba de destacar para