Perdas e Danos
Perdas e Danos
Perdas e Danos
PALAVRAS-CHAVE:
Byung-Chul Han; infosfera; mundo-das-não-coisas; psicopolítica
ABSTRACT
Based on the critical view of South Korean-born philosopher, Byung-Chul Han, which establishes that
the digital order is deobjectifying the world by computerizing it, the article proposes a reflection on
the risks of human migration to the infosphere or to the world-of-non-things. In such a universe, only
digital information prevails, circulating uninterruptedly, surprising, exciting, and thus, inaugurating a
new form of social control. Through this type of mass communication, the virtual world imposes itself
on the facts, relativizing people’s relationship with truth and verification and, consequently, with
democracy, memory, and history. Psychopolitics, the current hegemonic power system, is the one
interested in this maneuver of the human psyche through continuous stimulating positivity, which aims
at transforming citizens into mere phono sapiens players of a gamified 'reality'. Therefore, the moment
demands a debate about the limits allowed for technologies and artificial intelligence because if they
start to serve as a synonym for the annulment of the world-of-things, they threaten us with the loss of
the world as such.
KEYWORDS
Byung-Chul Han; infosphere; world-of-non-things; psychopolitics
Enquanto a casa e o carro do futuro nos chegam por um lado, mais uma livraria
desaparece do nosso universo urbano por outro. “Hoje, a gente não tem mais tanta loja
física. As lojas virtuais estão acabando com tudo” (PERUCCI, 2023). Eis o desabafo da
funcionária (que perdeu seu emprego e preferiu não se identificar) da Livraria Galileu,
no bairro da Tijuca, fechada em dezembro de 2022, após 30 anos de atuação na cidade
Rio de Janeiro. O motivo do encerramento teria sido a dificuldade de competir com as
vendas on-line. Depois da descontinuidade em Ipanema e na Tijuca, cariocas torcem
para que a unidade do Largo do Machado consiga resistir2. O que significa perder mais
um ambiente como esse num bairro do país? O que pode estar em jogo? E por que isso
nos aponta para uma reflexão mais complexa? As livrarias físicas são muito mais do
que estabelecimentos comerciais em que livros são vendidos. Elas são a representação
de uma cultura local que se manifesta tanto na busca singular e silenciosa diante de
prateleiras, quanto nas arenas de debates, pontos de encontros e diálogo entre gerações
numa atmosfera onde o saber se mostra espacial, tangível e material. No caso da
Galileu, vê-se isso em depoimentos como o do Sr. Carlos Rodrigues, de 78 anos: "Sempre
1
Citados por Byung-Chul Han em Não-coisas: reviravolta do mundo da vida, 2022-a, p.19.
2
Atualmente a cidade do Rio dispõe de 146 livrarias. Do ano de 2017 para cá, quando contávamos com 210 unidades,
84 foram fechadas e 20 inauguradas (http://www.aelrj.org.br/website2010/). No e-commerce, a venda on-line de
livros e e-books (motivo de perecimento de muitas lojas físicas) cresceu e, apenas em 2020, o faturamento passou
de R$ 500 milhões para R$ 923 milhões. Em 2021, a contribuição de livrarias exclusivamente virtuais nas
vendas de livros no país já empatava com a contribuição de livrarias físicas: 29,9% e 30%, respectivamente
(GONÇALVES, 18.07.2022).
frequentei a livraria e sempre comprei livros pro meu neto" (PERUCCI, 2023). A filha,
Clarissa Souto, hoje jornalista e com 45 anos, confirma: “Papai sempre estimulou a leitura
na gente. Ele é frequentador de livrarias e bibliotecas. A Galileu faz parte da memória
afetiva da Tijuca, […] da vida cultural da cidade. É uma pena” (PERUCCI, 2023). Nesse
sentido, Danielle Paul, presidente da AEL/Associação Estadual de Livrarias do Rio de
Janeiro, joga luz sobre a situação, dizendo que o fechamento de livrarias em qualquer
momento é motivo de alerta social. “Quando um espaço como esse fecha, acho que o bairro
perde o que eu pensaria como um espelho em textos” (PERUCCI, 2023). A perda deste
espelho, a qual Paul se refere, fala do prejuízo identitário, cultural e simbólico, até então
manifesto no Sr. Carlos Rodrigues, em sua filha Clarissa, em seu neto, em toda e qualquer
comunidade repleta de cheiros, sons, gostos, cinestesia e topografia que só a experiência
da vida real pode dar. Ou seja, o inevitável avanço das tecnologias digitais, ao adentrarmos
o século XXI, exige, ao mesmo tempo, uma reflexão a respeito dos danos que a
informatização da vida pode trazer, que precedentes ela pode abrir, que agentes estão no
comando de tal expansão e que limites se fazem imprescindíveis.
Sabemos que o deslocamento de comércios e serviços, trocas e relações, em geral,
para o meio remoto, recebeu grande influência por parte do que vivemos a partir da
pandemia da covid-19. O confinamento impôs, abruptamente, a necessidade de
7
aceleração da migração para o espaço cibernético. Contudo, talvez não tenhamos dado
a devida atenção ao que poderia, e ainda pode, estar em jogo na perda de nossa vida
efetiva. Isso porque, a extinção de realidade física nas suas mais variadas expressões, em
benefício de uma franca ascensão da realidade virtual, torna cada vez mais evidente o
perecimento do mundo das coisas concretas. Para o filósofo sul coreano, Byung-Chul
Han, a ordem digital está descoisificando o mundo ao informatizá-lo (HAN, 2022a, p.
11). Em seu livro Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida, Han afirma que as “coisas”
estão desaparecendo, sem que disso nos demos conta. Estamos, segundo Han,
passando a viver na infosfera ou no mundo das não-coisas, em que a ‘comunicação’ e
a ‘informação’ nos dominam, nos inebriam e provocam a dissolução progressiva do
contato com o mundo real. Estamos perdendo, cada vez mais, a história e a memória,
importando-nos apenas com meros armazenamentos de dados que servem para a
produção contínua de estímulos. Isso, além de nos distanciar da preocupação com a
verdade factual, nos arranca da relação com tudo o que seja ritualístico, discreto, trivial
ou contemplativo (HAN, 2022a, p. 8-10). Em outros termos, com as “informações”
passando a ser as “não-coisas determinantes”, a vida humana vai deixando de ter
consistência ontológica e vai ganhando eficácia emancipatória. Na verdade, isso se dá,
segundo o filósofo, por meio de um movimento paradoxal em que a própria
hiperinflação de ter coisas conduz a uma indiferença, deslocando o interesse de
consumo das coisas, propriamente ditas, para o consumo da informação sobre as
coisas. Obcecados por informações e dados do universo digital, vamos nos desligando
do mundo real e factual.
3
Na citação sobre o carro, o autor se refere a (BAUDRILLARD, 1994, p. 11).
4
Byung-Chul Han refere-se aqui ao pensamento de Heidegger e os conceitos de Disposição e Tonalidade
afetiva.
9
especialmente entre os jovens e os profissionais que passaram a usar a modalidade
home office em seu cotidiano, ficando mais tempo off para a realidade ao redor e on
para a instância virtual (CORSINI, 2022). Tais desequilíbrios revelam o quanto o culto
ao ensimesmamento em prol de produtividade e performance individual pode servir
de caminhos para quadros patológicos como os acima citados. Em seu Sociedade do
Cansaço, Han aponta que esse tipo de situação “[…] irrompe no momento em que o
sujeito de desempenho não pode mais poder” (HAN, 2015, p. 29).
Por outro lado, e ao mesmo tempo, vale lembrar que o culto ao autocentramento
egóico também se revela em sua expressão violenta e incapaz à diferença. Vagando
pelo “não-mundo”, sem-coisas e sem-outro, o narcisista acaba “afogando-se em si
mesmo” (HAN, 2017, p. 10), mas nem sempre implodido. Em alguns casos, ele
explode, acha-se no direito de impor sua forma de pensar, passando por cima do outro
e degenerando o laço social por meio da exacerbação de preconceitos históricos e
estruturais. É o que acontece, por exemplo, com o aumento de grupos extremistas e
disseminadores de ódio de toda ordem, na internet. Levantamento do Brasil de Fato
(MOTORYN, 2022) mostra, por exemplo, uma “onda neonazista” espalhada pelo país
nos últimos anos. Pesquisa realizada pela antropóloga, Adriana Dias, mostra que
houve um aumento percentual desses grupos de 270,6%, entre 2019 e 2021, somando
mais de 500 núcleos extremistas com teor nazista no país, podendo reunir até 10 mil
pessoas como adeptos. Grave se considerarmos que o Brasil está em sétimo lugar no
ranking sobre nazismo na internet, segundo a organização não-governamental
SaferNet (MOTORYN, 2022). Junto a isso, impossível não perceber o aumento da
violência contra as mulheres por aqui. O relatório do Gabinete de Transição
Governamental mostrou que durante o primeiro semestre de 2022, o Brasil teve
recorde de feminicídios, acumulando cerca de 700 casos no período. O aumento é
5
Essas são duas das várias possibilidades de conceituação para o termo MUNDO na obra de Hannah Arendt.
Hannah sempre trabalhou o conceito de MUNDO de forma plurívoca e profunda, levando muito a sério tal
reflexão. Para tanto, recebeu influência de muitos pensadores, especialmente de Martin Heidegger, Edmund
Husserl, Santo Agostinho, Montaigne, Tocquevile, entre outros. Aqui, estamos pontuando, apenas, as noções
que achamos fundamentais para tratar do recorte do artigo.
Mundo é fenômeno que se dá, portanto, sempre “em reciprocidade”; “em meio a” e
“junto de”...
Priorizar o mundo enquanto ‘realidade constituída’ e ‘espaço intermediário’ é,
dentro do contexto aqui abordado, não renunciar ao protagonismo humano diante da
inteligência artificial, entendendo-a como mais uma dentre as tantas criações desse
artifício edificado por nós e só aceita mediante o compromisso com a civilidade. Já
enveredarmos pela infosfera sem debatê-la, em termos éticos e demarcatórios, significa
uma escolha pela passividade e pela abdicação de nossa vontade livre e racional diante
da possível manipulação dos algoritmos como arma de proporções ainda
incalculáveis. Nesse sentido, a seriedade com que Hannah Arendt nos apresenta a
ideia do que seja “mundo” deixa clara a importância de focarmos no que Byung-Chul
Han está denunciando como perda, tanto das coisas propriamente ditas, quanto da
alteridade que dá às coisas os sentidos que elas têm, no seio da cotidianidade. O
mundo como solo cultivado pelo e para o nosso bem viver em coletividade significa a
garantia da manutenção de nossa condição humana, enquanto convivência e laço. Sem
a mediação das coisas objetivas e sem a interpelação do outro, deixamos de ver o
mundo como “lar”, como “domicílio” e passamos a ser habitantes do “não-lugar” onde
regras, mecanismos de arbitragem, limites, respeito e deferência à pessoa humana
11
podem facilmente se esfacelar. Descoisificando o mundo, estamos perdendo não
somente o mundo propriamente dito, mas perdendo a nossa própria humanidade. Isso
porque, como nos lembra Hannah Arendt, o mundo é ‘correlato de’ e ‘condição para’
nossa existência, o que significa dizer que “[…] só existe mundo porque existem
humanos e só é possível sermos humanos porque somos mundanos” (ARENDT, 2018,
p. 36). A entrada na infosfera exige, no mínimo, que se levante essa discussão.
No centro de tal debate, não se deve esquecer, está o fato de que qualquer
concepção sobre o que seja considerado “humano” ou “mundano” sempre
corresponderá aos interesses do sistema hegemônico produtor do poder-saber vigente
em cada época, como já nos ensinou Michel Foucault (1926-1984). Segundo ele, “o
poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que
alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade
determinada” (FOUCAULT, 1997, p. 89, grifos nossos). Dessa forma, é crucial
perguntar: qual é o sistema hegemônico no qual a “infosfera” é fabricada? A partir daí,
dentro de sua estratégia complexa de poder, que tipo de humanidade se quer forjar e
qual o sentido do perecimento do mundo real em prol da virtualidade das coisas? Os
tempos atuais são conduzidos, predominantemente, pelas ambições do capitalismo
neoliberal, que visa muito além do controle das massas pela força bruta. O domínio
almejado, em nossa época, se dá, principalmente, pela compulsão e pelo vício. Assim
sendo, a porta de entrada desse mecanismo de controle não se faz pela opressão de
nossa estrutura física, mas pela captura de nosso psiquismo. Descola-se o foco de
atuação no bio (realidade concreta) e parte-se a operar no psi (esfera sutil). Em seu
Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2018), Han dedica-se a
mostrar o quanto o foco do sistema que antes agia preponderantemente sobre o corpo,
passou a agir, especialmente a partir do final do século XX, sobre a psique humana.
Valorizando tudo o que nos havia sido entregue pelas pesquisas de Foucault sobre o
poder disciplinar (século XVII) e a biopolítica (século XVIII), Han6 aponta que o
neoliberalismo não abandona totalmente os ditames dos séculos anteriores, mas
inaugura uma nova linha de comando, que em sua análise, será muito mais eficaz. No
poder disciplinar, o domínio era centrado no corpo, que, visto como máquina, devia
ser adestrado, disciplinado e domesticado (FOUCAULT, 1997, p. 131-132).
Paralelamente, a biopolítica centrava sua força de governança sobre a espécie,
impondo uma série de processos reguladores da população, normatizando a vida
desde o nascimento, manutenção e longevidade, até o controle da mortalidade (Idem,
ibidem). O biopoder, nesse sentido, fez-se política de coerção externa, de ordenamento
e policiamento de corpos em seus espaços de circulação. Por isso mesmo o pan-óptico7
- ou a prisão em forma de anel, dividida por celas com sua torre central de vigilância,
obra do jurista inglês Jeremy Bentham (1785) - foi o modelo perfeito de efetivação de
tal poder. As representações sociais vigentes ao longo do século XX seguiram esse rigor
de patrulha e monitoramento ininterruptos: cadeias, hospitais, fábricas, escolas, asilos,
manicômios etc. O biopoder foi um sistema que agiu diretamente na dimensão
biológica, com regulação da vida e da espécie humanas, transformando-nos em
sujeitos-funções ou peças de engrenagem da produção. A sua voz de comando foi
negativo-coercitiva: Tu deves! E a sua mais importante fabricação foram as
“subjetividades obedientes”.
Com o neocapitalismo, essa voz muda de comando e de tom, segundo Byung-
Chul Han, fazendo com que a impositividade do sistema se torne bem mais engenhosa.
Trata-se da psicopolítica. A base dessa nova organização social deixa de ser calcada na
negatividade coercitiva, passando a ser conduzida pela positividade estimuladora: Tu
podes! Na verdade, a psicopolítica incute subliminarmente nessa voz de comando a
seguinte consigna: Tu deves poder! Ou seja, “[…] o inconsciente social do dever troca
para o registro do poder […] porém, não cancela o dever” (HAN, 2015, p.25). Para tanto,
o neoliberalismo mira no que está além da dimensão biológica, agindo no psiquismo
e manipulando a noção de liberdade do indivíduo (no fundo, opressora), como seu
eixo principal: o “poder põe de lado sua negatividade, passando-se por liberdade”
(HAN, 2018, p. 26). A positividade do sim, agora, não se vale de coerção externa direta e
punitiva, mas ao contrário, aposta no estímulo, na motivação e nas emoções de um
“eu” que lidera a si mesmo. A força exercida pelo sistema será feita através da ‘tirania
da exposição’, unindo as noções de ‘vida e mercado’ e, a partir daí, fazendo com que
todos sejam ‘auto empreendimentos’ que devem se vender e competir uns com os
outros. Tais ‘sujeitos-concorrentes’ deixam, portanto, de ser vigiados de forma
repressora para se exporem voluntariamente. Como empresários de si (HAN, 2015, p.
6
Em várias de suas obras Byung-Chul Han dedica capítulos específicos para os estudos de Michel Foucault. É o
caso, por exemplo, de “Além da sociedade disciplinar”, em Sociedade do Cansaço (2015); “Biopolítica” e “O
dilema de Foucault”, em Psicopolítica- o neoliberalismo e as novas técnicas de poder (2018); e “Regime de
informação”, em Infocracia- digitalização e a crise da democracia.
7
Em Vigiar e Punir, Foucault apresenta uma planta do panóptico de Jeremy Bentham. Há uma versão do projeto
completo de Bentham em português pela Autêntica. (BENTHAM, Jeremy. O Panóptico (Panopticon). 2.ed. São
Paulo: Autêntica. 208p., 2019 Coleção Filo.). Uma nota no capítulo “Protocolamento total da vida”, de No
Enxame: perspectivas do digital, (HAN, 2018a, p. 121), traz uma boa explanação sobre o tema.
13
que as pessoas se submetam ao contexto de dominação por si mesmas. Em vez de
tornarem-se obedientes as pessoas se tornam dependentes” (HAN, 2018, p. 26). É aqui
que a ‘comunicação’ e a ‘informação’ controladas pela indústria das mídias digitais
ganham importância e se tornam decisivos recursos de poder do capital. Segundo Han,
como já sinalizado anteriormente, no mundo-das-não-coisas cabe à ‘comunicação’ e à
‘informação’ a tarefa de nos arrebatar e ensejar a dissolução progressiva do contato
com o mundo real, fazendo com que percamos a alteridade, a relação com a verdade,
com a memória e com a história, uma vez que vamos nos intoxicando pela infomania.
O fetichismo das coisas é substituído pelo fetichismo das informações comunicadas na
esfera digital que geram uma sucessão desenfreada de estímulos. Dessa forma, para o
filósofo, a informatização do mundo transforma as coisas em infômatos que, por fim,
tornam-se atores do processamento de informações que ditam nosso ‘modo de viver’,
‘o que devemos escolher’ e ‘como devemos nos comportar’. Com o derretimento ou a
evaporação do mundo das coisas, a infosfera avança sem resistência, negando a
realidade factual e criando outra realidade; a que lhe for mais conveniente (HAN,
2022b, p. 25-46). Em uma entrevista à Revista Gama, Ronaldo Lemos - advogado,
professor, especialista em tecnologia e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade
do Rio de Janeiro/ITS - diz reconhecer que, apesar de ver na tecnologia um caminho
de oportunidades, há desafios a serem tratados logo. Como exemplo, mostra os
impactos da inovação trazida pela Rede TikTok:
ir para uma outra aba e conseguir enxergar esse círculo, mas a aba
principal do TikTok é a empresa decidindo. Olhando tudo que está
acontecendo no mundo e falando “o Ronaldo vai querer ver isso aqui
com base nas preferências que eu já detectei dele”. [...] Isso é
problemático porque, bem ou mal, esse círculo social que a gente tem
nas redes sociais é ainda um fenômeno de coletividade, um resultado
do coletivo, de uma vida coletiva. E o que essa mudança do TikTok
acaba promovendo é você não ter conexão com mais ninguém. É você
sozinho ali e a empresa, o algoritmo te mandando conteúdo. Você se
conectando só ao algoritmo, não necessariamente a uma pessoa ou um
grupo. Isso provoca, na minha visão, um individualismo muito
profundo. As pessoas que já estão hoje muito atomizadas,
desagregadas, sozinhas, vão ter uma solidão ainda maior porque vão
ser elas e o algoritmo. Isso eu acho bem complicado (LEMOS, 2022, p.
35).
Para Han, estamos adentrando numa perigosa era em que os big data passam a
instalar uma nova ordem social. Nesta, o pan-óptico digital que já podia cruzar os
dados para influenciar nossos comportamentos, agora passa a se estabelecer como ban-
óptico, ou seja, um dispositivo que identifica até mesmo os comportamentos
indesejáveis, podendo alterá-los, dirigi-los ou bani-los do sistema. “O pan-óptico
clássico serve para disciplinar; os ban-ópticos garantem a segurança e a eficiência do
8
Psicometria (ou psicografia) é um procedimento impulsionado por dados para a produção de um perfil de
personalidade (HAN, 2022b, p. 38).
sistema” (HAN, 2018, p. 91). Nesse sentido, observando o caso americano, Han nos
alerta que as “dark ads contribuem com a cisão e a polarização da sociedade e
envenenam o ambiente discursivo”, inviabilizando a esfera pública (HAN, 2022b, p.
40). Com esse nível de interferência sobre a população, nossos cuidados em relação ao
avanço da inteligência artificial e dos recursos das redes não podem ser
negligenciados. Por isso importa a pergunta: em que aspectos o esfacelamento do
mundo-das-coisas facilita a perda da constituição de sujeitos pensantes, a perda da
alteridade, da coletividade, do bem comum, das instituições, da democracia...? No
pano de fundo do que se apresenta como simples e inevitável progresso tecnológico,
debater limites e regras no avanço da informatização tem a ver com essa questão. A
sociedade digitalizada do desempenho e da compulsão, pelo que nos aponta Byung-
Chul Han, pode se mostrar uma ameaça por precisar de uma “democracia de espectadores
e consumidores” para levar adiante um projeto de poder em que ‘votar e comprar’ e em
que ‘Estado e mercado’, sejam a mesma coisa (HAN, 2018, p. 22 e 87). A
tecnocomunicação infomaníaca e seus infômatos nos colocam o desafio de lutar para
não nos tornarmos todos meros Teletubbies9.
Cabe apenas registrar, no entanto, que nesse ‘mundo’ diluído em ‘infosfera’ a
comunicação e a informação, tidas como armas de manipulação fundamentais, são as
grandes vítimas do sistema por perderem os seus significados originais. Lembremos
que a palavra comunicação, derivada do latim communicare - antepositivo comunic,
communïco, as, ävi, ãvi, ãtum, ãre (HOUAISS, VILLAR, 2001, p. 781) - traz por sentido
primeiro “tornar comum”; “partilhar”; “repartir”; “associar”; “conferenciar”,
implicando, portanto, vínculo e laço. Segundo Barbosa e Rabaça (2001), “[…]
comunicação significa estar em relação com, representando a ação de pôr em comum, de
compartilhar ideias, sentimentos e atitudes”, identificando-se, assim, com o “processo
social mais básico: a interação” (p. 155-157). Vê-se que em sua acepção mais originária,
a comunicação é o que viabiliza a existência humana, uma vez que comunicar é
estabelecer comunhão entre nós. Dessa forma, sem comunicação não pode haver
simbolização, não pode haver cultura, não pode haver história... não pode haver,
enfim, ‘sentido comum’. É pela comunicação que nossa diversidade se afina, tornando
possível a “paradoxal pluralidade de seres únicos” que somos (ARENDT, 2017, p. 218).
Portanto, quando nos referimos a esse conceito em seu aspecto mais fundante, temos
que partir da recordação de que comunicação é sinônimo de coexistência; território do
entre humanos. Isso posto, sabemos que o problema se situa quando nos voltamos para
o que passou a se designar como ‘comunicação de massa’, aquela que transforma a
sociedade em um aglomerado indiferente ao interesse comum. Como já nos sinalizara
Arendt, o que mais caracteriza homens e mulheres de massa são o isolamento e a falta
de relações sociais normais; portanto, individualização, atomização e bloco
populacional desestruturado (ARENDT, 2012, p. 438-439, 446). Na perspectiva
comunicacional encurtada em que a vida passa a ser um smartgame desvinculado de
‘coisas’ e ‘pessoas’ do ‘mundo real’, o cerne da comunicação não é mais o “comum em
9
Teletubbies- programa infantil da BBC voltado para crianças entre 1 e 5 anos. Quatro amigos, Tinky-Winky,
Dipsy, Laa Laa e Po vivem aventuras e jogos na Teletubbilândia.
nós”, mas a “informação”. Vale lembrar, contudo, que este último conceito também
sofre deterioração, uma vez que, originalmente, informação - do latim informatio, onis
(HOUAISS, VILLAR, 2003, v.d.) – é a ação de “dar forma”, “formar”, “delinear”,
“esboçar”, “conceber ideia”, ao tratar de “fato de interesse geral a que se dá
publicidade” (HOUAISS, VILLAR, 2003, v.d.). Nesse sentido, é a ação de trazer ao
conhecimento público ocorrências e acontecimentos como resultado de um processo
de apuração, verificação e análise. Significa dizer que, logo em primeira ordem,
“informação” se vincula à questão da “verdade factual” (ARENDT, 2016, p. 282-325);
aquela ligada a fatos, números e experiências incontestes que dizem respeito a situações
e circunstâncias testemunhadas na realidade e que nos permitem produzir civilização,
história e memória.
O problema é que na era da “economia do compartilhamento”, a informação vem
perdendo o seu sentido primeiro de se fazer ‘fato levado a conhecimento do público’
com vistas à ‘concepção de ideia ou formação de opinião’ para o exercício de cidadania.
Agora, informação faz-se a própria peça publicitária sem, necessariamente, qualquer
vinculação com a facticidade, ficando apenas na superficialidade de uma perspectiva
comercial de obtenção de lucros sobre consumidores, à velocidade da luz, tornando-
se a mais valiosa das mercadorias. Daí ser a aceleração e o instantaneísmo os aspectos
17
que deterioram a ‘informação’ [dado mais avaliação], reduzindo-a ao papel de simples
‘dado’ [mensagem sem avaliação] (BARBOSA, RABAÇA, 2001, p. 389). Em nome da
conveniência e da diversão, tudo o que compartilhamos por meio dos
infômatos/informantes - smartphone, smarthouse, smartbed, smartcar... – nos leva a ser
monitorados, manipulados e dominados por um sistema que nos quer a todos cada
vez mais viciados na irrealidade pelo recuo do ‘eu pensante’ e pelo avanço do ‘ego
infantilizado’. Sabemos não ser possível, simplesmente, negar a inteligência artificial,
a informatização dos dados, a cibernética, as mídias digitais, as redes sociais, o
dataísmo... Essa realidade virtual não é o futuro, mas sim o presente, e já atua entre
nós. O que não se deve é achar que somos os Jetsons10, recebendo o que nos oferecem
apenas como formas de tornar a vida mais fácil e divertida. Há um projeto hegemônico
em curso que precisa fabricar tipologias humanas correspondentes aos controles
desejados; da mesma forma, há outras tipologias que precisam ser destruídas por não
interessarem ao sistema. É sob essa perspectiva que devemos estabelecer regras para
os avanços tecnológicos e conectivos da esfera virtual, afinal de contas, não é sobre
avanços tecnológicos e conectivos... mas sobre forças ideológicas e regimes de poder.
Ronaldo Lemos, que participou da implantação do Marco Civil da Internet (Lei nº
12.965/2014), entende que o papel da regulação é fazer com que as oportunidades
superem os riscos. Falta combinar com o sistema, diria Byung-Chul Han... Pois, não há
como fingir que para a psicopolítica não mais a domesticação dos corpos, mas o
adestramento da psique humana interessa, instrumentalizando a informação
10
Desenho americano futurista dos anos de 1960, produzido pela Hanna-Barbera. George Jetson, sua esposa
Jane e seus filhos Elroy e Judy vivem a ‘era espacial’, no ano de 2062, com carros voadores, cidades suspensas,
interação com robôs e trabalho automatizado.
11
A preocupação com a regulação não sai da pauta da sociedade civil, de entidades da Justiça, Congresso e
Governo Executivo atual. Alguns players da própria indústria da tecnologia vem reconhecendo os riscos. Prova
recente é a Carta Aberta em que empresários, CEOS e engenheiros de empresas como Amazon, Google e
Microsoft; além de pensadores como Yuval Noah Harari, solicitam a suspensão de pelo menos seis meses de
avanço de sistemas de IA para se traçar barreiras de segurança, a partir do que estão vendo acontecer com o
chat GPT-4 (da OpenAI). No dia 16 de março de 2023, a OpenAI - empresa dona do Chap GPT - divulgou um
relatório de 100 páginas apontando que agora este novo modelo consegue entender cenários mais
complexos. No documento, a OpenaAI admite ter “temores” em relação ao GPT-4 devido a sua “capacidade
de mentir” e sua “habilidade de criar planos de longa data e agir em cima deles, acumular poder e recursos,
e ter comportamentos cada vez mais ‘autoritários’” (MARTINS, 2023). Consultado em 07.04.2023.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Denise Bottmann. Posfácio Celso Lafer. São
19
Paulo: Companhia das Letras, 2017.
______. A dignidade da política: ensaios e conferências. Organizador Antônio Abranches. Tradução
de Helena Martins et al. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.
______. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016.
______. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann, posfácio de Celso Lafer. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
______. O que é política? Editoria Úrsula Ludz. Tradução de Reinaldo Guarany. 13. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2018.
______. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
ASSOCIAÇÃO ESTADUAL DAS LIVRARIAS DO RIO DE JANEIRO/AEL. Guia das livrarias do Estado do Rio
de Janeiro. As livrarias do Estado do Rio. s/ data. Disponível em
http://aelrj.org.br/website2010/index.php?option=com_content&view=article&id=376:as-livrarias-
do-estado-do-rio&catid=5:noticias&Itemid=8. Site da Associação Estadual das Livrarias do Rio de
Janeiro/AEL. Consultado em 15.01.2023.
CAVALLINI, Marta. Síndrome de Burnout e concessões de auxílio-doença. Matéria do G1. Fonte:
g1.globo.com. Disponível no site da JUSBRASIL, in
https://pautajuridicabr.jusbrasil.com.br/noticias/1199462583/trabalhador-com-sindrome-de-
burnout-tem-direito-a-licenca-medica-entenda-os-direitos-e-conheca-a-
doenca#:~:text=J%C3%A1%20em%202020%2C%20foram%20610,de%20aux%C3%ADlio%20por%20in
capacidade%20tempor%C3%A1ria. Consultado em 15.02.23.
12
Hannah Arendt está se referindo ao pensamento de Santo Agostinho – Livro XII, cap 20, de A Cidade de Deus:
[Initium] ut esset, creatus est homo, ante quem nemo fuit. (O homem é livre porque ele é um começo e, assim,
foi criado depois que o universo passara a existir). (ARENDT, 2016, p. 216).
PERUCCI, Raphael. Livraria Galileu encerra funcionamento na Tijuca após 30 anos de história. Agência
O Dia. 04.01.2023. Disponível em https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2023/01/6550430-livraria-
galileu-encerra-funcionamento-na-tijuca-apos-30-anos-de-historia.html. Consultado em 06.01.2023.
YAMAGUTI, Bruna. Entenda o que é 'machosfera' e saiba como mulheres podem se prevenir de
comportamentos agressivos.
https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/03/06/entenda-o-que-e-machosfera-e-saiba-
como-mulheres-podem-se-prevenir-de-comportamentos-agressivos.ghtml. 06/03/2023. Consultado
em 11.03.2023.
21