Wosaniak - Ciberdança
Wosaniak - Ciberdança
Wosaniak - Ciberdança
Cristiane Wosniak2
Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão ancorada nos pressupostos semióticos de Charles Sanders
Peirce, acerca dos processos, poéticas e estéticas em arte digital, na proposição da signagem
ciberdança. Neste percurso investigativo serão abordadas as mudanças de percepção e
subjetividades do corpo pós-humano-moderno, imbricado em formas próprias de (midi)ações
e contaminado pelas instâncias tecnoestéticas, próprias da contemporaneidade. Como corpus
de análise, a obra multimidiática Mini@atures do coreógrafo francês, Didier Mulleras
(desenvolvida entre 1998 e 2001), será cotejada por meio das teorias e conceitos propostos
pelos autores, Lev Manovich, Lúcia Santaella, André Parente, Umberto Eco e Denise
Azevedo Duarte Guimarães. Adota-se a hipótese de que o corpo (des)referencializado no
medium digital encontra-se aberto à instauração de inusitadas significações rizomáticas.
Introdução
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Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Linguagens (Estudos de Cinema e Audiovisual) da
Universidade Tuiuti do Paraná. Mestra pelo mesmo programa, na linha de pesquisa: Cibermídia e Meios Digitais. Membro do
GP Imagem e Contemporaneidade (UTP) e vice-líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa em Artes (FAP). Coordenadora
do Curso de Bacharelado e Licenciatura em Dança da Faculdade de Artes do Paraná e Coordenadora Acadêmica da Unidade
Dança da UFPR. E-mail: cristianewosniak@ufpr.br
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Signagem é o neologismo criado por Décio Pignatari (2004) para evitar usar o termo linguagem ao se referir a fenômenos
não verbais, como por exemplo, a fotografia, a televisão, o teatro, a dança, ou especificamente, a ciberdança (sistema áudio-
hápticovisual).
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O corpo semiósico, na concepção da pesquisadora Mirna Feitoza Pereira (2004), parte da seguinte questão: o signo pode
agir sem um corpo que o realize? A hipótese defendida pela autora é que o signo não só demanda por um corpo que realize a
sua função inteligente, como o design do corpo interfere no modo como o signo é percebido, processado e posteriormente
traduzido em outro signo. Este neologismo vai ao encontro do que se pretende demonstrar nesta investigação, ou seja, a
(des)referencialização do corpo de carbono e sua (re)signagem – tradução em outro signo – por meio de injunções
tecnoestéticas e híbridas da ciberdança na contemporaneidade.
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A Estética, para Peirce, deve buscar um termo ou expressão geral que elimine a ideia de `belo`. Décio Pignatari (1979)
comenta que Peirce procurava um termo próximo à qualidade potencial de um fenômeno – um termo para um primeiro que
seja também um terceiro: uma qualidade que seja inteligível. Uma Qualidade de Sentimento. Enquanto filósofo, Peirce
buscava uma definição de um `bom`objeto: “ele deve ter uma quantidade da partes de tal modo relacionadas umas às outras
que confira uma positiva e simples qualidade imediata à sua totalidade” (CP 5.132). Neste artigo, esta ideia peirceana
relaciona-se à abertura rizomática de possibilidades de criação em rede, como potencial qualis/processual, como
referencialidade icônica, e também se aplica ao processo de leitura/fruição aberta da representação da ciberdança, ou como
atesta Peirce sobre a fruição estética: “não logro dizer exatamente o que é, mas é uma consciência que pertence à Categoria
da Representação, embora representando algo na Categoria da Qualidade de Sentimento “(CP 5. 113).
Sob o nome genérico de hipertexto, pode-se agrupar uma série de conceitos, métodos,
sistema e programas diferentes. O neologismo criado por Ted Nelson, em 1965, sofre,
atualmente, de uma grande polissemia. Parente, em O Virtual e o Hipertextual (1999),
esclarece que idealmente, um hipertexto pode ser: a) um método intuitivo de estruturação e
acesso à base de dados multimídia; b) um esquema dinâmico de representação de
conhecimentos; c) um sistema de auxílio à argumentação; d) uma ferramenta de trabalho em
grupo. O autor retoma, em sua obra, alguns princípios do rizoma hipertextual aplicado à
produção de imagens em rede. Estabelece, neste percurso, alguns princípios que podem ser
verificados no pensar-fazer ciberdança: 1) princípio da conexão – no rizoma, as conexões se
fazem por proximidade e a ciberdança enquanto forma hipertextual oferece ao leitor/usuário
possibilidades (a)centradas e topológicas, opondo-se ao modelo hierárquico da `árvore-raíz`;
2) princípio da não-linearidade – a ordem dos módulos textuais (videoclipes) é arbitrária e
pode ser permutada ou recombinada, em função do sujeito/usuário no percurso de sua leitura;
3) princípio multilinear – em um texto dinâmico e fluido como a ciberdança, os módulos
mudam, ou seja, seu conteúdo se altera na medida em que o usuário altera seu percurso de
seleção; 4) princípio da temporalidade – os videoclipes podem se transformar ao serem
acionados em determinada ordem a depender da interatividade com o usuário; 5) princípio da
interatividade – as relações hipertextuais de primeira ordem podem ser implícitas, explícitas
ou arbitrárias e as de segunda ordem se fazem presente quando o usuário interfere e
transforma o texto e seus abertos significados, tornando-se seu coautor.
Este artigo pretende demonstrar, por meio da análise do corpus, que estas quatro
modalidades e estes cinco princípios descritos, podem ser aplicados ao conjunto do
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Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolvem na obra Mil Platôs – volume 1, uma terminologia para designar um tipo de
filosofia, pensamento que não se desenvolve evolutivamente seguindo uma linha arborescente (rígida, hierárquica,
inflexível), mas seguindo uma lógica dos múltiplos singulares, ou em suas palavras: “um rizoma [grifo meu] não começa
nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e...e...e...’ Há nesta conjunção força
suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.” (1995, p. 37). Por analogia, esta linha de raciocínio pode ser aplicada à
investigação da ciberdança, como manifestação rizomática, passível de polissêmicas e abertas intervenções e leitura.
O autor Lev Manovitch, em sua obra A linguagem dos novos meios de comunicação
(2005) denomina como novas mídias, os meios que podem ser transcodificados
numericamente; e que possuam configuração modular, podendo ser modificados em tamanho
e quantidade de informação contida, e que, da mesma maneira apresentem um caráter
disperso, não linear e simultâneo, ou seja: tratam-se dos meios digitais.
Figura 01 Figura
(Frame de Mini@tures/ signagem híbrida) (Frame de Mini@tures/ signagem hipertextual)
Neste aspecto, a ciberdança parece atender aos pressupostos teóricos detalhados pelo
autor russo. A dança interfaceada pelas novas mídias não se refere a nenhum tipo de ruptura
imanente, mas à possibilidade de interação e resposta às questões propostas pelo medium
digital ou neste caso, seria mais adequado afirmar que a dança em rede virtual é uma nova
configuração ou possibilidade de interferência nos códigos que regem as mídias e a cultura ou
nas palavras de Parente “um esquema dinâmico de representação de conhecimentos”
(PARENTE, 1999, p. 80). Salienta-se que a linguagem computadorizada na mídia, alterou
profundamente a questão das tecnologias interativas, propondo para o corpo atuador – sujeito
e objeto da dança – uma atualização sem fronteiras, modificando as relações entre os
criadores e suas obras, instaurando novas possibilidades de representação e inaugurando
outras abordagens sobre as relações espaço-temporais, afetando sobremaneira as etapas de
comunicação, não mais centradas no paradigma: emissor-canal-receptor. O leitor/usuário,
O copo pós-humano-moderno torna-se, nas palavras de Umberto Eco (1971) uma obra
aberta às intervenções, seleções aleatórias, estabelecendo novas relações significantes por
meio do repertório individual e/ou coletivo.
Figura 03 Figura 04
(Frame de Mini@atures/corpo multimidático) (Frame de Mini@atures/corpo multimidático)
Quanto à leitura e fruição das supostas mensagens, Eco (1971) diferencia dois níveis
de aberturas nas obras: 1) abertura de primeiro nível – o fruidor/usuário ao fruir a signagem
específica (ciberdança) imediatamente a (re)significa por meio de sucessivas semioses7; 2)
abertura de segundo nível – o fruidor/usuário interfere ativamente na configuração da obra, a
partir de sua (i)materialidade, ou seja, é convidado a selecionar – dentre algumas ações pré-
programadas – de forma aleatória e não-linear, fragmentos inusitados na composição da obra.
Na interferência direta sobre uma ciberdança, por exemplo, o que parece peculiar à
experiência digital é a possibilidade de explorar simultaneamente múltiplas linguagens, como
a estrutura sonora, o design gráfico e os corpos virtualizados em movimento dançante (ver
figuras 05 e 06).
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Na Semiótica de Charles Sanders Peirce, o significado de um signo é sempre outro signo, sendo este, um processo
significante que se desenvolve por relações triádicas – e o Interpretante é o signo-resultado contínuo que resulta desse
processo. Por que contínuo? Por que o signo é ativo, dinâmico, está em contínuo movimento, o que nos leva a afirmar que
para definir a semiótica peirceana é preciso dizer que não é bem o signo, mas é a semiose que é seu objeto de estudo. Afirma,
ainda Winnfried Nöth (2003, p. 72) “ Como cada signo cria um interpretante que, por sua vez é representamem de um novo
signo, a semiose resulta numa ‘série de interpretantes sucessivos’ ad infinitum o processo contínuo da semiose (ou
pensamento) só pode ser ‘interrompido, mas nunca realmente finalizado’ (CP, 5.264).”
Figura 05 Figura 06
(Frame de Mini@atures/corpo virtual/semiósico) (Frame de Mini@atures/corpo virtual/semiósico)
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Didier Mulleras, cuja formação é música, é também coreógrafo e bailarino. Ao lado de sua esposa, a bailarina Magali
Viguier-Mulleras, dirige a Compagnie Mulleras, cujos integrantes residem em Beziers, ao sul da França. Mulleras se destaca
como um dos criadores contemporâneos que desenvolvem a dança sob um diferente ponto de vista. Para maiores informações
consultar o site do grupo: www.mulleras.com
Cada uma das peças (miniclipes) coreográficas são formadas por associações
(inter)dependentes de superposição de imagens (ver figuras 07 e 08), por telas que se abrem
simultaneamente, de forma aleatória, a depender da opção do usuário. Estas microtelas
informativas propõem jogos criativos, intertextos, edições lúdicas e entrecruzamento de
signagens. Novos significantes estéticos emergem a partir dessas relações espaciais entre a
ciberdança e o corpo cênico. Cabe salientar que no teatro (palco) o espectador encontra um
corpo cênico, num ambiente tridimensional. O movimento é visualizado a partir de um ponto
de vista a depender da posição deste espectador na sala de espetáculo. Na ciberdança, o
espectador, agora denominado usuário, reflete sobre o espaço n-dimensional a partir dos
pontos de vista do olhar da câmera que registra os movimentos: o ambiente ciberespacial
adquire inconsistência desconstruída (planos, ângulos e tomadas, efeitos de sobreposição e
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Para ter acesso ao depoimento completo de Nicolas Grimal e ter maiores informações sobre o projeto, consultar o site:
<http://www.itaucultural.org.br/interatividades/cobertura_mulleras.cfm?&cd_pagina=1742&CFID=822817&CFTOKEN=19
386307#processo>. Acesso em: 15 jul 2013.
Um signo ou representamen é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo
para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo
equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. A este último tipo de signo,
designo interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.
Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo
de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamem. (2.228)10
Figura 07 Figura 08
(Frame de Mini@atures/superposição imagética) (Frame de Mini@atures/superposição imagética)
Um signo, uma vez colocado no mundo entra em cadeia contínua e evolui, replica-se
em outros meios. O corpo medium ou pós-humano-moderno não veicula apenas a mensagem:
o corpo medium é a mensagem. Este conceito proposto por McLuhan (1964) no primeiro
capítulo de sua obra Os meios de comunicação como extensões do homem, entende o corpo
como mídia dos processos de comunicação, cuja capacidade de reconfigurar e dialogar com as
informações define tanto sua forma quanto os seus elos de conexão durante tal processo. O
corpo virtualizado, retirando informações do mundo e dialogando com o ambiente por meio
de suas interfaces, poderá transformá-las e por elas ser transformado e, assim adquirir um
novo estatuto de (des)corporalidade.
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Segundo Pignatari (1979) as citações da obra de Charles Sanders Peirce seguem uma padronização (CP) que fazem
referência à edição Collected Papers of Charles Sanders Peirce , Harvard University Press, 1931-1958, 8 v. Os seis primeiros
volumes (1931-35) foram organizados por Charles Hartshorne e Paul Weiss; os dois últimos (1958), por Arthur V. Burks. No
código, a primeira cifra reporta-se ao volume, a segunda ao parágrafo. O critério continua válido para a nova edição, em
quatro volumes duplos.
Figura 09 Figura 10
(Frame de Mini@ature/corpo/design/semiose) (Frame de Mini@ature/corpo/design/semiose)
Considerações finais
Este artigo se propôs a apresentar uma reflexão acerca das poéticas e estéticas em arte
digital e, em específico, na proposição da signagem ciberdança. Neste percurso investigativo,
verificou-se intensas mudanças de percepção e subjetividades do corpo pós-humano-moderno,
imbricado em formas híbridas de (midi)ações e contaminado com as instâncias tecnoestéticas,
das signagens contemporâneas. Por meio de exemplos advindos da obra multimidiática
Mini@atures do coreógrafo francês Didier Mulleras, diferentes argumentos apontaram para o
fato de que o corpo (des)referencializado no medium digital encontra-se aberto à instauração
de inusitadas significações, (re)configurando-se, neste processo e apresentando-se no
ambiente digital, como um corpo semiósico, aberto a incontáveis efeitos de sentido.
Esclarece-se, ao longo do texto, que a ciberdança parece estar vinculada aos conceitos
e características do que Parente (1999) define como hipertextual, ou seja:
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