Literatura e Infância Na Experiência de Linguagem
Literatura e Infância Na Experiência de Linguagem
Literatura e Infância Na Experiência de Linguagem
São Paulo
2021
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC-SP
SÃO PAULO
2021
Banca Examinadora:
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Para meu irmão Hugo (in memoriam),
que vive na minha infância.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de
Financiamento 001.
Número do processo:
88887.148290/2017-00
Agradecimentos
à Universidade de Michigan, Ann Arbor, USA, que foi minha casa por um
semestre e me proporcionou experiências e crescimentos que o currículo lattes
jamais conseguirá contabilizar;
aos amigos: Aline Frederico, pela injeção de coragem que me levou a dar saltos
mais altos; Raquel Parrine, pelo apoio gratuito e fundamental; Aline Abreu, pela
força feminina que juntas desvendamos; Luis Carlos Girão, pelo afeto e pelas
trocas sempre enriquecedoras; Monica Lóss, pelas portas abertas e pela fé na
minha capacidade; Regiane Boainain, por me mostrar um reflexo mais generoso
de mim mesma e pela insistência na poética dos dias feios. Vocês me inspiram
e enfeitam a minha vida;
aos professores doutores Alberto Pucheu Neto (UFRJ) e Maria Rosa Duarte
Oliveira (PUC-SP), que no exame de qualificação me presentearam com um
debate animado e generoso, cujos ecos me guiaram até a conclusão desta
pesquisa;
aos meus filhos, Samuel e Ana Leticia, pela compreensão das minhas ausências
e pela parceria, incondicional e bem-humorada, diante das mudanças que a
minha pesquisa lhes impôs. À Lelê, um agradecimento especial pela
digitalização e tratamento das imagens e ao Sam, pelas leituras que
compartilhamos todas as noites;
à minha amiga Karen Pellegrini, mon amie, minha grande parceira de doutorado,
que se manteve de mãos dadas comigo durante todo o percurso, com quem
muitas vezes subi até às nuvens e tantas outras caí até o chão. Essa tese guarda
um pouco dos seus traços;
Finalmente,
A busca por uma definição da literatura é prática tão antiga quanto as próprias
formas literárias. Paradoxalmente, quanto mais se tenta definir a natureza da
literatura, mais nos aproximamos do seu caráter de indefinição. Ainda que boa parte
da crítica literária seja pautada pela reflexão subjetiva, é em direção à clareza de
ideias que continuamos a caminhar, mantendo a discussão teórica viva e atual, bem
como revelando nosso desejo tanto utópico quanto insaciável do conhecimento
conclusivo.
15
(PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 12), afirma a autora, chegando àquela que talvez seja
a única constância no percurso histórico reconstruído por ela: as definições de
literatura são mutantes.
16
Somente como área específica a literatura infantil parece conseguir, ainda que
timidamente, adentrar os estudos literários. Todavia, as conquistas alcançadas na
pesquisa da literatura infantil parecem circular somente entre os membros integrantes
dessa área, configurando-se como um grupo isolado dentro da academia, um
playground no quintal da imponente casa onde habitam as pesquisas relevantes da
“verdadeira” crítica literária. Perry Nodelman (1942) afirma que a pesquisa de literatura
infantil é tão pouco lida e divulgada na academia que pesquisadores de outras áreas
estão constantemente “descobrindo” a literatura infantil e “reinventando a roda”,
ignorantes de todo o percurso já percorrido por aqueles que se dedicam a área
(NODELMAN apud FLYNN, 1997, p. 144).
1
If we see childhood only as a prelude, as a provisional phase marked by gradually dying limitations, then the
analogy only implies that literature does not have to be universal in order to be significant, but can be addressed
to specific and exclusive audiences. If on the other hand we see childhood as a Prelude, in Wordsworth’s sense,
containing unique experiences accessible to adults only as knowledge and memory, then the literature as read
by children may be marked by indigenous distinctive qualities as well as limitations. Either way, to write books
for children and to write about them, is a political act.
17
tem sua origem no latim infantia, que por sua vez advém do verbo fari, falar, onde fan
significa falante e o prefixo in, sua negação) - é compreendido como um tempo já
superado por meio da apropriação de uma linguagem complexa que resultaria nas
produções literárias “dignas de estudo”. Assim, quando associado à produção literária,
o qualificador “infantil” é comumente identificado como algo de pouca qualidade,
limitador ou insuficiente. Afinal, o que a voz muda da infância, essa grafada com “v”
minúsculo, poderia nos dizer de relevante? Voltaremos a essa questão.
2
I do not believe that I have ever written a children’s book. I don’t know how to write a children’s book. How do
you write about it? How do you set out to write a children’s book? It’s a lie.
18
a adjetivação “infantil” aplicada ao termo “literatura infantil”, ao ser abordada por tais
áreas, é justificada pela caracterização de personagens e por temáticas convenientes,
ou ainda, é entendida à luz da faixa etária de um suposto público-alvo leitor
previamente determinado. A criança receptora está inserida no livro apenas como
representação de personagem, ou toma posse dele como mera consumidora.
Observamos que, quando o qualificativo “infantil” do sintagma “literatura infantil” é
priorizado, acabamos nos afastando de seu outro componente substantivo: a
“literatura”.
3
Often, when we talk about children’s literature, we do not know what we are talking about either. The problem
lies above all in the two words of the term itself. Almost without noticing it, in using the term we find ourselves
prioritizing either the children or the literature, so that half the term slides into chiché and inertia.
19
poderiam jamais construir como um fato humano independente da linguagem
(AGAMBEN, 2008, p. 10).
20
Um experimentum linguae deste tipo é a infância, na qual os limites não são
buscados fora da linguagem, na direção de sua referência, mas em uma
experiência da linguagem como tal, na sua pura auto-referencialidade
(AGAMBEN, 2008, p. 12).
4
“These recent studies explore in more detail the complex relationship between perceptible phenomena and
their representations in children’s fiction; between the physical body and its immaterial, linguistic fictional
portrayal; between physical and fictional place; between human identity and the enigmatic, non-existing identity
of fictional characters made exclusively of words” (NIKOLAJEVA, 2016).
21
Em busca de respostas a essas questões, encontramos a teoria do
experimentum linguae, cunhada por Giorgio Agamben, por meio da qual a infância
associa-se à linguagem em sua origem.
Talvez não seja tanto o quê, mas como a voz muda da infância pode fazer
vibrar o texto literário infantil, é o que nos interessa investigar. Destacamos que por
“texto” compreendemos a complexa trama de linguagens em ação no objeto-livro. O
caráter experimentativo da literatura infantil vem sendo observado desde suas
primeiras publicações, transitando entre gêneros literários e integrando os diferentes
códigos – palavra, imagem e design – na construção de um texto que extrapola a
dimensão tanto do verbal quanto do visível. Pela perspectiva barthesiana, trata-se do
texto-escritura: uma totalidade abstrata e irreprodutível que resulta do conjunto de
forças em ação no texto. A escritura não se detém no que comunica o enunciado,
realizando-se na duração da própria enunciação. Leyla Perrone-Moisés, em
consonância com Barthes, assim define:
A escritura parece constituída para dizer algo, mas ela só é feita para dizer ela
mesma. Escrever é um ato intransitivo. Assim sendo, a escritura “inaugura uma
ambiguidade”, pois mesmo quando ela afirma, não faz mais do que interrogar.
Sua “verdade” não é uma adequação a um referente exterior, mas o fruto de
sua própria organização, resposta provisória da linguagem a uma pergunta
sempre aberta (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 33).
A voz muda da infância que buscamos no texto literário infantil não é, portanto,
uma questão autoral nem mesmo de voz narrativa, mas da escritura resultante das
forças de linguagens. Segundo Agamben,
23
O ethos de que nos fala o filósofo italiano disponibiliza-se na experiência da
linguagem que, no âmbito desta pesquisa, é vivida no texto. Novamente, é preciso ter
a clareza de que:
Texto quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado
por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a
ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento
perpétuo (BARTHES, 2015, p. 74-75).
Portanto, o texto a que nos referimos nesta pesquisa não se limita ao conjunto
de signos linguísticos que compõem um texto exclusivamente verbal, mas ao texto-
escritura a que temos acesso pela leitura das múltiplas linguagens em ação no livro
infantil. A questão primordial da linguagem já se instala desde essa escolha vocabular:
interessa-nos a linguagem desreferencilizada, a linguagem que se apresenta como
Medium, como matéria, como textura, como ambiente onde a comunicação se realiza
em autorreferencialidade. Só por meio de tal atitude diante do livro infantil poderemos
experimentar sua infância, bem como reconhecer sua qualidade literária. É nesse
intuito que compomos nossa pesquisa, cujos capítulos foram divididos conforme
apresentamos em seguida.
26
Figura 1. Ilustração de “João e Maria”, Karl Offterdinger (Alemanha, 1829-1889)
Giorgio Agamben
27
Cap. 1
Caminhos labirínticos na crítica da Literatura Infantil:
a problemática da adjetivação
Marah Gubar5
5
The fact that something is very difficult to define – even “impossible to define exactly’ – does not mean that it
does not exist or cannot be talked about.
28
produzidas em diferentes tempos e em diferentes formas para propósitos diferentes
por tipos de pessoas diferentes usando formatos e meios também diferentes”
(REYNOLDS, 2011, p. 2-3, tradução nossa).6
Essas poucas questões, dentre tantas outras que poderíamos formular, foram
suficientes para alimentar inúmeros trabalhos acadêmicos sobre o termo. A ideia de
que o conceito de infância é uma construção social, amplamente divulgada pelos
estudos do historiador Phillipe Arriès (1986), potencializou a multiplicidade de
abordagens sobre a literatura infantil, consagrando-a como um campo de estudo, no
mínimo, polêmico. Afinal, se o entendimento de infância depende de um recorte
histórico e geográfico, também as abordagens sobre a literatura infantil se tornam
variantes de acordo com o tempo e o lugar em que se realizam.
6
Segundo Reynolds, “there is no single, coherent, fixed body of work that makes up children’s literature, but
instead many children’s literatures produced at different times in different ways for different purposes by
different kinds of people using different formats and media”.
29
biológica, a infância é interpretada pejorativamente como algo menor, limitado e
inacabado. Além disso, a própria etimologia da palavra, de origem latina, significa
“aquele que não fala”. Desta forma, poderíamos presumir que o que a literatura, como
forma de expressão, poderia desejar em relação à infância é apenas a sua superação.
O trecho acima nos alerta para duas questões. A primeira é a de que não
devemos preterir o substantivo (a literatura) quando levamos em conta sua
adjetivação (a infância). A segunda é a de que a literatura infantil não deve ser
caracterizada apenas por uma questão de "público-alvo'', como sugerido no início
deste capítulo. A criança não está situada apenas no fim de um processo criativo,
esperando, de braços cruzados, para receber uma produção da qual ela não participa
em absoluto. Se nos recusamos a acreditar que seja assim, então a pergunta central
deste trabalho fica estabelecida: de que maneira a infância pertence à literatura
infantil?
30
desdobramentos do seu trabalho na fala de outros autores, porque acreditamos que
ele seja o que mais se aproxima da abordagem pretendida nesta pesquisa.
sem rodeios: “Evidentemente, tudo é uma literatura só. A dificuldade está em delimitar
o que se considera como especialmente do âmbito infantil”. Ela continua:
31
O discurso da educadora funde-se ao da poeta:
Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança
livremente descobriu, pelo qual se encantou e, sem figuras, sem
extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és
um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal (MEIRELES, 1984,
p. 31).
Meireles afirma ainda que só interessa falar de Literatura Infantil nos termos de
uma literatura capaz de cativar o leitor a longo prazo, e não de qualquer produção
destinada ao público infantil. Tal “efeito duradouro” é o que resguardaria a qualidade
da literatura infantil, diferenciando-a de produções visualmente apelativas capazes de
atrair o consumidor mirim numa interação superficial e imediatista.
32
da literatura infantil? Quais seriam as especificidades desse texto literário que se diz
infantil?
A ficção infantil é impossível, não no sentido de que ela não possa ser escrita
(isso seria absurdo), mas de que ela se apoia em uma impossibilidade, a qual
raramente é mencionada. Trata-se da impossibilidade da relação entre adulto
e criança” (ROSE, 1993, p. 1, tradução nossa). 8
Não há, por um aspecto, nenhum tipo de literatura que se instaure tão
explicitamente no reconhecimento de uma diferença, quase uma ruptura, entre
7
Jacqueline Rose (Inglaterra, 1949 - ) é professora na University of London. Possui titulação pelas Universidades
de Oxford e Sorbonne. Rose é atuante, principalmente, na área de literatura, psicanálise e feminismo.
8
Children’s fiction is impossible, not in the sense that it cannot be written (that would be nonsense), but in that
it hangs on an impossibility, one which it rarely ventures to speak. This is the impossible relation between adult
and child.
33
escritor e destinatário. A ficção infantil exclui a criança do seu próprio processo
para depois, sem remorsos, incluí-la nele (ROSE, 1993, p. 2, tradução nossa). 9
Tal ruptura configuraria, de acordo com Rose, uma literatura na qual a infância
se apresenta como resultado não só dos investimentos do autor adulto, mas como
produto do seu desejo. A criança é “capturada, possuída e dominada pela história”
(ROSE, 1993, p. 24)10, de modo que toda literatura infantil seja reflexo de um processo
de colonização da infância. No Brasil, Regina Zilberman já havia alertado para a
mesma questão.
9
There is, in one sense, no body of literature which rests so openly on an acknowledged difference, a rupture
almost, between writer and addresee. Children’s fiction sets up the child as an outsider to its own process, and
then aims, unashamedly, to take the child in.
10
Caught up in, possessed and owned by the story
34
as quais corroboram para um erro comum: de que guardam uma verdade ontológica
absoluta e inquestionável. A fantasia de pureza associada às origens – tanto da vida
quanto da linguagem humanas – excluiria da literatura infantil tudo aquilo que pudesse
ameaçar sua candura.
Quando a ficção infantil atinge essa barreira ela torna-se não um experimento
(a trama formal de um romance adulto moderno que apresenta a gama de
11
In the discussion of children’s fiction, I repeatedly come across the most empathic of refusals or demands: that
there should be no disturbance at the level of language, no challenge to our own sexuality, no threat to our status
as critics, and no question of our relation to the child. These demands are all impossible; they carry a weight that
no individual child could be expected to support. The fact that they are impossible is nowhere clearer than in the
case of Peter Pan.
12
...If the child can still be in touch with that purity, then writing for children is the closest that we, as adults,
can get to it today...
35
pontos de vista de seus personagens), mas um abuso. Assim, o escritor ou
escritora para o público infantil deve manter suas mãos narrativas puras e em
seu lugar adequado (ROSE, 1993, p. 70, tradução nossa)13.
13
When children’s fiction touches on that barrier it becomes not an experiment (the formal play of a modern
adult novel which runs the gamut of its character’s points of view), but molestation. Thus the writer for children
must keep his or her narrative hands clean and stay in his or her proper place.
14
The difference at this level, and the difficulties which it has produced in classifying Peter and Wendy, suggests
that the history of children’s fiction should be written, not in terms of its themes or the content of its stories, but
in terms of the relationship to language which different children’s writers establish for the child. How therefore,
do these earliest works present their world to the child reader; what are the conditions of participation and entry
which they lay down?
36
Essas são questões que podem ser atualizadas ainda para a produção de
literatura infantil do século 21. Retornamos à nossa questão: de que forma, afinal, a
infância pertence à literatura infantil?
Para mim, a literatura infantil não pode ser entendida por meio de uma reflexão
passiva de valores cambiantes e concepções da criança (imagens da infância);
em vez disso, vejo a literatura infantil como um dos meios principais pelo qual
nós regulamos nossa relação com a linguagem e com as próprias imagens.
Esse tem sido o caso com tal frequência que o que está em jogo em uma
imagem da criança não é a criança primeiro e depois a imagem, mas a criança
como a representação máxima da gratificante plenitude da imagem em si
(ROSE, 1993, p. 138-139, tradução nossa).15
Por fim, Rose esclarece que não haveria um tipo de escrita pelo qual, ao se
voltar para sua própria fabricação originária, seria capaz de evidenciar a verdadeira
infância utópica. É a própria premissa de que haveria tal verdade – da infância ou da
linguagem – que parece ser o centro dos ataques de Rose, configurando, enfim, o que
define como a impossibilidade da ficção infantil.
15
For me children’s literature cannot be understood as the passive reflection of changing values and conceptions
of the child (images of childhood); instead I see it as one of the central means through which we regulate our
relationship to language and images as such. So often has it seemed to be the case that what is at stake is in an
image of the child is not the child first and then the image, but the child as the most fitting representative for the
gratifying plenitude of the image itself.
16
Peter Hunt (Inglaterra, 1945 - ) é professor emérito na Universidade de Cardiff, UK. Foi pioneiro no estudo da
literatura infantil nos níveis superiores de ensino. Ministra disciplinas sobre a literatura infantil, priorizando seu
aspecto literário sobre o pedagógico. É autor de vasta produção sobre o tema. Sua obra é internacionalmente
difundida.
37
paradoxalmente, esses critérios contribuíram mais para a exclusão do que para a
inclusão da literatura infantil no escopo dos estudos de relevância na academia
literária.
Falar à criança, no Ocidente, pelo menos, é dirigir-se não a uma classe, já que
não detém poder algum, mas a uma minoria que, como outras, não tem direito
a voz, não dita seus valores, mas, ao contrário, deve ser conduzida pelos
valores daqueles que têm autoridade para tal: os adultos. São esses que
possuem saber e experiência suficientes para que a sociedade lhes outorgue
a função de condutores daqueles seres que nada sabem e, por isso, devem
ser-lhes submissos: as crianças (PALO e OLIVEIRA, 1992, p. 5).
38
A noção de “cânone” ou “corrente principal” é uma construção social. Esse
“cânone” tem sido influenciado pelas universidades e, para que a literatura
infantil aceda a essa condição privilegiada, deve se tornar parte da estrutura
de poder ou essa estrutura precisa mudar (HUNT, 2010, p. 87-88).
Hunt elenca três situações de leitura que precisam ser diferenciadas: o adulto
que lê o livro destinado ao adulto, o adulto que lê o livro destinado à criança, e a
criança que lê o livro destinado à criança. E alerta que as “diferenças entre essas
situações são fundamentais para a nossa discussão. A crítica tende a falar delas como
se fossem iguais – mas não são, exceto de uma maneira um tanto perigosamente
ilusória” (HUNT, 2010, p. 78).
Além de ter claro qual a perspectiva que se adota na crítica da narrativa infantil,
também deve-se considerar os impactos que o “público implícito” gera sobre tal leitura.
Ou seja, ainda que um livro infantil seja dotado de complexa literariedade, os
elementos peritextuais que o qualificam como “infantil” geram um impacto no modo
como um adulto realizará sua leitura.
Os critérios de leitura apontados por Hunt nos levam aos problemas da relação
adulto-infância. Ler em nome de uma criança pressupõe não só valores e juízos, mas
também de que maneira o leitor adulto se relaciona com a infância, se por meio da
memória de sua própria infância, ou de uma “sensação” de infância, ou ainda, por
39
meio de uma imagem criada da infância. “Até que ponto os leitores conseguem
esquecer sua experiência adulta”, pergunta o crítico (HUNT, 2010, p. 81).
Quem quer que tenha lido muitos livros para criança quando adulto
provavelmente concordará que é o tipo mais gratificante de leitura – e, outra
vez, o mais inadvertido por aqueles em dúvida quanto ao status da atividade -
, o que envolve aceitação do papel implícito; é quando o leitor se rende ao livro
nos termos do próprio livro. Corresponde ao mais próximo que podemos chegar
de ler como uma criança; porém, está ainda muito longe da leitura feita por uma
criança de verdade (HUNT, 2010, p. 81).
1.1.4. A ideologia
17
Perry Nodelman (Canadá, 1942 - ) é professor emérito da Universidade de Winnipeg, no Canadá. Dedica-se,
desde a década de setenta, ao campo da literatura infantil, ao qual contribui com vasta obra e ampla atuação.
40
pelo senso comum e que acabam por resultar numa concepção simplória da literatura
infantil.
Nodelman & Remier (2003) afirmam que as assunções comuns sobre a infância
são guiadas por uma ideologia vigente que acabam por, de fato, impor sobre as
crianças uma maneira específica de ser e agir. O poder da ideologia sobre uma
sociedade é tal que seus membros tomam as ideias como a única verdade possível
e, ainda que inconscientemente, refutam qualquer pensamento que desvie do que
está já estabelecido.
18
Claiming to believe that children as innocent, in fact, many adults are upset or annoyed when they encounter
children who are not, and view such children as unchildlike. What these adults really believe is not that children
necessarily are innocent but that they should be. Indeed, when people express any of the assumptions listed
earlier, the frase “children are” often really means “children should be” – a confusion of what the adults would
like to be true with what actually is true. This confusion of the ideal with the actual is another characteristic that
marks these ideas about childhood as ideological in nature.
41
ZILBERMAN). Isso ocorre porque a literatura infantil, como produção cultural, exerce
sua força na construção da imagem da infância dentro de uma sociedade, inclusive,
na construção da auto-imagem de suas próprias crianças. “Crianças demais
aprendem a ser exatamente tão limitadas quando os adultos acreditam que elas
sejam” (NODELMAN, REIMER, 2003, p.95, tradução nossa).19 Insistimos: se estamos
apartados temporalmente da infância e impregnados de ideologia, como a infância,
entendida em sua ética autônoma, pode participar do texto literário infantil a ponto de
caracterizá-la como tal? Em que momento uma literatura representante de ideologias
de infância passa a ser uma literatura de infância?
“O fato de que alguma coisa é muito difícil de definir – até mesmo impossível
de definir com exatidão – não significa que ela não exista ou que não possa ser
discutida”, é a ressalva que Marah Gubar20 nos oferece em seu artigo “On Not Defining
Children’s Literature” (2011) e que nos serve como epígrafe nesse capítulo
problematizador. Ela continua:
19
Far too many children learn to be exactly as limited as adults expect them to be.
20
Marah Gubar (Estados Unidos, 1973 – ) é professora no Massachusetts Institute of Technology (MIT).
Previamente, foi professora na Universidade de Pittsburgh, cujo programa de Literatura Infantil impacta, em
escalas nacional e internacional, os estudos da área. Obteve títulos pela Universidade de Princeton e Michigan.
21
In such cases, we simply have to accept that the concept under consideration is complex and capacious; it may
also be unstable (its meanings shifts over time and across different cultures) and fuzzy at the edges (its
boundaries are not fixed and exact). Childhood is one such concept; children’s literature in another.
42
Como alternativa, Gubar sugere a abordagem da “Family
resamblance”/parentesco cunhada pelo filósofo da linguagem Ludwig Whittgenstein.
Tal abordagem prevê que ocorra, no esforço de formular um conceito, não a
descoberta de uma essência fixa e comum, a qual identificaria um grupo como
pertencentes a uma mesma categoria, mas, sim, uma espécie de percepção de
semelhanças e familiaridades que admitem, contudo, a presença de diferenças.
O ponto não é que seja impossível fazê-lo, mas sim que qualquer
definição atenta à gloriosa bagunça e multiplicidade da literatura infantil
seria tão extensa, complicada e especializada que não teria valor
algum para nós (GUBAR, 2011, p. 214, tradução nossa).22
22
The point is not that it is impossible to do but rather that any definition attentive to do the glorious messiness
and multiplicity of children’s literature would be so long, complicated, and qualified that would be of no value to
us.
23
...when we insist that we can avoid all reference to young people, I’ll suggest, what ends up happening is that
we drift back to old, discredited ways of talking about children.
43
acaba por resultar na percepção de uma infância perpetuamente subordinada à
maturidade.
Esse modelo tem a premissa da ideia de que crianças e adultos são afins entre
si, o que significa que eles não são exatamente iguais nem radicalmente
diferentes. O conceito de parentesco indica familiaridade, conexão e
similaridade sem implicar homogeneidade, uniformidade e equidade (GUBAR,
2013, p. 453, tradução nossa).24
O acadêmico britânico Peter Hollindale25, em seu elucidante livro “Is there any
sign of childness in children’s literature? / Há sinal de infantilidade na literatura
infantil?” (1997), acredita, conforme já sugerido nesse trabalho, que o problema no
entendimento da literatura infantil se localiza em seu próprio sintagma.
24
This model is premised on the idea that children and adults are akin to one another, which means they are
neither exactly the same nor radically dissimilar. The concept of kinship indicates relatedness, connection, and
similarity without implying homogeneity, uniformity, and equality.
25
Peter Hollindale (Inglaterra, 1936 -) foi professor na Universidade de York, dedicando-se à crítica da literatura
infantil e aos estudos sobre a ideologia. Tem livros publicados na área.
26
Often, when we talk about children’s literature, we do not know what we are talking about either. The problem
lies above all in the two words of the term itself. Almost without noticing it, in using the term we find ourselves
prioritizing either the children or the literature, so that half the term slides into cliché and inertia.
44
A suposição de Hollindale é recorrente em congressos de literatura infantil
nacionais e internacionais. Quando se valoriza o aspecto literário do livro, anula-se
seu caráter infantil. É recorrente ouvir afirmações tais quais “este livro, tão complexo,
não é para crianças” ou “essa literatura é para a criança que vive em todos nós”.
Embora clamem por uma democratização da literatura infantil, tais atitudes podem
resultar no anulamento – ou pelo menos dissolução – de um elemento constituinte do
sintagma: o fato de que ela seja infantil.
27
Seeing the child herself as provisional, we shall be inclined to notice the provisional and elementary qualities
of what she reads. Therefore, we shall value children’s books for their educative qualities, even if we take a
humane and generous view of what education is – even if we value education of the emotions and imagination
as highly as we value intellectual and linguistic development or the acquisition of knowledge.
If, on the other hand we see childhood as an autonomous part of life, and its passage as entailing some losses as
well as many gains, if we see it as a phase of experience which cannot be curtailed or repressed without lasting
harm to the adult, we shall place less store by the developmental usefulness of children’s activities and more by
the help they give in enabling the child to be a child.
45
O primeiro cenário, em que a infância é entendida como um período provisório
e de passagem para a vida adulta, justificaria os vieses pedagógicos comumente
adotados diante da literatura infantil. Isso porque a pedagogia, por mais sensibilizada
aos processos criativos e afetivos que seja, segundo o autor, visa uma forma de
evolução e, portanto, da superação da condição infantil. Nesses casos, qualquer
prática pedagógica que considere o livro de literatura infantil o estaria colocando em
função de algo que não a própria infância, que não o próprio literário.
Com exceção do livro infantil, a maioria das ficções que as crianças encontram
omitem a criança, a menos que seja como um fantasioso proto-adulto e,
especialmente, elas omitem a vida interior da criança expressa por meio de
ação. A mídia tornou a ficção infantil uma espécie em perigo de extinção e a
literatura infantil é a sua área de conservação (HOLLINDALE, 1997, p. 21,
tradução nossa).28
Embora a afirmação do autor nos seja inspiradora, é preciso ter em conta que
a literatura infantil também é parte da produção cultural e, assim como os programas
de TV, o livro também pode ameaçar a infância por meio de um conteúdo moralizante
e politicamente enviesado, da mesma maneira que outras artes podem contribuir para
28
Except in the children’s book, most fictions that children meet omit the child, unless as fantasized proto-adult,
and specially they omit the child’s interior life expressed through action. The media fave turned fictional children
into an endangered species, and children’s literature is their conservation area.
46
sua preservação. Também é válido lembrar que a pesquisa apresentada por
Hollindale leva em conta a produção disponível para crianças inglesas, sobretudo da
década de noventa, na qual o livro foi escrito. Todavia, acreditamos que as questões
levantadas pelo acadêmico continuam sendo norteadoras no contexto atual, ainda que
sua defesa à literatura infantil possa soar, ora ou outra, romantizada. Afinal, a
literatura infantil pode ser considerada uma área de preservação da infância? De que
maneira isso se tornaria possível? Essas são questões que pretendemos responder
nesta pesquisa.
29
To put the matter brutally, the adult children’s author is always obsolete. He or she can never inhabit the
presentness of childhood.
47
localizadas na história, mas, principalmente de como elas se dão na construção do
texto.
48
Enfim, a sexta definição toma por literatura infantil não um texto, mas o evento
por meio do qual se realiza uma troca efetiva entre qualquer texto e o leitor criança.
Quando essa troca ocorre com um leitor adulto a partir de um texto infantil, este texto
deixa, automaticamente, de ser um texto infantil. Isso ocorre uma vez que, por melhor
que seja a nossa compreensão ou nossa lembrança da infância, já nos expropriamos
dela. “Consequentemente nós somos convidados na mesa da literatura infantil,
mesmo quando nós mesmos a escrevemos. Por definição, nós estamos obsoletos”
(HOLLINDALE, 1997, p. 29, tradução nossa).30 Logo, a presença do leitor infantil e
sua efetiva troca com o texto no evento da leitura é o que consagraria a literatura
infantil.
30
Consequently we are guests at the table of children’s literature, even if we ourselves have written it. By
definition, we are obsolete.
31
The definition of children’s literature which I propose therefore involves the author, the text and the child, but
with qualified meanings in each case. The author is a person with imaginative interests in constructing childhood
(usually but not necessarily through creating child characters) and who on purpose or accidentally uses a
narrative voice and language that are audible to children. The text of children’s literature is one in which this
construction is present. The reader is a child who is still in the business of constructing his or her own childhood,
and aware of its presentness – aware that it is not yet over. Where these conditions co-exist, the event of
children’s literature take place.
49
A definição de literatura infantil sintetizada na citação anterior se abre, por sua
vez, para novas problemáticas, sobre as quais o acadêmico discorre no segundo
capítulo de seu livro.
Não é exagerado reafirmar, contudo, que a retenção de sua criança interior não
é a mesma coisa que ser uma criança. Uma vez que nos tornamos adultos, a
criança em nós pode não estar morta e nós podemos ser capazes de
reconstruir a infância da mente e da imaginação, mas a infância está findada.
Sua presentidade é irrecuperável. Essa é a diferença crucial e é o motivo pela
qual – nos termos da minha definição explicitada acima – como adultos
podemos ler a literatura infantil como o conjunto de textos literários, mas não
podemos ativá-la lendo-os como uma criança o faz (HOLLINDALE, 1997, p. 32,
tradução nossa).32
32
It cannot be said too strongly, however, that retaining the child in yourself is not the same thing as being a
child. Once we are adults, the child in ourselves may not be dead, and we may be able to reconstruct a childhood
of the mind and imagination, but childhood is over. Its presentness is irrecoverable. That is the crucial difference,
and it is why – in the terms of my definition set out above – as adults we can read children’s literature as a body
of literary texts, but we cannot activate it by reading the text as a child reads.
50
Entre tantas coisas que provam ser terreno comum entre a literatura infantil e
literatura em geral, a complexa preocupação com a infância é a característica
distintiva e a área especial de interesse da crítica. Ainda assim, nossa
avaliação desta literatura tão importante parece, a mim, ser frequentemente
conduzida com correntes nos tornozelos porque nos falta uma necessária
clareza de vocabulário. (HOLLINDALE, 1997, p. 43, tradução nossa). 33
33
Among so much that proves to be common ground between children’s literature and literature generally, the
complex preoccupation with childhood is the distinctive feature and special area of critical interest. Yet our
evaluation of this important literature seems to me to be often conducted in ankle-chains because we lack a
necessary item of vocabulary.
34
Something is amiss with our vocabulary when our only adjective to describe children being children is one of
disapproval.
51
representação da infância. Se diante dessa representação a criança é capaz de ativar
a sua própria infância, o adulto é apenas capaz de rememorá-la.
35
I wish to argue here that childness is the distinguishing property of a text in children’s literature, setting it apart
from other literature as a genre, and it is also the property that the child brings to the reading of a text. At its
best the encounter is a dynamic one. The childness of the text can change the childness of the child, and vice
versa. On other occasions of reading the encounter is only a mirroring, conservative and confirmatory: the child
finds in the text a childness which largely reflects and duplicates his own. Such encounters are not valueless, far
from it. Children cannot live all their lives in states of dynamic interchange; they also need the reassurance of
staying put. However, it seems to me that as soon as we introduce the concept of childness into our reading of
children’s literature, we are better placed to understand the interplay of author, text and child. Also, we are
better placed to see that readings of children’s literature are a microcosm of the vaster social process by which
children learn and grow.
52
que ela é uma criança; para o adulto, conhecimento e aceitação de que não se
é; ainda que adultos tenham crenças diferentes e considerações a respeito de
uma possível sobrevivência da criança do ser maduro. Este composto de
atitudes culturais e pessoais é articulado no texto de literatura infantil e o evento
da literatura infantil depende da química/sintonia do seu encontro com uma
criança (HOLLINDALE, 1997, p. 49, tradução nossa).36
36
I propose ‘childness’, therefore, as a critical term with wider relevance. For the child, childness is composed of
the developing sense of self interaction with the images of childhood encountered in the world (including adult
expectations, standards of behaviour, grants of privilege and independence, taboos, goals, and offerings of
pleasure). For the adult, childness is composed of the grown-up’s memories of childhood, of meaningful
continuity between child and adult self, of the varied behaviour associated with being a child, and the sense of
what is appropriate behaviour for a giving age, of behavioral standards, ideals, expectations and hopes invested
in the child as a child. For the child, childness includes the knowledge and acceptance that one is a child; for the
adult knowledge and acceptance that one isn’t, though adults have different beliefs and valuations about
possible survival of the child in the mature being. This compound of cultural and personal attitudes is articulated
in a text of children’s literature, and the event of children’s literature lies in the chemistry of a child’s encounter
with it.
53
“infantil” nos pareça fundamental, é no momento de pontuar as características do texto
literário que nos deparamos com algumas ideias controversas.
37
The need for story and linear narrative, which happily coincides in certain adult authors and readers with
almost all children, is not an immaturity or intellectual inadequacy, reducible to silly caricature by academics. It
is neither more nor less than a construction of the self in the world.
54
infantilidade e, ao fazê-lo, está auxiliando a criança a construir a sua
(HOLLINDALE, 1997, p. 68, tradução nossa). 38
Em diálogo com outros críticos (Catherine Storr, Jill Paton Walsh, Mary
Warnock, Paul John Eakin), Hollindale parece oscilar entre uma posição conservadora
e outra inovadora da literatura infantil. Há momentos em que ele julga a literatura
infantil moderna como uma espécie de “jogo sem sentido” e outros em que ele se
refere à coerência oferecida pelo senso de continuidade como uma “pretensão
ilusória” (HOLLINDALE, 1997, p. 69). Sem nos prolongarmos na revisão literária
minuciosamente realizada pelo autor, podemos concluir que ele acredita que a
experiência infantil seja volátil e que a noção de continuidade seria atribuída – e
desejada pelas crianças – no texto da literatura infantil, porém não como uma estrutura
rígida, mas certo grau de fluidez criativa (HOLLINDALE, 1997, p. 70).
38
Construction of the self in time begins very early and is lifelong; it is not a question of adult immaturity or
nostalgia. In the negotiations of childness which occur between author and child reader in a text of children’s
literature, the adult author is in some measure living life backwards to enable the child to live it forwards; the
author is reconstructing her childhood, and in so doing is helping the child to reconstruct hers.
39
I have argued that the reading encounters take place in a field of negotiation called childness, to which writer
and reader bring different kinds of expertise. The writer’s childness is composed of memory, and in Storr’s frase
‘the child one still is’, and observation, values, sympathies and desires, but never temporal presentness. The child
brings the experimental volatility I have described, in which memory also plays a part, and a highly creative one.
The common language of author and reader is not so much language as linear narrative itself. Story is language,
one which adult and child are good at sharing.
55
reflexão sobre o conceito de infância, o qual ele julga ter sido negligenciado pela
maioria dos críticos. O britânico chega ao sintagma “infantilidade” (childness) que seria
uma espécie de experiência intercambiável entre autor adulto e leitor criança, por meio
do texto. Embora uma infantilidade seja apresentada no texto, as maneiras de acessá-
la por parte do adulto e da criança são distintas: aquele por meio sobretudo da
memória, essa por meio da ativação de sua própria infância. O fato de que a literatura
infantil se baseie nesse intercâmbio de infantilidade mediada pelo texto a configura
como um evento. O evento da literatura infantil prevê ação criativa e volatilidade de
experiências, embora o texto busque estruturar-se, em diferentes graus, pela
linearidade narrativa como método relevante no processo de construção da identidade
daqueles que participam do evento.
40
...a composite made up of beliefs, values, experience, memories, expectations, approved and disapproved
behaviours, observations, hopes and fears which collect and Interact with each other in order to form ideal and
empirical answers to the question ‘What is a child?”
56
série de questões que influenciam na composição da infantilidade, as quais
pontuamos a seguir.
57
Fora do compasso da crítica acontece o verdadeiro evento de leitura, no qual
a literatura infantil se converte de texto à experiência. À medida que cada leitor
de doze anos irá trazer a sua própria infantilidade para o diálogo e negociação
com aquela apresentada nos livros e, uma vez que cada infantilidade é
necessariamente única, uma infinidade de leituras será gerada. Algumas irão
fornecer grandes oportunidades educativas para os pais e o professor, mas a
situação ideal de atividade de leitura íntegra e variada será provavelmente da
conta da criança (HOLLINDALE, 1997, p. 86, tradução nossa). 41
41
Outside the critic’s compass lies the actual reading event, where children’s literature shifts from text to
experience. Since every single twelve-year-old reader will bring his or her own childness into dialogue and
negotiation with that presented in books, and since every child’s childness is necessarily unique, a multiplicity of
readings will be generated. Some of them will give major educational opportunities to the parents and the
teacher, but in the ideal situation of busy and varied reading activity, most will rightly be child's own business.
58
Em “Signs of childness in children’s literature” (Sinais de infantilidade na
literatura infantil), o crítico literário e acadêmico britânico Peter Hollindale coloca em
discussão a infância caracterizadora da literatura infantil. A flexibilidade na
compreensão de infância caracteriza a literatura infantil como uma produção
igualmente volátil. Na tentativa de fixar uma estrutura particular da literatura infantil, o
autor a afirma como sendo um evento de troca onde as noções da infantilidade entre
autor e leitor são negociadas por meio de uma estética textual. O sintagma sugerido
por Hollindale – infantilidade – foi adotado como maneira de desviar de noções
consensuais pejorativas já consolidadas em relação a outros termos, tais quais
“childish” e “childlike”. Para a construção da infantilidade no texto literário, o
acadêmico tem como guia não verdades permanentes, mas questionamentos que
admitem e preveem respostas transitórias.
59
contextualizada, situada e dinâmica. Como tal, ela é fenomenológica. Sejam
quais forem os valores atribuídos à infantilidade para a sociologia ou para a
psicologia, como um conceito ele se precipita facilmente para dentro da filosofia
e da poesia. Essa é parte da força bem como da fraqueza da infantilidade como
uma ferramenta viável para os teóricos (BEAUVAIS, 2019, p. 3, tradução
nossa).42
42
Childness is composed of a multiplicity of features of childhood, some biologically or physiologically
determined, some socially and culturally constructed. Where childness is different from childhood as a concept
is that it is fundamentally a self-concept, experiential, lived from the inside; it characterises some degree of
metacognition, though not necessarily consciously articulated, about childhood as a defining feature of the self.
It is childhood looking at itself; taking itself as an object of interest; recognising itself. It is also always embodied,
contextual, situated and dynamic. As such, it is phenomenological. Whatever value childness may hold for
sociology or for psychology, as a concept it tips over very quickly into philosophy and poetry. This is part of the
strength, and also of the fragility, of childness as a workable tool for theorists.
43
Maria Nikolajeva (Rússia, 1952 -) é professora na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Sua produção na
área de literatura infantil é intensa e ampla. Em 2005, recebeu o prêmio internacional Brothers Grimm em
reconhecimento a sua obra na pesquisa da Literatura Infantil.
44
...the right hemisphere is emotional, while the left is rational; the right is concrete, the left abstract; the right
sees the whole in a context, while the left attends to details out of context; the right explores, the left categorises;
60
Em suma, enquanto o hemisfério esquerdo se ocupa de reduzir os estímulos
para o nível da certeza, o hemisfério direito se encarrega de abri-los para o campo
das possibilidades (McGilchrist, 2009; 2012). É esta abertura de possibilidades que
melhor define a infância, afirma Nikolajeva (2019).
and, perhaps most relevantly, the right hemisphere prioritises freshness, novelty, change, plurality and
ambiguity. Both are equally important in our perception of the world, yet each perceives the world differently.
45
If a child’s right cerebral hemisphere is better developed, and if it is connected with the part of the brain that
processes senses and emotions, it probably follows that children perceive the world differently to adults. Let us
speculate what these differences might be, even though there is no conclusive evidence. Ostensibly, this
hypothetical child shows more intuitive and less rational responses to external factors. A child connects to the
environment and to other living organisms emotionally and immediately, with less rationalising, less categorizing
of animals and objects, and with fewer attempts at making sense of them, than an adult; because the right
hemisphere does not try to make sense, instead experiencing the world intuitively.
61
detrimento da informação verbal, a receptividade ao extraordinário (NIKOLAJEVA,
2019).
Isso não impede com que adultos, mais especificamente autores de literatura
infantil, tenham sido bem-sucedidos em comunicar infantilidades por meio de suas
narrativas. A escolha pela narrativa em tempo presente, a antropomorfização de
objetos e animais, o deslumbramento com as pequenas coisas da vida, o espírito de
aventura, a percepção não linear do tempo, entre outros, são elementos recorrentes
46
A set of qualities that we as adults have no labels for, since we are used to measuring and evaluating things
from our own perspective, by default.
62
na literatura infantil e que poderiam encontrar na neurociência seu fundamento
científico.
O que se torna evidente por meio da breve reflexão sobre essas observações
biológicas, psicológicas e neurológicas é que a experiência do mundo
perceptivo vivida pela criança, bem como pela sua própria interioridade, é
profundamente distinta daquela vivida por um adulto de maneira que seja
dificilmente viável afirmar que o adulto tenha um conhecimento de primeira-
mão dessa experiência. Ainda assim, da mesma forma que a maioria dos
escritores do mainstream conseguiram retratar a consciência de vários grupos
externos, a literatura infantil conseguiu capturar alguns dos enigmas da
consciência infantil. A conquista é ainda mais extraordinária; e em vez de dizer,
como os construtivistas diriam, que a literatura infantil molda e manipula a
infância, poderíamos dizer que é impressionante que alguns adultos tenham
realmente sido capazes de localizar aspectos fundamentais da percepção
infantil, e incluí-los em seus trabalhos por meio da linguagem (NIKOLAJEVA,
2019, p. 32, tradução nossa).47
47
What becomes obvious through brief reflections on these biological, physiological and neurological
observations is that a child’s experience of the perceptible world, as well as of their own interiority, is so
profoundly detached from that of an adult that it is hardly feasible to claim that an adult has first-hand knowledge
of this experience. And yet, just as many mainstream writers have successfully managed to portray the
consciousness of various outgroups, children’s literature has managed to capture some of the enigmas of a child’s
mind. The achievement is all the more extraordinary; and instead of saying, as constructivists might, that
children’s literature moulds or manipulates childhood, we could say that it is quite remarkable that some adults
have in fact been able to spot fundamental aspects of children’s perceptions, and to render them through
language in their works.
48
The rational left cerebral hemisphere, trying to make sense of the emotionally charged experience
accumulated by the right hemisphere, tries to sort it into pre-determined categories, to make it coherent, to
transform it into a properly structured, linear narrative rather than a non-narrative, non-linear, multisensory
whole. That is, even before a memory of a mental state is stored, it is already altered by the left hemisphere’s
processing.
63
vez – recebem, na vida adulta, o tempero da nostalgia e da ideologia. Desta forma,
Nikolajeva refuta a ideia de que os autores de literatura infantil de sucesso são aqueles
que mantém uma memória mais ávida de suas próprias infâncias (NIKOLAJEVA,
2019, p. 33).
49
For an adult reader, the experience of mind-modelling a fictional child, whether the book targets a young or
adult audience, is modelling an alien mind, a childly mind. For a child reader, modelling a fictional childly mind
may or may not be a recognisable experience. Since it is an experience mediated through the adult writer, the
64
É na potencialidade da comunicação e intercâmbio de infantilidades, sobretudo
da criança leitora com o texto, que o pensamento de Nikolajeva vai de encontro ao de
Hollindale. “Eu enfatizaria que um texto genuinamente infantil tem o potencial de ser
entendido e apreciado por uma criança leitora; um potencial que pode ou não ser
concretizado por cada leitor”, afirma a autora (NIKOLAJEVA, 2019, p. 34, tradução
nossa).50
success of such mind-modelling does not depend on the parity of the reader and the character. For a childly
reader, too, the mind of the fictional child is just as familiar or unfamiliar as the mind of a bat or, indeed, an adult.
If the writer uses imagination to create childness, the childly reader uses imagination to read childness. The
childness of the child reader does not necessarily make them better equipped to engage with the childness of
the character. Yet I am prepared to admit that the child reader’s awareness of being a child can be beneficial for
connecting with the child character, or rather a childly character, since the character does not have to be a child:
it can be a bat.
50
I would emphasise that a genuinely childly text has the potential to be understood and enjoyed by a child
reader; a potential that may or may not be realised by each reader...
65
capaz de ativar uma experiência carregada de ética da infância. Resta-nos, nos
capítulos seguintes, criar os contornos para tal ética infantil, bem como identificar
quais são os recursos literários capazes de viabilizá-la no evento da literatura infantil.
Retomando, mais uma vez, a fala de Marah Gubar, a dificuldade em definir algo
não significa que deveríamos abandonar tal empreendimento, mas, sim, de aceitar,
como próprio critério de definição, a instabilidade e os contornos embaçados que
envolvem a literatura infantil como campo específico. Mais do que mera conformação
diante da dificuldade, acreditamos que resguardar a inapreensibilidade do nosso
objeto de estudo, além de preservar a sua liberdade, é o método mais fidedigno de
abordá-lo, senão o único possível.
66
Figura 2. Ilustração de “João e Maria”, Charles Robinson (Reino Unido, 1870-1937)
67
Cap. 2
Reconquistando os territórios do indeterminado
Henry Bergson
A atual literatura romanesca juvenil, criação sem raízes, por onde circula uma
seiva melancólica, nasceu no solo de um preconceito inteiramente moderno.
Trata-se do preconceito segundo o qual as crianças são seres tão diferentes
de nós, com uma existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser
particularmente inventivos se quisermos distraí-las. No entanto nada é mais
ocioso que a tentativa febril de produzir objetos – material ilustrativo,
brinquedos ou livros – supostamente apropriados às crianças. Desde o
Iluminismo, essa tem sido uma das preocupações mais estéreis dos
pedagogos. Em seu preconceito, eles não veem que a terra está cheia de
substâncias puras e infalsificáveis, capazes de despertar a atenção infantil.
Substâncias extremamente específicas (BENJAMIN, 1994, p. 237)
a) Ainda que existam raros exemplares de literatura feita por crianças, sabemos
que não é o caso predominante. Desta forma, a literatura infantil não faz
referência a uma relação de autoria.
b) Determinar que a literatura infantil é aquela eleita pela criança também nos
parece uma metodologia arriscada, uma vez que seria impossível estabelecer
os critérios para tal eleição. A literatura assumiria sua adjetivação apenas
ocasionalmente.
c) Dizer, como tem sido reafirmado com frequência, que a literatura infantil é a
literatura para a infância também nos parece limitador. Caracterizar a literatura
pelo seu público-alvo nos soa como uma preocupação mercadológica, não
literária. Poderíamos supor, contudo, que a determinação do público-alvo
69
impactaria os processos de produção, o que nos leva a próxima abordagem
descartada:
É neste último campo que se concentram a maioria das pesquisas que tomam
a literatura infantil como objeto de estudo. A infantilidade impressa no texto pelo autor
ou identificada pelo mediador são impregnadas por expectativas pessoais, desejos
inconscientes, objetivos específicos e valores culturais. A proposta de desvendar a
relação adulto-criança estabelecida por meio da literatura infantil significa,
impreterivelmente, a adoção de um desses vieses específicos, como pudemos
observar no capítulo anterior.
70
2.2. O caminho escolhido
... e que Benjamin exerce com maestria nestes textos de Infância em Berlim
nos quais recompõe, na linguagem, uma infância que renasce a cada vez que
se entra nessa aventura de pensar-relembrar-escavar-escrever sob o signo
das reverberações fugazes de semelhanças não-sensíveis, sempre em trânsito
para se desdobrarem em outras, ainda por vir (OLIVEIRA, 2021, p. 412-413).
51
No livro “Personagem e Anti-Persongem”, Fernando Segolin nos inspira com o seguinte fio de raciocínio: “Sem
dúvida, um dos méritos da teoria de Propp é a tentativa de vincular a noção de personagem à especificidade do
discurso narrativo, liberando-a de abordagens pseudo-literárias, tendentes a entendê-la sob prismas de todo
estranhos à obra vista do ângulo da peculiaridade da linguagem”. SEGOLIN, Fernando. Personagem e anti-
personagem. – 2ª ed – São Paulo: Editora Olho d’Água, 2006, p. 78.
72
2.3. A potência poética da infância: a mímesis
Virginia Woolf
Ao contrário dos outros animais, que nascem e morrem atrelados a uma mesma
expressão de linguagem, o ser humano adquire – ou não – uma língua no decorrer da
vida. Durante a infância, como já vimos pela própria etimologia da palavra, somos
desprovidos da fala. A infância seria, nesse sentido, a prova de que não somos seres
naturalmente dotados de linguagem, mas capazes de desenvolvê-la.
52
“I need a little language such as lovers use, words of one syllable such as children speak when they come into
the room and find their mother sewing and pick up some scrap of bright wool, a feather, a shred of chintz. I need
a howl; a cry”. Trecho do romance “The Waves / As ondas”.
53
Indeed, full acquisition of language marks the dissolution of childhood, as the child’s consciousness is
progressively defined within a system of signs communicated by parents and siblings in the first instance, but
ultimately imposed by social convention. Voices from that earlier realm of human self-awareness can put into
relief the shortcomings or blindspots of adult discourse as the child, in naivete or incomprehension, interprets
the world and words in a new way.
73
A existência pré-verbal não pressupõe, contudo, um período nulo em
experiências. Como seres sensíveis, estamos expostos aos estímulos do mundo
mesmo antes do nascimento. As sensações não exprimíveis por uma consciência
linguística vibram na criança como potência criadora. Por permanecer na iminência
do ato, a não concretização dessa potência permite que ela seja livre para realizar as
mais inusitadas relações analógicas. Não por acaso, alguns artistas buscam, na
memória da experiência de suas infâncias, a inspiração para criar. Picasso, em sua
célebre frase, diz que precisou de uma vida inteira para aprender a desenhar como as
crianças.
54
The preverbal creature, the infant, is truly on the margin of discourse, but voiceless only for a short time. Then
the child begins to acquire language, which is constantly changing and becoming more complex, along with his
or her existence as a subject. At every point, the child is less than fully informed by the verbal code of adults as
well as underrepresented in fiction by and for adults. But those authors who are seriously involved with giving a
voice to the child are crossing back over the border and, in doing so, are not only simply representing children
but implicitly uncovering for themselves and for their readers the distinctive psychological, social, and discursive
practices that constitute adult identity and that normally go unremarked and unexamined.
74
um modo altamente evocativo, produzindo na criança um sentido de alguma
profunda continuidade com o processo natural e apresentando evidência
explícita de uma base biológica de intuição... É sobretudo para esse intervalo
do início da vida que os escritores afirmam retornar em memória para que
possam renovar o poder e o impulso criativos (COBB, 1959, p. 538-539,
tradução nossa).55
Tal perspectiva está presente, ainda que em nuances e graus diferentes, desde
os gregos clássicos. Platão e Aristóteles consideravam a capacidade natural do
homem de estabelecer semelhanças como a origem fundamental do pensamento.
Para o primeiro, porém, era preciso saber separar a capacidade mimética que se
vincula à reprodução do paradigma ideal de sua República, da atividade mimética
ilusória dos poetas que engana os homens ao confundir suas noções de verdade e
mentira.
Aristóteles volta sua atenção não para o produto da obra de arte e seus efeitos,
mas para a primazia dos próprios métodos do artista em sua atividade subjetiva.
Segundo o filósofo, a capacidade mimética é uma faculdade tanto natural quanto
essencial ao homem na sua relação com o mundo e no desenvolvimento de sua
linguagem. A poesia, nesse sentido, seria como uma causa natural da atividade
humana que imita e sente prazer ao fazê-lo. O prazer da atividade mimética não
55
There is a special period of... childhood, approximately from five or six to eleven or twelve – between the
striving of animal infancy and the storms of adolescence – when the natural world is experienced in some highly
evocative way, producing in the child a sense of some profound continuity with the natural process and
presenting overt evidence of a biological basis of intuition... It is principally to this middle age range in their early
life that writers say they return in memory in order to renew the power and impulse to create.
75
estaria, conforme acreditava Platão, fundada num desejo capcioso, mas, sim, na
satisfação de reconhecer semelhanças e dizer “esse é tal” (GAGNEBIN, 1997, p. 85).
76
versão racional do mundo, que no Ocidente determina a história e o destino
das culturas, persiste em diversos estratos e com diversos graus de
intensidade em todo indivíduo (CORTÁZAR, 2008, p. 86).
O poeta, assim como a criança, mantém ativa sua direção analógica, capaz de
fazer comunhão entre as características não sensíveis das coisas. Não se trata da
valorização de uma condição retrocedente ou redutora, mas originária. No caso do
poeta, tal direção analógica manifesta-se pelo uso da palavra. “E a palavra –
angustiosa necessidade do poeta – não vale já como signo tradutor dessa essência,
mas como portadora do que afinal é a própria coisa na sua forma, sua ideia, seu
estado mais puro e alto” (CORTÁZAR, 2008, p. 97). Nesse sentido, uma coisa não é
como outra, mas é outra, da mesma maneira que a palavra não representa a coisa,
mas torna-se a própria coisa.
77
tanto na história filogenética, a qual remontaria aos primórdios da espécie humana,
como na história ontogenética, a qual se refere a evolução de um indivíduo desde o
seu nascimento até a maturidade. É assim que a infância entra no discurso do filósofo
alemão, confirmando a capacidade suprema do ser humano de reconhecer e produzir
semelhanças.
Sua percepção, em todos os casos, dá-se num relampejar. Ela perpassa, veloz,
e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada, ao contrário de
outras percepções. Ela se oferece ao olhar de modo tão efêmero e transitório
como uma constelação de astros. A percepção das semelhanças, portanto,
parece estar vinculada a uma dimensão temporal (BENJAMIN, 1994, p. 110).
A citação acima nos aproxima de outro ponto nevrálgico da tese que buscamos
aqui defender: a infantilidade do texto de literatura infantil afirma-se em sua natureza
temporal. Se a capacidade mimética, característica tanto da infância quanto do texto
poético, é oferecida à nossa percepção no instante fenomenológico da imagem,
podemos pensá-las como uma temporalidade. É na duração resultante das forças
analógicas e miméticas da linguagem que a infância ganha sua ética. Chegamos,
assim, à noção de limiar como um espaço-tempo de infância.
É nesta zona temporal que as imagens poéticas infantis surgem num fluxo de
participação entre a palavra e o ente que ela nomeia, entre percepções
79
extrassensíveis de semelhança, entre semiótico e semântico. Infância e Literatura
aproximam-se como “domínios privilegiados” na experiência do limiar.
Entendido como uma zona de duração, não faz mais sentido pensar na infância
como um período cronológico, como já apontado. A infantilidade reconhecida no texto
literário infantil não é uma infância rememorada, localizada num espaço mítico que a
linguagem pudesse de alguma maneira representar. A infantilidade que qualifica o
texto literário inscreve-se na própria linguagem em ação, nesta zona espaço-temporal
a que chamamos limiar. Assim, como críticos e leitores, perceber a infância no texto
literário infantil não significa cruzar uma fronteira e vivenciar, por alguns instantes, uma
infância passada. Reconhecer a infância no texto literário infantil é experimentá-la em
sua autorreferencialidade, como uma instância de discurso, ou, retomando Hollindale
(1997), como um evento de intercâmbio de infantilidades.
81
assim chamado sujeito do pensar e do conhecer em prol da multiplicidade e da
riqueza do real, daquilo que se chama de objetos; de buscar um
reconhecimento atencioso da concretude irredutível das “coisas”, como deverá
dizer Adorno. (...) No pensamento de Benjamin, um outro território, ao lado da
literatura, ainda resguarda experiência de limiar: o território da infância”
(GAGNEBIN, 2014, p. 39-40).
A literatura, expressão que ganha corpo na inscrição do signo, não faz senão
designar aquilo que se ausenta, ou seja, a coisa em si. A logicidade da palavra escrita,
ou mesmo da palavra pronunciada, pressupõe a ausência daquilo que fala, mas ao
mesmo tempo evoca a coisa para a existência efêmera do discurso. “A palavra escrita
vive desta indeterminação, torna presente aquilo que está ausente, signo de algo que
não está mais, presença da ausência e ausência da presença (GAGNEBIN, 2014, p.
21).
82
contradiz a afirmativa que fizemos anteriormente, de que o limiar pode ser entendido
à luz de um espaço e um tempo. Não nos referimos, então, a um espaço físico nem a
um tempo cronológico, mas a um espaço-tempo transcendental. A transcendência
espaço-temporal é o que marca a linguagem em sua pura auto-referencialidade,
liberta da tradição mítica do já vivido e historicamente localizado.
Desta forma, a literatura, como expressão artística e, por meio de sua natureza
específica, nos convida para uma experiência de limiar, tal qual vivida na infância. A
criança, ainda não aprisionada pelas normas da língua e privilegiada por uma
disponibilidade à percepção tanto do sensível como do extrassensível, usa as
palavras-arcabouços como peças de um brinquedo, realizando livres associações de
semelhança. Para a criança, o código da língua é matéria de brincar. Fechando esse
raciocínio cíclico que nos leva da literatura para a infância e da infância novamente
para literatura, citamos: “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que
permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura” (BARTHES, 2007, p. 16). E a
literatura, completamos, é o lugar da infância ainda não colonizada.
Todavia, a fronteira entre limite e realidade, entre paixão e razão, não consegue
impor à criança sua aparente rigidez.
84
Vivemos porque podemos ver, ouvir, sentir, saborear o mundo que nos
circunda. E somente graças ao sensível chegamos a pensar: sem as imagens
que nossos sentidos são capazes de captar, nossos conceitos, tal qual já se
escreveu, não passariam de regras vazias, operações conduzidas sobre o
nada. A influência da sensação e do sensível sobre nossa vida é enorme,
embora permaneça praticamente inexplorada. Enfeitiçada pelas faculdades
superiores, a filosofia raramente mediu o peso da sensibilidade sobre a
existência humana. Esforçando-se para provar e fundar a racionalidade do
homem, procurando separá-lo a qualquer custo do resto dos animais, ela
frequentemente esqueceu que todo homem vive no meio da experiência
sensível e que pode sobreviver apenas graças às sensações (COCCIA, 2010,
p. 09).
85
reconhecer e produzir semelhanças, como também à própria língua em sua dupla
articulação semiótico-semântica.
86
Figura 3. Detalhe da iIlustração de “João e Maria”, Lorenzo Mattotti (Italia, 1954 -)
Limiar. – O limiar é a articulação que separa dois mundos hostis: o interior e o ar livre, o frio
e o quente, a luz e a sombra. Transpor um limiar significa, portanto, atravessar uma zona
perigosa onde acontecem batalhas invisíveis, porém reais. Enquanto a porta estiver
fechada, está tudo bem. Abri-la é algo muito sério: significa soltar dois bandos, um contra o
outro, significa arriscar de ser envolvido na briga.
Marcel Griaule56
56
GRIAULE, 2005, p. 53-54 apud BEHRENS, 2010, p. 108-109
87
Cap. 3
Experimentum Linguae
Esta pesquisa busca uma nova chave para a compreensão da literatura infantil,
reconhecida em sua qualidade literária e sem desvencilhar-se de sua infantilidade
característica. Vimos, nos capítulos anteriores, que o território da literatura infantil é
repleto de caminhos paradoxais, trilhas paralelas que se encontram, bifurcações que
nos levam ao mesmo ponto, retas que nos conduzem ao ponto de partida. Afinal e
definitivamente: de que maneira a infância pertence à literatura?
91
Pois é óbvio que, para um ser cuja experiência da linguagem não se
apresentasse desde sempre cindida em língua e discurso, um ser que já fosse,
portanto, sempre falante e estivesse sempre em uma língua indivisa, não
existiriam nem conhecimento, nem infância, nem história: ele seria desde
sempre imediatamente unido à sua natureza linguística e não encontraria em
nenhuma parte uma descontinuidade e uma diferença nas quais algo como um
saber e uma história poderiam produzir-se (AGAMBEN, 2008, p. 14).
92
O “dado originário” a que se refere Agamben seria o pensamento puro, razão
intocada pela sua expressão, subjetividade metafísica na linguagem. É importante
esclarecer que ao propor tal questão ontológica – existe uma in-fância da experiência?
– o filósofo não busca alcançar um estado originário, mas compreender uma entrada
na linguagem que se renova toda vez que o homem fala.
Vale ressaltar, novamente, que esse lugar “antes do sujeito” não pressupõe
uma infância que exclua absolutamente a linguagem. A infância, ao marcar o limite da
linguagem – seu transcendental – não delimita um lugar utópico da subjetividade pura.
Não há uma fronteira que divida de um lado a infância muda e do outro o sujeito
falante. Há, sim, uma zona intermediária onde a linguagem cindida vibra em dupla
articulação de origem. É o próprio filósofo quem esclarece:
Mas é fácil ver que uma tal in-fância não é algo que possa ser buscado, antes
e independentemente da linguagem, em uma realidade psíquica qualquer, da
qual a linguagem constituiria a expressão. Não existem fatos psíquicos
subjetivos, <<fatos de consciência>> que uma ciência da psique possa
imaginar atingir independentemente e aquém do sujeito, pela simples razão de
que a consciência nada mais é que o sujeito da linguagem... (AGAMBEN, 2008,
p. 58).
93
Vamos identificando na teoria de Agamben as pistas já deixadas nos trajetos
trilhados pelos capítulos anteriores. A infância renuncia o conceito de um período de
mudez o qual é superado quando o ser conquista sua linguagem. A infância passa a
ser inscrita em toda a existência humana como experiência limiar vivida sempre que
o homem entra na linguagem, ou seja, sempre que ele abandona sua mudez-potente
e entra no discurso. A experiência não reside nem na potência da língua, nem na
realização da Voz, mas vibra na própria passagem em seu ato de vir a ser.
94
ganhar realidade no discurso ao dizer “eu”. Assim, o transcendental sempre será
linguístico.
Ao tomar a própria cisão entre língua e fala como centro de sua teoria, o filósofo
italiano libera, na experiência de linguagem, tanto o substrato psicológico (o qual
estaria, utopicamente, antes da linguagem) quanto o sujeito (homem falante que
95
domina a linguagem e a evoca). Vimos que esses dois “pólos” coexistem e se fundam
mutuamente, mas é justamente na identificação da fratura que há entre eles que
podemos compreender um experimentum linguae. Tal qual o limiar, o experimentum
linguae caracteriza-se pela dissolução da fronteira em favor de uma zona
intermediária na qual o humano e o linguístico se circunscrevem numa ambiência de
turva interseção, como já mencionado. “Como infância do homem, a experiência é a
simples diferença entre humano e linguístico. Que o homem não seja sempre já
falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, isto é a experiência (AGAMBEN,
2008, p. 62).
96
constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu (AGAMBEN, 2008, p.
64).
A história acontece toda vez que o homem se expropria de sua infância e diz
“eu sou”, “eu falo”. A entrada na história, pela abordagem de Agamben, não é, desta
forma, um dado pontual capaz de ser datado numa linha cronológica de
acontecimentos, nem circulado numa folha de calendário. A entrada na linguagem não
é, como se costuma registrar nos afetuosos álbuns de bebê, o dia memorável em que
a criança evocou a primeira palavra, balbuciou a primeira frase. A entrada na
linguagem e na história não é, principalmente, um cruzar de fronteiras definitivo, um
evento único na vida de uma pessoa. A entrada na linguagem e o fazer da história
acontecem toda vez que o homem fala, durante toda a sua existência falante.
“Experienciar significa, necessariamente, neste sentido, reentrar na infância como
pátria transcendental da história” (AGAMBEN, 2008, p. 65). A instância do discurso,
porque depende da fratura da língua, sempre remontará à infância.
97
verdade - a infância é a condição fundante do ser humano na medida em que esse se
caracteriza como um ser de linguagem. Essa infância se renova incessantemente,
acompanhando o homem em sua humanidade, em sua existência histórica sempre
reincidente. “Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e
através da infância, deve manter-se em viagem” (AGAMBEN, 2008, p. 65).
98
semiótico habilita-se como semântico. Uma resposta simples para essa questão seria
a de que o discurso é a mera articulação dos signos disponíveis no campo da
semiótica. Mas, conforme vimos, a cisão que diferencia um polo do outro – o semiótico
do semântico – não é como uma fronteira dividindo dois territórios distintos. Trata-se
de uma zona limiar na qual ambos os polos se fundam simultaneamente, em dupla
articulação.
Percebemos aqui uma inversão de direção: não são as palavras que, uma vez
articuladas, geram o sentido no discurso; é o sentido global do discurso que possibilita
a realização das palavras, compreendidas em sua unidade sígnica. Desta forma,
discurso e língua ou, semiótico e semântico, formam o duplo articulado.
99
Percorrendo a lógica de Agamben novamente, poderíamos sintetizar que o
homem, ao falar, expropria-se da sua infância onde a língua existe apenas em sua
negatividade e onde o semiótico, entendido como um conjunto de signos, aguarda. Ao
sair do território da infância, o homem constitui-se como sujeito da linguagem porque
encontra, enfim, seu lugar na história, preenchendo a designação do pronome “eu” na
instância do discurso. Este ato de “ganhar corpo” no discurso marca a transição para
o campo semântico, experiência que se dissipa instantaneamente. Trata-se de um
constante entrar (e sair) na (da) história, o qual não pode ser registrado num ponto da
linearidade cronológica, mas que se repete toda vez que o homem fala, reafirmando
a ética humana – e a eterna expropriação de sua infância.
57
Agamben distingue a voz confusa (phoné synkechiméne) e a voz articulada (phoné énarthros), conforme os
gramáticos antigos. “A voz articulada não é, portanto, nada além de phoné engramátos, a voz que foi transcrita
100
na espécie humana. Ao contrário dos outros animais, que nascem e morrem através
dos séculos coincidentes com uma mesma linguagem, o homem possui uma infância
onde a linguagem aguarda como potência criadora.
e com-preendida nas letras. (...) Somente a escrita alfabética pode, efetivamente, criar a ilusão de capturado a
voz, de tê-la com-preendido e inscito nos grámmata” (AGAMBEN, 2008, p. 68-69).
101
política. Daí a grande importância do experimentum linguae para uma abordagem da
literatura infantil.
102
Figura 4. Ilustração de “João e Maria”, Kveta Pacovská (República Tcheca, 1928 -)
Manoel de Barros
103
Capítulo 4
Trilhas de uma poética
Walter Benjamin
104
Como guia de leitura crítica, devemos ter assegurados os principais pontos da
teoria da experiência de linguagem proposta por Giorgio Agamben. Vimos, que tal
teoria se funda na cisão entre língua e discurso, entre voz e Voz, entre vivente e
falante, entre semiótico e semântico. O que marca essa cisão é o fato de que o homem
tenha uma infância, a qual provoca uma quebra fundamental na linguagem. É nesse
hiato, nessa infância, que o homem funda a linguagem ao falar. Igualmente, é nesse
evento de linguagem que o homem funda sua ética humana, diferenciando-se dos
outros seres vivos que coincidem com suas linguagens através de suas vidas e das
gerações. Trata-se, dessa forma, de um evento antropogênico, na medida em que
determina o humano do homem. A cisão – a infância – não é uma fronteira entre dois
territórios, entre um ali e um acolá, mas é a duração capaz de cindir as duas instâncias
e, paradoxalmente, torná-las indissociáveis. Daí dizer que a infância é um limiar.
Como limiar, a infância compreende tanto um espaço quanto uma duração, nos
quais a potência e o ato da linguagem giram em autorreferencialidade, numa atividade
efervescente, provocando uma experiência significante que se mantém sempre
inconclusa. Manter-se em vias significantes, manter-se em experiência é, dessa
forma, manter-se em estado de infância. “Aquilo que tem na infância a sua pátria
originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem”
(AGAMBEN. 2008, p. 65). Sigamos, então, trilhando.
Kupai, imerso em sua infância, realiza leituras do mundo com fidelidade às suas
percepções concretas do ambiente. Do alto da “Laje do trovão”, onde chegaram
rastejando “como cobra”, o curumim e seu irmão observam o sol tirar sua roupa
amarela para tomar banho no rio, assumindo sua cor nu-laranja. “Dali, dava para ver
um mundo aonde nossas pernas ainda não tinham nos levado, e talvez nunca nos
levassem, mas nossos olhos podiam nos levar voando até lá” (WAPICHANA, 2016, p.
9).
58
Ver: OLIVEIRA, Maria Rosa D. de. Infância, Jogo Mimético e Experimento da Língua. In: Narrativas e enigmas
da arte [recurso eletrônico]: fios da memória, frestas e arredores da ficção / Maria Zilda da Cunha, Lígia Menna
(orgs.). – São Paulo: FFLCH/USP, 2021. (p. 407-426)
59
“A boca da noite” recebeu o Prêmio Jabuti 2017 na categoria infantil; Prêmio FNLIJ 2017 nas categorias Criança
e Melhor Ilustração; Estrela de Prata no Prêmio Peter Pan – IBBY Suécia 2017; Menção honrosa no Concurso
FNLIJ/UKA Tamoios e Textos de Escritores Indígenas 2014. Foi publicado na Dinamarca e Suécia.
106
Figura 5. WAPICHANA, 2016, p. 8-9
Foi bom ouvir a explicação do meu pai, e até que entendi o que ele quis dizer,
mas não me convenceu.
_ Filho, boca também serve para não meter o corpo em confusão. E pode ficar
fechada também, filho...
Com essa resposta do meu pai, deu para entender que ele não sabe tanto
sobre a boca da noite.
É... melhor esperar o sol tomar banho de novo. Acho que ele tem alguma coisa
a ver com isso. Vou perguntar para ele sobre a boca da noite e, se ele não me
responder, vou perguntar pra própria boca da noite! (WAPICHANA, 2016, p. 35
e 37).
107
A percepção do mundo em que Kupai vive também é oferecida pelo impacto
das ilustrações de Graça Lima, com cores fortes e contrastes de temperatura. Entre a
realidade sensível e a imaginação, a experiência limiar do protagonista ganha textura
ainda mais intrincada quando ele passa a narrar o sonho que teve, após as histórias
contadas pelo pai com intuito de coagir os filhos à obediência.
Após o jantar, papai começou a contar uma história, e justo sobre a Laje do
Trovão. Olhei para Dum e ele deu um meio sorriso. Respondi com um sorriso
silencioso e lábios fechados. Mas minha cara de riso me denunciava e, se
papai visse, o castigo aumentaria. Sabíamos que, se não fosse aquela nossa
aventura na laje, papai contaria outra história (WAPICHANA, 2016, p. 17).
Foi nessa noite que ouvi falar pela primeira vez na “boca da noite”.
Eu nem estava prestando atenção na história que papai contava, mas, quando
falou da tal “boca da noite”, tratei logo de acordar todos os meus sentidos que
estavam quase dormindo.
Fiquei imaginando como era o corpo da noite... Pois se tem boca, tem que ter
cabeça, nariz, orelha, cabelo, braços, pernas, mãos, pés... Será que essas
partes são parecidas com as do nosso corpo? Porque, se tem boca, deve haver
um corpo!
Nem me preocupei com o restante da história. Eu precisava mesmo era
descobrir como era a “boca da noite”.
Fui para a rede depois da história, mas a boca da noite me acompanhou
(WAPICHANA, 2016, p. 17 e 19).
108
Figura 6. WAPICHANA, 2016, p. 20-21
109
de seus outros integrantes. Kupai logo se coloca a questionar sobre a boca da noite,
curiosidade potencializada no pesadelo recém vivido.
_ Filho, céu é uma coisa, a boca da noite é outra. O que importa é que existem
dois mundos: o mundo do dia e o mundo da noite, e o que divide um mundo do
outro é a boca da noite. É a boca da noite que ajuda a manter o equilíbrio da
vida na Terra e de todos os viventes. Nós trabalhamos durante o dia e, depois
da boca da noite, dormimos sossegados dentro dela (WAPICHANA, 2016, pg.
33).
110
entra no rio como se fosse tomar banho, mas o sol toma banho no rio. As ilustrações
que acompanham essa contação de histórias potencializam a experiência limiar sob
a qual opera o indiozinho, por meio, sobretudo, da escolha das cores e de imagens
simbólicas. A infância, como um “construto perceptivo” (OLIVEIRA, 2019), opera
essas diferentes linguagens em ação nas páginas de “A boca da noite”.
60
“A avó amarela” recebeu, no ano de 2019, os seguintes prêmios: Jabuti na categoria livro infantil; The White
Ravens / International Youth Library; FNLIJ nas categorias autor revelação e ilustrador revelação; Os 30
melhores livros infantis do ano / Revista Crescer.
111
Figura 9. MEDEIROS, 2018, p. 26-27
112
Figura 10. MEDEIROS, 2018, p. 40-41
113
Figura 11. MEDEIROS, 2018, p. 12-13
114
Os espaços construídos pela narrativa, seja a feira agitada, “lugar onde cabiam
quase todas as cores do mundo” (MEDEIROS, 2018, p.14), seja a cozinha onde a avó
passava café e lustrava a tarde, seja a casa de portões de losangos brancos onde as
despedidas aconteciam ao fim do domingo... são construções edificadas pelas
linguagens em ação no texto, as quais adquirem o estatuto de uma espécie de
“realidade temporária”, no sentido de que têm a duração que permitir o olhar do leitor
sob a página. A duração fenomenológica das realidades do discurso dissipa-se em
um virar de páginas. Trata-se de uma experiência de linguagem.
61
Ver: CAMÊLO, Francisco Thiago. Cartografia da infância: exercício de releitura de A idade do serrote, de
Murilo Mendes. Revista Fronteiraz, n° 17, dezembro de 2016. (p. 167)
62
“Quase ninguém viu” recebeu o prêmio João-de-Barro de Livro Ilustrado 2016.
115
Ainda que o livro seja grande em relação aos formatos tradicionais, o preto e
tons de cinza predominantes na capa, percebidos juntamente com o título, nos
indicam de que será preciso atenção especial para ver o que quase ninguém viu. Uma
pequena mancha branca com pintas vermelhas risca o canto inferior da capa. A
presença de dois olhos e o rastro cromático que a mancha deixa nos impulsiona num
movimento para o virar de páginas que nos leva para dentro da história.
Um risco que aponta para o centro da “casa” nos dá o delicado, porém certeiro,
trajeto de um ser que “chegou voando sem asa” e pousou “como gota em fim de
chuva”. A mancha do texto verbal sobre a página com um grande espaço vazio e
branco nos permite ouvir esse pouso que quase ninguém viu, mas que vai se
concretizando pela condução das sinestesias das linguagens em ação: som, cor,
vazio, palavra.
117
A dupla seguinte nos oferece a aproximação visual desejada em direção ao
“novo pequeno”. No espaço de uma dupla apenas, por aberturas numa grande
mancha preta, podemos espiar o desenvolvimento de um girino vermelho se tornando
perereca. A passagem dos dias, “no vai e vem do sol”, torna-se um tempo
indeterminado pela mancha negra que cobre outros tempos, de possíveis espaços
que viríamos se fossemos capazes de realizar mais furos na cor. Nas espiadas
possíveis, o girino pode ser visto em momentos antropomórficos, de característico
afeto maternal: ele é carregado, alimentado, entretido, abraçado e ensinado.
118
pairam no ar. O amor dilui as diferenças e o personagem principal não pode ser mais
identificado como antes.
119
Figura 18. ABREU, 2019, p.18-19
Figura 19. ABREU, 2019, p. 20-21. Figura 20. ABREU, 2019, p.30-31
120
Porém, com o passar do tempo, uma pequena sombra vai crescendo ao redor
do protagonista, perseguindo-o com as lembranças da família deixada na bromélia
azul. A consciência e o mundo interno do sapinho concretizam-se pelos traços escuros
e incisivos que vão avançando sobre a página e sobre a personagem, até tomarem
conta de todo o espaço.
121
Figura 22. ABREU, 2019, p.38-39
“O reencontro foi um abraço que não queria acabar” (ABREU, 2019, p. 39). Da
convivência ampliada, o espaço torna-se pequeno para acomodar as duas famílias,
as duas facetas de um mesmo ser. Há então um salto determinante, uma explosão de
cores a partir do centro da página que modifica, como podemos observar nas páginas
seguintes, a constituição de todos os membros envolvidos. A ampliação, que é tanto
do ambiente retratado na narrativa, quanto da identidade psíquica da personagem,
acompanha a expansão das dimensões do livro, que se desdobra em uma extensa
tripla de páginas.
122
Figura 23. ABREU, 2019, p. 42-43
Figura 23. ABREU, 2019, p.42-43
123
“Quase ninguém viu” (2019) nos revela um belíssimo exemplar do livro
ilustrado, o qual explora suas múltiplas linguagens na construção de um outro texto,
cuja escritura depende da ação do leitor. É no limiar significante da junção dessas
linguagens que a história pode ou não se realizar. A autora nos oferece os elementos
que possibilitam a construção desse discurso, o qual aguarda nas páginas do livro
como potência geradora. A verdadeira fruição não depende, porém, de uma total
capacidade de leitura verbo-visual, tal qual indicamos aqui. O texto se realiza
sobretudo por uma sucessão de pequenos instantes discursivos, os quais abrem-se
como potência em cada dupla de página, a qual pode – ou não – prolongar-se pelo
desenvolvimento da percepção. O desafio já foi dado de início: será que o leitor é
capaz de ver o que quase ninguém viu?
Ver, nesse sentido, não significa ser capaz de estruturar um enredo coerente,
mas de vivenciar as sinestesias em ação entre as linguagens do livro ilustrado: o traço
que ameaça, o movimento que reconcilia, a cor que segrega e une, o vazio que
silencia, a mancha que sufoca, a palavra que apresenta o invisível, o limite que amplia.
A infância, em “Quase ninguém viu”, é o que vibra como potência nesses espaços
limiares e significantes entre as linguagens em ação no texto. É exatamente nesses
espaços que a literatura de infância se torna um evento durativo, um tempo outro
capaz de sintonizar as infantilidades do leitor e do livro.
124
Figura 25. MELLO, 2018.
_ Por que as pessoas mudam de assunto cada vez que a gente aparece?
De uns tempos pra cá, os assuntos ficam sempre de olhos arregalados e pela
metade quando a gente aparece. Sussurros. Aos poucos, as pessoas já nem
tentam mais disfarçar.
Mas isso se esperava dos adultos, e não do Tar... (MELLO, 2018, p. 55).
125
também queria olhar as coisas de um jeito diferente. Olhando como uma
criatura do espaço olha. Quer poder colocar o olho na ponta do nariz, o olho na
ponta dos dedos, o olho na barriga. O olho assim, na ponta do meu dedo vai
aonde a janela acaba, aonde o horizonte se inclina. O horizonte começa aqui
dentro do carro e não para de se espreguiçar (MELLO, 2018, p. 12).
É dotada desse olhar estrangeiro que a menina vive a própria história, sem se
ocupar de esclarecer o próprio enredo, mas atenta a todos os indícios que a vida lhe
apresenta. “Clarice clarice clarice, meu nome assim repetido vai ficando longe de
mim. Quanto mais repetido, mais estranho parece o meu próprio nome” (MELLO,
2018, p. 15).
Só de passar a mão na minha cabeça dava para saber que eu não entendia
como alguém podia desaparecer por causa de um livro. Um livro vermelho,
ouvi, numa conversa delas. O Chapeuzinho Vermelho deve estar proibido
então, eu ri, quase dormindo, olha só. Quase dormindo, deu para ver que
minha tia riu também. Então acho que falei alto essa coisa da Chapeuzinho
Vermelho. Mesmo com um olho já fechado e um sono que não tem fim, deu
para ver o sorriso dela como uma lua deitada (MELLO, 2018, p. 39-40).
Entre o sonho e a vigília, Clarice não faz distinção entre os universos pelos
quais transita. A ilustração realiza a livre associação estabelecida pela menina, de
semelhança em semelhança. O livro proibido vermelho; a chapeuzinho vermelho dos
contos maravilhosos, portanto, subversiva; o lobo-guará habitante do cerrado... todos
circunscritos num mesmo espaço-tempo de infância.
126
Figura 26. MELLO, 2018, p. 38-39
A conversa terminava ali. E.L.E.S seguraram sua mãe pelo cotovelo. Ela
ajeitou o vestido, arranhou um canto da blusa querendo tirar um fio que não
existia. Tudo antes de sair.”
127
se tivesse visto a cena toda. Se tivesse visto mesmo, eu não enxergaria tanto
(MELLO, 2018, p. 83).
Como assim? Como posso ouvir a Mulher que Gosta de Arte dizer que eu
nunca estive na hora em que atiravam livros da ponte? Como? Se eu me
lembrava de tudo a cores e com cheiro? A Mulher que Gosta de Arte se
levantou.
Depois invento um nome pra ela.
Depois ou nunca?
Depois, nunca, tudo a mesma coisa (MELLO, 2018, p. 72).
Corri para atender o telefone, era pra minha tia. Uma voz molhada, uma voz
de asa de besouro, não sei.
Como alguém que tinha acabado de chorar.
Minha tia puxou o telefone da minha mãe e segurou, como se segurasse uma
concha para ouvir o mar.
O choro da minha tia coube todo na manga da camisa (MELLO, 2018, p. 102).
63
Ver: PALO, Maria José. Literatura de infância: a fábula infantil. Revista FronteiraZ, n° 23, dezembro de 2019.
(p. 189-204)
129
Figura 27. CUNHA, 2020, p. 18-19
130
Sem a cedilha, a pronúncia de “estimação” assemelha-se à “estima cão”, de
forma que um cão passa a fazer parte da história. É nessa brincadeira de significantes
que a narrativa rimada se desenvolve, pela desmontagem e remontagens da palavra
“estimação”. Em certo momento, o til tenta passar-se pela cedilha que falta, e a
pronúncia da palavra “estimação” dá origem, por semelhança sonora, a um novo
elemento: estima sal.
Como último recurso, a letra “o” do final da palavra parte-se em duas metades que
são posicionadas em semelhança gráfica ao til, que agora também falta. Assim
chegamos à grafia “estimaçã”, nova significação que a ilustração concretiza com
humor. Não só os sinais são trocados, mas construídos a partir da manipulação da
palavra enquanto matéria, enquanto forma visual.
131
Figura 30. CUNHA, 2020, p. 40-41
132
“Sinais trocados” poderia ser referido como um livro sobre acentuação, um
prato cheio para fins pedagógicos em auxílio da criança em processo de alfabetização.
Contudo, as regras da língua portuguesa estão embutidas na história apenas para que
possam ser transgredidas em favor da brincadeira. Como jogo profanador, o que vale
na leitura, é brincar. Isentos da referencialidade do texto e da criação de um sentido
coerente, o poema termina com a proposta de um recomeço: o texto faz-se
experiência. “Já vi que o poema é tantã, / que bagunça que ele fez! / Vou comer essa
maçã / e inventar tudo outra vez” (CUNHA, 2020, p. 42).
133
Figura 31. VALVERDE, 2020, p. 8-9.
134
Figura 32. VALVERDE, 2020, p. 8-9 (com aba aberta)
No poema “Teu presente” o recurso da abertura da aba volta a ser usado. Desta
vez, a aba fechada contém a palavra “presente” e um padrão colorido, como o de um
embrulho. Ao abri-lo, o poema é revelado: “A melhor parte / de um presente / é tão
somente / o que se sente / sente / sente...” (VALVERDE, 2020, p. 17). Se há uma
semântica na direção do valor que se dá às sensações, seja de um presente
embrulhado como o de um tempo presente, os quai dispensam qualquer
previsibilidade (pré-sente), no poema tal semântica coincide com a própria
manipulação da palavra “presente”. Ou seja, não há uma total desreferencialidade
nem uma absoluta desconexão semântica, mas é justamente na sintonia da semântica
com o signo que o poema revela seu humor e sua literariedade.
135
Figura 33. VALVERDE, 2020, p. 18-19
Nos campos da ficção, tudo é possibilidade. “Faz de conta / que ninguém mais
conta / o tempo o tempo todo / faz de conta / e vive / o tempo / que for” (VALVERDE,
2020, p. 19) Ao criar esses mundos possíveis o poema opera tanto pela manipulação
da linguagem no limiar entre o semiótico e o semântico, como convoca os sentidos
para a tessitura lúdica dos poemas. “Gosto do gosto / daquelas palavras / iguais em
tudo / na vida / do papel / mas diferentes / na lida / da boca / ou do pensamento”
(VALVERDE, 2020, p. 27).
137
Figura 36. VALVERDE, 2020, p. 30-31
64
“Pinóquio: o livro das pequenas verdades” recebeu os prêmios FNLIJ nas categorias “melhor livro para
criança” e “melhor projeto editorial”; selo “Os 30 melhores livros infantis do ano” / Crescer (2020); selo da
Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio.
138
existencial numa sequência linear de enredo movido por causas e consequências,
mas, sim, vive sua experiência de devir numa brincadeira mimética diante do espelho.
139
Figura 38. RAMPAZO, 2019, p. 8-9. Figura 39. RAMPAZO, 2019, p. 12-13
Figura 40. RAMPAZO, 2019, p. 18-19 Figura 41. RAMPAZO, 2019, p. 24-25
140
A dinâmica do livro altera-se neste ponto. Pinóquio, ao imaginar que é uma
árvore que sonha, dorme. Uma nova narrativa se inicia com o tradicional “Era uma
vez”. A sequência, porém, não é mais marcada por um virar de páginas, mas por um
desdobrar de abas, indicando-nos que precipitamos em uma experiência vertical,
ainda mais livre do que o jogo infantil.
Era uma vez uma árvore... / ... que sonhou em ser um menino. / Esse menino
corria pelos campos... / Nadava na corrente do rio. / Sentia no rosto o sopro do
vento / e o raiar do sol. / Ele encontrou uma árvore e se balançou em seus
galhos... Comeu de seus frutos.../ E descansou à sua sombra. / E a árvore onde
o menino repousava não sabia se ela mesma era um menino que havia
sonhado que era uma árvore... / ... ou se era uma árvore que sonhou em ser
menino. (RAMPAZO, 2019, p. 27).
141
Figura 42. RAMPAZO, 2019, p. 26-27 (com desdobrar de abas)
142
Realidade e imaginação, mundos vividos e mundos sonhados, seres vivos e
seres inanimados, verdades e mentiras... deixam de operar em contraposição e
coabitam um mesmo espaço limiar.
143
Figura 43
“Criança desarrumada: (...) Mal entra na vida e já é caçadora. Caça espíritos, cujo
rastro fareja nas coisas; entre espíritos e coisas passam-se anos em que o seu
campo de visão permanece livre da presença humana. Nela, as coisas passam-se
como nos sonhos: não conhece nada de duradouro, acha sempre que tudo lhe cai
em cima, vem ao seu encontro, esbarra com ela. Os seus anos de nomadismo são
horas na floresta do sonho”.
Walter Benjamin
144
Considerações Finais
Enquanto isso, no campo das artes literárias, falar sobre a literatura infantil
exige apresentação e justificativa prévias. Apresentação, porque tal produção literária
fica à margem da crítica, assim como a infância permanece à margem da sociedade.
Justificativa, porque é preciso apontar o valor que ela carrega, limpar as lentes dos
preconceitos que embaçam a visão.
145
Quem se rende aos apelos dos militantes da literatura infantil logo reconhecem
o seu valor e percebem que antes de ser infantil, ela é... literatura! Não sem razão o
acadêmico Perry Nodelman ironizou os colegas de profissão que de tempos em
tempos julgam-se descobridores da literatura infantil65. Ainda que existente, a crítica
específica permanece restrita aos seus pesquisadores, circulando apenas dentro de
seu próprio campo, uma espécie de “berçário acadêmico” cujos integrantes não são
convidados a se sentarem à mesa da crítica e da literatura adultas.
Assim, falar da literatura infantil no campo dos estudos literários requer uma
certa recapitulação prévia, partindo de suas origens e de seu próprio conceito.
Giramos em falso porque para explorá-la em sua riqueza literária, precisamos, antes,
defender seu estatuto. E que trabalho árduo esse se torna, quando patinamos na
amplitude de conceitos tais como literatura e infância. A aparente simplicidade de uma
literatura dita infantil transforma-se num bicho de muitas cabeças: não só a pedagogia
e a psicologia, mas também a sociologia, a psicanálise, a filosofia, a biologia, a
política, a história e até mesmo a economia encabeçam esse esforço de definição. É
justamente aí que encontramos a grande armadilha na reflexão sobre a literatura
infantil: somos tragados com muita facilidade para territórios que não o da literatura.
A infância parece ser uma isca muito mais apetitosa a outros campos do conhecimento
do que para as artes literárias.
65
(NODELMAN apud FLYNN, 1997, p. 144)
146
Depois de percorrer algumas trilhas e ver que demarcamos nosso trajeto com
migalhas de pão, percebemos, também, que seria preciso abandonar o desejo de
determinar itinerários fixos e, principalmente, de chegar a conceitos definitivos. Longe
de ser um fracasso prematuro, a renúncia de um conceito universal da literatura infantil
talvez seja o único caminho que nos aproxime, de fato, de sua verdadeira natureza.
Se essa pesquisa apresenta uma possibilidade conceitual, é porque tal conceito
admite ambiguidades, incertezas e um contorno que se faz por linhas finas e
pontilhadas.
148
literatura não existe apenas uma relação de semelhança, a qual identificamos aqui
pelos processos liminares, miméticos, livres e criadores comum às duas. Há, entre
essas forças que compõem o sintagma da literatura infantil algo que as torna
indissociáveis; é o que nos indica uma filosofia da linguagem.
É pela infância que Agamben distingue duas condições da vida humana: uma
de mudez e outra falante, uma de voz e outra de discurso. Se passamos de um estado
para o outro isso não se dá de forma definitiva, uma vez na história de nossas vidas.
Durante toda a nossa existência cumprimos essa passagem de maneira que a
condição infante nos acompanha como uma espécie de vetor discursivo também na
maturidade.
A vida humana, dividida entre língua – voz muda e potente – e fala – tomada
de posição no discurso – realiza-se no encontro dessas duas esferas, na sobreposição
da condição cindida do ser humano, no fenômeno que se reatualiza durante todo o
percurso da vida biológica e que Agamben definiu como experimentum linguae. Em
outras palavras, a experiência de linguagem prevê tanto uma separação quanto uma
união elementar que nos traz de volta para a noção de limiar. Diferentemente da
fronteira, o limiar pressupõe uma espécie de quiasma, de circunscrição de territórios
e é nesse espaço-tempo liminar que homem e linguagem se fundam mútua e
incessantemente.
150
linguagem, ela também assegura à criança leitora mais do que uma identificação, mas
um tempo-espaço onde a infância é preservada em sua natureza livre e criadora.
Nesse sentido, o diálogo de infantilidades entre texto e leitor se torna uma experiência
emancipadora da infância, uma vez que livra a criança dos ideais, dos desejos e
interesses externos e dominadores que muitas vezes são veiculados pelos livros
infantis. Ao mesmo tempo em que tais forças externas constroem uma noção de
infância num tempo e geografia determinados, elas desconfiguram a criança em sua
ética originária: muda, mas potente, primária e ao mesmo tempo geradora de toda a
racionalidade humana.
É por isso que, ao se falar dos textos de literatura infantil sob a dominante
estética, põe-se em risco a própria categorização de infantil e, mais ainda, do
possível gênero de literatura infantil, já que não se trata mais de falar a esta
ou àquela faixa etária de público, mas assim de operar com determinadas
estruturas de pensamento – as associações por semelhança – comuns a todo
ser humano (OLIVEIRA; PALO, 1992, p. 12).
153
aquilo, assim como toda a infância do mundo não corresponderá a uma suposta
essência universal. Enveredamo-nos por esses caminhos até irmos de encontro a
teoria do experimentuam linguae, de Giorgio Agamben, a qual nos possibilitou avançar
na discussão da literatura infantil sem o peso dos critérios limitadores até então já
percorridos pela crítica. Pela experiência de linguagem, fomos habilitados a uma nova
concepção de infância que extrapola a obviedade referencializadora e se faz potência
inventiva na instância do discurso.
O caminho escolhido por nós não deslegitima os caminhos já trilhados pela
crítica. Porém, acreditamos fortemente que o entrelaçamento da literatura e da
infância pela experiência de linguagem seja capaz de qualificar uma literatura que
seja, definitiva e verdadeiramente, de infância. Pela teoria agambeniana, encontramos
de que maneira, afinal, a infância pertence à literatura infantil, sem que esse
qualificador seja um empecilho para sua legitimação dentro dos estudos literários.
Mais do que isso, a infância que encontra o seu lugar na experiência de linguagem e
a linguagem que nos habilita uma experiência de infância restaura nossa ética
humana. Se a vida é uma forma gerada vivendo (AGAMBEN, 2017, p. 247), a literatura
de infância é gerada na experiência de linguagem.
154
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