Para Onde Vai A História Da Arte
Para Onde Vai A História Da Arte
Para Onde Vai A História Da Arte
¿ HACIA DÓNDE VA LA
GRISELDA POLLOCK HISTORIA DEL ARTE?
1427
Artigo inédito1
Griselda Pollock
Textos escolhidos -
Histórias da arte sem lugar2
Tradução
Sônia Salzstein*
id https://orcid.org/0000-
0003-4430-8771
ARS - N 42 - ANO 19
número do ano uma série
1429
corpos, relações e “viradas” intelectuais, tudo o que torna obsoleta
qualquer coisa ou ideia no momento mesmo de seu aparecimento.
Dessa maneira, ser constante passa a ser fora de moda, com a conse-
quente perda da possibilidade de uma política da história.
A ideia do novo, dessa maneira, cria o que se transforma no
velho. Há fantasias psicológicas de superação edípica (filhos toman-
do o lugar de pais), como também operações sociológicas de deslo-
camento geracional envolvidas nessa miragem de posteridade com-
1430
se trata de sugerir uma complacência desafiadora, uma recusa em
responder a forças históricas imprevistas, necessariamente ates-
tando mudanças em nossas práticas e métodos de pensar. Por um
lado, estou argumentando que será necessário um longo período até
que se possa absorver completamente as iniciativas que buscaram
dar nova forma aos estudos em História da Arte no final do século
XX. Para fazermos justiça a eles, devemos desafiar as deturpações
incitadas pela mentalidade brutal da “morte-ao-passado”, porquan-
1431
moldura, institucionalização e análise, tanto registram o que acon-
tece no mundo como também nos desafiam, como especialistas e
pensadores, a discernir os engajamentos genuinamente críticos,
atentos, e não meramente responsivos em sua transformação em
[in] arte contemporânea, ou rumando à [into] arte contemporânea.
Insular o problema no interior do mundo da academia ou do museu
trai tanto a visão simplista da arte e seus discursos como índices da
refração da história pela cultura quanto a visão mais complexa do sé-
1432
viajemos por essa paisagem, mas sem os maus guias de viagem que
tornam anacrônico o passado e fornecem apenas rotas limitadas aos
pontos selecionados, ao mesmo tempo que demovem nos visitantes o
encontro com outras rotas possíveis.
Um problema central é o gesto histórico que fundou nossa
disciplina. Ele era, claro, profundamente paradoxal. Para que uma
História da Arte emergisse (como formação intelectual), a arte
como arte teve de descobrir que tinha uma história (em vez de ser
1433
que pensar historicamente sobre quaisquer práticas artísticas era
tido como algo contrário à História da Arte; tal campo apenas pode-
ria ser articulado mediante sua qualificação como história social da
arte. O que sugeria a estranha possibilidade de que alguma história
pudesse não ser social. Atuando no campo como uma intelectual
feminista, eu me deparei com o fato curioso de que minhas referên-
cias a questões sociais, culturais ou históricas, tais como sexualida-
de ou gênero, não eram consideradas parte da História da Arte, sen-
1434
da arte, mulheres na disciplina História da Arte, gênero e arte?),
tendo sido fixado o limite de 8 000 palavras para tanto. Como meu
texto final atingiu 38 000 palavras, com lacunas consideráveis re-
sultando da parcialidade de minha própria perspectiva no cômputo
total desse campo massivo, um (uma) parecerista demonstrou ir-
ritação em face de uma seção específica que eu havia acrescentado,
considerada “inusual” por ele ou ela. A seção tratava de feminismo
e Aby Warburg. Posso entender que estamos, aqui, longe da His-
1435
período que a consciência moderna ocidental pudesse consignar à
alteridade e ao primitivismo, essas investidas contra as mulheres
no século XVI e no princípio do século XVII e suas vívidas refrações
culturais haveriam de ser confrontadas ao mesmo tempo como sin-
tomas de uma emergente arte “moderna”, e em relação ao ressur-
gimento, no período, de conflitos mais profundos que produziam
violência tanto simbólica quanto real. Como tal paradoxo poderia
fazer sentido? Schade acompanhou a rejeição warburguiana dos
1436
çada, a exclusão de seu trabalho do sistema de troca e a reconfiguração
de seus serviços em cuidados de adultos e crianças posta como natu-
ral – foi fundante para a acumulação primitiva, da qual dependeu a
emergência do primeiro capitalismo. Em vez de entregar-se a especu-
lações abstratas sobre como marxismo e feminismo poderiam se “ca-
sar”, Federici apresentou uma declarada guerra de gêneros e, dessa
maneira, a própria exploração fundada no gênero como base do novo
sistema econômico que moldaria o mundo moderno. A queima de
1437
testemunhou a remodelação violenta da economia nigeriana pelo
Fundo Monetário Internacional. Esta, efetivamente, combinava
tanto as transformações econômicas drásticas e as reconfigurações
ideológicas das formas “naturais” versus as formas monstruosas da
subjetividade que ela havia descoberto em suas análises do que ocor-
rera na Europa ao longo do século XVII.
Tanto a advertência quanto ao fato de que não é completa-
mente reconhecida a adoção feminista do modelo warburguiano
1438
tal violência contra as mulheres e seu significado tornaram-se in-
visíveis e deixaram de ser pensados? Como tal reconexão, tanto com
a História da Arte warburguiana de Schade (muito antes da atual
tentativa de propor como nova uma guinada a uma História da Arte
em imagens, ou Bildwissenschaft) quanto com a análise cultural de
Federici, poderia abrir perspectivas para as necessidades do campo
hoje?
O pensamento excêntrico de Warburg como membro autoe-
1439
lizando seu estudo psicologicamente cônscio da imagem, enquanto
máquina de pensar visando o confronto com a História da Arte con-
temporânea6. É importante entender que Warburg não chegou ao
método da iconografia em oposição ao método formal de Hein-
rich Wölfflin. As políticas de ambos os pensadores da história da
arte eram infinitamente mais complexas do que essa caricatura de
antagonismo que herdamos (LEVY, 2012). Para Warburg, a imagem
era uma forma complexa, não um conteúdo isolado. Era uma figu-
1440
luta pela vida na natureza e na sociedade, e o Simbólico8. Warburg
entende o simbólico como o espaço modelado culturalmente, cujo
rememorar icônico poderia, de modo histérico, reviver e liberar
afetos destrutivos. Ele poderia, entretanto, transformá-los em re-
soluções que moderariam tais intensidades afetivas em pensamen-
tos. O pensamento é valioso, mas não quando posto como abstração.
Warburg, dessa maneira, define os elementos específicos da imagem
ou de tipos de imagem cuja história ele delineia numa Pathosformel,
1441
quanto à formalização impessoal (a arte como um telos determinado
pela norma), adotei diferentes estratagemas para me mover para
além desse dilema. Durante os anos 1970 e 1980, a semiótica foi
um daqueles estratagemas que franquearam as oposições forma/
conteúdo, ideia/afeto. De início, a semiótica fora o produto da
intersecção de um primeiro modernismo linguístico do século XX
(a questão modernista de Ferdinand de Saussure sendo “O que é a
linguagem?”) com sua reconfiguração retardatária na antropologia
1442
inclinadas a uma espécie de formalismo autoritário (as leis do signi-
ficado), Kristeva nos alertaria para um fascismo potencial, inerente
a todo formalismo, especialmente quando o sistema era entendido
apenas como regras que não previam a possibilidade da resistência e
de meios para a mudança. A autora voltou-se à psicanálise para rein-
troduzir o “sujeito da fala” no sistema de produção de sentido identi-
ficado pelas abordagens semióticas da linguagem, um sujeito conce-
bido psicanaliticamente, cindido. Todavia, a formação desse sujeito
1443
O uso que a autora faz do termo “semiótico” refere-se a um só tempo
às predisposições daquilo que mais tarde tornar-se-ia linguagem – o
ritmo, a assonância, a ecolalia – e à borda externa do reino da própria
linguagem, uma zona liminar cujas fronteiras porosas mantêm-se
em contato com os rastros de um semiótico pré-linguístico, corpó-
reo, emergente, através do qual a linguagem pode, constantemen-
te, ser renovada e às vezes revolucionada. Tal conceito duplo de um
semiótico que não apenas precede o simbólico, mas que também dança
1444
fico, mas de algo com um tipo de estrutura através da qual ela pode
ser lembrada. Defino esse tipo de imagem como a sustentação recí-
proca de acontecimentos visuais (não se trata apenas de um caos de
materiais) e também como a sustentação, perante o observador, de
um arranjo por meio do qual experimentamos, simultaneamente,
um solavanco na direção da semiótica pré-linguística (ritmo, pulso
e assim por diante) e a sensação, quase sempre frágil ou elusiva, de
um tornar-se simbólico (formar, sustentar, dizer). Dessa maneira,
1445
pela tangibilidade e materialidade. Nesta empreitada, eu me dei
conta de que minha interpretação da modelagem minoritária/
pária de Warburg, de uma história da arte como uma psicologia
histórica da imagem, mostrava-se inesperadamente propícia ao
estágio atual de meu projeto.
No curso de mais de 40 anos, engajei-me num projeto de
reflexão de longo termo, que não procede mediante formas típi-
cas da História da Arte, relativas a artistas, períodos, movimentos
1446
[1988] 2003; Idem, 1993). Alguns propõem eixos para uma compre-
ensão não essencialista, pós-colonial, da singularidade e do perten-
cimento histórico e geopolítico de cada artista: gerações e geogra-
fias. Muitos apresentam metodologias para a prática: diferenciar o
cânone usando o desejo feminista11. O conceito com que atualmente
trabalho é “o museu feminista virtual”, primeiramente apresen-
tado em 2007, e tendo uma segunda apresentação importante em
2013 (POLLOCK, 2007; Idem, 2013b).
1447
coexistência segura e digna de uma humanidade plural e diver-
sa. Aspectos da imensa virtualidade do feminismo-ainda-por-vir
têm sido atualizados desde o período medieval, no Ocidente, e em
culturas ao redor do mundo, em conformidade com suas escalas
temporais e histórias específicas. No Ocidente, por exemplo, cada
momento feminista foi moldado pelas diferentes prioridades e
possibilidades da era de atualização, fossem estas as dos protestos
contra uma misoginia brutal (Christine de Pizan)12; a da luta pela
1448
tes de desigualdades seletivas) é uma pré-condição menor, ainda que
necessária, para o feminismo; não é a destinação do feminismo. Os
movimentos feministas mais recentes pelo mundo, ao longo das dé-
cadas finais do século XX, são apenas outros tantos episódios (e não
uma segunda onda que obliteraria tudo o que a tivesse precedi-
do, fazendo, dessa maneira, com que essa experiência anterior
fosse, mesquinhamente, nomeada como uma primeira onda)
que, entretanto, apresentavam uma dimensão nova, específica:
1449
globalização desde 1989, o surgimento do terror e o 11 de setem-
bro, a Primavera Árabe e seus desdobramentos preocupantes e
ainda incertos, os conflitos que perseveram no Iraque e no Afe-
ganistão e seus respectivos legados, a crise econômica mundial,
economias emergentes. Mudança não significa necessariamente
melhoramento, embora haja elementos inegáveis de progresso
genuíno, em esferas limitadas e privilegiadas.
O modelo warburguiano de encontros concomitantes entre
1450
da de modernização por meio do empréstimo de uma energética
Pathosformeln do mundo pagão, o museu feminista virtual nota que
a era moderna é marcada pela revolução e pela catástrofe. Tal mu-
seu convocou não a reabilitação das fórmulas clássicas da antigui-
dade no ocidente, mas o abandono delas, em face do horror do que
se passou no real. A visão de um mundo habitável (paisagem) e do
corpo humano como o locus idealizado de uma projetada humani-
dade (o nu, talvez) criado pelos gregos e aperfeiçoado por Rafael e
1451
genocídios racializados como o Holocausto ou o de Ruanda, como
também nos experimentos totalitários de caráter concentracioná-
rio16 ao longo de todo o século XX17. O que possivelmente traz impli-
cações para o modo como pensamos e escrevemos histórias da arte
desde 1945.
Warburg propôs um conceito diferente de tempo – não di-
recional, não dado ao desenvolvimento, não historicista, mas cur-
vo, recorrente, repetitivo e, sobretudo, traumático. O historiador
1452
o curador havia criado uma “estória da arte” [story of art], tomando
cronologia por história, sobrevoando o incessante fluir da arte por
cima de uma grade formal, de um tempo abstraído e, portanto, vazio
(SCHAPIRO, 2010)19. Tendo escrito tal crítica em 1937, Schapiro não
havia ainda absorvido as implicações que a Primeira Grande Guerra,
a Revolução Russa de 1917, o craque da Bolsa de 1929 haviam tido na
reconfiguração dos projetos da arte. Obviamente, ele ainda não era
testemunha do que ocorreria na Segunda Guerra; especificamente,
1453
craque em 2007... e assim por diante. Se a arte mudou radicalmen-
te suas formas e suas bases, será que deveríamos estar disputando a
criação de uma nova categoria temporal chamada “contemporâneo”,
e discutindo metodologias apropriadas em História da Arte? Não se
trataria ainda de outra tentativa à la Alfred Barr de conter nos limi-
tes de um modelo reconfortante e reconhecível as relações dramá-
ticas e às vezes mesmo perigosas entre o histórico, nossos imaginários
e os muitos e variados lugares, incluindo a arte, de um pensamento
1454
se pensar sobre arte, não a “História da Arte”, mas tudo aquilo
que à sua época a disciplina buscava contingenciar. A biblioteca
multifacetada e interdisciplinar do historiador insta a uma deam-
bulação intelectual, no sentido material e simbólico do termo, en-
tre campos de conhecimento e de representação que se mostrassem
necessários para que esta operação mnemônica, afetiva e simbólica
profundamente complexa que ele chamava de imagem fizesse algum
sentido. É importante notar que Warburg não dissocia inteiramente
1455
do na academia nos Estados Unidos, continuamos a trabalhar a par-
tir dos enquadramentos básicos das culturas nacionais, em cujo domí-
nio recaem as subseções relativas a períodos, escolas, movimentos,
mestres e obras. Na condição de um erudito profundamente atento
ao lugar perigoso assinalado ao outsider ou às minorias sob a homoge-
neizadora ideologia nacionalista, Warburg contestou o historicismo
e o nacionalismo, rastreando a migração promíscua de imagens ao
longo de uma planetaridade (termo que explicarei adiante) espacio-
1456
ropeias à imaginação literária dos estudantes norte-americanos,
evento menos obviamente motivado pela urgência política, mas,
ainda assim, inestimavelmente político, ao encorajar as relações
mundiais no contexto do pós-guerra. Não obstante, emergiram
dessas fundações não necessariamente humanistas, mas antes
política e ideologicamente motivadas, os espaços críticos nos
quais floresceram estudos literários inovadores, forjados por
iniciativas teóricas feministas, queer e pós-coloniais.
1457
vias ou, antes, signos de um profundo bloqueio das inovações re-
centes, que resultam de uma inflexibilidade, capaz de enfraquecer
toda crítica mediante a indiferença prolongada, como também do
fracasso real em aceitar que os argumentos dessa crítica devem
ser digeridos e incorporados. Ao mesmo tempo, a área se vê, pa-
radoxalmente, numa busca constante por novidades. Esse rumo,
conforme quero sugerir, serve, igualmente, para manter em posi-
ção marginal as inovações efetivamente críticas de fins do século
1458
quivo de referentes contra o qual o constantemente novo e emer-
gente ver-se-ia legitimado? Que espécie de arte e de consciência
histórica a modernidade líquida dessa “nova” nova história da
arte promete, ou talvez esvazie? De que serão sintomas a globali-
zação e o contemporâneo? Será que o telos hegeliano das tendên-
cias historicistas e desenvolvimentistas teria, de fato, se comple-
tado, todavia não como Hegel previra, na arte culminando na
filosofia, mas na arte sucumbindo às curadorias encaminhadas
1459
Spivak argumentou que hoje confrontamos a globalização,
e com isso ela designava o domínio sem peias, sem fronteiras do
capitalismo transnacional, sujeitando-se assim a poucos contro-
les e contrapesos locais, tal como fora possível no âmbito da fase
nacional precedente desse sistema econômico político. No entan-
to, não queremos recuar da expansão geocultural de nossa ima-
ginação e dos futuros que os projetos feministas internacionais
pós-coloniais nutriram, porquanto ambos criaram coletividades
1460
O planeta é uma espécie de alteridade que pertence a outro sistema: no
entanto, nós o habitamos, nós o tomamos em locação. Ele não é, de fato,
passível de se ser posto em contraste seco com o globo. Não posso dizer: “O
planeta, por outro lado...”. Quando invoco o planeta, penso no esforço
requerido para figurar a (im)possibilidade dessa intuição que não pode
ser derivada de nada. (SPIVAK, 2003, p. 72)
ARS - N 42 - ANO 19
pensar do mercado, que torna instrumentos de uso as pessoas e
1461
ou a uma religião (sermos os filhos deste ou outro ser divino,
da terra ou da natureza como fontes do vínculo). Mas estas se
provaram tão divisivas quanto antes haviam servido à criação de
vínculos, localmente e de modo excludente. Spivak propõe o plane-
ta como um conceito que substitui todos aqueles sem recair, como
eles, no globalismo ou no universalismo, conceitos vazios, não raro
secretando, sob sua fachada, seus próprios grupos de privilégio.
Para Spivak, o tornar-se planetário envolve um tipo específico de
1462
ções de privilégio. O pensamento planetário destitui muitos dos
modelos de se pensar o mundo e seus Outros. Esta frase estranha
significa que nem estamos pensando sobre eles nem os conceitua-
lizando: “eles” tornando-se um outro para o “nós” que deles faz um
objeto do pensamento. Nós pensamos uma questão25. Pensar é um
processo, pensar a dimensão do Outro, pensar o mundo, pensar a
diferença sexual significa confrontar o desafio posto por algo que
já nos inclui, e do qual não podemos abstrair a nós mesmos como
1463
O pensar do planeta disponibiliza o envolvimento com uma inesgotável
taxonomia de nomes como estes... Se imaginarmos nós mesmos
como sujeitos em vez de agentes globais, criaturas planetárias em vez
de entidades globais, a alteridade persiste como algo que não deriva
de nós; ela não é nossa negação dialética, ela nos contém, na mesma
medida que nos arremessa para longe. E é assim que pensá-la é já uma
transgressão, pois, não obstante nossas incursões na direção daquilo que
metaforizamos de um modo diferente, como o espaço externo e o interno,
o que está acima e para além de nosso alcance não é contínuo conosco nem,
1464
daquilo que Ettinger formula como o elaborar da arte [artworking]
(usando uma economia freudiana do “trabalho” como labor e trans-
formação, mais do que como produto finalizado: o trabalho de arte)27.
Não posso pretender alcançar, de imediato, todas as impli-
cações do argumento de Spivak, rico como ele é em associações
profundas com sistemas filosóficos e literários tão mais amplos
do que o meu, não raro apenas euro-norte-americano; um mun-
do imaginativo, oferecido ora através da História da Arte, ora de
1465
res em língua alemã, que seguimos respeitando como fundadores
da História da Arte, como Warburg e Wölfflin, estudaram teolo-
gia, filosofia, filologia, começavam a descobrir a antropologia e
a primeira psicologia, e não receavam em lançar mão de emprés-
timos às várias formas das ciências emergentes. Tal envergadura
intelectual não corresponde ao diploma em nossas artes liberais28
do século XX, porquanto o nível profundo em que esses eruditos
haviam estudado tais fontes de pensamento claramente ultrapas-
1466
balização, Spivak invoca Sigmund Freud para perguntar “Será que
isto tornará estranha [uncanny] nossa morada” (FREUD, 1919)? A
morada em questão é o mundo, tal como ele se terá constituído à luz
de nosso trabalho de analistas culturais. A referência de Spivak a Freud
nos faz lembrar que a palavra alemã para estranho é unheimlich29, a
qual desfaz a noção do familiar: o heimlich. No ensaio “O estranho”, sua
formulação mais enigmática sobre as fontes do afeto estético, Freud ar-
gumentou que os efeitos aterrorizantes – estranhos – de se deparar,
1467
Se outrora o pensamento do corpo como morada primor-
dial gerava a ansiedade que acompanha todo retorno do recalcado,
será que o confronto com o planeta enquanto condição da vida hu-
mana, do qual nos extraviamos e ao qual deveríamos agora retor-
nar, não terá também gerado uma certa estranheza, uma inquie-
tação que é, no final das contas, um dos afetos-chave do estético?
Será, do mesmo modo, tal a razão pela qual valorizamos o estético
1468
curso do pensamento, que ultrapassa a alçada particular daquele,
tornando-o um instrumento crítico a desfazer a hierarquia e indo
ao encontro da alteridade. Em outras palavras: se em vez de pensar
ansiosamente sobre alteridade como morada primeira ou origem
– corpo materno, mãe, nação, terra e todas as figuras que nos abri-
gam no princípio – por consequência, levando-nos a que nos arris-
quemos a fundamentalismos – nós considerássemos o planeta – o
tencionar de uns na direção de outros dos coabitantes de um mundo
1469
como um sistema geopolítico de pensamento. Fundada no século
XIX, numa era que testemunhou a formação dos nacionalismos, a
disciplina serviu para sacralizar o modelo que discrimina a arte em
culturas nacionais, ao mesmo tempo que providenciou fantasias de
fontes distintas em cultura, linguagem, religião e formas de arte,
em prol das narrativas culturais das origens das nações. O nacional
se reflete na configuração de nossos museus, nas categorias de
nossos livros e no formato de nossos currículos, nos quais a arte
1470
Lauretis identifica um sistema falocêntrico no qual se produz não
a diferença sexual, ainda que nele pareça se produzir o masculino
e o feminino como par complementar, mas a promulgação de uma
“indiferença sexual”, na qual existe, com efeito, apenas um sexo, o
masculino e o seu outro, o espaço vazio do não masculino, que se
denomina feminino. A diferença sexual falocêntrica não imagina
a alteridade; ela reprime a possibilidade desta, ao estabelecer a
hegemonia de um sexo (espelhada e sustentada por seu não outro
1471
de textos de diferentes espaços geoculturais e de suas literaturas,
cada um em seu idioma próprio, todavia lido, necessariamente, em
tradução (não a tradução como uma substituição), Spivak esclarece
que algo tem de acontecer nesse encontro que ela chama de lei-
tura e que não é nem busca da identidade (do escritor/artista) nem
identificação (com o escritor/artista). “O que estou tentando fazer
é forçar uma leitura. Gostaria de saber se o texto poderia, talvez,
sustentar uma guinada, de monumentos identitários a documen-
1472
de Spivak, de repudiar a dominação, é o exercício da leitura rente
[close reading]. Enganosamente simples, a leitura pressupõe, no
entanto, uma diferença no texto e uma produtividade a ele, uma
resistência ao domínio, que podem ser demonstrados, ativos, pelo
tipo de prática de leitura que busca, “persistente e repetidamente, so-
lapar e desfazer a tendência definitiva do dominante, de apropriar-
-se do emergente. Ela não pode deixar-se a si mesma constituir-se
apenas pelas demandas do multiculturalismo liberal” (SPIVAK,
1473
os públicos da História da Arte ou a potencial influência deles. A
consistência e mesmo a uniformidade da mensagem asseguram a
transmissão de capital cultural para a geração seguinte ou através
de grupos sociais. Os museus desempenham uma função similar,
mas pela via da arquitetura e da curadoria, contando a seus pú-
blicos incansavelmente a mesma estória, por meio da seleção, do
layout e dos painéis de texto. A mesma estória é a estória politica-
mente apropriada [right] (não a politicamente correta [correct]!).
1474
(não se trata, necessariamente, de algo que seja feito a partir de
uma base verbal, uma vez que estamos falando, aqui, de ler uma
pintura ou um trabalho de arte) deixa de ser, dessa maneira, um
objeto, para inserir-se nas taxonomias existentes do conhecimento
em História da Arte (períodos, movimentos, estilos, iconografias,
a obra, intenções pessoais, desenvolvimento artístico, gêneros e
assim por diante); torna-se aquilo de que poderíamos vir a tomar
conhecimento, de modo parcial, e diferentemente, como o próprio
1475
Old Mistresses: Women, Art and Ideology [Velhas Senhoras: mulhe-
res, arte e ideologia] (PARKER; POLLOCK, [1981] 2013). Ao rever
a já notavelmente considerável literatura internacional sobre
“mulheres artistas”, dirigíamos a nós mesmas uma questão espe-
cífica: por que nosso projeto terá sido desdenhado como ridículo
por nosso supervisor, acadêmico conceituado e mais tarde diretor
de um grande museu de arte moderna? Se ao menos pudéssemos
entender o que fazia com que estudar mulheres na História da
1476
político, desnudou o manto de invisibilidade, de maneira a pro-
porcionar reformulações críticas dos modos como os diversos
públicos fazem história da arte e leem os trabalhos de arte e seus
locais institucionais, críticos e expositivos de prática e distribui-
ção. Mesmo quando uso este vocabulário, sua exterioridade aos
termos convencionais da História da Arte identifica os modos de
uma resistência hegemônica a tal escancaramento crítico, resis-
tência encrustada em seus termos preferidos que são, com efeito,
1477
seguinte, como o lugar de inscrição de um sujeito autônomo e
autocriado de tipo particular: o sujeito artístico que é “apartado”
e sacralizado pelos modos da construção discursiva.
Complementei esta análise inicial com um estudo bem
mais extenso de questões relacionadas à autoria porque se torna-
ra necessário resistir à banalização da ideia barthesiana da morte
do autor, e desse modo expliquei o texto dele mais detidamente e
comparei a função do autor em textos literários, nos quais ele na
1478
zia – mesmo sem nunca o determinar inteiramente –, trabalho que
por sua vez estaria, uma vez realizado, sujeito à leitura textual. A
leitura textual, na teoria literária, significa intertextualidade, na
qual o sentido se produz em relação a códigos, gêneros e referên-
cias. O ponto-chave é que o processo de assim ler um trabalho
não envolve rastrear, retroativamente, a fonte de seu sentido até
chegar ao artista, paradoxalmente alcançado, no trabalho, pela
crítica convencional, e então projetado para além dele, como sua
1479
livre de determinações sociais (palavra que se refere, aqui, tanto às
pressões quanto aos limites no interior dos quais o produtor inevi-
tavelmente opera, social, cultural e esteticamente).
Em 1999, revisitei a problemática emergente da História
da Arte como discurso, que Parker e eu havíamos explorado em
Old Mistresses [Velhas Senhoras]30. Depois de quase 30 anos de crí-
tica feminista da exclusão de gênero, a questão já não era “O que
é o cânone e como é formado?” ou mesmo “Por que ele é seleti-
1480
indivíduo criativo, então identificado por mim como o efeito dis-
cursivo profundo de procedimentos normativos da História da
Arte representados pelas formas típicas de pesquisa e escrita: a
monografia e o catalogue raisonné. A psicanálise me permitiu en-
tender tanto a ligação passional ao artista como núcleo do projeto
da História da Arte moderna quanto a persistente inabilidade para
ampliar o campo de preciosas subjetividades criativas que poderiam
ser reconhecidas como artistas31. Um tipo diferente de resistência
1481
combinação do teológico (a idealização do pai) com o narcísico
(a idealização do herói) sobredetermina o investimento na cons-
trução do artista como o sujeito da arte porque o artista é tanto
um espelho ideal para o amante das artes (a dimensão narcísica)
como uma figura mantida à distância, figura outra, e elevada
pelo gênio a uma diferença suficiente para reignizar a veneração
teológica (a dimensão idealizadora)32.
Seguindo a lógica de Freud, fica evidente porque nunca
1482
é formada. Em muitos casos, as mulheres especialistas comoda-
mente se identificam com a idealização dual do homem-artista
canônico, por meio da extraordinária flexibilidade psicológica da
feminidade, gerada pela força da inveja, um tanto vilipendiada,
mas de fato criativa.
Tal reflexão, dessa maneira, ainda suscita a questão mais
profunda relativa a como terá sido possível emergir algum inte-
resse feminista por artistas mulheres – estou tomando tal ques-
1483
adulta através de um momento prolongado do olhar [gazing] – que
por sua vez não é especular, mas antes uma abertura ao aprender
através da observação e da absorção. Esse anelo deve encontrar
reciprocidade na hospitalidade que a outra, a mulher já madura,
volta à garota cheia de curiosidade, de um jeito que, sem ser eró-
tico, ainda assim não está isento de sexualidade enquanto parte
inevitável da transmissão que sustenta a garota em seu tornar-
-se-mulher. A outra mulher oferece o tempo e o espaço para que
1484
pré-edípica e aos conflitos do eixo mãe/filha. Ettinger introduz
o conceito de um encontro formativo do sujeito feminino com
a desejabilidade feminina, localizada num lugar de feminidade
diverso do materno, permitindo que imaginemos o modo como
poderíamos, culturalmente, por meio dessas disposições psíqui-
cas, investir valor e desejabilidade, por exemplo, nas criações ar-
tísticas e intelectuais de mulheres; desse modo, a autora explica
o fundamento para um nexo psíquico diferenciador, paralelo à
1485
rias da arte – está inconscientemente bloqueado.
A teórica de cinema Kaja Silverman oferece outra leitura
das disposições psíquicas necessárias para nutrir a consciência
feminista, com seu trabalho sobre a reavaliação, levada a cabo
por Julia Kristeva, das facetas materno-homossexuais, e sobre a
proposição apresentada por Freud, da coexistência dos comple-
xos positivo e negativo (no sentido fotográfico) de Édipo. Freud
admitiu um complexo de Édipo negativo, em que a mãe é deseja-
1486
nero como uma máquina de pensar, somos também capazes de
ver que o gênero, como um orquestrador simbólico da diferen-
ça e da valoração assimétricas, coloniza todos os modos de rela-
ção de diferença – de classe, étnica, colonial, geopolítica e assim
por diante – permitindo que um único, apenas, figure o ícone de
identificação da desejabilidade narcisística e de veneração teoló-
gica. Em razão do fato de que os danos perpetrados pelas ordens
dominantes de classe, raça, colonialismo, homofobia e, mais,
1487
sem um engajamento mais profundo com o desdobramento con-
tínuo de cada projeto intelectual ou do projeto geral do próprio
pensamento feminista. O feminismo é, mais frequentemente,
confinado a um nome de autor, em vez de ser apreendido em seus
diferentes universos de ideias, que solicitam ser confrontados,
digeridos e até mesmo integrados a todo o campo de especializa-
ção. A reivindicação multilocalizada e internamente agonística
da crítica feminista no que concerne às práticas hegemônicas da
1488
Traduzido em termos simples, a idolatria (do artista), pro-
funda na História da Arte, resistiu ao iconoclasmo crítico da in-
tervenção feminista e de outras intervenções, como também os
reprimiu. Pior: recentemente passei a notar o quão pateticamente
inadequado tem se revelado aquilo que é apresentado ou ensina-
do como uma intervenção “feminista” na arte ou na História da
Arte. Ambas as Histórias da Arte, androcêntrica e feminista,
estão criando para o feminismo o que não posso chamar senão
1489
Anual da College Art Association ou encontro estudantes pros-
pectivos de pós-graduação de toda parte, e que querem estudar
história e teoria da arte feministas, deparo-me com distorções pro-
fundas, apresentadas como verdades históricas inquestionáveis, de
sorte que me vejo capaz apenas de uma vez mais voltar-me a minhas
fontes psicanalíticas para explicar esse sintoma inconsciente-
mente repetido. Nem, de fato, um impulso mortífero, reduzin-
do a categorias redutoras, opositivas, a complexidade, o brilho
1490
culturalismo a um pós-estruturalismo teoricamente sofisticado);
obliteradores (do ativismo genuíno a um teoricismo arcano), ou
um retorno calculado (mediante a integração de aspectos daquilo
que as outras duas narrativas representam, seja como progresso
ou perda). Na História da Arte, do mesmo modo, geralmente es-
crevemos histórias de vertentes recentes, sob o crivo de nossas
distintas afiliações. A narrativa do progresso exalta as guinadas
críticas voltadas à teorização da diferença e os estudos sociais,
1491
ração comum no movimento das mulheres e num pensamento fe-
minista em expansão – procuram impor grades de significado pela
data, local, por categoria, por temática. Nenhum artista, contudo,
faz arte com o intuito de corresponder a essas grades, de ser igual
a quem quer que seja, mesmo que haja, lateralmente e historica-
mente, conversações implícitas que alimentam o fazer da arte. Algo
se perde nesse gradeamento. Os fatores que possibilitam conversa-
ções duradouras entre singularidades criativas – artistas – são, de
1492
determinado artista ou grupo que, de modo redutor, ilustrassem a
grade da História da Arte e a categorização?
Permitam-me dar-lhes um exemplo. Uma estudante que
veio a mim porque começara a se interessar pelos “conflitos entre
marxismo e feminismo no início dos anos 1970” entrevistou-me
recentemente. Ela tinha em mente a querela T.J. Clark-Pollock36,
o que equivale a dizer que o pensamento de diferentes historiado-
res da arte, suas conversações, questões compartilhadas e argu-
1493
do gênero na arte e na História da Arte se apresentava de imedia-
to a mim em meu local de trabalho “cotidiano”: na academia. A
pergunta era óbvia: existiram/existem mulheres artistas? Mas
o que significaria descobri-las e, então, indo além, deixar claro
como e por que os traços delas haviam, tão recentemente, sido
apagados e, ao mesmo tempo, também encontrar modos de es-
crever sobre elas sem transformá-las na cifra negativa “do artis-
ta”? O que se tornaria a História da Arte se ousássemos instá-la a
1494
iconografia, jamais voltada ao conteúdo, ao invés de formalista.
A história social da arte de Clark lançava-se a inquirir o modo
como poderíamos entender as negociações modernistas entre
experiência e forma, as mediações protagonizadas na arte entre
história e ideologia mediante procedimentos, materiais e efeitos.
Tais questões foram tão necessárias para forjar um pensamento
histórico e histórico-materialista sobre relações de gênero e so-
bre a formulação dessas relações quanto foram para pensar a ra-
1495
por muitas fontes, a ponto de cada uma delas gerar leituras es-
crupulosas e debates subsequentes. Aquilo que, em retrospecto,
poderia ter sido inteiramente arrastado por narrativas de pro-
gresso ou de perda, era experimentado pelos participantes na
forma de possibilidades novas e constantemente desafiadoras, a
auspiciarem projetos de longa duração. Minha própria experi-
ência nos grupos de discussão – os debates, as pequenas revistas
que faziam com que estes circulassem, o encontro com artistas
1496
pectivo, mesmo enquanto lancemos mão de cada instrumento
que encontremos na sacola de métodos de pesquisa histórica e de
nossas habilidades de leitura, para pensarmos sobre o que os tra-
balhos de arte e a arte realizam [do] em suas condições ampliadas.
Alguns defendem que esta argumentação deveria ser feita
sempre no tempo presente. Concordo que a arte está sempre realizan-
do [doing] – trabalhando – no presente. Tal é o paradoxo. Vermeer,
por exemplo, é de quando? Os trabalhos, nós sabemos, foram fisica-
1497
capacidade de ocorrer de modo contínuo, em atos de ver apartados de
muito longe do momento e do lugar de sua emergência.
Aqueles que usassem apenas o tempo presente introduziriam
uma capacidade semiótica que é parte da presença do trabalho como
uma condição de presente [presentness]. Ao mesmo tempo, aqueles
de nós historicamente engajados sem serem historicistas também
desejam explorar esta outra questão: o que tornou tal obra de arte
possível no momento de sua emergência, e o que o fato de saber isso,
1498
suficientemente para que eu procure encontrar meios de integrar
o que está acontecendo em qualquer pintura, quando a observo, ao
que terá feito com que tal acontecimento se tornasse possível no mo-
mento em que tal pintura foi realizada.
À estudante indagativa, inquirindo as tensões entre mar-
xismo e feminismo nos anos 1970, eu reagia projetando a cena de
comunidades informais, imbricadas umas nas outras, mas com-
bativas, animadas pela necessidade compartilhada de mudar os
1499
redutoras, banais e sufocantes que hoje são transmitidas aos es-
tudantes em apanhados e manuais, os quais, além disso, fazem
murchar e homogeneízam projetos intelectuais muito distintos
sob uma bandeira única – feminismo –, ou fazem do feminismo
o lugar de oposições simplificadas e de antagonismos a outros
-ismos igualmente empobrecidos. Talvez isso explique o uso que
faço do neologismo “máquina de pensar” para designar fontes
teóricas e historiográficas. Sinaliza minha resistência ao confi-
1500
modo consistente e desenvolvendo-se ao longo de um período
de 40 a 60 anos, são congelados no tempo, reduzidos ou a “po-
sições” em competição, ou a uma sucessão de gerações edípicas,
que se podem sumarizar numas poucas linhas. O estudante ou o
leitor torna-se espectador em uma espécie de arena intelectual
cruenta. A História da Arte nos declara a todos nós meramente
contingências suas, alguns sendo considerados a espinha dorsal,
outros, a atração secundária, a ser mencionada, de modo alusi-
1501
ao presente em movimento da disciplina. Sobretudo, ao se identi-
ficar feminismo com gênero, este quase sempre entendido como
sinônimo de mulheres – uma categoria de gênero que de fato não
implica tudo no que concerne internamente e transversalmente
ao “generificar” [gendering] –, faz-se com que o pensamento e a
prática feministas se tenham tornado tão malquistos, indeseja-
dos, desinteressantes e pouco estimulantes quanto são “mulhe-
res”, conforme sugeri, na estrutura geral dos hábitos psicologica-
1502
os elementos mais importantes de sua própria historiografia?
Eu formulei isso psicanaliticamente, uma vez que tal é a histó-
rica máquina de pensar modernista voltada ao estudo do desejo,
do inconsciente e da fantasia. Também insisti na integração de
práticas de leitura sócio-históricas e feministas, pós-coloniais e
queer, contrariamente à sua categorização segregada, algumas
dessas práticas ainda vivas, outras mortalmente enrijecidas.
Enquanto escrevo este apelo exaltado a uma leitura mais
1503
cas do atual governo, que estão reduzindo o número de estudan-
tes, encerrando graduações e deixando sem trabalho estudantes
brilhantes de pós-graduação. Também nós, talvez, logo sejamos
história, mas uma história, conforme espero, que possa permanecer
como fonte para o pensar. Quem dera a história das histórias da
arte que a História da Arte nos permite conhecer torne-se genui-
namente inclusiva e gravemente respeitosa: ao abraçar o desafio
de um pensamento planetário e de sua urgente defesa humanista,
2. De modo a contornar a falta de distinção equivalente na língua portuguesa, neste texto será
empregado o termo composto “História da Arte”, com os dois substantivos grafados com as
capitais em caixa alta, para designar a disciplina (“Art History”, conforme esclarece a autora), e
o mesmo termo com os dois substantivos iniciados em caixa baixa – “história da arte” (“History
of Art”) – quando referir-se ao campo histórico da arte em geral. [N.T.]
ARS - N 42 - ANO 19
5. Foi este um debate central nos anos 1970, que a economista feminista norte-americana
6. O conceito de máquina de pensar nos afasta das histórias intelectuais das ideias ou
daquelas dos grandes pensadores, e lida com a prática ou um corpo de trabalho enquanto
conjunto complexo de meios para se pensar através de problemas específicos. O conceito
é parcialmente tributário das intervenções filosóficas de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que
1505
buscaram deslocar o pensamento do psicologismo e sugerir, em vez disso, uma série de
“máquinas”, tais como as máquinas desejantes, a máquina literária, às quais acrescento
a máquina de pensar. A ênfase recai no arranjo no qual um lugar ou uma pessoa qualquer
é um elemento, e que focaliza antes combinações e conexões do que entidades discretas.
7. O termo Zwischenraum designa em alemão, literalmente, intervalo, espaço ou vazio. [N. T.]
10. Ann Gabhart and Elizabeth Broun foram as curadoras dessa exposição reunindo obras de
35 artistas, da própria coleção permanente da instituição, e que teve por inspiração o célebre
texto de Linda Nochlin, “Why have there been no great women artists?” [Por que não existiram
grandes artistas mulheres?] (NOCHLIN, 1989). A mostra, intitulada “Old Mistresses: Women
Artists of the Past” [Velhas senhoras: artistas mulheres do passado] ocorreu em 1971, e teve
pouca repercussão, tendo sido registrada num breve ensaio na revista do próprio museu. Em
11. Ainda que alguns leitores venham a reconhecer que esses “conceitos” coincidem com
títulos de livros, é importante sublinhar que tais títulos marcam um campo conceitual, mais do
1506
que um tema, e é esperado que se transformem em conceitos com os quais trabalhar, para além
do livro em que são introduzidos, na criação de um projeto feminista em constante frutificação.
12. Christine de Pizan ou, nos textos mais antigos, Christine de Pisan (1364-1430) é
considerada a primeira “mulher de letras”, em língua francesa, tendo vivido de sua escrita.
Sua obra é prolífica, contemplando tratados de política, filosofia e escritos poéticos. No fim
da vida, retira-se a um convento, onde escreveu poema dedicado a Joana D’Arc (Ditié de
Jeanne d'Arc). [N.T.]
13. Mary Wollstonecraft (1759-1797) escritora, teve notável trajetória intelectual e política,
ao advogar aguerridamente a igualdade social e educacional das mulheres. O núcleo
central de suas ideias foi formulado na obra A Vindication of the Rights of Woman (1792)
[Uma defesa do direito das mulheres], considerado uma referência histórica fundadora
15. Uso "momento" em contraste consciente com a categorização disciplinar levada a cabo
pela História da Arte, do tempo em períodos e da arte em movimentos. “Momentos” indica
um conceito diverso de temporalidade, fundamente derivado do legado de Walter Benjamin,
1507
que por sua vez fora atraído pela espécie de pensamento cultural que havia se desenvolvido
em torno de Warburg e sua biblioteca. Benjamin usou termos como “constelação” para
pensar conjunções e relações. Seus pensamentos, ainda fragmentários, estão reunidos em
um de seus últimos manuscritos, “Sobre o conceito de História” (1940), publicado na obra
Sobre o conceito de história. Edição crítica (BENJAMIN, 2020).
18. O conceito freudiano, traduzido largamente como ação diferida [deferred action],
refere-se ao intervalo de tempo entre um evento que ao ocorrer não pode ainda ser
assimilado, e que, portanto, é traumático, e uma ocorrência ulterior dele, que pode herdar
a sobrecarga do afeto não assimilado associado ao primeiro trauma. Tal evento, entretanto,
vem à luz nesta segunda situação, criando o paradoxo de uma repetição originária. O
pensamento freudiano, dessa maneira, curva o tempo de volta sobre si mesmo, enquanto
mantendo, conceitualmente, os dois eventos apartados. Assim, não se trata meramente
1508
(ou advérbio) nachträglich (que em francês aparece como après-coup) são termos usados
por Freud com frequência, com relação à concepção que ele tem da temporalidade e
causalidade psíquicas, uma vez que “há experiências, impressões, traços mnésicos que
são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, e do acesso a outro grau
de desenvolvimento”; ver LAPLANCHE; PONTALIS (2016, p. 33).
19. A capa do catálogo da exposição "Cubism and Abstract Art" [Cubismo e arte abstrata],
organizada por Alfred Barr, mostra uma representação diagramática das origens da arte
moderna no trabalho de quatro mestres: Paul Cézanne, Paul Gauguin, Georges Seurat e
Vincent van Gogh. Deles brotam setas que se agrupam em grandes movimentos tais como o
Cubismo, conduzindo, finalmente, à abstração geométrica e não geométrica, por intermédio
de vários movimentos menos célebres. O mapa cria um destino para a arte moderna. Trata-
se de uma brilhante conceitualização, ordenando o caos de círculos e grupos concorrentes
21. As formas do verbo read, como também o substantivo reading, aparecem inúmeras
vezes ao longo do texto. Como é sabido, na língua inglesa, as formas verbais e o substantivo
podem vir a designar, além de atividades ligadas à leitura de materiais textuais, também a
atividade mais ampla de interpretar, analisar, ponderar, comentar - um objeto, uma situação,
elementos não exclusivamente textuais. Dessa maneira, as declinações do verbo read e o
1509
substantivo reading não foram sempre traduzidas estritamente como ligadas a atividades
de leitura do texto ou, mais amplamente, ao letramento; diferentemente, a tradução optou,
a cada caso, pelo termo em português mais pertinente ao contexto em questão. Resta
notar que o termo “close reading” foi central para os autores ligados ao New Criticism,
corrente da crítica literária que se disseminou nos círculos acadêmicos dos Estados Unidos
nos anos 1930-40, preconizando a primazia absoluta da análise “interna” das obras; no
ambiente intelectual norte-americano do período, o método da “leitura rente das obras”
assinalava uma reação marcante à atenção que as correntes historicistas davam a
materiais biográficos e sociológicos. Neste artigo, a própria autora, mais adiante (p. 1464),
esclarecerá: “Emprestamos da literatura o termo “leitura”, de modo que agora lemos filmes,
lemos imagens” [N.T.]
24. O livro é a versão publicada das conferências organizadas sob os auspícios da Welleck
Library Lectures in Critical Theory, apresentadas em 2000 na Universidade da Califórnia, Irvine.
1510
26. Bracha Ettinger é artista, feminista, teórica da cultura e psicanalista. Um dos aspectos
centrais de seu trabalho é a reflexão sobre a condição da arte de elaborar o trauma e de
oferecer-se como testemunha. Sobre o conceito de autofragilização, ver o ETTINGER (2009,
p. 9): “A autofragilização é arriscada e também dolorosa, porque estamos alcançando uma
compaixão-para-além-da-empatia e uma com-paixão que não raro é difícil de tolerar no nível
do indivíduo que busca segurança mental e precisar recuar de seus hábitos, internamente
[...]”. Ettinger é professora na Escola Europeia de Pós-Graduação. [Nota e tradução do
tradutor]
27. Sobre a tese defendida por Ettinger a respeito da elaboração na arte, ver POLLOCK
(2013b, pp. 1-36).
28. A expressão “liberal arts”, nos Estados Unidos, refere-se (tal como aparece na
29. As traduções da obra de Sigmund Freud pela Editora Companhia das Letras traduzem o
termo unheimlich por “estranho” ou “inquietante”, ao passo que as traduções mais recentes
publicadas pela Editora Autêntica propõem traduzi-lo pelo neologismo “infamiliar”. O ensaio
de Freud “O estranho” aparece em FREUD (2010). [N. T.]
31. Em certos períodos sem autoria ou mesmo sem o conceito de arte, tal como o formula
32. Eu me baseei no estudo detalhado da estética de Freud realizado por Sarah Kofman
(1988, esp. 1-21). Os comentários específicos sobre biográficos estão em "Leonardo da Vinci
and a Memory of His Childhood" (FREUD, 1990, p. 223).
1511
33. Sou grata a Rachel Theobalds por chamar minha atenção para este livro.
34. Para a recepção crítica, ver BROUDE; GARRAD (1989) e POLLOCK ([1993] 1996). BUDER
et. al. (2007) e REILLY; NOCHLIN (2007).
35. A título de um comentário à parte, devo dizer que em certa ocasião fiquei impressionada
com o projeto de Marcia Pointon para um curso de primeiro ano panorâmico em História
da Arte na Universidade de Manchester, focalizando centros de produção artística, e
assim favorecendo uma modalidade de estudo que se localizava em situações à maneira
de palimpsestos, sobrepondo tempo e espaço, contingência e possibilidade. Cidades ou
comunidades pequenas, ou mesmo virtuais, ligadas por sistemas de comunicação, tornavam-
se centros auspiciosos para as práticas artísticas, a darem precedência ao acontecimento,
ao que acontecera ali, com suas redes, em vez de tornar o que havia acontecido exemplar
1512
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SOBRE A AUTORA
Artigo recebido em
21 de junho de 2021 e
aceito em 24 de junho de 2021.
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