Lit Bebês 1
Lit Bebês 1
Lit Bebês 1
Belo Horizonte
2016
Cristiene de Souza Leite Galvão
Belo Horizonte
2016
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Dissertação intitulada: Existe uma literatura para bebês? de autoria da mestranda Cristiene
de Souza Leite Galvão, aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes
professores:
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Vanessa Ferraz Almeida Neves – Faculdade de Educação da UFMG
___________________________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Isabel de Oliveira e Silva – Faculdade de Educação da UFMG (Suplente)
Ricardo Reis
Dedico essa dissertação ao meu marido, Alexandre, e aos meus filhos, Bruna e Guilherme,
que sempre estiveram ao meu lado, apoiando-me com amor, carinho, paciência, entusiasmo e
dedicação. Sem vocês não teria conseguido concluir essa pesquisa. A vida é sempre melhor
quando temos com quem dividi-la.
Ao meu pai que se foi muito cedo, mas que me ensinou o caminho absolutamente infinito de
descobertas e de compreensão do mundo através dos olhos da literatura.
À minha avó paterna, Amélia, que, entre broas de fubá e pães de queijo, me ensinou a sentir,
ouvir e enxergar com os olhos do imaginário.
À minha orientadora, Celia Abicalil Belmiro, que me acolheu com tanto carinho e leu nas
entrelinhas dos meus gestos, das minhas palavras e do meu olhar o que eu queria quando nem
eu mesmo ainda sabia. Sua competência e segurança fizeram-me avançar bem mais do que eu
imaginava.
À minha co-orientadora, Mônica Correia Baptista, que não só colaborou com a minha
pesquisa, mas também abriu inúmeras portas para que eu pudesse alçar voos mais altos.
À professora Maria de Fátima Cardoso, a Mafá, que tão gentilmente me recebeu em seu
gabinete e elucidou algumas de minhas dúvidas em psicologia.
À minha nora, Letícia, que, amavelmente, se ofereceu para ajudar meu filho na revisão da
dissertação.
Aos colegas do grupo de pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância com quem tenho
compartilhado as dores e as delícias do dia a dia da Educação Infantil.
À minha amiga de muitos anos, Márcia Darquia, pela força e por dividir comigo a esperança
de construirmos uma Educação Infantil de qualidade para todas as crianças.
À Charlene que, por meios que desconheço, sempre conseguia achar dados que eu não havia
conseguido encontrar depois de horas de pesquisa na internet.
Finalmente, à todas as crianças que cruzaram o meu caminho e que me ensinaram a olhar para
o mundo com olhos de criança.
RESUMO
Esta dissertação insere-se na linha de pesquisa Linguagem e Educação do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFMG e tem por objetivo principal
investigar o teor literário em livros de literatura destinados a crianças de 0 a 2 anos. Para tal,
busca aproximações com o universo infantil, considerando os bebês como sujeitos que são
produtos e produtores de cultura e que, na troca de experiências como os outros e com o meio,
constroem suas singularidades. Analisar as publicações literárias para bebês apresenta-se como
um grande desafio, uma vez que as crianças dessa faixa etária estão dando os primeiros passos
rumo à ordenação do mundo. A abstração tão necessária para que as crianças possam criar outros
mundos em outros tempos e espaços, característica do texto ficcional, ainda não está garantida
em obras para esta faixa etária e isso acarreta diferenças singulares nas publicações para esse
público. Podem esses livros receber o selo de literários? Podem os bebês produzir sentidos em
contato com narrativas ficcionais? Para responder tais perguntas é preciso o apoio de lentes
teóricas que consideram a infância como um acontecimento e os bebês como sujeitos que se
constituem na linguagem e que por meio dela subjetivam e compartilham suas experiências. A
opção de conhecer e analisar os livros de literatura infantil destinados aos bebês objetivou
categorizá-los segundo suas propostas interlocutórias e entrelaçá-los com as perspectivas
vigostskiana, wallonianas e golseanas de ampliar as experiências afetivas e cognitivas das
crianças, levando em conta as particularidades dessa faixa etária. Bernardo, Compagnon,
Eagleton, Jouve são, também, importantes interlocutores dessa pesquisa uma vez que
redimensionam o conceito stricto sensu dado à literatura, atitude tão necessária para a apreensão
da pluralidade de produções existentes na atualidade. Na esteira da ampliação desse conceito,
autores com Hunt e Sosa auxiliam a configurar as especificidades dos textos literários destinados
às crianças. O corpus de análise foi selecionado a partir de acervo particular e intentou abranger
a diversidade de produções para essa faixa etária. Foram levantadas as seguintes categorias:
materialidade, temática, gêneros, número de palavras, conceito da obra. Os resultados indicam
que, dentro de um conceito mais abrangente de literatura, é possível classificar livros destinados
a bebês como literários desde o instante em que a ruptura com a realidade se materialize, não
como uma transcrição, mas como uma (re) apresentação do real. Ainda que muitos livros infantis
destinados a bebês não apresentem uma estrutura narrativa, já se observa a fratura com o real e
um exercício ficcional capaz de criar tensões das mais variadas cores e tons.
This paper is inserted on the Language and Education research line of the postgraduate
program in Education from the Faculty of Education of the Federal University of Minas
Gerais - UFMG and it aims at investigating the literary content in literature books for kids
under 2 years old. For this purpose, it tries to establish approximations with the child-like
universe, considering babies as subjects that are products and producers of culture and that, on
the exchange of experiences with others and with their environment, build their singularities.
The analysis of the literary works for babies presents itself as a great challenge, since children
within this age group are taking their first steps towards their assortment of the world. The so
much needed abstraction for children to be able to create other worlds in other times and
spaces, common in the fictional text, is still not reliable on works for this age group and this
leads to particular differences in the publications for this audience. Can these books be
labelled as literary books? Can babies produce meanings when in contact with fictional
narratives? To answer such questions, the support of theoretical views is needed. Such views
consider childhood as an event and babies as subjects that compose themselves in the
language and through which (what means do) they subjectify and share their experiences. The
option of knowing and analysing child literature books for babies aims at categorizing them
according with their interlocutory proposal and interlinking them with the Vigotskian,
Wallonian and Golsean perspectives of amplifying the children’s affective and cognitive
experiences, taking into account the peculiarity of this age group. Bernardo, Compagnon,
Eagleton, Jouve are, as well, important interlocutors of this research since they resize the
strictu senso concept given to literature, a much needed attitude for the apprehension of the
plurality of works that exist today. Also amplifying this concept, authors such as Hunt and
Sosa help to configure the specificity of literary texts destined to children. The corpus of
analysis was selected from a personal library and it intended to embrace the diversity of
production for this age group. The following categories were raised: materiality, theme, genre,
number of words and concept of the work. The results indicate that, while inside a broader
concept of literature, it is possible to classify books for children as literary books, since the
moment when the rupture with reality is materialized, not as a transcription, but as a
(re)presentation of what is real. Even though a lot of books for babies do not present a
narrative structure, it is possible to see the fracture with what is real and a fictional exercise
capable of creating tension of many different colours and tones.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 19
6.3. Criando categorias para os livros destinados aos bebês .............................................. 159
INTRODUÇÃO
A vida é um fio,
A memória seu novelo.
Enrolo – no novelo da memória –
O vivido e o sonhado.
Se desenrolo o novelo da memória,
Não sei se foi tudo real
Ou não passou de fantasia.
Bartolomeu Campos de Queirós
O meu ser e fazer como professora de crianças pequenas e o fascínio que a literatura exerce
sobre mim foram plantados e cultivados há anos atrás no colo da minha avó, que foi uma das
mulheres mais sábias que eu conheci. Sua sabedoria não era a que encontramos nos livros e
nas enciclopédias; era uma sabedoria da alma, forjada no tecido vivo da existência. Em seu
colo, comendo carne de lata no prato esmaltado em um quarto com chão de cimento
queimado, comecei a construir a minha biblioteca íntima. Foram muitas as histórias que
habitaram o nosso território de afetos e de imaginação. Recordo com mais clareza as emoções
que me provocaram as narrativas do que seus enredos e personagens. E hoje, depois de tantos
livros e histórias, acredito que o que levava minha avó a fabular, mesmo não sabendo ler e
escrever, era a possibilidade de criar outros mundos e fugir da ferocidade da vida. Viúva, com
quatro filhos pequenos para criar e sem perspectiva alguma que lhe acenasse com a garantia
de uma vida minimamente boa para sua prole, minha avó contou histórias. Como Sherazade,
salvou-se a si e aos filhos de sucumbir ao grotesco que a vida lhes reservara. Criou, imaginou
e contou histórias. Assim, criou quatro filhos muito bem-humorados e que conseguiram
trapacear o destino: venceram. Como diz Barthes (2007), “As forças de liberdade que existem
na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor, [...] mas do
trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua” (p. 17). E acrescenta que a língua é o
lugar do jogo de palavras do qual ela é o teatro. E foi desse teatro que eu também fui
personagem. Habitei muitas encenações e fiz parte de uma felicidade impalpável porque
gratuita. Acrescento a isso as inúmeras vezes em que ficávamos à janela encontrando formas
familiares que o movimento das nuvens nos fornecia e criando outros contornos para seres aos
quais não encontrávamos correspondentes na realidade. Esses jogos de significados propostos
pela minha avó foram os precursores de minha paixão pela literatura. São histórias que eu
rememoro e sinto o gosto e o cheiro a cada vez que eu abro um livro.
20
As narrativas de minha avó não contagiaram apenas meu universo de devaneios, meu pai
também foi tomado por esse delicioso vício de habitar outras terras e ver a vida pelos olhos de
diferentes personagens. Ele construiu, ao longo da vida, uma gigantesca biblioteca que
ocupava um armário de quatro portas e outras três ou quatro estantes em um quarto que a
minha mãe sempre queria que fosse ocupado por um sofá e uma televisão. Ela não entendia o
porquê de se utilizar um quarto só para guardar livros; “que desperdício de espaço!”, ela dizia.
Mas eu, ainda que não soubesse disso, compartilhava com meu pai a sacralização do espaço
destinado “só para livros”. Desde bem pequena, gostava de ficar observando as expressões do
seu rosto enquanto ele lia jornais, revistas, livros grossos e finos: o cenho que franzia, a boca
que se abria em um sorriso ou pronunciava impropérios, os olhos que se cerravam ou se
enchiam de água. Acredito que isso ajudou a aguçar a minha curiosidade pela palavra escrita.
Gostava de passar as mãos pelos exemplares expostos nas estantes e retirar um ao acaso para
folheá-lo e imitar as expressões de meu pai. Lembro-me de um livro de brochura amarela e
letras douradas que me fascinava, mas que meu pai dizia que eu só poderia ler quando
completasse doze anos. A proibição tem um efeito de aguçar o desejo e a curiosidade. Na
manhã do meu décimo segundo aniversário, ainda de pijama, fui até a biblioteca e, na ponta
dos pés, retirei o proibido e agora permitido: O Diário de Anne Frank. A biblioteca do meu
pai serviu de suporte para muitos outros pactos e para muitas outras leituras.
A gênese da minha formação leitora mais os anos da escola primária na qual conheci
Monteiro Lobato e as peripécias das personagens de Reinações de Narizinho criaram um
substrato para a ancoragem de muitas outras leituras. Hoje penso que não gostava apenas dos
relatos que inventava minha avó ou dos livros que me recomendava meu pai: encantava-me
sentir o afeto e o prazer das vivências compartilhadas. Talvez essa experiência tenha nutrido
minhas inquietações de tentar compreender como a criança usa a palavra para estabelecer
significações com seu entorno sociocultural.
Como professora na Educação Infantil desde o ano de 1997, pude presenciar e vivenciar
várias maneiras de aproximar a criança do mundo letrado, baseadas em práticas pedagógicas
que, em sua maioria, silenciaram a criança e ocultaram sua relação ativa com a língua. Muitas
dessas práticas eram ancoradas em concepções que não entendiam a criança como um sujeito
histórico que se apropria de conhecimentos, mas também os produz. Fiz parte, por muitos
anos, desse modo de conceber o sujeito criança e, hoje, puxando o fio da minha história como
professora, reconheço meus limites e me apoio em Paulo Freire (1996), quando diz:
21
Durante todo o meu percurso profissional foram muitas as vozes que me ajudaram a duvidar
de minhas certezas. As crianças, meus colegas de trabalho, minhas supervisoras e
coordenadoras, meus diretores e pais de alunos, os auxiliares de serviços gerais foram todos
interlocutores imprescindíveis para o meu processo de formar-me e re-formar-me. Também os
cursos, as palestras, os seminários e os congressos que frequentei contribuíram para a minha
formação e para o exercício cada vez mais responsável e consciente de minha profissão.
É pertinente ressaltar que, concomitantemente a esses estudos, passei a fazer parte de quatro
programas e ações da Faculdade de Educação que têm colaborado para ampliar meu olhar
sobre o caráter formativo da literatura infantil e têm evidenciado a urgência de desenvolver
pesquisas que possam refletir sobre a leitura, o letramento literário e a literatura infantil no
cotidiano das classes de Educação Infantil e que produzam conhecimentos que ampliem as
discussões sobre a formação de leitores e a construção de competências literárias neste
segmento educacional: O Grupo de Pesquisa do Letramento Literário (GPELL) – do CEALE1
–, que discute os significados do letramento literário em três dimensões: o ensino, a pesquisa
1
O CEALE - Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita é um órgão complementar da Faculdade de Educação da
UFMG, criado em 1990, com o objetivo de integrar grupos interinstitucionais voltados para a área da
alfabetização e do ensino de Português. Fonte: site do CEALE. Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/o-
que-e-o-ceale.html. Acesso em: 01/01/2016.
22
Gostaria, também, de citar o curso de Magistério da Escola Balão Vermelho por ter
provocado uma mudança significativa no meu modo de entender o processo de
ensino/aprendizagem e também no meu modo de conceber o sujeito que aprende. A partir do
curso, foi possível reconstruir minhas representações de infância e devolver à criança seu
lugar de sujeito e autora do mundo. Saber que compartilhamos com nossos alunos, no
processo de ensino/aprendizagem, o papel de ator principal, e que é na relação viva com a
língua que a criança se faz sujeito, suscitou em mim novas reflexões e indagações que me
levaram a entrecruzar dois temas que passaram a ser o fio condutor de meus estudos: infância
e linguagem. Desde então, tenho me dedicado a desvendar o misterioso e fascinante mundo da
“criança-linguagem” e/ou da “linguagem-criança”.
Todas essas experiências somadas aos cursos de capacitação de professores das Unidades
Municipais de Educação Infantil, que tenho ministrado, instigaram a necessidade de refletir
sobre a importância da linguagem literária na primeira infância para, quem sabe, mostrar que
ler não é apenas uma atividade escolar mecânica e descontextualizada, mas uma atividade que
precisa, desde cedo, ser plena de significado.
Dessa forma, esta dissertação intenta pesquisar os livros infantis destinados às crianças de até
dois anos de idade, pois é desde o berço que começa a formação do leitor. São muitas e
variadas as produções para essa faixa etária e diversas também suas propostas interlocutórias.
Esse recorte deveu-se às indagações e às inquietações acumuladas ao longo dos estudos
2
O NEPEI - Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e Educação Infantil foi criado no ano 2000 e, oo
longo de sua história, vem ampliando sua atuação por meio de projetos de ensino, extensão e pesquisa,
enfatizando a produção de conhecimentos relacionados às políticas públicas, às práticas educativas, à infância e
às famílias das crianças de zero a seis anos de idade. Disponível em
<http://www.fae.ufmg.br/nepei/pagina.php?page=quemsomos> (Acesso em 01/01/2016).
23
possibilitados pelo grupo de pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância - LEPI. Eis
algumas das indagações que surgiram das discussões do grupo: “Podemos chamar os livros
para bebês de literatura? ”, “Essas obras pertencem a quais gêneros discursivos? ”, “Esses
livros possibilitam experiências literárias e estéticas aos bebês? ”.
O primeiro capítulo expõe as propostas das políticas públicas para o incentivo da leitura
literária nas escolas, as produções teóricas sobre a importância formadora da literatura para as
crianças e a situação dissonante entre essas ações e teorias e o que atestam as pesquisas
acadêmicas sobre o assunto. As limitações na formação dos professores são outro aspecto
abordado e que impacta diretamente o trabalho sistematizado com os textos literários nas
instituições de Educação Infantil.
de vida. Hunt, Nodelman, Sosa são os autores escolhidos para articular o debate sobre as
diferentes abordagens a respeito do tema.
O quarto capítulo busca aclarar as especificidades dos livros produzidos para bebês, fazendo
uso das ideias apresentadas por Bernardo sobre a ficcionalidade do mundo. Tendo como
pressuposto o caráter multimodal de nossos discursos, o que nos habilita a criar realidades
diversas através de diferentes expressões simbólicas, as obras oferecidas para as crianças de
até dois anos de idade podem oferecer jogos, imagens, brincadeiras e narrativas que poderão
ou não ampliar suas experiências estéticas.
O sexto capítulo analisa o corpus dos livros para bebês a partir das ofertas existentes no
mercado editorial brasileiro e internacional e cria algumas categorias para essas obras. A
partir da análise das obras procuramos construir subsídios que nos possibilitem afirmar ou não
a existência de uma literatura para bebês.
Deito sobre o papel vazio a minha aranha-de-prata. Ela espicha, encolhe, alonga as agulhas.
Fica em silêncio esperando o desejo de tecer acontecer. Ela sabe que é preciso coragem para
povoar um papel em branco. Parece que a aranha precisa de muito silêncio para exercer sua
trama. Precisamos de poderosa paciência para desenrolar o novelo.
Bartolomeu Campos de Queirós
Entretanto, o trabalho com a leitura literária na Educação Infantil tem se apresentado de forma
ainda bastante incipiente. Programas e ações3 de incentivo à leitura têm sido orquestrados e
muitos teóricos têm produzido estudos sobre a importância formadora, dialógica e
emancipatória da literatura. Autores como Paulino (2007), Zilberman (2006), Cosson (2006),
Colomer (2007), Cademartori (2009), Chapela (2011), Reyes (2010), Cândido (2012),
Queirós (2012), são importantes referências desse trabalho. Existe, contudo, uma situação de
dissonância entre o que propõem as políticas públicas e as ações da sociedade civil em prol da
leitura e o que apontam os estudos teóricos acerca da importância de assegurar, desde o início
da escolarização, o acesso a práticas de leitura literária.
O contato com materiais da cultura letrada deve ser um direito de todas as crianças, pois é um
dos bens culturais com o qual elas convivem desde o nascimento e que desperta a sua
curiosidade e a vontade de desvendar seus mistérios. Mas como disponibilizar esse
patrimônio cultural às crianças sem a preocupação central de ensinar as letras, lançando mão
de uma pedagogia reducionista, e construir as bases para que as crianças possam participar
plenamente de um universo cultural complexo em que a escrita aparece como mediadora de
valores, normas, conhecimentos e sentimentos? A aprendizagem da leitura e da escrita deve
ser um ato de “apropriação, isto é, um ato de tornar próprio, de incorporar e com isso
transformar aquilo que se recebe” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67).
3
PNBE - Programa Nacional Biblioteca na Escola, Processo de avaliação dos livros infantis e juvenis pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil -FNLIJ, Programa Bebelendo, Feiras Literárias e outros.
26
Para Vigotski (1995) o homem se constitui como tal através de suas interações sociais. Assim,
ele é visto como alguém que transforma e é transformado pela cultura na qual está inserido.
Podemos inferir então que o bebê4, desde que nasce, é ativo em suas ações para compreender
o mundo e, também, para se fazer compreender. São essas ações dialógicas com o seu entorno
que vão construindo o seu ser e estar no mundo e, consequentemente, sua subjetividade.
Ainda na perspectiva vigotskiana, temos que considerar que o desenvolvimento das funções
intelectuais especificamente humanas é mediada socialmente pelos signos e pelo outro. Dessa
forma, não podemos desconsiderar o papel da linguagem como um eixo que perpassa todos os
outros conhecimentos e experiências infantis.
A linguagem verbal é um importante mediador entre a criança e o mundo, mas não podemos
reduzir a produção de sentido e de significação do mundo pelas crianças apenas às formas
linguísticas, como se elas pudessem dar conta de toda a complexidade de representação do
real. Há uma região de mistério que deve ser reconhecida e afirmada em que a linguagem
verbal humana talvez, não se sabe, nunca saberá “conhecer, reconhecer e comunicar tudo
4
A definição da faixa etária que compreende os bebês é apresenta certo grau de arbitrariedade e, por isso, não
encontra consenso entre os teóricos e estudiosos do assunto. Há autores, como Barbosa (2010) e Chapella
(2010), que consideram bebês o ciclo de vida que vai do nascimento até os dezoito meses de vida. Outros, como
Bonnafé (2008), Golse (2007) e Stern (1992) utilizam o recorte etário compreendido do nascimento até os vinte
e quatro meses. Na presente pesquisa adotamos a categorização de Bonnafé e partidários.
27
Nessa perspectiva, oferecer literatura às crianças desde a mais tenra idade é colaborar para
interações de qualidade e para o seu desenvolvimento cultural, uma vez que a literatura é um
compêndio histórico, social e cultural da humanidade e nela podemos ver materializadas todas
as nuances do ser humano.
não lhes permitimos ir ao encontro de seus rastros para revivê-los e lhes dar outros contornos?
Como pedir aos professores que auxiliem as crianças a encontrar a própria voz, se não lhes
possibilitamos ser autores de suas próprias histórias? Como fazer com que as crianças tenham
prazer em ouvir histórias e possam usufruir da língua sem artificialismos, se eles não
passaram pela experiência de se tornarem leitores de literatura e por isso carecem do
entendimento do exercício de liberdade e de hospitalidade oferecidos pelos textos literários?
Somos feitos de palavras, de histórias, de canções, de poemas, de sons da nossa infância aos
quais não damos importância ou talvez nem saibamos que existem. Nosso percurso consta de
um emaranhado de textos que vamos colecionado pela vida: o refrão de uma música, canções
de ninar, novelas, filmes, frases impactantes que sabemos de cor, uma parábola, um conto de
terror, fragmentos de poemas, um ditado popular, histórias em quadrinhos, fotonovelas e
muitos outros mais. Esses textos vão se misturando às nossas vidas e vão dialogando uns com
os outros a tal ponto que perdermos a consciência dos diferentes discursos que trazemos
guardados em nossa biblioteca íntima. Ninguém, por mais árida que tenha sido a vida, não
vivenciou a experiência de ouvir e/ou contar histórias. Não existem pessoas sem um caminho
leitor!
Esse fluxo ininterrupto da história no qual transitamos entre o coletivo e o particular permite
nos reconhecer e nos diferenciar por meio de um diálogo constante com as páginas da cultura.
É nesse diálogo que reconhecemos a justificativa para aprofundar nossos estudos sobre a
literatura infantil desde a mais tenra idade. A inserção das crianças na cultura e sua recorrente
humanização dá-se por meio dos processos de significação nos quais elas veem
transcodificados seus atos biológicos em eventos culturais. A palavra literária (re) apresenta a
30
Ainda recorrendo a Benjamin (2012), não há como nos esquivarmos de pontuar que o autor
define a linguagem como o gesto do som e, por isso, a considera como anterior ao som. Para o
filósofo, as palavras nascem do corpo e vão, aos poucos, dele se despregando e se
transformando em signos arbitrários. Dessa forma, Benjamin alia a expressividade da palavra
à sua gênese corporal. Dialogando com o autor alemão, Furlan (2004) também dá à dimensão
corporal um especial lugar para a construção de nossos registros dos sentidos vividos.
Sabendo da importância das práticas linguísticas como fundantes do comportamento humano,
o autor chama a atenção para o caráter transcendente do ser humano, que não pode ser
reduzido apenas às organizações linguísticas de sentido. A linguagem verbal é um veículo de
desdobramento dos sentidos que damos ao mundo, mas não podemos nos esquecer de que ela
só tem essa função por ser um prolongamento da expressão do corpo. Mais adiante
retornaremos a esse assunto; por hora, é importante salientar que as ideias apontadas por
Benjamin (2012) e Furlan (2004) nos interessam por ser nosso objeto de estudo as crianças
que ainda não usam a linguagem verbal como meio primeiro de expressão.
Além dos problemas relacionados às lacunas na formação dos professores no que concerne ao
trabalho com a literatura, podemos acrescentar a dicotomia que existe entre o educar e o
cuidar nas classes de crianças de zero a três anos de idade. Apesar de fazer parte da educação
básica, as crianças dessa faixa etária ainda vivem em situação de invisibilidade. A gênese do
surgimento da creche na Modernidade faz com que o trabalho nesta etapa de vida da criança
ainda seja muito pautado no cuidado e na assistência, o que dificulta, e até mesmo impede,
que os professores entendam essa criança como sujeito histórico que dialoga com seu meio
31
Verificamos que as pesquisas acadêmicas em Educação tendo como objeto de estudo os bebês
são realmente escassas e começaram a acontecer no ano de 20026. A própria gênese do espaço
destinado às crianças de até três anos de idade é capaz de elencar inúmeros fatores que
atestam essa exígua produção acadêmica. As consultas feitas utilizando a palavra-chave
“creche” e o assunto “educação” evidenciaram noventa e sete pesquisas que, em sua maioria,
discutem temáticas relativas às propostas curriculares, à formação docente, à interação
criança/adulto, à relação família/escola e ao brincar na creche. Dentre todos esses estudos
identificamos apenas duas investigações que abordam o assunto da literatura para crianças, o
que corrobora a nossa afirmativa sobre a escassez de investimentos acadêmicos na área da
Educação que tenham os bebês como objeto de estudo. Desses dois trabalhos, apenas um se
dedica a cruzar os temas bebês e literatura. Esse achado vem reafirmar a nossa hipótese sobre
o desconhecimento do caráter formador da literatura e, também, das capacidades dos bebês
em atribuírem sentidos e significados através dos textos literários, bem como as concepções
que ainda estão em voga sobre os bebês como seres passivos que apenas absorvem as
informações que provêm de seu entorno sociocultural.
5
BRASIL. Lei nº 9394/96 - 20 dez. 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Diário
Oficial, Brasília, 23 dez. 1996.
6
Referência da pesquisa: STAHLSCHMIDT, Ana Paula Melchior. A canção do desejo: da voz materna ao
brincar com os sons, a função da música na estruturação psíquica do bebê e a sua constituição como
sujeito. Tese de doutorado em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2002.
32
Ainda que não tenham uma grande representatividade, as pesquisas acadêmicas que tomam os
bebês com objeto de estudo têm aumentado nos últimos anos, o que mostra uma mudança de
postura frente aos interesses e perspectivas das instituições de ensino superior brasileiras. Os
bebês estão saindo da invisibilidade e estão se afirmando como cidadãos do mundo.
Encontramos, também, Trabalhos de Conclusão de Curso7 que investigam temáticas
relacionadas aos bebês e à literatura. Esses dados evidenciam o crescente interesse dos
estudantes em explorarem a gênese da construção de nosso caminho leitor e mostram o
quanto são recentes essas discussões nas universidades de todo o Brasil. Esse cenário é um
potencial indicador dos debates vigentes nas faculdades de educação brasileiras. Os bebês não
estão mais à sombra das discussões acadêmicas e das resoluções das políticas públicas.
Mesmo sem serem falantes, no sentido convencional da palavra, eles estão ocupando seu
lugar social e se fazendo partícipes da coletividade.
Verificamos, pelos estudos acima citados, que o bebê passivo e receptor de cuidados está
cedendo lugar para um sujeito ativo que participa dos processos comunicativos, partilha
significados e constrói conhecimentos em um contexto social, cultural e afetivo.
7
Em pesquisa feita no Google Acadêmico utilizando as palavras “bebês” e “literatura infantil” no intervalo de
2002 a 2015 encontramos cinco Trabalhos de Conclusão de Curso que se dedicaram a investigar diferentes
relações entre os bebês e o texto literário: e Fernandes (2010), Luiz (2013), Furtado (2014), Nascimento (2014) e
Lambertucci (2015).
33
Além disso, já é consenso entre as ciências que estudam a criança que a etapa de maior
desenvolvimento cerebral e, consequentemente, de maior aprendizagem, é a que corresponde
ao período de zero a três anos. As conexões possíveis no cérebro do bebê são muito maiores
do que as que acontecem no adulto. Isso se deve à presença de um número superior de
neurônios e à plasticidade que o cérebro infantil apresenta quando comparado à arquitetura
cerebral adulta. Outros estudos, como pesquisas sobre o desenvolvimento sócio-afetivo da
criança, mostram que o bebê está apto e ávido para aprender, e que a aquisição de
conhecimentos é essencial para seu desenvolvimento e para a conquista da autonomia.
[...] mesmo sem ter consolidado a linguagem oral, ele estabelece relações
ricas e variadas com seus pares (Rossetti-Ferreira el al., 2003; Pedrosa;
Carvalho, 2004), mostra-se sensível às diversas manifestações afetivas do
ambiente cultural, onde, gradativamente, se insere (cf., por ex, Wallon, 1971;
Tomasello, 2003), compartilhando as atenções e emoções que sente (Bussab
et al., 2007) por meio de expressões fisionômicas, gestuais, vocais, posturais
e rítmicas que traduzem a sua comunhão interpessoal e as suas disposições
internas para o encontro social, desde o comecinho da vida (RAMOS &
ROSA, 2012, p. 18)
A promulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil no ano de 2009
colaborou para o incremento das produções acadêmicas que se dedicam a estudar os bebês e
toda a classe de fenômenos que os circunscrevem.
fundamental do debate curricular, uma vez que é através de diferentes linguagens que a
criança se constitui como sujeito e constrói a realidade na qual está inserida. A literatura
infantil seria, assim, uma dessas formas de expressão com as quais as crianças da Educação
Infantil deveriam interagir. De acordo com Antonio Candido (2012), seria o texto literário
uma das principais linguagens uma vez que ele
Reyes (2012) concorda com Candido no que se refere ao caráter de humanização da literatura,
mas afirma que falar de literatura para bebês exige contexto porque sabe que essas crianças
não leem, no sentido convencional da palavra. Entretanto, o fato de não serem leitores
autônomos não pode ser impedimento para que se ofereça o texto literário aos bebês, pois a
leitura faz parte das ações de interpretação e de produção de sentido nas quais o ser humano
se engaja desde seu ingresso no mundo simbólico. Assim, inserir a literatura na vida da
criança desde seus primeiros dias de vida é mais que entregarmos a ela um código verbal, é
oferecer um passaporte para lidar com valores e juízos, com seus pesadelos e sonhos, com a
construção de sua história pessoal calcada no diálogo com a história dos outros, com a história
de todos nós. A criança e a literatura habitam o mesmo território e, por isso, a familiaridade
com o modo de combinar e recombinar as mensagens e as cifras de cada uma delas é terra
fértil para se chegar a mundos insuspeitáveis e distantes. É um lugar de possibilidades
invisíveis que dão subsídios à criança para iniciar de forma consistente seu percurso de vida.
A pesquisa de Abrantes (2011) corrobora as ideias apresentadas acima, uma vez que o autor
declara que o texto literário é imprescindível na Educação Infantil. De acordo com o
pesquisador, a literatura infantil permite à criança se relacionar com formas de conhecimento
acumuladas historicamente e se emancipar de ideologias que as cegam e as tornam dóceis e
obedientes. Por meio da análise de obras foi possível a Abrantes identificar que uma mesma
sociedade que produz livros de qualidade duvidosa e com posicionamentos que privilegiam a
passividade das crianças, capturando uma construção de subjetividade para a passividade,
também é passível de elaborar produções que antagonizam com essa posição, privilegiando o
questionamento, o inconformismo contra injustiças e revelando contradições inerentes ao
35
Ainda tendo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil como provocadoras
de novos olhares, inquietações e investimentos acadêmicos na área da infância, vemos
emergir pesquisas que têm como objeto de estudo as crianças e a literatura. Os trabalhos de
Marchesano (2010), Tendeiro (2011) Avelino (2012) e Silva (2012) são exemplos de
pesquisas que vão na contramão do entendimento equivocado do texto literário como um
“instrumento” de aperfeiçoamento linguístico e modelador de comportamentos. Ao contrário
das práticas de ler literatura com o objetivo de ensinar letras, palavras, conteúdos curriculares
e morais, as autoras afirmam que os livros de literatura devem desafiar e encantar as crianças
e convidá-las a se expressar de maneira livre e inusitada. As referidas pesquisas são realizadas
na pré-escola e dão aos professores significativa importância, pois os concebem como
mediadores da palavra poética para aqueles e aquelas que ainda não leem convencionalmente.
À diferença das pesquisas que ocorreram após a publicação das DCNEI8, Tussi (2008)
anuncia o frutífero campo de pesquisa na área da literatura para a primeira infância. Em
“Leitura na infância inicial: uma intervenção precoce de leitura”, a autora investiga a gênese
da formação leitora das crianças dando especial atenção à função maternante para o início
desse percurso e atesta que a qualidade dessas interações influencia diretamente o repertório
de experiências dos bebês.
8
DCNEI é a sigla para Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
9
O projeto “Bookstart” “teve início em Birminghan, em 1992, envolvendo trezentos bebês, atualmente
contempla mais de dois milhões de crianças e seus familiares e dividi-se em duas partes. A primeira consiste na
distribuição de três pacotes de livros e orientação, que, de acordo com a faixa etária da criança, são denominados
de “Bookstart pack for babeis” e “Bookstart + pack for toddlers” e mais “Bookstart Tresure Chest”” (TUSSI,
2008, p. 84). Para maiores informações sobre o projeto consultar o site www.bookstart.co.uk.
36
Além disso, a autora declara que a descoberta de que os bebês nascem prontos para interagir
socialmente e de que a qualidade dessas interações possibilita transformações na estrutura e
na função do cérebro que estão intrinsecamente ligadas ao pleno desenvolvimento dessas
crianças, também foi uma mola propulsora para a elaboração de seu estudo. Os sujeitos de sua
pesquisa foram os bebês, seus cuidadores e professores e a finalidade da investigação se
centrou em examinar se as interações e práticas orais de leitura são capazes de aproximar as
crianças da literatura e, num momento posterior, do livro e transformá-las em leitores.
O livro Programa Bebelendo – uma intervenção precoce de leitura, em parceria com Tânia
Rösing e publicado pela editora Global, é fruto dos desdobramentos dessa pesquisa. No livro
as autoras afirmam, com base em estudos de teóricos da infância, que as ações de incentivo à
leitura devem ser iniciadas ainda intraútero e que a estimulação dos bebês por meio da
literatura oral, como, cantigas, parlendas e trava-línguas, reforça os vínculos afetivos e
promove o desenvolvimento cognitivo.
As dissertações de Guimarães (2011), Mattos, (2013) e Serra (2015) trazem também os bebês
à cena das interações iniciais de leitura. Mattos desenvolve sua pesquisa em uma creche na
cidade do Rio de Janeiro, procurando conhecer e analisar as práticas de leitura literária para e
com as crianças de até três anos de idade. Dentre as várias contribuições que a pesquisadora
fornece à nossa pesquisa, gostaríamos de salientar a importância do gesto, do olhar, do corpo
e da voz na configuração das formas de ler para crianças de tão pouca idade. Todavia, são
também esses mesmos gestos, olhar e balbucios, o corpo, enfim, que os bebês usam para dar
sentidos e significados às suas experiências. Essas questões serão analisadas mais
detalhadamente no curso dessa dissertação.
37
Assim como Mattos, Guimarães se debruçou sobre as práticas pedagógicas de leitura literária
com crianças da creche. Todavia, a autora ateve-se a investigar uma sala de berçário. Em sua
pesquisa foi possível perceber que, tanto no manuseio do livro como na escuta de narrativas
produzidas pelas professoras, as crianças produziram modos singulares de uso e de leitura dos
livros. Suas apropriações, usos e significações escapam às regras das práticas de leitura dos
adultos. Morder, dobrar, lamber, cutucar, “ver” com as mãos, “entender” com a boca são,
muitas vezes, as primeiras experiências de leitura de crianças de tão pouca idade. A pesquisa
de Guimarães vem também corroborar uma das ideias centrais defendidas em nossa pesquisa:
o corpo dos bebês é um caminho para semantização, semiotização e simbolização do mundo.
Os editores, em contraponto, observam que a categorização por faixa etária é algo necessário
para atender às exigências do mercado. Verificamos não haver um consenso entre escritores e
editores no que concerne à caracterização dos livros de literatura destinados às crianças. Esses
são apenas alguns exemplos de embates e perspectivas apontados por Serra.
O que pode haver de “para crianças” ou “para jovens” numa obra deve ser
secundário e vir como acréscimo, porque a dificuldade de um texto capaz de agradar
a leitores crianças ou jovens não provém tanto de sua adaptabilidade a um
destinatário, mas, sobretudo, de sua qualidade, e porque quando falamos de escrita
de qualquer tema ou gênero o substantivo sempre é mais importante que o adjetivo.
(ANDRUETTO, 2012, p. 61)
Além disso, existe no imaginário e no saber de muitos autores e editores de livros infantis a
concepção de que a literatura infantil é algo inocente que diverte e brinca. Para eles a
literatura infantil não pode ser algo que desacomoda, que incomoda, pois as agruras e
39
desventuras da vida não fazem parte do universo infantil. Mas não estão as crianças inseridas
na vida? E por acaso não fazem parte da vida as tristezas, as alegrias, os percalços, o sucesso,
o insucesso, a vida e a morte? Vivemos uma espécie de paradoxo porque enquanto alguns
autores e editores de livros trabalham sobre o viés supracitado, vemos muitos artistas, autores
e editores criando livros que rompem com essa perspectiva e que consideram como público-
alvo tanto as crianças como os adultos.
Os livros ilustrados infantis, na era atual, gozam de um status de gênero cultural para
ser apreciado por pessoas de todas as idades. É uma arte preciosa e versátil o que já
deixou os limites do papel para trás, quebrando os limites de seu próprio gênero, e se
fundindo com várias outras formas de arte e de imaginário. (CJBook apud
SALISBURY; STYLES, 2013, p. 113)
Essas diferenças de comportamento dos autores e editores trazem em seu bojo visões de
infância e criança que são resultado de construções históricas e, por isso, variam com o tempo
e de acordo com a cultura. Assim, nenhuma publicação infantil é neutra, e carrega em sua
produção o entrecruzamento dos olhares e das concepções de autores, de ilustradores e de
editores nos modos de ver e entender a criança. Hoje, o mercado editorial apresenta uma
variada produção de livros de literatura infantil. Por um lado, pode-se encontrar publicações
que dão ênfase às narrativas de caráter instrucional e utilitário ou que colaboram para a
construção idílica da infância; como diz Paulino (2007) “[...] traindo a polifonia assumida,
própria da enunciação literária, diversos autores se tornam tutores, e querem ensinar,
mostrando um caminho aos pequenos que leem seus textos” (p. 15). Para outro grupo de
autores, designers, ilustradores e editores, o que vem primeiro é a literatura, como o punctum
de Barthes, que aloja em nossa memória, que nos interroga e continua nos interrogando ao
longo dos dias, dos meses e dos anos.
Nutridas e embasadas por lentes teóricas que consideram os bebês como sujeitos que se
constituem na linguagem e que por meio dela subjetivam e compartilham suas experiências,
buscamos aproximações com o universo infantil. Sujeitos que são produtos e produtores de
cultura e que, na troca de experiências com o os outros e com o meio, constroem suas
singularidades. Lentes que consideram a infância como um acontecimento e, por isso,
superam as visões etapistas e infantilizadoras geradas através da história, mantidas por muitos
meios culturais e cultuadas por muitos pais e educadores.
40
Analisar as publicações literárias para bebês apresenta-se como um grande desafio, uma vez
que as crianças dessa faixa etária estão dando os primeiros passos rumo à ordenação do
mundo. A abstração tão necessária para que as crianças possam criar outros mundos em
outros tempos e espaços, característica do texto ficcional, ainda não está garantida para esta
faixa etária e isso acarreta diferenças singulares nas publicações para esse público. Podem
esses livros receberem o selo de literários? Podem os bebês produzir sentidos em contato com
narrativas ficcionais?
Estudiosos como Montes (2001), Goulart (2005), Cosson (2006), Colomer (2007), Paulino
(2007), Cademartori (2010), Corsino (2014), Lòpez (2010), Candido (2012), Chapela (2011) e
Reyes (2010, 2012) enfatizam a importância do trabalho com o texto literário e da experiência
dos bebês com a literatura e ressaltam que essa bagagem histórica, social e cultural transcende
o uso utilitário da linguagem e transmite uma experiência estética.
Se todos passamos pela infância e se está demonstrado que o que se constrói nesses
anos implica qualidade de vida, oportunidades educativas e, por consequência,
desenvolvimento individual e social de cada indivíduo, “oferecer leitura” às crianças
menores pode contribuir para a construção de um mundo mais equitativo,
propiciando a todos as mesmas oportunidades de acesso ao conhecimento e à
expressividade desde o começo da vida. (REYES, 2010, p. 16)
Essas concepções acerca da oferta da leitura literária desde a mais tenra idade despertaram-
nos para a necessidade de conhecer a produção literária para os bebês. Ao nos debruçarmos
sobre as obras literárias destinadas às crianças de até dois anos de idade para construir o
acervo de livros da Bebeteca, pudemos constatar um crescimento substancial no número de
publicações dirigidas aos bebês e o surgimento de editoras especializadas na produção de
títulos que contemplam essa faixa etária. Além disso, a produção é muito diversificada e
abarca livros de imagens, pop-ups, livros sonoros e com adereços, texturas e cheiros, livros
com quebra-cabeças, contos de fadas e contos contemporâneos, livros com fantoches, livros
de pano e de plástico e muitos outros. As propostas interlocutórias são múltiplas, o que
complexifica e dificulta o enquadramento desses livros dentro do que conhecemos como
literatura. Essa experiência suscitou alguns questionamentos: podemos chamar de literários os
livros destinados a bebês? O que podemos chamar de literatura para bebês? Os livros para
crianças bem pequenas vão ao encontro de suas particularidades ou banalizam e reduzem suas
potencialidades? Quais as concepções de criança e infância que alicerçam a produção editorial
para essa faixa etária? Quais são os gêneros discursivos presentes na produção editorial para
41
crianças de zero a dois anos de idade? Como estão classificados os livros de literatura para
essas crianças? A que proposta de formação eles respondem: utilitária e didática ou expressiva
e estética?
Os livros de literatura infantil são, para muitos autores e ilustradores pensados considerando-
se seu destinatário. O leitor é antecipado virtualmente e uma série de requisitos são
vislumbrados no momento da produção: desenvolvimento biológico, conhecimentos prévios,
particularidades existenciais e cognitivas que vão explicitar um aspecto comum da condição
infantil: uma geração desprovida de autonomia e dependente dos cuidados dos adultos. E é
nesta característica geracional que intentamos ancorar nossa pesquisa: Existe uma literatura
para bebês? Como podemos conceituar a literatura para bebês sem abandonar as
especificidades dessa faixa etária ou reduzir as potencialidades destes na construção de
sentidos?
“O Sr. Sengupta não dava confiança para Haroun, mas estava sempre conversando com
Soraya, coisa que Haroun não gostava, especialmente quando o sujeito começava a criticar
Rashid, o contador de histórias. [...] ‘esse seu marido, me desculpe falar, vive no mundo da
lua. Afinal, o que são essas histórias todas? A vida não é um livro de histórias, nem uma loja
de piadas. Todo esse divertimento vai acabar mal! E pra que servem as histórias que nem
sequer são verdades?’”
Salman Rushdie
No que compete à produção literária para crianças, vemos emergir um mosaico de linguagens
e suportes que se entrelaçam. Vivemos hoje um constante processo de criação de novos
símbolos e uma agregação de novos conhecimentos em um movimento de incessantes
transformações. A literatura vem se inserindo em múltiplos lugares e conversando com outras
linguagens; o livro já não é mais o único habitat do texto literário e essa transformação altera
nossas referências sobre o que entendemos por literatura.
A solidez de nossas certezas e os valores, normas e modos de ser e estar no mundo, antes
firmes e inabaláveis, cedem lugar para outras formas de viver e conhecer. Segundo Bauman
(2001),
Essa noção de fluidez fica evidente quando tomamos nas mãos os livros de literatura infantil.
Hoje há uma grande gama de publicações para crianças que, além de diferentes gêneros,
oferece uma sinestesia, ao mesmo tempo em que amplia a apreensão dos significados do
texto. Segundo Hunt (2010), a falta de pureza genérica talvez seja um dos traços mais
característicos da literatura infantil. Quem sabe isso ocorra porque a literatura infantil dialoga
com as diferentes e libertárias formas de apropriação do mundo pelas crianças. Podemos
pensar ainda que a adaptação, a criatividade e a multirreferência dos textos literários
43
A singularidade dos livros de literatura infantil tem motivado o estudo e a reflexão de pessoas
procedentes de diversas áreas do conhecimento. Quando colocamos em cena os livros
produzidos para os bebês, vemos surgir muitas outras inquietações. Do ponto de vista
literário, a literatura infantil parece trair a literariedade e o estatuto ficcional dos textos em si
mesmos. Com o abalo de nossas sólidas certezas provocado pela confluência dos fluidos que
respingam, transbordam e vazam, podemos dizer que literatura infantil tem o mesmo status da
outra literatura? Antes, contudo, precisamos responder a outra pergunta: a literatura entendida
como arte é conceito possível de ser definido?
Segundo o autor (2012), a arte tem um caráter transcultural e trans-histórico, ou seja, muitos
objetos que consideramos hoje como obras de arte, não o foram em épocas passadas por não
possuírem nenhuma intenção estética no ato de sua criação; e muitas obras que consideramos
como artísticas podem ter outras funções em culturas diferentes. Isso quer dizer que a arte
como objeto estético é algo situado no tempo e no espaço. Assim, pensar em um conceito de
literatura é dar valor às representações que foram forjadas em determinados tempos históricos,
mas é também procurar o que persiste na mudança. Nesse território escorregadio em que
obstáculos são contornados e em que certezas são diluídas, há lugar para elementos comuns
que podem conceituar um texto como literário? A literatura existe?
44
Prades10 instiga mais a discussão sobre a literariedade dos livros de literatura infantil ao
afirmar que
Existem alguns critérios mínimos a partir dos quais a literalidade de um texto pode
ser identificada, por mais simples que seja. No campo do livro para crianças e
jovens, assim como no campo dos livros para adultos, nem tudo que se produz como
literatura passa por uma análise um pouco mais aguçada. Nesse sentido, falar em
“livros” para crianças e jovens se aproxima mais da amostra diversa da produção
atual, onde os textos literários têm o seu lugar.
Em texto em que discute, entre outros assuntos, a identidade da literatura infantil, Hunt (2010)
argumenta que os valores e a literariedade que conformam a literatura não podem ser
aplicados nem sustentados para os livros destinados a um público com “experiência,
conhecimento, habilidades e sofisticação limitados” (p. 287). No lugar da expressão
“literatura infantil” ele sugere que seja usado “textos para crianças” admitindo sentidos muito
flexíveis para as três palavras. O autor salienta que a palavra “textos” deve abranger e
significar qualquer forma de comunicação, pois um dos traços da literatura infantil é a
liberdade de transitar por várias linguagens. Além disso, o livro, os desenhos animados, as
séries de TV, os filmes, os CDs, as pinturas são todos parte do que por redução chamamos
“texto”.
O livro destinado às crianças já em sua criação faz alusão à tendência de congregar várias
mídias. É o que nos revela A Little Pocket Pretty-Book,11 de 1744, escrito por John Newbery.
Essa obra é considerada como o primeiro livro dirigido para público infantil e se caracteriza
10
PRADES, Dolores. “Livros sem idade”. Disponível em:
<http://www.publishnews.com.br/materias/2012/10/15/70702-livros-sem-idade> (Acesso em 20/12/2015).
11
NEWBERY, John. A Little Pocket Pretty-Book. Disponível em: < http://www.bl.uk/collection-items/a-
pretty-little-pocket-book> (Acesso em: 20/12/2015)
45
por conter rimas simples referentes a cada letra do alfabeto. Ela poderia, hoje, ser
caracterizada como um livro multimídia, pois combina sons, imagem e texto verbal. Assim,
seria correto aceitarmos as sugestões de Prades e Hunt, ou melhor, nos debruçarmos sobre a
construção de outras vias para o entendimento do texto literário para as crianças? Os livros
destinados aos bebês e crianças de até dois anos de idade deixam de ser literatura?
A compreensão dessa nem tão nova realidade exige que revisitemos alguns conceitos e teorias
a respeito do que é literatura, a fim de tentar abarcar e interpretar de uma maneira mais ampla
e profunda essas novas produções. Chamar as coisas pelo que são e classificá-las é o intento
humano de captar e entender o mundo e caracteriza a ação do homem no esforço de dominar a
natureza.
Em seu livro Outras inquisições, Borges (2007), em um ensaio intitulado “O idioma analítico
de John Wilkins”, reitera a ação do homem em classificar e categorizar todas as coisas que o
cercam e o quanto estas ações são arbitrárias, conjecturais e, por isso, efêmeras. Citando uma
remota enciclopédia chinesa – “Empório celestial de conhecimentos benévolos”- a qual
apresenta uma classificação dos animais terrestres em:
12
BERNARDO, Gustavo. “O que é um conceito”. Revista Eletrônica do Vestibular. Rio de Janeiro. n. 22, ano
8. 2015. Disponível em: <http://www.revista.vestibular.uerj.br/coluna/coluna.php?seq_coluna=79> (Acesso em
10/11/1015).
46
necessário construir uma nova armadilha mais forte e elaborada para conter novamente a
presa.
Nesse caminho pensante, errante e efêmero, existe algum traço distintivo que configure a
essência da literatura? O que persiste na mudança? Como conceituar e classificar os livros
para bebês? Podemos enquadrar no corpus do literário as produções destinadas a essa faixa
etária?
Para muitos autores não restam dúvidas sobre a existência da literatura e sobre a importância
da arte de narrar para a constituição do ser humano. Muitos deles têm argumentos consistentes
para situar a literatura, tomando as palavras de Candido (2012), como “um direito humano”.
Para esse estudioso, a literatura situa-se como uma das necessidades profundas do ser
humano, como a alimentação, a moradia e a educação, e que não pode “deixar de ser satisfeita
sob pena de desorganização pessoal ou pelo menos de frustração mutiladora” (p. 174). Na
esteira da função humanista dada por Candido à literatura, Barthes (2007) considera a
literatura um locus onde podemos nos deparar com diversos conhecimentos que não são
verdades universais, mas que retratam muito sobre os homens. Para esses autores, a literatura
traz lugares diferentes de fala, o que possibilita o encontro com os outros e a construção da
alteridade.
Contudo, a discussão que se coloca não é sobre a literatura como agente formador do humano
e, sim, sobre a natureza de seu estatuto de discurso que tem como característica a subversão
da língua e uma maneira libertária de olhar para as coisas do mundo.
Pensando sobre a perspectiva de Candido (2012) do que, para ele, é literatura, percebemos a
inserção de uma diversidade de textos em sua conceituação.
47
Através do que salienta Jouve (2012) sobre o caráter datado da produção artística e tendo
conhecimento da produção literária para bebês e crianças menores de dois anos, a pergunta
persiste: existe uma literatura para esse segmento da infância? Podemos chamar de literários
os livros destinados a essas crianças?
Compagnon (2014) atesta que já Aristóteles, em sua Poética, levanta a questão da inexistência
de uma palavra para conceituar a arte que usa a prosa e o verso. O nome literatura, como
expressão estética da palavra, é relativamente novo - data do século XIX. Entretanto, o uso do
termo não se eximiu de problemas e nem conseguiu fazer com que houvesse uma
unanimidade sobre o que se entende por literatura. Compagnon (2014) traz uma pergunta que
talvez facilitasse e aliviasse essa tensão: “Quando é literatura” (p. 30)?
Antes de responder a essa pergunta, seria interessante reconstruir os caminhos que deram
origem ao termo. Nossas ideias atuais se assentam sobre substratos históricos que deflagram
modos diferentes de olhar para o mundo. Alguns olhares são complementares e outros
denotam cisões, mas em ambos podemos perceber o movimento que ilumina e reanima novos
conhecimentos.
Jouve (2012) faz uma breve incursão sobre as diferentes acepções do termo literatura ao longo
da história e diz que etimologicamente a palavra “literatura” vem do latim litteratura que
designa escrita, gramática e ciências, e essa palavra, por sua vez, foi forjada a partir de littera,
significando letras. Não é por acaso que no século XVI a palavra literatura era usada para
qualificar a erudição, mais exatamente a cultura do letrado. Assim, “ter literatura” era
sinônimo de muitas leituras, o que afiliava seus sujeitos à elite, já que as letras não eram algo
acessível a toda a população. No século XVIII, o conceito de literatura abrangia todo um
conjunto de obras valorizado pela sociedade: história, ciências, filosofia, poesia e ensaio. Não
era o fato de serem ficcionais que tornava os textos escritos literatura. Em meados deste
século, a arte da linguagem começa a se afirmar com o aparecimento de gêneros considerados
vulgares como o romance e outros gêneros em prosa. A diferença agora é que eram as obras
que faziam parte dos altos padrões de escrita e não mais os homens. Assim, fazer parte de um
corpus literário era ter uma prática de escrita de alto valor.
48
A ideologia por trás do conceito de literatura no século XVIII é melhor explicada por
Eagleton (2003):
A literatura, nesse período, não era algo relacionado à expressão pessoal ou ao sentimento
singular que muito se associa ao que dá escopo ao texto literário nos dias atuais.
Os anos finais do século XVIII assistiram a uma mescla de sentidos dados à literatura que
englobava tanto obras científicas, históricas e filosóficas, quanto os textos de dimensão
estética. Assim, as produções desse final de século tinham seu valor literário reconhecido, por
um determinado segmento da sociedade, tanto pela forma quanto pelo conteúdo.
(p.31). Isso comprova que ainda não há consenso entre o que atualmente se entende por
literatura.
A literatura como criação estética é algo relativamente novo. Segundo Eagleton (2003),
O que aconteceu em primeiro lugar foi uma limitação da categoria da chamada obra
“criativa” ou “imaginativa”. As últimas décadas do séc. XVIII testemunharam uma
nova divisão e demarcação dos discursos, uma reorganização radical do que
poderíamos chamar de “formação discursiva” da sociedade inglesa (p. 24).
Partindo de Aristóteles e chegando aos tempos atuais percebemos que o conceito de literatura
não é uma categoria objetiva e descritiva como o são a matemática e a biologia. Seus sentidos
são variáveis historicamente e, por isso, respondem a contextos e a ideologias vigentes.
Novamente recorremos a Eagleaton (2003) para elucidar o caráter histórico do termo
literatura:
Nessa mesma direção se situa o artigo de Belmiro e Maciel (2014): “Onde a literatura? Onde
os leitores? Onde a leitura? ”. Nele as autoras evidenciam, através do advérbio “onde”, as
incertezas e a falta de referências que nos atordoam e nos confundem na contemporaneidade.
Buscar um ancoradouro faz parte do nosso modo de ser e de estar no mundo. Como seres
sociais e culturais precisamos de um enraizamento para nos posicionar e poder entender o
mundo. A fluidez e a liquidez de Bauman (2001) são metáforas perfeitas para ilustrar o que
muitos teóricos denominam de pós modernidade: não há significados assegurados, vive-se na
superfície do caos em busca de forma. Segundo Belmiro e Maciel, nos dias atuais temos
muito mais perguntas a fazer do que respostas a dar. Afinal, além do “Onde está a literatura?
”, ficaremos com a pergunta “O que é literatura? ”, ou assumiremos a sugestão de Compagnon
(2014):o“Quando0é0literatura? ”.
50
O autor pontua que, para tecermos um paralelo entre a linguagem literária e a linguagem
comum, seria necessário que todos os falantes de um determinado idioma falassem uma só
língua. O que se vê no cotidiano são variações complexas de discursos diferenciados pela
classe social, pela região, pelo gênero, pela idade, pela situação comunicativa e outros que
não podem, de modo algum, ser unificados em uma homogênea comunidade linguística.
A seu turno, Bakhtin (2012) traça um caminho em que a linguagem, a vida e as significações
constroem-se nos eventos. A interdiscursividade, o dialogismo, a polifonia, o contexto, a
significação, o autor, a autoria, o estilo, o evento, a enunciação, os gêneros discursivos e
tantos outros são conceitos-chave da arquitetura bakhtiniana que encontramos na vida e nas
obras literárias. Como nos revela o próprio autor (2012)
Não existem aspectos linguísticos que sejam exclusivamente literários, por isso não há como
usar a distinção entre linguagem comum e linguagem literária para definir a essência da
literatura. De acordo com Compagnon (2014), a literariedade (o estranhamento) não resulta da
utilização de elementos linguísticos não usuais da linguagem cotidiana, mas de uma
organização diferente desses mesmos materiais. As formas literárias só se mostram diferentes
das outras formas linguísticas pela sua organização: “a literariedade não é questão de presença
51
de tudo ou nada, mas de mais e de menos (mais tropo, por exemplo): é a dosagem que produz
o interesse do leitor” (p. 42).
Entretanto, mesmo essa flexibilização do discurso literário provoca ainda alguns pontos de
insatisfação quanto à definição do que seja um texto literário. Eagleton (2003) observa que
outro ponto que deve ser analisado sobre a constitucionalidade da literatura é o fato de o texto
literário ser considerado um discurso não-pragmático, ou seja, um discurso que não tem uma
finalidade imediata. Contudo, em alguns casos, muitas obras literárias foram construídas com
o objetivo pragmático, como os “Sermões” de Padre Antônio Vieira. Como missionário
preocupado com a expansão do cristianismo, Vieira debruçou-se sobre questões polêmicas
que incluíam a teologia, a política, a vida social e os erros dos cristãos. Seus sermões ora nos
parecem extremamente contemporâneos, ora nos causam alguma estranheza pela distância
histórica de quando foram produzidos. Exemplo de desenvolvimento da literatura barroca no
século XVII, Padre Antonio Vieira não tinha nenhuma intenção que seus sermões fossem
considerados literatura e nem se obrigou a usar a linguagem dita culta como ele bem alerta
aos seus leitores:
Se gostas da afetação e pompa de palavras, e estilo que chamam culto, não me leias.
Quando este estilo florescia, nasceram as primeiras verduras do meu, que perdoarás
quando as encontrares, mas valeu-me sempre a clareza, que só porque me
entendiam, comecei a ser ouvido, e começaram também a ser os que reconheceram o
seu engano, e mal se entendiam a si mesmos. [...] Mas o meu intento não é fazer
sermonários, é estampar os sermões que fiz. Assim como foram pregados por acaso
e sem ordem, assim, tos ofereço, porque hás de saber que havendo trinta e sete anos
que as voltas do mundo me arrebataram da minha província do Brasil, e me trazem
pelas da Europa, nunca pude professar o ofício de pregador ordinário, por não ter
lugar certo, nem tempo 13.
Para nós leitores do século XXI, a linguagem usada causa estranheza e dificulta a construção
de sentido, pois as palavras e o modo de escrever diferem grandemente da natureza dos
gêneros atuais. O aspecto do não-pragmatismo é algo que não se aplica aos sermões de Vieira
e também o uso de uma linguagem “estranha” à linguagem cotidiana. Como seu objetivo era
admoestar os fiéis, refutar ideias colonialistas e escravagistas, fazer objeções à organização
social vigente, o discurso oral adotado tinha um propósito moralizante, didatizante e de
aplicações práticas. Outro ponto importante, atestado pelo próprio autor, é que a compilação
dos sermões em um livro foi algo feito a posteriori, indicando uma intencionalidade não
13
VIEIRA, Antônio. “Ao leitor” In: Sermões. Disponível em: < http://docplayer.com.br/11700297-Ministerio-
da-cultura-fundacao-biblioteca-nacional-departamento-nacional-do-livro-sermoes-padre-antonio-vieira-ao-
principe-nosso-senhor.html> (Acesso em: 15/12/2015)
52
literária de tais textos. Isso corrobora o que Eagleton (2003) afirma: “Alguns textos nascem
literários, outros atingem a condição de literários, e a outros a condição é imposta” (p. 12).
Nesse sentido, podemos pensar que é muito difícil isolar da constitucionalidade da literatura
algo que lhe seja inerente. A tradição literária, como bem observou Compagnon (2014), é um
sistema sincrônico de textos que se recompõem, e se atualiza à medida que novas formas de
expressão surgem e seu status de literariedade é conformado de acordo com o sentido e o
valor de cada época. Assim, Eagleton (2003) conjectura que a essência da literatura talvez não
exista, podendo qualquer fragmento de texto ser lido de forma literária ou não.
Um exemplo que merece destaque para ampliar a discussão sobre o caráter pragmático ou
não-pragmático da literatura é o livro Os problemas da família Gorgonzola escrito por Eva
Furnari. Premiadíssima autora de livros de literatura infantil, Eva Furnari (2001) apresenta
nesse livro os membros da família Gorgonzola, propondo para cada um deles um desafio
matemático. O livro é escrito em prosa, mas não possui uma sequência narrativa. A cada
página aparece um personagem da família Gorgonzola situado dentro de um contexto
problematizador que termina sempre com uma pergunta dirigida ao leitor. Este deve tentar
resolver o desafio proposto antes de passar para a página seguinte. A autora já inicia a história
com uma pergunta: O que você tem na cabeça? E afirma que o livro é um livro de problemas
matemáticos. E mais: quem se dispuser a resolver todos os problemas poderá saber, ao final,
“que tipo de cérebro boia dentro da nossa cabeça” (p.3). Para isso, exibe, também nessa
mesma página, quatro tipos de troféus e de cérebros que correspondem ao número de
respostas certas:
Fonte: Eva Furnari, 2001 Fonte: Eva Furnari, 2001 Fonte: Eva Furnari, 2001
Qualquer que seja o ponto ao qual nos atentemos para definir um texto como literário ou não,
este será sempre um julgamento de valor que inclui e exclui ao mesmo tempo, pois dizer que
um livro é literatura é, também, dizer que outro não o é. Essa dicotomia esteve e estará
presente sempre que tentarmos definir “O que é literatura”, uma vez que esse é um assunto
complexo e polêmico em que as variações de estilo literário se enraízam nas diferentes formas
54
Essas perguntas levam a uma dicotomia entre objetivistas e subjetivistas no que para eles
reside o valor estético. De acordo com Jouve (2012), o teórico da literatura francesa, Genette,
afirma que os textos podem ser considerados como literários se respondem a duas categorias
distintas: aqueles que obedecem às convenções, logo, fechados; e os que são tidos como belos
por apreciação estética subjetiva, logo, abertos. Os primeiros pertencem a um regime de
literariedade chamado constitutivo e o segundo ao regime condicional. Assim, um soneto, um
romance, uma peça de teatro, são constitutivamente literários. Por outro lado, gêneros
literários não reconhecidos podem agradar e, por isso, obedecem a normas condicionais,
dependentes dos indivíduos e das épocas. É o caso, por exemplo, dos “Sermões” do Padre
Antonio Vieira. Mas a quem cabe a eleição das obras ditas como constitutivas? Se um soneto
de Camões, uma tragédia de Shakespeare ou um romance de Flaubert fazem parte dos textos
considerados literários, é porque os princípios de escrita que eles contêm foram avaliados
14
ALKIMIN, Martha. “Ficções nossas de cada dia”. Disponível em:
http://www.confrariadovento.com/revista/numero9/ensaio03.htm. Acesso em: 13/01/2016
55
como belos e bons. Dessa forma, a literariedade constitutiva a eles atribuída é forçosamente
um juízo de valor. Por outro lado, nos alerta Jouve (2012), “a aplicação mecânica de regras
preestabelecidas nunca foi suficiente para gerar uma obra de arte” (p.32).
Eagleton (2003) elenca alguns critérios de constitucionalidade da literatura e tece uma análise
cuidadosa de cada um deles. O primeiro critério analisado é a distinção entre fato e ficção. Na
ficção os textos não devem ser lidos em comparação com a realidade e as ideias apresentadas
nos enunciados são de caráter fundamentalmente imaginativo. Já no fato são as circunstâncias
ou acontecimentos verídicos, ou que podem ser comprovados cientificamente. Todavia, essa
oposição entre verdade histórica e verdade artística é contestada por Eagleton, que observa
que o “Gênesis” pode ser considerado por cristãos fervorosos como uma narrativa
essencialmente verdadeira e por outros um mito original. Além disso, outros autores, como
Bernardo (2004), observam que a percepção da realidade é algo puramente representativo: por
maiores que sejam os esforços empreendidos nunca conseguiremos chegar à essência das
coisas, pois os nossos sentidos não nos habilitam a perceber o tempo15. Se isso fosse possível
nos facultaria apreender a realidade toda e acrescenta que “já que não existe essa
possibilidade, criamos atalhos e meios indiretos de abordagem, como a matemática, a ciência,
a história e a ficção” (p.14). Ainda sob a égide de colocar em suspensão o juízo da
ficcionalidade da literatura, o autor nos leva pelos caminhos trilhados por Lewis Carroll em
Alice no País das Maravilhas: perturbadores problemas humanos disfarçados de literatura
ligeira. Para o reverendo Charles Dodgson existe um mundo real, que é a Inglaterra Vitoriana,
com suas normas e leis inquestionáveis, sua moral puritana e uma educação baseada em
preceitos moralizantes. E existe o lugar de Carroll, pseudônimo de Dodgson, representado
pelo País das Maravilhas, onde as regras e as leis podem ser questionadas e transgredidas e a
ordem pode ser subvertida. Lewis Carroll cria Wonderland como um antídoto contra o
embotamento da imaginação, o travo da inteligência e a contenção da graça. Sob o disfarce do
país de maravilhas, o autor denuncia e condena as ideias do seu tempo.
Essa relação perturbadora entre a realidade e a ficção é assunto extensamente investigado por
Bernardo (2010) com o objetivo de apurar a qualidade do que entendemos por literatura. Para
15
O conceito de tempo usado por Bernardo é originário de Flusser (2007) que o compreende como “uma forma
gramatical que informa o nosso pensamento de acordo com a língua na qual pensamos num dado instante”
(p.98). Para o filósofo o tempo não é uma categoria de conhecimento ou uma forma de encarar uma coisa, muito
menos uma categoria da realidade, como nos fizeram crer as filosofias medievais; o tempo é uma consequência
da estrutura da língua.
56
isso o autor explora a ideia de que a linguagem não representa a realidade, mas a inventa ou
reinventa, pois caso a linguagem pudesse dizer e copiar diretamente o que é a realidade, só
seria possível uma única e inquestionável verdade. A ficção desrealiza o real para criar um
novo real mais seguro, diz Bernardo (2005). Eco (2014) confirma esse paradoxo ao constatar
que os textos literários, à diferença do mundo, “nos dizem explicitamente o que nunca
poderemos por em dúvida [...]” (p. 15): que Anna Karenina morreu, que Chapeuzinho
Vermelho foi devorada pelo lobo, que Sherlock Holmes era solteiro...
Essas considerações são bastante ricas para apoiar o contexto dos livros para bebês. Mais
adiante essas discussões retornarão quando analisaremos e categorizaremos os livros do nosso
corpus.
A metaficção é usada por Bernardo como estratégia para pensarmos sobre o espelhamento do
mundo através da literatura. Esse fenômeno estético autorreferencial que se duplica por dentro
e que fala de si mesmo nos traz o benefício da dúvida e da incerteza, pois ele não se disfarça,
ao contrário, afirma-se como ficção. Nesse caso, toda metalinguagem a seu respeito, diz
Bernardo (2010), “escorrega nas cascas de banana que ela mesma deixa pelo caminho. Se
toda linguagem é enigmática mesmo que não se queria assim, toda metalinguagem duplica o
enigma ao tentar resolvê-lo” (p. 12).
Fig. 4 Fig. 5
Dia e Noite – 1938 Céu e Água – 1938
Xilogravura - Escher Xilogravura - Escher
Fig. 6
Mãos que se desenham -1948
M. C. Escher
Do papel branco aparecem duas mãos a se desenharem: a mão esquerda desenha a mão direita
que por sua vez desenha a mão esquerda. Essa imagem, que está sobre uma folha de papel
branco, apresenta-se fixada a outro suporte por tachinhas nos revelando que existe por trás
dessas mãos que se desenham, outra autoria.
Alguns livros de literatura infantil, dentre tantos, ilustram esse caráter da ficção de firmar uma
verdade: Os três porquinhos e A verdadeira história dos três porquinhos; Chapeuzinho
Vermelho e Chapeuzinho Vermelho do jeito que o lobo contou; Os três porquinhos e Os três
lobinhos e o porco mau, entre outros.
58
Fig. 7
Isto não é um cachimbo – 1929
René Magritte
René Magritte, ao pintar Isto não é um cachimbo, em 1929, torna evidente que o cachimbo
que ali se apresenta não é o cachimbo da vida real, mas uma representação dele. Esse quadro
de Magritte faz parte de uma série que se intitula A traição das imagens, o que, para nossa
discussão, é extremamente pertinente, uma vez que as representações que fazemos do mundo
nada mais são do que uma possibilidade de ser da coisa e não a coisa em si. A ficção seria,
então, sempre parte de uma realidade, enquanto a realidade seria construída por diversas
representações e, por isso, ficções.
Outro exemplo de metaficção como artifício que questiona o próprio estatuto de ficção
encontramos na obra destinada ao público infantil Existir! da editora SM. Escrita por Natlalie
Hense, ilustrada por Julien Martinière, com tradução de Fabio Weintraub, o livro nasceu,
como bem explica a autora, da vontade de oferecer às crianças um texto que abordasse
questões de natureza existenciais. Baseando-se no Discurso do método de Descartes,
publicado em 1637, Hense traz para seu texto uma das ideias centrais defendidas pelo autor na
obra citada: posso duvidar de tudo que existe, mas não posso duvidar de que eu estou
pensando. A dúvida é um dos maiores benefícios concedidos aos seres humanos, pois nos
habilita a duvidar de nossos próprios pensamentos, o que nos possibilita resistir a toda forma
de dogmatização e, acrescentaria, contrariando o filósofo, reificação.
A história começa com a vaca sendo advertida pela minhoca que o pasto que ela come tem
gosto de papel. A partir desse momento a vaca entra em crise e começa a questionar sobre a
realidade de todos do livro. Serão eles de verdade ou não passam de personagens fictícios
desenhados em uma página de papel? Atormentada pela dúvida ela deixa de comer e começa
a perder partes do corpo.
59
Nathalie Hense, afinada com a curiosidade e as inquietações do universo infantil, traz à tona a
discussão sobre a ficcionalidade do mundo em uma prosa metaficcional que faz exigências
cognitivas ao leitor, não sendo, por isso, inacessível. Temas exigentes e complicados
despertam o interesse das crianças. Existir! desafia as crianças a pensarem de forma diferente,
chamando a atenção, de forma divertida, para a estrutura e para o material do próprio livro.
Além disso, a interação entre as narrativas verbal e visual confere à obra mais densidade uma
vez que a ilustradora reflete e expande o que está no texto escrito, enriquecendo-o. Martinière
brinca com as diversas possibilidades de representação dos animais apresentando figurações
em dobraduras, colagens, jornal, papel corrugado, assemblage, esquemas, fotografias e outros.
Tendo como premissa que as imagens dos livros ilustrados são consideradas como
reproduções de um trabalho original, o livro Existir! eleva à terceira potência o caráter
ficcional da representação, uma vez que explicita a representação da representação da
representação e suas diversas possibilidades. O caráter metaficcional das imagens é ainda
revelado a partir de desenhos que aparecem fixados na página do livro por clips ou
pontilhados com indicação de recorte pela imagem de uma tesoura. Em uma das páginas,
Julien Martinière ilustra um lápis e o que parece ser os esboços imagéticos de alguns
personagens, ampliando a dúvida sobre a ficção e a realidade.
O título do livro Existir!, não por acaso, nos conduz às reflexões de Flusser (2007) que
declara ser a língua produtora e propagadora de realidades, assim como existência e existir
são palavras que retornam sobre suas próprias pegadas. Reconhecer a artificialidade e a
arbitrariedade das convenções “realistas” e utilizá-las é um regressus ad infinitum, nas
palavras de Bernardo (2010).
A história termina com a vaca encontrando sua realidade e sua verdade na possibilidade de
servir de instrumento de experiências estéticas para as crianças que se deixam seduzir por
uma boa narrativa. Nas palavras de Bernardo (2010) “Se há algo que ainda não sabemos,
ainda nos resta uma boa razão para viver: procurar saber e inventar poeticamente essa nova
realidade” (p. 32).
60
Fig. 8
Existir!
Fig. 9
Existir!
A metaficção, assim, nada mais é do que uma ponte que estabelece uma comunicação entre
campos ficcionais. Se aceitarmos que a realidade como a conhecemos não deixa de ser outro
campo de ficção, podemos esboçar a hipótese de que conseguimos transitar pela realidade se,
e somente se, entrarmos no terreno da ficção. Nas palavras de Bernardo (2010), a metaficção
constitui uma metáfora da própria ficção, ou seja, a realidade é ficcional e labiríntica. E
acrescenta:
61
Mas quando se trata de linguagens que se assumem desde o início como equívocas, ambíguas,
insuficientes e abundantes, como proceder?
O filme O show de Truman, do diretor Peter Weir, lança mão da metaficção para discutir,
entre outras coisas, a natureza de nossas percepções. O filme é um reality show ficcional da
vida de Truman Burbank, já que este desconhece ser um personagem de uma encenação
construída no maior estúdio cinematográfico do mundo, que se localiza nas ilhas Seahaven.
As casas, as ruas, os automóveis, as pessoas, o céu, o mar, a chuva, o amanhecer e o anoitecer
são e não são reais. Um mundo dentro de outro mundo provoca nos espectadores um
desconforto, uma sensação mista de incerteza e verdade e nos indaga sobre nosso senso do
familiar colocando à prova o que conhecemos como realidade. Não seria, então, a realidade da
ordem da ficção? O conhecimento que temos da realidade não seria ele próprio representação?
A literatura não seria um texto sobre outro texto construído pelas nossas percepções?
Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz só em 1944, depois que o governo
alemão, em vista da crescente escassez de mão de obra, resolveu prolongar a vida
média dos prisioneiros a serem eliminados [...] Este meu livro, portanto, nada
acrescenta, quanto a detalhes atrozes [...] com referência ao tema doloroso dos
campos de extermínio. [...] O livro foi escrito [...] com a finalidade de libertação
interior. [...] Acho desnecessário acrescentar que nenhum dos episódios foi fruto da
imaginação. (pp.7-8)
A foto do fotógrafo espanhol Chema Madoz, usada por Bernardo (2010) na abertura do seu
livro O livro da metaficção, nos convida a subir as escadas para ver o que há do outro lado do
espelho. O espelho nada mais faz do que inverter as imagens que a ele se apresentam.
Metaforicamente é o que intentamos discutir: a dicotomia entre realidade e ficção.
62
Fig. 10
Escalera-Espejo - 1990
Fotografia preto e branco
Chema Madoz
As ideias apresentadas aqui nos permitem criar uma ponte com a natureza dos livros
destinados aos bebês. Os mosaicos de linguagens que podemos observar nas produções
destinadas a essa faixa etária poderiam ser encaixados dentro das propostas discutidas acima?
Não seriam as obras para bebês produções ficcionais pelo simples fato de serem construções
discursivas? Se, como ainda são muito pequenas, essas crianças ainda não distinguem
realidade e ficção, por aceitarem a ficção como realidade e a realidade como ficção, não
estariam os bebês e demais crianças mais próximos das representações polissêmicas da
realidade?
Mais adiante voltaremos a esse assunto ao abordarmos o estatuto da literatura infantil. Por
hora ficamos com a ideia defendida por Bernardo (2005) e Alkimin (2006) de que as ficções
vivem e espraiam-se para além das margens da literatura. Então onde reside a ficcionalidade
do mundo? Nas artes? Na vida?
O texto literário é uma forma de discurso que não inventa outros mundos, ao contrário, ele faz
uso do real para recriá-lo, reapresentá-lo. Entendida dessa forma, a literatura não nasce do
nada, ao contrário, ela vive do real. O autor completa dizendo que
63
Seria, então, correto afirmar que o real não existe? O real é necessário para que a ficção se
construa a partir dele ou contra ele. Bernardo (2005) não coloca em questão a existência do
real. O seu argumento é que temos acesso ao real apenas pela mediação de nossos discursos.
Assim, todo discurso promove aproximações ficcionais da realidade e por isso, todo discurso
funda-se no real. A ficção seria, então, uma forma de atestar que o real existe. Contudo, o
autor enfatiza que o fato de aceitarmos a ficcionalidade do mundo não torna as nossas
representações inverídicas, ao contrário, torna-as a nossa verdade, aquela que foi construída
por nós num dado momento histórico e cultural.
A literatura como obra de ficção recorre à linguagem habitual para dar corpo ao que
imaginávamos conhecer e também nos leva a desvendar coisas e lugares insuspeitos. Ela
desautomatiza nossos sentidos e nos faz estranhar o cotidiano e aumentar a duração, a
intensidade e a dificuldade de nossas percepções. Ao mesmo tempo, os textos literários nos
acolhem na medida em que nos oferecem uma hospitalidade construída no valor das
diferenças, na escuta e na conversa com as distintas especificidades culturais e sociais. Dessa
forma, a literatura, como as artes em geral, cria uma verossimilhança com a realidade que, ao
contrário, de ser de mentirinha, fornece aos nossos sentidos outras possibilidades de conceber
os fatos humanos do cotidiano. Esses novos modos de conhecer a realidade dão ao leitor a
chance de se reconfigurar e, também, de reconfigurar o seu entorno, gerando um processo
dinâmico, permanente e infinito.
64
A literatura adjetivada como infantil abarca discussões teóricas diversas na busca de seu
reconhecimento como texto literário. O adjetivo “infantil” é um atributo que demarca espaços
e universos e dá aos textos literários uma personalidade própria: as marcas discursivas, o uso
da linguagem, os tipos de enunciações, o tema, a tradição, as versões, a pedagogia etc.
Partindo de fatos históricos que criaram o conceito de infância e assim concluíram que as
crianças possuem características distintas de jovens e adultos, do fato indiscutível de que a
psicologia de crianças, jovens e adultos apresentam particularidades que as distinguem e, por
fim, das contribuições da sociologia da infância, que a considera como uma categoria
geracional com especificidades constituintes, podemos pensar que há uma literatura
especialmente dirigida às crianças. Escritores como Perrault, Grimm e Andersen, que se
dedicaram a escrever textos para crianças, são provas irrefutáveis da existência de tal forma
de expressão. Se considerarmos o que nos revela Sosa (1993) sobre as numerosas declarações
autobiográficas de personalidades das artes e da literatura, assim como confissões de crianças
que repelem determinado tipo de obra literária rotulado como “infantil”, podemos até concluir
que essa forma literária, com o corpo e a estrutura literários, não existe, pois, “pretendendo
agradar ao gosto infantil, não satisfaz o apetite das crianças” (p. 16). O que existiria não
65
seriam certos elementos, feitios, traços, temas, esquemas que responderiam às exigências da
psique infantil durante seu processo de apreensão do mundo?
Pensar em uma definição para literatura infantil é cair no mesmo labirinto de definições e
pontos de vistas que conformam a literatura de uma forma geral, pois as características de um
texto literário estão à mercê de contextos diversos. Há uma tensão e uma resistência a aceitar
a pluralidade de discursos e de sentidos produzidos pela literatura infantil, o que faz com que
sua conceituação esteja cristalizada em valores absolutos. Entretanto, a “modernidade
líquida”, que dissolve os sólidos, nos ajuda a nos debruçarmos sobre essas novas criações para
tentarmos entendê-las e caracterizá-las.
Atualmente, existe uma extensa produção literária para a primeira infância 16 que combina
diversos recursos como palavra, imagem, texturas, sons e odores que ampliam as experiências
das crianças e possibilitam múltiplas atribuições de sentido. Além disso, muitas editoras têm
oferecido uma produção para a infância que são verdadeiras obras de arte e que podem
desfrutar dos mesmos valores atribuídos à literatura “adulta”. Alguns aspectos merecem ser
destacados. Primeiramente, o uso de linguagem verbal que não menospreza a capacidade de
produção de sentido da criança; em segundo lugar, as ilustrações trabalhadas, que ampliam as
possibilidades de significação; em terceiro, projetos gráficos que expandem ao infinito a
percepção das muitas vozes componentes da narrativa, bem como suportes e formatos
diversos que aguçam a sensibilidade do leitor; por fim, temas que não banalizam as vivências
das crianças. São obras elaboradas com tamanha sutileza e complexidade que podem ser lidas
por crianças e adultos. Muitas dessas produções agora solicitam o estatuto da “dupla
audiência”, ou seja, um endereçamento que não mais seria de interesse apenas da infância,
porque se converteram em objetos estéticos que agradam, desconcertam e deslocam crianças,
jovens e adultos, devolvendo à infância o seu lugar no mundo e transformando suas
representações. Dentro desse novo paradigma, não se abriria espaço para pensarmos em uma
literatura sem adjetivos e endereçamentos prévios – simplesmente literatura?
16
“Segundo as taxonomias gerais, a primeira infância se define como o período do ciclo vital dos seres humanos
que se estende desde a etapa intrauterina até os seis anos de idade” (REYES, 2010, p. 18).
66
A literatura infantil possui gêneros específicos que, segundo Hunt (2010), a caracterizam:
a narrativa para a escola, textos dirigidos a cada um dos sexos, propaganda religiosa,
fantasia, conto popular e conto de fadas, interpretações de mitos e lendas, o livro
ilustrado (em oposição ao livro com ilustração) e o texto de multimídias. O reconto
de mitos e lendas é pouquíssimo encontrado fora do universo da literatura infantil
(p.44).
Grande parte desses gêneros também são encontrados na literatura juvenil e adulta, embora
outros, como o ensaio, a crônica, a novela e o romance, se restrinjam aos textos destinados ao
público jovem e adultos. Os contos de fadas, que muitos consideram apropriados para as
crianças, eram, na sua origem, extremamente cruéis e sombrios. Já temas como separação de
pais, homossexualidade, violência, morte, sexualidade, racismo e tantos mais têm sido
abordados por muitos escritores e ilustradores por entenderem que as crianças estão inseridas
no mundo e, por isso, vivenciam questões dessa natureza. Entretanto, esses autores encontram
resistência por parte de uma parcela significativa de pais, professores e editores que tendem a
sacralizar, higienizar e infantilizar a infância, entendendo que esses temas não devem fazer
parte do universo infantil, já que essa é a etapa da inocência. Por acreditarem alcançar o
universo infantil, muitos editores, autores, ilustradores, pais e professores consideram ser a
puerilidade uma virtude do texto literário. A opção por essa característica, em sua maioria,
torna a obra extremamente estéril e desinteressante, pois oferece um discurso monofônico e
global com o objetivo de homogeneizar e subordinar. Isso não é literatura porque não é arte.
A proposta da arte é contrapor as nossas certezas, é abrir para plurissignificação, é ir na
contramão do absoluto. A literatura é uma arte que se constrói em diálogo com o mundo.
Assim, literatura e vida são dois polos indissociáveis da existência humana. As crianças são
plurais e plurais também são suas linguagens e seus modos de significação do mundo, por
isso, quando textos utilitários e pueris são escritos com o propósito de inculcar valores ou
outros conteúdos predeterminados, o caráter ambíguo e polissêmico da linguagem desaparece
e elas rapidamente abandonam o livro.
17
Com uma presença marcante do episódio do impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, a
geração dos “caras pintadas”, que nasceram durante a ditadura, surpreendeu o pais. Nas últimas décadas do
67
constitui a partir de semelhanças e diferenças com outras gerações. Podemos pensar que a
semelhança dos diferentes grupos geracionais (crianças, jovens, adultos e idosos) reside na
humanidade inerente a cada um de nós. Já as diferenças são contingentes e situadas no tempo
e no espaço, o que traz para a cena interacional uma gama enorme de modos de ser e estar no
mundo. Assim, a literatura infantil, serva da pedagogia, da didática e da concepção de criança
passiva, tem cedido lugar para uma literatura não unívoca e que almeja expandir os horizontes
experienciais das crianças, fazendo-lhes o convite de não viver uma vida única, mas de
ampliar a possibilidade de ter acesso aos interstícios do humano. Entretanto, essa literatura-
arte ainda encontra muitos entraves para se confirmar como literatura com l maiúsculo por
conta das exigências do mercado editorial, das deficiências na formação de professores, de
equívocos na maneira de conceber a criança e da massificação cultural.
século XX, essa geração configurou uma dupla conquista: como cidadãos e como leitores. Esse movimento de
destituição do Presidente da República abriu caminho para novas formas de ser e estar no mundo, o que
impulsionou a indústria editorial a diversificar sua produção. Dessa forma, desde os anos 80, uma grande parcela
do mercado editorial incrementou a produção de obras destinadas ao público infantil e juvenil, abrindo espaço
para novos escritores e ilustradores brasileiros.
Também é importante salientar que a reformulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (em
1971, pela Lei 5.692) contribuiu para o incremento das produções literárias destinadas às crianças, pois havia
uma ênfase dada à leitura como habilidade formadora durante os processos de aprendizagem.
“As iniciativas dos anos 70 foram decisivas nesse processo, que promoveu a entrada maciça do autor nacional no
setor. Em primeiro lugar, não muito longe da iniciativa de Monteiro Lobato, diversos escritores apostaram na
formação de futuros cidadãos mais politizados. Em 1971, em pleno regime militar, Fernanda Lopes de Almeida
lançou A Fada que tinha ideias, criando uma personagem impertinente e imaginosa que se recusa a seguir as
normas estabelecidas, numa crítica ao regime autoritário. Temas semelhantes seriam desenvolvidos por Ruth
Rocha em O reizinho mandão, e por Mary e Eliardo França em O rei de quase tudo. Dessa forma, as crianças
tomam contato com a realidade do país, ao mesmo tempo em que eram incentivadas a pensar sobre o significado
do poder e a importância do livre debate. [...] Também a concepção visual dos livros infantis desenvolveu-se
muito no período, levando ao aparecimento de uma geração de artistas gráficos que não se limitavam a ilustrar a
história, atentando para a importância dessa outra forma de comunicação. Passada a década em que foi
praticamente redescoberta, a literatura infanto-juvenil consolidou-se no mercado. Já no início dos anos 80, era tal
a variedade de títulos bem-sucedidos, que os especialistas da área prontamente reconheceram que ela havia
encontrado seu caminho. Os dados eram incontestáveis: mil a 1200 títulos lançados anualmente, produzidos por
cerca de quarenta editoras” (ÁTICA, Momentos do livro no Brasil, 1995, p. 180). Para mais informações sobre
a história da literatura infantil: ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. São Paulo:
Melhoramentos, 1990; CARVALHO, Bárbara Vasconcelos de. A literatura infantil: visão histórica e crítica.
São Paulo: Global Editora, 1985; COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil.
São Paulo: Quíron, 1985.
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Considerando o caráter social e cultural do ser humano, a literatura deve ser entendida como
um meio de transmitir e preservar a experiência de outros, “aqueles que estão distantes de nós
no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida” (COMPAGNON,
2014, p. 60). Assim, há de se considerar o papel que as crianças exercem no complexo
processo de transmissão cultural. Muitas de nossas cantigas de roda, trava-línguas, trovas,
adivinhas e histórias de tradição oral passaram de geração para geração através das
brincadeiras entre pais/mães e filhos/filhas e pela mediação do meio comunitário através de
seus agentes mediadores. Essa experiência partilhada é mais que um meio de conservação
cultural, é também o que fundamenta, integra e dá identidade aos grupos sociais. As crianças
desempenham um importante papel nessa ciranda cultural, pois a cultura infantil reinterpreta,
ressignifica, transforma símbolos e signos que fazem parte de suas vivências. Segundo
Benjamin (2002), “O adulto, ao narrar uma experiência, alivia o coração dos horrores, goza
duplamente uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais
uma vez do início. [...] A essência do brincar não é “um fazer como se”, mas um “fazer
sempre de novo” [...] (pp. 101-102).
Historicamente esse movimento de mediação cultural atribuído às crianças se faz sentir, entre
outros, na transmissão da matéria folclórica. Muitas das brincadeiras infantis como “A canoa
virou”, “Ciranda, cirandinha”, “Onde está a Margarida? ” apresentam elementos constitutivos
de velhos romances que datam do século XVI até o século XVIII. Todas essas produções
faziam parte do círculo literário dos adultos e só mais tarde foram ressignificados pelas e para
as crianças, indo constituir o que hoje conhecemos como folclore. A continuidade da
transmissão cultural por parte do fazer infantil é também advinda das imitações que as
crianças faziam de espetáculos teatrais, folias e bailados de adultos nos quais não tomavam
parte, mas aos quais assistiam. Essas imitações faziam com que as crianças se apropriassem
de movimentos, versos e canções que repetiam à exaustão e depois ensinavam aos mais
novos.
por elas, a excursão por diferentes lugares, a visão de outros modos de significação do mundo,
além de introduzir a dúvida, a ambiguidade e as interrogações. Há uma considerável diferença
entre os sentidos e significações que as crianças dão às diferentes leituras que fazem do
mundo e a que um adulto faz e pensa que elas estão fazendo. As crianças são dotadas de
linguagens particulares que as fazem desenvolver uma cultura infantil ao mesmo tempo
próxima e distante daquela do adulto.
Nodelman (2010)18 aponta para o risco do cerceamento que fazemos às crianças quando o
assunto é escolher o que é bom e necessário a elas. Segundo o autor, as crianças, por estarem
em processo de desenvolvimento, estão suscetíveis a aceitar qualquer coisa que lhes
ofertarmos. Como estão em processo de apropriação e entendimento do mundo, ainda não
estão aptas a criar critérios de eleição do que devem ou não consumir. Ainda que saibamos
que as crianças são sujeitos ativos no seu relacionamento com os objetos e fatos que as
cercam, é legítimo pensar que, muitas vezes, a realidade humana e social multifacetada e
polifônica lhes impõe modos de ser e estar criados em representações retiradas do senso
comum. Os livros de literatura, como objetos culturais, carregam valores, normas e tradições
que devem ser considerados quando o assunto é a formação humana. O paradoxo da censura
imposta pelos adultos, de acordo com Nodelman (2010), é que ao mesmo tempo em que
lutamos contra ideias que reafirmam preconceitos e limitam a experiência estética das
crianças, colocamos objeções quanto a temas, extensão textual, linguagem, faixa etária e
outros, coibindo sua liberdade de interação. O autor declara que o mais sensato seria
deixarmos que as crianças transitassem livremente pelo universo dos textos para, então,
juntamente com elas, questioná-los. Hunt (2010) corrobora o argumento do trânsito livre das
crianças pelos textos literários e pergunta:
[...] o que podemos fazer numa situação em que, quando se trata de crianças, a
limitação e a restrição são vistas como virtudes por alguns críticos? Pode ser correto
supor que as crianças-leitoras não trarão para o texto um sistema completo ou
sofisticado de códigos, mas isso justifica lhes negar acesso a textos com um
potencial de códigos abundantes? (p. 154).
18
Artigo publicado originalmente na revista CCL, Canadian Children Literature, nº68, 1992.
70
Tendo como pressupostos as ideias de Hunt (2010) e de Nodelman (2010) expostas acima,
seria pertinente discutirmos sobre o fato de restringir as temáticas consideradas difíceis dos
livros de literatura infantil com o objetivo de poupar as crianças de assuntos que, aos olhos de
muitos críticos, pais e professores, não fazem parte do universo infantil. A ideia de uma
criança abstrata e idealizada, alheia a toda sorte de infortúnios e percalços, uma criança
ingênua que precisa de proteção contra as agruras do cotidiano, serve de substrato para seu
desterramento. As crianças estão inseridas no mundo e com ele conversam sobre os mais
variados temas. A morte, a solidão, a injustiça, a violência, os obstáculos são assuntos vividos
por todos nós, humanos, independentemente da idade. Entretanto, há que se considerar que o
tema da história, sua trama, a maneira de construí-la diferenciarão as sensibilidades estéticas
da obra e a recepção por parte do público infantil. O trabalho literário eficaz e de qualidade
desacomoda o leitor e subverte suas expectativas habituais. Ler é produzir sentidos e esses são
produzidos na interação autores/texto/leitor. O sujeito, ao ler, traz para o texto seus códigos
construídos através de suas experiências de vida, que entrecruzam com os códigos construídos
pelos autores. Essa interação cria uma zona de indeterminações que são preenchidas pelo
leitor. Entretanto, muitos são os profissionais e leigos que argumentam que as crianças não
são capazes de entender indeterminações complexas, e por isso elegem como textos
adequados os que portam temas cotidianos, simples e pueris, com linguagem rasteira e
coloquial, frases curtas, coladas na oralidade e pouco originais e imagens estereotipadas ou
que apenas ilustram o texto verbal. Assim, é muito comum identificarmos os livros para
crianças expostos em livrarias, bibliotecas e escolas pelas características supracitadas.
Bonnafé (2008) afirma que “As crianças pequenas preferem textos de qualidade, dos quais se
aproximam com grande prazer e com o quais descobrem construções novas da linguagem que,
se gostam, logo as utilizam” (p. 45). (Tradução nossa)19
19
Texto Original:“Los niños pequeños prefieren textos de calidad, de los cuales se aproprian com gran placer y
con los cuales descubren construcciones nuevas del lenguaje que, si les gustaron, utilizan luego”.
71
Dois exemplos podem explicitar modos diversos de abordagem a certos temas difíceis: O
guarda-chuva do vovô, da editora DCL, escrito por Carolina Moreyra e ilustrado por Odilon
Moraes, e Cadê seu peito, mamãe?, publicado pela editora Escrita Fina e escrito por Ivna
Chedier Maluly, com ilustrações de Camila Carrossine.
O primeiro conta a história da relação afetiva de uma menina com os avós. Morando longe
deles, a menina sempre dava um jeitinho de ir visitá-los para matar a saudade. Na sua
chegada, era recebida com grande alegria pela avó, que fazia bolo de chocolate para o lanche.
Entretanto, o avô nunca aparecia à mesa, ficando sempre no quarto, de janela fechada. A
menina não entendia sua ausência, mas sabia que ele não gostava que ela fizesse barulho
debaixo da janela de seu quarto ou brincasse com seu guarda-chuva. Um dia, ao voltar à casa
dos avós, a menina achou o avô diferente e perguntou ao pai se ele estava encolhendo.
Recebendo uma carraspana paterna, a menina sai do quarto. De volta à casa dos avós, em
outro dia, a menina não encontrou o avô, e aproveitou para brincar no jardim e cantar debaixo
da janela do quarto dele. De repente, a janela se abriu, mas quem apareceu foi a avó. Então, a
menina correu para o quarto do avô e perguntou por que ele ainda não havia chegado. A avó
sorriu e seus olhos ficaram pequenininhos. Na hora de ir embora, estando o tempo chuvoso, a
avó deu à neta o guarda-chuva do vovô para protegê-la da água que escorria das nuvens. A
menina exclamou: - O guarda-chuva do vovô!, mas ninguém disse nada. Depois desse
episódio, todas as vezes que chove e ela não pode brincar no jardim, a menina não se aborrece
porque sabe que seu avô também está feliz.
Carolina Moreyra e Odilon Moraes abordam com rara delicadeza um assunto difícil para as
crianças: a morte. A delicadeza está na forma simples como Carolina escolhe as palavras para
compor o discurso narrativo e nos traços leves e nas cores em aquarela que compõem as
72
Fig. 11
O guarda-chuva do vovô
Fig. 12
O guarda-chuva do vovô
Agora passemos para o livro Cadê seu peito, mamãe?. Trata-se também de uma obra que
aborda um tema delicado: o câncer de mama. O livro é narrado em terceira pessoa e traz o
relato pessoal da autora quando teve que lidar com a extirpação de um dos seios devido a um
câncer, e sua dificuldade de tratar do tema com seu filho de aproximadamente três anos de
idade.
73
Fig. 13
Cadê seu peito, mamãe?
Elias é uma criança bem pequena que se vê às voltas com a tristeza nos olhos dos pais e a sua
ausência repentina. Brincando na casa dos avós com seus primos, consegue afastar um pouco
os pensamentos sobre a situação anormal que vive.
Fig. 14
Cadê seu peito, mamãe?
Alguns dias depois, sua mãe e seu pai retornam para casa juntamente com o pequeno Elias.
Como sentia muita saudade da mãe, Elias a segue para todos os lugares da casa, até que um
dia ele entra, repentinamente, no banheiro, e se depara com a mãe dentro da banheira. Neste
momento, descobre todo o mistério: “- Cadê seu outro peito, mamãe? Foi roubado? ” (p. 17).
A partir da descoberta, a mãe resolve relatar ao garoto o acontecido:
“- Meu filho, pode parecer estranho, mas, quando a mamãe estava no hospital, o médico teve
que retirar o peito da mamãe. – responde ela fechando a água do chuveiro” (p. 18).
74
“Não é fácil para ela contar o que está acontecendo ao seu querido filho, que ela amamentou
com tanto carinho até os oito meses...” (p. 21).
A história se desenrola mostrando a dificuldade que os pais de Elias têm em lidar com um
acontecimento que fragiliza todos da família. Ao contrário do livro escrito por Carolina e
Odilon, o livro Cadê seu peito, mamãe? usa uma narrativa explícita em que tudo é dito, não
deixando espaço para ambiguidades e indeterminações. O modo como a autora constrói seu
relato dá a impressão de se tratar de um texto-receita, em que o vocabulário e os discursos
direto e indireto se inserem para tornar cada vez mais claras a informações. “- Elias, escuta
bem, meu amor, vou te explicar uma coisa: lembra quando a mamãe te disse que o peito dela
estava doente? O doutor contou para a mamãe que a doença que estava nele chama-se câncer.
Há muitos tipos de câncer e o da mamãe era muito, muito malvado” (p. 20). O uso desses
recursos caracteriza um forte controle do público implícito: as crianças.
É muito comum encontrar livros de literatura infantil que explicam e deduzem tudo para o
leitor, pois acredita-se que, por serem sujeitos em desenvolvimento, as crianças não possuem
habilidades suficientes para atribuírem sentidos a assuntos complexos. Acreditamos que, no
livro em questão, há uma tentativa deliberada de limitar as interações da criança com o texto
sob a crença de uma insuficiência de capacidade de atribuição de sentido. Sendo um texto
fechado, a narrativa prescreve até onde o leitor pode ir. Fazendo isso, ele diminui a qualidade
textual e restringe as experiências das crianças. Não há como deixar de pontuar o uso de
diminutivos – mamãe, papai, vovô, vovó, priminhos, mãozinha - que denotam o uso de uma
linguagem específica para compor as narrativas infantis. O livro soa artificial, seco, piegas e
inocente, como muitas vezes são nossas interações com as crianças pequenas. Não há uma
abertura para que o leitor possa preenchê-lo com suas imagens e sensações, o que limita e
controla as projeções individuais do leitor. A história parece mais um paradidático voltado
para as mulheres que enfrentam o mesmo problema e têm que administrá-lo no seu meio
familiar do que um livro de literatura que usa a arte como possibilidade de emancipação.
As imagens criadas por Camila Carrossine não são estereotipadas, mas, em sua maioria, se
resumem em ilustrar o texto verbal. Não há nenhuma mensagem adicional transmitida pelas
ilustrações, e a sensação é de estar lendo as mesmas ideias através de outra linguagem. Assim,
não há interação entre as linguagens visual e verbal, o que diminui a potência do livro como
literatura e, assim, como arte. Como as palavras, as imagens têm uma conotação
75
sentimentalista e simplória. É importante e necessário salientar mais uma vez que as crianças
não são ingênuas e percebem o que acontece em seu entorno. Obras como essa nos interpelam
sobre até que ponto o não dito é saudável para nossa relação para com as crianças. E, também,
acentuam o quanto subestimamos a capacidade delas de entenderem e de lidarem com
situações delicadas. As crianças são sujeitos que se relacionam com um mundo de uma
maneira particular, mas isso não quer dizer que a natureza desse relacionamento seja opaca e
destituída de significações. Elas gostam de ser respeitadas e acatam todas as interações
transparentes como um ato de estima e atenção. O livro “Cadê seu peito, mamãe? ” é o
reflexo de uma caricatura infantilizada das crianças; caricatura essa que tende a cercear o
confronto delas com as realidades da existência humana.
Fig. 15
Cadê seu peito mamãe
A restrição etária é outro aspecto das produções para as crianças que desperta discussões
acaloradas entre teóricos, editores, professores e familiares. Segundo Nodelman (2010),
adultos somente na forma de pensar as coisas, mas que eles são diferentes dos
maiores: a espécie “humana” esta conformada por uma série de subespécies
cronologicamente diferenciadas que são inerentemente distintas entre si.
É por isso que nos preocupamos tanto com essas categorias etárias: enquanto
as crianças não sofrem essas abruptas e aparentemente mágicas
transformações de uma subespécie para a seguinte, de uma etapa para a
seguinte, simplesmente não estão apresentam capacidade de absorver mais do
que a quantidade limitada que permite a etapa na qual se encontram em um
determinado momento, do mesmo modo que lagartas não podem voar.
Pensamos que os expor causaria um curto circuito em suas mentes, e
queimaria uns fusíveis cognitivos. Suas cabeças poderiam explodir.
(Tradução nossa)20
Os bebês são sujeitos recém-chegados ao mundo e que ainda estão se familiarizando com as
coisas desconhecidas que os rodeiam e estão aprendendo a nomeá-las. Além disso, a
linguagem oral ainda é, para eles, um enorme e fabuloso desafio. O livro como objeto cultural
tem seu lugar nesse campo de novidades e permite que essas crianças mergulhem em um
universo de palavras que servem de ponte entre elas e a cultura e, também, como material de
exploração.
Entretanto, critérios como a extensão do texto podem impedir que muitos livros sejam
apreciados pelas crianças pelo entendimento, por parte dos adultos, de que elas não terão
condições de atribuir sentido, não irão se concentrar ou irão se aborrecer. É preciso ter em
20
Texto integral: “Durante los últimos siglos —desde que concebimos la idea de que los niños son distintos a
los adultos por las limitaciones inherentes a su capacidad para comprender— hemos desarrollado un sistema
altamente sofisticado para determinar exactamente cuándo y cómo deben enterarse. Creemos que existen
“etapas” en el desarrollo del pensamiento infantil, y en las capacidades morales y sociales de los niños. Estos no
sólo difieren de los adultos en su forma de pensar las cosas, sino que los niños más pequeños son distintos a los
más grandes: la especie “humana” está conformada por una serie de subespecies cronológicamente diferenciadas
que son inherentemente distintas entre sí.
Es por eso que nos preocupamos tanto por esas categorías etarias: mientras los niños no sufran esas abruptas y
aparentemente mágicas transformaciones de una subespecie a la siguiente, de una etapa a la siguiente,
sencillamente no están en capacidad de absorber más que la cantidad limitada que permite la etapa en la cual se
encuentran en un momento dado, del mismo modo que las orugas no pueden volar. Pensamos que exponerlos
causaría un cortocircuito en sus mentes, y quemaría unos fusibles cognoscitivos. Sus cabezas podrían explotar”.
77
nosso horizonte que a formação do comportamento leitor é algo que se cultiva na experiência.
É só participando de momentos de leitura compartilhada que a criança vai apreendendo o
sentido e o significado do livro: um objeto portador de sentido que coaduna várias linguagens.
Assim, uma história que julgamos longa pode muito bem atrair a atenção das crianças de tão
pouca idade não pelo tema ou pelo conteúdo que comportam, mas pelo apego a algum
personagem específico, a alguma frase ou diálogo, à música das palavras, ao ritmo da
narração ou à relação de afeto que se estabelece entre a criança e o mediador. As crianças são
experts em fazer adaptações coerentes com suas particularidades e interesses, com suas
possibilidades de apreensão e com sua conveniência.
As razões para essas diferenças de comportamento editorial abrangem, entre outras coisas, a
noção de infância que é social, cultural e historicamente construída. Bonnafé (2008) salienta
que “se o texto não possui nenhuma qualidade estética, se a narração está mal estruturada e
sem brilho, o interesse do ouvinte se desvanece prontamente, o leitor abandona o livro da
mesma maneira que cerraria seus ouvidos a uma conversa insípida e tediosa.” 21 (p.45)
(Tradução nossa)
de Sosa (1993), como penetrável lhes interessa vivamente porque não impõe barreiras às suas
possibilidades de construção de sentido nem lhes castra o protagonismo e a autoria das
representações que produzem sobre o mundo. As crianças, à diferença dos adultos, se
entregam facilmente ao não saber, às adivinhações, ao encantamento do mundo, porque ainda
não veem o mundo de modo objetivo e racional. O jogo e a brincadeira são partes de seus
processos de apreensão do mundo e, ainda que este lhes cause medos e incertezas, elas se
aventuram a desvendar-lhe lançando mão de técnicas e magia.
Há literaturas e livros que nunca tiveram o interesse de atrair a atenção das crianças e, assim
mesmo, o fazem; há temas considerados delicados que são apreciados pelas crianças; a
linguagem expressiva é algo que as encanta; as palavras “difíceis” as fascinam; os livros com
uma complexidade verbal e imagética podem motivar nelas o desejo de decifrá-los... Seriam
esses os princípios fundamentais que definiram a literatura infantil?
Os argumentos expostos até aqui nos levam a pensar que podemos incluir os textos
produzidos para a infância no âmbito da Literatura e abolir o adjetivo “infantil” que a
especifica. Não há como negar que a literatura infantil e a literatura compartilham
características expressivas, estéticas e temáticas. É também preciso considerar que existem
obras literárias que despertam o interesse de crianças e adultos: estão aí os livros classificados
79
como crossover para confirmar a dupla audiência. Mas isso seria suficiente para definir que
não há uma literatura que se caracteriza como infantil?
Pereira (2010), indaga a “ideologia da preparação” ao relatar a relação de seu filho pequeno
com livro técnico sobre regatas. A autora narra que o interesse do “Menino”, como ela
carinhosamente se refere a ele, por barcos nasceu de uma viagem de férias feita para Salvador.
Lá seu programa preferido era “observar os barcos ancorados no cais, em frente ao Mercado
Modelo. Sentado na calçada, observava-os chegar e partir. Comentava sobre suas cores, seus
nomes suas semelhanças e diferenças” (p. 46). Já de volta ao Rio de Janeiro, o Menino
escolheu as fotos dos barcos para ser o seu protetor de tela do computador. Percebendo seu
interesse por barcos, os pais o levaram à Marina da Glória para ver os barcos à vela que
participavam de uma regata oceânica. O Menino ficou fascinado em poder observar os barcos
bem de perto já que alguns se encontravam ancorados em enormes cavaletes para receberem
reparos e manutenção. À época o Menino levou para casa o Programa Oficial da regata que
apresentava “a regata, sua história, os barcos e equipes que dela participavam e os mapas do
percurso a ser feito” (PEREIRA, 2010, p.47). Esse “livro de barcos”, como foi apelidado pelo
Menino, tornou-se, segundo Pereira (2010), “seu livro de cabeceira predileto e inúmeras vezes
foi contemplado sob a luz da luminária até a hora de dormir” (p. 47). Foi também, por
diversas vezes, um dos livros mais escolhido para levar para escola ou consigo durante algum
passeio.
As ideias defendidas por Hunt (2010), Nodelman (2010) e Sosa (1993) ilustram que um livro
com informações náuticas foi passível de atrair a atenção de uma criança que não se
aventurava ainda pelos caminhos das regatas, mas que se fascinava em desvendar os mistérios
que a cultura e a natureza colocavam a seu dispor. “Não são as coisas que saltam das páginas
em direção à criança que as vai imaginando – a própria criança penetra nas coisas durante seu
contemplar, como uma nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo
pictórico”, observa Benjamin (2009, p. 69). Pereira (2010) traz à tona a discussão sobre o que
é suscetível de despertar o interesse das crianças e o que a visão idealizada do adulto em
relação a elas considera como material adequado. Muitas vezes as crianças não se identificam
com as produções que o mercado editorial objetiva como uma necessidade infantil. Assim,
nos indaga Pereira (2010): o que faz com que um livro se torne interessante para as crianças?
Que critérios são levados em conta na produção de livros infantis? Que livros oferecemos às
crianças e a partir de que critérios?
80
As linguagens oral e escrita são os principais sistemas simbólicos dos quais as crianças se
apropriam para jogar, brincar e encenar a vida. Como um dos principais mediadores entre as
crianças e o mundo, a linguagem verbal habita a vida delas desde o seu nascimento. Dessa
forma, já em seus primeiros dias de vida, os bebês começam a ter contato com um acervo de
palavras que encantam, acalmam, acalantam, em um diálogo com as páginas da cultura que
vão lhes revelando sua condição humana. Esse jogo textual, atravessado por troca de fraldas,
amamentação, água morna de banho abre espaço para novos jogos e novas significações que
vão tecendo a história de cada um de nós. História que é contada e recontada pelos álbuns de
fotografia, pelos diários do bebê, pelas filmagens em DVD, pelas roupas e sapatos guardados
no baú, pelo cheiro do leite fervendo derramado no fogão, pelas façanhas narradas pelos
familiares. Esses textos propõem a construção de narrativas que retratam as relações humanas,
traduzidas em acontecimentos que constituem a experiência social.
conhecimentos. Somente sendo autora elas poderão se relacionar com uma língua viva e real e
se constituir como sujeitos da e na história.
Por isso, a literatura não se esquiva de sua função política, uma vez que dá oportunidade de
atribuirmos sentido para vida e para o mundo sob diferentes pontos de vista, de expandirmos
nossas possibilidades de expressão e, assim, construirmos nossos próprios discursos. Dar às
crianças condições para que, desde a mais tenra idade, possam ouvir e contar histórias é, antes
de tudo, um passaporte para cidadania.
Retornando às questões colocadas neste capítulo, Andruetto (2012) nos acena com a
possibilidade de uma resposta ao declarar que
Muitas vezes quisemos dar à literatura uma função, esquecendo que ela a tem por si
mesma. A literatura, para ser útil, deve conservar certo traço disfuncional. [...] a
literatura luta principalmente contra língua e luta também contra a educação e os
valores oficiais de uma sociedade. Cercada por essas e outras zonas da cultura, a
escrita é desvio [...]. Desvio de quê? Desvio da norma, do esperado, do previsível.
(p.126)
Para além dos argumentos apresentados, a arte como expressão do humano apresenta várias
formas de manifestação em função das características e percepções de seu criador. Neste
sentido, a literatura infantil como arte não foge à apreciação de adultos e jovens, uma vez que
é capaz de cativá-los, encantá-los e incomodá-los.
Este capítulo apresentou uma extensa discussão sobre o que há de literário e de experiência de
linguagem na literatura infantil, e nos solicitou aprofundar ainda mais as semelhanças e as
singularidades dos textos destinados aos bebês. Dessa forma, a pergunta que persiste ao longo
dessa pesquisa: “Existe uma literatura para bebês? ” deverá orientar os próximos capítulos e a
análise do corpus no capítulo 6.
82
Um caos indiferenciado pode ser uma expressão adequada para descrever as primeiras
impressões e sensações do bebê ao nascer. Gradualmente, os sentidos do recém-nascido vão
captando percepções que vão construindo suas primeiras organizações mentais. Segundo
Golse (2007), o corpo do bebê encontra-se “em primeiro plano enquanto “caminho de
eleição” de acesso aos processos de semiotização, de semiotização, de simbolização e de
subjetivação no seio da espécie humana” (p. 126). Esse processo se faz através de um jogo
entre o endógeno e o exógeno, entre o dentro e o fora, entre o biológico e o relacional. Assim,
à medida que se desenvolvem e interagem com o meio, os bebês se veem às voltas com
construções e desconstruções que reformam e reorganizam seu mundo interior. Nesse
movimento de integração e desintegração, as crianças vão construindo imagens e saberes
particulares que estão sempre se reformulando.
A suposta imaginação que a criança introduz em suas brincadeiras não passa de uma
confusão facilmente observável; é a impossibilidade de descobrir, nas diferentes
percepções, as dessemelhanças e também as contradições que nos impedem de
confundi-las; não é mais que a ignorância do princípio da identidade (p. 35).
A linha tênue que separa o mundo que chamamos real e o mundo da imaginação das crianças
é algo que as faz transitar facilmente pelo mundo ficcional proposto pelos livros de literatura
sem a menor necessidade de confirmar a veracidade dos fatos. Quanto menor a criança, mais
intrincada é a relação entre o mundo ficcional e o mundo real. Até por volta dos três anos de
idade, todas as coisas emergem para elas como fatos reais; elas brincam sem diferenciar a
situação imaginária da situação real. Assim, a bruxa, o fantasma, o coelho, o relógio, a casa, o
unicórnio, o pai, a mãe e os irmãos habitam, todos, o mesmo território. “Por isso, o mundo
sobrenatural não tem nada de mágico e incrível, mas é completamente livre e natural” (SOSA,
1993, p. 24). Se isso é verdade, o mundo que elas estão descobrindo será tão maravilhoso e
fantástico como o mundo dos contos maravilhosos. Esse modo de atribuir sentido à literatura
exerce um papel preponderante no modo como as crianças se relacionam com a cultura.
Todas as nossas sutis distinções entre as coisas animadas e inanimadas não existem para as
crianças, principalmente até o terceiro ano de vida. Graças a seu antropomorfismo, os reinos
animal, vegetal, e mineral são interpretados e saboreados em igualdade de condições. “Se a
criança não acredita plenamente na possibilidade da ocorrência das coisas prodigiosas,
tampouco repele sua possibilidade” (1993, p. 25), afirma Sosa. Quando contamos histórias às
crianças, julgamos transportá-las para um mundo fantástico onde todas as coisas são possíveis
de acontecer: varinhas mágicas, dragões que lançam fogo pela boca, animais que falam, fadas,
duendes, bruxas e caldeirões... Entretanto, esse mundo é tão real e fantástico quanto o mundo
no qual as crianças vivem.
A literatura, com seus relatos maravilhosos e fantásticos, tem com as crianças uma intimidade
tamanha que são elas que decidem se as coisas existem ou não. A mente das crianças, assim
como a dos artistas e poetas, é aberta à claridade e ao mistério do mundo. Dessa forma, elas
aceitam, sem problemas, o trânsito entre o ficcional e o não ficcional, e estes se misturam em
seus modos de dar sentido ao mundo.
Com o passar dos dias e sob influência das relações sociais, aumentam as possibilidades de
diálogo da criança com o mundo. Novos elementos são incorporados e esquemas mais
84
Por volta dos três anos de idade, as narrativas começam a emergir para as crianças como
ficção. Elas iniciam um movimento de incertezas quanto à realidade dos personagens e aos
eventos da história. Entretanto, somente quando as crianças têm convicção de que as histórias
fazem parte de um mundo fictício é que elas começam a fantasiar. Para mergulhar na
literatura como ficção, as crianças têm que reconhecer o “pacto ficcional”, ou seja, têm que
entender que na história o faz-de-conta é uma das convenções pré-estabelecidas. O
aprofundamento para o reconhecimento de que as histórias são construídas parte da
experiência imediata (dos bebês) para tempos e espaços reais (crianças de dois a três anos),
até deslocar-se para lugares imaginários (a partir dos três anos). Todavia, saber que os bebês
não estabelecem com a literatura o “pacto ficcional” não é motivo para oferecer a elas
somente livros que apresentam a confirmação do mundo em que vivem. Elas precisam
também de narrativas que ampliem sua imaginação e sua capacidade de atribuir sentido. O
equilíbrio entre o que a criança pode perceber sozinha e o que ela pode inferir, adivinhar ou
imaginar é fundamental para a qualidade literária dos livros para essa faixa etária. A literatura
é um alimento saudável para a infância e deve fazer parte dos contextos de vida das crianças à
medida que elas se desenvolvem e começam a conhecer a realidade circundante. Realidade
essa que servirá de alimento para, justamente, possibilitar que elas penetrem na fantasia.
85
A reflexão teórica sobre a literatura se amplia para uma reflexão filosófica à medida que nos
debruçamos no modo como construímos a realidade sobre o mundo para escondermos nosso
desconhecimento sobre ele.
A ficcionalidade e a realidade são dois conceitos que servem para caracterizar as ações e
significações das crianças com o mundo e, também, os textos considerados como literários e
não literários. Como já discutido anteriormente, Bernardo (2005) lança novas luzes à
discussão sobre a literariedade dos textos para crianças menores de dois anos ao abordar o
estatuto ficcional e não ficcional de um texto.
O autor subverte a compreensão da ficção como algo inventado e imaginado e nos aponta o
conceito como sendo uma representação de realidades. Para o autor, a realidade é apenas mais
uma definição que inventamos para tentar organizar e entender o mundo. A realidade, é,
então, nada mais do que representações forjadas em nossa mente para ordenar e classificar a
vida. Assim, a norma do mundo é a ficção, já que o representamos através de diferentes
linguagens. Contudo, os diferentes discursos utilizados para dizer o mundo podem apresentar
uma dimensão maior ou menor de ficção. O espectro ficcional abarca intensidades maiores e
menores de fantasia, de ilusão e de sonho.
As babushkas22 russas são evocadas pelo autor para representar os diversos níveis de ficção (e
de realidade) que vão conformando a história. Dentro da história vão aparecendo babushkas
menores dentro de babushkas maiores dentro de basbushkas ainda maiores, configurando
nossas concepções da realidade e mostrando-a como efeito de nossos discursos.
Depreendemos dessas ideias que os sentidos e os significados não estão dispostos no mundo
para serem descobertos e apreendidos. Ao contrário, eles são criações artificiais e culturais
produzidas pelo fazer humano na tentativa de se integrar com e no mundo.
22
Babushkas, também conhecidas como Matrioscas ou bonecas russas, é um brinquedo tradicional da Rússia que
se constitui de uma série de bonecas ocas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da
maior até a menor, a única que não é oca. O número de figuras que se encaixam varia de 6 a 8. Fonte:
http://aprender-russo-online.blogspot.com.br/2009/02/historiaorigemmatrioshkamamushka.html. Acessado em
02/02/16.
86
A ficção é, pois, uma instância necessária para darmos sentido e organizarmos a vida. Contra
as ameaças do mundo de dentro e do mundo de fora, nós, seres humanos, reagimos fabulando,
produzindo sentidos para as coisas que não compreendemos, e nossas construções mentais são
as pedras necessárias para tamparmos as lacunas da realidade.
O filósofo Flusser23 (2007) declara que a língua cria a realidade. As pedras, as estrelas, as
árvores, a neve, a sede, o sono, a felicidade são fenômenos reais e só existem porque são
palavras. Para o filósofo, a língua é realidade e não existe realidade sem a língua, por isso o
mundo concreto só pode ser real para nós se antes o pronunciarmos. E completa que a língua
se espalha e se derrama, até, através de nós, impelindo-nos e impelida por nós rumo
a novas conquistas de realidade. Cada palavra, cada forma gramatical é não somente
um acumulador de todo o passado, mas também um gerador de todo o futuro. Cada
palavra é uma obra de arte projetada para dentro da realidade da conversação a partir
do indizível, em cujo aperfeiçoamento colaboram as gerações incontáveis de
intelectos em conversação e a qual é confiada pela conversação a fim de que a
aperfeiçoemos ainda mais e a transmitamos aos que virão, para servir de instrumento
em busca do indizível (p. 199).
Não foram poucos os autores24 que destacaram as relações entre as atividades lúdicas das
crianças e as atividades artísticas. Em seu ensaio clássico El poeta y la fantasia, Freud (1984)
associa a criança que brinca ao poeta que cria, pois ambos criam mundos, situando as coisas
da dita realidade em uma nova ordem. O jogo de faz-de-conta proposto por Bernardo (2010) e
Flusser (2007), como inerente ao fazer humano, também não escapa das correlações com as
brincadeiras infantis, pois, segundo os autores, criamos nossa própria realidade. Eles também
identificam um caráter emancipatório na brincadeira e no jogo ao conferir às atividades
23
Bernardo faz alusão ao filósofo Vilém Flusser e o utiliza em vários momentos de seus escritos para refletir
sobre a ficcionalidade do mundo, o que gerou nossa curiosidade em conhecer as ideias do filósofo para
ampliarmos a discussão sobre o mundo como representação. Todavia, gostaríamos de assinalar que, em
decorrência do volume e da densidade das produções de Flusser, não foi possível adentrarmos profundamente
em suas elaborações. Trazemos as contribuições de Flusser que estão no livro Língua e Realidade, sabendo que a
leitura de outros de seus livros poderia acrescentar mais à fundamentação teórica da pesquisa em questão.
24
Autores como Bruner (2007), Peres (1997), Queiros (2012) discorrem sobre as características do universo
infantil que também são encontradas na literatura.
87
De acordo com Machado (2004), brincar é produzir, fabricar, criar... o que faz da forma
brincada a poiésis de cada criança. Através da brincadeira, a criança ultrapassa o real,
transformado-o através de sua capacidade imaginativa. Dessa forma, os jogos de faz-de-conta
infantis não são apenas recordações ou imitações da cultura, mas criações artísticas projetadas
para dentro da realidade. Essa poética congrega a essência da beleza e da poesia, pois possui
criação, originalidade e imaginação, as quais incluem êxtase, prazer, dor, medo e insegurança.
Esses sentimentos transformam o ato de brincar em uma experiência estética, um misto de
ilusão e verdade que demarca o brinquedo das crianças e as possibilita criar mundos diversos.
Nesse sentido, há diferentes maneiras de se fazer mundos. Podemos construí-los através das
linguagens corporal, pictórica, musical, literária, científica, filosófica e tantas outras quanto
forem possíveis ao ato criador. Por isso, o brincar infantil é estético por excelência e incorpora
uma dupla contemplação: para quem vive e para quem observa.
Vigotski (2009) assevera que a criação é condição necessária para a existência, e tudo que
vemos em nosso cotidiano teve sua origem no processo de criação humana. Para o psicólogo,
o nosso cérebro não é apenas um órgão que conserva e reproduz nossas vivências, mas sim
um órgão que “combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior,
erigindo novas situações e novos comportamentos” (p. 14). Cada ciclo da infância possui sua
forma característica de criação derivada das interações culturais e das especificidades
biológicas. Além disso, a atividade criadora “não existe de modo isolado no comportamento
humano, mas depende diretamente de outras formas de atividade, em particular do acúmulo
de experiências” (p. 19). A possibilidade de passar da experiência sensível para as linguagens
simbólicas é também, para Vigotski, um ato artístico, uma vez que refaz, reformula, subverte
e transforma metaforicamente o que é ordinário e convencional em algo novo e peculiar. Esse
ato criador produz um efeito estético a partir do momento em que transcende e afeta outros
sujeitos. O autor ainda acrescenta que o ato criador, antes de se tornar uma realidade externa,
foi uma realidade interna na medida em que se constituiu no tecido da reunião de
experiências, imagens mentais, escolhas e pontos de vista.
88
As ideias de Bernardo (2004, 2005, 2010) apresentadas até aqui podem nos fazer supor que
tudo seja ficção. Todavia, o autor não nega que seja necessário estabelecer uma referência
com o real para que a ficção se construa a partir dele ou contra ele. Sua argumentação é que
só podemos ter acesso ao real pela mediação de discursos que elaboram ficções aproximativas
da realidade, e ele completa dizendo que toda a linguagem pode ser, então, percebida como
metafórica, já que as palavras não são as coisas que elas designam. Dessa forma, o jogo de
faz-de-conta construído pelos discursos humanos nada mais é do que ficções que
desempenham o papel do real.
Muitos livros dedicados aos bebês não apresentam estrutura narrativa e características do que
usualmente conformam os textos literários. Todavia, eles propõem discursos que se
materializam não como uma transcrição da realidade, mas como sua (re) apresentação.
O livro A minha roupa, da editora Edicare, com ilustrações de Amélie Groux, reflete bem essa
perspectiva. Esse livro apresenta o mundo para o bebê na medida em que traz objetos que
fazem parte de seu cotidiano imediato, como a fralda, a cueca, as meias, os sapatos e outros
mais. Todas as ilustrações são simples e ocupam a parte central da página, o que torna mais
fácil o olhar da criança. Além disso, elas não obedecem a uma proporcionalidade entre os
objetos reais, o que indica que esse critério ainda não faz parte do mundo dessas crianças. Não
89
Fig. 16
A minha roupa
Fig. 17
A minha roupa
O livro de Eric Carle, Da cabeça aos pés, apresenta uma outra proposta que nos faz refletir
sobre a literariedade dos livros dedicados aos bebês. A obra dialoga com as possibilidades e
as necessidades do universo dos bebês na medida em que os convida a prestar atenção às
partes do corpo e suas possibilidades de ação. À diferença dos livros pedagógicos em que
aparecem as partes do corpo com seus devidos nomes, o livro de Carle desafia os leitores a
imitarem os movimentos feitos pelos animais com a utilização de códigos icônicos e gráficos
que acentuam a expressão do movimento. O autor utiliza personagens que habitam e cativam
o universo das crianças para desafiá-las a imitar seus peculiares movimentos: o macaco
balança os braços, a foca bate palmas, o elefante bate as patas, o pinguim vira o pescoço.
90
Fig. 18 Fig. 19
Da cabeça aos pés Da cabeça aos pés
São situações que personalizam e contextualizam os movimentos propostos. O autor opta pela
utilização, em sua maioria, das cores primárias e de traços simples para permitir que os
pequenos leitores não se percam em leituras paralelas e se concentrem na brincadeira de
imitar os animais. Todavia, apesar de simples, as ilustrações são primorosamente trabalhadas
com pinceladas que dão texturas aos personagens e colaboram para educação do olhar. A
escolha das cores, do traçado e do espaço duplo na página demonstra o respeito do autor pela
ainda incipiente estrutura cognitiva do pequeno leitor, pois ele ainda está em processo de
conhecimento do mundo. A estética da imagem passa também por uma construção gradual do
ver e é isso que encontramos ao apreciar as figuras propostas por Carle. O livro é cartonado e
tem dimensões maiores, o que facilita o manuseio pelas crianças de tão pouca idade.
Essa obra transcende os aspectos pedagógicos de nomear as partes do corpo e propõe uma
brincadeira interativa com as crianças. Com isso, o autor faz com que as crianças percebam
que podemos fazer coisas com a linguagem que não só nomear o mundo: a linguagem nos
convida a perceber, a imitar, e a agir. Esse é um livro para ser experimentado com os olhos, os
ouvidos e o corpo, indicando a verdadeira dimensão lúdica do trabalho de linguagem.
Vale, também, citar o livro Cocô no trono, de Benoit Charlat, que trata de uma questão muito
peculiar e importante para as crianças: a retirada das fraldas. Essa é uma etapa da vida que
merece muita atenção e cuidado, pois envolve uma mudança de comportamento e é, para
muitas delas, um ritual de passagem.
O livro é cartonado com ilustrações coloridas. Não há muitos elementos visuais nas imagens
que compõem cada página, o que possibilita que o leitor não se perca entre o que diz o texto
91
verbal e o que é representado pelo texto visual. O texto é construído a partir do personagem
de um pintinho que se vê às voltas com os cocôs feitos por diferentes espécies de animais.
Para cada tipo de cocô o pintinho tece uma consideração. Assim, as crianças vão se deliciando
com diversos animais que fazem cocôs diferentes sentados no vaso sanitário.
Fig. 20 Fig. 21
Cocô no trono Cocô no trono
Fig. 22
Cocô no trono
O livro apresenta um tema que vai ao encontro do universo infantil. A frase inicial denota o
encadeamento temporal - “Esta é a história de um porquinho que faz cocô de pudim...”. A
descrição das cenas é o ponto de destaque da proposta, e o acúmulo delas resulta na decisão
do pintinho de sair do penico e assumir o lugar onde os mais velhos fazem cocô: a privada.
Essa pequena sequência de cenas é que justifica a frase “sozinho feito gente grande! ”, e, ao
final todos os animais voltam para parabenizar o pintinho “que não se esquece de dar
descarga! ”.
92
Para os bebês, uma sequência simples como essa pode ser uma forma de eles inferirem “e
depois? ”, “e depois? ”, “e por fim... ”, elementos linguísticos encadeadores da sequência
temporal.
Fig. 23
Cocô no trono
Como proceder, então, para classificar os livros destinados a bebês como literários ou não
literários? Eagleton (2003) declara que
Como nenhum discurso é neutro, o interesse constitutivo dessa pesquisa é buscar referenciais
teóricos que auxiliem na caracterização dos livros destinados aos bebês como literários ou não
literários, uma vez que há muitas maneiras de falar sobre literatura.
Como exposto anteriormente, também, os bebês não desenvolveram ainda estratégias leitoras
que lhes possibilitem apreender o complexo sistema de organização que subjaz as narrativas
literárias. Assim, eles ainda não são capazes de sozinhos, construírem textos que possam ser
reconhecidos como narrativas propriamente ditas. Embora não sejam capazes de criar
discursos narrativos nem de compreender ainda o encadeamento temporal das histórias, essas
crianças dispõem de outros tipos de linguagens de que se utilizam para construir seus
enunciados. Os balbucios, os gestos e o choro são exemplos de linguagens de que os bebês
fazem uso para se comunicar e relatar fatos ocorridos. A incapacidade de se expressar
93
verbalmente não deve ser vista como impedimento para perceber, nas intenções
comunicativas dos bebês, o embrião das narrativas futuras. Os bebês evocam gestos de
músicas, apontam para objetos e partes do corpo como forma de construir relatos de eventos
vividos e de expressar desejos. É função do adulto, que participa desses contextos de
interação, saber colocar em palavras o que eles falam por meio de outros sistemas simbólicos.
Para Perroni (1992), a tentativa feita pelas crianças de narrar episódios vivenciados pode ser
vista como um comportamento preparatório para a construção das narrativas propriamente
ditas. Essas tentativas, denominadas de protonarrativas, são derivadas de respostas a
perguntas feitas pelos adultos que requerem o preenchimento de elementos dentro de uma
estrutura típica do discurso narrativo. São perguntas do tipo: onde você foi passear ontem à
tardinha?, ou: o que você fez no fim de semana?, ou: como você machucou o dedo?, e outras
que remetam à experiências anteriores. A função dessas perguntas seria levar a criança a
aprender a contar, ou seja, organizar suas ideias em forma de discurso narrativo. Esse “jogo
de contar” aparece, para a autora, por volta dos primeiros dois anos de vida da criança.
Entretanto, pesquisadores como Bruner (2007) e Golse (2007) têm evidenciado que bebês de
poucos meses de vida já apresentam a surpreendente capacidade de assumir seu papel no
diálogo, mantendo seus turnos de enunciação. Isso nos leva a crer que os bebês, ao contrário
do que se acreditava, já são capazes de abstrações baseadas em sentidos e significações que
vão extraindo da experiência vivida. Mais adiante abordaremos mais detalhadamente o
assunto, mas para o momento é importante frisar que, mesmo não por meio de abstrações
verbais, os bebês são incrivelmente competentes na arte de significar e expressar suas
significações.
Apesar de discordarmos do escalonamento etário feito por Perroni (1992) em sua pesquisa
sobre o desenvolvimento do discurso narrativo, pois o desenvolvimento de determinadas
habilidades das crianças está em direta relação com as experiências que seu entorno
sociocultural oferece, acreditamos ser pertinente considerar a sua abordagem sobre os modos
de acesso à narrativa aos quais a criança é apresentada. De acordo com a autora, a criança é
exposta a dois tipos distintos e não relacionados de discurso narrativo: o primeiro acontece
através do “jogo de contar”, “um processo analítico em que não há de antemão uma situação
completa a ser narrada e que vai sendo configurada pelas perguntas e respostas” (p. 60); e o
segundo acontece através de histórias contadas pelo adulto e recontadas, posteriormente, pela
criança. O papel do adulto na coordenação desses dois modos de narrar é preponderante na
94
medida em que ele atua na construção conjunta da narrativa. Isso propicia que a criança
comece a analisar a estrutura sintático/ semântica das narrativas. Dessa forma, podemos
inferir que a construção da capacidade de narrar tem suas origens em contextos específicos de
interação entre adultos e crianças.
Guimarães (2014), em seu artigo “De uma fantasia que não seja mera ilusão”, traz as
contribuições de Agamben, que atribui à ideia de jogo um papel transformador. Através da
teoria das profanações de Agamben, que indicou ser possível “fazer novas todas as coisas” a
partir da negligência que ignora os rituais e faz um uso particular das coisas independente de
seus significados, Guimarães (2014) atesta que as crianças “não reafirmam a norma ou o ritual
ligado originalmente às coisas” (p.25), mas elaboram uma verdadeira recriação. Para o autor a
característica revolucionária das crianças não carrega a noção idealizada da liberdade
criadora, ao contrário, elas elaboram um rompimento por dentro do já constituído. A arte livre
das crianças é regida por regras e sentidos que vão se modificando a partir do próprio fazer.
Esse talento inerente das crianças de criar ficções não as afasta da realidade, mas, ao
contrário, serve de alicerce para estruturação de seu processo de construção do eu.
A “ideia de uma fantasia que não seja mera ilusão” é confirmada por Vigotski (2009), que
declara existirem formas diferentes de relacionar fantasia e realidade no comportamento
humano, mas que em todas elas é possível perceber uma combinação de imagens tomadas da
realidade e presentes na experiência anterior do sujeito. Essas construções são elaboradas com
elementos da realidade e submetidas a reconstruções ou modificações. Além disso, para o
autor, as imagens da fantasia servem também de expressão interna para os nossos
sentimentos; assim, as imagens fantásticas propiciam uma linguagem interior de sentimentos
que são reais. Quando assistimos a um filme de terror, sabemos se tratar de um produto
ficcional. Entretanto, os sentimentos de apreensão e medo que a película nos impõe são
totalmente reais. Depreendemos disso que a imaginação influência nos sentimentos e que toda
forma de criação fantástica contém elementos afetivos.
O autor enfatiza que os elementos afetivos despertados pelo ato criador da imaginação
precisam se entrelaçar com a parte intelectual do sujeito para se encarnarem e se tornarem
realidade. Em outras palavras, a imaginação precisa ser completada, ou seja, tornar-se um
artefato, uma palavra, uma imagem, enfim, tornar-se um produto que possa ser partilhado com
o coletivo cultural. Assim, ao se encarnarem, retornam à realidade.
95
Podemos inferir que a separação entre fantasia e realidade não se estabelece de maneira tão
inequívoca quanto podemos crer e que as elaborações ficcionais se alimentam de experiências
empíricas que, por sua vez, também são produtos de criações imaginárias. O círculo da
atividade criativa da imaginação proposto por Vigotski (2009) se completa quando a fantasia
se encarna na realidade e nos dá a ver que a fantasia não é mera ilusão, mas que toda a
verdade0tem0estrutura0de0ficção.
96
Foram muitos os autores que cruzaram o nosso caminho na tentativa de aguçar nosso olhar e
de ressignificar nossos saberes sobre as interações iniciais dos bebês com o mundo. Não há
como discorrer sobre todas essas contribuições dada a abrangência das áreas de conhecimento
que integram as produções desses muitos teóricos e pesquisadores. Entretanto, é preciso
sinalizar que as aproximações do universo infantil exigem o diálogo constante com todas as
ciências que tratam do tema devido às sombras e às interpelações constantes que caracterizam
esse ciclo de vida.
A intenção deste estudo se alicerça na tentativa de pensar o fenômeno “bebês” dentro das
exigências que ele nos impõe e não a partir de paradigmas já consolidados. Como lidamos
com diferentes campos do saber, estamos cientes dos desafios de conciliar ideias e enfrentar
contradições. Nas palavras de Bakthin (2012), “cada campo de criatividade ideológica tem
seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira.
[...]. É seu caráter semiótico que coloca todos os fenômenos ideológicos sobre a mesma
definição geral” (p. 33). Sendo assim, cada sujeito defronta-se com situações que exigem
recortes distintos de outros feitos por sujeitos diferentes. O caráter do desenvolvimento não se
edifica sobre visões lineares e unívocas. Ao contrário, ele se faz por meio de contradições,
negociações, interconexões e associações de significados.
97
Dessa maneira, todo conhecimento apresenta, ao mesmo tempo, uma tradução e uma
reconstrução, a partir de “sinais, signos, símbolos, sob a forma de representações, ideias,
teorias, discursos” (MORIN, 2003, p. 24). É um processo circular passando da análise à
síntese e da síntese à análise e que deve inserir um conhecimento particular dentro de seu
conjunto. O apagamento das fronteiras entre as diferentes áreas de conhecimento é
fundamental para elucidar as relações de reciprocidade entre as partes e o todo e, como bem
observa Morin (2003), reconhecer o elo natural e insensível que liga as coisas mais distantes e
as mais diferentes.
O alto grau de dependência do bebê humano dos adultos faz com que nos relacionemos com
essas crianças como se delas já tudo soubéssemos. Entretanto, a pouca idade é inversamente
proporcional à sua imensa complexidade, que ainda não foi totalmente desvendada e que nem
sabemos se um dia será. O fato de não usarem a linguagem verbal para expressar sua maneira
de produzir significados e sentidos obscureceu, durante muito tempo, as interações dos bebês
com seu entorno sociocultural. Àquele que não fala foi negado o direito à cidadania, ou seja, o
direito de ser um sujeito que interage com a cultura produzindo significações e fabricando
cultura.
Saber exatamente como os bebês iniciam seu processo de subjetivação é algo que tem gerado
buscas constantes de muitos pesquisadores. De maneira concisa, poderíamos dizer que a vida
psíquica consiste em fazer representações do mundo, representações de si mesmo e
representações das relações que se tem com o mundo e consigo mesmo. A instauração do
aparelho psíquico não deriva simplesmente de fazer decodificação de mensagens, pois, se
assim fosse, todos teríamos o mesmo mundo de representação interno.
98
Por consequência, o que tentamos fazer, no caso específico dos bebês, é usar as novas
tecnologias, como ultrassom e vídeos, e os indícios que eles nos apontam para tentar construir
representações provisórias que nos auxiliem a nos acercar cada vez mais do modo como eles
se relacionam com o mundo. Essas aproximações são necessárias para modificar concepções e
favorecer interações de qualidade25 as quais possibilitem práticas que respeitem e exaltem a
riqueza e as competências dessas crianças em se implicar no mundo. Isso nos dará condições
de melhor analisar a diversidade de livros para bebês e as experiências literárias e estéticas
que essas obras podem propor.
Para tanto, buscamos aporte teórico nas ideias de Ceccatty (1999) e Klaus e Klaus (2001) para
descrevermos e analisarmos o aparato biológico-sensorial dos fetos e dos bebês sempre
tentando dialogar com a perspectiva histórico-cultural. Também procuramos embasamento
conceitual em Golse (2002a, 2002b, 2003, 2005, 2007), reafirmando a necessidade de muitas
vozes para tentar nos aproximarmos cada vez mais dos sentidos e das significações
produzidas pelas crianças de até dois anos de idade. Golse amplia nossa visão sobre o
processo de humanização ao trazer para a discussão a afirmativa de que o inconsciente e a
25
Sabemos que o conceito de qualidade é dinâmico e relativo e que se transforma no tempo e no espaço.
Contudo, optamos por relacionar, em nossa pesquisa, o termo qualidade à ampliação da criação de sentido.
Dessa forma, o termo subjaz a uma serie de concepções que nos são caras, como a concepção de infância, de
criança e, agora, de bebê.
99
linguagem assinam a nossa humanidade. Dito de outra maneira, somos feitos de signos, mas
também de sonhos.
Vigotski (1996, 2000), Pino (2005) e Martins (2015) serão nossos interlocutores ao tratarmos
do desenvolvimento histórico-social do psiquismo humano. E Golse (2002a, 2002b, 2005,
2007) nos auxiliará na ampliação da discussão sobre o crescimento e a maturação dos
processos psíquicos dos bebês através de uma visão transdisciplinar e plurifatorial da
ontogênese dos seres humanos.
A opção por colocarmos autores como Vigotski e Golse na fundamentação teórica desta
pesquisa, os quais se ocupam da discussão sobre sentido e significado a partir de perspectivas
distintas, uma histórico-cultural e a outra fenomenológica respectivamente, se dá por
afirmarmos o nosso interesse em buscar caminhos possíveis para que outros discursos possam
se articular. Os dois autores, apesar de falarem de lugares diferentes, comungam da ideia de
haver dois planos no processo de instauração do aparelho psíquico – um social e outro
pessoal. Isso quer dizer que eles compartilham o entendimento de que a humanização não
emerge da maturação e do desenvolvimento orgânico. Ao contrário, as “formas humanas”
surgem como resultado da inserção das crianças nas práticas sociais do seu meio cultural e
através da mediação do Outro.
Assim sendo, partimos agora para o desafio de procurar tecer uma rede de conhecimentos
capaz de articular as partes com o todo e o todo com as partes com o objetivo de encontrar
caminhos e ressignificar trajetórias sobre como os bebês leem o mundo e produzem discursos
antes de aprenderem a ler no sentido convencional da palavra.
100
Ao nascer, o bebê é introduzido em uma rede de significações que ele vai tentando desvendar
à medida que se relaciona com os instrumentos da cultura, pois o desenvolvimento humano
tem sempre uma dupla natureza: biológica e cultural. Cada choro, gesto, balbucio, sorriso é
nomeado pelos membros mais experientes e é essa mediação que constrói os alicerces para
representações dos bebês. Toda ação da criança é um processo contínuo de construção de
sentido, a fim de introjetar as particularidades do seu entorno e se constituir como sujeito do e
no mundo. Assim, o desenvolvimento da criança não é só o que podemos ver externamente,
como aumento do peso e da estatura, mas é também o que, muitas vezes, não podemos
observar.
Tomando as palavras de Winnicott (1975), um bebê deixado à própria sorte não existe. Ou
seja, o desenvolvimento do cérebro não é autônomo e depende das relações que a criança
estabelece com o meio. Assim, desde o nascimento, a quantidade e a qualidade das interações
vão ampliar ou restringir o universo de significações e sentidos.
A criança tem um desenvolvimento holístico. Isso significa dizer que o modo como ela
apreende o mundo não se dá de forma compartimentada e que é o corpo, como um todo
integrado, sua principal ferramenta para experimentar a vida. É através do corpo que o infans,
aquele que não fala, inicia sua “leitura” do mundo, sendo o corpo o seu espaço de narração.
Durante muito tempo o termo “lactente” foi utilizado para se referir aos bebês como um ser
passivo e quase inteiramente dependente dos adultos. Contudo, as últimas quatro décadas26
têm demonstrado que eles são dotados de muitas competências, o que alargou os estudos e as
interrogações sobre as interações iniciais dessas crianças.
Pesquisadores como Klaus e Klaus (2001) afirmam que, na vida uterina, o mundo do feto está
cheio de atividades, de ritmos, de sensações e de sentidos que já se mostram eficazes para dar
respostas às ações e às emoções da mãe. O aparato biológico do feto, como a visão, a audição,
o paladar e o tato, prepara o bebê para suas primeiras interações minutos após o nascimento.
26
Para mais informações sobre os recentes estudos sobre os bebês ver artigo de VASCONCELOS et al. “A
incompletude como virtude: a interação de bebês em creches”. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2003, 16(2), pp.
293-301.
101
Segundo esses autores as experiências do bebê intraútero servem como um “ensaio” que o
prepara para a vida fora do útero.
Os mesmos autores atestam que microfones colocados no útero de mães, em idade gestacional
entre vinte e quatro e vinte e oito semanas, mostraram que o ambiente uterino é uma sinfonia
de sons e vibrações que compreendem o ruído do sangue correndo pelos vasos sanguíneos da
mãe, seus batimentos cardíacos, sua respiração, seus movimentos gastrointestinais e sua voz.
Esse procedimento também constatou que os fetos são sensíveis a barulhos externos e aos
movimentos físicos da mãe, como também ao seu estado emocional e fisiológico. A partir dos
movimentos respiratórios e cardíacos da mãe, o feto forma uma memória da sua voz, das suas
atividades físicas e de seus estados emocionais. Essa memória chamada pré-natal encontra
ressonância nos discursos de mães e pais que narram a extraordinária capacidade dos recém-
nascidos27 de reconhecerem uma melodia, um poema ou um acalanto que lhes foi oferecido
quando eles ainda estavam dentro do útero. É espantoso pensar que uma criança ainda
intraútero possa ter uma representação mnemônica de algo experimentado empiricamente,
mas, como veremos nas seções seguintes, existe um tipo de memória denominada involuntária
que se estrutura a partir da excitação do córtex cerebral e que resulta em registros
espontâneos.
Para nosso tema em questão, essas observações e descobertas são importantes, pois atestam
que mãe e bebê estão envolvidos em um diálogo constante muito antes do nascimento. Essa
comunicação pré-natal é uma atividade dialógica, para citar o conceito bakhtiniano, em que a
mãe se ajusta às novidades e ritmos de uma nova vida e o feto experimenta o mundo através
das vibrações e sensações mediadas pela mãe.
Ao contrário do que se pensava antes28 um bebê com menos de cinco horas de nascido é capaz
de olhar fixamente para a mãe se ela estiver a uma distância de mais ou menos vinte a vinte e
27
Segundo o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), o período neonatal começa
no nascimento e termina após 28 dias completos depois do nascimento. Dessa forma, a definição de recém-
nascido utilizada nessa pesquisa adota esse recorte etário. Informação acessada em
http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/WebHelp/definicoes.htm em 24/02/2016.
28
Klaus e Klaus (2001, p. 39) relatam que em 1996, T. G. Bower, que dedicou seus estudos a desvendar o
universo dos recém-nascidos, desenvolveu um experimento no qual alguns bebês receberam uma chupeta com
um controle conectado a uma tela na qual eram projetados diferentes rostos de mulheres, incluindo os rostos de
102
cinco centímetros. Não é por acaso que a distância entre o seio e o rosto da mãe tem mais ou
menos essa medida. Como os bebês nascem míopes, eles, nos primeiros três ou quatro meses
de vida, não conseguem acomodar a visão à distância. Por isso, se sentem muito mais atraídos
por objetos que estão próximos do seu raio de visão. A despeito disso, os recém-nascidos
enxergam suficientemente bem para se sentirem atraídos, imitarem e responderem a várias
expressões faciais da mãe29 e de outros adultos. Os bebês, ainda como poucas horas de
nascido, são extremamente responsivos a mudanças sutis nos rostos de suas mães ou nos de
outros personagens maternos.
Muitos outros experimentos foram feitos com a finalidade de pesquisar a acuidade visual dos
bebês. Na década de sessenta, o dr. Robert Fantz, citado por Klaus e Klaus (2001),
demonstrou que os bebês manifestam preferência entre padrões abstratos que apresentem
curvas e listras, são especialmente atraídos por contornos nítidos e pelo contraste claro/escuro
e demonstram preferência pelas cores primárias. A atração pelo contraste claro e escuro nos
leva a supor que essa discriminação poderia ser uma competência precoce dos recém-nascidos
que os habilitaria a identificar a aréola do seio materno pela contraposição de cores. A
preferência por padrões abstratos também é analisada por Golse (2007), que declara que o
“bebê faz primeiro um retrato abstrato da mãe, antes de fazer, posteriormente, um retrato
figurativo de tipo fotográfico” (p. 242). Para o psicanalista infantil, isso acontece porque o
bebê humano, em suas interações iniciais, faz representações generalizadas que constituem
suas mães. Após um período de observação direta, Bower e seus colaboradores concluíram que havia um padrão
para a sucção da chupeta pelos bebês. Assim, quando eram projetados os rostos de mulheres desconhecidas os
bebês tendiam a sugar a chupeta de uma determinada forma. Contudo, quando era o rosto de mãe que os bebês
viam na tela a sucção tomava outra configuração.
29
Utilizamos o termo mãe por diversas vezes no texto, mas estamos cientes de que ele corresponde a qualquer
adulto que desenvolva a função maternante.
103
O líquido amniótico colabora para que o som viaje facilmente pelo útero materno. Meses
antes do nascimento, a audição dos bebês já se encontra bem desenvolvida.
Os recém-nascidos são muito responsivos à voz humana. Isso demonstra que os bebês não
vivem em um mundo fechado e que estão aptos e sedentos para se comunicar. As interações
verbais e não-verbais entre os bebês e seus cuidadores fundam o alicerce para a ancoragem de
toda a aprendizagem infantil. Os “atos de fala” declarados por Bakhtin (2012) podem ser
transpostos para as relações comunicativas entre mães e bebês se considerarmos estas uma
interação feita não somente por palavras, mas por gestos e sons que são nomeados e
interpretados dentro de um contexto linguístico e não linguístico. Para ambas as partes existe
produção de sentidos e por isso podemos inferir que há textos para serem lidos onde os
significados são compartilhados.
A voz materna é um dos principais sons identificados pelo recém-nascido, poucos minutos
após o nascimento. A preferência pela voz da mãe pode ser o resultado da interação constante
mãe/bebê durante toda a vida fetal, mas, também, pode dever-se ao fato de as vozes mais
graves, como as masculinas, serem menos audíveis pelo feto. A preferência pelas vozes mais
agudas parece fazer com que as mães e os pais tenham desenvolvido uma maneira particular
de falarem com seus bebês denominada de motherese. Geralmente, esse modo de conversar
com os bebês apresenta um tom mais agudo e um prolongamento das vogais que permite aos
bebês se familiarizarem com os sons de sua língua nativa. Mais do que outros estímulos, a
voz, para os bebês, provoca sorrisos, atrai olhares, acarreta balbucios e gestos, o que permite
uma relação face a face e motiva um jogo comunicativo entre o adulto e a criança.
Além dessa forma particular de linguagem, com frequência os adultos fazem uso de
expressões faciais exageradas e de movimentos corporais que ajudam a acentuar a atenção do
bebê e o seu interesse por essa forma de comunicação.
104
Golse (2007), ao qual retornaremos na próxima seção, declara que a prosódia é, de certo
modo, a parte não-verbal do discurso verbal, na medida que ela veicula a parte emocional da
cadeia falada. Contudo, ele alerta que é importante não fazer uma clivagem muito severa entre
esses dois tipos de registro, pois há uma enunciação que diz respeito “às palavras em si
mesmas, que nunca são puro enunciado, e há enunciado na própria música da linguagem que
em nada é pura enunciação” (p. 102). Essa parte não-verbal da linguagem, à qual o autor dá o
nome de analógica, é extremamente importante para a inserção dos bebês na linguagem
verbal.
A capacidade de ouvir qualifica os bebês para perceber os sons das palavras, ou seja, para
organizá-las, segmentá-las e reconhecê-las. No entanto, não devemos nos esquecer que o
recém-nascido e os bebês de mais idade não trabalham sobre o mesmo objeto. Para os recém-
nascidos, esse objeto consiste em sons que ele discrimina e categoriza. Já os bebês de mais
idade apresentam mais vivência discursiva, o que os faz não mais atentar apenas para a
prosódia, mas também para a palavra portadora de sentido.
desenvolve, desempenha uma função e soluciona um problema” (p. 157). Essa movimentação
do pensamento ocorre interiormente através de uma série de planos. Dessa forma, é legítimo
pensar que o recém-nascido vem ao mundo com um aparato biológico que o faculta a pensar.
Contudo, o pensamento do bebê não é igual ao dos adultos ou o das crianças de mais idade,
pois há um longo percurso feito pelo pensamento até que ele seja expresso em palavras. Para
o psicólogo, o aspecto interior da palavra - semântico - e seu aspecto exterior - fonético,
embora formem uma unidade, têm suas próprias leis e movimentos. Semanticamente, a
criança parte de um todo significativo para, só mais tarde, passar a analisar as unidades
semânticas em separado, os significados das palavras e dividir seu pensamento, anteriormente
indiferenciado.
Uma criança no início pré-linguistico não pode ser dita participar num ciclo
griciano30 consciente, quando utiliza signos convencionais nos seus jogos com a
mãe. Tanta consciência parece improvável. Porém, a mãe atua como se a criança
assim o fizesse. A criança, por sua vez, rapidamente começa a operar como uma
espécie de versão júnior do ciclo griciano. Esperando a “aceitação” pela mãe de sua
sinalização. (p. 35).
É evidente, nas ideias desenvolvidas por Vigostki (2008) sobre o significado das palavras, que
a significação ocupa um lugar central na constituição do psiquismo infantil, já que ela
possibilita a reconstrução interna do mundo externo. Bakhtin (2012), assim como Golse
(2007), corrobora as ideias de Vigotski ao afirmar que
30
Paul Grice é um filósofo inglês que declarou a existência de uma espécie de acordos linguísticos entre os
interlocutores que desenvolvem uma conversação, seja ela escrita ou oral. Assim, em nossos intercâmbios
comunicativos existe um “contrato linguístico” que define e delimita os esforços de cooperação de cada
participante. Cada par comunicante reconhece um conjunto de propósitos comuns e de movimentos
conversacionais que podem acolhidos ou rechaçados.
106
À diferença dos outros mamíferos, os sinais efetuados pelos bebês humanos produzem nos
adultos um processo de significação que lhes possibilita descobrir a relação que existe entre
seus sinais e as significações atribuídas pelo seu interlocutor. Esses ícones vocais e gestuais
analógicos, ainda muito próximos do corpo sensorial e dos reflexos, servem de substrato para
a aprendizagem das crianças, pois encontram um Outro que lhes outorga significado e sentido.
A interpretação dos gestos, dos balbucios e dos choros dos bebês permite a inserção dessas
crianças na cultura, pois dá a esses sinais o valor cultural compartilhado dentro de um padrão
de normas, hábitos e valores.
Desse modo, o aparato sensorial dos bebês, geneticamente programado, dá a eles a capacidade
de interagir com o meio social e cultural e de produzir representações sobre suas percepções.
Todavia, é necessário não perder de vista que a internalização das práticas culturais só é
possível pela mediação semiótica. Assim, as representações construídas pelos bebês são
sempre mediadas, quer por sinais físico-químicos, quer por outras linguagens de valor
semiótico.
Ceccatty (1999), como estudioso da biologia celular comparada, mostra-se perplexo com o
fato do grande silêncio instaurado entre os dois a três milhões de anos, que poderiam ser
qualificados como pré-verbais, e que “vão desde Lucy e do homo habilis mudos ao homo
sapiens sapiens loquaz” (p. 9). Assim, desvalorizamos nosso presente com nossos silêncios
infantis, isto é, com todo um conjunto de inteligência sem palavras que nos legaram nossos
ancestrais como um patrimônio comum.
Depreendemos dessas considerações feitas por Bruner (2007), Ceccatty (1999) e Golse (1999)
que os bebês são sujeitos que apresentam uma inteligência pré-verbal que os capacita a
interagir com outros sujeitos. Suas representações mentais constroem modelos silenciosos da
realidade, antes das produções linguísticas. Sua inteligência nunca esperou a palavra para se
exprimir. Para isso, eles “emitem” sinais que são captados por um sujeito mais experiente que
os interpreta de maneira formal de acordo com uma semântica estabelecida pela sua cultura.
Toda essa codificação e decodificação permite que os bebês construam sua subjetividade,
individualizem-se e adquiram uma pertença identitária.
107
A despeito de concordamos ou não com as conjecturas feitas por Ceccatty (1999), suas ideias
são importantes para refletirmos sobre as capacidades cognitivas que antecedem a expressão
da palavra. E elas nos chamam a um compromisso ético, e por isso responsável, de olharmos
para os bebês com mais seriedade e atenção, pois eles experimentam o mundo no silêncio que
reina antes da fala. Embora, ele possa estar pleno de sentidos e significados que estamos
tentando compreender.
A boca e as mãos são as partes do corpo que apresentam mais transmissores táteis e, por isso,
a boca é eleita pelos bebês como uma das formas preferenciais de “provar” o mundo. As
sensações e percepções despertadas ao colocar um objeto na boca podem ser transferidas pelo
cérebro para outro canal sensitivo-sensorial. Golse (2007) denomina essa faculdade de
transmodalidade. Segundo o autor, é a partir dessa capacidade que os bebês constroem seus
envelopes protonarrativos. Voltaremos a esse assunto com mais detalhes mais adiante.
A cultura popular, sabedora de muitos mistérios que rodeiam os seres humanos, produziu uma
série de narrativas de contato em que o corpo dos bebês se materializam como suporte de
narração. Podemos citar Cadê o toucinho que estava aqui como um exemplo de jogo que usa
o corpo do bebê como espaço para produção de sentidos e significados.
108
Da mesma maneira que o tato, Klaus e Klaus (2001) declaram que os bebês nascem com o
paladar altamente desenvolvido. Eles são capazes de discriminar diferentes alimentos
colocados em sua língua. Eles sentem mais prazer quando provam alimentos doces do que
quando degustam sabores salgados, ácidos ou amargos.
Todavia, Klaus e Klaus (2001) afirmam que os recém-nascidos movem o corpo como um
feedback às interações com a voz adulta:
Ao falarem com os bebês e perceberem que eles aumentam o movimento dos braços e das
pernas, abrem ou fecham as mãos, franzem a testa, arqueiam as sobrancelhas, os adultos
interpretam essas ações não como meros reflexos inatos, mas como atos responsivos, e
intensificam o jogo comunicativo. Essa brincadeira de movimentos de corpo e de expressão
verbal possibilita aos bebês passarem dos meios biológicos para os meios convencionais.
Bruner (2007) ratifica que esse jogo interativo oferece aos bebês a oportunidade de saber que
as palavras são um instrumento para falar sobre as coisas. O autor dá a essa atividade o nome
109
Assim, temos mais uma vez a afirmação de que o aparato sensorial dos bebês os habilita a
iniciar seus processos de significação e sentido ainda em tenra idade. Suas ações, a princípio
naturais, vão tomando características intencionais e culturais a partir da rede de significados e
sentidos estabelecidos com as pessoas mais experientes de seu entorno social. Concluímos
pelo exposto que o corpo do bebê está preparado para falar muito antes de ele pronunciar a
primeira palavra.
O aparelho sensorial dos bebês é a porta de entrada para a interação deles com o mundo. De
acordo com Martins (2015), as sensações são processos funcionais que desempenham um
papel primordial para o início da vida psíquica das crianças, pois é na relação do sujeito com
o objeto que reside o processo fundante da formação de imagens subjetivas da realidade.
Isso nos leva ao entendimento de que o corpo e o cérebro interagem continuamente entre si e
com o ambiente externo para que a psique se constitua e evolua. O ambiente, dependendo do
tipo de interação estabelecida, deixa, de diferentes formas, sua marca no corpo do indivíduo.
110
Os órgãos sensoriais, como já exposto, captam esses estímulos informativos que empreendem
um longo e complexo caminho pelo sistema nervoso até se converterem em uma informação
semiótica. O estímulo informativo, durante o seu percurso, poderá ser ativado, atenuado ou
mesmo abolido dependendo do tipo de interação do sujeito com o ambiente e de seus
interesses.
O bebê humano, como um ser social por excelência, relaciona-se com o ambiente, desde seu
nascimento, para modificá-lo de acordo com suas necessidades e seus desejos. Inicialmente,
ele chora porque tem fome ou para demonstrar algum desconforto e é, em condições
favoráveis, atendido. Com o tempo ele vai aprendendo que o choro desperta reações diversas
em seus cuidadores e faz uso dessa função inata para conquistar objetivos diferentes. Quando
a criança muda seu comportamento a partir de uma situação objetiva que foi interpretada
pelas pessoas com as quais convive, podemos dizer que já se iniciou o processo de
internalização.
Contudo, Vigotski relata que o processo de internalização não ocorre de maneira linear. Ele é
o resultado de evoluções e involuções que ocorrem durante um longo período de
desenvolvimento das crianças. Isto é, “o processo, sendo transformado, continua a existir e a
mudar como uma forma externa de atividade, antes de internalizar-se definitivamente” (p. 75).
Muitos livros de literatura infantil produzidos para bebês, como será visto mais adiante,
apresentam uma sinestesia sensorial e perceptiva, pois utilizam mais de uma modalidade
sensorial em sua construção. Não sabemos se intencionalmente, por criatividade ou para não
fugirem das demandas mercadológicas, os autores desses livros infantis concebem suas obras
dentro do entendimento de que as crianças apreendem o mundo de maneira integrada. O
corpo, como caminho para a produção de significados e sentidos, é um instrumento
fundamental para a gênese do processo de apropriação cultural e, dessa forma, de
humanização das crianças. Sendo assim, a multimodalidade é uma das características
marcantes da maioria das obras destinadas ao público de até dois anos de idade, pois
possibilita o trânsito das sensações e percepções para a produção de sentido pelas crianças.
Acreditamos que um bom exemplo para ilustrar a atividade da sensorialidade, que extrapola
seu caráter meramente natural, é o filme Vermelho como o céu. Esse filme é uma produção
italiana do diretor Cristiano Bortone de 2006, baseado na história real de Mirco Mencancci,
um dos mais célebres editores de som da indústria cinematográfica italiana.
Mirco fica parcialmente cego ao sofrer um acidente aos dez anos de idade. Na época, os anos
setenta, as crianças com deficiência visual não podiam frequentar escolas regulares e, por
isso, o garoto é matriculado em uma instituição interna que acolhia apenas deficientes visuais.
Excluído da sociedade e apartado do convívio com seus amigos e familiares, Mirco se vê às
voltas com uma educação que visava à profissionalização das crianças dentro dos limites
impostos, na época, aos deficientes visuais. Contudo, o garoto não se submete às adversidades
e às fronteiras impostas pela cegueira e pela escola e passa a subverter as funções de seu
aparato sensorial. Apaixonado por filmes, o garoto encontra um gravador em um porão da
escola e começa a colher os barulhos do ambiente e a construir com eles histórias sonoras. O
filme todo é pura delicadeza e abala nossas certezas sobre como as crianças apreendem o
mundo. A assimilação poética do mundo feita pelas crianças, e que muitas vezes nos escapa, é
maravilhosamente encenada pela forma lírica como Mirco transita de uma sensação modal
para outra. Na escola, Mirco tem um colega, cego de nascença, chamado Felice, que o
acompanha durante suas narrativas acústicas. Um belo dia, Felice pergunta à Mirco como são
as cores e recebe como resposta: o azul é como sentir o vento bater no rosto ao andar de
bicicleta. O marrom é como o tronco de uma árvore. E o vermelho é o fogo. É como fica o
céu no pôr do sol.
112
As novas conexões e relações criadas por Mirco, para que pudesse construir suas histórias
sonoras e interpretar para Felice como seriam as cores, ilustra, a nosso ver, o que Vigotski
quis dizer sobre o caráter sistêmico do psiquismo. Nas palavras de Martins (2015), a conexão
direta, própria ao estágio inicial de desenvolvimento, encontra-se a caminho de sua
“destruição revolucionária”, sem a qual o novo não se constitui.
E foi essa a revolução que o protagonista de Vermelho como o céu efetuou. Mudou o canal de
suas percepções, superando a captação sensorial dos objetos, e fez com que todos pudessem
perceber que fazemos história sem palavras.
Proposta semelhante encontramos em O Livro negro das cores31, publicado pela editora
Pallas. Nesse livro monocromático, a escritora Menena Cottin e a ilustradora Rosana Faría
convidam os leitores a darem lugar a outros sentidos que não somente à visão. Escrito
também em braile, o livro apresenta as impressões modais do pequeno Tomás sobre as cores.
Fig. 24 Fig. 25
O livro negro das cores O livro negro das cores
Com suas definições poéticas sobre as cores, ele leva os leitores a uma sinestesia em que tato,
paladar, olfato e visão se misturam para a apreensão dos sentidos do livro. O livro é todo
negro e traz, sempre na página esquerda, as descrições verbais de Tomás, que aparecem
escritas em braile e no alfabeto tradicional. Na página da direita vemos, em relevo, as
ilustrações em preto que, além de expandir os sentidos do texto verbal, despertam o gostinho
azedo do morango e doce da melancia, a maciez das penas do pintinho, o barulho das folhas
secas embaixo dos nossos pés, o cheirinho da grama recém-cortada.
31
COTTIN, Menena; FARÍA, Rosana. O livro negro das cores. Rio de Janeiro: Pallas. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=mOpO32CDRKE>. (Acesso em 24/05/2016).
113
Esse é um livro que dialoga com o modo como as crianças experimentam o mundo e
descortina para os leitores as possibilidades, muitas vezes adormecidas, de desfrutar o mundo.
Contrariamente a essa ideia, o autor declara que as percepções mais primárias se limitam à
captação de objetos isolados, mas dentro de contextos globais. Ainda que essas percepções se
apresentem inicialmente difusas e carentes de detalhes, a percepção é desde a sua origem uma
função integral e estruturada. A discriminação das partes é uma conquista secundária em
relação à percepção do conjunto.
Golse (2002a), fazendo relação com as ideias apresentadas acima, afirma que um objeto pode
ser captado antes de ser representado, ou seja, antes que as estruturas cognitivas que usamos
para fazer representações estejam trabalhando de modo operatório, os bebês são capazes de
fazer representações de outra ordem. Isto é, quando um bebê descobre que seu choro desperta
a preocupação da mãe, que o acalanto o consola, ele inscreve essas percepções em seu corpo
de maneira global. São sensações que foram integradas aos seus sistemas perceptivos e que se
expressam como representações interativas generalizadas.
Não é por acaso que muitos livros para bebês apresentam texturas, adereços, elementos em
formatos tridimensionais e olfativos. Esses recursos dialogam com a maneira de os bebês
experimentarem o mundo. Tocar, morder, lamber, cheirar são ações que essas crianças
empreendem para poder dar sentido e significado às suas experiências.
Golse (2002a) afirma que existe uma representação “auto” das percepções captadas pelos
bebês que podemos “ler” nos baseando em indícios que eles nos fornecem. Julgamos ser
legítimo inferir que as representações ou percepções generalizadas também se concretizam
mediante a exposição reiterada dos bebês ao estímulo sensorial e à mediação semiótica
efetuada por um sujeito mais experiente da cultura.
Pelo exposto, concluímos que a percepção não é a soma de estímulos exteriores captados de
forma isolada e nem acontece de forma passiva. O homem vive em um mundo de coisas que
se apresenta a ele de maneira complexa. Ele não vive em um meio onde os pontos luminosos,
os sons e os contornos aparecem de forma isolada. Dessa forma, ele não está em contato com
sensações isoladas, mas com imagens inteiras que são percebidas, ultrapassando os limites das
sensações isoladas. A síntese das sensações isoladas pode acontecer tanto nos limites de uma
modalidade quanto nos limites das várias modalidades. Explicando melhor, ao observarmos
um quadro, podemos fazer uso somente da modalidade visual para apreciar sua composição,
suas cores, seus contornos. Entretanto, quando nos depararmos com um morango, lançamos
mão de impressões visuais, táteis e gustativas para percebê-lo.
Golse (2007) utiliza o conceito de transmodalidade para explicar os processos perceptivos dos
bebês. Segundo o autor, os bebês nascem dotados de uma capacidade de percepção chamada
amodal ou transmodal que os habilita a transferir informações recebidas por um determinado
canal sensorial para outro canal. É a partir dessa aptidão que os bebês constroem suas
115
As interações que ocorrem desde os primeiros dias de vida dos bebês acontecem através de
sensações dramáticas, emocionais e temporais que permitem o reconhecimento do objeto
através de seus contornos rítmicos e interativos antes de essas crianças poderem reconhecê-lo
por suas especificidades formais e estáticas. Para Golse (2007), os afetos têm uma função de
representação do objeto. Explicando melhor, um bebê é capaz de reconhecer um livro de
histórias, em suas interações iniciais, pelas sensações afetivas que esse objeto despertou nele,
antes mesmo de poder discriminá-lo como um objeto com forma, cores e texturas definidas.
Cada vez mais a psicanálise infantil acredita que os afetos e as emoções são sensações
originais que os bebês utilizam para apreender e conhecer determinado objeto. Esse estilo
interativo é uma forma que os bebês têm de pensar o objeto. O psicanalista declara que,
atualmente, a afetividade comporta em si mesma uma dimensão de representação e de
comunicação e que “a passagem do indício ao signo, isto é, os processos de semiotização,
surgem claramente como dependentes do afeto” (p. 118).
Podemos inferir a partir das ideias apresentadas que existe um verdadeiro trabalho de
abstração por parte dos bebês, já que eles têm que extrair de suas interações e interrelações
certas invariantes para reconhecer determinado objeto ou para poder simbolizar. Assim, essas
crianças são competentes para decodificar as modalidades de estilo interativo dos adultos que
delas cuidam e para fazer o que Golse chama de protorrepresentações.
Portanto, para Golse (2007), o papel central das emoções na instauração do aparelho psíquico
dos bebês demonstra que a cognição não é a única função em jogo. Os afetos e as emoções
também são fenômenos utilizados como meio de representação.
Vigotski (2008) também afirma que a passagem dos indícios aos signos é feita através de
competências e habilidades das crianças que são anteriores às funções tipicamente
intelectuais. Para o psicólogo bielorrusso, o pensamento e a fala apresentam raízes diferentes
116
Não é que Vigotski não reconheça que os bebês não pensem. O que ele defende é que o
pensamento, em sua função planejadora, só se manifesta depois que a fala pré-intelectual se
une ao pensamento pré-verbal.
A atenção tem uma função psicológica muito importante porque dela depende a qualidade da
acuidade perceptiva. O nosso aparato sensitivo nos habilita a captar as informações do meio,
mas nos é psiquicamente impossível assimilar todas as informações com as quais nos
confrontamos em nosso dia a dia. Dessa forma, para termos êxito em nossas ações, é
necessário que formemos uma imagem focal do que queremos apreender. E a formação da
imagem focal é a função primária da atenção.
A atenção é uma das formas pelas quais a percepção se torna consciente. Em outras palavras,
a atenção exerce a função de selecionar determinados estímulos, inibir outros e redirecionar a
imagem selecionada para a consciência. Para tanto, ela aciona outras funções psíquicas além
da sensorial e da perceptiva, a saber, o pensamento e a memória, ou seja, “orienta programas
seletivos de ação ao destacar racionalmente dadas propriedades percebidas e abstrair outras”
(MARTINS, 2015, p. 143).
117
A fala e os gestos são os primeiros fatores sociais utilizados para chamar a atenção das
crianças. Essas atividades humanas são primordiais para modificar a maneira difusa como o
bebê interage com o ambiente e são a forma mais primitiva de atenção cultural. Por isso,
tantos livros para bebês apresentam situações em que os movimentos corporais estão
vinculados a significados da cultura, a exemplo do livro Todo mundo boceja, da autora e
ilustradora Anita Bijsterbosh e publicado pela editora Brinque Book e Da cabeça aos pés, já
referido anteriormente.
Fig. 26
Todo mundo boceja
Fig. 27
Todo mundo boceja
Vigotski (1995) afirma que são as características do objeto e a mediação do outro que põem
em ação a atenção orientada das crianças. E que a palavra supera sua qualidade de
“estimulação catalisadora” e de “sonoridade indicativa” na medida em que confere
significação aos objetos e às ações dos bebês. Esses procedimentos são essenciais para fazer
com que as crianças ascendam a níveis mais complexos de pensamento.
118
O jogo interativo instaurado entre as mães e seus bebês em suas primeiras horas de vida é a
primeira fase da atenção conjunta. O contato olhos-nos-olhos funda para a mãe o
entendimento de que seu filho é um verdadeiro ser humano. Esse contato inicial provoca
muitas vocalizações por parte da mãe e, em poucos dias, o bebê passa a “compactuar” desse
jogo de narrar.
Por volta do sexto e do sétimo mês, a atenção da criança torna-se governada pela ânsia de
agarrar objetos. Essa fase se caracteriza, principalmente, pela emissão de gestos e vocalizes
que indicam seu desejo de tocar determinado objeto.
119
A partir do oitavo mês de vida32, os bebês iniciam o jogo de apontar, que parece fazer parte de
outro momento do desenvolvimento da atenção e que denota o esforço em marcar o que é
digno de atenção. O gesto de apontar e o seu significado não são algo inato nas crianças. Ao
contrário, ao indicar um objeto, fazendo uso de gestos, os bebês assinalam sua aptidão para se
apropriar das significações da cultura. Bruner (2007) relata que, muitas vezes, os gestos
indicativos dos bebês são acompanhados por um protodemonstrativo, como, hum, hã ou dá.
Essas expressões foneticamente consistentes, mas não padronizadas, pelas quais os bebês
conseguem dirigir a atenção do adulto para o objeto que desejam parece dar início a uma
hipótese semanticamente genuína, na qual “sons vocais não padronizados particulares indicam
classes particulares de objetos” (p. 66). Explicando melhor, as crianças passam a se referir a
determinadas classes particulares de objetos usando os mesmos sons vocais, por exemplo, o
bebê usa a expressão au au para se referir aos animais ou papa para indicar alimentos.
Sem a memória não haveria qualquer possibilidade de fazermos história. É ela que assegura a
retenção e a evocação de conhecimentos, informações, acontecimentos e sentimentos. Sem a
memória não seria possível a nossa adaptação ao meio, não teríamos como partilhar a nossa
trajetória com nossos descendentes e não teríamos como construir nossa identidade. A
formação de imagens mnemônica é, assim, função imprescindível para representarmos o
mundo e a nós mesmos.
32
Bruner (2007) esclarece em seu livro Como as crianças aprender a falar que a divisão etária utilizada por ele
não é uniforme, pois ela está intimamente ligada às diferenças de desenvolvimento biológico e às influencias da
cultura. O autor relata um estudo de caso em que duas crianças apresentam desenvolvimentos completamente
distantes das citadas categorias etárias.
120
No transcurso das relações da memória com o desenvolvimento cultural dos seres humanos,
há uma distinção entre a memória de fixação involuntária e a memória de fixação consciente.
O ato de memorização inconsciente representa a forma primária de registro mnemônico e,
nela, está ausente o planejamento do ato futuro de recordar ou da utilização de meios que
facilitem a evocação.
À medida que a criança desenvolve a fala, os processos de memorização figurativa direta vão
cedendo lugar às abstrações verbais. Contudo, como as crianças da primeira infância ainda
não dispõem dos conceitos completos sobre as coisas, há uma predominância dos fenômenos
concretos sobre os abstratos. Ou seja, pela carência da significação “correta” das coisas, a
memorização das crianças dessa faixa etária se apoia na percepção concreta dos objetos. Elas
precisam ver, tocar, ouvir para construírem imagens mentais abstratas sobre os eventos e os
objetos do mundo.
Vigotski (1996) explica que a memória é o ponto de apoio para as crianças pensarem desde as
suas origens, já que para elas pensar é recordar. Pensar para as crianças da primeira infância
seria, então, uma extensão da percepção experienciada cujos rastros foram fixados na
memória. Por isso, no início da formação de conceitos pelas crianças, o pensamento não é
uma estrutura lógica, mas os traços dos objetos que se fazem presentes na memória. Nas
palavras de Martins (2015) “o lugar do conceito é tomado pela descrição do objeto, de tal
forma que conceituar não deixa de ser, para a criança de tenra idade, o relato de recordações
que produzem do objeto” (p. 164).
Para Golse (2002a), pensar é sinônimo de fazer representações do mundo, de nós mesmos e
de nossas relações com o mundo, mas pensar, fazer representações, não é forçosamente
comunicar. O psicanalista observa que há toda uma variação que vai do indício ao signo,
sendo o indício algo do qual podemos extrair determinadas significações, mas que não tem
nenhuma intenção comunicativa nem consciente, nem inconsciente. Contrariamente, há o
signo verbal, em que há um propósito comunicativo consciente ou inconsciente. Assim, no
que diz respeito à emergência do pensamento, há toda uma atividade representativa dos bebês,
mas que não tem, necessariamente, uma finalidade comunicativa ou de intercâmbio. Seriam
representações generalizadas em que a atividade figurativa seria manifestada no corpo e no
comportamento dos bebês. O pensamento, dessa forma, se enraizaria no corpo a partir das
sensações e iria gradativamente se transformando em percepções que darão origem às
imagens mentais. A presença do adulto é fundamental para que o bebê consiga extrair
material simbólico e formar suas primeiras representações mentais.
Dessa forma, podemos concluir que a função mnemônica, assim como qualquer função
humana, não se deve simplesmente às manifestações puramente biológicas. Ao contrário, é
122
ela um processo complexo e ativo cujo desenvolvimento compreende a superação das formas
naturais de comportamento em direção às formas culturalmente desenvolvidas. É, pois,
através do desenvolvimento cultural que a memória se liberta das imagens mentais diretas e
passa a operar com imagens mentais indiretas ou abstratas.
De acordo com as proposições da Escola de Vigotski, que tem nas figuras de Luria e Leontiev
seus principais representantes, é legítimo pensar que Maria Laura, a menininha que abre esse
capítulo, usa um sistema semiótico para expressar suas intenções? Existe já em
funcionamento um princípio de regulação das próprias ações? Podemos levantar a hipótese de
que ela usa um sistema representacional, anterior à fala, para se comunicar? É possível falar
de abstração no caso relatado? Suas ações são uma demonstração de uma consciência já em
atividade?
Pino (2005) afirma que o signo é o mediador das relações sociais. Porém, é preciso não perder
de vista que a mesma pessoa que manipula uma ferramenta de trabalho também confere à sua
ação uma significação, pois vem daí a possibilidade de criação de novas realidades. Assim,
quando a criança passa a congregar a atividade prática com o signo ocorre uma reorganização
em seu comportamento devido às mudanças qualitativas em seu intelecto.
A imagem subjetiva não é uma cópia literal e unilateral do mundo objetivo, mas produto das
relações estabelecidas pelos homens entre si e deles com o mundo. Os fatos da consciência
não são, assim, meras conversões do que nosso aparelho sensorial capta empiricamente, mas
um fenômeno que abarca uma contradição entre aparência e essência e que está em estreita
relação com as ideias, os conceitos, as normas, os comportamentos e os juízos que orientam e
subordinam a atividade humana.
Como apresentado na abertura desse capítulo, fizemos a opção de utilizar linhas teóricas
distintas com o propósito de ampliar nosso entendimento sobre o fenômeno bebê. Para isso,
enfrentamos o desafio da tessitura de uma rede de complexidades discursivas e acalentamos a
esperança de trazer novos olhares para o mesmo tema. Contudo, durante nossa pesquisa e
conversa com antigos e novos interlocutores, descobrimos em Wallon uma possível
alternativa de erigir uma ponte entre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski e a
psicanálise de Golse, explorada na próxima seção. Devido ao exíguo tempo que ainda restava,
da descoberta do teórico à finalização da pesquisa, e à complexidade da teoria walloniana,
decidimos fazer uma breve incursão por meio das ideias propostas pelo autor a fim de
corroborar o que nos diz João Cabral de Melo Neto: “Um galo sozinho não tece uma manhã:
Ele sempre precisará de outros galos” e também, a fim de afirmar o duplo nascimento do
sujeito, biológico e cultural e sua dupla ancoragem, corporal e interativa.
124
Uma visão do conjunto de sua obra e o conhecimento de suas noções preliminares nos fez
considerar válida a interposição de Wallon entre as perspectivas das origens do psiquismo
propostas por Vigotski e Golse, uma vez que o teórico se predispõe a construir uma teoria que
una o orgânico ao psíquico. Também ele considera que a criança não pode ser estudada
descontextualizada de seu meio, pois suas condições de existência estão em estreita relação
com seu desenvolvimento. Assim, Wallon tangencia as abordagens teóricas elaboradas por
Vigotski por utilizar o materialismo histórico dialético como fundamento filosófico e como
método de análise. No que diz respeito às ideias formuladas por Golse, os escritos
wallonianos descrevem o corpo do bebê como um espaço para os processos de simbolização,
semiotização e subjetivação, pois admitem o organismo como condição primeira de
pensamento. Entretanto, adverte que tais processos só se efetivam nas e pelas interações
sociais.
Como já declarado, pela insuficiência de tempo, não pudemos nos debruçar sobre toda a obra
de Wallon. Dessa forma, elegemos Izabel Galvão como nossa guia pelo universo da
psicologia genética walloniana, sabendo que a leitura dos textos originais do autor é condição
imprescindível para melhores e mais consistentes diálogos entre as diferentes perspectivas
teóricas.
Wallon recorre à psicologia genética e propõe o estudo da criança contextualizada, pois, para
o estudioso, esse é o único procedimento capaz de abarcar a totalidade da vida psíquica. Sua
125
recusa em abstrair e isolar um único aspecto do ser humano o faz propor o estudo integrado
do desenvolvimento infantil, ou seja, o estudo da criança em suas diferentes formas de
conhecer o mundo, a saber, a afetividade, a motricidade e a inteligência, como forma de
ascender às origens do psiquismo. Assim, tem como ponto de partida de seus estudos a
análise da gênese dos processos psíquicos infantis em sua interação dinâmica, complexa e
multifacetada com o meio circundante.
Para Wallon os fatores orgânicos são determinantes para a sequência fixa de estágios de
desenvolvimento pelos quais as crianças passam, mas não são, de forma alguma, homogêneos
quanto ao seu tempo de duração. Isso acontece porque as circunstâncias sociais interferem
diretamente sobre a existência individual de cada sujeito. Dessa forma, as idades e o tempo de
cada estágio são referenciais variáveis e relativos e estão na dependência das características
individuais de cada criança e de seu modo de viver. Isso vem atestar que, para o teórico, a
reciprocidade que se estabelece entre as condutas das crianças e as de seu entorno social
imprime um relativismo ao desenvolvimento infantil.
Wallon atesta, consoante Galvão (2010), que o biológico é mais determinante no início, mas
aos poucos ele vai cedendo lugar de determinação ao social. A aquisição de condutas
psicológicas superiores estaria, então, intrinsecamente ligada à cultura e à linguagem verbal,
pois o simples amadurecimento do sistema nervoso não garante a humanização. Entretanto, a
concepção walloniana, assim como a vigotskiana, não concebe o desenvolvimento como um
processo linear. Ao contrário, ela afirma que o movimento para o acesso às funções
psicológicas superiores é marcado por rupturas, retrocessos e reviravoltas.
Conforme relata Galvão (2010), Wallon vê o desenvolvimento infantil como uma construção
na qual se alternam afetividade e cognição. E completa dizendo que
Dessa forma, a psicologia genética de Wallon identifica a existência de campos que agrupam
a diversidade das funções psíquicas e entre os quais se distribui a atividade infantil. São eles a
afetividade, o ato motor e a inteligência.
Como as crianças não podem orientar-se senão para o meio humano do qual dependem a sua
existência e subsistência, os primeiros estágios de desenvolvimento da criança, nos quais a
aptidão simbólica e a capacidade de representação são mais estranhas, já trazem, segundo o
autor, o reflexo das relações humanas criado através das palavras e do dom de imaginar.
Assim, no meio das pessoas próximas, os bebês têm suas necessidades acolhidas por meio de
um jogo afetivo no qual os componentes corporais e comunicativos servem de veículos para a
construção de diálogos interpretativos. Por meio do Outro, as ações dos bebês, como o
movimento corporal, o choro, o balbucio, deixam de ser somente espasmos e descargas
emocionais e passam a ser expressão, ou seja, afetividade33 exteriorizada.
A afetividade é, para Wallon, uma função que tem suas origens no orgânico, mas que vai se
complexificando e tomando contornos diversos ao longo do desenvolvimento até alcançarem
relações dinâmicas com a cognição. A emoção seria, pois, segundo suas ideias, uma resposta
orgânica de que o bebê dispõe para interagir com seu meio. Todavia, ela não seria apenas
instrumental, pois sua principal função na espécie humana é a ativação do outro e, por isso, é
igualmente comunicativa e expressiva. Dessa forma, as emoções estariam na origem da
consciência uma vez que permitiriam a impressão de significações afetivas nos bebês.
Contudo, é preciso salientar que essas impressões só se tornam afetivas por intermédio das
interações sociais.
O recém-nascido usa as emoções como primeiro veículo de adaptação ao meio. À medida que
sua atividade psíquica vai se desenvolvendo e dispondo de outros recursos de ajustamento ao
meio, a emoção vai cedendo lugar para que outras atividades intelectuais se apresentem. É
importante salientar que Wallon não afirma que as emoções desaparecem ou deixam de
funcionar como acesso de atribuição de sentidos. Elas apenas não são mais o único e primeiro
canal de adaptação dos bebês ao mundo.
33
Na linguagem comum costuma-se utilizar a palavra emoção como sinônimo de afetividade. Todavia, para a
psicologia, esses termos guardam diferenças entre si. De acordo com Galvão (2010), as emoções são
manifestações que se apresentam acompanhadas de alterações orgânicas, como a aceleração dos batimentos
cardíacos, as mudanças no ritmo da respiração, os distúrbios digestivos e outros mais. Essas variações provocam
alterações corporais que são visíveis do exterior e, por isso, expressivas. Podemos mostrar mudanças faciais, na
postura, nos gestos e na voz.
127
Galvão também relata que Wallon dá ao ato motor uma especial atenção. Para o autor, ele
apresenta uma estreita relação entre a afetividade e a cognição. Wallon alerta que o
movimento não pode ser reduzido a contrações mecânicas e ao deslocamento no espaço, pois,
se assim fosse, ele não passaria de uma abstração fisiológica ou mecânica. Assim, o psicólogo
não pode dissociá-lo dos conjuntos que correspondem ao ato de que ele é instrumento, pois o
movimento é, antes da emergência da linguagem verbal, o único testemunho da vida psíquica
da criança.
A partir das ideias apresentadas fica mais fácil responder à pergunta feita na epígrafe que abre
esse capítulo. Maria Laura, com apenas um ano e dois meses de vida, evidencia o caráter
simbólico do gesto e afirma o pensamento que se manifesta anterior às palavras. Como
declara Wallon (2007), o movimento é a expressão da própria vida a qual ele ajuda a realizar.
É o ato motor que prepara a criança para o estabelecimento de vínculos sociais.
Quando o gesto se torna expressão, o ato motor libera a criança de sua filogenia animal e a
coloca como um ser humano que significa o mundo por meio de múltiplas linguagens. As
marcas do humano, como bem declara Pino (2005), estão na conduta humana de criar
estímulos artificiais para interpretar e significar o mundo.
Também esperamos que as ideias aqui apresentadas possam ter contribuído para atestar a
importância do corpo do bebê como objeto de simbolização, semantização, semiotização e
subjetivação de suas experiências. Antes de acessar as palavras, as crianças lançam mão de
outros recursos para dar significação ao mundo e esses recursos continuam em ação mesmo
após a emergência da linguagem verbal. A teoria de Wallon nos auxilia a ver que o corpo é
expressivo na sua relação com o outro e o mundo. Trata-se, pois, de acordo com a perspectiva
merleau-pontyana, de aprender por dentro como o corpo vive seus sentidos.
128
Nesta seção enfrentamos o desafio de apresentar as ideias desenvolvidas por Bernard Golse,
pediatra, pedopediatra e psicanalista francês, a fim de redimensionar nossos saberes sobre
como os bebês iniciam sua aventura de ser e estar no mundo. O pesquisador adota uma linha
de investigação que difere do materialismo histórico-dialético, apoiando-se no método de
pesquisa descrito pela fenomenologia. Trazemos para a discussão as contribuições da
psicanálise fenomenológica que toma o bebê observado, o bebê de carne, osso e pulsões,
como objeto de investigação e já não, unicamente, o bebê reconstruído dos consultórios de
psicanálise de adultos.
A psicanálise, que nasceu no final do século XIX, ficou fascinada pelo enigma do interior das
coisas e empreendeu sua atividade na exegese do psiquismo humano em uma perspectiva
histórica, tendo a clínica como referência fenomenológica. A busca pelo significado, esse
trabalho de exegese da psique, é o que aproxima a psicanálise da fenomenologia. O trabalho
129
O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty foi uma importante referência para o pensar e o
fazer psicológico e psicanalítico. Ele constrói sua teoria na corrente dos movimentos
fenomenológicos. Merleau-Ponty declara que devemos reencontrar o primeiro contato
ingênuo com as coisas para permitir o aflorar da experiência natural do mundo com toda a sua
originalidade.
A linha filosófica adotada pelo filósofo defende que o mundo já está posto, como uma
presença inalienável, antes da nossa reflexão. Dessa forma, o corpo se apresenta como o
veículo do ser no mundo, como acesso obrigatório, e de certo modo constitutivo, à percepção.
A percepção seria, pois, a atividade psicológica que funda e inaugura o conhecimento e
implica a significação do percebido, condição de todas as associações apreendidas como
conjunto.
Para o pensador francês, o vivido, espaço em que todos os conteúdos empíricos estão postos
para a experiência, é também condição para o fazer filosófico e científico, uma vez que a
fenomenologia desloca o pensamento para a compreensão do vivido na espessura do corpo, da
história e do sentido. Entretanto, ao buscar os sentidos das experiências vividas, a
fenomenologia adentra o campo empírico, mas sem se unir a empirismos de nenhuma ordem.
Dialogando com as ideias apresentadas, Golse (2007) nos indaga sobre o movimento de
recuperação do movimento primordial dos atos expressivos: “Não será esta a descrição da
atitude obrigatória do clínico e do investigador no campo da primeira infância” (p. 90)? O
psicanalista afirma que a postura fenomenológica é pré-requisito do procedimento
psicanalítico com as crianças, pois a apreensão dos possíveis sentidos do mundo pelos bebês
passa pela atitude de um “deixar-se tocar” mútuo.
130
As ideias apresentadas por Golse (2005, 2007) trazem reflexões muito interessantes e
favorecem nosso entendimento sobre o estabelecimento do sistema de signos nas crianças. A
psicanálise do bebê, à qual o autor se filia, vem nos mostrar, no estado nascente, como o
sistema de símbolos e de signos se estabelece e como ele se enraíza no desenvolvimento do
corpo e do comportamento da criança.
Intentamos, através desta breve incursão pelo arcabouço teórico da fenomenologia e pela sua
influência sobre o método de investigação psicanalítica das primeiras interações dos bebês e
seus primeiros tempos de instauração psíquica, situar os pontos de contato das duas ciências
sem, portanto, nos descuidar dos limites e das distâncias epistemológicas que existem entre
essas duas disciplinas. As ideias apresentadas nos trazem o entendimento de que a
fenomenologia e a psicanálise apresentam regiões teórica e metodológica de contato que seria
a hermenêutica do humano, ou seja, de decifrarem o subtexto de toda a realização humana.
De acordo com Golse (2007), existem dois grandes registros de comunicação que são a
comunicação analógica (infraverbal ou pré-linguística) e a comunicação digital (verbal ou
linguística), que são, por vezes, tratadas em oposição ou como formas funcionais anteriores e
posteriores, respectivamente. O elo entre essas duas formas de comunicação é complexo e não
se restringe à sobreposição ou à oposição de uma forma de linguagem sobre a outra.
tipo conceitual ou ideativo, por meio de palavras, frases e locuções. Ela seria do tipo analítico
e veicularia principalmente conceitos através de elementos codificados.
Do mesmo modo que uma forma de comunicação não deve se opor ou se sobrepor a outra,
seria ilusório pensar que a comunicação analógica estaria somente do lado da metonímia, e a
comunicação digital do lado da metáfora. Golse (2007) afirma que existe uma forte
associação entre esses dois tipos de comunicação, que faz com que elas possam atuar
conjuntamente para os propósitos metonímicos e metafóricos. Assim sendo, existe uma parte
pré-verbal do próprio verbal que poderíamos caracterizar como sendo a música da linguagem.
Essa noção da inter-relação entre a parte analógica e digital da comunicação é essencial para a
compreensão da entrada do in-fans na ordem da linguagem descrita por Golse. O psicanalista
sustenta que o bebê não entraria na linguagem pela parte simbólica e verbal da linguagem,
mas sim pela sua parte afetiva e pré-verbal. O seu caráter de “encruzilhada” é o que confere
complexidade ao estudo da aquisição da linguagem pelas crianças. Em outras palavras, a
linguagem verbal exige a aquisição e a maturação dos sistemas neuromotor, cognitivo e
afetivo como, também, a imbricação e a inter-relação entre esses sistemas. A gênese da
construção dos signos linguísticos implica muito mais do que simplesmente aprender o nome
das coisas.
Assim, a cadeia falada é composta por um conteúdo verbal que se caracteriza pela presença
dos elementos do enunciado, como fonemas, monemas, sílabas, palavras e frases e por um
continente verbal que se caracteriza pela presença das regras gramaticais ou sintaxe e,
também, pela presença da música da linguagem, como a prosódia, o timbre, o tom, a
intensidade da voz, o silêncio e outros mais.
Bruner (2007) atesta os princípios apontados por Golse ao declarar que a entrada da criança
na linguagem não se dá como um “chuveiro” de palavras faladas, mas é estritamente
dependente da interação com membros mais experientes da cultura e de um sistema de
suporte à aquisição da oralidade. Dada a capacidade limitada dos bebês em processar as
informações, o sistema de suporte compreenderia contextos familiares rotineiros e formatos
discursivos que possibilitariam a essas crianças apreender o intento da comunicação. O autor
observa que o adulto auxilia a entrada da criança na linguagem verbal “encorajando e
modelizando substitutos frásicos e lexicais para meios vocais e gestuais familiares, para
efetuar diversas funções comunicativas” (p. 25).
34
“Os objetos transicionais e os fenômenos transicionais pertencem ao domínio da ilusão que está na base do
início da experiência. Esse primeiro estádio do desenvolvimento é tornado possível pela capacidade especial, por
parte da mãe, de efetuar adaptações às necessidades de seu bebê, permitindo-lhe a ilusão de que aquilo que ele
cria existe realmente. Essa área intermediária de experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna
ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na
experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginário e ao trabalho científico criador.
[...]. Não é o objeto, naturalmente, que é transicional. Ele representa a transição do bebê de um estado em que
este está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com ela como algo externo e separado”
(WINNICOTT, 1975, P. 30).
133
Bruner (2007) confere a essas interações iniciais entre mães e bebês o caráter de brincadeira,
pois elas atuam como uma preparação para a vida social que constitui a cultura humana. O
autor evidencia que tais brincadeiras fornecem uma ocasião para o uso sistemático da
linguagem e uma primeira oportunidade para as crianças perceberem que podemos fazer
coisas com as palavras. Segundo o autor, o jogo de esconde-esconde, onde acontece o
reaparecimento do rosto da mãe por detrás de um pano acompanhado de um sonoro “achou!”,
não tem significado funcional, ou seja, ele é um fim em si mesmo. Todavia, esse caráter de
aparente inutilidade da brincadeira possui uma finalidade fundamentalmente humanizante,
pois evoca a capacidade biológica dos bebês de operarem dentro da cultura. Segundo Bruner,
é a necessidade de interpretar e dominar a cultura que força o homem a se apropriar da
linguagem. Essa interpretação e negociação de significados iniciam-se no momento em que a
criança nasce e se prolonga por toda a sua vida.
Bonnaffé (2008) corrobora as ideias defendidas por Golse (2007) e Bruner (2007) sobre o
jogo conversacional ao afirmar que os bebês são exímios conversadores e que emitem uma
complexa variedade de sons superior àquela que poderão produzir depois que adquirirem a
linguagem oral. E completa asseverando que
[...] a linguagem está muito ligada ao corpo, aos gestos, às carícias e às cócegas, ao
balanço, aos gritos e ao riso. O bebê entra em conversação agitando os braços ou os
pés, trocando olhares, mesclando-os com balbucios. Reage mais à voz da mãe,
sobretudo se ela adota uma entonação melódica quando se dirige a ele. Com a
carícia de sua voz, ela deseja fazer sentir [...] que a voz, como a pele, tem uma
textura. É certo que não existe um dicionário do balbucio, porém através de suas
diferentes entonações os bebês nos dizem algo (p. 75).35 (Tradução nossa)
Dessa forma, concluímos que todas as interações iniciais das crianças têm características de
representância que não são propriamente representações de signos verbais, mas que as
capacitam para “subir no palco e adquirir os meios para tomar seu lugar na cultura”
(BRUNER, 2007. p. 18).
35
Texto original: “[...] el lenguaje está muy ligado al cuerpo, a los gestos, a las caricias y a las cosquillas, al
balanceo, a los gritos y a la riza. El bebé entra en la conversación agitando los brazos o los pies, intercambiando
miradas, mezclándolas con el balbuceo. Reacciona más a la voz de su madre, sobre todo si ella adopta una
entonación melódica cuando se dirige a él. En la caricia de su voz, ella deja percibir [...] que la voz, como la piel,
tiene una textura. [...] Es cierto que no existe un diccionario del balbuceo pero a través de sus diferentes
entonaciones los bebés nos dicen algo” (p. 75).
134
Os bebês são, assim, desde seu ingresso no mundo, muito competentes para decodificar as
modalidades do estilo narrativo dos adultos que com eles interagem e parecem ser muito mais
sensíveis, de início, à música da linguagem do que à significação dos signos. Pela falta da
linguagem verbal, os bebês utilizam suas habilidades sensoriais para “pensarem” os seus
impulsos e demonstrarem as suas representações causadas pelo processo de partilha
emocional. As emoções seriam, pois, partícipes primordiais de um movimento em direção ao
outro, uma forma de sair de si mesmo, criando um espaço representacional entre os mundos
interno e externo dos bebês. Em outras palavras, o afeto vai pouco a pouco assumindo o papel
de representação do objeto e se constituindo como uma forma de pensar e expressar o vivido.
O jogo do afeto e das emoções seria, assim, um processo dinâmico que comportaria em si
uma dimensão de representação e outra de comunicação. As interações mãe/bebê seriam uma
forma de conhecimento e de reconhecimento do objeto que constituiriam as representações de
interações generalizadas descritas por Golse.
Depreendemos assim que o processo de passagem dos indícios aos signos, isto é, o processo
de semiotização, surge como dependente do afeto. Dito de outra maneira, a entrada da criança
na linguagem verbal dá-se através da comunicação analógica que utiliza a música da
linguagem para inscrever no corpo e na mente dos bebês representações generalizadas do
vivido. Golse (2007) afirma que os bebês realizam um verdadeiro trabalho de abstração
durante suas interações com seus cuidadores, devido ao fato deles executarem “uma tarefa de
extracção de certas invariantes interactivas” (p.119).
A capacidade reflexiva dessas crianças, que ainda não se apropriaram da linguagem verbal,
faz-nos pensar que a cognição não é a única atividade em jogo quando o assunto é conhecer e
representar. Os afetos são um importante meio de relacionar-se e de discriminar o vivido.
aos bebês representações diversificadas que eles usam para construir e interpretar seu
universo cotidiano. Nas palavras da autora
A história vinha por fora: era o laço de seus solilóquios. Durante o tempo todo em que
falava, ficávamos sós e clandestinos, longe dos homens, dos deuses, dos sacerdotes, duas
corças no bosque, como outras corças, as Fadas: eu não conseguia acreditar que se houvesse
composto um livro a fim de incluir nele este episódio de nossa vida profana, que rescendia a
sabão e água de colônia.
Jean-Paul Sartre
Sartre, em seu livro autobiográfico As palavras, rememora episódios de sua infância e atesta
que a abertura do espaço poético, ou melhor, que “estar em literatura” é algo que acontece
36
Texto original: “Durante mucho tiempo, as palabras aisladas – un nombre, un verbo, van a relacionarse para el
bebé con una situación general, al mismo tiempo que con una vivencia y con una representación fabricada por el
niño en su espíritu, bastante misteriosa para nosotros que pensamos con el lenguaje. Solo más tarde las palabras
aisladas serán entendidas por el pequeño como elementos de una cadena verbal, de una frase, de un enunciado
constituido, un nombre que remete a un verbo, a un complemento, a palabras de transición. Sin embargo, el niño
forjo sus propias elaboraciones sobre palabras. [...] A veces el sentido puede ser exacto, en ocasiones no: el
ritmo, la prosodia, una construcción de sentido propia del niño – que escapa totalmente a una persona que
domina a lenguaje – pueden adelantarse a las palabras” (p. 82).
136
desde a mais tenra idade. No momento em que mãe e bebê estabelecem uma relação banhada
por palavras, gestos, afetos e água de colônia está aberto o espaço da experiência literária.
Dizemos experiência literária porque entendemos que o espaço criado entre o sujeito e a
palavra poética requer vivenciar transitoriamente como real aquilo que é representado. Como
bem retrata Sartre na epígrafe dessa seção “A história vinha por fora: era o laço de seus
solilóquios. Durante o tempo todo em que falava, ficávamos sós e clandestinos, longe dos
homens, dos deuses, dos sacerdotes”...
De acordo com Bonnaffè (2008), existem dois tipos de linguagem oral: a linguagem fática e a
linguagem do relato. A primeira é a linguagem do cotidiano e expressa proximidade com a
situação. Tanto assim, que fora de um contexto ela pode se tornar incompreensível. Por não
estar marcada por nenhum princípio temporal, como começo, meio e fim, a linguagem factual
é fluida, pouco estruturada, entrecortada, incompleta e seu sentido pode ser produzido tanto
pelas palavras como pelo contexto no qual se dá a enunciação. A linguagem do relato, como o
próprio nome já anuncia, tem características mais próximas da linguagem escrita. A narrativa,
nessa modalidade, divide-se em sequências temporais com começo, meio e fim e, ainda,
comporta uma estrutura bem definida na qual o sentido vai se construindo com o conteúdo
total do texto. Ela pode se aplicar à pura diversão ou ao relato de fatos acontecidos.
Entretanto, esse tipo de linguagem precisa ser atraente para despertar a curiosidade das
crianças, o que lhe confere um caráter estético.
Os bebês logo aprendem a distinguir esses dois tipos de linguagem e se fascinam ao descobrir
que uma cantiga, a voz da mãe ou uma história podem deslocá-los do imediatismo de suas
vidas e transportá-los para outros mundos impalpáveis. Também o uso de mímicas, de gestos
eloquentes e de jogos faciais é fundamental para despertar a atenção desses seres ainda tão
diminutos. Essas narrações analógicas, que apresentam ritmos, sons, entonações e melodia
peculiares, indicam a gênese do discurso literário. Posto isso, optamos, então, por utilizar as
expressões “estar em literatura” ou “experiência literária” ou “espaço poético” para nos
referirmos às vivências originárias das crianças com a arte do literário que, desde a mais tenra
idade, oferece a elas a possibilidade de construir um território intermediário entre seu mundo
interno e o mundo da realidade compartilhada.
137
É importante frisar que defendemos a literatura para os bebês de acordo com o que nos
assevera Cosson (2014): um espaço de liberdade dentro da língua e da linguagem onde
significados e sentidos são partilhados e construídos em diálogo com as experiências culturais
correntes.
Para melhor analisarmos a relação inicial entre os bebês e a literatura vamos nos debruçar
sobre as elaborações de Golse (2002a, 2002b, 2003, 2007), que afirma ser a narratividade uma
atividade de ligação inerente entre mães e bebês, e fundamental para a humanização deles,
uma vez que a descoberta do mundo pela criança se inicia pela conexão entre o toque, a
palavra, o enlevo, o carinho, o ritmo e a musicalidade da voz, os gestos e a atenção
dispensados aos bebês pelos seus cuidadores.
Acreditamos que, à maneira das metáforas, Golse nos propõe pensar uma narratividade
estabelecida entre as mães e seus bebês dentro de critérios não denotativos e não literais, mas
uma narratividade fundada em sons, imagens, gestos e palavras que servem para fazer novos
mundos.
Os bebês não precisam apenas que lhes contem histórias, algo, aliás, extremamente
importante para sua humanização, mas eles precisam aprender a contar e a contar a si
mesmos. Essa aprendizagem se faz no encontro com membros mais experientes da cultura,
que já possuem instaurada sua própria narratividade. São esses encontros que vão permitir que
as crianças escrevam sua própria história em coautoria com um ou mais adultos que deles se
ocupam. Esse ambiente de partilha de significados é o que Golse (2003, 2007) denomina
espaço de narrativa. De acordo com o autor, o adulto conta, à sua maneira, sua história,
enquanto o bebê “conta”, ao adulto, a história dos seus primeiros encontros interativos ou
inter-relacionais.
Dessa interação verbal e corporal nasce uma terceira história que tem suas raízes em
significações particulares. Uma terceira história que se escreve em coautoria, uma vez que se
utiliza de duas narrativas pré-existentes, mas que ao mesmo tempo se configura como um
espaço de liberdade que permite estabelecer diálogos diversos e inusitados, acolher o próximo
e o distante, o estranho e o familiar. Um espaço pactual em que o tempo é opaco, as
linguagens fabuladas e a gratuidade constitutiva.
138
Esse espaço “literário” que se configura entre as mães e seus bebês é o que Winnicott (1975)
considera como sendo a continuação dos espaços transicionais em que os atos criativos e
recreativos dos seres humanos têm lugar. A brincadeira que se institui entre os bebês e suas
mães cria um espaço potencial que se interpõe entre o mundo interno e o mundo externo das
crianças. Um espaço que não é a realidade psíquica do indivíduo, mas que não é também a
cópia do seu entorno social e cultural. Essa “terceira margem”, com bem enuncia Guimarães
Rosa em seu conto “A terceira margem do rio”, seria necessária para o início da relação entre
as crianças e o mundo e daria escopo para a vida imaginária e criativa, tão importantes e
fundamentais para a continuidade das experiências culturais.
Golse (2003) assegura que, ao afirmarmos que os bebês sabem brincar, inscrevemo-los em
uma outra ordem discursiva a qual não os considera mais como lactantes, isto é, como seres
passivos e quase totalmente dependentes do seu meio. Ao contrário, inscrevemo-los em uma
concepção que os entende como sujeitos que interagem com o mundo assimilando e
produzindo sentidos e significados.
O psicanalista faz uma distinção entre o que é um brincar thetique e um brincar não-thetique
observando que “mesmo que exista consciência ela não é forçosamente consciente dela
mesma; assim, existe provavelmente um brincar não-thetique no seio do qual o sujeito, ou o
futuro sujeito, não tem ainda consciência da dimensão lúdica de sua ação” (GOLSE, 2003, pp.
44-45). Dessa forma, saber que brincamos testemunha um certo grau de consciência
intrapsíquica, o que vem corroborar a ideia de que a brincadeira das crianças maiores de dois
anos é muito diferente das brincadeiras dos bebês, pois o brincar das crianças menores de dois
anos é, na maioria das vezes, não racional. O brincar meta, ou seja, brincar de brincar, é uma
conquista que só se apresenta mais tarde no desenvolvimento infantil. Mesmo não sendo
racional, o brincar dos bebês exerce uma função “auto” que lhes permite construir seu
aparelho psíquico e ascender à linguagem e à simbolização.
Percebemos, pelas ideias apresentadas até aqui, que o brincar dos bebês, mesmo que não
apresente todas as particularidades do brincar das crianças maiores, é um espaço de narração
mútuo que guarda com a literatura algumas características, a saber: o compartilhamento de
histórias e visão de mundo, a hospitalidade o acesso à intersubjetividade, às linguagens e à
simbolização, a descoberta do mundo e do outro como algo parecido, mas não idêntico, o
compartilhamento de afetos, o desenvolvimento cognitivo, a escrita de uma outra história em
coautoria e a liberdade de desvios e reviravoltas.
Todavia, é necessário pontuar que o que estamos defendendo é uma relação com a linguagem
poética de maneira gratuita e não pragmática para que os comportamentos iniciais dos bebês
com a experiência literária se estendam por toda a sua vida. O apreço pela língua e a
curiosidade de desvendar seus mistérios se funda em encontros desinteressados e afetivos com
a linguagem verbal. Trata-se de fazer com que as crianças percebam que há uma linguagem
que serve para regular, dar ordens e satisfazer as necessidades cotidianas. E outra que não está
140
a serviço de nenhuma necessidade imediata, que não exige nada em troca e, por ser, assim,
nada tem de supérflua e exerce a função determinante de nos humanizar.
Os bebês nos contam que a literatura ingressa em suas vidas desde seus primeiros dias de
vida. Basta que ouçam um acalanto ou a voz da mãe ao consolá-los, a brincar com eles ou a
entoar seu nome de maneira carinhosa para que compreendam que as palavras podem se
agrupar em desenhos múltiplos e subverter os sentidos cotidianos, permitindo-nos perscrutar
outros0mundos.
141
No existe el arte para niño; existe el Arte. No existen las ilustaciones para niños; existen las
ilustraciones. No existen los colores para niños; existen los colores. No existe la literatura
para niños; existe la Literatura.
Partiendo de esos cuatro principios, podemos dicer que un libro para niños es un buen libro
cuando es un buen libro para todos.
Ruy Vidal
Nos últimos anos temos visto as livrarias de todo o Brasil serem inundadas por livros
destinados à primeira infância que apresentam propostas discursivas muito diversas. Os
textos, as ilustrações e os projetos gráficos transcendem o que antes era caracterizado pela
encadernação de folhas impressas com texto verbal e algumas imagens com tamanhos e
formatos mais ou menos uniformes. Como bem disse Bauman (2001), na modernidade fluída,
as configurações, constelações, padrões de dependência, tudo foi posto a derreter no cadinho,
para ser depois novamente moldado e refeito; “essa foi a fase de quebrar a forma na história
da modernidade inerentemente transgressiva, rompedora de fronteiras e capaz de tudo
desmoronar” (p. 13)
O livro infantil ilustrado atual é um objeto cultural relativamente novo que tem suas
verdadeiras origens estimada em torno de 130 anos. Isso aconteceu desde que o ilustrador
britânico Randolph Cadecott, no século XIX, começou a tornar relevante o papel das imagens
nas narrativas. Entretanto, o livro Orbis Sensualium Pictus,37 escrito e ilustrado pelo educador
inglês John Comenius, em 1658, é, geralmente, visto como o primeiro livro ilustrado
dedicado ao público infantil.
A evolução das obras destinadas às crianças, em que imagem e texto verbal interagem para
compor o discurso, foi um processo lento, tímido e vacilante porque muitos autores e editores
levavam em consideração a capacidade de produção de sentido dos leitores presumidos. É
interessante observar que a ideia sobre a possibilidade de as crianças se apropriarem do texto
literário ainda conformam muitas obras destinadas a esse público. Diversos livros de literatura
infantil encontrados no mercado atualmente apresentam textos pueris, temas estéreis,
37
O livro completo escrito por Comenius pode ser acessado no seguinte link
https://archive.org/stream/johamoscommeniio00come#page/n5/mode/2up (Acesso feito no dia 26/04/2016).
142
Em 1844, o médico psiquiatra alemão Heinrich Hoffmann publica o livro Der Struwwelpeter.
Inicialmente o que era para ser somente uma obra caseira destinada ao seu filho de três anos,
transformou-se em um ícone precursor do livro ilustrado e que tem resistido aos testes do
tempo, sendo reeditado e reinterpretado por diversas mídias mundo afora.
Fig. 28 Fig. 29
Der Struwwelpeter João Felpudo
O livro apresenta histórias curtas e tinha o objetivo de divertir e entreter a criança pequena,
apesar do alto grau de violência e crueldade de algumas narrativas. O título da primeira
edição, Histórias alegres e imagens divertidas, parece indicar que o livro era para ser lido
como um relato irônico. À diferença dos livros do século XIX destinados às crianças, que as
representavam como seres gentis, meigos, educados, o livro de Hoffmann retrata-as como
sujeitos complexos, desejantes, rebeldes, criativos e com grande imaginação. Andrade, Bona e
Pereira (2009), em artigo no qual analisam como a pedagogia do livro favorece a
subordinação das crianças à vida social, trazem uma citação de Hoffmann, muito pertinente
para nossa discussão, que elucida o contexto literário da época e nos faz refletir sobre as
diversas obras destinadas ao público infantil produzidas no nosso século. Eis a citação
143
Nas proximidades do Natal de 1884, fui à cidade comprar um livro ilustrado para
presenteá-lo. O livro deveria estar de acordo com a capacidade de compreensão da
faixa etária desse pequeno ser humano. Mas o que encontrei? Longas histórias ou
ridículas coletâneas de figuras, histórias moralistas, que começavam e terminavam
com preâmbulos repletos de advertências, tais como: “A criança comportada deve
ser honesta”, ou: Crianças comportadas devem manter-se limpas” etc. finalmente, ao
encontrar um Foliobuch com ilustrações de um banco, uma cadeira, uma panela e
muitas outras coisas, de seres animados e inanimados, um verdadeiro repertório do
mundo, em que junto a cada ilustração via-se um escrito [...] a minha paciência se
esgotou [...]. Mas, ao chegar em casa naquele dia, eu trazia comigo o livro do
menino. Entreguei-o à minha esposa, dizendo: “Eis aqui o livro para o menino”. Ela
pegou o livro e exclamou surpresa: “Mas isso é um caderno de folhas em branco!”.
“Sim, e nós vamos transformá-lo em um livro. (ANDRADE [et al] apud
HOFFMANN, s/d, contracapa)
A despeito de outras considerações que possam surgir da análise dessa produção, devemos
salientar que Hoffmann não poupa as crianças dos problemas e confrontos inerentes à vida, ao
contrário do que observamos em diversas narrativas vigentes em nosso mercado editorial que
optam pelas palavras delicadas e pelos temas doces. Há que se reiterar que essas produções
não correspondem ao modo como as crianças vivem suas infâncias. Elas são, longe disso,
modos distorcidos de se conceber as crianças e de se higienizar suas infâncias. Por isso, não
podem ser categorizadas como literatura porque não o são. Nas palavras de Barthes (2007) a
literatura faz girar todos os saberes, mas não os encarcera em dogmas e doutrinas. Ao invés
disso, joga com os signos e os coloca “numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas
de segurança arrebentaram [..]” (p. 27).
para, quem sabe um dia, podermos afirmar quais as narrativas, as ilustrações e os projetos
gráficos que mais atraem as crianças.
Apesar de a origem do livro ilustrado remontar XVII, foi no século XX, em que confluíram
dois momentos da história – a modernidade e a posmodernidade, que ele encontrou sua
máxima produção. Nesta época houve muitas inovações na tecnologia da impressão, de
mudanças de concepção em relação à infância e do surgimento de artistas que ousaram
subverter as normas e tradições.
Cabe aqui salientar as criações de Bruno Munari, que muito contribuíram para ampliar as
possibilidades expressivas do livro de literatura para crianças. Nascido em Milão em 1907 e
falecido em 1998, Munari foi um artista e design gráfico que repensou toda a estrutura do
livro dirigido para as crianças e que experimentou a materialidade do objeto como
possibilidade de narrativa.
Para o artista, as possibilidades múltiplas do papel, como cor, espessura, textura, tamanho já
eram características suficientes para usá-lo como um veículo de comunicação e arte. O
resultado dessa experimentação foi um livro sem texto verbal e sem ilustrações intitulado
Libro Illeggibile38. A inovação comunicativa que Munari conseguiu ao construir esse livro
fica por conta da sua perícia em deixar a expressão por conta da materialidade do objeto.
Logo após o Libro Illeggibile, Munari cria o I Prelibri39 por entender que nos primeiros anos
de vida as crianças conhecem o ambiente que as rodeia por meio de todos os seus receptores
sensoriais, e não apenas através da visão ou da audição, percebendo sensações táteis, térmicas,
sonoras, olfativas. Esse livro apresenta uma série de minilivros, todos do mesmo formato, mas
cada qual com uma proposta material diferente. Todos os exemplares trazem na capa a
palavra Libro, o que amplia as possibilidades de significação das crianças sobre o conceito
desse objeto.
38
O Libro Illeggibile foi criado em 1949 e publicado pela primeira vez em 1984 pela Editora Corraine. Para
visualizar o livro completo acessar o site https://vimeo.com/11905636. (Acessado em 27/04/2016).
39
I Prelibri foi criado por Munari em 1955 e publicado pela editora Corraine em 1980. Para visualizar o livro o I
Prelibri acesse o site http://www.watermeloncat.nl/PreLibri-Bruno-Munari/es. (Acessado em 27/04/2016).
145
Anthony Browne, Roy Gerrard, Victor Gollancz e Farrar são alguns nomes que devem ser
mencionados quando o assunto é inovação e originalidade e quando falamos de livros de
literatura infantil que agradam crianças, jovens e adultos.
Embora tendo esses autores para respaldar a validade do livro de literatura infantil como um
objeto cultural artístico e com o reconhecimento e a valorização dos profissionais que se
dedicam a produzir literatura para crianças, deparamo-nos ainda com uma questão: esses
livros podem ser considerados literatura? A controvérsia é enorme porque a literatura infantil
apresenta uma característica multiforme em que muitas linguagens e diferentes discursos se
entrecruzam. Como exemplo da complexidade desse universo, deparamo-nos com diferentes
nomenclaturas para assinalar as obras literárias destinadas ao público infantil: literatura
infantil, literatura para a infância, livros infantis, livros para crianças, entre outros.
A polêmica aumenta quando nos dedicamos a analisar os livros destinados aos bebês. Na
tentativa de elucidar essas questões e afirmar nosso ponto de vista trazemos para a discussão
Cosson (2014) que declara:
Para o autor, o que devemos verificar ao classificar uma obra como literária ou não é se ela se
move em um terreno comum: o espaço literário. Paulino (2011) vem ao encontro das ideias de
Cosson ao afirmar que
Além disso, como já comentado em sessões anteriores, Compagnon (2014), Eagleton (2003) e
Jouve (2012) demonstraram que não podemos permanecer presos ao sentido romântico do
termo literatura, uma vez que muitos textos considerados literários na época em que foram
146
escritos já não o são. Enquanto outros, que habitaram o terreno marginal, hoje são admitidos
como membros da família literária.
Hunt (2010) tenta redimensionar o conceito de literatura infantil ao asseverar que um de seus
traços característicos é a falta de pureza genérica, e atesta a voracidade com que a literatura
infantil agrupa e assume diferentes formas discursivas, mas enfatiza que, como a literatura
infantil constantemente ultrapassa as fronteiras da cultura erudita e popular, é perigoso
incluirmos qualquer coisa produzida para as crianças dentro do universo literário.
Ao perigo apontado por Hunt, Paulino (2007) declara que as linguagens artísticas são jogos
oscilantes em que os jogadores olham simultaneamente para frente e para trás. Assim, “a
tradição avança, por isso as regras podem mudar. Mas há regras nesse jogo humano” (p. 84).
Aceitamos o jogo paradoxal imposto pela literatura e nos submetemos às regras existentes,
mas também nos reservamos o direito de “zombar das convenções e ir além delas”. Pois, de
outra forma, daremos razão a Paulino (2011), que, sabedora da pluralidade de textos que
conformam hoje a literatura atual, indaga ironicamente: “quem souber onde está a verdadeira
literatura, por favor, avise a nós jogadores culturais por preferência e profissão. Aliás, avise
não. Queremos continuar como o poeta, numa estrada de Minas pedregosa, seguindo vagaroso
de mãos pensas, desdenhando colher a coisa ofertada” (p. 85).
A formação do leitor literário, como bem afirma Colomer (2007), é algo que se constrói na
experiência e não são necessários pré-requisitos para a imersão das crianças na literatura. Ao
contrário, mesmo que disto não tenhamos lembrança ou não saibamos de forma consciente,
nosso itinerário leitor começa ao ouvirmos os primeiros acalantos maternos. Assim, é preciso
147
desmitificar a ideia de que um dia ascenderemos ao texto literário, como se isso acontecesse
por meio de artifícios mágicos, além de reiterar a proposição de que essa é uma experiência
que se faz no presente e de forma cotidiana. É no dia a dia das cantigas, dos versinhos, dos
provérbios, dos vídeos, dos ditados, das histórias que vai se construindo nossa noção de
pertença, plasmada na palavra estética decantada pelo tempo.
Um livro de literatura que possibilite a instauração do espaço poético não o faz pelo tema que
porta, pelas belas ilustrações ou pelas palavras bonitas. A estrutura de uma obra literária deve
ser analisada pela sua qualidade completa. É possível encontrarmos um livro com belas
imagens e palavras bonitas, mas que se parece mais com um receituário, por trazer instruções
sobre como sermos educados ou solidários. Também devemos considerar que muitas
prateleiras das livrarias estão ocupadas com obras que confirmam a cultura de massa e com
outras que encantam pelas cores e adereços. De acordo com Devetach (2008),
As coisas não são sempre boas ou más em si. Há também o fato de como são usadas
e para que. E em uma cultura não há melhor poltrona que a ignorância. Assim o
mundo se simplifica, e não há problema. Viva então o hambúrguer como a melhor
comida. E não seria isso o pior. O problema real não é a existência do hambúrguer,
mas sim que se exclua todo o resto, simplesmente porque não sabemos que existe
(pp.84-85).40 (Tradução nossa).
Longe de cercear as leituras das crianças, acreditamos que existe um itinerário leitor que deve
ser tomado com cuidado se nosso objeto é fazê-las pensar e saírem do automatismo. Como
seres em formação, as crianças ainda estão construindo critérios que lhes permitam fazer
escolhas conscientes. Quando muitos jovens, há o risco de se alimentarem de toda e qualquer
produção cultural com a qual se deparem em seu cotidiano. Inconscientemente e
inadvertidamente vamos introjetando modelos e formas de comportamento ditados pela
cultura de massa que pesa sobre nossas cabeças com grande poder de persuasão. Dessa forma,
assumimos o risco de não sermos donos de nossa própria voz e apenas reprodutores das vozes
alheias. Não podemos nos esquecer de que uma das preocupações de Vigotski era apontar o
quanto podemos criar condições de ampliar as formas de participação da criança na cultura.
Como bem salienta Devetach, o problema não é comer hambúrguer e, sim, achar que esse é o
melhor alimento porque não conhecemos os demais.
40
Texto original: “Las cosas no son siempre malas o buenas en sí. Está también en hecho de cómo se usan y para
qué. Y en una cultura no hay mejor poltrona que la ignorância. Entonces sí que el mundo se simplifica y no hay
problemas. Viva entonces la hamburguesa como la mejor comida. Y no sería eso lo peor. El problema real no es
la existencia de la hamburguesa sino que se borre de un plumazo todo lo demás, simplesmente porque no
sabemos que existe” (DEVETACH, 2008, p. 84).
148
A formação de uma pessoa como interlocutora do mundo está relacionada à sua bagagem de
textos e assentada sobre sua capacidade de pensar singularmente e com originalidade. Nosso
compromisso de inserir as crianças na literatura é social e também político, uma vez que
almejamos a autonomia intelectual para que elas não sejam meras repetidoras do que ouvem
sem saber se colocar criticamente frente aos fatos. A literatura, como as outras artes, é um
universo complexo e rico que precisa ser cultivado cotidianamente para que possamos
aprender a não prescindir dela, pois, caso contrário, se não frequentamos esses diálogos
rotineiramente, podemos construir a ideia de que a literatura é uma perda de tempo ou algo
muito difícil e inacessível.
Acreditamos que essa proposta vai ao encontro do que entendemos sobre a formação de
leitores conscientes, pois o conhecimento se dá num processo complexo de intercruzamentos
permanentes de vozes. Todavia, quando nos referimos a interação dos bebês com a literatura,
o assunto é um pouco mais complexo.
Crianças com menos de dois anos de idade ainda não dispõem de elementos discursivos e
cognitivos que lhes capacitem pensar sobre outros pontos de vista. Elas estão aprendendo a
nomear o mundo, a dar-lhe sentido e significado, a construir uma pertença e,
consequentemente, uma subjetividade. Vigotski (2009) declara que a imaginação da criança é
mais pobre que a do adulto porque são mais exíguas suas experiências de mundo. Como
iniciantes no mundo da cultura, elas estão dando os primeiros passos rumo a um universo de
possibilidades discursivas e elaborando pré-textos sobre os quais se apoiarão suas posteriores
significações. Assim sendo, cremos que a oferta de livros de literatura para bebês deve se
pautar na busca de obras que lhes possibilitem uma riqueza e uma diversidade de discursos
com vista a ampliar seu diálogo com o mundo. Deixemos, então, para as idades seguintes os
possíveis e, quem sabe, frutíferos confrontos.
Em sessão anterior, declaramos ser limitante a classificação da literatura infantil por faixas
etárias. No entanto, nos debruçamos em analisar os livros destinados às crianças menores de
dois anos de idade e criar categorias para os mesmos.
Muitos catálogos editoriais de literatura infantil trazem os livros classificados por idades, o
que nos causa desassossego, pois sabemos que as possibilidades de atribuição de sentido por
149
parte das crianças dependem muito de suas vivências e experiências com e no universo
literário. Tal atitude marca uma exclusividade que pode engessar as mediações feitas por pais,
professores, bibliotecários e livreiros.
Também programas, como o Programa Nacional de Biblioteca Escolar – PNBE - trazem os
livros, designados para compor o acervo da Educação Infantil, separados por critérios etários,
já que há uma divisão entre os livros destinados a creche e à pré-escola. É louvável a
iniciativa do Governo Federal em lutar pela igualdade de acesso à informação em todas as
regiões do país e em fazer chegar livros de literatura em todas as escolas públicas do Brasil.
Todavia, dividir os livros em duas categorias dentro do mesmo segmento educacional, pode
fazer com que muitos professores adotem esse paradigma e passem a não flexibilizar a
interação das crianças com títulos que não fazem parte das categorias preconizadas no acervo.
Em nosso grupo de pesquisa Leitura e Escrita na primeira Infância – LEPI - temos podido
acompanhar a recepção de crianças, de Escolas Municipais de Educação, com livros de
literatura infantil e pudemos constatar que os livros classificados pelas editoras como para
bebês podem provocar o interesse das crianças mais velhas. Algumas hipóteses podem ser
levantadas na tentativa de explicar a atração das crianças maiores pelos livros destinados aos
bebês. Primeiramente, poderíamos pensar que os adereços, como, fantoches, som, texturas,
encontrados nesses livros, despertam a curiosidade dessas crianças. Em segundo lugar, que a
150
pouca quantidade de texto existente, em muitos livros para bebês, é um convite para que os
pré-escolares se arrisquem em decodificar as palavras. A temática é outro aspecto que deve
ser considerado quando pensamos no interesse das crianças maiores pelos livros dos bebês.
Ler um livro sobre a retirada das fraldas ou sobre chupetas pode despertar sentimentos de
nostalgia ou de superação e avanços. Por último, as brincadeiras de encontrar determinado
personagem escondido nas ilustrações ou de abrir as abas das páginas do livro para confirmar
ou refutar suposições evocadas pelo texto verbal são extremamente prazerosas. Essa atitude
das crianças maiores reforça quanto é controverso o escalonamento das produções literárias
destinadas às crianças
Para escolher nosso corpus de análise, primeiramente pensamos em optar pelos livros que o
Programa Nacional de Biblioteca Escolar – PNBE – disponibiliza para as escolas públicas
desde o ano de 2010. O recorte temporal decorreu do fato de, a partir desse ano, a distribuição
de livros para as instituições de Educação Infantil ser feita de acordo com a divisão creche e
pré-escola. Assim, é enviado um acervo de cinquenta livros selecionados, segundo critérios do
programa, para cada parte desse segmento educacional. Mesmo sabendo que a creche abrange
as crianças de até três anos de idade, não consideramos inviável a análise dos livros desse
segmento pelo entendimento de que não devemos limitar a capacidade dessas crianças de
atribuir sentido.
151
Todavia, em uma inspeção preliminar do corpus do PNBE, observamos que vários tipos de
livros encontrados no mercado editorial, e que apresentam propostas interlocutórias
diferentes, não constavam do acervo. Como nosso objetivo é abranger o máximo da
diversidade de produções atuais reservadas aos bebês, achamos sensato abandonar o acervo
do PNBE.
Dessa maneira, nosso corpus de análise foi construído por livros de literatura destinados aos
bebês comprados através de critérios estabelecidos pelos estudos realizados no grupo de
Pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância – LEPI/NEPEI/FaE/UFMG. Os diálogos
estabelecidos com teóricos de vários campos epistemológicos, as discussões organizadas
sobre como montar um acervo diversificado e que atendesse as especificidades da primeira
infância e a utilização de uma ficha42 para a seleção e compra dos livros para a Bebeteca
foram os norteadores para a aquisição dos títulos que compõem nosso corpus de análise.
41
A Bebeteca da Faculdade de Educação foi inaugurada em outubro de 2011, durante a realização do IX Jogo do
Livro e do III Fórum Ibero-Americano de Letramentos e Aprendizagens, organizados pelo Centro de
Alfabetização Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG, com o objetivo de desenvolver projetos e
ações para capacitar alunos da graduação, da pós-graduação, professores, bibliotecários e demais profissionais da
Educação Infantil a promover a leitura junto a crianças menores de seis anos de idade, fomentando sua
experiência estética, emocional e cognitiva, em um espaço multimodal, constituído por uma coleção de livros,
materiais videográficos e documentos registrados em qualquer suporte destinados a consulta, pesquisa, estudo ou
leitura. A Bebeteca da FaE/UFMG possui algumas especificidades determinadas por seu vínculo institucional.
Por se tratar de um espaço instalado na biblioteca de uma faculdade responsável pela formação de professores,
seu objetivo principal é potencializar a formação de docentes ou de profissionais da educação que atuam ou
atuarão como mediadores e promotores de leitura junto a crianças de até seis anos de idade incompletos.
42
Elaborada pelo grupo de pesquisa Leitura e Escrita na Primeira Infância – LEPI, para a pesquisa Letramento
Literário na Educação Infantil, sob coordenação da professora Mônica Correia Baptista (Edital 13/2012
FAPEMIG/CAPES), a Ficha de Avaliação de Livros Infantis é um trabalho realizado a partir das discussões, das
reflexões e dos debates do grupo. A criação de uma taxonomia dos livros de literatura, ao objetivar conhecer a
diversidade que caracteriza a produção de livros infantis, possibilitará orientar os professores e demais
mediadores e promotores de leitura quanto à constituição de acervos na perspectiva da diversidade; conhecer e
compreender as características dos livros infantis e perceber as mudanças que vêm se operando ao longo do
tempo. Outra produção que resulta do trabalho de elaboração da ficha de avaliação é o glossário Livros para
152
Assim, organizamos nosso corpus de análise com sessenta e uma obras que nos dessem
condições de perceber as singularidades das produções que têm renovado o conteúdo dos
livros para bebês e que pudessem dar a ver as questões conceituais tratadas nesta pesquisa.
[...] a teoria faz você desejar o domínio: você espera que a leitura teórica lhe dê
conceitos para organizar e entender os fenômenos que o preocupam. Mas a teoria
torna o domínio impossível, não apenas porque há sempre mais para saber, mas,
mais especificamente e dolorosamente, porque a teoria é ela própria o
questionamento dos resultados presumidos e dos pressupostos sobre os quais eles se
baseiam. A natureza da teoria é desfazer, através de uma série de premissas e
postulados, aquilo que você pensou que sabia, de modo que os efeitos da teoria não
são previsíveis. Você não se tornou senhor, mas tampouco está onde estava antes.
Reflete sobre suas leituras de maneira nova. Tem perguntas diferentes a fazer e uma
percepção melhor das questões que coloca às obras que lê. (pp. 24-25)
Assumindo, então, o compromisso aberto de que há sempre coisas importantes que nos
escapam, vamos nos debruçar sobre a análise dos livros de literatura para bebês, empenhando-
nos em categorizá-los segundo suas propostas interlocutórias.
Crianças de até seis anos de idade, que ajuda a criar referências lexicais para compreendermos e nos
entendermos melhor em relação a essa diversidade.
153
Livros de primeiras representações: são livros que apresentam temas próximos da vivência
das crianças. São construídos com imagens simples e sua função é iniciar as crianças
pequenas nos rituais de leitura;
Livros de imagens enriquecidos e sem texto: são grandes e complexos livros de imagens que
possibilitam desenvolvimento de habilidade visuais, narrativas e linguísticas; Correro destaca
os autores Ali Mitgutsch e Rotraut S. Berner como exemplos dessa categoria;
Livros tipo abecedário, livros de contar, de conceitos e livros informativos: cuja função seria
ampliar os conhecimentos e a cognição das crianças;
Poesias, canções e todas as variedades da literatura oral: são gêneros essenciais nos primeiros
anos para que as crianças possam adquirir modelos linguísticos e culturais;
Livros animados, interativos, livro-jogo e livros surpresa: são publicações que indicam que o
livro não é somente um objeto cultural, mas também lúdico;
Livros e contos ilustrados: são livros em que o texto verbal e o texto visual são independentes,
diferentemente dos chamados “álbuns” em que texto verbal e texto visual, juntos, constroem a
narrativa.
A autora faz sua análise baseada nos livros de literatura publicados em catalão e em espanhol.
Seu corpus de investigação foi construído a partir das obras mais recomendadas pela crítica
especializada espanhola para as crianças de até oito anos de idade, publicadas pela primeira
vez entre os anos de 2003 e 2013, independente da origem geográfica de seus criadores. A
escolha do corpus pode ter motivado a exclusão de algumas obras destinadas aos bebês e
demais crianças, como as fábulas, as adivinhas, as piadas, as parlendas e outras. Além disso,
na tipologia criada por Correro, podemos observar descrições que abrangem o
desenvolvimento de habilidades linguísticas, visuais, narrativas e cognitivas. Nenhuma
menção ao teor literário ou à ampliação das experiências estéticas é feita durante as descrições
tipológicas.
154
Souza e Bortolanza (2012) também procuram classificar os livros de infantis, mas, à diferença
de Correro, consideram a faixa etária compreendida entre seis meses a cinco anos. De acordo
com as autoras, Kiefer sugere alguns critérios para nortear as escolhas dos livros destinados à
primeira infância e afirma que eles devem usar uma linguagem clara, ter histórias previsíveis
e que permitam a interação dos leitores, relacionar experiências familiares e cotidianas,
apresentar uma narrativa que prenda a atenção das crianças, portar ilustrações organizadas e
claras e, finalmente, serem feitos de material resistente e durável.
A interação com a linguagem escrita existente nos livros de literatura é capaz de ampliar as
experiências discursivas das crianças. O uso de palavras ou frases repetidas, de rimas e de
canções auxilia as crianças a anteciparem e memorizarem a história. Também a utilização de
modelos previsíveis, como “era uma vez” ou “foram felizes para sempre”, e as estruturas
cumulativas, são referências importantes que ajudam as crianças a se apropriarem da
linguagem literária. Todavia, faz parte do percurso de formação leitora oferecer textos que
estão fora dos parâmetros supracitados e que possibilitem o compartilhamento de
significados. As crianças adoram ser desafiadas e se debruçar sobre sentidos e palavras
complexas. Para elas, é muito mais instigante tentar inferir o significado de “corcova” em
uma frase do que ouvir histórias em que aparecem somente palavras conhecidas. Os livros que
mais despertam a atenção dos leitores iniciantes, segundo Colomer (2007), “partem de formas
narrativas mais elementares, mas utilizam de recursos que permitem a possibilidade de se
desviar delas, que se destinam a forçar os limites que a capacidade dos leitores impõe e
ajudam as crianças a ir mais longe na sua competência literária” (p.91). Como já mencionado,
há uma instabilidade entre o que as crianças podem compreender e as nossas crenças sobre
155
essa questão que precisamos enfrentar. Precisamos acreditar cada vez mais na capacidade de
as crianças estabelecerem sentidos e significados para os diferentes textos com que se
relacionam no seu cotidiano.
Com referência à linguagem visual, são justamente as imagens dos livros ilustrados que
permitem às crianças ascender às formas mais sofisticadas de percepção visual. São as
imagens que nos parecem às vezes muito complexas e difíceis que mais atraem a atenção das
crianças e com as quais elas estabelecem um processo lúdico de negociação, interpretação,
significação e experimentação. Para isso, elas utilizam estratégias visuais de exploração,
levantamento de hipóteses, pesquisa, comparações e outras mais. As crianças são exímias
decodificadoras visuais porque, antes da fala, são seus olhos um de seus instrumentos de
leitura do mundo. Dessa forma, não devemos temer em oferecer livros com imagens que
agucem a capacidade interpretativa das crianças.
Faço livros sensíveis porque sempre quis mostrar para minha filha que as coisas são
finitas. No geral, as pessoas tentam dar as coisas mais duráveis para as crianças
brincarem. Óbvio que se for muito sensível, não vai ser útil. No entanto, é
importante que as crianças aprendam que as coisas quebram e se destroem e que nós
temos de aprender a cuidar delas com delicadeza. Se uma página é rasgada por uma
criança, dá para consertar usando fita adesiva ou cola. E assim a criança vai aprender
que precisa ter mais cuidado se não quiser estragar aquilo. Com pessoas também é
assim. Somos sensíveis e nos machucamos, então precisamos saber nos comunicar e
entender um ao outro. Disponível em:
http://www.revistaemilia.com.br/mostra.php?id=220. Acesso em: 15/04/2016.
Por isso, não há porque limitar a materialidade dos livros destinados às crianças, por menores
que elas sejam. O manuseio e o cuidado são comportamentos que se aprende.
Tendo como referência o mercado editorial, Souza e Bortolanza (2012) organizam os livros
infantis em categorias com o objetivo de auxiliar os professores da creche e da pré-escola a
planejar atividades significativas de leitura/literatura:
Livros de pano: voltados mais para os bebês pela sua maciez e durabilidade. Esses livros
podem conter narrativas ilustradas ou apresentar objetos simples que fazem parte da rotina
156
dessas crianças. Esses livros, além de estimular a criatividade dos bebês, também são uteis
para o desenvolvimento da motricidade, da percepção, do tato e da coordenação;
Livros de plástico ou livro de banho: voltado também para os bebês, esse tipo de livro possui
características similares às dos livros de pano, porém suas páginas são de plástico
almofadado;
Livro brinquedo: são livros que por algum diferencial no design exige uma participação mais
efetiva do leitor. Esses livros funcionam como uma transição entre o brinquedo e o livro de
histórias, o que possibilita o desenvolvimento da discriminação visual e a iniciação ao texto
verbal e à leitura;
Livro de poesia: são os livros que trabalham com os elementos da poesia, como sonoridade,
repetições, rimas, aliterações e assonâncias. Compreendem essa categoria os livros de
cantigas de roda, as adivinhas, as parlendas e outros;
Livro de conceitos: são livros que apresentam conceitos, como cores, formas geométricas,
números, letras e objetos. Esses livros ajudam as crianças a estabelecerem relações de
semelhança e diferença entre os objetos, como também possibilitam que elas memorizem as
letras do alfabeto e aprendam alguns conceitos matemáticos;
Livro de imagem: são livros em que as ilustrações constroem a narrativa;
Livro de narrativas infantis: são os livros com imagens e texto verbal.
Souza e Bortolanza (2012) salientam que, embora o caráter instrumental esteja sempre
presente nos livros de literatura, não devemos perder de vista a função humanizadora do
discurso literário. Assim, faz-se necessário que os professores da Educação Infantil estejam
bem capacitados do ponto de vista teórico-metodológico para que possam ampliar as
experiências com a leitura literária. Os critérios de seleção do acervo que será disponibilizado
às crianças é uma faceta importante para um trabalho bem-sucedido com a leitura de livros de
literatura infantil.
A expressão “literatura infantil” abrange, normalmente todas as categorias de livros que são
produzidos para as crianças; sejam elas literárias ou não. Por conseguinte, encontramos nas
prateleiras das livrarias, nas bibliotecas e nas instituições de Educação Infantil livros com
conteúdos diversos que recebem o tratamento de literário sem sê-lo. Não há problema algum
que esses livros sejam manuseados e lidos pelas crianças. Contudo, é preciso ter clareza de
que eles portam outros discursos que não o literário. As crianças, quando muito pequenas,
157
transitam pelos universos ficcionais e não ficcionais sem se colocarem questões sobre a
veracidade dos fatos. Segundo Duran (2002), para uma criança de dois anos de idade saber
que o pintinho nasce do ovo é tão fascinante como saber que um sapo pode virar príncipe. O
adulto, todavia, deve ter clareza quanto às gradações de realidades existentes nos livros
infantis. A consciência desses vieses discursivos, por parte dos professores, pais,
bibliotecários e mediadores de leitura, amplia as possibilidades de as crianças perceberem as
diferenças existentes entre os diversos registros que permeiam seu cotidiano. Muitas vezes,
quando temos nas mãos um livro infantil que fala sobre navios ou sobre dinossauros,
observamos que a linguagem utilizada se caracteriza pelo uso de palavras mais objetivas que
descrevem e narram o mundo exterior, próprias de um texto informativo. Entretanto, quando
lemos para as crianças o livro Chapeuzinho Vermelho, O guarda-chuva do vovô, de Carolina
Moreyra, Guilherme Augusto Araújo Fernandes, de Mem Fox ou A arca de Noé, de Vinicius
de Moraes, percebemos que o jogo de linguagens existente nessas produções permite a
identificação e o diálogo com o mundo interno das crianças. São palavras que conformam e
nomeiam sentimentos, que configuram pertenças e ajudam a construir a subjetividade. Duran
(2002) observa que “uma criança [...] nem sempre pode dizer o que se passa com ela, ainda
que não possa evitar sentir o que sente. E não pode porque não sabe expressar o que sente.
Tem todos os sentimentos em seu interior e não encontra um canal para expressá-los”43(p.
28). (Tradução nossa). Contudo, quem sabe um dia, ele se depare com palavras que lhe
transmitam conforto, que deem forma e expressão a suas angústias, que nomeiem seus medos,
que desatem nós e alimentem seu interior. Uma iluminação repentina e surpreendente que fará
conexão com o que ele sente e experimenta em seu interior. Dessa forma, as crianças vão
percebendo que as palavras não só designam coisas, mas também veiculam as coisas mais
secretas, íntimas e misteriosas da alma humana.
Existem vários suportes que congregam o texto literário: a voz, a música, o cinema, a
televisão, o rádio, o teatro, a dança, as artes visuais, dentre outros. Entretanto, cada um desses
suportes possui suas especificidades e matizes na manifestação do literário o que conferem
diferentes tratamentos a esse tipo de discurso. Se tivéssemos que colocar, por exemplo, em
uma escala de valores, o grau de concretude ou de abstração das artes literárias, a música teria
um espectro maior de ambivalência, seguida da literatura. Contrariamente, as imagens seriam
43
Texto original: “un niño [...] no siempre puede decir qué se pasa, aunque no puede evitar que le pase lo que le
pasa. Y no puede porque no sabe cómo se dice lo que le pasa. Tiene todos los sentimientos en su interior y no
encuentra el canal para expresarlos”( p. 28).
158
mais concretas pelas suas próprias qualidades materiais. Desta maneira, as relações entre
signo, significado e significante variam de uma arte para outra e, consequentemente, de um
suporte para outro.
Histórias de processos cotidianos: são livros que objetivam descrever processos cotidianos,
como acordar, dormir, comer, visitar os avós, ir à escola, morte, separação de pais, retirada
das fraldas e outros;
Histórias de processos ordinários: são os livros que mostram a ordem natural das coisas, por
exemplo, como nascem os pintinhos ou uma flor, a metamorfose da borboleta ou da flor.
Podem também conter informações sobre animais e outros objetos do mundo;
Histórias de processos extraordinários: são os livros de contos de fadas e contos
contemporâneos;
Histórias de processos de descobrimento: são os livros que contêm um mecanismo manual,
visual ou sonoro que dá suporte à narrativa e prevalece sobre ela.
A segunda tipologia faz referência aos gêneros literários encontrados nos livros para crianças.
De acordo com a autora os livros para crianças se dividem em:
É interessante observar que a autora faz um apanhado geral de todos os tipos de publicações
para crianças existentes no mercado espanhol, não se preocupando em listar somente as obras
com conteúdo literário.
Nosso objetivo é mais modesto do que as propostas acima descritas, mas não menos
complexo. Ensejamos criar tipologias para os livros dirigidos aos bebês tendo como fio
condutor seu teor literário.
Bonnaffé (2008), em seu livro Los libros, eso es bueno para los bebés afirma que há,
seguramente, determinados gêneros que agradam a todos os bebês independente da faixa
etária. São eles:
160
Histórias de encadeamento e repetições: são narrativas em que uma parte do texto é sempre
repetida, podendo haver a inserção de um novo personagem a cada nova virada de página. São
exemplos desse tipo de história A galinha Ruiva, Bruxa, bruxa venha à minha festa e A casa
que Pedro fez;
Poemas, cantilenas e adivinhas: são textos que oferecem um jogo de palavras e são facilmente
memorizados pelos bebês. A sonoridade, o ritmo, a melodia desses gêneros, encantam e
fazem com que essas crianças comecem a perceber que existe uma outra linguagem que não
só a que nomeia ou dá ordem. Além disso, essas produções textuais têm sua origem na
oralidade e, por isso, são fundamentais para conectar os bebês aos seus contextos culturais;
Contos de fadas: são os contos clássicos, como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, João
e o pé de feijão e muitos outros;
Contos fantásticos: são narrativas em que aparecem fadas, duendes, monstros, fantasmas e
outros seres imaginários.
A fim de colaborar para um melhor conhecimento das propostas discursivas dos livros
destinados aos bebês, propomos as categorias abaixo, certas de que não esgotaremos todo o
acervo de livros reservados às crianças de até dois anos de idade e de que outros estudos
complementares se seguirão.
Dividimos os livros para bebês em cinco categorias mais abrangentes, a saber: materialidade,
temática, gêneros e conceito da obra. Cada uma dessas categorias congrega subclasses que
procuram alcançar a diversidade das publicações para essa faixa etária.
Gostaríamos de salientar que muitas características observadas nos livros para bebês não são
exclusividade dessas publicações, podendo ser encontradas em livros de outros seguimentos
da Educação Infantil e nas obras dedicadas ao público jovem. Também consideramos
oportuno ressaltar que os atributos e as particularidades apresentados em determinada
161
categoria podem se somar a outros, sendo, portanto, possível encontrar obras que associam
mais de um aspecto.
De acordo com Van der Linden (2011), os diferentes suportes e as inovações tecnológicas têm
continuamente ampliado as nossas concepções tradicionais sobre esse objeto. Todavia, a
autora acredita que essas novidades na materialidade do livro infantil não o desviam de seus
princípios de funcionamento. Ao contrário, elas podem ampliar e enriquecer suas
possibilidades de interação.
6.3.1 Materialidade
A categoria materialidade se caracteriza pelo tipo de material usado como suporte dos textos
literários e se divide em:
6.3.1.1. Papel
O papel é um dos principais suportes escolhidos para a impressão dos livros em geral. Seu
formato, sua gramatura e seu tipo podem variar de acordo com os objetivos da obra. Autores,
ilustradores, designs gráficos e editores têm objetivos específicos ao optarem pelas
características de um tipo de papel. Estas podem abarcar o custo final do produto, a qualidade
da impressão e até influenciar na atribuição de sentido que um determinado aspecto do papel
pode causar. Os livros cartonados utilizam papel com uma gramatura maior a fim de conferir
mais resistência ao objeto. Eles são muito utilizados para a elaboração de obras para bebês de
poucos meses de idade porque, além de mais resistentes, são mais fáceis de manusear. A
despeito da predileção de muitas editoras pelos livros cartonados, encontramos publicações
para bebês em papéis de espessura mais fina, como couchê fosco ou brilhante, kraft e papel
reciclado. Esses materiais também permitem uma grande variedade de cortes, dobraduras e
encaixes que afetam diretamente o conceito da obra e ampliam as possibilidades criativas dos
autores, ilustradores e designs gráficos. Nas obras analisadas, foi possível observar a
utilização de adereços que ampliam as propostas dos textos verbal e visual, como velcro,
fantoches, cadarços, fitas, barbantes, fivelas entre outros. Relembrando as declarações de
Munari (2015), a materialidade é também capaz de proporcionar experiências táteis e visuais.
162
É importante observar que os livros cartonados têm se libertado da faixa etária que
corresponde aos bebês e têm expandido suas fronteiras para além da produção infantil. Van
der Linden (2011) observa que essa ampliação vem do desejo de ressignificar o entendimento
de que os livros cartonados são específicos para os bebês pela sua resistência. As
características próprias desse tipo de suporte interferem na experiência expressiva do livro,
como: a virada de página é mais rápida e mais marcada e não há ruptura entre a capa e as
páginas do miolo.
Fig. 30
Uma lagarta muito comilona
6.3.1.2. Pano
É muito indicado para as primeiras experiências literárias das crianças, quando elas ainda
estão descobrindo para que servem os livros. Tendo o corpo como principal forma de se
apropriar do mundo, é comum observarmos os bebês experimentando o livro com as mãos, a
boca e o nariz. A maioria dos livros de pano analisados apresenta imagens simples e
circunscritas ao contexto imediato dos bebês. Outros trazem pequenas narrativas visuais que
podem possuir ou não texto verbal. Não encontramos, dentro do corpus analisado, nenhum
livro de pano que apresentasse uma proposta que ampliasse as experiências estéticas das
crianças. Talvez isso aconteça pela própria característica do material, que impede impressões
e propostas mais complexas ou, provavelmente, o endereçamento influencie as escolhas
discursivas. Contudo, o livro de pano não só favorece a experiência tátil dos bebês, como
também é comum vermos os livros de pano em formato de travesseiro ou de almofada, o que
possibilita às crianças rearranjá-los e reinventá-los.
163
Fig. 31
Meu livro de pano - Selva
6.3.1.3. Plástico
O plástico, assim como o tecido, é utilizado para a produção de livros para bebês pelas suas
características de maleabilidade e resistência. Contudo, obras com teor literário mais
elaborado não foram observadas em nosso acervo. A maioria dos livros traz temas
relacionados à aprendizagem dos números, das cores, das formas e do alfabeto, revelando um
caráter utilitário e didático. Também encontramos publicações que abordam o gênero
primeiros-conceitos, do qual trataremos mais adiante. É comum nos depararmos com a
denominação livro de banho como sinônimo para o livro de plástico, conceito que alarga as
possibilidades de as crianças remodelarem a função do livro de literatura.
Fig. 32
O sapinho
6.3.1.4. E.V.A.:
O etil vinil acetato (E.V.A.) é uma borracha não tóxica de alta tecnologia empregada para a
produção artesanal e também para confecção de tapetes e brinquedos infantis. É um material
muito versátil e maleável que não requer muita preocupação com o acabamento. O E. V. A.
apresenta diversas espessuras, o que pode lhe conferir maior ou menor dureza e resistência.
164
Esse material tem sido muito utilizado na produção de livros para bebês pelas características
citadas. Entretanto, não encontramos, no corpus analisado, obras com narrativas em que a
linguagem verbal e visual favoreçam a ampliação das experiências literárias das crianças. De
uma maneira geral, como os livros de plástico e tecido, as publicações em E.V.A. enquadram-
se dentro do espectro didático e utilitário das obras destinadas aos bebês. Todavia, esse
material permite cortes, dobraduras e encaixes diversos, o que possibilita uma variedade de
formatos para as publicações e que afeta diretamente o conceito da obra como veremos a
seguir.
Fig. 33
Entender os opostos
6.3.2. Temática
As temáticas dos livros de literatura para bebês foram outro aspecto que julgamos importante
analisar. Entretanto, deparamo-nos com uma enorme variedade de eixos temáticos, o que
dificultou enormemente nossas tentativas de categorização. Verificamos nos catálogos de
editoras que as temáticas propostas para os livros infantis estão na dependência do que o
mercado editorial julga ser as demandas prioritárias do sistema educacional. Paiva (2008)
considera que a escolha por determinados eixos temáticos também está subordinada às
políticas públicas, uma vez que o governo é, sem dúvida, um dos maiores compradores dessas
produções. Observamos, assim, que a escola tem grande influência na escolha das temáticas
encontradas nos títulos endereçados às crianças.
A fantasia como tradição congrega grande parte das produções endereçadas aos bebês. Dessa
categoria fazem parte os contos de fadas, os contos contemporâneos, as fábulas, e todas as
outras produções que abordam assuntos referentes aos contextos imediatos de vida dos bebês,
suas preferências e espaços de circulação.
O conteúdo como opção, de acordo com Paiva (2008), abarca as produções que apresentam os
temas transversais como conteúdo. Essa temática tem o propósito de trazer para a discussão
assuntos contemporâneos, como a reciclagem, o desperdício de água, dentre outros, e
perpassa vários campos do conhecimento. Há que se acrescentar a essa categoria os livros que
privilegiam a transmissão de valores, virtudes e normas, como os que discorrem sobre
coragem, respeito, gratidão, lealdade, amizade e muitos outros. Os livros apresentam
narrativas em prosa, com enredo, personagem principal e todas as demais características que
compõem uma história. Paiva (2008) salienta que “se essa produção é denominada pelos
editores de literatura infantil, em razão da utilização de recursos narrativos próprios do texto
literário, é porque a escola, cada vez mais, a consome como tal” (p. 43). A ênfase dada ao
“cada vez mais” é, segundo a autora, um reforço de que, para a escola, continua prevalecendo
a intenção pedagógica e educativa em detrimento da ampliação do universo cultural da
criança por meio da estética da criação verbal e visual. Nas palavras de Paiva (2008)
Essa estratégia do mercado editorial para garantir o consumo desse tipo de produção leva
muitos professores, pais e bibliotecários bem-intencionados a consumir tais obras confiando
em estar oferecendo às crianças o que há de melhor em termos de literatura infantil. Mesmo
possuindo um projeto gráfico bem cuidado, ilustrações atraentes e texto verbal bem
elaborado, devemos afirmar que essas produções não são literatura e vão na contramão do que
tentamos afirmar em nossa pesquisa: a literariedade das obras destinadas aos bebês. Não
estamos aqui recusando a utilização de tais obras pelos professores, uma vez que temos
convicção da utilidade desses recursos para a aprendizagem das crianças, tampouco estamos
resistentes às inovações temáticas do mercado editorial. Apenas enfrentamos o desafio de
marcar o lugar do literário nas produções destinadas aos bebês.
166
Dois exemplos demarcam essas posturas. O primeiro livro analisado é uma produção da
editora Todo Livro e faz parte da coleção “Construindo o caráter”. A coleção apresenta onze
títulos que ressaltam valores como a coragem, a honestidade, a justiça, a fraternidade, a
disciplina, a perseverança, o desprendimento, o respeito, entre outros. Escolhemos o livro É
preciso ter coragem que não traz, na capa, nenhuma referência ao autor e ao ilustrador e,
também, não apresenta ficha catalográfica. Somente na folha de guarda podemos nos inteirar
sobre as autorias da obra. Esse aspecto pode gerar algumas suposições, como aventarmos a
hipótese de ser essa coleção um projeto editorial sem uma proposta autoral, e que vai ao
encontro do que evidenciou Paiva (2008) sobre o caráter pedagógico de muitas produções
literárias destinadas às crianças.
O livro conta a história de macaquinho que tinha coragem de não se deixar influenciar pelas
ideias dos amigos, seguindo, assim “ o que sua consciência mandava”. O texto verbal é
enxuto e objetivo e apresenta algumas características dos textos injuntivos, como
recomendações e conselhos. Há destaque, no texto verbal, para as palavras e expressões em
vermelho que enfatizam o caráter prescritivo do discurso. Essas palavras encontram-se
escritas em vermelho, o que simbolicamente nos remete à cor com que os professores
corrigem os erros, e aparecem em um glossário ao final do livro com notas explicativas que
salientam a proposta instrucional e educativa do livro. Os personagens da história são todos
macacos e não há nenhuma diferença entre os traçados desses personagens, o que nos faz
distingui-los apenas pelas cores das roupas que usam. Esse é outro aspecto de corrobora nossa
hipótese sobre a ausência de uma proposta autoral. As ilustrações, assim como o texto verbal,
não apresentam regiões de silêncio e, por isso, não convidam o leitor a preencher seus espaços
vazios, impossibilitando reconstruções a partir da interação.
Fig. 34
É preciso ter coragem
Fig. 35
É preciso ter coragem
O segundo livro escolhido é Vai, você consegue!, uma produção da editora Brinque-Book. O
ilustrador Ole Könnecke, de origem alemã, assina a autoria dos textos verbal e visual. O livro
conta a história de Breno, um passarinho, que se vê às voltas com a tentativa de mergulhar,
pela primeira vez, nas águas do rio. Com muita hesitação e frio na barriga, Breno ensaia por
diversas vezes saltar do galho de uma árvore em direção ao rio. Depois de muitas idas e
vindas, desculpas e rodeios, Breno fecha os olhos e... plaft, se joga! Ao abrir os olhos já está
nadando ao lado da mãe.
Olé Könnecke consegue, através de uma linguagem simples e traços singelos, falar às crianças
sobre seus medos e como precisamos ter coragem para enfrentá-los. À diferença da primeira
produção, os pássaros, que constituem os personagens da história, têm traçados e cores
diferenciados, o que não engessa e homogeneíza as figuras, possibilitando às crianças
interagir com diversas representações do mesmo animal. Vai, você consegue! é um livro em
que o texto verbal e o texto visual se entrecruzam para construir o sentido da narrativa. Essa
característica permite, entre outras coisas, que o leitor encontre aberturas discursivas para se
relacionar com a obra.
168
Fig. 37
Vai, você consegue!
Fig. 38
Vai, você consegue!
Fig. 39
Vai, você consegue!
Fig. 40
Vai, você consegue!
Fig. 41
Vai, você consegue!
O contraste entre as duas produções evidencia que qualquer tema está sujeito a tratamentos
que o conformem mais dentro de uma perspectiva didática e utilitarista, ou dentro da
expressividade estética e artística.
A realidade como aposta abrange os temas que permeiam toda a existência humana e que,
muitas vezes por concepções equivocadas de criança e infância, não são escolhidos para
compor o acervo de livros familiares e escolares. Temas como morte, separação, abandono,
violência, sexualidade permeiam o cotidiano dos adultos e, por conseguinte, das crianças. A
censura a esses temas considerados delicados, polêmicos ou perigosos, segundo Paiva (2008),
promove uma assepsia temática no diálogo das crianças com a literatura, pois “coíbe a
discussão dos enigmas da existência humana e da complexidade das relações sociais que
poderiam ser problematizadas por meio da ficção” (p. 45).
170
Temas cotidianos que atravessam a vida dos bebês como a retirada das fraldas, a chupeta, o
apego ao paninho e outros mais podem ser encaixados nessa categoria e apresentam diferentes
formas de tratamento.
Analisamos dois livros destinados aos bebês que abordam a retirada da fralda a fim de
verificarmos o teor literário de ambos, certas de que o contato com as artes literárias é fonte
de aprimoramento de sensibilidades, pois o que está em jogo é não só o conhecimento, mas a
percepção, a intuição e a imaginação do leitor.
O primeiro livro, Não vou usar mais fralda!, foi publicado pela editora Todo Livro e tem
como autora e ilustradora, respectivamente, María Mañeru e Susana Hoslet Barrios. O livro
tem formato quadrado e é cartonado, o que lhe confere resistência e facilita o manuseio das
crianças. Os protagonistas da história são Dani e Ana, irmãos gêmeos que se veem às voltas
com a retirada das fraldas. A história é construída com elementos discursivos que se
assemelham a um manual de instruções. Há diversas informações objetivas e setas
explicativas que ligam o nome de um objeto à sua imagem, o que pode nos levar a pensar que
a escrita tem um valor enunciativo maior que a imagem. As ilustrações dividem o espaço da
página com o texto verbal e, por vezes, misturam-se com ele. É relevante nas ilustrações as
estereotipias que ela apresenta. Para a menina, de cabelos louros, é reservada a fralda rosa, os
laços na cabeça, o penico com flores e corações, as asas e a varinha de fada. Ao menino é
concedido o uso da fralda azul, o carrinho para brincar e uma roupa azul e verde. A linguagem
e as atitudes das crianças são artificializadas, distanciando o texto verbal do universo infantil.
As autoras idealizam a resistência que as crianças têm de usar o vaso sanitário com um medo
do monstro verde que mora em seu interior, fechando as possibilidades de cada um dar nome
aos seus receios.
Fig. 42
Não vou usar mais fralda!
Fig. 43
Não vou usar mais fralda!
Fig. 44
Não vou usar mais fralda!
O que tem dentro da sua fralda, do autor e ilustrador Guido Van Genechten, conta a história
de um ratinho muito curioso que mete seu focinho em tudo. Ele adora descobrir coisas e
resolveu, agora, saber o que tem dentro das fraldas de seus amigos coelho, cabrita, cachorro,
bezerro, potrinho e porquinho. Em contrapartida, seus amigos também ficaram curiosos para
descobrir o que tinha dentro da fralda do ratinho. E qual não foi a surpresa de todos ao ver que
a fralda dele estava limpinha porque ele fazia cocô e xixi no penico.
172
Fig. 45
O que tem dentro da sua fralda?
Fig. 46
O que tem dentro da sua fralda?
Fig. 47
O que tem dentro da sua fralda?
Fig. 48
O que tem dentro da sua fralda?
O livro apresenta um formato grande e capa cartonada. O miolo do livro é formato por folhas
de papel couchê com uma gramatura mais grossa o que confere mais resistência ao objeto. As
folhas de guarda trazem ilustrações de corações rosa que é uma referência as fraldas que os
personagens usam independente do sexo.
Os textos verbais são curtos e usam uma linguagem próxima ao universo infantil, porém, sem
artificialismos, diminutivos ou “tatibitates”. As ilustrações são grandes, ocupando quase todo
o espaço da página. Elas não apresentam muitos detalhes, dando destaque especial para os
animais e suas fraldas. Para saber o que tem dentro das fraldas de seus amigos, o ratinho
precisa da colaboração dos leitores que precisam puxar as abas que abrem as fraldas dos
animais, revelando o que tem dentro delas.
Guido Van Genechten consegue dosar os sentimentos pelos quais as crianças passam durante
fases de vida, fazendo uso de personagens que vivem os mesmos desafios que eles.
Não basta que um livro para bebês fale de temas específicos desse universo. Tampouco que
seja colorido e resistente. É preciso ter textos e ilustrações que utilizem recursos que
contribuam para a formação estética do leitor. A dimensão da leitura literária como
experiência está na possibilidade de dar às crianças a oportunidade de irem além do momento
em que ela se realiza. Ao resgatar a experiência individual e coletiva, ao falar dos sentimentos
e tratar as linguagens verbal e visual como arte, as dimensões expressivas e estéticas se
instalam. E isso é literatura.
174
Para melhor compreensão das estratégias narrativas utilizadas em livros que tratam de temas
delicados analisaremos duas produções de literatura infantil sobre um assunto que tem se
tornado recorrente na literatura infantil: a separação dos pais.
O livro ilustrado Lá e Aqui, da editora Pequena Zahar, escrito por Carolina Moreyra e
ilustrado por Odilon Moraes usa frases curtas e altamente poéticas, e a história, sendo narrada
pela voz de uma criança, traz para o leitor todas as emoções que o momento desperta. Os
traços sempre delicados e emocionantes de Odilon Moraes dão a intensidade certa e
metafórica que o fato exige.
Fig. 49
Lá e Aqui
Fig. 50
Lá e Aqui
Fig. 51
Lá e Aqui
Fig. 52
Lá e Aqui
Fig. 53
Lá e Aqui
Fig. 54
Lá e Aqui
Fig. 55
Lá e Aqui
A estrutura frasal, o traço das figuras, a ocupação do espaço, o uso das cores dão ao livro uma
unidade que lhe garante elegância e delicadeza. As metáforas verbais e visuais criadas pelos
autores possibilitam às crianças ampliar seu universo simbólico e dão a elas uma resposta
afetiva para uma questão humana tão delicada.
Também abordando o tema da separação, O divórcio de mamãe e papai urso da editora Todo
Livro, com ilustração de Kathy Parkinson e texto de Cornelia Maude Spelman, conta a
história de uma família de ursos - pai, mãe e duas filhas – que vivia em harmonia até que um
dia os pais resolvem se separar. A narrativa é construída em volta da filha menor, Diná, que
conta possuir três pessoas favoritas em sua vida: seu pai, sua mãe e sua irmã mais velha, Rute.
Além disso, a pequena ursinha ainda tinha seu coelhinho, Boni, de uma orelha só, e sua
sandália vermelha de três tiras como objetos favoritos. Diná gostava de fazer pão com a mãe e
Rute, de passear com seu pai e sua irmã, de dormir com a orelha de seu coelhinho encostada
no seu rosto e de calçar sua sandália vermelha de três tiras. Contudo, após a separação dos
pais, mesmo continuando a fazer as mesmas coisas que fazia antes, Diná se sentia muito triste.
Não queria dividir as coisas de que mais gostava entre duas casas. Até que percebeu, com o
178
passar dos dias, que poderia ser feliz tendo duas casas e que seus pais continuariam a amá-la
mesmo morando em casas diferentes.
Cornelia M. Spelman constrói sua narrativa fazendo uso de uma linguagem simples e direta.
Não observamos o uso de metáforas ou indeterminações, nem de espaços vazios que
convocariam o leitor a preencher os sentidos. Está tudo dito e explicado, não há como
subverter o texto com outras possibilidades interpretativas.
As ilustrações são bem elaboradas e tanto traçado a carvão quanto a técnica de coloração com
tinta diluída em água utilizados mostram uma assinatura autoral. Kathy Parkinson desenvolve
um estilo mais tradicional, com uma representação convencional, doce e harmoniosa. As
imagens não extrapolam o sentido do texto verbal e nem dialogam com ele com o objetivo de
construir a narrativa. Elas apenas retratam o que está sugerido na narrativa verbal.
O livro ainda traz, logo em sua primeira página, um lembrete para os pais com informações
sobre como eles devem proceder com as crianças em situações de divórcio, o que nos leva a
refletir sobre as escolhas linguísticas e visuais e o caráter injuntivo da narrativa.
Fig. 56
O divórcio de mamãe e papai urso
Fig. 57
O divórcio de mamãe e papai urso
Fig. 58
O divórcio de mamãe e papai urso
Fig. 59
O divórcio de mamãe e papai urso
É interessante observar como dois livros podem tratar da mesma temática, mas possibilitar
uma maior ou menor abertura para experiências sensíveis, afetivas e intelectuais que
alimentem o imaginário das crianças.
180
6.3.3. Gênero:
A coleta de material para compor nosso corpus de análise nos permitiu verificar ainda que
alguns gêneros literários são recorrentes nas produções destinadas aos bebês. Dessa forma,
organizamos os livros de literatura produzidos para essa faixa etária nos seguintes gêneros:
6.3.3.1. Primeiros-conceitos:
De acordo com Kümmerling-Meibauer (2001), são livros que apresentam figuras simples em
cada página, podendo possuir ou não texto verbal. Essas figuras retratam objetos do contexto
imediato dos bebês ou podem representar animais, veículos, alimentos e outros mais. Em sua
maioria, as imagens apresentam-se em perspectiva frontal e sem a preocupação de
proporcionalidade entre elas.
Fig. 60
Os primeiros alimentos do bebê
Fig. 61
Era uma vez...
Minhas primeiras palavras
Fig. 62
O artista que pintou um cavalo azul
Fig. 63
Huum... Gostoso
Kümmerling-Meibauer declara que esses livros são muito importantes para que as crianças
aprendam a nomear o mundo e sigam construindo significados e sentidos para as diferentes
formas de representação. O mundo pode ser representado de diferentes maneiras, e esses
livros permitem que as crianças aprendam que há uma relação entre o referente e sua
representação. A presença de códigos visuais e a mediação do adulto fazem com que as
crianças sejam encorajadas a adquirir uma gramática visual, fato fundamental para
habilidades futuras de leitura de imagem. O jogo de apontar e nomear que se estabelece entre
o adulto e o bebê durante a leitura de um livro de primeiros conceitos estimula essas crianças
182
a nomear o mundo e a aprender que ele pode ser representado, mas também aponta para a
apropriação da sintaxe e da narrativa. Perguntas como: “O que este bebê está fazendo? ”,
“Olha a maçã! Qual fruta você comeu hoje no lanche” ou “A menina está passeando no
parque. Onde você passeou ontem com a mamãe? ”, auxiliam as crianças a entender que o
passado pode ser narrado no presente.
Nesses livros podemos encontrar fotografias, desenhos que são fiéis à realidade ou ilustrações
que subvertem uma transcrição fiel do objeto. A opção que o autor, o ilustrador, o design
gráfico ou o editor faz para a elaboração de um livro de primeiros conceitos pode ampliar o
seu teor literário. Assim, fazendo uso das proposições de Bernardo (2007) sobre a
ficcionalidade do mundo, podemos categorizar esse gênero dentro de um espectro de maior ou
menor ficcionalidade. A fim de aclarar nossas ideias sobre a gradação das experiências
estéticas encontradas nos livros de primeiros conceitos, apresentamos uma breve análise de
alguns livros dessa categoria.
O livro Black on White, de autoria de Tana Hoban e publicado pela Greenwillow Books,
apresenta imagens de objetos do cotidiano da criança. É um livro indicado para bebês de
poucos meses de idade por fazer uso de imagens simples sem maiores detalhes. Todos os
objetos aparecem em preto sobre um fundo branco. A opção por esse contraste se alicerça no
entendimento de que as crianças menores de seis meses enxergam melhor o contorno das
imagens quando estas são construídas sobre a oposição claro e escuro.
Fig. 64
Black on white
O livro não apresenta nenhuma linguagem verbal. Entretanto, abre a possibilidade para
diferentes formas de discursos. Uma delas é o jogo de apontar e nomear em que o mediador
aponta para um objeto da página e o nomeia para a criança. Esse jogo permite a construção
conjunta de relatos de experiências partilhadas, o que auxilia na formação leitora.
- Olha só o babador! Igual ao que você usa quando está na hora do almoço. É para não sujar a
sua roupa, né?
- Aqui tem um garfo e uma colher. Hoje você comeu a papinha de banana com a colher,
lembra? Estava tão gostosa.... Você comeu tudo! Ficou com o barrigão cheio.
Mesmo que a criança ainda não se expresse oralmente, ela faz uso de outras linguagens –
balbucios, sorrisos, gestos – partilhando da construção de narrativas, que inserem as crianças
dentro de relações espaço-temporais tão necessárias para a construção e para o entendimento
do discurso literário.
O jogo de apontar e nomear, além de apresentar o mundo para as crianças, permite que elas,
aos poucos, entendam que as coisas podem ser representadas: que o babador não existe
somente quando está amarrado ao pescoço na hora das refeições. Sua existência pode ser
apreendida fora de sua materialidade concreta. É uma leitura que ensina as crianças a
pensarem por palavras, sem a necessidade de se apoiar na percepção imediata nem em um
contexto presente.
especialmente dedicada aos bebês. Todos os livros da coleção possuem capa e folhas
cartonadas, seis páginas encadernadas em brochura e formato pequeno, 14cm x 14 cm, o que
facilita o manuseio pelos bebês.
O livro não traz um tema específico, mas faz um resumo das coisas com as quais os bebês
podem se deparar no seu dia a dia, como animais, aviões, amigos e flores. À diferença do
título anterior, Helen Oxenbury traz uma proposta diferente. Na página da esquerda, a autora
apresenta a imagem de um determinado objeto e, na direita, uma criança interagindo com o
objeto representado à esquerda. Isso oportuniza às crianças a relacionar o objeto à sua ação. A
criança nomeia o mundo e age sobre o mundo, possibilitando tanto uma categorização dos
objetos como sua inclusão no devir, elementos fundantes do fazer literário.
Fig. 65
I see
Fig. 66
I see
Todas as ilustrações que estão na página esquerda são simples e feitas em fundo branco, o que
lhes confere um lugar de destaque. Não há preocupação com as proporções reais das figuras
185
As representações de Oxenbury não são pueris nem modelares. Existe uma preocupação
estética e uma marca autoral que ampliam as habilidades dos bebês em olhar, apreciar e
interpretar a linguagem visual. Podemos dizer que I see não só apresenta o mundo aos bebês
como possibilita a ampliação de seu vocabulário. Ele oportuniza aos bebês estabelecerem:
conexões relacionais, entre semelhantes e opostos; o princípio da sequencialidade, ao passar
as páginas; os fundamentos da representação - palavras e imagens designam uma ideia e uma
experiência estética com a linguagem visual e verbal, através do jogo afetivo de apontar e
nomear. Essas noções são essenciais para “estarmos em estado de literatura” (DEVETACH,
Laura, p. 25, 2008).
O artista que pintou um cavalo azul, produzido pela editora Kalandraka e de autoria de Eric
Carle, traz a história de um artista que pinta vários animais: cavalo, jacaré, leão, elefante e
outros. As imagens são grandes e todas feitas em folha dupla. Não há uso de adereços ou
detalhes, e isso confere a cada personagem um lugar de destaque. As cores utilizadas vão
além dos tons primários, o que amplia as experiências representacionais e estéticas das
crianças menores de dois anos. É o texto verbal que nomeia o animal representado.
Fig. 67
O artista que pintou um cavalo azul
Fig. 68
O artista que pintou um cavalo azul
Fig. 69
O artista que pintou um cavalo azul
À diferença do livro anterior, Eric Carle oferece ao leitor imagens que subvertem a realidade:
os animais não são pintados nas suas cores originais, alterando o mimetismo cromático
oferecido por representações que intentam um reconhecimento imediato do mundo. Essa
contradição entre a representação visual e sua semelhança com o real nos faz refletir sobre a
fragilidade das transcrições da realidade. Apesar de não conter uma narrativa, este livro tem
uma forte intensidade de fantasia, reorganizando o mundo e seus objetos sob novos critérios.
Livros como esse propõem uma sadia subversão do estabelecido, imagens que fazem pensar e
cores que denunciam a arbitrariedade da criação. Da mesma forma que a literatura é, nas
palavras de Barthes, subversão, tais imagens também o são.
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Analisamos Era uma vez... minhas primeiras palavras, de Alison Jay e produzido pela Lemos
Editorial, que apresenta elementos imagéticos dotados de potência poética e estética. Usando
óleo sobre tela e a técnica de craquelado, que dá às imagens uma aparência envelhecida, a
artista do Reino Unido elabora um livro cujo endereçamento não é apenas às crianças de até
dois anos de idade, pois Era uma vez... minhas primeiras palavras é um passeio que
ultrapassa a denotação.
Em uma passada de olhos apressada, a primeira imagem do livro nada mais representa do que
a figura de um relógio. Contudo, depois de nos determos por alguns instantes, como se
estivéssemos em um museu apreciando uma obra de arte, podemos observar detalhes que nos
levam para uma outra dimensão interpretativa: à presença formal das imagens é conferida
uma dimensão narrativa. No relógio aparecem pintadas cenas das quatro estações do ano, o
que nos possibilita inferir que talvez o livro seja mais que um livro com belas e aleatórias
ilustrações. Ao passarmos as páginas, vemos confirmada a nossa hipótese: Alison Jay constrói
uma narrativa visual em que podemos imaginar um antes e um depois. As quatro ilustrações
do relógio, que representam o verão, a primavera, o outono e o inverno, aparecem anunciando
os elementos que caracterizarão cada estação e que serão os marcadores da passagem do
tempo. Além disso, cada ilustração anuncia, em uma perspectiva diferente, o próximo
elemento visual. É uma brincadeira de apontar e nomear que está repleta de coisas possíveis à
espera de nossa descoberta.
Fig. 70 Fig. 71
Era uma vez... minhas primeiras palavras Era uma vez... minhas primeiras palavras
Fig. 72 Fig. 73
Era uma vez... minhas primeiras palavras Era uma vez... minhas primeiras palavras
Fig. 74
Era uma vez... minhas primeiras palavras
Em relação à apresentação das cores para as crianças, o Livrinho das Cores, da editora
Girassol, faz parte de uma coleção de títulos que tem como objetivo familiarizar os bebês com
as letras do alfabeto, os opostos, os animais, os números e os meios de transporte. Os livros
vêm todos dentro de uma sacola e são tratados no diminutivo devido ao seu pequeno
tamanho: 9cm x 9cm. São todos cartonados e as imagens são fotos do objeto real. Os livros
apresentam seis páginas e em cada uma delas está representado um objeto.
No que diz respeito ao Livrinho das Cores, são escolhidos aleatoriamente objetos, animais ou
alimentos para apresentar as cores para os bebês. Cada imagem traz, na margem superior, o
nome do objeto representado e, na margem inferior, vem grafado o nome da cor representada.
Esses elementos conferem à produção um caráter pedagógico em que o objetivo principal é
ensinar as cores e, quem sabe, a grafia das palavras. São livros que as crianças gostam de ler e
manipular e que o conformam mais como um livro informativo.
189
Fig. 75 Fig. 76
Livrinhos - Cores Livrinhos - Cores
Todavia, veiculando a mesma temática das cores e apresentando uma proposta diferente
temos o livro Cocodrilo da editora Kalandraka. Ele faz parte da coleção "De la cuna a la luna"
que tem mais quatro títulos editados: Luna, Pajarita de papel, Del uno al cinco e Miau.
Escrito por Antonio Rubio e ilustrado por Óscar Villán, Cocodrilo traz uma brincadeira
rítmica com as palavras e é construído com uma estrutura acumulativa em que a cada página
um novo elemento aparece. Esse tipo de estrutura textual agrada muito os bebês porque eles
não só podem memorizar o texto como também antecipar a próxima imagem que vai aparecer.
Cocodrilo é um poema acumulativo que possibilita às crianças recitar de cor em cor. O poema
inicia-se com um cocodrilo verde, verde, verde... que muerde... que sobe em um baúl... azul,
azul, azul... que sobe em um castillo... amarillo, amarillo, amarillo.... Assim, novos
personagens vão aparecendo e subindo uns nos outros até que um piojo... rojo, rojo, rojo...
segura todo mundo. Esse final subverte as expectativas do leitor e propicia muitas
gargalhadas.
O texto de Antonio Rubio traz para as crianças uma provocação estética que as faz brincar
com a sonoridade das palavras. Já as imagens de Óscar Villán libertam o livro de seu
utilitarismo imediato, abrindo-se para outras interpretações. Cocodrilo é um livro de literatura
dedicado aos bebês que pode, dentre muitas outras coisas, ensinar as cores.
190
Fig. 77 Fig. 78
Cocodrilo Cocodrilo
Fonte: Antonio Rubio y Óscar Villán, 2015 Fonte: Antonio Rubio y Óscar Villán, 2015
Fig. 79
Cocodrilo
Oso y caja, da Editorial Juventud, é outro livro que, à primeira vista, pode ser incluído na
temática cores. Contudo, sua proposta vai muito mais além do que apresentar as cores aos
bebês. O livro narra a história de três ursos, branco, marrom e negro, às voltas com a
construção de um trenó, e são as imagens que contam a história. O texto verbal está ali para
descrever as personagens e os objetos, ganhando o status, antes delegado às imagens, de ator
coadjuvante. Essa inversão, em que a narrativa está na sequência de imagens e a nomeação
está no texto verbal, propicia às crianças, que ainda não se apropriaram do sistema alfabético,
criar a própria história sem se preocuparem com a descrição verbal. A história começa com
um urso branco colocando uma grande caixa verde sobre a neve. Logo em seguida aparece
um urso marrom que abre a caixa e de lá saltam uma roda vermelha, uma banheira azul e uma
cadeira cinza. Tentando alcançar os outros objetos que estão dentro da caixa, o urso marrom
entra dentro dela quando, de repente, aparece o urso negro para ajudá-lo. Ele recebe do urso
marrom um martelo, uma bandeira amarela e duas asas roxas que desvendam todo o mistério
191
dos objetos retirados da caixa verde. Eles construíram um trenó para deslizar pela neve em
companhia da mãe.
Cliff Wright é o autor desse livro que não subestima a capacidade dos bebês de se envolverem
com narrativas de grande impacto expressivo em que as imagens contam história e as cores
nomeiam os objetos da narrativa. Ao final, as ilustrações são apresentadas em sequência,
dando visibilidade total à narrativa.
Fig. 80 Fig. 81
Oso y Caja Oso y Caja
Fig. 82 Fig. 83
Oso y Caja Oso y Caja
Fig.84
Oso y Caja
Gostaríamos de apresentar, por último, o livro, de autoria de Toni e Laíse, Tem bicho que
sabe... e que faz parte da Coleção “Tem bicho que...” Essa obra, a princípio, pode ser tomada
como um exemplar informativo. Entretanto, sua proposta vai mais longe. Ele discorre sobre as
diferentes características existentes entre os animais e, metaforicamente, trata da diversidade
humana. Tendo como temática os animais, Toni e Laíse constroem um livro em que as
ilustrações se espraiam por toda a página dupla, sangrando as margens do livro. A ausência de
moldura transmite a ideia de que essa representação é uma parte do mundo. Ainda temos que
considerar, em especial nessa obra, o alto grau de espetacularização, devido à tomada em
primeiro plano e ao preenchimento integral da página dupla. Cada bicho é acompanhado de
um texto verbal curto que especifica uma de suas características. É interessante perceber que,
a despeito da grandiosidade imagética, o texto verbal ocupa um espaço “semantizado” na
página. As ilustrações foram feitas com pinceladas de tinta guache sobre papel preto, que dão
aos animais uma ilusão de textura e explicitam o trabalho autoral.
A proposta dos autores cria um jogo de adivinhação e revelação para a criança, a qual poderá
comprovar suas hipóteses conferindo o glossário na última página, que traz as imagens e os
nomes dos bichos que aparecem no livro. O livro ainda apresenta, na penúltima página,
algumas ideias sobre como as crianças podem explorar o livro. Vale a pena destacar que as
propostas ultrapassam sugestões que buscam apenas a identificação dos bichos ao trazerem
atividades mais interativas.
Fig. 85 Fig. 86
Tem bicho que sabe... Tem bicho que sabe...
Fig.87
Tem bicho que sabe...
6.3.3.2. Abecedário:
É interessante observar que há uma gama enorme de produções dessa categoria destinada aos
bebês. Ainda que entendamos que a alfabetização, em uma perspectiva ampla, comece desde
que a criança nasce, não nos parece relevante a apropriação das letras do alfabeto por essa
faixa etária. O fato é que esses livros fazem parte do acervo de muitas editoras brasileiras e
internacionais. Contudo, mesmo com um caráter didático manifesto, podemos observar que
alguns abecedários transcendem essa perspectiva e abrem espaço para o pensamento elaborar,
fabular e fantasiar.
Hoje sinto-me, de Madalena Moniz, é um belo exemplo de como um livro pode transgredir
seu gênero e nos fazer habitar o espaço poético.
Fig. 88
Hoje sinto-me...
Audaz
Fonte: Madalena Moniz, 2014
194
Fig. 89
Hoje sinto-me...
Curioso
Fonte: Madalena Moniz, 2014
Fig. 90
Hoje sinto-me...
Heróico
Fonte: Madalena Moniz, 2014
O título do livro não nos faz suspeitar de que se trata de um abecedário. Somente depois de
folheá-lo é que nos surpreendemos com a delicadeza e a sensibilidade com que a autora
descreve os sentimentos humanos partindo das letras do alfabeto. Ao longo desse abecedário,
vamos nos identificando com o personagem à medida que ele vai descrevendo como se sente:
audaz, destemido, genuíno, invisível, querido e muitos outros sentimentos que permeiam o ser
humano durante sua jornada vivencial. Cada palavra é acompanhada por ilustrações
metafóricas feitas a tinta-da-china e aquarela que levam as letras e as palavras para um espaço
lúdico e emocional que transfere para nossa memória uma sensação de encantamento.
Hoje sinto-me não é um manual com instruções sobre os sentimentos humanos. Tampouco um
compêndio para aprender as letras do alfabeto. Ele habita o espaço poético e, por isso, o
tempo e o espaço são de outra ordem.
195
Publicado originalmente em 1960 o livro ABC, de Bruno Munari, ganhou uma nova edição
em 2006 publicada pela editora Chronicle Books. A nova edição mantém as mesmas
características da edição original, como o tamanho grande do livro, o tipo de encadernação em
brochura e a qualidade do papel. A capa é cartonada e traz uma sobrecapa idêntica com
orelhas que apresentam considerações sobre a nova edição e uma breve biografia do autor. A
sobrecapa, além de proteger o livro, mostra o cuidado da editora em preservar as
características originais dele. O miolo usa papel de alta gramatura e apresenta ilustrações
feitas em aquarela, o que exige do autor um grande domínio da técnica para controlar os
efeitos do uso das cores claras e escuras. Nesse miolo o autor traz palavras e ilustrações que
começam com uma letra retratada.
Fig. 91 Fig. 92
Bruno Munari´s ABC Bruno Munari´s ABC
Fig. 93 Fig. 94
Bruno Munari´s ABC Bruno Munari´s ABC
Fig. 95
Bruno Munari´s ABC
As letras, todas do mesmo tamanho, estão em caixa alta e ocupam, nas páginas, espaços não
uniformes. É interessante observar que, a despeito de as letras serem as protagonistas do livro,
são as imagens que ocupam a maior parte da superfície da folha. A simplicidade e a
espontaneidade dos traços de Munari são reforçadas pelo fundo branco e pelo uso de poucas
cores. Suas ilustrações são expressivas e brincam com espacialidade da página convocando o
leitor não apenas a aprender as letras do alfabeto, mas a examinar as imagens e estabelecer
conexões com sentimentos e experiências.
Algumas imagens aparecem isoladas, referindo-se apenas a determinada palavra. Outras são
associadas às aliterações propostas pelo autor, como “a Cat in a Cage” ou a “Dog and his Dish
outside a Door”. Essas aliterações, além de apresentarem as letras do alfabeto às crianças, são
elementos que brincam com a sonoridade e o ritmo das frases, fazendo a face lúdica da
linguagem abrir as portas para o entendimento do mundo. ABC parece uma tentativa do autor
de oferecer às crianças de sua época um livro com as primeiras lições escolares de maneira a
subverter as antigas cartilhas. A mosca que voa livre pelas páginas do livro e termina dando
voltas na letra Z fazendo seu sonoro “zzzzzzzzz” é um exemplo da originalidade da produção
de Munari e de sua sensibilidade em relação à infância.
Já o livro Alfabeto, publicado pela editora Girassol, é um manual para aprender as letras do
alfabeto. O livro é pequeno, todo cartonado, e a encadernação é feita em brochura, o que
evidencia seu destinatário presumido: os bebês. A obra apresenta imagens fotográficas em
fundo branco, que representam objetos referentes a uma determinada letra do alfabeto, e a
palavra relacionada a seu respectivo objeto destacada na borda inferior do livro, em fundo
amarelo. As letras do alfabeto são coloridas e aparecem na parte superior do livro, escritas em
caixa alta.
197
Fig. 96
Livrinhos - Alfabeto
A opção pelo colorido das letras do alfabeto enfatiza a destinação da obra: as crianças, uma
vez que existe a concepção, por parte de muito autores, ilustradores e editores, que o universo
infantil é um “jardim do Éden” adornado com muitas flores, balões e cores. Essa é uma
produção que nos remete às ideias que encontramos em muitos livros didáticos. Não
conseguimos visualizar nela nenhum teor literário, uma vez que não há nada que convoque o
leitor a uma decifração estética. Seu objetivo é pragmático, informativo e pedagógico: a
alfabetização.
6.3.3.3. Numerário:
Esse gênero é muito encontrado no acervo de livros indicados para bebês e, assim como o
abecedário, apresenta uma proposta didática. Todavia, podemos encontrar dentro desse gênero
produções em que os números contam história.
Alison Jay é quem, mais uma vez, vai nos levar a vagar por um universo paralelo em que os
objetos-objetivos são apenas pretextos para outras e diversas leituras. No livro Era uma vez...
1,2,3 nossas certezas são colocadas em xeque e podemos vislumbrar outros modos de
conhecer.
O livro narra a história de uma garotinha que, à luz de uma brilhante lua que aparece na janela
de seu quarto, adormece com um livro de histórias nas mãos. Em seu sono profundo, ela é
levada nas asas de um grande pássaro para passear por diversos contos de fadas.
198
Fig. 97
Era uma vez... 1, 2, 3
Fig. 98 Fig. 99
Era uma vez... 1, 2, 3 Era uma vez... 1, 2, 3
Fig. 100
Era uma vez... 1, 2, 3
As ilustrações são todas feitas em óleo sobre tela e craquelado. Algumas ocupam
praticamente todo o espaço da página dupla, outras são produzidas em página simples. As
bordas das ilustrações não apresentam um contorno definido, o que pode sugerir uma
perspectiva onírica de representação. Era uma vez... 1,2,3 é muito mais que um livro de
aprender a contar. A riqueza de detalhes das ilustrações de Jay nos proporciona mais que um
passeio pelos contos de fadas. Vemo-nos, de súbito, brincando de adivinhar qual será a
próxima história que aparecerá ao virarmos a página. Isso acontece porque existem pistas
visuais que nos possibilitam desvendar por onde a menina passeará. Assim, retornamos várias
vezes ao começo da história, dormindo e acordando com a personagem e, a cada sonho,
descobrindo uma dimensão suplementar da história.
200
Fonte: Ingrid Bellinghausen, 2008 Fonte: Ingrid Bellinghausen, 2008 Fonte: Ingrid Bellinghausen, 2008
As frutas são os elementos escolhidos para ilustrar as páginas do livro e para fazer referência
às quantidades apresentadas que vão de um a dez. É legitimo supor que houve um cuidado
com a escolha dos elementos visuais, uma vez que observamos uma gradação no tamanho das
frutas representadas: as frutas com dimensões maiores são usadas para representar
quantidades menores, enquanto as pequenas estão relacionadas às quantidades maiores.
Todavia, a obra não oferece uma relação texto/imagem que ultrapasse o interesse didático e as
características de uma cartilha, cuja finalidade é ensinar as crianças a contar e a relacionar o
número à quantidade respectiva.
6.3.3.4. Parlenda:
São textos em forma de versinhos que, em sua grande maioria, fazem parte do folclore
brasileiro. As parlendas formam um compêndio de brincadeiras de tradição oral que são
passadas de geração para geração e que há décadas divertem crianças e adultos. A sonoridade,
o ritmo e a melodia dessas construções encantam e rapidamente são recitadas. Muitas
parlendas são acompanhadas de gestos dos quais os bebês se apropriam antes mesmo de
aprenderem a falar. Assim como as canções de ninar, as parlendas iniciam os bebês no
universo literário, pois são um dos primeiros textos com os quais os bebês interagem.
201
Encontramos no mercado editorial uma vasta produção de títulos dedicados a esse gênero
literário. Gostaríamos de destacar a publicação da editora Panda Books, o livro Parlendas
para brincar, escrito por Lucila Silva de Almeida e Josca Ailine Baroukh, publicação que traz
um repertório vasto e divertido dessa brincadeira da cultura popular. As autoras
empreenderam uma ampla pesquisa a fim de resgatar parlendas que povoam a memória de
pessoas pelo Brasil afora e que evocam sensações da infância, como cheiros, sabores,
gargalhadas, movimentos. O resultado é um livro muito brincante em que as crianças têm a
oportunidade de vivenciar o caráter lúdico da palavra. As ricas e divertidas ilustrações de
Camila Sampaio dão um arremate pitoresco para essa publicação e possibilitam às crianças
bem pequenas se reportarem ao texto verbal através da leitura das imagens.
Fonte: Josca Baroukh e Lucila Silva de Almeida, 2013 Fonte: Josca Baroukh e Lucila Silva de Almeida, 2013
Fonte: Josca Baroukh e Lucila Silva de Almeida, 2013 Fonte: Josca Baroukh e Lucila Silva de Almeida, 2013
202
6.3.3.5. Cantigas:
Em seção anterior declaramos que mesmo antes do nascimento os bebês já possuem um
envolvimento com o universo sonoro. A vida intrauterina é povoada por sons provocados pelo
corpo da mãe, como a respiração, o sangue que flui pelas veias e artérias, os movimentos
intestinais, entre outros. A voz da mãe é identificada pelo bebê tão logo ele nasce devido à
capacidade auditiva do feto, que é muito desenvolvida. Dessa forma, a voz materna constitui
uma matéria sonora espacial para os bebês. E é essa mesma voz que, de forma intuitiva, inicia
o bebê no mundo da palavra poética.
Não se sabe precisar com exatidão quando foi que as cantigas tiveram início, mas sabemos
que ela é uma das formas mais importantes de expressão humana. A integração dessa
linguagem com os aspectos afetivos, estéticos e cognitivos das crianças, bem como seu caráter
social e cultural, justificam sua presença como peça importante na formação infantil.
Existem, hoje, diversos artistas que se dedicam a produzir material musical para crianças com
releituras de cantigas antigas e novidades que ampliam os desenhos melódicos e os rítmicos, o
acervo de canções e a capacidade expressiva das crianças. Podemos citar, dentre outros, o
trabalho desenvolvido pelo selo Palavra Cantada que, desde 1994, desenvolve um trabalho
autoral com músicas voltadas para o universo infantil que respeitam a inteligência e a
sensibilidade das crianças. Sob a responsabilidade dos músicos Paulo Tatit e Sandra Peres, o
selo tem colocado no mercado fonográfico letras que exploram a musicalidade da palavra, os
diferentes ritmos brasileiros e as cantigas folclóricas. Corroborando a ideia da propagação do
texto literário por diversos suportes e entendendo a forma holística como a criança se apropria
do mundo, os músicos estenderam suas criações para diversas mídias, como o DVD, as
plataformas digitais e o livro impresso.
Rato, conhecida canção do grupo Palavra Cantada, é um exemplo de produção que ganhou
uma nova versão em livro, publicado pela Editora Melhoramentos. O livro vem acompanhado
de um CD e as ilustrações criadas por Laurent Cardon são as mesmas que aparecem na
animação que está no DVD “Pauleco e Sandreca”. Esse livro faz parte da série “Histórias
Cantadas” e conta a história de um ratinho que está em busca de um grande amor. Diferente
dos outros ratos, que correm farejando comida, ele canta para a Lua e a ela declara o seu
amor. Contudo, a pretendente declina do convite de casamento e lhe indica a nuvem como
uma candidata muito melhor. Voltando-se para a nuvem, o ratinho novamente declara o seu
203
amor e promete lhe ser fiel a vida toda. Como a lua, a nuvem vê empecilho em eles viverem
juntos e recusa o seu pedido. Sem perder a esperança, o rato segue em busca de sua amada
propondo casamento a diversas pretendentes, até o dia em que encontra seu verdadeiro amor:
uma ratinha.
Nessa mesma imagem notamos os ratos correndo por diferentes espaços da cidade, o que
confere movimento à cena. O gesto do ratinho ao se declarar à lua revela que ele não está
parado, ao contrário, ele se inclina em direção a ela para manifestar seu desejo. O mesmo
verificamos na cena que mostra o ratinho se declarando para a brisa: ela tem os cabelos e a
saia esvoaçantes, a flor que lhe enfeita os cabelos aparece inclinada, revelando a ação do
vento. Ela é todo movimento. A arte do encadeamento cinematográfico na escolha dos planos
e do traçado é utilizada por Cardon para conferir movimento à narrativa, e faz suas cenas
serem comparadas a um fotograma. O ilustrador utiliza diversas nuances da cor roxa para
simbolizar o ambiente noturno em que a narrativa acontece. Somente no encontro do ratinho
com sua amada é que o cenário ganha a cor rosa, despertando no leitor toda a intensidade
amorosa do encontro. As ilustrações de Cardon para o livro Rato são uma espécie de
storyboard 44da sua animação do DVD e do “YouTube”.45
O livro vem acompanhado de um CD com o poema narrativo musicado e com a versão para
karaokê, o que dá às crianças a possibilidade de perceber que a literatura se espraia por
diversos suportes. O texto traz rimas e um encadeamento de palavras que desperta muito
interesse nas crianças.
44
Storyboard são organizadores gráficos, tais como uma série de ilustrações ou de imagens arranjadas em
sequência com o propósito de pré-visualizar um filme
45
A animação pode ser visualizada no endereço: https://www.youtube.com/watch?v=e5ADrw5YpHU
204
Fonte: Paulo Tatit e Edith Derdyk, 2013 Fonte: Paulo Tatit e Edith Derdyk, 2013
Fonte: Paulo Tatit e Edith Derdyk, 2013 Fonte: Paulo Tatit e Edith Derdyk, 2013
Não podemos nos esquecer dos trabalhos desenvolvidos por Bia Bedran, Toquinho, Vinicius
de Moraes, Pandalelê, Sílvia Negrão, Adriana Partimpim, Barbatuques, Tiquequê, Weber
Lopes e Giovanne Sassá, Zeca Baleiro, Rodrigo Libânio e muitos outros.
6.3.3.6. Poesia:
Para crianças ainda tão pequenas a musicalidade é uma questão central nas construções
poéticas, e ela pode se dar por diversas maneiras: assonâncias, aliterações, rimas e repetições
de palavras. Há poetas que lidam com a ludicidade verbal e sonora das palavras e há outros
que usam as palavras de uma forma que o poema se torne engraçado. São essas habilidades
que aproximam crianças tão pequenas desse gênero literário. Ao contrário do que podemos
pensar, as metáforas e a estrutura dos poemas não são inacessíveis para os bebês. As frases
curtas, o tema, a sonoridade, a brincadeira com as palavras, as imagens evocadas são, muitas
vezes, o que dá sentido ao poema.
205
Parceiros desde 1994, Lalau e Laurabeatriz têm mais de vinte títulos de poesia dedicados às
crianças, muitos deles com o selo de altamente recomendáveis pela Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil. Seus trabalhos são complementares. Lalau inventa os versos e a rimas
e Laurabeatriz os transforma em imagens. Dentre os inúmeros títulos publicados pela dupla,
escolhemos analisar Zum-zum-zum e outras poesias porque traz uma coletânea de trinta e
nove poemas dos seus três primeiros livros, Bem-te-vi, Girassóis e Fora da Gaiola.
Fig. 114
Zum-zum-zum e outras poesias
Fig. 115
Zum-zum-zum e outras poesias
Fig. 116
Zum-zum-zum e outras poesias
Lalau transcende a escolha da palavra correta e a rima pela rima. O autor pretende, sim, a
simplicidade, a delicadeza, o inusitado, a surpresa, as múltiplas possibilidades da palavra, a
sensorialidade e a visualidade do texto, a brincadeira. É o que podemos observar em seus
poemas “Zum-zum-zum”, “Filharada”, “Melequinha”, “Amizade”, “Beija-flor”, “Riminhas” e
“Eclipse”.
As ilustrações de Laurabeatriz são feitas com tinta sobre papel preto e suas pinceladas
conferem texturas às imagens. Em um só quadro, a ilustradora procura simbolizar a essência
das expressões de Lalau. É possível observar que, assim como é possível brincar com
palavras, traços e cores sabem inventar cirandas.
6.3.3.7. Fábula
Apesar de os bebês ainda não possuírem um desenvolvimento social e cultural que lhes
permita refletir sobre a moral da história, essas produções despertam o seu interesse. A linha
tênue que separa o universo da ficção e o da não-ficção faz eles aceitarem essas propostas
discursivas sem a menor preocupação de confirmar sua veracidade ou de refletir sobre seu
conteúdo moral. Assim, estamos oferecendo a essas crianças a possibilidade de interagir com
um gênero que faz parte do arcabouço da literatura infantil, ainda que os bebês não se
aproximem, ainda, dos sentidos expressos pelos conteúdos didáticos e moralizantes.
A história A cigarra e a formiga da coleção Pequenas grandes histórias, publicada pela editora
Positivo, é um exemplo de produções do gênero que são acessíveis às crianças menores de
dois anos. Roberto Piumini traz novos personagens para a narrativa, como ratinhos e abelhas e
expande o universo ficcional da história sem, contudo, dificultá-lo. A linguagem do texto faz
207
uso de adjetivos que enriquecem a narrativa. Talvez, com essa estratégia, o escritor almejasse
dar mais corpo à narrativa assegurando melhor a apropriação do enredo por parte das crianças.
Outro aspecto que vale ser mencionado é que o autor não segue a estrutura fabular canônica,
uma vez que não explicita uma moral para a história.
As ilustrações de Nicoletta Costa, com traços simples, mas potentes em sua carga afetiva,
possibilitam às crianças a leitura da linguagem corporal das personagens.
Assim, é possível a elas perceber, claramente, quando a cigarra está feliz, surpresa, chateada e
triste, a partir de estratégicas gráficas que conferem movimento as imagens. O ambiente e o
clima descritos na narrativa podem ser sentidos pelos leitores pela paleta de cores usada para
representá-los. O verde ocupa grande parte das cenas em que o sol brilha com grande
208
intensidade, e as flores e frutos estão viscosos. Já a cor laranja e a ocre ocupam o cenário em
que o outono se aproxima e as árvores perdem suas folhas. Por último, vemos o branco e o
tom acinzentado narrando o inverno e o período de escassez. A dramaticidade do instante em
que a cigarra procura abrigo junto aos animais, descrita pelo texto verbal, é ampliada pelos
recursos imagéticos utilizados pela ilustradora. Isso destaca a ilustração como um que se
relaciona com a narrativa verbal ampliando suas possibilidades de significação.
46
O texto verbal foi recriado por João de Barros em 1907, mas a primeira edição da editora Moderna data de
1996.
209
ilustrações apresentam os animais com características humanas, como pernas, braços, sapatos,
o que facilita a reconhecimento pelas crianças; o texto verbal está escrito em caixa alta, o que
anuncia um possível objetivo alfabetizador. Além disso, é possível pensar que tais aspectos
contribuam para uma mais rápida assimilação pelo mercado.
Apesar de estar ilustrando uma narrativa, a princípio, de teor educativo, Odilon Moraes
trabalha os recursos imagéticos de maneira plástica e poética, construindo um texto visual
com inúmeras ressonâncias simbólicas. São poucos os elementos que aparecem em cada
página ilustrada e são poucas, também, as cores que Moraes utiliza para compor suas cenas.
Todavia, tudo é organizado de maneira a transmitir ao leitor toda a intensidade e
dramaticidade do texto verbal. Aliás, o ilustrador consegue compor um texto paralelo à
narrativa verbal que se sobressai a esta. As cenas tomam todo o espaço da página dupla.
A imagem que aparece na última página não apresenta texto verbal, o que enfatiza mais uma
vez a predominância narrativa das ilustrações. Além disso, é ela que narra o emblemático “E
foram felizes para sempre! ”.
Apesar de ter sido editado na década de noventa, o livro da editora Moderna apresenta uma
proposta mais desafiadora e uma temática mais atualizada, em que trabalho e arte são
colocados no mesmo patamar como atividades importantes para vida. Assim, o contexto dessa
obra aparece de forma mais contemporânea, mais inclusiva, do que o da publicação da editora
Positivo, que continua com a moral clássica.
Os bebês ainda não são capazes de saber que o “Era uma vez” é um convite para entramos em
uma outra dimensão de tempo e espaço. Contudo, isso não pode ser de forma alguma uma
interdição para que eles tenham contado com os contos maravilhosos.
Existem hoje no mercado uma infinidade de versões para todos os contos de fadas, o que
possibilita sua adequação para as diferentes faixas etárias. Mesmo tendo clareza do que
Nodelman (2010) nos fala sobre o escalonamento etário que nós adultos fazemos das
produções dirigidas às crianças, é preciso termos em mente que há obras que exigem
competências de leitura que ainda não estão presentes nos bebês. A leitura exige um percurso
que influencia nas possibilidades de atribuição de sentido por parte das crianças. É preciso
considerar, ao escolhermos livros de contos de fadas para crianças de até dois anos de idade, o
que Vigotski (2000) declara sobre a zona de desenvolvimento imanente: oferecer livros que
211
não sejam opacos a essas crianças e tampouco que sejam títulos simplórios, que não desafiam
ou não despertam a sua curiosidade e o seu interesse.
Trazemos para discussão dois títulos da história Chapeuzinho Vermelho com a finalidade de
evidenciar aspectos relativos às dimensões estéticas das linguagens verbal e visual e, também,
o tratamento dado ao seu projeto gráfico.
O primeiro livro é uma publicação da editora Girassol e faz parte da coleção “Clássicos do
mundo”. Um dos primeiros aspectos que percebemos ao iniciarmos a leitura do livro é o
tratamento dado ao enredo. Com objetivo de facilitar a apreensão da narrativa por parte das
crianças ou pela preocupação em produzir um projeto editorial de baixo custo, a história sofre
cortes que prejudicam as ações e pensamentos dos personagens. Essa opção pela
simplificação do enredo pode comprometer a apreensão dos sentidos da narrativa, pois reduz
a possibilidade de interação do leitor. A primeira página apresenta a protagonista, e já na
página seguinte aparece o diálogo da mãe com a menina pedindo-lhe que leve uma cesta com
queijo, mel e bolo para a avó. Outro aspecto que colabora para dificultar e restringir o
entendimento do texto por parte das crianças é o modo como o texto verbal e as ilustrações
são colocadas no espaço da página. O texto verbal sempre aparece deslocado para a parte
direita ou esquerda da página e é demarcado por um fundo branco. Ele porta as informações
referentes às ilustrações que estão em páginas separadas, o que pode influenciar na
compreensão da narrativa pelos leitores iniciantes, uma vez que as imagens os auxiliam na
atribuição de sentidos. A diagramação dessa produção não encontrou uma solução que
possibilitasse articular de forma harmônica mensagem verbal e imagem. Além disso, as
ilustrações referentes a cada fragmento do texto verbal não apresentam uma solução espacial
que nos permita identificar com precisão se elas foram elaboradas em página dupla ou em
páginas separadas. Dessa forma, a ocupação do espaço das duas linguagens, verbal e visual,
provoca uma irregularidade de sentidos.
Fig. 128
Fig. 127
Chapeuzinho Vermelho
Chapeuzinho Vermelho
As ilustrações lembram as produções de Walt Disney e criam uma imagem modelar de quem é
um lobo. O lobo representado nos remete à figura da fera do filme a Bela e a fera de Walt
Disney. Na última página encontramos as ilustrações de passarinhos e de um coelhinho que
são muito parecidas com as que aparecem nos filmes Cinderela e Bambi, também de Walt
Disney. Essas imagens estão amarradas a um modelo pré-existente, midiático e de consumo e
respondem a uma facilitação de um reconhecimento imediato, levando-nos a pensar que tais
produções se assemelhem mais a negócios e mercadorias do que à literatura.
Fig. 129
Chapeuzinho Vermelho
Fig. 130
Chapeuzinho Vermelho
Fig. 131
Chapeuzinho Vermelho
Fig. 132
Chapeuzinho Vermelho
Fig. 133
Chapeuzinho Vermelho
Fig. 134
Chapeuzinho Vermelho
Há uma outra solução original encontrada por Guibbaud que possibilitou criar, na mesma
página dupla, dois acontecimentos. Na página em que Chapeuzinho Vermelho chega à casa da
vovó e toca a companhia temos uma primeira cena. Entretanto, quando mexemos aba pop up47
e abrimos a porta da casa, o tempo flui, anunciando que este já é outro acontecimento.
Diversos recursos visuais e multimodais são usados para dar materialidade à história.
47
“São livros que acomodam sistemas de esconderijos, abas, encaixes etc., permitindo a mobilidade dos
elementos, ou mesmo um desdobramento em três dimensões”. (LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro
ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 25).
216
Esse gênero abrange grande parte da produção de literatura infantil da atualidade e apresenta
uma diversidade de experiências discursivas que amplia o desenvolvimento de um trabalho de
sensibilização estética com as crianças.
Rápido como um gafanhoto, publicado pela editora Brinque Book, é um exemplo de livro
contemporâneo em que os autores Audrey Wood e Don Wood abordam aspectos da
personalidade humana.
Fig. 135 Fig. 136
Rápido como um gafanhoto Rápido como um gafanhoto
O premiado artista gráfico belga Guido Van Genechten tem uma vasta produção de livros
destinados às crianças. Escolhemos analisar o livro É um gato? porque verificamos que ele
traz alguns aspectos que nos permitem apreciar a amplitude do desenvolvimento das obras
que conformam a literatura infantil contemporânea.
O livro faz parte da coleção “O que é? O que é? ” e propõe uma brincadeira visual de
adivinhação. Feito em formato de dobradura, o livro apresenta imagens que representam
determinado animal, mas que também podem se transformar em outro. Isso acontece porque o
autor, ao escolher ilustrar um animal, aproveita uma parte da figura para construir outro.
Fonte: Guido Van Genechten, 2009 Fonte: Guido Van Genechten, 2009
218
Fig. 141
É um gato?
A certeza de que estamos vendo um gato, um pato, um papagaio ou um polvo se desfaz pelo
simples desdobrar das páginas do livro. À maneira do texto verbal acumulativo encontrado
em diversos livros de literatura infantil, Van Genechten constrói diversos personagens na
dobradura visual, em que possibilidades vão sendo acumuladas. A ideia da fragmentação
compondo um todo é percebida quando, estendendo o livro ao avesso, visualizamos as partes
dos animais que estão dentro do tucano. Com figuras simples em fundo azul, feitas com tinta
e papel, Van Genechten propõe uma brincadeira que vai além da simples adivinhação.
A editora CosacNaify foi, desde a sua fundação, uma empresa preocupada em disponibilizar
livros inovadores que concediam ao livro ilustrado toda a sua amplitude expressiva. Esse é o
caso do livro Barulho, barulhinho, barulhão, de autoria de Arthur Nestrovski e ilustrações de
Marcelo Cipis, que desafia os leitores a prestar atenção aos diferentes tipos de barulhos que
nos rodeiam: o barulho da nossa respiração, dos carros parados no sinal, do zíper abrindo
devagar, do caminhão de lixo passando, do pai e da mãe quando estão chegando, e muitos
outros. Graduado em música pela Universidade de York e, atualmente, diretor artístico da
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Arthur Nestrovski dedica-se a construir um livro
para crianças no qual ele chama a atenção para os diferentes barulhos que permeiam nosso
cotidiano, levando as crianças a se sensibilizarem e a aguçarem a escuta. As ilustrações de
Marcelo Cipis somam-se às palavras de Nestrovski, acrescentando novas informações à obra.
A delicadeza do traçado de Cipis não o impede trazer para o livro uma atmosfera humorística.
Suas ilustrações subvertem as figurações realistas dos objetos e expandem os sentidos do
texto verbal. O projeto gráfico também colabora para a aplicação das significações do texto,
uma vez que a mensagem linguística se transforma numa representação icônica que
acompanha as características das propostas textuais ou imagéticas. Dessa maneira, a
visualidade gráfica deixa de ser abstração e passa a fazer parte da expressividade da obra.
219
Fig. 142
Barulho, barulhinho, barulhão
Fig. 143
Barulho, barulhinho, barulhão
Fig. 144
Barulho, barulhinho, barulhão
O livro infantil contemporâneo oferece uma variedade de formatos que interferem diretamente
na organização da mensagem, em página simples ou dupla. Assim, o formato se torna peça
fundamental para a expressão artística. Entretanto, o tamanho e o formato do livro infantil
contemporâneo não são um entrave para o processo de criação, como podemos ver no livro de
Ângela Lago Casa Pequena. A autora materializa no tamanho do livro o espaço da casa
apertada narrada na história.
220
Fig. 147
Casa pequena
Essa é uma história do folclore judaico que foi recontada por Ângela Lago em um livro com
10 cm por 10 cm de tamanho. Um homem, cansado de ouvir as reclamações de sua mulher
sobre o tamanho diminuto de sua casa para comportar sete filhos, resolve se aconselhar com o
padre da cidade para saber como resolver o problema. Então, o padre o orienta a ir colocando
animais dentro da casa, pensando que, quando eles fossem retirados, a mulher mudaria de
opinião quanto ao espaço da casa. Qual não foi a surpresa do padre ao perceber que, ao se ver
livre dos animais, a mulher continuava a reclamar do tamanho da casa. Entretanto, o marido já
não se importava tanto com suas reclamações, pois ficara aliviado de se ver livre dos animais.
Imagem e texto verbal se espalham ora pela página simples ora pela página dupla do pequeno
livro, mostrando como existem soluções originais e criativas para resolver o problema do
suporte. As imagens feitas em computador são invadidas pela diagramação do texto verbal,
que ganha visualidade, ajudando na construção de sentido da narrativa. Esse livro é um marco
221
O livro comprido, do artista mineiro Caulos, mostra como o formato, as imagens e o texto
verbal estão solidamente articulados para expressar as ideias do autor.
Caulos explora a horizontalidade das páginas para expandir o tamanho das ilustrações,
materializando o significado do texto verbal. Assim, ele desenha o sapato do palhaço, o
pescoço da girafa dormindo, a boca do jacaré, uma cobra tomando sol, uma centopeia e o
sonho da centopeia, um cachorro quente do tamanho da fome da gente, a língua do sapo
quando pega um mosquito, o fio do telefone sem fio, o nariz do Pinocchio e outras pessoas,
lugares e bichos que podem se entender no espaço horizontal.
Fig. 148
O livro comprido
Fig. 149
O livro comprido
Em estilo caricatural e com suavidade de tons, Caulos produz desenhos com traçados de
grande expressividade. A opção por essa forma de representação dá às ilustrações um caráter
humorístico e, ainda, possibilita às crianças imaginar outras coisas que podem caber em um
livro horizontal. O autor leva essa mesma proposta para outras produções, como O livro
estreito e O livro redondo.
Também são encontrados livros com formatos irregulares em que todas as imagens têm uma
forma única e há livros em que a assimetria do formato não dialoga com a narrativa. Há livros
em formato de acordeão, que permitem um jogo entre a separação das páginas e continuidade
da narrativa. E, ainda, livros em formato de folder, nos quais as dobraduras conferem a ideia
de um fluxo interrupto à narrativa. Esses são apenas alguns exemplos dessa diversidade em
que a tecnologia e a qualidade artística são meios para novas produções.
O burro e o sal, publicado pela editora Moderna, faz parte da coleção “Clássicos Infantis”, e
foi recontado pelo escritor Edgard Romanelli. As ilustrações ficaram a cargo da dupla Girotto
e Fernandes.
O burro e o sal é uma história jocosa em que dois seres bem espertos medem forças para saber
quem vai levar a melhor. Burro e dono foram à cidade para fazer compras. Depois de tudo
comprado e embalado, o dono do burro dividiu a carga entre ele e o animal. Como sempre,
ficou a cargo do animal a mercadoria mais pesada: um enorme saco de sal. Para chegar até a
fazenda, burro e dono tinham que atravessar um rio. Mergulhando na água o animal percebeu
que o peso da carga diminuía e foi então que entendeu que era porque o sal se dissolvia.
Estava dando boas gargalhadas quando percebeu que seu dono lhe puxava novamente para o
armazém para comprar um novo pacote de sal. Assim, a situação se repetiu até que o dono do
burro armou uma cilada para o burro, colocando em suas costas esponjas, ao invés de sal. As
esponjas absorveram a água e deixaram a carga que o burro levava muito mais pesada. Com
as pernas arriadas, o burro se estatela no chão, morto de cansaço. Agora foi a vez do
fazendeiro cair na gargalhada.
224
Assim como a história, as ilustrações são muito bem-humoradas, com um traçado caricatural
que exacerba as características individuais dos personagens, conferindo às imagens
comicidade. A ilustração do burro sendo puxado pelo dono a caminho do armazém já dá o
tom do enredo. Os óculos escuros, o graveto na boca, o relógio atado a uma das pernas e o
olhar de esguelha, aliados às cores bem acentuadas e às formas distorcidas, dão
expressividade à personalidade do protagonista. O burro toma a cena das páginas duplas, que
apresentam fundo monocromático e quase nenhum outro elemento imagético. A mancha
textual divide com as imagens o espaço da página, mas é disposta em pequenos trechos de
maneira a conceder à imagem o papel de atriz principal. O discurso verbal é construído em
forma de um poema narrativo com versinho curtos e rimados. A linguagem é bem elaborada e
não poupa as crianças do contato com palavras complexas.
O livro ilustrado tem aberto caminhos para múltiplas formas de expressão e tem propiciado a
convivência das crianças com diversas representações discursivas da cultura. A riqueza da
articulação entre texto verbal, imagem e design gráfico leva a alguns teóricos, como Hunt
(2010), que essa é uma dinâmica multimodal, não encontrando equivalente na literatura
adulta.
Diante desse novo panorama editorial dos livros infantis e, principalmente, dos livros
destinados às crianças de até dois anos de idade, tentamos criar categorias que acolham os
diferentes conceitos dessas obras. Todavia, afirmamos que, à semelhança dos fios de uma teia,
essas categorias se interpõem, dando origem a obras mistas que convidam os leitores a
experimentar novas formas de manejo, de perspectivas, de orientação de leitura, de
organização dos elementos sígnicos, formas essas que interferem diretamente nos modos de
conhecer, de interpretar e de organizar o pensamento.
Essas novas e originais criações infantis, em que diversos elementos entram em uma relação
comunicativa complexa nas quais as crianças têm que abrir e fechar abas, apertar botões,
tocar, cheirar, ouvir, são categorizadas por Paiva (2013) como livros-brinquedo. Contudo,
optamos por desmembrar essa categoria a fim de explicitar os diferentes recursos expressivos
utilizados que podem intensificar o desenvolvimento de determinadas habilidades leitoras.
Classificamos os livros para bebês quanto ao conceito da obra nas seguintes categorias: livro
com ilustração, livro ilustrado, livro de imagem, livro de artista, livro multimodal e livro
brinquedo.
Todavia, encontramos no mercado editorial livros com ilustração que colaboram para o
desenvolvimento estético das crianças, porque apresentam imagens exuberantes e bem
trabalhadas que estimulam as crianças a falarem sobre o que veem, sobre as cores e a
226
aparência dos personagens e sobre o ambiente onde a narrativa é construída, enriquecendo sua
imaginação.
Publicado, em 1983, pela editora Bakana e ilustrado por Paula Regis Junqueira e Márcia
Meyer Guimarães, o livro conta a história de Pirula, uma porquinha que queria um laço de fita
novo para colocar em seu rabinho enroladinho.
Fig. 156
A porquinha do rabinho enrolado
Fig. 157
A porquinha do rabinho enrolado
A porquinha ganhou dinheiro da mãe e foi comprar uma fita da loja de Seu Tomé, mas não
ouviu os conselhos da mãe para levar sombrinha e capa de chuva. Desobediente, a menina
pegou um temporal que desfez o seu laço de fita e desenrolou o seu rabinho. Chegando em
casa chorosa com o que havia acontecido, a porquinha recebe o carinho da mãe que enrola seu
rabinho novamente, amarando nele a fita azul, agora seca e passada.
227
A narrativa é simples e por vezes nos remete aos textos encontrados nas cartilhas. A última
página traz uma proposta para explorar o livro com a criança com etapas que lembram uma
aula de português e que reforçam o uso da literatura para fins pedagógicos.
No livro Tem bicho que sabe... também aparece uma proposta de trabalho para ser feita após a
leitura. Entretanto, as sugestões feitas no referido livro são abertas e possibilitam produções
mais autorais.
Também podemos perceber um salto qualitativo no uso das ilustrações nos livros de literatura
infantil se comparamos as representações imagéticas feitas no livro da Pirula com as
propostas da coleção “Clássicos Infantis” da editora Moderna. Uma primeira diferença é a
importância que a imagem adquiriu nos livros ilustrados, tendo grande valor e influência para
a construção do sentido da narrativa. Além, disso temos que considerar a diversidade de
linhas de expressividades imagéticas, suas zonas de ressonância e de silêncio.
Ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler
um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da
relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também associar representações,
optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a
poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à outra... Ler um livro
ilustrado depende certamente da formação do leitor. (pp.8-9)
O livro Bruxa, bruxa venha a minha festa, publicado pela Brinque Book, é um exemplo dessa
categoria literária.
228
Fig. 160
Bruxa, Bruxa Venha a minha festa
O livro conta a história de uma menina que vai fazer uma festa e, para isso, põe-se a subscritar
os convites, convocando a presença de seus amigos. Não é possível saber para qual tipo de
festa a menina está escrevendo os convites. Só ficamos sabendo que seus convidados ninguém
menos que o fantasma, a bruxa, o pirata, o tubarão, o espantalho, a cobra, o dragão e muitos
outros seres fantásticos. O texto verbal, que aparece em cada página dupla, nada mais é do
que a solicitação da presença de determinado convidado para a festa e a resposta do mesmo ao
convite:
dramática, o que fascina muitas crianças e, algumas vezes, traz receios a pais, professores e
bibliotecários.
A escritora Arden Druce conseguiu a proeza de criar um livro com personagens fantásticos
que habitam o universo infantil. Sua narrativa simples, com repetições, é facilmente
memorizada pelas crianças, que sentem muito prazer em poder ler o livro sozinhas.
O final da história é revelado pelo texto visual, indicando o tema da festa da menina.
Fig. 161
Bruxa, Bruxa Venha a minha festa
só, uma expressão uníssona criada ao mesmo tempo, uma expressão e uma linguagem
indissolúveis. ” (p.85)
Fig. 162
O ratinho, o morango vermelho maduro e
o grande urso esfomeado.
Fonte: Don e Audrey Wood, 2003 Fonte: Don e Audrey Wood, 2003
Fig. 165
O ratinho, o morango vermelho maduro e
o grande urso esfomeado.
Durante o diálogo o ratinho é alertado sobre o grande Urso esfomeado que adora comer
morangos vermelhos maduros, “especialmente um que acabou de ser colhido”. O ratinho se
desespera.
232
A história prossegue com o ratinho tentando todos os artifícios possíveis para esconder o
morango vermelho maduro do grande Urso esfomeado. Entretanto, a cada nova tentativa ele é
dissuadido pelo interlocutor, que sempre o alerta “Não importa onde ele esteja escondido” o
grande Urso esfomeado consegue sentir o cheiro de um morango vermelho maduro a
quilômetros de distância. Até que o narrador dá ao ratinho uma solução para o problema:
dividir o morango com ele.
Provavelmente as crianças de até dois anos de idade vibram com o desfecho da narrativa
porque o ratinho foi mais esperto que o Urso, demonstrando outra interpretação para o final
da história. Contudo, “precisamos estabelecer a diferença entre o modo como um leitor
qualificado decodifica e compreende e o modo como um leitor em desenvolvimento assim o
faz” (HUNT, 2010, p.138). O livro ilustrado oferece pistas e marcas para nossas atribuições
de sentido e é tarefa do mediador ampliar as experiências das crianças a fim de que elas
explorem ao máximo os significados potenciais desse tipo de texto e galguem patamares cada
vez mais complexos de produção de sentido.
A escolha desse livro para fazer parte do corpus de obras dedicadas aos bebês pode provocar
o questionamento de certos pais, professores e bibliotecários sob a alegação de que o sentido
da história não poderá ser apreendido por crianças ainda tão pequenas. Entretanto, não
podemos perder de vista, como bem aponta Hunt (2010), que as crianças são leitores em
desenvolvimento e por isso seus significados e sentidos são particulares e brotam de um
conjunto de padrões culturais diferentes do dos adultos. Possibilitar que as crianças socializem
suas interpretações entre seus pares, sem o controle de um sentido único, propicia o
compartilhamento de significados e explicita os diferentes graus de entendimento que fazem
diversos os seres humanos.
Não vou dormir, com texto de Christiane Gribel e ilustrações de Orlando, discorre sobre um
tema muito comum ao universo infantil: a resistência que as crianças têm em ir para a cama,
alegando sempre que não estão com sono.
Esse é um livro em que existe a predominância do texto visual sobre o texto verbal. A história
tem início com a menininha resmungando porque foi intimada a ir para a cama. Arrastando
seu ursinho, ela sobe as escadas, vai para o banheiro, escova os dentes e vai para o quarto.
233
Sentada na beirada da cama, ela continua insistindo que não está com sono, mas seus olhos
negam o que a boca diz.
Com um texto verbal simples e curto que contradiz o que as imagens mostram, os autores
constroem uma narrativa irônica que salienta a discrepância entre o que a menininha diz e o
que ela realmente sente. São as imagens que retratam os sentimentos da garotinha. Orlando
fez a opção de narrar a luta da menininha para continuar acordada mostrando cenas do quarto
sob seu ponto de vista. Dessa forma, conforme seus olhos vão se fechando, seu ângulo de
visão vai se reduzindo e as imagens de seu quarto vão ficando cada vez menores. A menina,
enfim, fecha os olhos e a página fica negra. A menina dormiu.
234
Fig. 170
Não vou dormir!
Em duas páginas depois vemos a menininha deitada em seu travesseiro, vencida pelo sono.
Fonte: Agnès de Lestrade & João Vaz de Carvalho, 2015 Fonte: Agnès de Lestrade & João Vaz de Carvalho, 2015
Fonte: Agnès de Lestrade & João Vaz de Carvalho, 2015 Fonte: Agnès de Lestrade & João Vaz de Carvalho, 2015
Em letra manuscrita, o texto fica reservado à metade da parte direita da página dupla e as
ilustrações tomam conta do restante do espaço, evidenciando, assim, a força imagética da
narrativa. Ao final, a autora nos revela que o seu disparte favorito é reler novamente o livro
Os meus disparates favoritos.
Ao contrário do que muitos pais, professores e bibliotecários pensam, o livro de imagens tem
um endereçamento que abrange crianças, jovens e adultos. Exatamente por suas qualidades
estéticas, que ampliam as possibilidades de significação, muitos desses livros podem ser lidos
com interesse por leitores das mais variadas idades. Todavia, é comum vermos em instituições
de Educação Infantil e em catálogos de editoras os livros de imagem recomendados para as
crianças de até dois anos de idade. É legítimo aceitarmos que as imagens encantam as
crianças pequenas, e que a leitura de imagens precede a leitura da palavra, mas a formação de
um leitor literário é um processo e o livro de imagens não pode ser usado apenas para a
contemplação das imagens.
São muitos os títulos encontrados hoje no mercado editorial que propiciam o encontro das
crianças com a criação artística. O livro, de autoria de Ilan Breman e Renato Moriconi,
Telefone sem fio, por exemplo, é uma galeria de arte em forma de livro. Em grande formato, o
livro relembra a brincadeira em que uma pessoa cochicha uma palavra ou frase no ouvido de
outra e essa mensagem corre a roda, passando de ouvido em ouvido, até ser revelada pelo
último mensageiro. A graça da brincadeira é que a mensagem vai se transformando à medida
que passa de boca em boca e de ouvido em ouvido.
Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010 Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010
237
Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010 Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010
Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010 Fonte: Ilan Brenman e Renato Moriconi, 2010
espelho para se verem nele refletidas. As diferentes atividades que preenchem o dia da menina
são muito semelhantes às das que vivem muitas das crianças.
Fonte: Marcelo Xavier, 1987 Fonte: Marcelo Xavier, 1987 Fonte: Marcelo Xavier, 1987
Fonte: Marcelo Xavier, 1987 Fonte: Marcelo Xavier, 1987 Fonte: Marcelo Xavier, 1987
Fig. 189
O dia a dia de Dadá
O livro começa com Dadá dando um gostoso bocejo e se espreguiçando para iniciar o dia com
o quarto todo iluminado pela claridade da manhã. Antes do café da manhã, a menina vai até o
banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes. Seu gatinho de estimação também ganha vida
e aparece usando o vaso sanitário. Ao seu lado está sua bonequinha, que imita todos os seus
gestos. Sentada à mesa, Dadá saboreia um gostoso bolo de chocolate acompanhada do seu
gato. Dadá estuda no turno da manhã e, por isso, tem que acordar bem cedo. Já na escola,
Dadá aparece sentada em sua carteira ouvindo com atenção as explicações da professora. De
tarde, a menina faz aula de piano e depois se diverte brincando em sua casa. De noite,
cansada, Dadá deita em sua cama e adormece abençoada pela fada do sono e na companhia de
sua boneca e de seu gato de estimação.
The White Book é uma publicação da editora italiana Minibombo, e traz uma narrativa visual
construída a três mãos pelos ilustradores Silvia Borando, Lorenzo Clerici e Elizabeth Pica.
Fazendo uso de traços simples a carvão e de cores vibrantes, os autores constroem com humor
uma narrativa visual em que a imaginação do protagonista dá tom ao enredo.
Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015 Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015
240
Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015 Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015
Fig. Fig.
The White book The White book
Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015 Fonte: Silvia Borando, Lorenzo Clerici, Elisabetta Pica, 2015
Um menino está de frente a uma parede branca com um ar pensativo. Ele prepara seu rolo
imerso na tinta rosa e começa a pintar. À primeira passada do rolo, o rosto do menino se
ilumina e ele continua a pintar. À medida que pinta, vemos surgir, em meio a parede rosa, seis
pássaros com contorno branco. Entretanto, ao virarmos a página vemos os pássaros se
desprenderem da parede e ganharem vida, restando apenas seus contornos, como se fossem
um negativo fotográfico. Espantado e triste, o menino vê sua obra ganhar o céu e sumir. O
mesmo acontece com as demais cores, como o azul dos peixes que saem para o mar, o verde
do dinossauro que assusta o menino, o cinza do pesado elefante que espreme o menino na
página, o amarelo da girafa que, com seu pescoço comprido, iça o menino do chão, o roxo do
tamanduá que, com sua língua comprida, tentar roubar o rolo de pintura. Até que ao usar a cor
laranja, aparece um cachorro, que faz o menino esquecer o pincel porque agora tem um
amigo.
241
A poesia das imagens nos revela mais que uma proposta pedagógica de ensinar cores, ela é
uma metáfora da vida: nossos sonhos às vezes criam asas, outras vezes mergulham no fundo
do oceano. Eles podem ser tão pesados que nos oprimem ou tão distantes que não
conseguimos alcançá-los. The White book traz a poética dos sonhos, dos desejos, das utopias
que nos fazem caminhar.
O livro Historias sin fin, da ilustradora Iela Mari, mostra como é tênue a linha que separa os
livros de literatura infantil de outras produções consideradas não literárias. Dividido em duas
partes, a obra traz duas histórias que evidenciam aspectos da natureza, o que pode levar
alguns especialistas a classificá-lo como um livro informativo. Entretanto, a maneira como
Mari dá tratamento às imagens, como ela as compõe, como as organiza na página, leva-nos a
elevá-las a uma dimensão mais poética do que objetiva.
A primeira parte do livro traz o título “Como que te como” e evidencia, por meio de imagens,
a cadeia alimentar dos animais. Na segunda parte, que recebe o título “El huevo y gallina”, a
autora explica de forma gráfica o ciclo natural do nascimento de um pintinho. A beleza das
imagens nos faz perceber como podemos explicar acontecimentos da natureza e da vida de
uma forma artística. A plasticidade das imagens elaboradas por Mari cria uma narrativa visual
que não termina em si mesma, evocando a ideia de um curso ininterrupto desses fatos da vida.
Historias sin fin é uma homenagem à natureza e às suas formas mutantes.
48
Crossover books são produções que apresentam a característica da dupla audiência, ou seja, são obras que
podem agradar tanto as crianças quanto os adultos.
243
Essa pesquisa adota o termo “livro de artistas” com o mesmo significado defendido por
Sandra Beckett em seu livro Crossover picturebooks: a genre for all ages. Nele a autora
declara que, nos livros de artistas, a narrativa é contada tanto pela materialidade do suporte
quanto pelas palavras, pelas imagens e pelo projeto gráfico. A autora alega que, para muitos
artistas, essa categoria de livros não é somente um contêiner de textos e imagens, mas um
objeto concreto e tridimensional. Os artistas exploram cada faceta do livro, como sua
materialidade, a tipografia, a diagramação, a encadernação, entre outras, para contar a
história.
Os livros de artistas são, segundo a autora, uma das produções mais influentes e estimulantes
para a criação de crossover books. Os livros infantis contemporâneos, inspirados nas ideias e
nas inovações dos livros de artistas, desafiam não só os limites da audiência, mas também as
possibilidades expressivas do objeto por si só. Muitos desses trabalhos inovadores questionam
a convencionalidade do códex tradicional, que postula tamanhos, formas, tipografias e tipo de
papel padronizados. Muitos dos livros infantis contemporâneos inspirados nos modelos de
livros de artistas são verdadeiras obras de arte.
Bruno Munari, Enzo Mari, Warja Lavater e Katsumi Komagata são alguns artistas que
exploraram o conceito do livro de artistas para criar obras para crianças. No Brasil temos
Ângela Lago e Fernando Vilela como exemplos de artistas que trabalham sobre essa
perspectiva. O trabalho desses artistas desencadeia uma reflexão provocativa sobre a estrutura
do livro.
Apresentamos alguns exemplos de livro de literatura infantil que se inspiraram nas iniciativas
pioneiras de Bruno Munari e colegas.
O livro das sombras, de Hervé Tullet, publicado pela editora Edicare é um exemplo de como
a materialidade pode conferir ao livro uma significação. A narrativa é construída com
244
imagens feitas a partir de técnicas especiais de corte. Tudo começa quando um barulho é
ouvido no jardim. O que poderá ser? A partir daí, o leitor é convocado a descobrir, em meio
as sombras que se insinuam na noite, o que teria provocado o barulho.
Fig. 201 Fig. 202
O livro das sombras O livro das sombras
O texto verbal é curto e traz indagações sobre as possibilidades visuais que se infiltram por
entre o jogo de luz e sombras. A proposta é que o livro seja lido com o auxílio de uma
lanterna e uma parede branca para que, quando a luz atravessar os recortes das páginas, as
imagens sejam projetadas e ampliadas no novo suporte. Luz e sombra constroem essa
narrativa que brinca com o suporte e com suas possibilidades de expressão.
Tullet traz para o livro a antiga arte de contar histórias do teatro de sombras, que usava a
silhueta de bonecos para criar imagens materializadas através de uma fonte de luz em uma
tela ou tecido translúcido, dando uma sensação de mimetização do real. Considerando que a
literatura é uma representação do real, a obra de Tullet utiliza como recurso imagético as
245
Fig. 205
Rato Fig. 206
Rato
Fig. 207
Rato
cima para baixo. Beckett (2012) dá a essas produções o nome de Mural Books porque elas, ao
final do desdobramento, mostram-se como um quadro que pode ser pendurado da parede.
Os livros pop-up, em que o espaço da página acomoda sistemas de esconderijos, abas e até
esculturas em terceira dimensão, são produções que encontramos hoje no mercado editorial e
que encantam as crianças, os pais, os professores, os mediadores e os bibliotecários. Muitas
dessas pessoas acreditam que quanto mais adereços e elementos saltam das páginas mais fácil
é a adesão das crianças aos livros literários. Não querendo diminuir a capacidade expressiva
de tais produções e nem coibir o acesso das crianças a essas obras, gostaríamos de afirmar que
o vínculo das crianças com a literatura não passa apenas pelo suporte, mas também por aquilo
que ele veicula. Assim, é preciso parcimônia e critérios para escolher os livros pop-up, a fim
de propiciarmos uma experiência verdadeiramente estética às crianças.
O livro Onde eles estão?, do escritor e ilustrador Fernando Vilela, é um exemplo de como a
materialidade pode ser usada para ampliar as qualidades expressivas do livro e de como ela
pode ser uma experiência expressiva planejada. Nessa obra, que faz parte da “Coleção
Surpresa”, o autor constrói um livro com abas e mostra às crianças que existem animais que
se escondem em outros. A proposta de achar o pequeno no grande oferece às crianças oito
charadas visuais que são aguçadas pelo texto verbal que acompanha a adivinha. A mensagem
verbal é curta e ocupa sempre a página da esquerda. Já o texto imagético preenche a página da
direita e se expande pelas abas. As ilustrações são simples, mas muito fortes. As cores usadas
e o contrates colaboram com a expressividade e a plasticidade das mensagens. A composição
imagética se inicia na página da direita, quando o autor fornece uma pista visual do animal
que será retratado. Ao abrirmos a aba vemos espalhado pelo espaço expandido a figura do
animal que se insinuava anteriormente.
247
Fig. 208
Onde eles estão?
Fig. 209
Onde eles estão?
O sapo Bocarrão, produzido pela Companhia das Letrinhas, traz uma outra proposta para os
livros pop up: imagens que saltam do suporte adquirindo uma perspectiva tridimensional. O
texto criado por Keith Faulkner conta a história de um sapo muito guloso, comedor de
moscas, que passa de página em página encontrando amigos e perguntando o que eles gostam
de comer, até que ele se encontra com um jacaré que lhe responde “Como sapos gostosos de
boca bem grande!”. Encolhendo sua boca o máximo que conseguiu, sem pensar duas vezes, o
sapo Bocarrão pula rapidamente para dentro do lago, fugindo de seu predador. As ilustrações
do designer gráfico inglês Jonathan Lambert são vibrantes, coloridas e se espalham pelo
espaço da página dupla. A boca de todos os animais que aparecem na história é feita em
formato tridimensional, ampliando os significados e os sentidos do texto verbal. Na última
página, na qual o sapo pula no lago, Lambert cria a imagem do sapo pulando na água, que se
espalha para fora dos contornos do livro, enunciando, assim, a intensidade do pulo do animal.
Essa forma de composição das imagens dialoga com o universo das crianças de até dois anos
248
Fonte: Keith Faulkner e Jonathan Lambert, 1995 Fonte: Keith Faulkner e Jonathan Lambert, 1995
Fig. 212
O sapo bocarrão
Livro brinquedo: De acordo com Paiva (2013), o caráter performático, tátil, sonoro, estético
dos livros-brinquedo se organizam sob outros recursos gráficos e editoriais e dão origem a
obras que convocam o leitor a ler brincando. Assim, o termo é aplicado, segundo a autora, a
livros que solicitam do leitor o manuseio direto e que dão abertura para jogos imaginativos e
passeios sensoriais e visuais.
249
Fig. 213
Os três Porquinhos
Apresentamos o livro Tirar & Pôr49, publicado pela editora Orfeu Negro e de autoria de Lucie
Félix, como um exemplo de livro-brinquedo que apela para a destreza manual das crianças,
mas também propõe um jogo de sentidos.
Fig. 214
Tirar & Pôr
Fonte: Lucie Félix, 2014 Fonte: Lucie Félix, 2014 Fonte: Lucie Félix, 2014 Fonte: Lucie Félix, 2014
A autora brinca com as formas geométricas e constrói um livro-puzzle que traz às crianças,
metaforicamente, a ideia de que a vida é feita de ações opostas que se complementam. São as
peças que se encaixam e desencaixam.
A sugestão de ler e brincar é feita a partir de cartões retirados da imagem que se apresenta na
página da direita os quais, depois de virada a página, são inseridos na figura que se mostra na
página da esquerda. Ao encaixar a peça no seu lugar certo, o leitor já tem à sua frente mais
uma solicitação para continuar o jogo. Ao chegar à última página, Lucie Félix propõe uma
viagem de regresso em que as mesmas peças se encaixam, mas criam uma nova leitura.
49
O endereço https://www.youtube.com/watch?v=E3ECVNuU8 e permite a visualização do livro Tirar e Pôr
por completo.
251
Nesse livro a autora subverte a ideia linear da leitura, que se dá da esquerda para a direita e de
cima para baixo, brincando com a espacialidade do objeto.
Apenas um é diferente é outro livro que se encaixa nesta categoria, mas apresenta uma
proposta de interação diferente da anterior. Publicado pela editora Brinque-Book, o livro foi
escrito e ilustrado pela artista alemã Britta Teckentrup, que convida os leitores, através de um
texto verbal rimado, a achar o animal que é diferente em meio a tantos outros iguais. A pista
para localizar o animal que destoa dos outros está no texto verbal, o que evidencia a
necessidade de mediação, e nos leva a questionar o entendimento de que o livro-brinquedo só
pode ser categorizado como tal se propiciar a leitura autônoma das crianças.
As imagens criadas por Teckentrup lembram figuras de carimbo e são espalhadas por quase
todo o espaço da página simples ou dupla. A autora brinca com a “estampagem” dos animais
e ora eles aparecem na mesma posição, ora são intercalados em posições diferentes e ora se
encontram parcialmente superpostos. A mancha textual também não tem um lugar fixo,
aparecendo em página isolada, dividindo o espaço da página dupla com as imagens ou se
misturando às ilustrações. A opção por essa forma de diagramação também sugere uma
brincadeira, o que amplia a atribuição dos sentidos e dos significados do livro. Esse é um
trabalho de advinhas verbais e visuais que mostra a efervescência criativa das produções
dedicadas à infância, e que nos solicita a reconfigurar e a ressignificar nosso entendimento
sobre o que é literatura para bebês e crianças menores de dois anos.
252
Com diversas publicações pelo mundo, o artista francês Hervé Tullet tem se dedicado, desde
1994, a criar títulos para as crianças que desafiam nossas concepções sobre o livro de
literatura infantil. Suas obras são uma provocação sensorial constante e redimensionam o
conceito de leitura. Seus jogos de palavras e imagens, as técnicas singulares e a criatividade
do uso do suporte contribuem para as transformações das relações de crianças e adultos com o
livro. Apresentaremos duas produções do artista francês que podem ser encaixadas na
categoria de livro-brinquedo.
Fonte: Hervé Tullet, 2014 Fonte: Hervé Tullet, 2014 Fonte: Hervé Tullet, 2014
Fig. 224
Aperte aqui!
50
Todo o conteúdo do livro Aperte aqui pode ser visualizado no endereço
https://www.youtube.com/watch?v=Kj81KC-Gm64 .
253
Em tempos de laptops, tablets, e-books, iPads e outras tecnologias em que a literatura circula,
Hervé Tullet cria um livro de faz-de-conta tecnológico. Com ilustrações de bolas colorias que
simulam botões, o artista constrói uma brincadeira em que os leitores têm que executar alguns
comandos para continuar a passar as páginas do livro. Tudo começa com uma bola amarela
que, apertada, leva a outras bolas vermelhas, amarelas e azuis que se movem e se misturam
pelas páginas, levando-nos à mágica do ilusionismo. Será que elas estão se mexendo mesmo
ao toque de nossos dedos ou isso não passa de uma brincadeira de faz-de-conta? Além dos
“cliques”, o leitor é convidado a sacudir, a soprar, a virar e revirar o livro, a bater palmas para
ver as bolas coloridas se movimentarem pelas páginas. Os textos verbais são curtos e
instrucionais. Esse livro de Tullet, assim como a maioria de suas obras, afirma o espaço e o
status da imagem nos livros infantis contemporâneos, pois é ela a protagonista da brincadeira.
Diferentemente do que possamos entender, Aperte aqui não é apenas uma brincadeira em
formato de livro. A proposta do autor é mais ousada e nos convoca a refletir sobre o universo
dos discursos literários, que aliam ficção e imaginação. Assim, quando Tullet propõe seu faz-
de-conta tecnológico, ele está dizendo às crianças que existem discursos imaginários
deliberados, que o ato de abrir um livro de literatura é aceitar entrar e depois sair da ficção e
que ler literatura nos traz a ilusão de que o que acontece é verdade pela sua mágica
verossimilhança.
O livro com um buraco, publicado pela editora Cosac Naify, é um outro livro de Tullet, cujo
formato grande e cuja capa vermelha já poderiam ser elementos suficientes para atrair a
atenção do leitor.
Fig. 224
O livro com um buraco Fig. 225
O livro com um buraco
O autor constrói esse livro com a imagem de um imenso rosto com a boca aberta. O inusitado
aparece no fato de a abertura da boca ser feita com um recorte no suporte. É um buraco no
meio da página e que nos remete ao título do livro.
Ao abrir o livro você se depara com um buraco que aparece em todas as páginas, completando
as ilustrações em preto e branco. Cada página dupla traz ilustrações em preto e branco e um
texto verbal curto que apresenta instruções e sugestões sobre o que fazer com o buraco
criando, assim, propostas que convidam o leitor a interagir com esse espaço de inúmeras
maneiras diferentes. Ele pode colocar o rosto no buraco, construir uma escultura, jogar
basquete, brincar de tiro ao alvo, cozinhar, mergulhar em uma piscina, correr por uma pista
cheia de obstáculos e muitas outras coisas que a sua imaginação permitir. Ao contrário do que
possamos supor, esse não é um espaço vazio, pois ele convoca o leitor a preenchê-lo com suas
ideias e com sua criatividade. ,
255
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trajeto que propusemos ao longo da pesquisa foi no sentido de construir uma linha
argumentativa que nos possibilitasse responder ou não a pergunta que dá título à dissertação:
Existe uma literatura para bebês?
As feições da literatura infantil também nos colocaram nessa perturbadora roda conceitual à
procura de seu estatuto literário. O adjetivo “infantil” é um atributo que demarca uma
audiência e dá aos textos literários uma personalidade própria: o uso de imagens, as marcas
discursivas, a temática, tipos de enunciações, as diferentes versões e tantas outras.
território das interações sociais, das características físicas e psicológicas dos seres humanos,
das relações de tempo e espaço e da linguagem não instrumental que as unem à cultura.
A partir dessas perspectivas e desses fundamentos para pensarmos a literatura infantil é que
nos confrontamos com a diversidade de obras destinadas aos bebês: livros de imagem, livros
sonoros, com adereços, texturas, pop ups, com jogos de dominó e quebra-cabeça, contos de
fadas, narrativas contemporâneas, abecedários, numerários, poesias, parlendas e muitos
outros. Esse universo amplo e variado nos fez mais uma vez questionar a existência de um
teor literário nos livros infantis destinados a essa faixa etária. Como encaixar propostas
interlocutórias tão diferentes dentro do espectro da literatura?
Diante da recorrência da pergunta, mesmo após dialogarmos com diferentes autores, sentimos
a necessidade de investigar com mais cuidado o universo das crianças de até dois anos de
idade. Para isso, lançamos mão dos conhecimentos da psicologia e psicanálise através das
vozes de Vigotski, Bruner, Wallon e Golse, que possibilitaram o encadeamento das
especificidades dos bebês com a produção de livros para essa faixa etária. Esses teóricos nos
indicaram que os bebês, em suas interações iniciais com o mundo, adquirem um script e
movimentos comunicativos que lhes possibilitam aprender que podemos fazer coisas com
palavras. Além disso, eles consideram a competências dessas crianças em produzir
significações por outros meios semióticos.
A análise dos livros para bebês nos fez confirmar que também ali há distintas formas de
abordar um mesmo tema e que existem diferentes camadas discursivas, umas mais
superficiais e outras mais profundas e é essa profundidade que nos permite compreender o
teor literário dessas obras. Há livros simples e com pouco texto que emocionam e há outros
257
que não tem alma. Encontramos produções que nos comoveram pela surpresa, pela aventura,
pela brincadeira, pelo humor e pela delicadeza de suas propostas. Também descobrimos
títulos que nos sensibilizaram por sua força dramática e por sua capacidade de elaboração de
imagens. São livros que criam uma resistência impulsiva e que exigem que nos demoremos
em sua apreciação para que a eles nos entreguemos de forma completa. Esses são os livros,
que a despeito de conter ou não uma narrativa, nos convidam a “estar em literatura”.
Infelizmente nos deparamos com muitos títulos que reforçam estereótipos, apresentam
propostas pedagógicas didatizantes e trazem um enquadramento cultural normatizado. Obras
que, muitas vezes, respondem a uma demanda de mercado e escolar. São livros que,
geralmente, ocupam as principais prateleiras das livrarias, ficando em espaços de fácil acesso
e manuseio para as crianças e os adultos. Além disso, tendem a ser os mais baratos. Dentro
desse panorama, como proceder para que as crianças não se prendam a visões deturpadas e
equivocadas e percam, muito cedo, toda a sua capacidade de expressão livre e autônoma?
Pensamos que as escolhas literárias feitas por muitos pais, professores, bibliotecários e
mediadores de leitura se pautam, em sua maioria, em perspectivas urdidas através de
conexões diretas com um modo de perceber e compreender o mundo, plasmado nas
imposições de uma ideologia dominante. Por isso, cremos que o entendimento do que é uma
literatura infantil de qualidade deva ultrapassar os muros da academia e da escola e dialogar
com todas as comunidades que se dedicam a educar e cuidar de crianças.
permitiu vivenciar pessoalmente a mediação da leitura literária com as crianças de até dois
anos de idade o que aguçou nosso olhar analítico.
Restituindo aos bebês seu lugar de sujeito e autor no e do mundo no qual se encontram
inseridos, não os vendo mais como um lactante que interage passivamente com os eventos e
objetos do seu entorno e não mais os enxergando como um objeto desvinculado de contextos
vivenciais, resta-nos oferecer-lhes uma literatura que lhes possibilite a construção de modos
singulares de ser e estar no mundo.
Existe uma literatura para bebês que propicia o enriquecimento de seus textos internos para
que sua bagagem não seja feita só por conteúdos moralizantes, didatizantes e massificados.
Livros nos quais as palavras, as imagens, os sons, os cheiros e as sensações táteis são uma
imersão afetiva dentro da própria cultura. Livros que resultam em portas abertas para outras
realidades possíveis e outros vínculos entre os seres humanos. Uma literatura que possibilita
uma palavra feito corpo.
259
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CORES. Tradução de Monica Fleischer Alves. São Paulo: Girassol, 2012. (Coleção
Livrinhos)
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Rafaella Lemos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
DRUCE, Arden. Bruxa, bruxa, venha à minha festa. Ilustrações de Pat Lodlow. Tradução
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FÉLIX, Lucie. Tirar & pôr. Tradução de Maria Afonso. Lisboa: Orfeu Negro, 2014.
GENECHTEN, Guido Van. É um gato? São Paulo: Gaudí Editorial, 2009. (Coleção O que é?
O que é?).
GENECHTEN, Guido Van. O que tem dentro da sua fralda? Tradução de Vânia Maria A
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GRIBEL, Chistiane. Não vou dormir. Ilustrações de Orlando. São Paulo: Global, 2007.
GUIBBAUD, Christian. Chapeuzinho Vermelho. Tradução de Júlia Moritz Schwarcz. 1ª. ed.
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MAÑERU, Maria. Não vou mais usar fralda! Ilustrações de Susana Hoslet Barrios.
Tradução de Paulina M. G. Meisen. Blumenau, SC: Todolivro Editora, 2015.
MOREYRA, Carolina. Lá e aqui. 1ª. ed. Ilustrações de Odilon Moraes. Rio de Janeiro:
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MOREYRA, Carolina. O guarda-chuva do vovô. 2ª. ed. Ilustrações de Odilon Moraes. São
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MUNARI, Bruno. Bruno Munari’s ABC. São Francisco, Califórnia: Chronicle Books, 2006.
TATIT, Paulo; DERDYK, Edith. Rato. Ilustrações de Laurent Cardon. São Paulo:
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TONI, LAISE. Tem bicho que sabe... 1ª. ed. Texto e ilustrações de Toni e Laise. São Paulo:
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TULLET, Hervé. O livro com um buraco. Tradução de Emilio Fraia. São Paulo: Cosac
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WOOD, Audrey. Rápido como um gafanhoto. 2ª. ed. Ilustrações de Don Wood. Tradução
de Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 2007.
WOOD, Audrey; WOOD, Don. O ratinho, o morango vermelho maduro e o grande urso
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XAVIER, Marcelo. O dia a dia de Dadá. 19ª. ed. São Paulo: Formato Editorial, 1987.
(Coleção Conte outra vez).