719-Texto Do Artigo-2701-1-10-20221120
719-Texto Do Artigo-2701-1-10-20221120
719-Texto Do Artigo-2701-1-10-20221120
SANKOFEAR PARA
CONTINUAR:
memória ancestral
negra e indígena
presente no
Povoado Terreirão, Sankofear to continue: black and
Muniz Ferreira - Ba indigenous ancestral memory
present in Povoado Terreirão,
Eva Dayane Jesus dos Santos1 Muniz Ferreira - Ba
RESUMO: O presente texto buscou, através do movimento ABSTRACT
Sankofa e da metodologia Escrevivências, apresentar The present text sought through the Sankofa movement and
fragmentos de minha memória refletidos acerca das tradições e the writing methodology to present fragments of my memory
contribuições deixadas em continuidade pelos povos reflected on the traditions and contributions left in continuity
Tupinambá, Kariri e Bantus no território do Recôncavo da by the Tupinambá, Kariri and Bantus peoples in the territory
Bahia, sobretudo no Povoado do Terreirão em Muniz Ferreira, of the Recôncavo of Bahia, especially in the Povoado do
BA. Como técnicas metodológicas, utilizo a observação Terreirão in Muniz Ferreira, Bahia. . As methodological
participante e a fotografia para registro das imagens. Considero techniques I use participant observation and photography to
que o movimento Sankofa e as Escrevivências são metodologias record the images. I consider that the Sankofa movement and
aplicáveis que possibilitam aos afrodescendentes o movimento the writings are applicable methodologies that can enable
de autoconhecimento, de construção de identidade e de cura. Afro-descendants to move towards self-knowledge, identity
Palavras-chave: Sankofa. Ancestralidade. Escrevivência. construction and healing.
Memória. Povoado Terreirão
______________________ Keywords
1 - Bibliotecária no Centro de Ciências da Saúde, na Universidade Federal do Sankofa. Ancestry. Escrevivência. Memory. Povoado Terreirão
Recôncavo da Bahia. E-mail: eva@ufrb.edu.br.
SANTOS E.D.J. dos | Revista Macambira, v. 6, n.1, 2022, e061013 | ISSN 2594-4754
PAG. 1
Sankofear para continuar: memória ancestral negra e indígena ...
Introdução
O presente texto é resultado do movimento de voltar ao passado para trazer, por minhas próprias
mãos, fragmentos de histórias e de inscrições a respeito das informações responsáveis por forjar-me como
pessoa. Saliento a necessidade de disseminar esse ensinamento ancestral a todas as pessoas que, de alguma
forma, buscam respostas às lacunas deixadas pelas marcas do racismo epistêmico, estrutural, institucional,
ambiental, entre outros. Contar a experiência negra por nós mesmas é uma narrativa que se faz necessária e
potente para o processo de cura coletiva das dores e dos traumas causados pelo racismo presente por todo
território brasileiro.
O termo Sankofa significa que “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás. Símbolo da
sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro.” (NASCIMENTO; GÁ, 2009, p. 40); logo,
meu retorno ao passado se inicia com a vida! Ao descobrir que eu gerava uma nova vida, questionei-me
sobre o que eu deixaria como legado para meu filho. Nesse movimento tão profundo e íntimo, dei-me conta
de que eu não conhecia minha própria história familiar.
Eu não sabia nada além de minha mãe ou de meu pai. Além disso, no ano em que eu estava prestes
a parir, meu Tio Toim resolveu pegar pelas próprias mãos o prumo de sua vida, deixando como marca
material a casa de farinha no Povoado Terreirão. Ele investiu todo o recurso financeiro que possuía, bem
como seu conhecimento e sua rede de apoio, no sonho de montar sua própria casa de farinha.
O movimento da gestação e o movimento de Tio Toim me fizeram despertar de um sono profundo
sobre fabulações de histórias que não eram minhas. As fabulações que Milton Santos (2015) outrora tentou
nos alertar. Meu movimento estava no sentido contrário; ao invés de olhar para o passado, eu insistia em
olhar para o futuro.
Ao voltar e olhar para minha história familiar, ao ouvir os meus mais velhos contarem suas
lembranças, suas histórias, suas verdades, e, também, ao ampliar minhas leituras sobre culturas africanas e
indígenas, escritas por mulheres e homens africanas/os, afrodescendentes e indígenas, pude acessar e
entender as lacunas abertas em minha própria vida, as tormentas que até então eu não compreendia.
Entendo que a Escrevivência é o método reflexivo que busca compreender, através de nossas
próprias experiências de vidas, os atravessamentos por dores, alegrias e desafios da sobrevivência; mas,
sobretudo, é também uma luta política, uma forma de resistência, de denúncia e de reivindicação por direitos,
inclusive, da escrita. A escrita torna-se, então, um instrumento de luta e resistência das escrevivências negras.
As pessoas negras, que, até então, eram objetos de estudos de outras pessoas – sobretudo pessoas
brancas, que julgavam compreender mais de nós do que nós – agora se utilizam das suas próprias
experiências para refletir sobre a história e as ciências. A Escrevivência possibilita um mergulho em nossa
experiência cotidiana, uma observação aprofundada na tradição ancestral que vem sendo transmitida e
transformada milenarmente,
Retomando a reflexão sobre o fazer literário das mulheres negras, pode-se dizer que os
textos femininos negros, para além de um sentido estético, buscam semantizar um outro
movimento, aquele que abriga todas as suas lutas. Toma-se o lugar da escrita, como direito,
assim como se toma o lugar da vida. (EVARISTO, 2020, p. 7).
Além das Escrevivências, utilizo neste texto as técnicas da observação direta e participante (são
técnicas do Estudo de Caso organizadas por Yin (2015), como fontes de evidência), as conversas informais
(que fazem parte da técnica da observação participante, pois a sujeita pesquisadora interage com a
comunidade) e a fotografia. Parte das fotografias utilizadas neste trabalho faz parte do meu acervo pessoal,
no qual registrei as descobertas sobre assuntos que circunscrevem a vida cotidiana do Povoado Terreirão ii,
lugar de minha memória afetiva e onde se faz a história dos povos dos quais descendo: Tupinambá, Kariri
e Bantus.
Sim, busco, nas tradições familiar e comunitária, as lembranças, as histórias dos antepassados, de
nossa origem. Tenho ciência sobre o silêncio de alguns momentos quase esvaziados de sentido, e que por
pouco não foram totalmente esquecidos. Mas o movimento Sankofa nos possibilita retomar para o lugar de
reflexão e de compreensão das memórias que possibilitam
i - Hambaté Bâ (2010) explica que os griots
recontar histórias, ou seja, nossa própria história. são pessoas tradicionalistas que detém um
Escrevivências é contar experiências sobre nós (nós coletivo, vasto conhecimento sobre todas as coisas
na África (são cantores, preservadores,
não eu individual), e, de certa forma, ouvir a nós mesmas num transmissores da música antiga,
movimento de aprendizado e de cura. compositores, historiadores, poetas,
contadores de histórias). Aqui no Brasil,
podemos nomeá-los como os mais Velhos,
os mestres de artificies, as Yás e Bábás
Sankofear é preciso! (Mães e Pais de Santo) em religiões de
matriz africana, os Pajés e Caciques nas
O que podemos aprender com o movimento Sankofa? aldeias. Os griots são os conhecedores, eles
ensinam, educam, transmitem e preservam
Eu, enquanto mulher negra, oriunda dos povos Bantus, com
o conhecimento.
ascendência indígena dos povos Tupinambá e Kariri, me vejo
Ii - O Povoado Terreirão está localizado a
na encruzilhada dos saberes, através da tomada de consciência sobre
quase 2minha
km do própria
Centro dahistória. Isso
Cidade de só é
Muniz
Revista Macambira, v. 6, n.1, 2022, e061013 | Ferreira, no Recôncavo da Bahia.
ISSN 2594-4754
PAG. 3
Sankofear para continuar: memória ancestral negra e indígena ...
possível pelo movimento Sankofa. Quando volto para as bibliotecas vivas do meu lugar, seja ela a família ou
a comunidade, eu consigo, de pouco em pouco, ter acesso e construir minha própria identidade a partir do
que nos foi transmitido, por meio da oralidade, dos gestos, das ações ou pela própria dinâmica social local:
as oralituras (MARTINS; 2003; 2007).
Ao fazer o movimento Sankofa, pude perceber que a ascendência dos povos indígenas se faz ainda
presente em formas e em saberes. Os povos indígenas do Recôncavoiii, sobretudo os Tupinambá, povo do
trovão (JECUPÉ, 2020; SILVA, 2021) e os Kariri, por conta do racismo sistemático, foram
progressivamente intitulados como “não indígenas”; no entanto, a sua cultura é notável em muitos aspectos
e em muitas características que se fazem ainda presentes no território do Recôncavo da Bahia.
Alguns estudos a respeito dos povos indígenas no
iii - Refiro-me ao território de Muniz Ferreira,
Bahia. Os povos Tupinambá desse território não território do Recôncavoive também relatos orais de
foram extintos, nós existimos! O que aconteceu parentes mais velhos dão indícios a respeito da vida desses
foi ocultação da identidade para garantir a
sobrevivência, no entanto, a cultura continua nos povos na região. Todavia, foram utilizadas pelos
mínimos fazeres do cotidiano em confluência colonizadores inúmeras estratégias para descaracterizar e
com a ancestralidade Bantu.
ocultar a identidade indígena, tais como: oferta de
iv - Ver o trabalho de: ROCHA, Roberta Cristina
Santos Leite. “Fala em maneira de cura, quem
emprego público, catequese, miscigenação (pela violência
fala confirma o poder da palavra”: rezadeiras, sexual; os relatos de minha tia avó trazem as lembranças
religiosidade e práticas de cura em Muniz Ferreira
- Bahia (1990-2020). Dissertação (Mestrado) - traumáticas de minha hexavó Tupinambá, que foi retirada
Programa de Pós-Graduação em História da mata a “dente de cachorro”, mas ela resistia e sempre
Regional e Local, Departamento de Ciências
Humanas, Campus V, Universidade do Estado, voltava) e a venda do território indígena, antes tutelada
Santo Antônio de Jesus, 2022. pelo Estadov – até meados do século XIX, quando
v - Para outras informações a respeito, vale extinguiram os aldeamentos e estabeleceram a Lei das
conferir os trabalhos de: SANTOS, Erilza
Galvão dos. O Diretor de índios: análise Terras de 1850, o que facilitou a invasão no território
preliminar dos diretores parciais das aldeias indígena no Recôncavo. Outras estratégias continuam em
indígenas. Bahia,1845-1889. 1988. Dissertação
(Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em vigência em outros territórios indígenas na Bahia e no
Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Brasil na contemporaneidade, tais como: cooptação e
Salvador, 1988; e o de REGO, André de
Almeida. Trajetórias de vidas rotas: terra, criminalização de lideranças indígenas, conflitos,
trabalho e identidade indígena na província da emboscadas e chacinas, conforme informa Silva (2019).
Bahia (1822-1862). 2014. Tese (Doutorado) -
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Entretanto, conta-nos Jecupé (2020) que os povos
Programa de Pós-Graduação em História Social, Tupinambá são povos do trovão. Dentro do Povoado
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
Disponível em: Terreirão e dos ensinamentos de minha mãe, ouvi
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/23400. inúmeros aconselhamentos sobre o trovão (de que tinha
Acesso em: 24 mar. 2021.
que se ter respeito; de que não se podia fazer
determinadas coisas, tais como: falar alto, assistir televisão, estar exposto ao espelho etc.). Há também o
canto dos encantados da finada Dona Antônia, matriarca da família de Dona Zefa, sobre o fogo que cai no
mar: “Quem de tudo se admira, corre o mundo quer de vê / Fogo no mar / Terror / Fogo no mar /
Terror.”. O canto, dentre outros elementos, são indícios dos saberes ancestrais em continuidade. O que é
fogo no mar? Será o trovão?
Glicéria Tupinambá ou Célia Tupinambá (SILVA, 2021), conta-nos sobre “Tupã, encantados e
antepassados”. Ela diz que os Tupinambás são filhos da árvore. A autora relata que, na criação da
humanidade, só existia o Velho com seu cajado. Ele criou a primeira humanidade a partir de cinco árvores
(Muçutaíba, da cor vermelha; Braúna, da cor preta; Biriba, da cor amarela; Jenipapo, da cor branca, e Ipê, da
cor roxa). As árvores doaram ao Velho um galho e ele criou a humanidade. Contudo, essa primeira
humanidade desapontou o Velho e ele a destruiu, restando apenas o Pajé do Mel. Este, por sua vez,
perguntou ao Velho por que ele tinha destruído a humanidade e o Velho, coletando novamente os galhos
das árvores, deu ao Pajé do Mel o poder de recriá-la. Mas, para a existência da vida, foi necessário o sopro
do Velho e este é eterno.
[...] o sopro veio do Velho, que é eterno e não pode ser destruído, então existe até hoje sobre
a terra, e a eles damos o nome de Encantados: uns são de luz e outros da escuridão. Daí
surge Tupã para guiar, ouvir e ajudar a humanidade, e o lugar dos nossos antepassados e os
reinos dos Encantados é o lugar onde ficou protegido o Pajé do Mel. (SILVA, 2021, p. 328).
Figura 1. Fufuca (A), Pesca (B), Peixe assado (C), Pindoba (D), Coco de Pindoba (E), Amescla (F),
Amendoim (G) e Milho (H)
Outras tradições, contribuições dos povos Bantus (embora eu não soubesse nomeá-las em 1994, no
auge de meus dez anos de idade), foram notadas. Refiro-me aos cânticos nas rezas e na labuta diária na
jeremaviii (roça), nas idas e vindas para a fonte de onde se buscava água e lavava roupas, nos afazeres de casa;
nas brincadeiras de roda (as brincadeiras sempre iniciavam e terminavam em roda), de tirar verso (tínhamos
caderninhos, mas, muitas vezes, o verso emergia do improviso); da esteira lançada ao centro do terreiro para
a contação de histórias oralizadas em noites de lua cheia (histórias do bicho-menino, mulher da trouxa) e
dos sons de atabaques e pandeiros nas rezas (primeiro eram as rezas, depois era o samba que “comia no
centro”).
Cunha Jr. (2010) explica que os povos Bantus vêm do mesmo tronco linguístico e estão espalhados
por uma grande região africana: “Podemos designar como região de línguas Bantu uma imensa região
correspondente a quase metade do território africano, indo de Camarões no Atlântico ao Quênia no Índico,
incluindo todos os países até a África do Sul.” (CUNHA JR., 2010, p. 30).
A ida para fonte após o baba (jogo de futebol), a celebração da morte (o ritual de “beber o morto” ix,
literalmente, na casa onde acontecia o velório, os rituais para respeitar quem já se foi (o falecido) – se filho,
esposa, mãe, pai, avós ou parentes próximos, todos tinham que usar a cor de roupa apropriada para o luto
de um ano e, dentro deste um ano, era necessário respeitar os números sete, quatorze e vinte um, bem como
as cores vermelho, preto, branco - cores claras e cores escuras. Essas formas de ritualizar a pessoa falecida
lembram algumas celebrações de funerais em culturas africanas (Angola e Moçambique, por exemplo).
Já a tradição indígena pode ainda ser percebida em elementos culturais que são vivenciados no
cotidiano. Elas se manifestam em hábitos alimentares, como a prática de moquear as carnes ou de assar
peixe e outras coisas na folha da bananeira e, também, a na arte de caçar animais na mata e de saber a forma
adequada de tratar cada animal para comer (teiux, tatu). Não posso deixar de destacar o conhecimento que
as pessoas possuem sobre reconhecer e coletar frutas silvestres, a exemplo da amescla (árvore que produz
uma resina muito cheirosa e uns frutinhos vermelhos). A resina é usada para defumar a casa e espantar maus
espíritos e a fruta é comestível.
viii - Jerema é uma palavra usada por uma tia para se referir Nas comemorações de final de ano, quando
a trabalho na roça as famílias fazem a faxina, presenciei inúmeras vezes
ix - “Beber o morto” significa velar a pessoa falecida. No rituais de incensar a casa com amescla, alfazema,
ritual do velório, se faz assim: para homens, era sempre
cachaça de folhas e, para as mulheres, eram chás, café, mirra e outras plantas. Folhas de pitanga e demais
sucos e mingaus. A cerimônia do velório dentro de casa é
ervas eram espalhadas a fim de espantar os maus
um acontecimento que envolve de maneira afetiva todos
que vão até o local reverenciar o falecido. No ritual são espíritos da casa e trazer boas energias para os
entoados ladainhas, rezas e causos até a hora de sair a
procissão até o cemitério para o enterro. moradores no ano que se anunciava.
x - Teiu é uma palavra da língua Tupy que significa lagarto. Em 2021 tomei conhecimento da fruta abiu
(Pouteria caimito – Figura 2), fruta doce, de polpa
branca e que possui casca dura amarelada ou esverdeada; e do maracujá do mato (Passiflora cincinnata Mast –
Figura 3) de sabor adocicado, muito diferente do maracujá que é vendido nos supermercados e nas feiras.
Todas as frutas mencionadas foram encontradas dentro de fragmentos da Mata Atlântica, no entorno do
Povoado Terreirão e no Povoado do Furado, território da cidade de Muniz Ferreira.
Figura 2. Abiu - Mata Atlântica/Recôncavo da Figura 3. Maracujá do mato – Mata
Bahia Atlântica/Recôncavo da Bahia
Figura 4. Mainha dobrando a folha da pindoba para cobrir a casinha das crianças
Há ainda outras vivências da infância, como amassar o barro para fazer o adobe (um tipo de tijolo
de barro cru) ou coletar, lavar e cozer o dendê para produzir o azeite de dendê (Figura 4). O adobe se fazia
com mutirão de homens, mulheres e crianças para carregar água e pisar o barro até dar a liga: o ponto de
modelar o adobe. O adobe é uma tecnologia africana. “[...] o adobe é um tijolo de terra crua, geralmente
muito grande com relação aos tijolos de hoje, cuja técnica de produção implica ser seco inicialmente à
sombra e depois ao sol. Este tijolo é muito utilizado na África do Rio Níger.” (CUNHA JR., 2010, p. 28-
29). Vê-se, então, que inúmeras são as contribuições dos povos africanos para o Brasil!
Revista Macambira, v. 6, n.1, 2022, e061013 | ISSN 2594-4754
PAG. 8
SANTOS E.D.J. dos, 2022.
Cresci comendo dendê cozido ou assado e, muitas vezes, minhas tias presenteavam-me com dendê.
No período de férias escolares, vi e participei da colheita do dendê, da lavagem, do cozimento e da pilação
do dendê para extrair o azeite. Em 2020, tive a oportunidade de produzir o dendê com minha mãe, meu
filho, meu tio e minha tia. Na Figura 4, meu filho está aprendendo e experimentando a lavar o dendê.
Figura 5. Dendê assado e lavagem o dendê para cozer
A neve cheirosa e o poeijo (Figura 6 I e J) são plantas utilizadas para resfriados e gripes. Já a macela
galega (Figura 6 L e M), em outro tempo (décadas de 1960, 1970), era planta endêmica no lugar e foi utilizada
para encher travesseiros por ser macia e perfumada. A macela galega também era, e ainda é, utilizada em
chá. Ela é uma planta medicinal que tem inúmeras propriedades farmacológicas. No entanto, na atualidade,
Tio Toim é um homem de muitas profissões. Foi (e ainda é – quando precisa produzir algo para a
casa dele ou quando quer presentear alguém) carpinteiro, serrador, agricultor, produtor de cestas (cipó de
mato, samambaia, dendê, palha de bananeira), panacum (cipó),
xi - Aratuípe, antiga Aldeia de Sant’Ana (Séc.
esteiras (pirá, palha de bananeira). Ele conta que aprendeu, XIX), localiza-se no Recôncavo da Bahia
entre as cidades de Nazaré das Farinhas e
quando criança, olhando as tias em Aratuípexi a tecer para
Jaguaripe.
vender.
Figura 8. Mangalô
Por fim, o mangalô, a fava, o andu e o feijão de corda que fazem parte da nossa alimentação. As
sementes são compartilhadas de família para família a cada nova roça. Até a década de 1990, as sementes
eram guardadas em garrafas pets e cobertas por cinza para conservação, mas, após esse período, passou-se a
Revista Macambira, v. 6, n.1, 2022, e061013 | ISSN 2594-4754
PAG. 10
SANTOS E.D.J. dos, 2022.
adquirir as sementes de milho por meio da compra. Entretanto, as sementes de mangalô, de andu, de fava e
de feijão de corda continuam a ser trocadas e guardadas para uma próxima plantação/roça.
Considerações finais
O movimento Sankofa faz isso: devolve-nos a capacidade imaginativa, criativa e a compreensão sobre
nossa própria história e os seus muitos sentidos e suas amplitudes. Nesta minha escrevivência acadêmica,
busquei compartilhar com o público leitor um pouco do conhecimento que carrego comigo – desde as
minhas primeiras lembranças do contato com o Povoado Terreirão. Considero o Povoado Terreirão um
território de saberes ancestrais em plena continuidade que são transmitidos através do encontro geracional.
A ancestralidade é a base filosófica de um modo de compreender a vida, uma cosmovisão indígena
e africana percebida na dinâmica social do lugar. Logo, a prática de sankofear nos faz olhar para o nosso
passado, coletando memórias individuais e coletivas que são externalizadas no compartilhamento de saberes,
às vezes oralizados, outras vezes pela repetição ou na atualização das tradições nas oralituras cotidianas.
Agradecimentos
Agradeço aos meus familiares (consanguíneos ou não – consideramos todos como família, mesmo
aqueles sem laços consanguíneos) do Povoado Terreirão pelo acolhimento e pela partilha sobre as
informações que compõem este trabalho.
Referências
ARAÚJO, Ana Júlia de Brito; AZEVÊDO, L. C.; COSTA, F. F. P.; AZOUBEL, Patricia Moreira.
Caracterização físico-química da polpa de maracujá do mato. Disponível em:
https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CPATSA-2009-09/41167/1/OPB2428.pdf. Acesso
em: 20 ago. 2022.
ASSUNÇÃO FILHO, José Ribamar de et al. Divergência Genética em Feijão-Fava. Disponível em:
https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/item/56443/1/3537.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.
BAHIA. Arquivo Público do Estado da Bahia. Anais... Salvador: Ordens Régias, 1994. v. 51. Disponível
em: http://www.atom.fpc.ba.gov.br/index.php/anais-do-arquivo-publico. Acesso em: 30 set. 2022.
CORREIA, Célia Nunes. O barro, o jenipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria Xacriabá: reativação
da memória por uma educação territorializada. 2018. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação
Profissional em Desenvolvimento Sustentável, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de
Brasília, Brasília, 2018. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/34103. Acesso em: 21 jul.
2022.
CUNHA JUNIOR, Henrique. Ntu: introdução ao pensamento filosófico Bantu. Educação em debate. v.
1, n. 59, ano 32, 2010. Disponível em:
http://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/15998/1/2010_art_hcunhajunior.pdf. Acesso em: 30 out. 2021.
Pós- Graduação em História Social, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. Disponível em:
https://repositorio.ufba.br/handle/ri/23400. Acesso em: 24 mar. 2021.
ROCHA, Roberta Cristina Santos Leite. “Fala em maneira de cura, quem fala confirma o poder da palavra”:
rezadeiras, religiosidade e práticas de cura em Muniz Ferreira - Bahia (1990-2020). Dissertação (Mestrado)
- Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local, Departamento de Ciências Humanas, Campus
V, Universidade do Estado, Santo Antônio de Jesus, 2022.
SANTOS, Erilza Galvão dos. O Diretor de índios: análise preliminar dos diretores parciais das aldeias
indígenas. Bahia,1845-1889. 1988. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1988.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2015.
SILVA, Glicéria Jesus da Silva. Arenga Tata Nhee Assojoba Tupinambá. 2021. Tellus, Campo Grande, v.
21, n. 46, set./dez. 2021. Disponível em: https://www.tellus.ucdb.br/tellus/article/view/816. Acesso em:
12 ago. 2022.
SILVA, Elizamar Gomes da Wakõdi. Seguindo a mandioca: saberes e práticas do Povo Tupinambá da Serra
do Pandeiro. 2019. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Profissional em
Desenvolvimento Sustentável, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília,
2019. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/41410. Acesso em: 21 jul. 2022.
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed.Porto Alegre: Bookman, 2015.
Informações do Artigo