2019 Tese Amtandrade
2019 Tese Amtandrade
2019 Tese Amtandrade
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
FORTALEZA
2019
ANA MARIA TEIXEIRA ANDRADE
FORTALEZA
ANA MARIA TEIXEIRA ANDRADE
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Luiz Botelho Albuquerque – UFC
(Orientador)
________________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Iório Dias – UFC
(Examinadora)
__________________________________________
Prof. Dr. Pedro Rogério – UFC
(Examinador)
__________________________________________
Profa. Dra. Claudiana Nogueira de Alencar – UECE
(Examinadora Externa)
_________________________________________
Prof. Dr. Elizeu Clementino de Souza – UNEB
(Examinador Externo)
Em memória de minha avó Perpétua Gomes de
Paiva que me contava histórias de sua vida, rezava
comigo e me dava bons conselhos para que eu
vivesse bem.
PRECE, then Cooperative Cell Education Program was founded in 1994, in Pentecoste, Ceará,
under the leadership of Professor Manoel Andrade Neto of the Federal University of Ceará and
seven other students who weren’t attending school at the time. These six boys and one girl were
meeting in a flour house to study together with the purpose of finishing their studies and enter in
the university and they succeeded through the PRECE program. Learning in cooperation and
solidarity brought success, observing that they completed higher education and also built a
cooperative and supportive student movement that has been an example in participatory
methodology for education agents in Ceará, Brazil and internationally. The purpose of this thesis
is to understand the conditions of production, existence of the PRECE Program, how this
experience of cooperative and solidarity learning generated social impact in the inclusion of young
low-income students in the university; to highlight impacting and differential elements that enable
the understanding that the educational experience has potential to inspire educational practices in
other environments, formal or non-formal. Guided by the theoretical-methodological proposal of
life stories and formation, I place my self-analysis side by side, guided by the development
experiences in the community, in the school, in PRECE and the analysis of nine memorials of
students and community leaders who also walked the same path. I analyzed episodes of before and
after the experience in their difficult reality in the countryside. I highlited strengths, educational
values, methodological elements and social practices. The thesis shows results that can serve as
inspiration to professionals in the field of education who carry great challenges in Brazil. The
obtained data allowed another look on the educational and political context of the experience and
the perception of the value that had the social capital raised by the PRECE group in the region. I
realized that the experience of PRECE had transformative potential by socially including youth
from low-income families through the cooperative and supportive education that inserted this group
in the university, resulting in potent fertility in the possibility of implementation in other close
educational contexts. In this context, an individual and group habitus is maintained, driven and
maintained by the field and its agents through social interdependence, leading various educational
projects and life transformers. Finally, this narrative of formation caught fragments of the life of
the educator I am, the agent of a praxis in a (trans) formative experience which reveals a reading
of myself, the other and the world in the affective, formative and social dimensions.
Le PRECE, alors Programme d'Éducation en Groupes Coopératifs, a été fondé à Pentecoste, Ceará,
en 1994 sous la direction du professeur Manoel Andrade Neto de l'Université Fédérale du Ceará et
de sept autres étudiants non scolarisés à l'époque. Ces six garçons et une fille se rencontraient dans
une maison “Casa de farinha” pour étudier avec le désir d'être scolarisés et, ont ainsi, réussi grâce
au PRECE. La façon dont ils ont appris, en utilisant la coopération et la solidarité a apporté le
succès, puisque cinq d'entre eux et la fille ont fait des études supérieures et ont également créé un
mouvement d’étudiants coopératifs et solidaires qui constitue un exemple de méthodologie
participative pour les agents d'éducation au Ceará, au Brésil et à l'étranger. Cet étude a pour objectif
de comprendre les conditions de production et d’existence de l'expérience éducative du PRECE;
de savoir comment s’est déroulé ce processus d'apprentissage coopératif et solidaire qui a généré
des impacts sociaux dû à l’inclusion des jeunes dans l’enseignement supérieur; de mettre en
évidence des éléments impressionnants et différentiels qui rendent possible la compréhension
d’une expérience pédagogique qui a un potentiel inspirant des pratiques éducatives dans d’autres
ambiances éducationnelles, formelles ou non. Guidée par la proposition théorique et
méthodologique d’Histoires de Vie et formation, je place mon auto-analyse parallèlement, mené
par les expériences de formation dans la communauté, à l'école et dans le PRECE, l'analyse de neuf
témoignages écrits d'étudiants et de leaders communautaires qui ont travaillé avec moi. J’ai analysé
des épisodes liés à l’avant et après l'expérience dans leur difficile réalité dans les petites villages,
vu qu’il s'agit d'une recherche exploratoire. J'ai mis en évidence les points forts, les valeurs
éducatives, les éléments méthodologiques et les pratiques sociales. Le travail révèle des résultats
qui peuvent inspirer les professionnels de l'éducation qui ont des grands défis dans ce domaine au
Brésil. Les données obtenues ont permis de revenir sur le contexte éducatif et politique de
l'expérience et sur la perception de la valeur du capital social généré par le groupe “ precista” dans
la région. J'ai vu dans mes pratiques une coexistence avec l'autre et une option qui permettait de
passer d'une réalité d'exclusion à une autre plus inclusive et favorable à la justice sociale. J’ai
aperçu que l’expérience du PRECE a eu un potentiel transformateur parce qu’il inclut de manière
sociale une jeunesse qui vient de familles pauvres á travers de l’éducation coopératif et solidaire
qui a inséré ce public á l’université, se trouvant comme une forte possibilité d’implémentations
dans d’autres contextes éducatifs similaires.Il existe en tout cela un habitus individuel et de groupe,
activé et maintenu par le domaine et ses agents à travers de l’interdépendance sociale, réalisant
divers projets éducatifs et transformateurs de vie. Enfin, ce récit de formation a rassemblé des
fragments de ma vie d’éducatrice, auteure d'une praxis dans une expérience (trans) formative qui
révèle une lecture de moi-même, de l'autre et du monde dans les dimensions affective, formatrice
et sociale.
Figura 29 - Minha mãe e meu irmão Francisco Feitosa em minha formatura do 8º ano......... 107
Figura 31 - Eu após a missa na Igreja Matriz com Padre Paulo .........................................… 110
Figura 34 - Nós (Eu, Adriano, Pedro) e o grupo da PAC no Serrote Tamanduá ...…............. 119
Figura 35 - Meu casamento com Manoel Andrade pelo Pastor Áureo de Oliveira............…. 121
Figura 36 - Encontro com Rachel de Queiroz nos seminários literários da Letras/UFC ....... 123
Figura 45 - Sete estudantes do 1º grupo de estudo do PRECE, Manoel Andrade e sua mãe
Francisca Andrade................................................................................................. 202
Figura 50 - Sala de trabalho na gestão dos Projetos coordenados por Francisco Rodrigues
na UFC.................................................................................................................. 227
1 INTRODUÇÃO…..................……......................…......................…..........…................ 16
2.1 Antecedentes…............................................…...................………….................................. 24
5.3 Francisco Antonio Alves Rodrigues: a motivação e a coragem para começar um novo
projeto de vida.….….......................................…………..................................................... 217
5.4 Antonio Eudimar Barbosa: caminhos e descaminhos, outros percursos........................ 228
5.7 Francisco José Teixeira Gonçalves: das pescarias no açude aos bancos da
Universidade Federal do Ceará, esboços de uma biografia.......….…..…….................... 260
5.8 José Noberto Sousa Bezerra, a busca por uma vida melhor: o futebol, a via para os
estudos.….….......…....................................…....................................................................... 276
6 CONCLUSÕES….…........................................…......................................................……. 299
REFERÊNCIAS......................................…................................….………........................ 308
1 INTRODUÇÃO
1
Em 1994 o grupo era uma iniciativa que não tinha nome – apenas seus participantes o chamavam “o projeto”. Em
1998, o projeto foi registrado na Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Ceará como Escola Alternativa,
no mesmo ano, foi feita a constituição estatutária da organização social, sendo nomeada de Projeto Educacional
Coração de Estudante. Em 2004, faz-se uma reformulação estatutária e é criado pelo movimento estudantil denominado
PRECE, o Instituto Coração de Estudante - ICORES, uma ONG pensada, inicialmente, com o objetivo de sustentar o
Projeto Educacional Coração de Estudante, com a captação de recurso financeiro para sustentar e manter vivas as ações
na área educacional; inicialmente, tinha a visão de que no futuro cada cidadão seria um protagonista autônomo e que
cada comunidade seria um espaço de cooperação e desenvolvimento igualitário. O Projeto passa a ter novo significado:
fica conhecido nacionalmente como PRECE – um movimento de estudantes (ensino básico e superior), com a
colaboração de professores participantes de projetos. A sigla segue o curso da história educativa do fazer de seus
agentes no campo educacional se metamorfoseando de acordo com os contextos de atuação de sua liderança. Em 2004,
a sigla passou a significar Programa de Educação em Células Cooperativas e em 2016, por ocasião da parceria
institucional com a Universidade Federal do Ceará, passou a significar Programa de Estímulo à Cooperação na Escola.
17
universidade e, nesse ínterim, ter propiciado a formação de uma liderança comprometida e unida,
convergindo a um só objetivo e crença de que seria possível mudar a sua realidade de exclusão
social, por meio da educação transformadora. Dessa forma, a partir desse desvelar de sua história
coletiva, tomando como objeto de análise as travessias de vida de seus agentes fundadores, tento
mostrar que a prática pedagógica do PRECE, no âmbito da educação não formal, pode ocupar lugar
de destaque na história da educação brasileira e ser fonte inspiradora para outros agentes
educacionais de qualquer ambiente educativo, comprometidos com uma educação libertadora e
transformadora de realidades excludentes, principalmente de minorias relegadas socialmente.
Quanto à atualidade e viabilidade desse estudo, percebo que trabalhar com as narrativas
de vida, à procura de compreender melhor a experiência do PRECE, pode contribuir muito para
quem deseja algo semelhante, em uma possível aplicação, observando os constituintes locais. A
experiência desses protagonistas de então vive hoje um processo de reformulação em novos
contextos. Novos agentes entraram em cena nessa construção rumo à melhoria, sistematização e
aplicação em instâncias institucionais que já apresentam demandas novas, dessa forma, já passam
por um bom momento de aceitação, ponto que será explorado mais tarde. As mudanças ocorrem e
os princípios precistas – ideias pedagógicas que estão calçadas pela cooperação, solidariedade, o
paradigma do cuidado, a escuta ativa e sensível das histórias de cada um, a união dos estudantes, a
descentralização da figura do professor na sala de aula e o fortalecimento da parceria estudante-
professor – acompanham essas mudanças, pois são esses princípios sem preço, os quais propagados,
que fazem a diferença na vida das pessoas e na vida social de nossos dias.
Sabe-se que nem tudo foi e será um “mar de rosas”, pois tivemos muitos problemas na
liderança de um grupo que crescia, quanto aos conflitos de relacionamento, quanto à precariedade
de nossas instalações físicas, quanto ao trabalho de conscientização política, dentre outras coisas.
Porém aqui, o mais importante foi que nunca pensamos em “desistir do arado” no meio do trabalho,
fomos sempre avante, com esperança e perseverança, caminhando na solidariedade e na certeza de
que dias melhores viriam, conforme essa análise parece ter chegado.
Fomos avançando em número e formação acadêmica, estimulados pelo contexto de
valorização do estudo que criamos. Era um clima propício ao crescimento intelectual, que se
fortalecia pelo nosso sucesso na conclusão do ensino básico, na aprovação no vestibular, na
conclusão de graduação, no ingresso de alguns de nós na pós-graduação, pela entrada em empregos
melhores, na felicidade de alguns de nós em podermos ajudar os nossos pais, de podermos casar e
18
dar mais qualidade de vida a nossas famílias. Tudo isso se constitui como resultados que
ultrapassaram as nossas expectativas ao longo de 25 anos, completados no dia 18 de outubro de
2019. Nesse corpus, pretendo partilhar a trama de nossas relações, geradoras estas de tantos
resultados que nos fazem querer entender melhor esse fenômeno educacional, mas também social,
como reflexão que pode gerar sustentação e consolidação ao PRECE.
No capítulo História do Programa de Educação em Células Cooperativas,
apresento os movimentos históricos antecedentes de seus agentes fundadores e lideranças da
educação pública municipal de Pentecoste, passando para a narrativa de fatos que ocorreram ao
longo dos vinte e cinco anos de existência PRECE, destacando pontos vigorosos como o
protagonismo estudantil, o engajamento dos participantes da experiência, protagonizando práticas
educativas nas comunidades, a partir de projetos de luta em defesa da escola pública, da segurança,
da criação das escolas populares, das aprovações em vestibulares, dentre outros marcos e divisores
de água da história do programa que pude dar conta nesse primeiro trabalho que pretende ser o
pontapé inicial. Esses eventos históricos foram captados da minha memória precista, aqui
desvelada, e procurei me apoiar também em documentos, por mim colecionados, ao longo do meu
percurso no PRECE.
Destaco haver na experiência, a construção empírica de uma pedagogia onde o estudo
e a aprendizagem são baseados na cooperação e solidariedade e, que de forma despretensiosa, no
início, ancoraram-se também na metodologia das histórias de vida e formação, pois nos formamos
professores já em nossas experiências estudantis, contando nossas histórias de vida para nos
fortalecer em horas de desânimo nos estudos. Veremos que essa união entre aprendizagem
cooperativa e solidária e as histórias de vida podem configurar-se como bioformativas para a
formação de professores em algum projeto de intervenção a posteriori.
A experiência do PRECE foi fundamental para transformar a realidade dos estudantes
fora da escola formal. Ela uniu uma prática e encontrou um jeito de fazer – uma metodologia
estudantil. Para isso, contou com agentes interessados que creram com coração e alma na ação
pedagógica que poderia ser a grande saída. Essa experiência em muitos de seus aspectos, pode ser
recriada com o auxílio do educador no sistema formal de ensino público, ajudando a muitos
estudantes a continuarem seus estudos, diminuindo, portanto, os índices de evasão e da violência.
Nessa prática, reside um potencial relevante na possibilidade de ajudar os professores
na tarefa de como lidar com as reais dificuldades do jovem de baixa renda, que é o grande público
19
da escola pública no Brasil de hoje. Esse estudo é relevante para gerar alternativas de abordagem
de ensino compartilhado com o estudante, desenvolvendo o protagonismo estudantil, algo tão
presente em todas as histórias aqui narradas; e pela utilização de pedagogias mais ativas, por
exemplo: além do estudo em grupo cooperativo e solidário, podemos ligar a estratégia organizada
da contação das histórias de vida dos estudantes. Dessa forma, percebo que a prática educativa
eivada por esses valores pode melhorar os resultados escolares da rede pública de ensino.
Além disso, entendo que com o apoio dos estudantes, há viabilidade para se
desenvolver projetos com a participação destes nas lutas na sua comunidade, com resolução de
questões sociais importantes para seu contexto sócio – educacional. Minha pesquisa contribui para
fortalecer as ações atuais de implementação da experiência no âmbito institucional da Universidade
Federal do Ceará (UFC), desde o seu registo na Pró-reitoria de extensão passando, posteriormente,
para a Pró-reitoria de Graduação desta universidade e ainda da parceria realizada com as Secretarias
de Educação do Estado do Ceará e do Município de Fortaleza.
Em Histórias de Aprendizagem – Ana Maria Teixeira Andrade: em busca do “ser
mais” através de práticas sociais na comunidade, apresento a minha história de vida desde
minha juventude ao trabalhar na comunidade, na igreja e na escola da minha comunidade,
Ombreira(São Pedro), momento em que recebi de minha família, a influência e o apoio para realizar
muitos projetos comunitários de alguns impactos sociais; e depois discorro sobre a minha atuação
na experiência do PRECE, destacando os pontos mais vigorosos do meu percurso narrativo na
comunidade de Cipó, sede do Programa.
Destaco algumas ações educativas necessárias em nosso contexto e situação local rural.
Tudo que fosse muito complicado, pelo cenário ao nosso redor, exigia-se que cada um de nós
descomplicasse. Um bom facilitador sente-se, penso eu, impulsionado a buscar alternativas
possíveis para solucionar os problemas dos estudantes, visando ao crescimento intelectual deles.
Diante disso, trabalhei na Produção de Texto com temas sobre as vivências dos estudantes e nas
aulas de Literatura, coordenei com líderes de grupos, os Seminários Literários, práticas
representativas de tantas outras realizadas por mim na pedagogia do retorno; ainda iniciei
juntamente com um grupo de precistas, a Escola Popular Cooperativa (EPC) Ombreira em minha
comunidade, dentre outras inúmeras ações que não caberiam todas nesse estudo que apenas inicia
um processo de escrita e reflexão sobre a experiência do PRECE. O mais importante a dizer é que
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as minhas travessias e viagens nessa história precista resultaram em muitos frutos que adoçam a
vida educacional, social e cultural brasileira.
Quanto ao Referencial teórico metodológico desse trabalho, dialogo, principalmente,
com autores das epistemologias das Histórias de Vida e formação e com outros que se
interconectam com as discussões teóricas referidas. Tenho visto que as pesquisas em histórias de
vida e formação que discutem sobre o valor que há nas narrativas de vida para utilização nos
processos formativos de educadores e estudantes têm avançado muito nos últimos anos e têm
construído um campo muito fértil na área de formação de professores e insiro também a formação
do estudante, pois vi em minha experiência no PRECE, o valor de preparar o estudante para ser
protagonista do seu aprendizado e ser parceiro do professor, viabilizando a aprendizagem mútua
entre pares sob a orientação do professor que atua como mediador.
Dos conceitos teóricos-metodológico das histórias de vida e formação, acentuo,
principalmente os de Marie Christine Josso (2004), Momberguer (2012), Elizeu Clementino (2014;
2008;) e Maria da Conceição Passeggi (2008). No que se refere aos outros referenciais que se inter-
relacionam àqueles, destaco os da Aprendizagem Cooperativa, trabalhados por David e Roger
Jonhson (1998) e Anastassio Ojerejo (2019). Ainda outros vistos em Bourdieu (2005; 2011), dos
quais trago os conceitos de habitus, campo, e capital cultural. Cito ainda, ideias de Moran (2011),
constantes no estudo dos sete saberes para uma educação do futuro. E por último, Freire, (1996;
1992; 2011; 2014) acerca da emancipação do indivíduo, sobre uma educação problematizadora,
conscientizadora, esperançosa e solidária.
Seguindo esse mesmo paradigma, com esse trabalho espero ampliar mais o conjunto
de opções teóricas na área das histórias de vida e formação de professores e estudantes. Tive acesso
à memória dos líderes e estudantes pioneiros por meio das suas histórias de vida descritas em seus
memoriais, além de material documental e um banco de imagens da história do movimento. Com
os memoriais de meus amigos, procedi com a análise textual discursiva (ATD), inspirada no
modelo apresentado por Moraes; Galiazzi (2011) para verificar aquilo que ligava ao como o
PRECE surgiu, como se manteve e como seu deu essa criação metodológica de estudo, ensino e
aprendizagem. Ainda me utilizei da metodologia da “análise compreensiva-interpretativa”
discutida por Souza (2014), principalmente, na questão da escolha de temas.
No trabalho do PRECE percebo elementos metodológicos do estudo/ensino-
aprendizagem que podem se desdobrar para a formação de professores já que foi vivendo e fazendo
21
o PRECE acontecer cada vez melhor que nos formamos professores. Todo esse processo se dava
por meio de grupos de estudo solidários, hoje, sistematizados como grupos de Aprendizagem
Cooperativa e solidária; havia também projetos didáticos (práticas sociais), envolvendo a
comunidade, que podem ser utilizados para inspirar políticas de formação de professores que
querem unir ensino, pesquisa e intervenção.
O Capítulo Perfis biográficos dos agentes fundadores(as) do PRECE: Memórias
coletivas se relaciona à análise das narrativas de vida dos agentes em estudo, onde destaco e analiso
alguns temas que tem uma relação importante na construção do PRECE. Discuto temáticas sobre
a solidariedade, cooperação, protagonismo juvenil, e faço algumas análises sobre o conceito de
habitus no PRECE, como por exemplo o habitus estudantil precista, o habitus dialógico precista,
o habitus cooperativo e solidário e o habitus engajado. Vou tecendo a cada biografia dos agentes
fundadores do PRECE, os modos de ser do precista que compõem o universo da experiência no
campo educacional em estudo. Nossas histórias apresentam, na versão da cada um, a prática do
estudo em grupo da primeira geração de precistas, oriunda de famílias agricultoras do espaço rural
do Ceará.
Trabalho as narrativas biográficas pensando no potencial formativo que há no processo
da escuta, do voltar ao antes, refletir o presente e repensar a prática futura, pensando em novas
formas de continuar o processo formativo. Discuto ainda acerca do potencial de capital social
produzido pelo PRECE. Apresento a ênfase dada pelo primeiro grupo à partilha das histórias de
vida. Nos relatos biográficos dos agentes fundadores do PRECE, vemos como viviam no meio
familiar, como foi sua história estudantil, a contribuição que todos deram na questão da
sustentabilidade de suas famílias, desde criança; as dificuldades que encontraram para continuarem
estudando no espaço rural, cheio de adversidades; a vida difícil no enfrentamento de coisas novas
e desconhecidas para eles, desde estudar em grupo a outras questões como a mobilidade do espaço
rural para o espaço urbano, dentre outros temas desses personagens precistas.
Por fim, compartilharei as descobertas dessa viagem de análise e compreensão de como
aconteceram muitas ações que, no calor da prática cotidiana, não percebemos sua força e grandeza.
Busquei compreender quais as motivações dos agentes envolvidos em algo tão ousado e não tão
fácil de realizar; saber o que pensavam sobre a vida, quais foram os desafios, os sonhos, suas
estratégias de resistência, como se sentiam estudando em grupo sem a presença de um professor
diariamente, dentre outras indagações que nos ajudam a compreender o processo.
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De todas essas histórias de vida aqui analisadas, mesmo que suscintamente, pelo
tamanho do universo recortado, veremos que a força do grupo foi primordial para o bom êxito
dessa experiência educacional. Com essa leitura, podemos ver que o PRECE tem uma história de
resultados que dar a ele um lugar na História da educação do Ceará e a partir daí pode constituir-
se em um exemplo de prática educativa virtuosa para fortalecer outras iniciativas semelhantes em
ambiente escolar ou não. Assim, o que apresentamos nesse estudo pelas histórias de vida analisadas
pode ser um dispositivo pedagógico para estudantes e professores da rede pública.
23
antecederam a ação educativa PRECE deu bases para que a experiência precista lograsse o êxito
em todos esses 25 anos.
2.1 Antecedentes
continuasse a participar daquele grupo e de suas movimentações, e ali, foi o início de uma nova
jornada que me fez ser o que sou: professora e coordenadora de várias práticas educativas e sociais
no âmbito da educação não formal e formal. Caminhando e lutando por melhoria da qualidade de
vida e inclusão social do estudante de baixa renda.
Nessa caminhada, tínhamos muitas reuniões da associação que ganhou mais força com
a criação do programa de rádio chamado Coração de Estudante, na rádio Difusora Vale do Curu,
em Pentecoste. Apesar da emissora de rádio ser privada, ela recebia ajuda financeira do prefeito,
mas pagávamos pelo programa; conseguimos um horário, porém, fomos advertidos de que não
poderíamos “falar mal do prefeito”.
O Programa de Rádio Coração de Estudante teve seus primórdios em 1990, coordenado
pelo professor Manoel Andrade, juntamente com alguns dos professores que faziam parte da
Associação referida os quais eram Pedro Firmiano, eu, Rosa Lima e Quitéria Nascimento, mais o
então líder comunitário Adriano Sérgio. O objetivo do Programa era ser um veículo de divulgação
das ações comunitárias, fazer controle social e lutar pelos direitos do cidadão pentecostense.
Esse programa, na mesma década, sofreu censura por parte do governo municipal da
época que não aceitava nenhum tipo de representação popular que defendesse o cumprimento da
lei e da transparência da gestão pública. Depois de anos de silêncio no rádio, ele renasceu
protagonizado por novos combatentes da causa pública, os precistas, em 27 de março de 2005.
Agora, o anseio maior era informar ao município, urbano e rural sobre as atividades realizadas pelo
PRECE e valorizar temas ligados a educação e à política.
Nós, líderes da ATEMPE, organizamos a primeira festa do professor no município, fato
marcante para a época. Jamais havia acontecido uma festa em homenagem aos docentes de
Pentecoste. Para podermos realizar a festa, Manoel Andrade arranjou um carro emprestado para
sairmos pelas comunidades arrecadando recursos. O trabalho social empreendido para realizarmos
essa festa foi compensado com sua realização no dia 20 de outubro de 1990, na Escola Francisco
Sá.
A participação dos professores da rede municipal foi enorme e, a convite de Manoel
Andrade e Adriano Sérgio, o deputado de esquerda Durval Ferraz palestrou sobre lutas sindicais e
direitos dos professores. Foram distribuídas camisas para todos os professores com a frase: “Quem
planta educação no futuro colhe progresso, o professor planta, e a comunidade colhe”. Essa frase
significava a nossa luta para melhorar a educação em nosso município por meio da organização
26
sobre um dos jogadores do time, Francisco José Teixeira Gonçalves, agente fundador do PRECE,
sobre o qual falarei adiante.
Esse movimento do futebol ocorrido antes do PRECE impactou muito esses líderes e
os estudantes fundadores a ponto de os mesmos resolverem fortalecer mais o time de Cipó,
participando e nomeando de Estudantina (figura 4), nome emblemático e que fazia jus a causa dos
estudantes.
José Noberto, em seu depoimento à frente, falará do impacto que tinha o futebol em
sua vida e do objetivo educacional que o time possuía, além da responsabilidade que todos os
jogadores do Estudantina tinham em dar bom exemplo no campo, jogando com amizade aos
companheiros de outros times e respeito às regras do jogo. Em 2014, decidi me juntar aos outros
agentes fundadores do PRECE e comemoramos os 20 anos do PRECE e do Estudantina no Campo
de Futebol de Cipó, com torneio, músicas, falas e entrega de prêmios.
29
Fui testemunha da boa organização desse esporte, e hoje, com alguns documentos,
posso afirmar que os jogos, torneios e participação em campeonatos municipais foram atividades
muito utilizadas para formar uma rede de amigos e, dentre esses, estava a maioria dos sete primeiros
estudantes que, conforme seus relatos de vida apresentados, posteriormente, dizem que foi através
dessas relações nos jogos que se tornaram amigos do professor Manoel Andrade e, depois,
convidados por ele a iniciarem o PRECE com o objetivo inicial de recomeçar ou acelerar o processo
de escolarização.
Essa organização na área do futebol era uma maneira de fomentar as lutas comunitárias
para melhorar a educação em Pentecoste e se fortalecia no limiar da década de 1990, se
desdobrando para o início do projeto educacional, mais focado no estudo com vistas à formação
escolar e acadêmico-profissional dos jovens do município.
De 1995 a 1997, ocorreu nas comunidades de Cipó e São Pedro (antes Ombreira), o
curso de datilografia e este foi uma das principais ações implementadas pelo PRECE, na área da
educação, logo em seus primeiros meses de existência. O curso era dado na antiga Casa de Farinha,
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hoje, Casa do Estudante, e em Ombreira, na casa de Rosa Araújo dos Santos, minha alfabetizadora
e professora leiga; sobre ela falarei à frente. Ela e seu filho Oriano Araújo dos Santos coordenaram
as aulas de datilografia.
O objetivo do curso de datilografia, ainda em voga naquela década, era juntar os
estudantes para estimulá-los a pensarem sobre seus estudos, de forma mais ampla, além de
aprenderem o básico sobre a utilização da máquina, versão antiga do computador. O coordenador
desse projeto em Cipó era Francisco Antonio Rodrigues que foi um dos primeiros a fazer o curso
logo que se iniciou em Cipó, em 1994. O curso, na época, foi uma grande novidade para a juventude
rural pelo fato de sempre ter existido no centro da cidade, distante das possibilidades dos estudantes,
mas agora tudo estava ali, próximo a eles.
Vi nessa iniciativa, uma oportunidade para o cultivo de sonhos e de esperança de uma
vida melhor por meio dos estudos. Com esse projeto, o PRECE já se lançava rumo à construção de
parcerias para se chegar às metas almejadas. Para a certificação desse curso, Manoel Andrade, eu
e Adriano fomos à escola de datilografia do Patronato Nossa Senhora da Conceição, no centro de
Pentecoste e falamos com a irmã de caridade Maria Oscarina Brandão, diretora do curso para
firmarmos uma parceria institucional que garantisse a certificação aos nossos estudantes.
Irmã Oscarina não colocou empecilho, aceitou e foi uma união que promoveu o bem
de nossas comunidades rurais. Na figura 5 demonstro o certificado de um dos cursistas e agente
fundador do PRECE, José Noberto Bezerra, sobre ele falarei mais, posteriormente.
31
2
Ficha de matrícula do curso – Anexo A
32
Essa era mais uma ação que preparava e fortalecia o campo educacional do PRECE, além
de formar seus agentes para atuarem juntos em prol da melhoria da educação na cidade. A maioria
desses cursistas eram estudantes do PRECE que já se preparavam para se escolarizarem e entrar na
universidade.
O outro público eram professores, a maioria com formação secundária em curso normal
que ensinavam na rede municipal e desejavam melhorar seus conhecimentos para as chances que
poderiam surgir no futuro.
Eles compunham um público ávido por aperfeiçoamento e aprendizado, muito escasso na
época. Não tinham certeza de nada já que não havia universidade em Pentecoste ou outra maneira
de se graduarem.
alguns dados sobre o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) de 1991 a 2010 de
Pentecoste com o intuito de mostrar como era a realidade econômica e social do espaço dessa
experiência nessas duas décadas:
De 1991 a 2010, o IDHM do município passou de 0,307, em 1991, para 0,629, em 2010,
enquanto o IDHM da Unidade Federativa (UF) passou de 0,405 para 0,682. Isso implica
em uma taxa de crescimento de 104,89% para o município e 68% para a UF; e em uma
taxa de redução do hiato de desenvolvimento humano de 53,54% para o município e 53,85%
para a UF. No município, a dimensão cujo índice mais cresceu em termos absolutos foi
Educação (com crescimento de 0,472), seguida por Longevidade e por Renda. Na UF, por
sua vez, a dimensão cujo índice mais cresceu em termos absolutos foi Educação (com
crescimento de 0,358), seguida por Longevidade e por Renda. (IDH, 2019).
feijão e mandioca e ainda a banana e o côco nas áreas irrigadas pelo açude Pereira de Miranda. O
clima é semiárido na maioria da região e subúmido na parte sul, nas proximidades da serra de
Baturité. A vegetação que predomina é a caatinga.
Ximenes (2017) analisa áreas básicas da vida social, econômica e política da população
de Pentecoste e expõe vários dados importantes para entendermos mais profundo a realidade do
município nessas áreas. Acerca das condições de renda e benefícios 85,9% recebem até um salário
mínimo, 48,9% recebem o benefício do Bolsa Família e 12,9% recebem o Benefício de Prestação
Continuada (BPC). Quanto ao grau de escolaridade, a pesquisadora verificou que 27,4%
concluíram o ensino médio ou cursaram o ensino superior (12 anos ou mais de estudo), 37,8% não
concluíram o ensino fundamental e 7,4 % nunca frequentaram a escola.
A partir desses dados, entendo que muito ainda precisa ser feito quanto à escolarização
da população de Pentecoste, porque se de 35.400 habitantes, apenas 27,4% desse total, se
escolarizou ou concluiu um curso superior, mesmo com a existência do PRECE, tem-se um cenário
educacional difícil, ainda com um bom número de pessoas que não concluíram o ensino
fundamental e outro bom número que nem frequentou a escola. Com isso, principalmente, os
gestores públicos do município precisam avaliar e olhar com mais atenção e seriedade para os
entraves que empatam o crescimento da educação no município.
Um dado importante para entendermos a realidade de Pentecoste hoje, sobre o quesito
moradia, Ximenes (2017) concluiu que 84,4% moram em casa de alvenaria. Em relação a saúde,
34% da população diz que nunca, ou poucas vezes, consegue atendimento quando precisa, 20,5%
das famílias tem morrido alguma criança na família e 37% já não utilizam mais algum serviço de
saúde por não ter recurso para pagar o transporte.
A questão do transporte sempre foi um problema para a população rural. Esses dados
precisam ser revertidos para um quadro mais positivo porque, quando concluímos que ainda há um
contingente de mais de 70% da população sem perspectivas de formação profissional para obter
melhores posições no mercado de trabalho, dentre outras possibilidades de inclusão social, ficamos
nos interrogando para onde estão indo os investimentos em educação? Como está sendo feito que
não surtem bons resultados, dentre outros questionamentos.
O PRECE trouxe oportunidade para essa população, mas a demanda foi e continua
sendo muito alta, levando em conta a possibilidade do movimento em Pentecoste e, principalmente,
as comunidades rurais como Cipó, ainda precisam de mais apoio e ações práticas, cooperativas e
35
solidárias para se obter crescimento qualitativo dos resultados educacionais que garantam uma
nova realidade, de transformação e desenvolvimento.
Ao longo de quase cem anos, Cipó tem crescido muito lentamente em população, digo
isso porque, durante uns 28 anos, tenho passado parte do meu tempo nessa comunidade devido
possuir família lá. Por outro lado, ela tem crescido em conhecimento e organização comunitária.
Inicialmente, surgiu a família do primeiro proprietário das terras de Cipó do qual se dá conta,
Manoel Sabino que vendeu parte dessa terra, em 1921, ao Senhor Alfredo Vicente de Andrade,
bisavô de Manoel Andrade Neto.
No decorrer desses anos até a década de 1990, foram construídas algumas casas e bens
sociais não governamentais como uma igreja (Presbiteriana Independente do Brasil) um grupo
escolar e uma casa de fazer farinha. Cipó foi crescendo e ficou conhecida pelo Ceará, Brasil e por
outros países. Isso por ser o espaço onde têm ocorrido mudanças de vida de centenas de Jovens que
estariam submetidos ao fracasso escolar e profissional, porém através da relevância vinculada aos
impactos e repercussão do PRECE, o seu destino passou a ser outro. Hoje, a comunidade de Cipó
se destaca no cenário educacional de Pentecoste por ser a comunidade onde nasceu o PRECE. Na
História recente de Cipó, o papel social das famílias, principalmente das mulheres, no apoio aos
estudantes do PRECE e suas iniciativas foi primordial para que eles tivessem sucessos em seus
estudos, provas e exames seletivos.
Hoje, em Cipó residem em torno de 20 famílias. Essas famílias foram se estabelecendo
em um período de mais ou menos três décadas para cá, pois no início, a comunidade foi constituída
por outras famílias que acabaram migrando por causa da seca. A principal atividade econômica
dessas famílias é a plantação em tempos de chuva e a criação de ovinocaprinocultura, e, alguns
deles cuidam de gado. Em sua maioria, as mulheres e os homens das famílias de Cipó são
semianalfabetos dos conhecimentos históricos e científicos de seu país, estado e município, mas
dono de um vasto conhecimento do seu microespaço de vivência e de suas atividades de trabalhador
rural, criador de animais, e pescador, dentre outras funções que a vida rural exige.
Poucos têm comércio (bodega, bar) ou carro para transporte de pessoas. Percebo como
características dessa mulher e homem, a pacatez, a religiosidade, a resignação e pouca consciência
crítica da sua realidade. Acreditam que o seu futuro está nos filhos. A mulher, em alguns aspectos,
é mais escolarizada, por isso acompanha os filhos na escola e exerce o papel de cuidar da casa e
36
dos filhos. Somente algumas são professoras ou merendeiras na escola pública. Outras cuidam da
família, da casa e ainda ajudam o marido na agricultura e criação de animais.
Os filhos homens estudam parte do tempo, em outra, ajudam o pai no roçado e no
cuidado com os animais. Outros, só estudam e se divertem nos campos de futebol ou no celular, na
internet rural. As moças estudam e ajudam as mães em casa, ou se divertem como os meninos em
redes sociais e na torcida nos campos de futebol. Os filhos e filhas estudam no ensino básico nas
escolas públicas de três comunidades vizinhas a Cipó, a Escola Sebastiana Rodrigues de Sousa em
Capivara, a escola Nossa Senhora da Conceição em Irapuá e a escola Manoel Félix Gomes em
Mulungu.
Alguns desses estudantes continuam o Ensino Médio em núcleos existentes nessas
escolas, certificadas pelas escolas da sede de Pentecoste. Outros, com mais condições para
deslocamento, preferem enfrentar as distancias e vão diariamente 17 quilômetros para as outras
escolas de ensino médio da cidade. E ainda há aqueles que são selecionados pela a escola de
educação profissional Alan Pinho Tabosa também no centro de Pentecoste que hoje utiliza a
metodologia do PRECE, a Aprendizagem Cooperativa.
Como cidadã de Pentecoste e conhecedora de parte das realidades dessas comunidades
rurais e urbanas, considero importante a história de cada comunidade e que dessa forma, cada
moradora e morador podem perceber o valor que há em suas histórias de vida para a construção da
sua identidade e da memória coletiva de suas comunidades.
A partir dessa ideia e inspirada na história do PRECE foi que criamos o Projeto
Memorial do PRECE no qual tenho dedicado um pouco do meu tempo e que tem sido fundamental
para valorizar, organizar e divulgar histórias de protagonismo estudantil cooperativo e solidário de
estudantes e professores agentes da experiência. Com essa iniciativa, vejo que teremos mais
condições para preservar a memória e a cultura da comunidade e da região onde temos construído
tantas práticas educativas e transformadoras da nossa realidade.
Na área religiosa ou espiritual, o PRECE foi um projeto com fortes valores cristãos e
isso influenciou cada agente precista em seus princípios até hoje. Vivi e ainda vivo esses princípios,
porém com o respeito às diferenças de crença e as leis do estado laico. Há um elemento, penso eu,
37
meio místico sobre a história da Congregação da Igreja Presbiteriana Independente (IPI). A igreja
ficou sem atividades por um período de tempo e entendo que isso tenha ocorrido devido o
isolamento que as distâncias do espaço rural ocasionam. Os líderes da denominação, na capital do
estado, não podiam dar a assistência desejada e isso causava uma tristeza nos membros mais antigos
da Igreja.
Uma das mulheres mais fervorosa na fé e desejosa da reabertura da igreja era a anciã
Dona Sinhá, uma octogenária, tia de Manoel Andrade. Ela parecia muito sábia, positiva em expor
o que pensava sobre as coisas, as pessoas e o mundo. Mesmo com seus 80 anos, tinha muita vontade
de revitalizar a Congregação, pois além da pouca assistência da igreja mãe, os membros da família
de Manoel Andrade que participavam da Congregação tinham ido embora para Fortaleza.
De tanto querer a igreja em atividade, mas não poder por se achar sozinha, Sinhá
pregava os ensinamentos bíblicos para todos que chegavam e falava sempre que um dia as portas
da igreja seriam abertas novamente e que essa seria reavivada e que ainda haveria naquele pequeno
Cipó, um grande movimento. Ela dizia para mim: “aqui nesse lugar ainda vai ter um grande
movimento, eu vejo” – Sinhá partiu para outra dimensão em dezembro de 1994, um mês após a
criação do PRECE, deixando em nós a saudade de suas constantes conversas, pregações, orações,
admoestações aprendidas em suas leituras bíblicas das cartas do apóstolo Paulo que era o apóstolo
preferido dela.
Tia Sinhá, como eu a chamava, gostava de falar com muita certeza e convicção que nos
fazia acreditar nas suas ideias acerca de muitas coisas da vida das pessoas, da igreja e do lugar. Eu
gostava de ouví-la porque ele sabia contextualizar as histórias do livro sagrado. Às vezes eu a
observava olhando para o tempo, para o céu e para o horizonte. Hoje, acho que ela era uma filósofa
vivendo no tempo e lugar errado, pois tanta sabedoria que poderia ter sido potencializada jogada
ao vento. Se sua vida tivesse passando hoje, entendo que teria sido mais bem vivida, teríamos
interagido mais com ela e valorizado mais as suas experiências.
A partir da minha experiência com ela, vi que tia Sinhá tinha um dom de antever fatos
importantes para a sociedade, era visionária. Hoje vejo que Sinhá Marques da Costa era alguém
especial, que deixava sua marca por onde passava, estava à frente de sua época, era proativa, agia
com ideias próprias que as defendia com engenho, com argumentação e tinha uma visão crítica
sobre os fatos do seu tempo e espaço. A expressão “grande movimento” traz o tom dessa análise
38
pelo fato do grande impacto causado pelo PRECE na vida das famílias dessa e de outras
comunidades.
Ela gostava de falar da sua visão futura da comunidade de Cipó e da influência que
aquela irmandade iria ter dentro desse movimento. A partir dessa breve história da Congregação e
de Dona Sinhá, vejo que ela tinha uma sabedoria própria dessas pessoas que, sente profundamente,
de coração e alma, o espaço onde vive e como ocorrem as relações nele. Ela estava sempre ali, no
alpendre da casa com a Bíblia na mão, a ler, a pensar e a falar com quem chegasse, quase às 24
horas do dia. Tia Sinhá sempre dizia: “se eu me calar, as pedras falam”, talvez por isso, ela sempre
tinha algo falar. Outra coisa que ela contou para mim foi: “minha filha, eu bebi água de chocalho,
por isso que eu não posso me calar”.
De fato, ela conversava muito e aqueles e aquelas de sua rotina, que dormiam e
amanheciam ouvindo a tia Sinhá conversar, as vezes se enfadavam um pouco e isso certas vezes a
deixava meio chateada, mas tudo se dava dentro da normalidade da vida em família. Vejo essa
característica dela de forma positiva para a vida em comunidade; são essas pessoas que quando
partem para outra dimensão fazem uma falta grande, deixam uma lacuna difícil de ser preenchida
por muito tempo; eu gostava de ouvi-la e senti uma falta enorme da sua presença na casa grande
da família Andrade, em Cipó.
Um mês antes de Sinhá Marques partir, seu sobrinho, Manoel Andrade entendendo
receber de Deus a missão de iniciar um movimento que promovesse o bem às pessoas, criou o
PRECE – inicialmente, tido como um projeto missionário e social da Igreja, até ali, representada
pelos membros que se resumiam na família de Manoel Andrade e por alguns da família da
professora Francisca Felix Gomes. Porém, com o crescimento do Projeto, surgiu a necessidade de
reorganizar os trabalhos da Congregação da IPI de Fortaleza que enviou um pastor o qual visitava
de dois em dois meses, variando para mais ou menos tempo, essas visitas.
Agora com a movimentação maior de pessoas que o local ganhou, era necessário contar
com mais pessoas para encampar a luta por melhoria na área educacional a qual é uma das mais
valorizadas por essa denominação que tem suas origens nos ideais da Reforma Protestante
Calvinista. Apesar de ter nascido em espaço bastante religioso, o PRECE tem caráter laico e
respeita, portanto, a legislação educacional, na prática, tendo como missão político e social, o
desenvolvimento educacional dessas comunidades das quais se originam o seu público.
39
Nem mesmo Manoel imaginava que a ideia ultrapassaria os limites de um projeto social
local. A Igreja local (figura 8) foi reaberta no ano de 1997, tendo como colaboradores, os
seminaristas Alexsandro Rocha e Marcos Dutra que passaram a trabalhar, aos fins de semana, tendo
como objetivos: organizar os trabalhos da igreja e dar suporte a membresia e ainda ajudar as
necessidades do PRECE, juntamente com o Manoel Andrade em suas atribuições. A igreja ainda
cooperava financeiramente a partir de seus pequenos dízimos com passagens e lanches para os
estudantes que se deslocavam para fazerem provas em Pentecoste ou em Fortaleza.
Esse fato na história do PRECE aponta para o paradigma do cuidado com o nosso
próximo, discutido por Toro (2009, p. 04). O autor nos diz “que aprender a cuidar dos próximos é
aprender a criar vínculos emocionais. ‘As características definidoras de um vínculo afetivo são o
envolvimento emocional, o compromisso com um projeto de vida, a permanência e a unicidade da
relação”. Esse cuidado que os membros da Congregação tiveram com os estudantes do PRECE,
desde o início da década de 1990 até hoje, resulta em nós um espírito de união que mais nos
assemelha a uma grande família. Penso que esse sentimento de congregação por causas basilares
da vida das pessoas, ultrapassa as relações formais do sistema escolar não formal ou formal.
As mulheres cuidadoras eram tidas e ainda são como as guerreiras de oração da igreja.
Elas procuraram saber das dores físicas e psicológicas desses estudantes, dialogaram, ouviram às
queixas, os medos e as dúvidas desses jovens, supriram, em certos momentos, a falta de bens
materiais, mas, principalmente, se interessavam para 40juda-los quando os problemas doíam na
alma. Essa experiência foi forte e crucial na vida deles.
Algo que não esqueceram foi o fato de, nas vésperas e no dia do vestibular, essa
comunidade cristã dobrava os joelhos para interceder a Deus por eles, no exato momento de prova
para que fizessem uma boa prova, apesar do nervosismo e da agonia na seleção, ao lado de fortes
concorrentes das escolas particulares de Fortaleza. Essa atitude delas ficou na memória de alguns
estudantes do PRECE.
Em nossa mente, havia um versículo bíblico que sempre usávamos, seja em fala oral,
em nossas reuniões, ou na escrita, em nossas redações que nos alimentava o espírito, gerando em
nós uma força mental para a atividade intelectual: “Tudo posso naquele que me fortalece” (BÍBLIA,
1997, p. 1669). Propagávamos esse verso bíblico e nele encontrávamos uma força sobrenatural
vinda de Deus, creio que nos auxiliava e fortalecia. Segundo Sousa e Olinda (2015, p. 238) o
conceito de espiritualidade para os professores do ensino religioso é o de “aproximação com Deus;
necessidade de vivência comunitária e de serviço ao próximo; a pertença religiosa como fator
inseparável da espiritualidade [...]”. Nessa experiência relatada, vimos esses conceitos reafirmados,
pois a Igreja viveu os nossos sonhos que eram também os dela, na esfera do coletivo, e isso foi o
que nos moveu na condição de estudantes cheio de dificuldades a serem superadas para atingirmos
o maior objetivo, a melhoria de vida em todos os aspectos e dimensões; na ética, afetiva e social.
A partir dessa rápida inserção da história da IPI na história do PRECE, vi que o apoio
dado pelos membros dessa Congregação foi de suma importância na vida de todos os atores do
41
processo. E quando hoje contribuímos para que mais de quinhentos estudantes entrassem na
universidade, temos a certeza de que não teríamos tido tantos êxitos se não tivéssemos contado
com essa grande parceria que foi determinante na vida intelectual, emocional e espiritual deles.
Sem esse apoio, parte desses estudantes poderia desistir do sonho, diante das pesadas cargas
presentes em sua história de exclusão social.
O PRECE surgiu em 1994 com a força de um movimento social, sem rigor formal, sem
o peso institucional, mas movediço; informe, sem nome; porém, principalmente, a partir de 1998,
foi ganhando uma cara nova, ficando mais formalizado, e se transformando em uma Organização
Não Governamental (ONG), nomeada de projeto Educacional Coração de Estudante e,
posteriormente, em 2004, recebeu reformulação estatutária e a mudança para outra razão social,
nomeado de Instituto Coração de Estudante. Porém, o nome PRECE permanece nas práticas
educativas dos seus agentes fundadores e de tantos outros novos agentes que foram se unindo ao
grupo pioneiro; e acima de tudo, ele permanece no imaginário das pessoas de Pentecoste, e de
alguns municípios vizinhos que tiveram estudantes participando e de outros lugares inimagináveis
que receberam a boa influência desse nome, nesses 25 anos de existência do Programa.
Dentro de um contexto em que a educação poderia ser um instrumento para o processo
de transformação da desigualdade social em inclusão social dos jovens de origem popular de
Pentecoste, foi que Rodrigues; Andrade; Andrade Neto; Bezerra (1999, p. 01) em um trabalho
apresentado nos encontros universitários de título “Escola Alternativa”, dizem que o PRECE
desenvolvia atividades educativas, com o objetivo geral de proporcionar a jovens e adultos, a
oportunidade de terem uma educação de melhor qualidade, possibilitando ao educando, o
desenvolvimento de uma consciência crítica para exercerem o seu direito de cidadão.
Eles afirmam que as atividades desenvolvidas eram “aulas interativas, debates, estudos
individuais e em grupo, palestras, seminários e eventos culturais”, com vistas a “uma participação
ativa do educando, estabelecendo um ambiente interativo em que o mesmo fosse estimulado a
pensar, criar e aprender, apropriando-se da cultura produzida e legitimada socialmente”. Ainda
apresentaram resultados quantitativos dos primeiros cinco anos que foram seis alunos aprovados
em vários cursos da UFC, “fato que alterou de forma substancial a realidade local” o que os fez
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terem “novas perspectivas de vida”, destacando ainda que os mesmos passaram a atuar “como
professores” dos novos estudantes do projeto. (ibidem).
O líder Manoel, ao falar sobre o PRECE em alguns momentos de reuniões, (figura 9)
costumava dizer “estamos contrabandeando educação”, talvez essa expressão significasse
impossibilidade, porque era isso mesmo que passava em nossa mente, era como nos sentíamos
naquele momento dificil. O sentimento era de não sermos autorizados a trabalhar na educação. Mas
esse momento dificil foi passando a medida que fomos ganhando bons resultados nas aprovações
dos vestibulares da UFC e ouvíamos vários testemunhos de pais, homens e mulheres que
consideravam e consideram ainda hoje, o PRECE como algo de muita importância para as familias
desses lugares onde o PRECE esteve ou está.
O PRECE foi e é necessário à juventude que precisava e precisa estudar e se
desenvolver na vida, porém, o movimento não conseguiu dar conta de fazer, sozinho tudo o que
projetou e sonhou realizar pela juventude pentecostense. Por outro lado, as pessoas enxergavam o
PRECE como algo que deveria trabalhar sempre independente do governo e na luta por direitos,
muitas vezes, negados por esse. A demanda cresceu numerosamente e sem os recursos necessários,
algo que é dever do Estado realizar, foi preciso buscar as parcerias com os setores públicos da área
educacional, tema discutido um pouco mais adiante. A (figura 9) compõe o grupo pioneiro em uma
de nossas reuniões:
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Estar envolvido com o PRECE é como embarcar em uma viagem em que acertamos os
caminhos, mas, outras vezes, erramos e assim vamos caminhando sempre abertos a novas
possibilidades. A experiência começou de uma ideia e se constituiu em um movimento educacional
que congregou estudantes, pais, irmãos e irmãs, líderes comunitários, todos unidos, cotidianamente,
agindo e partilhando o saber para lograrem o êxito pessoal e social.
Essa união deu mostra de que, quando o poder público não vem cumprindo o seu papel
na construção de uma educação de qualidade para a sociedade, dentro de suas diversas culturas,
seja do campo, do mar, da serra ou de áreas urbanas; respondendo pela grande diversidade cultural
existente em nosso país, a sociedade civil se levanta para fazer o que precisa ser feito e como deseja
que as coisas aconteçam.
Na década de 1980, segundo (GOHN, 2005, p.8) ocorreu uma baixa na qualidade da
educação pública brasileira e, a partir disso ocorreu “o ressurgimento de novas formas de educação
informal através de trabalhos na área da educação popular, e de experiências na área da educação
não formal, geradas a partir da prática cotidiana de grupos sociais organizados em movimentos e
associações populares” (ibidem). Esse contexto anterior a década de surgimento do PRECE ainda
44
e desprovidos de condições para continuarem seus estudos básicos. Esses jovens ficavam sem rumo
diante das adversidades desse espaço distante, sem recursos, assolado pela seca e esquecidos pelo
poder público. Esses eram os maiores obstáculos para o avanço deles em sua vida estudantil.
Desse modo, o PRECE procurou solução para os problemas apresentados e buscou
novas configurações, criou instituições e fez parcerias públicas ou não para responder a uma
demanda crescente e dinâmica. Vi que ele se transformou e caminhou junto com parceiros como a
UFC por meio de programas universitários, como as Escolas Populares Cooperativas, e outros,
sempre em movimento. Quando se trata de movimento social, como o termo já significa,
movimentar-se, nada é imutável, nada é somente uma coisa, tudo pode se transformar, tudo pode
se reconfigurar.
Voltando a realidade educacional do contexto da comunidade, tais dificuldades
encontradas em Cipó repercutiam em inúmeras outras, sobretudo, na área educacional:
analfabetismo, abandono escolar, dificuldades de aprendizagem, alto índice de repetência, pessoas
fora da faixa etária escolar, etc. Uma realidade ainda longe de ser modificada, como mostraram os
dados de Ximenes (2017). Diante disso, os jovens da localidade, sem perspectivas nos estudos
também não encontravam melhores possibilidades profissionais e migravam para as cidades em
busca de oportunidades de trabalho. Mais uma vez, Cipó seguia o padrão típico de comunidades
problemáticas dos municípios sertanejos que, diante dos problemas citados, a solução encontrada
por alguns, foi o êxodo rural que esvaziou o campo e aumentou o volume de pessoas em miséria
nas favelas urbanas.
Diante desse quadro desalentador, o PRECE emergiu da união de sete estudantes
pioneiros (figura 10), do líder e professor universitário, Manoel Andrade, de mim e do líder
comunitário Adriano Andrade, todos com disposição solidária e acolhedora, se posicionaram
sempre como líderes e estudantes que tomaram, sob a coordenação de Manoel Andrade, a iniciativa
de muitas ações, como sempre fizeram até hoje. Os jovens estudantes, com o mínimo de condições,
se reuniram em uma casa de farinha, em grupos de estudo cooperativo e solidário que consistiram
em uma alternativa para os que desejavam melhores oportunidades através da educação.
Dessa forma, romperam o ciclo do êxodo rural descontrolado que gera as favelas e os
mendigos da cidade. No PRECE, inicialmente, os estudantes foram, pela circunstância do atraso
de suas comunidades, orientados a estudarem na capital, porém de forma organizada e com um
objetivo pontual que garantia a eles, uma transformação de vida para melhor: a formação
46
3
Termo criado por Manoel Andrade para designar grupos de estudo. Segundo ele, o termo trazia uma ideologia da
força da união, da aglomeração com o propósito de crescimento, de multiplicação, assim como a célula do corpo
humano. A partir da ideia dele, faço uma metáfora comparativa entre o grupo de estudo e a célula do corpo humano:
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A rotina da célula de estudo era bem simples. Durante a semana o grupo se reunia por
conta própria, sem nenhum tipo de supervisão de professor. Cada participante ficava responsável
por estudar e ensinar para os demais a disciplina que mais gostava de maneira que todos do grupo
contribuíam com o pouco que sabiam em um processo de mútua educação. Inicialmente, aos finais
de semana, eles contavam com a presença do professor Manoel de quem recebiam o estímulo e
apoio para continuarem.
Após a multiplicação da experiência para outras comunidades, o coordenador de célula
atuou fortemente. Trata-se de um membro do grupo que estuda, com antecipação, o conteúdo da
disciplina escolhida para coordenar no encontro da célula. Ele direcionava o registro de frequência,
via o tempo de estudo e se comunicava com os líderes do PRECE para fazer um relato dos estudos.
Depois de ter vivido esse processo e refletido sobre essa figura do coordenador de célula,
caracterizo ele como um “gestor de célula”.
No começo, os estudantes não conseguiam perceber que havia algo mais, além da
conclusão do ensino médio, mas a convivência com o professor Manoel que falava sobre o valor
de uma universidade na vida de um jovem, e ainda mais que ele era um exemplo vivo ali no meio
deles, fez com que fossem percebendo que poderiam chegar ao nível superior.
Quando o grupo completou dois anos de existência, em 1996, o primeiro estudante
Francisco Antonio Alves Rodrigues ingressou na UFC, obtendo o primeiro lugar da segunda fase
do vestibular. Essa aprovação triplicou a dose de estímulo que serviu de grande motivação para os
demais estudantes e assim foram galgando degraus da vida estudantil com o apoio do movimento
PRECE.
A partir daí muitos jovens se interessaram em fazer parte das Células de Estudo do
PRECE, aumentando o número de aprovados em universidades. Esses universitários “precistas”
tornaram-se multiplicadores da metodologia, pois retornavam aos finais de semana, para
O grupo de estudo pode ser visto nessa metáfora como uma unidade estrutural e funcional onde há uma conexão entre
todos no grupo o qual passa por um direcionamento dado pelo coordenador de célula que dá instruções vitais para o
bom funcionamento da célula que resulta no aprendizado. Além disso, se algo não vai bem, as células podem reconectar
suas ideias tomando outra direção para atingir os objetivos. Assim como o corpo humano, o PRECE é esse corpo
composto por muitas células que dão existência a ele. As funções vitais de um organismo ocorrem dentro das células
e tal quais os grupos de estudo têm funções vitais que mantêm o sistema PRECE vivo e saudável para fazer o bem à
sociedade. Por fim, na célula há uma informação genética que regula todas as outras e como essa, na célula de estudo
do PRECE há informações genéticas que se autorregulam as quais são seus princípios: a cooperação, a solidariedade
e o protagonismo; essas informações são impressas no código genético de cada célula de estudo. (Fonte: construído
pela autora desse trabalho)
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A iniciativa dos sete primeiros estudantes ganhou notoriedade nas localidades da região,
ficando conhecida em todo o munícipio de Pentecoste e em cidades adjacentes. Devido a isso,
houve um movimento de deslocamento de muitos estudantes da sede do município e de outras
comunidades para Cipó, que não tinha condições suficientes para acolher a nova demanda, por isso,
alguns estudantes foram desafiados a implantarem a metodologia do estudo em célula em suas
próprias comunidades, dando origem a partir de 2003 à rede de Escolas Populares Cooperativas,
sobre as quais falarei um pouco mais adiante.
Assim, criou-se um novo ciclo; agora de protagonismo, cooperação e solidariedade em
um contexto de escassez, no qual os esforços individualistas e solitários tornavam-se ínfimos para
efetivas mudanças. Os estudantes do PRECE trouxeram uma fórmula que deu muito certo numa
circunstância de pobreza. Essa estratégia valorizou o que havia de potencialidade local,
estimulando a formação de um ambiente, onde cada um poderia usufruir de um mútuo benefício.
instituições que, comumente, lançavam editais para fomento de ações educativas no âmbito da
educação não formal de diversas entidades do terceiro setor, e esse avanço na elaboração
sistemática da escrita de projetos sobre a experiência foi feito por Manoel Andrade.
Essa formalização se processaria a partir da sua organização estatutária, e sobre isso,
destaco um trecho da ata de fundação4 da ONG que ilustra como aconteceu esse novo momento de
planos e sonhos para o futuro dos estudantes e líderes que ali se encontravam e para tantos que
viriam depois:
Aos 18 do mês de outubro. Do ano de mil novecentos e noventa e oito, às 20 horas na casa
de farinha, situada na comunidade do Cipó, município de Pentecoste, Estado do Ceará,
reuniram-se em Assembleia Geral de Constituição e Fundação os senhores membros do
PRECE – Projeto Educacional Coração de Estudante. Estavam presentes muitas pessoas
residentes nas comunidades adjacentes. Foi dada a saudação de boas vindas aos presentes
pelo jovem Francisco Antônio Alves Rodrigues, o qual passou a palavra para o seminarista
Alexsandro Rocha dos Santos, da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, que dirigiu
uma devocional e na ocasião fez uma oração pedindo que Deus abençoasse a reunião e a
Entidade a ser fundada. Após a oração, todos entoaram o cântico “Oh! Vinde vós os povos
de todas as nações, erguei-vos e cantai com alegria”. (Ata de Fundação, 1998)
colaborar para o pleno desenvolvimento dos jovens, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho; promover atividades que possam despertar o
interesse dos jovens pela educação, incluindo movimentos artísticos e culturais; promover
cursos, treinamentos e outros eventos; desenvolver palestras, excursões, atividades
esportivas tais como campeonatos e torneios; (Estatuto do Projeto Educacional Coração
de Estudante, 1998)
Despertar o interesse dos jovens pela educação, esse foi o maior objetivo do PRECE
até hoje, multiplicado em suas diversas facetas. Colaborar para o seu desenvolvimento pessoal e
4
Ata da Assembleia Geral de constituição do Projeto Educacional Coração de estudante (PRECE), realizada no dia
18 de outubro de 1998. – Anexo B
51
social e prepará-lo para ser um cidadão. O cidadão tem direitos e deveres, dentre outras atribuições
do termo. Lutamos para crescer, intelectualmente e contribuirmos com as causas sociais que têm
nos desafiado, diariamente, em nossas trajetórias de vida. Desde a primeira célula de estudo,
cultivamos o nosso compromisso de retornar à comunidade de Cipó para acompanharmos os outros
estudantes que se preparavam para a universidade.
Na ata de fundação do Projeto Educacional Coração de Estudante, o presidente da
instituição criada fala que “estes estudantes que hoje já estão em um estágio mais evoluído de
conhecimento, dedicam-se durante os finais de semana, a atividade de ensino aos seus colegas que
ainda estão fazendo os supletivos do primeiro e segundo grau” (ata de fundação, 1998). As ações
aconteciam de forma dinâmica, o grupo inicial caminhava e os projetos iam surgindo das ideias do
líder principal que instigava os participantes a se envolverem na execução dos mesmos. Uma dessas
ideias foi a criação do Jornal Tribuna do Estudante, que tinha o objetivo de divulgar as práticas
socioeducativas realizadas pelo PRECE. O primeiro número do jornal foi lançado no dia da
oficialização da experiência conforme exposto antes.
Mais uma fonte documental que registrou esse dia de institucionalização da experiência,
o Tribuna do Estudante, foi uma maneira criativa de comunicação e fortalecimento do projeto para
aquele contexto ainda em atraso. Segue-se a análise do número 01 do periódico que surgiu como
uma espécie de manifesto de implantação de uma cultura de estudos autônomos, cooperativos e
solidários. Dentro dessa ideia foi que Manoel Andrade pensou em lançar um jornal que
representasse nossa causa.
No primeiro número do jornal, de forma oficial, nomeamos essa prática social
educativa de Projeto Educacional Coração de Estudante. Após o processo de nominalização oficial
perante um grupo, o projeto passou a ter uma identidade, um nome.
O periódico Tribuna do Estudante foi lançado no mesmo dia da intitucionalização do
PRECE e surgiu pela necessidade de divulgar as nossas ações educacionais. O primeiro jornal faz
parte de uma coletânia de 19 a 20 fascículos. Esse fascículo representa o nosso momento de atuação,
mostra o que estávamos fazendo e funciona quase como um mini-relatório de nossas atividades no
PRECE em 1998. Esta análise se destina a mostrar quais objetivos, princípios e ideias que
sustentavam as práticas educativas do PRECE, sendo, portanto, a nossa primeira iniciativa de
divulgação via impressa.
52
Dezoito de outubro é um dia muito especial. Digo especial, pela relevância no que diz
respeito a sua natureza histórica. Nascem oficialmente dois possíveis grandes baluartes do
futuro município de Pentecoste: o projeto educacional Coração de Estudante que recebe a
significativa sigla de PRECE e o seu principal órgão de divulgação o jornal Tribuna do
Estudante para o qual tenho a honra de redigir seu primeiro editorial. Neste dia,
completam-se quatro anos de existência oficiosa, porém não oficial, de um projeto cujo
principal objetivo é colaborar com o pleno desenvolvimento dos jovens e seu preparo para
o exercício da cidadania [...]. (ANDRADE NETO, 1998, p.01).
Logo nas duas primeiras linhas, observo o esforço para se criar uma identidade e
referência do grupo que já tinha uma trajetória de quatro anos. A criação desse aparelho de mídia
contribuiu para dar o tom oficial e poderoso do recurso midiático, desde os primórdios da história
jornalística no mundo. Esse registro escrito também afirmava uma espécie de pacto social entre o
grupo. A publicação era uma forma de dizer para todos do município de Pentecoste quem eram os
agentes precistas e porque estavam ali.
A história social do PRECE se confunde com a história individual de seus agentes.
Sobre isso, Bourdieu faz uma reflexão que reforça o que discuto aqui, ou seja, a trajetória de um
coletivo, de uma entidade, mas também de percursos individuais, de agentes de uma prática. Ele
fala de histórias de vida, de “caminhos”, “estradas”, “carreiras” e de “encruzilhadas”. Segue-se a
citação do referido autor:
[...] um caminho que percorremos e que deve ser percorrido, um trajeto, uma corrida, uma
passagem, uma viagem, um percurso orientado, um deslocamento linear, unidirecional (“a
mobilidade”), que tem um começo (“uma estreia na vida”), etapas a um fim, no duplo
sentido, de término e de finalidade (“ele fará seu caminho” significa “ele terá êxito”, “fará
uma bela carreira”), um fim da história. (BOURDIEU, 1986, p.01).
Estudante e referendado pela publicação diante do grupo e da comunidade marca o início de uma
procura por identidade, nomeação, reconhecimento e legitimação.
O autor do editorial é enfático ao dar nome oficial ao grupo de estudos, caracterizando-
o como uma estrutura de sustentação forte e segura que daria suporte ao “futuro do município”,
assinalando para uma espécie de missão social que precisavam realizar e que ultrapassava a
dimensão individual. Por isso, fez-se um ato público, uma espécie de manifesto, com o lançamento
de um jornal que publicou o momento solene.
O destaque honroso do significado da sigla PRECE, ou seja, da institucionalização com
nome próprio que de agora em diante seria conhecido e chamado de Projeto Educacional Coração
de Estudante e ainda de seu pequeno órgão de mídia, o jornal Tribuna do Estudante. Nesse
expediente, o Tribuna do Estudante contribuiu para uma apresentação pública do ente social
instituído pelo nome próprio.
Aqui me refiro a um projeto educacional que percebeu o valor de um periódico para
ampliar a luta por uma educação libertadora e transformadora de base freireana, na qual os sujeitos
realizam a mediação do saber que parte de uma ação social, seguindo-se uma práxis que
poderíamos chamar de praxiologia freireana (FREIRE, 2011).
Muitos grupos ou instituições, ao longo da história do mundo, fundaram um jornal,
canal de comunicação entre o fundador e seu público. Acerca da importância do jornal na História
da Educação, destaco o que pontua Celina Mizuta:
Nesse sentido, os jornais podem trazer à tona os elos fundamentais para recompor a
História da Educação uma vez que na origem do jornalismo na Europa, ele tornou-se um
poderoso instrumento do projeto iluminista para desencadear mudanças nas ideias e nos
comportamentos das pessoas comuns. (MIZUTA, 2017, p. 02).
A ideia da criação do jornal partiu do professor Manoel Andrade que iniciou tal
empreendimento comunicativo do PRECE sabendo do poder que esse instrumento tem para
fomentar e ser sustentáculo de lutas sociais e políticas educacionais de qualidade. Junto com ele,
estávamos todos nós que fazíamos parte do expediente5 e nos responsabilizávamos pelas novas
publicações. No entanto, o periódico teve vida efêmera, por motivos que precisam ser analisados
5
Diretor: Francisco Antonio Alves Rodrigues; Editor: Prof. Manoel Andrade Neto; Revisora: Ana Maria Teixeira
Andrade; Diagramação e artes: Manoel Andrade Neto; Colaboradores: Francisco José Teixeira Gonçalves, José
Orismar da Silva Barroso, Adriano Sérgio da Silva Andrade, José Noberto Sousa Bezerra.
55
em outro estudo. Mesmo assim, sua curta vida trouxe informações importantes e guardou a
memória do grupo que será importante como registro histórico da educação no Ceará.
Além do editorial, tem-se um espaço intitulado de Dito pelos homens, onde se
destacava, a cada número, um dito, uma frase; no primeiro número publicou-se a frase célebre do
escritor Monteiro Lobato: “Um país se faz com homens e livros e o futuro de um homem depende
de ele ter tido ou não, uma biblioteca em sua casa” (KOSHIYAMA, 2006, p. 212). Essa frase me
lembra do fato de que nos lares da maioria das pessoas que constituíam nosso grupo não havia um
lugar adequado para estudar, imagine uma biblioteca! Essa frase nos tocava pela razão da
valorização inicial de que nosso espaço de estudo, a casa de farinha, deveria ser cheio de livros.
Nesses quatro anos iniciais, recebemos muitas doações de livros de professores da UFC.
Segue-se outro espaço de título O que disse Jesus, e nele, constava um versículo
bíblico que diz: “no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo 16:33,
Bíblia). A utilização do versículo era para estimular o grupo a não desanimar frente às adversidades
que encontrariam em suas trajetórias de vida. O modelo era Jesus, no sentido de se ter uma missão
social e de resistir a uma cultura antiética na política local que aumentava cada vez mais o abismo
social entre a classe pobre e a pequena elite, dado as diferenças nas devidas proporções da analogia
utilizada pela máxima bíblica. A (figura 12), dividida em A e B ilustra o jornal aqui analisado.
56
Depois vem o espaço para a divulgação dos aniversários dos estudantes, opotunizando
momentos festivos entre os amigos do projeto. Em seguida, há outra coluna de título Fatos
Marcantes, onde se registrava a aprovação de algum estudante no vestibular, e isso servia de
estímulo e fortalecia os objtivos do projeto educacional e do periódico. Havia outra coluna chamada
de Esportes e esta não poderia faltar, pois os estudantes(homens), do PRECE tinham o esporte
como o seu maior lazer e momento de interação com os amigos de estudo e com a comunidade.
Posteriormente, vem o espaço da Entrevista onde registrávamos entrevistas dos estudantes do
59
projeto, uma biografia a cada edição do jornal e, finalmente, a última, nomeada de Curiosidades,
a qual falava de amenidades, pequenas informações acerca de descobertas, fatos curiosos, etc.
Sobre o significado de nome próprio, o termo serve para individualizar uma pessoa,
nações, povoações, instituições, etc (HOLANDA, s/d, p.1197). Aqui, verso sobre a constituição do
nome próprio Projeto Educacional Coraçãoo de Estudante (PRECE) que dá existência oficial a uma
instituição criada e sustentada por seus agentes fundadores. A partir desse marco, foi constituída
uma diretoria, uma ata, um estatuto e, posteriormente, um CNPJ. Com essa nomeação, ficou,
oficialmente, garantida uma existência institucional, ou seja, uma ONG. Percebo que a essência (a
necessidade, a motivação) do nome próprio, pensado para nomear a ação de estudantes estudarem
juntos, confunde-se com a essência de cada integrante, transitando do coletivo para o individual.
Sobre isso, vejamos o que pensa Bourdieu em suas reflexões sobre o tema:
[...] o nome próprio é o suporte [...] daquilo que chamamos de estado civil, [...] produto
do rito de instituição inaugural que marca o acesso à existência social, ele é o verdadeiro
objeto de todos os sucessivos ritos de instituição ou de nominação através dos quais é
construída a identidade social: essas certidões (em geral públicas e solenes) de atribuição,
produzidas sob o controle e com a garantia do Estado, também são designações rígidas,
isto é, válidas para todos os mundos possíveis, que desenvolvem uma verdadeira
distribuição oficial dessa espécie de essência social, transcendente as flutuações históricas,
que a ordem social institui através do nome próprio [...]. (BOURDIEU, 1986, p.02).
Tribuna do Estudante. Outra importante motivação era a situação de pobreza pela qual cada
estudante vivia em sua realidade, consequência da anterior. Diante disso, apresento mais um
fragmento do editorial para entendermos um pouco a visão do grupo sobre o contexto político de
Pentecoste:
Cinco (posteriormente entraram mais dois, totalizando sete – grifos da autora.) jovens que
resolveram se reunir para mudarem o destino de suas vidas, inicialmente imposto por um
sistema desonesto e desumano, onde só os que podem pagar uma boa escola é que de fato
tem direito a uma educação eficaz [...]. (ANDRADE NETO, 1998, p.01).
Por conseguinte, reforçando, destaco ainda a presença de uma oração a Deus pelos
sócios fundadores do projeto, leiamos:
Esperamos, portanto, que o PRECE continue sendo abençoado por Deus como foi até
agora, que ele continue tentando construir a sua realidade e nunca espere por governantes
e líderes políticos para isso. Nossa esperança é que, os integrantes desse projeto, não
tenham como meta prioritária somente se dar bem na vida ou ter uma formação
universitária, mas que sejam esses os meios pelos quais eles possam servir a Deus e aos
homens. Oramos ao nosso Deus para que os sócios fundadores do PRECE se coloquem
como instrumentos de transformação da sociedade, contribuindo com o estabelecimento
do reino de Deus. Onde ninguém é tratado pelo que tem e todos são iguais perante o
Criador e perante os homens. Onde a paz, a justiça e o amor são valores verdadeiramente
praticados e absolutamente inquestionáveis. (ANDRADE NETO, 1998, p.01).
Essa oração é carregada de um compromisso social forte, o qual conclama que os sócios
fundadores sejam instrumentos de Deus para uma mudança da realidade opressora, com sonhos de
transformação social, mudanças de vida para melhor, onde os valores cristãos estivessem presentes.
Isso me pareceu bastante idealista pensando naquele momento, mas hoje vejo que muito do que se
idealizou em 1998 foi realizado. Agora, tudo está ganhando uma nova configuração por vivermos
momentos de constantes mudanças. O último escrito do excerto é utópico, mas não impossível de
ser posto em prática por cada cidadão ou cidadã. Esse valor da crença dá base para a presença de
muitos outros valores como o amor e o cuidado com o próximo.
Nesta parte do trabalho faz-se importante a explicação desse título. Muitos projetos
realizados por nós, nesse período, nos ensinaram, tanto na condição de educando quanto na de
educador. Éramos um projeto social e educacional, assim, tudo que fazíamos tinha uma dimensão
sócioeducacional no âmbito da educação não formal, fora do ensino convencional.
Ao criar O Tribuna do Estudante, como o próprio nome explicita, havia a intenção
de construirmos mais um instrumento de apoio às grandes causas levantadas pelo PRECE: a
inclusão social de jovens populares na universidade pública; a formação da consciência do jovem
sobre sua realidade e a formação da consciência do jovem acerca do potencial dele como agente
de transformação da sua realidade. (p. 01). O Jornal mostrou a todos, precistas e a comunidade
em geral, as ações realizadas no PRECE, o pensamento ideológico-filosófico e os valores pelo
grupo, difundidos e preservados.
62
O espaço de origem do PRECE passou a ser chamado de EPC Cipó, a partir de 2003.
Essa EPC foi considerada ‘mãe’ ou ‘sede’ por ter sido a primeira. Esse processo ocorreu a partir da
vinda dos primeiros estudantes da cidade de Pentecoste (Figura 14) para estudarem na casa de
farinha em Cipó. Com isso, o espaço não comportou mais e nem a liderança estudantil foi suficiente
para acompanhar os estudantes, de acordo com a necessidade de cada um. Com o problema, surgiu
a ideia da expansão e multiplicação da experiência do PRECE para outras comunidades.
Assim, o primeiro núcleo foi criado em 2003, na sede de Pentecoste, pois era necessário
criarmos novas estratégias para os estudantes da cidade que precisavam também entrarem na
universidade e para isso, pracuravam o PRECE. Sobre como se deu essa primeira expansão,
necessita haver um estudo mais aprofundado de cada EPC e analisar as possíveis causas porque
foram desativadas.
Para viabilizar esse processo, sob a coordenação de Manoel Andrade, foi criado em
2005, o Projeto Incubadora de Células Educacionais. Esse projeto visava a formação dos estudantes
63
que desejassem levar a metodologia do PRECE, das células educacionais de estudo para suas
comunidades e assim, criarem associações estudantis denominadas de EPC. Esse projeto,
basicamente, consistia em os estudantes da preparatória para o vestibular ou para EJA, ao passo
que estudavam nessa preparação, eram orientados a como fundarem e registrarem as suas
associações estudantis.
Nas EPCs, além dos projetos Pré-Vestibular (Figura 15) e Educação de Jovens e
Adultos (EJA), os líderes poderiam desenvolver outras iniciativas dentro das necessidades locais
de cada comunidade. A partir dessa formação, os estudantes líderes de várias localidades fundaram
treze EPCs a partir do ano de 2003 até 2008. Durante os anos de 2007 e 2008, a experiência das
EPCs foi escrita em um projeto selecionado pela Fundação Lemann para receber apoio financeiro
para o fortalecimento dessas escolas. Ao final de cada ano, era redigido um relatório técnico-
pedagógico das atividades realizadas pelas EPC, nesse período. (Instituto Coração de Estudante,
Relatório Anual 2007, p.13).
64
Tabela 1 - Projetos principais realizados e público beneficiado pelas EPCs do PRECE em 2008.
PROJETO Nº DE ESTUDANTES
TOTAL 976
Fonte: Relatório Fortalecimento e Expansão das Ações Educacionais no Sertão Cearense.
Conforme pontuei, os dois projetos que caminharam juntos, desde o início do PRECE,
antes da criação das EPC e após, foram o Projeto Educação de Jovens e Adultos e o Projeto Pré-
vestibular Cooperativo. Com a criação das EPC, eles passaram a ser implementados por cada uma
delas em diversas comunidades que as sediavam, em Pentecoste, em outros municípios vizinhos e
em Fortaleza. Na zona rural de Pentecoste, as escolas só atendiam até, no máximo, a quarta série,
e o ensino fundamental ocorria, em algumas escolas, pelo sistema TV Educativa, por isso, era
grande a demanda de estudantes para concluir o ensino médio.
Logo no início quando chegaram os sete estudantes pioneiros desejando se escolarizar
e concluir o ensino fundamental e médio, o campo de atuação já requeria uma tomada de decisão
sobre o que fazer para melhorar a vida desses jovens estudantes que chegavam a cada semana, e,
além disso, só havia em Pentecoste a EJA do ensino fundamental.
A decisão precisava ser rápida, pois quem ia chegando ao projeto, Manoel Andrade
sugeria e orientava a fazer o supletivo do ensino fundamental e médio com o apoio do estudo em
grupos (células estudantis), aprendendo uns com os outros para realizarem as provas nessa
66
Assim, firmou-se no ano de 2000, a parceria entre essa escola e o Projeto Educacional
Coração de Estudante, que se responsabilizaria pela infraestrutura, orientação dos estudantes e
apoio aos professores do CEJA na aplicação das avaliações.
Para melhorar as práticas educativas no projeto EJA, foi escolhida uma coordenação
que, inicialmente, ficou com Adriano Sérgio da Silva Andrade. Posteriormente, o projeto foi
coordenado por Francisco Antonio Alves Rodrigues; nesse período, ambos eram estudantes
universitários. Havia uma sistemática metodológica que consistia em os estudantes poderem optar
entre duas alternativas de estudo, de acordo com o tempo disponível de cada um. Eles podiam
receber os módulos de ensino para estudarem em casa ou podiam formar células de estudos e serem
acompanhados por monitores. Os monitores eram estudantes do pré-vestibular que moravam na
comunidade.
Inicialmente, a modalidade EJA foi muito importante para dar base a todo o trabalho
do PRECE, pois todos os agentes fundadores da experiência passaram por esse sistema de estudos,
a única exceção foi Manoel Andrade. Rodrigues (2007) diz que:
muitos dos estudantes que hoje são universitários passaram pela modalidade do curso
supletivo no PRECE. Todos os estudantes fundadores da entidade, por exemplo, passaram
por essa modalidade de ensino, evidenciando que ela teve considerável importância ao
viabilizar a continuidade dos estudos de jovens e adultos moradores da zona rural. (idem,
p.77-78).
entregássemos os resultados a cada fim de mês. Da esquerda para a direita na foto são os
professores do CEJA e o primeiro estudante do PRECE, então coordenador desse projeto:
Segundo Rodrigues (2007) “a partir de abril de 2000, a instituição firma uma das mais
importantes parcerias do ponto de vista do trabalho educacional que desenvolvia”. (idem, p.76).
Em sua pesquisa de mestrado em Educação Brasileira, ele comenta que “após seis meses de
atividades, a equipe do PRECE, formada por estudantes universitários, assumiu tanto as atividades
de acompanhamento quanto a de aplicação das avaliações, apresentando ao CEJA, mensalmente,
os relatórios dos trabalhos realizados”. (idem, p.77).
O projeto EJA no PRECE visava oportunizar aos estudantes fora da idade escolar a sua
escolarização através de um sistema modular de educação que é o corriqueiro do sistema formal,
mas havia o diferencial do estudo em célula com o apoio mútuo entre os estudantes mais
experientes do Programa. De acordo com o 2º relatório pedagógico dos projetos realizados pelo
PRECE em 2008, o processo metodológico da EJA funcionava mais ou menos assim: os estudantes
que já tinham passado pelo sistema cooperavam como monitores educacionais ajudando os que
ainda estavam cursando as disciplinas.
Os universitários, aos finais de semana, ao retornarem de Fortaleza, orientavam os
monitores e aplicavam as avaliações para os estudantes do Projeto EJA. Cabe destacar que alguns
recém-graduados atuavam na gestão do Projeto EJA na EPC de sua comunidade. O interessante era
69
a facilidade que o Projeto EJA oferecia para os estudantes de serem atendidos em sua própria
comunidade, como uma escola itinerante. (Relatório 2007, p. 09).
Os monitores de cada disciplina eram escolhidos pelo seu engajamento no projeto e
pelo seu interesse pela disciplina que pretendia compartilhar os seus saberes. Os conteúdos seguiam
a grade curricular da EJA, reforçados por outros que o estudante necessitasse, conforme o nível em
que chegava ao projeto. Nas células, cultivava-se a discussão em grupo e o debate sobre variados
temas de interesse do estudante, privilegiando-se a leitura e a escrita já que havia uma atividade
obrigatória que era a produção de redação semanalmente, porém se o estudante quisesse, podia
escrever mais de uma redação por semana. Essa atividade era muito valorizada por Manoel
Andrade que orientava a todos os facilitadores a priorizarem essa prática, não deixando de fazer a
correção de todas as produções, emitindo comentários e pedindo a refacção das mesmas, se
necessário.
Nós, professores de Português, sempre íamos ampliando as ideias com novas propostas
textuais que se ligassem à história de vida do estudante, como demonstro, à frente, uma experiência
sobre esse trabalho no PRECE. Com o decorrer dos anos, as atividades foram se diversificando e
outras práticas foram se somando, por exemplo, orientávamos a “leitura de paradidáticos, a escrita
de diários, de histórias populares, cordéis, autobiografias e biografias de pessoas da própria
comunidade, etc.” (RELATÓRIO, 2008, p. 09).
Devido a ação do PRECE acontecer, principalmente no meio rural, considerava-se a
realidade do campo, “da geografia, das distâncias, das intempéries, da cultura daquele povo, enfim,
de todos os dissabores do próprio ambiente”. Todo estudante que nos procurava com o objetivo de
se escolarizar na EJA e se preparar para o ensino superior, era bem acolhido e não havia processo
seletivo que pudesse excluir ninguém, permanecer ou não, a escolha para entrar e estudar era
somente de cada um.
Destaco na (Tabela 02) (ibidem) uma primeira amostra quantitativa de resultados do
Projeto EJA, realizado em 2008 com o apoio da Fundação Lemann que oportunizou a
sistematização de nossas atividades pedagógicas na modalidade EJA no PRECE. Com a
visualização, temos uma noção de quantidade, de público e de resultados desse projeto em 2008:
70
Tabela 2 - EPCs que realizam o Projeto EJA/ Com estudo em células ou não/Público/Resultados
quantitativos
Nº de Realiza Nº de provas Nº de concludentes
Nº
estudantes o estudo realizadas por
EPC Estudantes
ingressos na em aluno Ensino Ensino
- atuais
EJA células mensalmente Fundamental Médio
Cipó 17 14 Não* 5 0 5
Canafístula 27 19 Sim 5 0 8
Boa Vista 24 22 Sim 6 1 3
Ombreira
4 4 Não 2 0 0
Média geral =
TOTALIZAÇÃO 72 59 50% 1 16
até 5
Fonte: Relatório Fortalecimento e Expansão das Ações Educacionais no Sertão Cearense.
darmos conta da alta demanda que surgia à medida que nossos resultados aumentavam e
repercutiam na região.
Esses estudantes que passavam por uma formação docente necessária no contexto de
escassez de professores licenciados, já muito cedo, foram se constituindo facilitadores educacionais.
Em 2002, com a ida dos estudantes da sede de Pentecoste surgem também as dificuldades de
acomodação, alimentação e responsabilidade de gestão para com esse público, já que era necessário
cuidar desses rapazes e moças, desde aulas, material didático, alimentação, alojamento e
acompanhamento em toda situação que pudesse surgir nos âmbitos social e emocional, assim,
ocorreu a primeira multiplicação, já comentado.
Nesse contexto, destaco duas figuras, além de Manoel Andrade, que foram muito
importantes nesse processo de expansão do PRECE, saindo dos limites de Cipó; uma delas é a de
Adriano Sérgio Andrade e a outra é a de Elizeu Peixoto; o primeiro destaca-se na implementação
do projeto, por ter demonstrado total desprendimento pessoal, abdicando de projetos pessoais para
se dedicar, integralmente, a causa e assumindo todo tipo de papel, desde a preparação de material
didático ao transporte de universitários, diuturnamente de Fortaleza a Pentecoste e vice-versa para
darem aulas no novo PRECE Pentecoste, que teve como primeira sede alugada o então Centro
Educacional João XXIII.
A segunda pessoa, por ter sido o apoiador financeiro, tendo a coragem de mexer naquilo
que poucas pessoas têm, nas finanças para emprestar dinheiro ao PRECE para comprar um carro,
a Kombi (figura 18). Com isso, garantiu-se a presença dos universitários para conduzirem as aulas
todas noites.
Para essa expansão do PRECE obter sucesso, a Kombi foi essencial, pois como as
lideranças principais do projeto estavam na universidade, em Fortaleza, e, sem a presença delas na
semana, em Pentecoste e, aos fins de semana, em Cipó, o projeto não poderia ter frutificado tanto
ao longo de sua história.
Com a compra da Kombi, as ações do PRECE obtiveram mais êxito, pois o núcleo
original em Cipó se manteve forte e a ideia da multiplicação, pensada por Manoel Andrade que
consistia em “dividir para poder multiplicar” foi exitosa. Nesse ideal, houve a semeadura nos
campos férteis, a começar pela EPC – Pentecoste, e dali para frente, não se parou mais.
Até hoje, a partir desse olhar para a minha história de vida no PRECE, vi soma nos
diversos grupos existentes na história da experiência e vi divisão e multiplicação na replicação da
72
pedagogia do PRECE para outras comunidades, EPCs, escolas públicas (Secretaria de Educação
do Estado do Ceará - SEDUC e Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza - SEFOR) e
universidades (UFC e Universidade do Estado do Mato Grosso - UNEMAT).
A Kombi foi uma personagem inanimada fundamental para que houvesse vida, vida
estudantil, vida comunitária, e tudo isso ligado ao sonho de cada um que fez parte desse processo.
Havia momentos em que o professor de geografia Adriano Andrade, homem proativo e prático que
era e é, assumia o cargo de motorista da Kombi.
Nossa personagem e seu motorista sofriam na estrada esburacada de Croatá a
Pentecoste, diuturnamente. Todos saíamos de Fortaleza no fim da tarde para estarmos na escola
João XXIII às 18h30min, tempo em que deveríamos entregar as xerox aos outros professores e aos
monitores antes das 19h, quando começavam as aulas. A Kombi foi muito querida e, antes de ser
vendida, tirou-se uma foto dela para guardar na memória do PRECE (figura 18).
os grupos de estudo da nossa disciplina em um dia na semana e, ao término de cada dia de aula,
nos reuníamos durante meia hora com cinco ou mais monitores de cada grupo para recebermos o
feedback de cada célula de estudo naquele dia e em seguida retornávamos para Fortaleza, chegando
por volta de meia-noite.
Trabalhávamos com a mesma sistemática metodológica do estudo em células, com
cinco ou seis estudantes no máximo, e, dentre estes, havia um monitor previamente selecionado e
um coordenador de disciplina, que era um de nós graduandos. Todos os facilitadores do PRECE
que atuavam conosco nesse novo momento, passavam por essa mesma rotina. No geral, cada
disciplina tinha em torno de 20 ou mais estudantes. Às vezes, ocorriam problemas nas células de
estudo das disciplinas que teriam que ser resolvidos na mesma noite, pois não haveria tempo depois,
já que gestores e universitários não se veriam mais até as próximas aulas da semana seguinte.
Não podíamos adiar os conflitos, pois se assim agíssemos, como as células poderiam
funcionar com problemas? Muitas vezes, a natureza do problema não era de rápida resolução, então
havia dias que voltávamos para Fortaleza quase 1h da madrugada para trabalharmos a resolução
desses conflitos, em maior parte, de relacionamento. Na maioria das vezes, a volta era depois de
meia noite.
Quando chegávamos ao temido trajeto da estrada Croatá/Pentecoste, cheio de crateras,
já estávamos atrasados devido a uma série de dificuldades para sairmos de Fortaleza, então passar
por aquele “campo minado de buracos” se tornava um verdadeiro martírio. Entre tantas outras
percepções marcantes desse momento descrito, isso é um breve panorama de como aconteceu a
primeira multiplicação.
Vejamos uma primeira amostra quantitativa de resultados do Projeto Pré-Vestibular
Cooperativo que a partir de 2003 funcionava em cada EPC que ia sendo fundada. Essa amostra foi
colhida em 2008. Até esse momento, pouco se havia registrado acerca de nossas ações, o que havia
até esse momento eram projetos escritos, principalmente pelo professor Manoel Andrade e
apresentações feitas no calor da ação prática. Cabe lembrar que esses escritos do professor Manoel
Andrade são memórias que estão sendo organizadas por ele para a publicação posterior de um livro
sobre a experiência exitosa do PRECE.
74
Tabela 3 - Vestibular 2009.1 da UFC – aprovados na 2ª fase por Escolas Populares Cooperativas
Fonte: Relatório Fortalecimento e Expansão das Ações Educacionais no Sertão Cearense, Fortaleza, 2008 .
práticos. Ficamos excitados com essa informação, especialmente, o professor Manoel Andrade que
logo iniciou uma pesquisa na internet sobre a experiência dos americanos.
A partir daquele diálogo entre o professor Edgar Linhares, o professor Manoel Andrade
e eu que os acompanhava, travou-se uma procura de estudos e pesquisas sobre a teoria e
experiências formais de aplicação da metodologia da Aprendizagem Cooperativa. Esse encontro
possibilitou um avanço qualitativo na história do Programa que serão estudados e publicados
posteriormente.
O professor Edgar Linhares nasceu em Santa Quitéria, interior do Ceará, assim como
nós, matutos coadjuvantes, no dizer de Manoel Andrade e tinha formação na área da educação,
suficiente para se interessar e fazer uma espécie de avaliação da nossa experiência. Além de
presidente e membro do CEE, era formado em Letras, tinha especialização em Planejamento
Educacional, mestre em Psicologia da Educação, diretor de planejamento da Secretaria Geral de
Apoio do MEC, professor da UFC e tinha experiência de mais de 60 anos no Magistério.
A sua visita, no meu entender, foi para nos aprovar, confirmar que estávamos no
caminho certo e todas as suas palavras foram de contentamento por ver algo assim e expressaram
contentamento. Ficamos muito satisfeitos em ver o interesse dele em nos reconhecer como uma
76
experiência inovadora em nosso contexto, no Ceará. Por fim, esse mestre, no pouco tempo em que
esteve conosco, nos iluminou com suas palavras de orientação quando precisávamos avançar no
conhecimento das nossas bases teóricas e foi graças a esse ele que desenvolvemos os estudos sobre
Aprendizagem Cooperativa.
Infelizmente, Edgar Linhares, nosso parceiro e admirador da causa, faleceu em março
de 2015. Em sua homenagem, seu nome foi posto em uma das Escolas Municipais de Tempo
Integral (Professor Edgar Linhares Lima). A sua morte nos entristeceu a muitas pessoas da área
educacional, desses, destaco Mauricio Holanda, então secretário de educação do Estado do Ceará,
esse, na ocasião, afirmou que Linhares era “uma pessoa criativa, inteligente, comprometida com a
melhoria da educação e muito generosa para partilhar as ideias e descobertas” (O POVO ONLINE,
2015).
Estudante cooperativo
A escola pública do espaço rural, em especial, não dispõe ainda de uma educação de
qualidade, que ofereça aos estudantes a oportunidade de aprenderem os saberes historicamente
organizados e os saberes locais para conseguirem mudar a situação econômica e social em que
estão imersos.
Como temos visto, esse contexto do interior não é desenvolvido o suficiente para gerar
oportunidades de mudanças que favoreçam a realização do sonho da juventude rural que,
desanimados, tendem a abandonar a escola, ou a se conformar apenas com o ensino fundamental
ou o médio, quando conseguem concluir. Assim, acabam optando por viverem de pequenos ofícios
ou, quando muito, assalariados do capital, sem desmerecer aos que estão nessa condição, mas
sabemos que nossas crianças e jovens têm potencial para irem à frente.
Tais caminhos de trabalho os põem na situação eterna de população de baixa renda. Por
outro lado, há outros que ao concluírem o ensino médio, ainda não se encontram aptos a iniciarem
no ensino superior. Dos muitos problemas que explicam essa situação, destaca-se a infraestrutura
escolar que ainda não é apropriada a uma possível diversidade de usos metodológicos.
A falta de professores com formação específica é outro problema para o ensino-
aprendizagem. Grande parte dos professores só tem graduação em Pedagogia, portanto sem
77
habilitação para lecionar disciplinas específicas. Em termos dos recursos disponíveis, a situação
das escolas da área rural ainda é bastante precária.
Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP) (2007, p.29) afirmam que “[...] as escolas rurais apresentam características físicas e
dispõem de infraestrutura bastante distinta daquelas observadas nas escolas urbanas. Em termos
dos recursos disponíveis, a situação das escolas da área rural ainda é bastante precária”. E em
relação ao grau de formação dos professores, os dados afirmam que:
o “nível de escolaridade dos professores revela, mais uma vez, a condição de carência da
zona rural. No ensino fundamental de 1ª a 4ª série, apenas 21,6% dos professores das
escolas rurais têm formação superior, enquanto nas escolas urbanas esse contingente
representa 56,4% dos docentes. (ibidem, p. 33).
A partir desses dados confirmados, vemos a necessidade de se tomar uma atitude para
mudar essa realidade triste da nossa educação, e foi por isso que a liderança do PRECE criou
projetos em cooperação com a escola pública com a intenção de colaborar com a comunidade
escolar. Um desses projetos foi o Estudante Ativo, que depois se transformou no Projeto Estudante
CooperAtivo.
O projeto procurava apoiar e estimular os estudantes matriculados na escola pública
para estudarem além da sala de aula e expandirem a visão de futuro. Nas ações, os estudantes eram
impulsionados a serem autônomos intelectualmente e a agirem como protagonistas, engajados nos
espaços da escola, no PRECE, e posteriormente, em outros locais de participação cidadã.
O fim maior do projeto era colaborar com a qualidade da educação por meio do
aumento da aprendizagem do estudante. Para isso, procurávamos trabalhar com um “currículo local
engajado” nas áreas específicas, como por exemplo, a história, o espaço geográfico, a diversidade
biológica, as características ambientais, os aspectos econômicos, políticos e sociológicos do lugar.
A ideia de estudar o contexto local da escola por meio de diversos projetos é discutida
por Freire (2011) e considero uma importante forma de trabalhar, para obtermos um aprendizado
contextualizado de fato, colaborando para a melhoria da educação básica. (A figura 20) mostra os
estudantes universitários facilitadores das disciplinas, o público e eu, então coordenadora do
projeto.
78
Além dos encontros semanais, criávamos formas de estimulá-los que eram as viagens
de campo quando os estudantes gozavam da oportunidade de conhecer laboratórios, departamentos
da UFC, visitar museus e outros espaços culturais de aprendizagem informal, em Fortaleza.
O projeto teve alguns parceiros importantes, “o apoio de alguns professores das
Universidades Estadual e Federal do Ceará, os quais colaboraram proferindo palestras e orientando
o processo”. (Relatório 2018). Nessa edição do projeto, havia também a participação dos
professores das Escolas públicas dos estudantes do projeto.
Em 2008, as turmas de estudantes eram do Ensino Fundamental de algumas escolas do
Município de Pentecoste, do 6º ao 9º ano. Por exemplo, os professores da escola Licínio de Morais,
do distrito de Serrota, em Pentecoste, entenderam o valor desse projeto para o aprendizado de seus
estudantes. Em nossos encontros semanais, duas professoras dessa escola participaram de todas as
atividades que realizamos nesse ano.
No PRECE, procurávamos caminhar juntos em algumas lutas que víamos como necessárias
em prol de uma transformação social através da educacão. Porém, sem a escola pública, não
podíamos ir adiante, então resolvemos encampar algumas lutas locais em prol dessa escola e demos
o primeiro pontapé em 1990, no movimento concebido pela ATEMPE, falado antes. O Programa
de Rádio foi a maior ação que fortaleceu a ideia do PRECE como um movimento social, organizado
por um grupo de agentes estudantis que, cansados com a falta de apoio para a juventude se
desenvolver, resolveu trabalhar na conscientização de que devemos conhecer e defender os nossos
direitos de cidadão brasileiro.
A partir desse revisitar à nossa história de lutas sociais, achei adequado nomear essas
ações de “pedagogia engajada”. Esse termo denota a possibilidade de se trabalhar com projetos em
parceria com órgãos de representação comunitária. Trabalhar abordando temas(transversias) que
pudessem influenciar e minimizar os problemas sociais, de várias naturezas, percebidos no entorno
da escola, pela ação educativa os quias recaem na sociedade,.
Assim, com essas ações geramos um aprendizado que parte de uma prática social, a de
sair dos muros do que chamamos de escola. Em nosso caso, saímos da casa do estudante para a
rádio, a rua, a reunião da associação, a reunião da câmara municipal, etc. Dessa forma, essas
80
Diante desse fato que nos chocou no momento ocorrido pela arrogância e autoritarismo
de um gestor municipal despreparado de todas as formas para ocupar o cargo a ele dado pelo povo
desprovido da educação que transforma e liberta a pessoa do analfabetismo politicao. Em
Pentecoste isso ocorreu de forma grosseira, mas sabemos que essa prática, de forma mais sublimar,
também é comum em outras experiências nos órgãos de comunicação que servem ao agente de
poder político ou ao poder do capital. Esse tipo de órgão de comunicação é serviçal do poder de
81
mando que pratica o cerceamento de liberdade, praticada de forma banal e natural como se isso
fosse uma cultura aceitável, nesses rincões do Ceará interiorano.
Os anos passaram e o programa de rádio renasceu, protagonizado por novos
combatentes, os precistas, em março de 2005 até dezembro de 2010, na rádio Difusora Vale do
Curu. Depois de uma nova parada, retornou novamente, na FM 98.7 em 2011, indo até final de
2012. O programa foi um dos projetos de luta engajada, encabeçado por essas lideranças do PRECE.
Além desse projeto, os precistas realizaram diversos projetos na área de educação e
formação política. Nossos levantes trouxeram a ideia de participação na representação da
sociedade civil criada frente ao poder do governo municipal, intervindo na reivindicação por
melhorias da política pública educacional no município:
[...]. Desde os anos 70, os movimentos sociais que lutam pela democratização da sociedade
brasileira buscam o direito de intervir nas políticas públicas através da criação de
mecanismos de controle social. Controle social é uma forma de compartilhamento de
poder de decisão entre Estado e sociedade sobre as políticas, um instrumento e uma
expressão da democracia e da cidadania. Trata-se da capacidade que a sociedade tem de
intervir nas políticas públicas. Esta intervenção ocorre quando a sociedade interage com
o Estado na definição de prioridades e na elaboração dos planos de ação do município, do
estado ou do governo federal. [...]. (Pólis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria
em Políticas Sociais – nº 29 - Agosto/08 - http://www.polis.org.br/uploads/1058/1058.pdf
- 22/06/19).
A partir dessa visão de controle social foi que o programa radiofônico moveu a
participação dos estudantes e da comunidade nas discussões sobre várias temáticas caras à
realidade local, na forma dos estudos em grupo, ou por meio do programa de rádio.
Seu objetivo era garantir a participação e a compreensão da população de Pentecoste
em relação aos gastos públicos da gestão do município e aos investimentos das verbas destinadas
às principais áreas que consideramos importantes tais como educação, saúde, emprego e segurança.
Nossas ações procuravam zelar pela ética na política a partir de uma fiscalização da
gestão do poder executivo e do diálogo e observância da postura o poder legislativo que deveria
fiscalizar o executivo, representando, de fato, o povo para obter uma ampla transformação da forma
centralizadora de governar para outra mais participativa e com respeito ao patrimônio público.
Dentro desse tema, outras ações de combate na participação política ocorreram, como
por exemplo, o projeto chamado Observatório do Eleitor, que nas quintas-feiras participava das
reuniões da câmara de vereadores do município para depois levar as informações para os debates
no programa de rádio e para as reuniões do PRECE.
82
No início, foi difícil para o projeto deslanchar porque o grupo não tinha formação
radialista, mas os debates e a preocupação com a programação possibilitaram mais clareza sobre o
que seria ideal para o programa. Eles também participaram de formações na UFC, no Departamento
de Comunicação, de oficinas de rádio e conferências em Fortaleza para melhorar a interlocução
com o público.
Apesar das dificuldades de todo começo de projeto, o trabalho no rádio é excitante pelo
fato de interagirmos com a possibilidade de se ter uma ampla audiência, assim, o impacto na
comunicação de ideias é animador. O rádio continua sendo um veículo de comunicação bastante
utilizado, e mesmo após o advento da internet, ele abrange um raio amplo de comunicação dos
fatos diversos da vida social e cultural da sociedade em geral, não somente local, mas a nível mais
amplo. E em nosso caso, íamos nas ondas do rádio para fora das fronteiras do município. Jocélio
Simplício relata:
Não tenho dúvidas que é um bom trabalho, palestras com nomes renomados da
comunicação cearense, controle social e participação política fará uma grande diferença
na formação crítica de nossos jovens. Enfim, foram ações que deram bastante visibilidade
ao PRECE. Em 2011 fomos para FM 98,7, ficamos apenas 2 anos até terminar nossa
jornada na comunicação. Atualmente, estamos sem programa de rádio, esperando, quem
sabe, pessoas (comunicadores) que possam resgatar esse momento da história do
movimento PRECE na comunicação de Pentecoste. Participaram da equipe do programa
de rádio: Manoel Andrade, Edilson Costa, Francisco José (Shaycon), Nonato Furtado e
Jocélio Moraes, Tony Ramos, Viviane Matos e Orismar Barroso”. (INSTITUTO
CORAÇÃO DE ESTUDANTE, 2014).
84
E mesmo obtendo sucesso na educação, o nosso esforço sempre foi hercúleo para
obtermos tantos resultados até hoje. Os precistas não esperavam dos gestores públicos de então, o
desenvolvimento a contento, das políticas públicas de educação para a juventude popular da cidade
e do interior. Por isso, foi necessário que a massa mais crítica do local fizesse movimentos de luta
de rua, dentre outras estratégias para conscientizar e pressionar esse poder.
O movimento tinha um caráter suprapartidário e partia de uma questão legal, de
cobrança de aplicação da Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB), de que “a educação é um
direito de todos e dever do estado”, portanto necessária a todos e a todas, não podendo deixar
ninguém de fora, desse modo, cumpria a todos exigirmos que a educação não ficasse debaixo dos
interesses de qualquer político ou partido.
Na carta de compromisso (anexo C), são expostas as razões e princípios do movimento
em defesa da escola pública. A razão principal era de que a ausência de uma escola pública de
qualidade perpetua a desigualdade social que gera um abismo entre ricos e pobres, difícil de ser
superado. Nós, lideranças do PRECE, junto com estudantes das 13 EPCs criadas no período entre
2003 a 2007, realizamos e participamos de vários eventos como palestras, seminários e passeatas.
Promovemos uma passeata (Figura 22), saindo do Centro de Pesquisa, sede da EPC de
Pentecoste e seguindo na avenida principal, a José de Borba Vasconcelos, terminando em uma sede
organizada por nós que nomeamos de Comitê da Educação, onde projetávamos filmes e recebíamos
assinaturas de testemunhas e apoiadores (as) dessa causa pública. Nesse espaço, montamos uma
estrutura mínima de mesa, cadeiras, computador e água. Lá, ficava sempre um estudante precista
para receber as pessoas que queriam apoiar o movimento e distribuir panfletos educativos a respeito
de como votar consciente, sem a venda e compra de votos. No local, também eram distribuídos os
informativos do Tribunal Superior Eleitoral que orientavam as leis de regimento do pleito eleitoral.
No comitê, fazíamos reuniões de planejamento e avaliação das estratégias da liderança
precista que encabeçava o movimento. A carta construída pelo grupo deveria ser entregue ao
prefeito que fosse eleito, e no final dela, havia assinaturas colhidas dos pentecostenses que
entendiam a causa e se dispunham a apoiar o movimento.
Além da carta e outras atividades de menos repercussão, como entrevistas e reuniões,
organizamos o primeiro debate na história de Pentecoste, entre os candidatos à eleição municipal
de 2008. O debate foi transmitido ao vivo pelo nosso Programa de rádio, diretamente do auditório
do Centro de Pesquisas e sobre isso há um farto material gravado que poderá ser estudado com
86
mais detalhamento. Teve uma ampla audiência ao vivo e pelo rádio que se compunha das lideranças
de comunidades das EPC, das associações parceiras do PRECE e outras lideranças em geral para
engrossar as fileiras da luta pela valorização da Escola Pública.
Na figura, tem-se à esquerda, a passeata de abertura da campanha e à direita, o comitê
da educação.
fazíamos. Estive nos primórdios da primeira célula estudantil dos agentes fundadores e na
implementação do PRECE em outras comunidades – a criação das Escolas Populares.
De forma não tão direta, participei de diversos projetos realizados com a parceria da
escola, no âmbito da escolarização (com os públicos da educação infantil, fundamental e médio) e
em projetos de educação de Jovens e Adultos, tentando sempre ampliar os resultados positivos da
educação que transforma e liberta o jovem da exclusão social, tornando o mesmo cidadão, alguém
consciente dos direitos adquiridos e dos deveres a serem cumpridos. Por fim, a partir da minha
experiência no PRECE e dos documentos por nós guardados, como esta carta de compromisso e
inúmeras fotos tiradas, ao longo de nossa prática, foi que tive condições de abordar mais um pouco
da história educacional do PRECE.
Nos primeiros anos, o PACCE contava com cerca de 150 à 250 bolsistas, de todos
os cursos e campi da UFC os quais recebiam formação teórica sobre como estudar
cooperativamente, e praticavam esses conhecimentos nas células de estudo no método da
aprendizagem cooperativa, por eles organizadas. Essas atividades formativas e de interação
entre os discentes fomentavam a articulação e inserção dos universitários em uma rede de
aprendizagem e mútuo apoio, contribuindo para os objetivos do programa (PACCE, 2019).
Outra ação do PACCE foi a participação de bolsistas em projetos de Aprendizagem
Cooperativa que articulavam a universidade com a educação básica, firmada através da parceria
entre a UFC e a SEDUC. Várias ações promissoras foram sendo desenvolvidas nessa parceria como:
os projetos Eu Curto a Universidade, Letras Solidárias, Iniciação à Docência, Colônia de Férias,
Plantão tira-dúvidas, dentre outros. Percebi que nesses projetos havia o encontro e a troca solidária
de experiências entre os estudantes universitários e os estudantes secundaristas da escola pública,
criando um espaço de diálogo que rompe as barreiras e derrubam os muros erguidos entre o ensino
secundário público e o ensino superior.
Em 2011 a SEDUC, tomando conhecimento dos impactos positivos possibilitados pela
experiência da Aprendizagem Cooperativa utilizada pelo PRECE, resolveu estimular a sua
utilização na rede estadual de educação. Desde então, a Aprendizagem Cooperativa passou a estar
atrelada aos projetos e às ações da Coordenadoria de Protagonismo Estudantil vinculada a CODEA
(Coordenadoria da Escola e da Aprendizagem).
Nesse ano, a Coordenadoria de Protagonismo Estudantil sob a coordenação do
professor Manoel Andrade desenvolveu ações de formação de educadores e de estudantes
pertencentes à rede de educação estadual. Com os estudantes, o trabalho foi feito em parceria com
o PACCE/UFC através do Projeto Eu Curto a Universidade e da Colônia de Férias, onde os
discentes participaram de um Curso de Formação de Articuladores de Células Estudantis de
Aprendizagem Cooperativa e foram estimulados a buscarem o ingresso na universidade pública
através do estudo em grupo, onde se utilizaram dos elementos básicos da Aprendizagem
Cooperativa (EU CURTO A UNIVERSIDADE, 2014).
No mesmo ano de 2011, consubstanciados e inspirados na experiência do PRECE, a
SEDUC, juntamente com a UFC firmaram um convênio para implantação da metodologia da
Aprendizagem Cooperativa na Escola Estadual de Educação Profissional Alan Pinho Tabosa em
Pentecoste. A experiência foi inovadora sob três aspectos: por ser a primeira unidade escolar de
89
educação básica do país a ter uma universidade como co-gestora; por ser a primeira escola do Ceará,
quiçá do país, a utilizar as Células Estudantis de Aprendizagem Cooperativa em seu Projeto Político
Pedagógico e pelo fato da maioria dos componentes do corpo docente e núcleo gestor da escola ser
formado por profissionais do PRECE.
Como toda escola estadual de educação profissional, a Escola de Pentecoste funciona
integrando o ensino médio à cursos profissionalizantes, de maneira que seus estudantes
permanecem na escola em tempo integral. Devido ao fato de carregar os princípios do PRECE, a
escola tem se diferenciado das demais, por executar, além dos projetos do currículo oficial da
secretaria de educação, outros projetos específicos e inovadores. (EEEP ALAN PINHO TABOSA,
2014).
Em 2012, a professora Ana Maria Di Renzo, então Pró-Reitora de Graduação da
UNEMAT, assistiu uma apresentação do PRECE no encontro de Pró-Reitores de Universidades do
Norte e Nordeste Brasileiro e, encantada com a experiência, convidou o professor Manoel Andrade
do PRECE e do PACCE para ir ao Mato Grosso apresentar a experiência para estudantes e
professores de sua Universidade. Foi uma oportunidade para conhecermos uma nova realidade em
outro estado, e assim, colaborar com a qualidade do ensino universitário desse estado. Pude
participar dessa viagem e de outras que vieram, em que facilitei grupos e conheci a cultura local da
cidade de Cárceres, campi da UNEMAT, onde iniciamos o trabalho.
O fato da experiência do PRECE e do PACCE ter sido bem aceita por docentes,
discentes e gestores da UNEMAT motivou a Pró-Reitoria de Graduação a colaborar com a criação
de um programa semelhante ao PACCE. Alguns estudantes da UFC foram convidados a
participarem das ações formativas dos articuladores estudantis da UNEMAT e um novo programa,
com as mesmas características e princípios do PRECE se estabeleceu a partir do entusiasmo dos
estudantes, docentes e gestores da referida universidade.
Esse programa, denominado Programa de Formação de Células Cooperativas (FOCCO)
em 2014, contou com a participação de mais de 100 bolsistas que estavam vivenciando a
experiência de ensinar uns aos outros e aprender uns com os outros nos mais longínquos municípios
do Estado do Mato Grosso onde a UNEMAT tem seus campi organizados. (UNEMAT, 2014).
Em 2014, ocorreu a primeira experiência de formação em Aprendizagem Cooperativa,
com professores da rede pública estadual através do Curso de Formação de Facilitadores em
Aprendizagem Cooperativa feito com educadores, gestores escolares e universitários. Nos
90
encontros, a formação era facilitada de forma teórica e prática, enfatizando as principais estratégias
de como utilizar as Células de Aprendizagem Cooperativa nos diversos espaços de aprendizagem,
ou seja, dentro ou fora da sala de aula.
A partir do curso, as escolas agregaram aos seus respectivos Projetos Político-
Pedagógico, os princípios dessa metodologia. Essa experiência, merece um estudo mais
aprofundado a partir de materiais coletados nos 14 cursos realizados pela equipe de formação
preparada pelo professor Manoel Andrade e da qual fiz parte nesse ano, me responsabilizando pela
oficina de História de Vida.
Nesse novo contexto, em que o PRECE estava imerso, foi importante o encontro de
Manoel Andrade com Frank Viana Carvalho. Na procura que, costumeiramente, Manoel Andrade
fazia na internet sobre experiências em Aprendizagem Cooperativa no Brasil, ele encontrou Frank,
um professor com experiência em formação de professores nessa metodologia, no Sudeste do Brasil,
na educação formal.
Frank Viana é hoje um companheiro para desbravar os caminhos futuros da
implantação e sistematização dessa metodologia no Brasil. Ele publicou um livro intitulado
Trabalho em equipe, Aprendizagem Cooperativa e Pedagogia da cooperação (2015) que sintetiza
sua experiência na formação de professores, baseando-se nesse metodologia, em várias regiões do
Brasil (sudeste, norte, centro-oeste, etc.).
Enquanto Carvalho trabalhava a formação de professores nesses espaços, Manoel
Andrade e todos nós, integrantes do PRECE, realizávamos nossas ações com os estudantes de
comunidades rurais e urbanas do Ceará.
É interessante destacar que essas duas experiências se diferem, pela primeira trabalhar
com formação de docentes desde o seu início, enquanto que a segunda se notabilizou por atuar
durante 25 anos, na formação discente e, somente a partir de 2009, por meio das parcerias públicas
da UFC e SEDUC foi que o PRECE se iniciou na formação docente. A experiência de Frank
Carvalho aconteceu, principalmente, em ambientes formais de ensino, enquanto o PRECE atuou
por mais de 15 anos em contextos não formais. Ou seja, foi a partir de 2009, quando o Programa
teve início na UFC, nomeado de PACCE dentro da COFAC, passou a atuar nos dois campos,
discente e docente.
De acordo com a minha experiência no PRECE, juntamente à estudos teóricos e
discussões nas aulas do curso de doutorado, percebi que existem diversas pesquisas e práticas
91
realizadas no escopo da educação, focando metodologias ativas que perpassam pela formação de
professores no Brasil, assim, entendi ser importante a busca para conhecermos o maior número
possível desses trabalhos que enfatizam um processo mais democrático de ensino.
Entendo que a Aprendizagem Cooperativa é uma estratégia importante para nossa
realidade de desigualdade social, ainda muito forte, e a escola pública, de modo amplo, ainda tem
a condição de ser um instrumento poderoso na inclusão social das classes populares, tendo em vista
a promoção de vida digna a esse grande público do Brasil.
De acordo com Andrade Neto (2018), O PRECE nos últimos dois anos, ganhou um
novo significado por atuar na maior parte de suas ações pedagógicas em ambiente
institucionalizado. Sua sigla passou a significar Programa de Estímulo à Cooperação na Escola,
devido seu foco ser mais voltado para a escola pública, algo desde 2008, muito discutido e almejado
por todos nós precistas.
Porém, a experiência ganhou novo significado em seus objetivos, mas os seus
princípios e valores continuam os mesmos. Nesse novo momento, ele tem sido gerenciado pela
Coordenadoria de Articulação entre a Universidade e a Escola Básica (COART). Nessa nova
atuação, sob a gestão do professor Manoel Andrade e a anuência da UFC, SEDUC e SEFOR, na
prática, o PRECE desenvolve diversos projetos vinculados a essas instituições. Toda a prática
desses novos projetos é fundamentada nos princípios da aprendizagem em cooperação e
solidariedade. (ANDRADE NETO, 2018).
Os universitários de diversos cursos de graduação da UFC e os professores concursados
e contratados, vindos da experiência da nova versão do PRECE realizam as atividades a partir de
projetos pedagógicos e da metodologia da Aprendizagem Cooperativa com o objetivo de melhorar
a qualidade do ensino e da aprendizagem na escola, ampliando os seus resultados. (ibidem). Para
que tudo isso acontecesse, muito esforço e dedicação tem sido investido e muitos resultados já
foram alcançados, mas mais uma vez, enfatizo a necessidade de uma pesquisa que analise, de
maneira aprofundada toda essa nova história precista.
92
Paulo Freire (2011) fala de um tempo e lugar bastante conturbado, década de 1960, no
exílio, longe de sua pátria, quando nosso país passava por um duro golpe militar. O autoritarismo
cerceava a liberdade das mentes brilhantes de nosso país e uma delas era a de Freire. Ele fala de
um lugar onde tudo era incerto, movediço e mais para desfechos negativos do que para uma aura
positiva, por isso usa o termo “dramaticidade”. No trecho, ele desafia o homem e a mulher a olhar
para si e se ver como um problema a ser analisado e refletido, ou seja, a exercer a tomada de
consciência de que é um ser humanizado e não meramente um objeto na condição de oprimido.
Este agente ontológico precisa entender qual o seu papel no mundo. Conclama esse homem e
mulher a enxergar que de si, sabe pouco e que, portanto, precisa saber mais para poder ser mais e
nessa autorreflexão se perguntar e se responder de um modo infinito na incompletude desse ser.
Há um sentimento em nós herdado de um processo de colonização pelo qual passamos,
que nos deixou marcas profundas até hoje percebidas. Assim, não valorizamos nossa história e só
agora temos dado conta do valor que há no percurso em busca do “ser mais”, termo cunhado por
Freire que significa a necessidade de superação de uma situação opressora através do
reconhecimento crítico e de uma ação transformadora que alimente a busca desse ser mais, de uma
transformação de vida indigna para outra mais digna (FREIRE, 2011, p. 46).
Fortalecida pelas palavras de Freire e de tantos outros pensadores que destacam a
importância do olhar para dentro de nós e nos perceber no outro e na vida social, é que inicio essa
aventura à procura de mim e do “ser mais”.
Nasci no meio da vegetação cinzenta do sertão cearense, numa casa de taipa. Sou filha
de Antônio Rodrigues, um vaqueiro, agricultor e pescador e de Luiza Feitosa, dona de casa. Os
dois tinham poucos estudos, mas, apesar dessa condição, sobrava muito amor, e esse amor me
empurrou para frente. Só aprendi a ler aos dez anos de idade, mas desde que abri meus olhos para
ler o mundo, tenho buscado vários saberes.
O nome Ana significa “cheia de graça” e Maria “mulher que ocupa o primeiro lugar”.
Este é o meu nome. Quando me entendi por gente, eu não gostava do meu nome, mas se me
perguntassem o porquê, eu não saberia responder. Só sei que ficava indagando a mim mesma: “por
que não gosto do meu nome?!”. Certa vez, no início da minha adolescência, perguntei a minha mãe
por que ela havia me colocado esse nome, ela me respondeu: “minha filha, seu nome é muito
93
importante! Pois é o nome de duas santas, mãe e filha, Santa Ana, mãe de Maria Santíssima, e essa,
a mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Naquele dia, senti certo alumbramento pela satisfação e
prontidão com que minha mãe, cheia de certeza, explicava o motivo pelo qual havia me nomeado
assim. Com essa explicação, ela tornava o meu nome valoroso e produzia em mim um momento
revelador, cercado pela natureza da fé. Depois desse diálogo, fiquei a pensar, e, muito crente, decidi:
“preciso gostar do meu nome, pois ele é importante”. Hoje, acho o meu nome muito bonito e gosto
dele, pois representa a mim, como sou.
Na figura 23, apresento mamãe, com seu sorriso costumeiro, amoroso, mas meio sério,
estava sempre focada em ver o que não estava certo aos seus olhos para corrigir. Exercia sobre
mim, na adolescência e tenra juventude, um controle quase exagerado; sempre dizia uma frase que
representa bem essa forma de se relacionar comigo: “você é o rabo da minha saia”, ou seja, alguém
que não podia despregar dela e que para onde ela fosse, eu estaria junto, e quanto a isso, ela não
saía de casa sem mim, sempre dizia que não gostava de andar sozinha; principalmente por isso, me
influenciou tanto a ir para a igreja e a me envolver na missão cristã e ter fé em Deus, algo que ficará
para o resto de minha vida.
Dessa forma agia talvez pelo fato de eu ser a filha que substituiu o seu caçula que
morreu com 01 ano e alguns meses de idade pelas doenças da infância, na época da precariedade
quase absoluta do sistema pública de saúde, na década de 197,0 em Pentecoste. Depois desse triste
episódio na história de vida de minha mãe, passei a ser a filha caçula da família. Por tudo que ela
havia passado em ter perdido três filhos bebês, mamãe tinha muito medo de que eu morresse
também.
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grande por abrigar uma família de oito filhos, mais o papai e a mamãe. Essa casa foi feita por meu
pai que era carpinteiro rústico, além de outros ofícios que a vida foi exigindo dele. Ele havia feito
as nossas casas anteriores, talvez uma ou duas. Homem moreno bronzeado, cabelos pretos,
parecido ao nativo de nossas terras, forte e trabalhador, nascido em Itapipoca, nome de origem
indígena, distante 100 quilômetros de Fortaleza; ele me disse que sua bisavó era índia, então o seu
porte físico já traz essa informação de sua ancestralidade. Viveu no Sítio dos pais, próximo da Barra
do Rio Ceará, em Fortaleza, no tempo de sua adolescência. Saiu de sua cidade natal quando
começava a ganhar a vida, vendendo maçã na praça da lagoinha e verduras e bombons no mercado
São Sebastião, na década de 1940.
Logo conheceria seu grande amor, quando se mudaria para Pentecoste, após a
adolescência, com intuito de ajudar seu pai, João Rodrigues Teixeira, na fazenda dos Carvalhos.
Ele, ao conhecer Luiza, minha mãe, nascida em Pentecoste, branca, loira, de olhos verdes, bonita
aos olhos de meu pai, que caiu de amores por ela. Namoraram poucos meses, logo casaram e foram
morar na fazenda Belém, em um pequeno torrão, próximo à natureza do sertão de duas estações: a
de sol e a chuvosa, quando não éramos surpreendidos pela seca avassaladora da verdura, das gentes
e dos animais como nos mostraram genialmente, Raquel de Queiroz e Graciliano Ramos, em O
Quinze e Vidas Secas, respectivamente.
A (figura 24) é representativa para mim, pois o sonho de se graduar simbolizava que, a
partir desse momento, eu poderia ajudar mais, financeiramente, ao papai e mamãe.
Consequentemente, consegui melhorar as instalações físicas de sua casa e ajudá-los a cuidar da
saúde deles, acompanhando junto com os meus irmãos e irmã que também, como eu, se importam
com eles.
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Voltando a minha infância, na estação chuvosa, vivíamos a tomar banho no açude, nas
grotas e riachos, a ver a tirada de leite no curral, a apartação dos bezerros, a ferra do gado, a chegada
e estadia dos ciganos que ficavam semanas debaixo do pau branco em frente a nossa casa, e nós,
irmãos grandes e pequenos, a ouvir a nossa mãe a nos orientar a não ir para junto deles, pois eles
poderiam dar maus presságios na leitura de nossa mão ou poderiam nos levar embora com eles e
nem nós e nem ela nunca mais nos veríamos. Em outros dias, no fim da tarde, quando o sol batia
naquele pau branco, agora desabitado pela gente andarilha, aquela paisagem tinha outra cor naquele
momento tão desolado, e nossa casa se perdia na vastidão do sertão, onde as casas são tão distantes
umas das outras.
Eu, ainda pequena, às vezes ficava a olhar de mão em pala para ver se a Júlia e suas
bonecas de pano “apontavam” no caminho que dava em nosso terreiro e quando isso deixava de
ser uma simples miragem, eu morria de felicidades a brincar o tempo inteiro com minhas bonecas
de pano porque na ausência delas, eu usava sabugo de milho. Enfim, ali era o meu paraíso infantil,
perdido pela ação do tempo em nossas vidas, que nos jogam para frente, para o futuro, para
vivermos novas aventuras.
97
6
Nome fictício
99
duas falavam sobre os porquês de, no fim do primeiro ano, eu ainda não saber ler, o resumo da
conversa foi que a professora pôs a culpa em mim.
Minha mãe pediu a nossa vizinha, a grande amiga da família, Rosa Araújo (Rosinha),
que era professora particular, para abrir-me os olhos para o mundo fascinante da leitura. Porém,
naquele momento, eu estava mais confusa do que antes quanto à importância de ser alfabetizada
porque eu havia sofrido uma violência psicológica, uma ameaça sob os últimos anos do castigo da
palmatória em minha região e isso me deixou sequelas, provavelmente, pelo resto de minha vida,
operadas, talvez, de modo inconsciente. Pressionada, sufocada! “Ufa!” eu não aprendi a ler
naqueles nove anos de idade, mas, somente aos dez anos pelo amor da professora Rosinha, minha
querida vizinha que no ano de 1981, quando, numa mesa grande em sua sala, eu ouvia suas palavras
mágicas e meigas e aprendia a juntar as sílabas na carta de ABC (figura 26) e foi assim que abri
meus olhos para a leitura do mundo como diz Paulo Freire.
Fonte: Internet.
100
Se não fosse a redenção do amor de Rosinha não sei se eu teria persistido. Com sua
presença carinhosa e meiga abria-me ao diálogo que ela travava comigo, tratando-me como sua
amiga do coração, ela me fazia entender que surgia uma nova fase na minha vida quando eu teria
que assumir algumas responsabilidades até então inexistentes em minha rotina de pré-adolescente.
Em apenas três meses meus olhos receberam a luz do saber, outrora a mim negado pela
palmatória, envolta pela arrogância e autoritarismo de um sistema opressor e por alguém, fruto
desse sistema, sem formação humana profissional nenhuma e imersa na cegueira da sua realidade.
Assim como o mito do Prometeu que compartilhou o fogo do conhecimento negado pelos Deuses
aos humanos, Rosinha foi o meu Prometeu e essa analogia se conformou nela porque ela sempre
foi uma pessoa muito cooperativa, caridosa, amável, voluntariosa na comunidade, na sua
vizinhança, mas sempre muito sofredora, dentro de uma realidade de pobreza e de ignorância que
a cercava por vários lados de sua vida, na época.
Essa situação de Rosinha era imponente devido ela, mesmo amor pelo que fazia por
quase nada de dinheiro, não ter as condições para se desenvolver; era impossível, na época, em
suas condições, conseguir uma formação de professora, um curso superior que lhe oportunizasse
um emprego melhor.
Essa situação só veio mudar em Pentecoste mediante a criação do PRECE, em 1994;
com o programa, felizmente, seu filho Antonio Erasmo teve a oportunidade que Rosinha não teve,
o de realizar um curso superior. Na figura 27, Rosinha está na idade de quando me alfabetizou;
uma mãe, esposa e professora bem jovem e bonita. Hoje guardo gratidão pelo que ela me deu: o
melhor presente da vida de uma pessoa – a leitura. Ela é uma amiga que permanecerá sempre no
meu coração.
101
Acerca desses dois episódios narrados, viajando pelo túnel do tempo da minha memória,
até bem pouco tempo, eu não tinha consciência da importância desses fatos e personagens na minha
vida presente. Recentemente, ao contar minha história de vida numa formação de professores,
passei por uma epifania, uma descoberta de mim mesmo e do valor das relações empreendidas no
decorrer da minha vida. A partir desse revisitar ao meu passado, tomo atitudes mais assertivas,
socialmente e emocionalmente, em relação a valorização de minha alfabetizadora na minha história.
Rosinha é uma figura muito valiosa para mim, atualmente, procuro visitá-la mais que antes.
Não ter aprendido a ler com nove anos por causa do terror da palmatória, mas apenas com
dez anos, pela doçura de Rosinha, me faz uma vencedora por ter conquistado vários êxitos na minha
vida estudantil, profissional e pessoal. Isso tudo são questões lembradas por vários estudiosos da
pesquisa autobiográfica e uma delas, Isabel López Górriz, diz que:
102
Desse modo, vejo que tudo que configurou esse momento de minha vida veio à tona e
surgiu em mim, um emaranhado de coisas mal resolvidas que, expostas a meu autojulgamento,
pareceram superadas, até que um dia, elas resolveram me revisitar. Isso tudo foi se conformando
em um novo momento, um tempo mais próximo do presente e fui tomando consciência de tudo
que constitui o meu ser e fazer no mundo. Essa autoanálise funciona como uma espécie de balanço
da própria vida e requer um processo de retorno, permanência e mudança que culmina no desejo
de ser e fazer o melhor para mim e para o mundo. Na mesma tônica, Paulo Freire afirma que:
mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem a si
mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e
se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si
uma das razões desta procura. Ao se instalarem na quase, senão trágica descoberta do seu
pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas
respostas os levam a novas perguntas. (FREIRE, 2011, p.39).
Essa fala de Freire vem me certificar do fato de que pouco olhamos para nós mesmos
no mundo, nas nossas andanças e no perscrutar acerca de nós. Passamos nossa vida sem dar conta
dos nossos sonhos e feitos. Ele fala do drama humano de cada um, mas principalmente, daquele
que está à margem da sociedade. Destaca a possibilidade de um cair em si, entendendo que somos
indivíduos históricos, com uma razão de ser no mundo e importantes na construção de uma nova
sociedade mais justa e equânime. Nessa busca de nós, indagamos e respondemos esse processo que
nos conduz a novas inquirições, mas assim seguimos no curso desta vida terrena, nunca estamos
prontos, vivemos nesse constante devir.
Nessa caminhada, desde muito jovem, aos treze anos, convivi com processos de ensino
e aprendizagem não formais nos grupos de jovens da Igreja Católica. Essa convivência se deu na
cidade onde nasci, Pentecoste, em companhia de minha mãe e meu irmão, ambos militantes da
igreja junto com padres, freiras e outros líderes da época.
Todo esse cenário me serviu de estímulo para que eu fosse impulsionada a escolher a
área do ensino e a profissão docente. O exemplo de minha família foi o rumo inicial para que eu
assumisse a função de professora de religião, catequista de turmas para a primeira comunhão, para
103
a crisma, e assim, foram surgindo outras funções em que eu continuaria nesse processo de educar-
me e formar-me.
Lani-Bayle (2008) discute acerca de conceitos importantes que devemos saber a fim de
que compreendamos antes de construirmos nossa história de vida. A autora cria o termo
transgeracional, o qual quer dizer que nossa história de vida veio se fazendo antes de nós
existirmos, e esse fenômeno é responsável pelo nosso “pré-texto”; assim, a nós é repassado, de
nossa geração anterior, alguns legados culturais, sociais ou econômico, transmitidos de geração em
geração. Ela diz que “esse interior não é inerte, ele se fez sem nós, mas ele nunca acaba de ter
coisas a nos dizer, coisas que contribuem para nossa constituição” (LANI-BAYLE, 2008, p.305).
Isso me fala que ao contar minha história de vida não estou pensando somente na esfera do possível,
mas, igualmente, abrindo-me à possibilidade do inesperado, ou seja, modos e práticas herdadas que
retornam em uma nova roupagem. Isso gera a existência de um eu construído também por heranças
culturais de meus ancestrais. E me deixa alterar, me transformar em um processo histórico, social
e emocional na grandeza completa de meu ser, num jogo empático, inserindo-me, portanto, em
uma dimensão de anterioridade, de contemporaneidade e de posterioridade.
Lani-Bayle apresenta ainda outro conceito, o intergeracional; ela afirma tratar-se de
um diálogo entre uma geração antiga e uma geração nova, e nisso, há essa inter-relação de modos
de ser, valores, cultura das gerações passadas para as de hoje, e nessa comunicação, a geração atual
representa a anterior dando àquela vida novamente por meio da recriação desses legados. A partir
desse fenômeno, percebo que me reconecto com meus ancestrais a partir dessa reatualização do
legado genealógico da religiosidade, do engajamento social e, do ensino, ambos tão definidores de
minha formação profissional. Apresento a argumentação da autora:
[...]. É assim que se manifesta o intergeracional pela via da narrativa e da relação com o
presente, esse contato que se estabelece entre as gerações está para além do tempo. Ele
inaugura nosso desenvolvimento pessoal e nossa própria narrativa. É através dele que
dominamos o mundo [...], que entramos na cultura e que se inicia nossa relação com o
saber. [...]. Via o processo de escrita conectado à vida, esboçam-se nesse sentido, várias
perspectivas no modo de fazer dessa vida, que nos ultrapassa no tempo, do começo ao fim,
uma história que será um pouco a nossa, ou a dos nossos... [...]. Recolhendo seixos e cinzas,
deixadas pelos antepassados – face aparente da transmissão-, e duplicando esse trabalho
por um efeito de eco, que por si só pode dar novamente carne ao esqueleto, incompleto,
exumado, graças a alguns vestígios restantes, é possível realizar, pela escrita, o que chamei
de “parto ao revesso”, ou seja, dar à luz às pessoas das quais descendemos. (LANI-BAYLE,
2008, p.306).
104
Vejo em minha história de vida um pouco da história de minha mãe que me visita, e,
nessa ideia do parto reverso é como se ela nascesse de mim, hoje. Nesta autoanálise, confundo-me
às vezes com minha mãe e esses modos de ser retornam de uma nova forma, como uma espécie de
ciclo da vida genealógica intergeracional que se reatualiza a cada tempo. Parece uma marca
genética transmitida por minha mãe e que agora, ao me construir, interconecto-me com ela em um
diálogo que não se acaba. Dentro da perspectiva trans e intergeracional me narro não esquecendo
minhas origens nesse percurso formativo, hoje refletido e me alimento para perseguir novas
conquistas na vida em todas as dimensões da existência humana das quais entrarei em contato nessa
jornada que também me lança para o futuro.
Retomando a minha narrativa de vida após o marcante aprendizado da leitura, voltei
para a escola José de Anchieta e Silva, agora de olhos abertos, lendo os livros e a vida. Minha
autoestima estava bem mais elevada pelo amor da família e de minha alfabetizadora. Fiz amigos,
ganhei o amor de todas as novas professoras e professores que se seguiriam em minha trajetória de
estudante no ensino básico; e vi como se diferenciavam da Tonete Nascimento.
Naqueles primeiros quatro anos na escola José de Anchieta e Silva fiz da 1ª à 4ª série
e, naquele período, algumas professoras me marcaram. O amor e a atenção delas por mim, todos e
todas percebiam, e isso causava a inveja de colegas de sala, ocasionando certos problemas e um
deles foi o fato de eu ter sofrido bullying por uma garota que me apelidava e todo dia ameaçava me
bater na saída da escola. Com isso, eu sofria o medo de apanhar porque eu era uma garota de
natureza pacata e pacífica. Essa situação permanecia por semanas e eu, a cada fim de aula, ficava
horas na escola para que ela e seu grupo fossem embora, e somente quando eu tinha certeza de que
a ameaçadora havia partido, era que eu ia para casa, mas sempre com medo, a olhar se ela não
estaria se aproximando de mim. Essa menina era grosseira, deveria sofrer de algum transtorno
psicológico. Assim, consegui compartilhar a minha angústia com a minha mãe e ela então falou
com a minha professora e a mesma mediou esse conflito entre nós. Somente depois da intervenção
da minha professora foi que o problema foi resolvido, mas as marcas permaneceram por muitos
anos em minha vida.
Quando concluí as séries iniciais, era preciso estudar em outra escola, agora no centro
da cidade de Pentecoste, na década de 1980. Para quem mora no Sertão, o maior desafio diário são
as distâncias. Assim, eu teria que andar, diariamente, mais de um quilômetro a pé, pois meus pais
não tinham transporte próprio, e nem havia público na época. Em 1985, fui para minha segunda
105
escola que se chamava Escola de Ensino Fundamental Francisco Sá, ainda bastante precária de
professores e recursos didáticos e tinha como abordagem de ensino o sistema TV Educativa. Lá eu
cursei a 5ª e a 6ª séries. Nesse mesmo tempo, em meus 15 anos, pela necessidade financeira da
minha família, a qual não podia me dar nem mesmo produtos de higiene pessoal, roupas e calçados,
comecei a vender perfumaria e maquiagens em vários catálogos como Avon, Daiana, Christian
Gray, Hermes, Mappin Postal, Blumenau etc.
Por outro lado, eu, na minha inquietude e busca por algo novo, acompanhava meu
irmão Israel nos encontros dos grupos de Jovens no Patronato Nossa Senhora da Conceição da
Igreja Católica. Nessa mesma época, eu participava ainda dos desfiles cívicos de Sete de Setembro
promovidos na referida escola. Em um desses desfiles, fui escolhida rainha da escola (figura 28) e
esses desfiles cívicos eram uma atividade muito importante a qual me dava alegria e divertimento.
106
Ao concluir a 6ª série, eu quis mudar de escola, pois tinha sido muito difícil estudar
pelo sistema TV. Eu passava de ano, mas com a ajuda dos professores que solicitavam muitos
trabalhos de recuperação de notas. Assim, pensava firmemente em realizar o meu sonho de estudar
na Escola João XXIII, considerada como uma escola de ensino melhor, tido no município como
particular. Como eu não tinha patrocínio político, meu irmão Francisco Feitosa, comerciante no
meu bairro, se disponibilizou a pagar a minha mensalidade nessa escola e, assim, eu dei um grande
salto em estímulo e mais estudo. Nessa escola, eu cursei da 7ª série ao 1ª ano básico. Ao término
107
do ensino fundamental, tive a minha festa de término de curso e foi muito bom poder concluir uma
etapa de estudo que perpassou por tantas lutas.
Quando fui estudar no João XXIII, eu já não ia mais a pé porque eu tinha dois amigos
que estudavam na mesma escola e um deles me levava, diariamente, um quilômetro de bicicleta.
Após a festa da 8ª série, (figura 29) ocorreu um hiato na minha vida escolar e eu perdi um ano dos
meus estudos, pois não continuei o 1º ano básico no ano seguinte, mas voltaria somente depois do
meu retorno do Pará, sobre isso falarei mais à frente.
Nessa mesma época, fui influenciada a participar ativamente das pastorais de missão
da Igreja Católica, primeiro por meu irmão Israel que frequentava assiduamente a pastoral de
jovens e, segundo, por minha mãe que participava da organização Católica Legião de Maria e tinha
a missão de dar a hóstia consagrada aos idosos e doentes, pessoas que não podiam ir até a igreja.
108
Eu ia com ela visitar essas pessoas. Com esses estímulos, acabei desenvolvendo o que hoje
considero um excelente trabalho comunitário com adolescentes via Igreja, na capela de São Pedro
que eu havia ajudado a construir, conjuntamente ao povo, promovendo eventos para conseguir
recursos para a construção. Esse trabalho era feito por mim, pela dona Alvina e por outras amigas,
junto com uma figura central, um amigo já de idade avançada, o Senhor Antonio da Mata, já
falecido. Eu o considerava um grande amigo desse tempo; eu sempre gostava de conversar com ele
à tardinha em sua calçada e isso fortalecia a nossa amizade e parceria nos trabalhos da igreja, na
comunidade.
Eu realizava diversas atividades na militância católica, mais ligada às Comunidades
Eclesiais de Base (CEB). Esses trabalhos, aparentemente simples, demandavam quase toda a minha
vida na época: tinham a preparação para as festas do padroeiro da capela (São Pedro); o meu
trabalho de catequista e, posteriormente, de coordenadora da catequese no bairro; de professora de
Bíblia da pastoral de crianças e adolescentes; de coordenadora de liturgia da missa; de auxiliadora
dos missionários estrangeiros que realizavam as Santas Missões em Pentecoste; de ministrante da
campanha da fraternidade realizada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),
secretária adjunta do Padre Estêvão, que tinha vindo da Hungria para ser vigário da paróquia de
Pentecoste. Na época, fui secretária auxiliar, juntamente à minha amiga Antonia Viana, a secretária
do vigário.
Eu e Antonia, viajávamos aos fins de semana para várias comunidades rurais de
Pentecoste com Padre Estêvão, organizando a liturgia das missas e falando com pessoas sobre suas
necessidades quanto aos sacramentos conferidos pelo padre.
Participávamos da vida social dessa gente, de forma ativa, em festas de casamentos,
batizados e todos regados por almoços regionais especiais em mesas ao ar livre, dentre outras
experiências como a de cantora dos hinos da missa, etc. Essa foi uma fase muito importante para a
minha formação intelectual e humana, devido à interação com pessoas de diferentes mentalidades,
desde gente muito simples, do meu berço de nascimento, como minha família, até pessoas mais
estudadas ou experientes como professores, líderes comunitários, padres e freiras brasileiros(as) e
estrangeiro(as) com os quais convivi e troquei correspondências7.
Dessas figuras do trabalho na Igreja, as que mais me marcaram foram a professora e
minha madrinha de crisma Valdelice Teixeira, a professora e grande amiga Alvina Gomes, a irmã
7
Carta de Padre Paulo - Anexo D
109
Paulina Elízia, o Padre Estêvão e o irlandês Padre Paulo com o qual me correspondi por algum
tempo. A (figura 30) representa um momento importante na vida de um católico (a) praticante da
doutrina que é o sacramento da 1ª comunhão.
O padre Paulo foi alguém que viu em mim um futuro, ainda muito jovem, mas eu já
era muito integrada no trabalho social da comunidade pela via da igreja que felizmente, era o que
existia de apoio para quem tinha missão social.
Eu era para ele uma colaboradora no projeto das Santas missões na comunidade São
Pedro, era a ponte entre ele e a comunidade local. Ele via em mim uma jovem missionária, ele
sentia que o meu serviço era feito com amor e alegria. Essa foi uma das melhores experiências da
minha vida. Tudo o que eu fazia para acolher bem o padre Paulo (figura 31) na comunidade, eu
110
fazia. Eu agendava as visitas dele às famílias do bairro; demarcava em qual casa ele almoçaria e
jantaria; escalava pessoas voluntárias para cuidar da roupa dele; eu saia com ele para fazer as visitas
e o apresentava para as pessoas que ele conversaria e ouviria seus problemas; dentre outras coisas.
Esse acompanhamento que eu me dispunha a fazer, no período das santas missões, o
alegrava muito e ele externava a mim, uma gratidão enorme; expressava sempre um obrigado e um
largo sorriso em seu rosto e isso me passava muita paz, amor e o sentimento de que eu era
importante para alguém.
Agora eu trabalhava na escola e na igreja junto com o Senhor Antônio da Mata e com
dona Alvina Gomes. Juntos, realizávamos muitas ações na escola e na capela. A minha amizade
com Seu Antônio continuou até o fim da vida do velho que eu gostava muito e, gostar dele,
significava gostar de todos da família como, por exemplo, de sua meiga esposa, a Dona Jomária,
que mora no meu coração até hoje. Esta ainda vive, mesmo sem memória, destruída por um
Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Eu e essa família sempre trabalhávamos juntos em várias ações da Igreja. Dentre essas
ações destaco algumas que marcaram a minha vida: a mais importante delas foi o trabalho com o
grupo da PAC. Com esse grupo aprendi muitas coisas e procurei ensinar outras que eu acreditava
serem importantes para eles. Mas, tudo eu fazia por prazer, o processo de constituição do habitus
docente ainda não era tão claro na minha cabeça. Parecia que era um mundo encantado e eu, até ali
não complicava nada, era muito mais criativa do que hoje. Ainda não tinha nem mesmo o ensino
médio. Não sabia o que era uma universidade. Vivia naquele micromundo interiorano, sem saber
do resto da terra.
Com esse engajamento na igreja, recebi de dona Alvina, um convite para substituí-la
em suas aulas do ensino fundamental na Escola de Ensino Fundamental e Médio Valdemar de
Alcântara, com isso, comecei a ensinar, oficialmente, na escola formal com 17 anos.
Depois da festa da 8ª série, eu pensava que continuaria meus estudos do ensino médio
naquele próximo ano, porém, em 1989, com meus 18 anos, minha família resolveu ir embora para
o Pará, onde meu tio materno João Batista nos acolheria por um tempo em sua casa no meio de um
pimental, próximo da “juquira” como era chamado esse trecho da floresta densa com seus igarapés
e pequenos macacos a pularem de árvore em árvore, na região próxima à cidade de Capanema,
distante 160 quilômetros da capital, Belém.
Foi difícil a hora da despedida dos meus amigos e integrantes do grupo da PAC. Eles
fizeram uma despedida carinhosa. Os amigos do grupo de jovens da igreja fizeram uma serenata
com músicas de nossa roda e outra que me fizeram chorar: “Já está chegando a hora de ir, viemos
aqui para dizer Adeus...”. No Pará, não foi fácil para minha família que agora se compunha de
papai, mamãe, meu irmão Tobias Feitosa e sua primeira esposa, Lúcia de Sousa, sua filha Eveline
Teixeira e eu. Minha irmã ficou no Ceará por causa de seu emprego, meus outros irmãos migraram
para o estado de Rondônia à procura de melhores condições de vida. Nenhum de nós se adaptou à
realidade paraense, com a falta de perspectiva de trabalho para os homens fora da agricultura, a
112
qual só renderia mais recursos a longo prazo, caso se fizesse uma plantação de pimenta ou de
mandioca, que eram as principais culturas da região.
Só havia uma forma de ganhar dinheiro semanalmente para, pelo menos sobreviver,
era o trabalho de diarista nas plantações de pequenos proprietários, com condições um pouco
melhor que a nossa realidade econômica. Vendo a necessidade de minha família, eu tentava não
ficar parada, e, certa vez, chamei a minha prima para trabalhar comigo como diarista tirando a
mandioca “puba” de dentro de um buraco cheio de água, próximo do Igarapé, essa era a forma de
preparar a mandioca para fazer a farinha d’água. Como ela ficava vários dias dentro da água, tinha
um odor ruim e deixava as mãos com odor desagradável por alguns dias.
Era um trabalho mal visto pelos jovens da localidade. Mas eu passei um dia fazendo
isso para ganhar algum dinheiro e ajudar na alimentação da minha família. Lá eu fiquei sem estudar,
porque só havia escola de ensino médio distante oito quilômetros do espaço rural onde eu morava.
Então como permanecemos sete meses lá, perdi um ano de estudo.
Sobre entretenimento, naquele local desolado, a única diversão que eu tinha na semana
era assistir à novela, à noite, na casa do vizinho e para isso eu andava um quilômetro a pé com
minhas primas que tinham a mesma idade que eu, 18 anos. No fim de semana, nosso lazer era
acompanhar o jogo de futebol no campo do meu tio.
Depois de vivermos três meses, praticamente às custas do tio João Batista, pois meu
pai ainda não tinha se estabelecido, demoraria para que isso acontecesse; e assim, meu pai somente
ajudava ao tio João em seus trabalhos na agricultura, vivendo com alguns alimentos comprados
com o dinheiro de nosso parco patrimônio, vendido a baixíssimo custo.
Lá, dormíamos em redes próximas umas das outras, tirando toda a privacidade da
família, e isso nos causava certo constrangimento, por isso meu pai construiu um barracão, sem
cômodos, para recomeçar a nossa vida naquele espaço longe de tudo que se pensa ser a civilização.
Essa construção era dividida ao meio, de um lado ficava meu irmão Tobias Feitosa e sua família –
o qual depois que casou sempre morou mais de uma década conosco – e do outro lado, ficávamos
eu e meus pais.
O clima não nos agradava e somado ao fato daquela casa não ter compartimentos, à
noite sofríamos muito frio e de dia muito calor quando o sol batia no telhado de amianto.
Diariamente, depois do meio dia, do calor intenso, caía uma forte chuva e quando ela cessava,
vinham os mosquitos que se alimentavam bastante do meu sangue. Minhas pernas não tinham um
113
lugar sem feridas, em consequência do processo alérgico que as picadas dos insetos ocasionavam.
Para nós cearenses, acostumados com um clima mais estável, isso era um horror. Toda tarde eu
vestia uma calça comprida para me proteger das carapanãs.
Como eu gostava de vendas, minha amiga Zulmira Nunes, advogada e costureira de
lycra me ofereceu uma sacola de roupas de praia para demonstração. Eu teria que demonstrar em
lojas da cidade de Capanema e/ou outras e enviar para ela os pedidos das lojas no modo atacado,
receber o produto e entregar. Porém, como disse, a distância de Capanema, onde havia muitas lojas,
desfavoreceu a continuidade desse empreendimento.
Após dois meses, fui a Capanema com o intuito de iniciar o projeto de sociedade com
minha amiga, e ainda visitei umas três lojas, em que seus donos ficaram bastante interessados pelos
modelos e pelo preço, no entanto, não tive tempo de fechar as encomendas, devido eu andar em
carro de horário (caminhoneta) de beira de estrada o qual levava outros passageiros e com hora
marcada para retornar pra Colônia (como era nomeada a zona rural lá). Voltei para casa muito
desanimada e frustrada concluindo que naquele lugar eu nunca cresceria na vida.
Resolvi então vender as amostras nas poucas casas das colônias próximas da que
morávamos. Para isso, pedi a bicicleta do meu primo e fui com minha prima tentar vender, acabei
vendendo boa parte dos produtos e usei o dinheiro das vendas das malhas para comprar comida,
pois as dificuldades eram diversas.
Eu estava ciente de que teria que voltar para o meu Ceará. Em momentos de melancolia,
toda tardinha ao pôr-do-sol, eu e minha mãe íamos para o quintal, abraçadas e olhávamos para o
sol se pondo e era como se na direção do sol, víssemos o Ceará e, ali, contritas, fazíamos uma prece
a Deus para voltarmos. Essa saudade invadia todos nós, e assim, meu irmão Tobias decidiu voltar
antes de nós e isso foi uma força para meu pai também voltar. Deus atendeu as nossas preces e
voltamos para nossa terra natal, cheios de esperança para recomeçar a vida novamente, sem pensar
mais em problemas, com uma fé imensa. Ao chegarmos, fomos acolhidos pelos nossos amigos com
muito afeto.
A volta foi maravilhosa, pisar novamente o chão cearense, rever as pessoas que
havíamos deixado, enfim, voltar para o berço de onde nunca eu quis sair era para mim algo sem
preço, mas carregados de desafios, pois se tratava de um novo começo. Eu nem pensava nas
dificuldades que ainda passaríamos para conquistarmos novamente nossa casa e as terrinhas do
meu pai plantar.
114
Nesse tempo, início dos anos de 1990, ainda não havia concurso público no meu
município, assim, eu havia sido contratada pela diretora, com o aval do prefeito. Comecei a
conhecer o sabor de ganhar o próprio dinheiro e aí pude voltar a estudar no primeiro ano do ensino
médio na mesma escola, João XXIII e pagar eu própria, a minha mensalidade.
Antes dessa experiência, por volta de 1985, em meus 14 anos, eu já havia tido uma
oportunidade de ensinar em uma creche comunitária que funcionava em nossa própria casa,
mantida por aqueles políticos que chegavam ao município querendo ajudar com interesse de criar
116
bases eleitorais nessas comunidades interioranas. Como eu já era conhecida pela minha liderança
precoce na igreja, me procuraram para assumir o projeto da creche. Aceitei, mas sob a tutela de
minha irmã Odete, pelo fato de eu ser menor de idade.
Voltando desse flashback em minha história, depois retorno o meu engajamento no
trabalho comunitário no ensino bíblico da igreja, na preparação das liturgias, na organização da
catequese, preparando crianças para a primeira comunhão, ao passo que realizava os encontros da
campanha da fraternidade nas casas e, ainda tinha, semanalmente, o encontro com as crianças e os
adolescentes da PAC.
Na (figura 33), as crianças e adolescentes que fizeram a primeira comunhão, depois de
serem preparadas por mim são, em parte, as mesmas que fizeram parte do grupo da PAC. Com esse
grupo, aprendi muitas coisas e essa experiência foi mais uma das melhores em minha vida.
Em 1991, como meu salário de professora era muito baixo, eu procurava ampliar essa
renda, e nessa busca, eu soube que sairia em 1991, o concurso do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), para trabalhar no recenseamento da população. Eu acreditei, fiz e fui
selecionada para trabalhar recenseando as pessoas de minha comunidade. Esse fato chamou
bastante atenção na minha comunidade, pois naquela época, essa era uma grande conquista. Eu
amei o trabalho porque sempre gostei de visitar os amigos, de interagir com as pessoas e essa foi
uma oportunidade para conhecer todas as famílias da comunidade, pois antes eu só conhecia os
idosos a quem minha mãe dava a hóstia consagrada comigo.
Paralelo ao meu trabalho na escola, fiz o trabalho do Censo 19918. No final, recebi o
dinheiro todo de uma vez e com esse recurso ajudei a minha família na construção de um banheiro
em nossa nova casa. O restante do recurso, investi em confecções para assim eu criar um pequeno
negócio e aumentar minha minúscula renda de professora do município, realidade injusta, antes
dos programas do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de
Valorização do Magistério (FUNDEF) e Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica (FUNDEB).
8
Crachá de identificação da recenseadora Ana Maria - Anexo E.
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A nova casa de meus pais ficava à rua atrás da avenida onde morávamos antes da viagem
ao Pará. Essa localização geográfica dizia muito, pois havia certo preconceito em morar na rua de
trás, mas naquelas circunstâncias o que nós queríamos mesmo era termos o próprio teto. Papai fez
uma casa de taipa muito simples e rústica, longe da iluminação pública, com isso passamos mais
de dois anos sem energia elétrica. Com a volta da família e o reequilíbrio, aos poucos, fomos nos
reerguendo, dois dos filhos que tinham ido para Rondônia voltaram: Francisco Feitosa, dedicado
ao ramo de negócios voltou para Pentecoste onde passou a trabalhar para conseguir de volta seu
comércio e Francisco de Assis, policial concursado de Rondônia, que conseguiu sua transferência
para a polícia militar do Ceará. Israel Feitosa, policial concursado no Estado de Rondônia,
permaneceu lá em toda sua carreira.
Devido ao fato de eu gostar de interagir na comunidade, nas famílias, nos grupos, nas festas
populares, encontrei muitos amigos que me influenciaram a valorizar os estudos e a seguir a minha
careira profissional. Por ter sido alfabetizada tardiamente, perdido um ano, fora da escola, no Pará,
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posteridade, exposta na (figura 34) com os amigos Adriano Andrade, Pedro Firmiano e o grupo.
Esse registro foi feito por Manoel Andrade, com sua inseparável câmera fotográfica. No grupo, eu
fazia uma leitura bíblica e tínhamos uma reflexão, depois podíamos brincar e cantar várias cantigas
de roda e brincadeiras populares da época, retiradas dos baús da nossa experiência de vida, além
disso, realizávamos vários tipos de enquetes a partir dos talentos artísticos das crianças e
adolescentes como, por exemplo, fazíamos uma performance inspirada em um famoso programa
da TV Globo, a escolinha do Professor Raimundo – programa humorístico de Chico Anísio que
fazia muito sucesso na década de 1990.
Aos sábados, quando o Andrade vinha ao meu encontro, passava primeiro na Capela de São
Pedro, onde eu estava com esse grupo e então ele esperava que eu terminasse as atividades com as
crianças para podermos ir para a minha casa. Além do trabalho social, tínhamos momentos de lazer
e educação e esse tempo de lazer ocorria aos fins de semana, nos campos de futebol com vistas à
120
educação comunitária, no sentido de desconstruir uma cultura de violência nos campos de futebol,
alimentada pelo alcoolismo e pelos conflitos gerados nos jogos competitivos. Eu e minhas amigas
formávamos a torcida organizada ao redor do campo, e isso agradava muito a todos: jogadores,
donos de times e outros torcedores.
Além do trabalho e lazer nos campos de futebol que comecei a ir com Manoel Andrade, em
1991, me envolvi diretamente com a campanha eleitoral de Adriano Andrade, irmão de Manoel
Andrade, para vereador em Pentecoste. Ele construiu uma candidatura mais à esquerda, e isso nos
seduziu a “arregaçar as mangas” e a trabalhar pela sua eleição. Como eu pertencia ao grupo de
professores (as) da ATEMPE que se mostrava mais consciente, politicamente, da situação de
opressão pela qual passávamos, recebemos ameaças e censura ao Programa de Rádio.
Nosso grupo queria trazer emancipação para o município que sofria uma má gestão pública,
com governos corruptos e ditatoriais. Nunca estivemos satisfeitos com essa forma de governo em
nossa cidade por se pautarem em velhas práticas. Tendo vivido momentos de muita indignação
pelas injustiças por nós sofridas, eu me envolvi bastante na campanha eleitoral dele, mobilizando
minha família e amigos próximos de minha comunidade para votarem nele. Apesar do nosso
esforço e de todo um trabalho comunitário de envolvimento diuturnamente de Adriano, ele não
ganhou a eleição.
Nesse caminhar de professora, sempre sonhava com um curso superior e quando conheci o
Manoel Andrade, ele me perguntou se eu havia pensado em fazer universidade e eu respondi que
sim, então ele quis saber qual curso eu faria e eu disse: “sociologia!” E ele me corrigiu: “Ciências
Sociais, não é?”, pois bem, eu fingi que entendi, mas na verdade, não sabia direito dessas divisões
das ciências. Essa foi uma das primeiras conversas que tivemos quando nos conhecemos. Eu
pensava em estudar nessa área devido eu gostar muito de trabalhar com pessoas na minha
comunidade e por ter gostado muito de estudar os módulos de sociologia do Curso Logos II.
Desde o dia em que Manoel me falou sobre a universidade, eu não parava de sonhar nesse
horizonte que se abria em minha vida. Mas antes dele, veio a conclusão do ensino médio
profissionalizante. Agora eu concluíra uma etapa importante em minha vida, era professora,
oficialmente, com direito a lecionar da 1ª à 4ª série do ensino fundamental em todo território
brasileiro. Eu estava feliz, mais um degrau na minha vida profissional, com perspectiva de
continuar meus estudos na universidade.
121
Após essa vitória, em 1992, ocorre meu casamento, demonstrado na (figura 35), com
Manoel Andrade. Então mudei para Fortaleza, saí da escola e passei pela separação de meu mundo
interiorano. Meus primeiros meses em Fortaleza foram tristes, uma saudade imensa de meu
micromundo, onde me sentia integrada e pertencente. Depois do sofrimento da adaptação em um
novo espaço, passei a incorporar o ethos da vida corrida da cidade e iniciei vários cursos na área
de Língua Portuguesa, seguindo a orientação de Manoel Andrade, pois segundo ele, na área do
Português, eu poderia ajudar mais aos estudantes de nossas comunidades rurais.
Meu casamento foi muito importante, pois casei com uma pessoa muito incentivadora e que
me motivava sempre. Manoel Andrade nunca foi empecilho para a minha carreira profissional, ao
contrário, foi um colaborador, amigo, companheiro e professor.
Figura 35 – Meu casamento com Manoel Andrade pelo Pastor Áureo de Oliveira
Logo depois que mudei para Fortaleza, no início, era muito bom retornar todo fim de
semana para ver a minha família e trabalhar nos projetos antecedentes ao PRECE que, inicialmente,
era a coordenação da creche da ACOMPARCC. Com mais cinco meses as coisas começaram a
ficar difícil devido eu estar grávida da minha primeira filha Alzira Gabriela, e dessa forma, a
122
viagem de moto tornava-se uma perigosa aventura, por causa da minha barriga de oito meses.
Depois de um ano nessa pedagogia do retorno, nossa trajetória teve um clímax, em 1994, quando
nossa vida comunitária me proporcionou viver a experiência do PRECE com o Manoel Andrade;
desse modo, iniciamos juntos, o trabalho social no PRECE, como já dito, uma ousada iniciativa em
educação e resistência em busca da inserção do estudante popular na universidade.
Ademais, concomitante ao estudo e ao trabalho no PRECE, eu tive a minha primeira filha
Alzira. Porém, apesar da minha condição de mulher recém-casada, em fase de constituir família,
eu não podia perder a oportunidade de, ao mesmo tempo, me dedicar também aos estudos da
faculdade, algo negado a mim antes, bem como a muitas mulheres do meu contexto.
Dessa forma, em Fortaleza, nos anos de 1994 e 1995 passei a fazer vários cursos no SENAC
(Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) e em seguida fui para o IMPARH (Instituto
Municipal de Pesquisa Administração e Recursos Humanos). No IMPARH fiz o curso de português
e iniciei o de inglês, não concluindo este por um acúmulo de atividades, além do trabalho com as
minhas duas filhas.
Participava de seminários literários e congressos de linguística, dentre outras atividades
relativas à área de atuação em educação, literatura e linguística. Em um desses seminários literários,
como estudante pré-universitária, conheci, pessoalmente, a Rachel de Queiroz (figura 36),
momento em que tirei uma foto com ela e peguei seu autógrafo no meu livro O Quinze, para mim,
uma relíquia.
123
Depois, fui para as casas de cultura da UFC e lá fiz todos os cursos de Português e iniciei o
de Inglês na Casa de Cultura Britânica, e, mais uma vez, não concluí. Os cursos que fiz na área da
linguagem me deram a base necessária para ajudar os sete primeiros estudantes do PRECE. Com
esse projeto social, começamos mais uma caminhada de luta pelo desenvolvimento de nossas
comunidades através da educação que transforma e liberta as pessoas da ignorância e da
dependência política.
A participação nesses cursos de extensão da UFC foi que fortaleceu a minha vontade de
cursar Letras. Assim, me estimulava para me preparar melhor para o vestibular dessa universidade,
aos fins de semana com os meus amigos do PRECE, como demonstrado na (figura 37).
124
Nos estudos com os primeiros estudantes pude contribuir com a leitura e a escrita, pois
eles tinham dificuldade nessa parte. Nesse período, eu era a monitora de Língua Portuguesa deles
e trabalhava redação e literatura.
Em minha trajetória de professora, desde muito jovem, somada ao apoio e orientação
do Manoel, fui adquirindo certeza da minha escolha pelo curso de Letras e, desse modo, me envolvi,
mais fortemente, dentro da dinâmica da primeira célula de estudo do PRECE de 1994-1999,
principalmente aos fins de semana junto com Toinho, Noberto, Francisco e Beto. Eles me ajudavam
nas disciplinas de Matemática, História, Química, Física e Biologia. Estudávamos ouvindo um dos
sete estudantes dando uma aula expositiva, ou outras vezes, em grupo ou participávamos de aulas
expositivas de professores convidados pelo professor Manoel Andrade. Nesse período, fui monitora,
articuladora e coordenadora de grupos de estudo no PRECE, realizando a “pedagogia do retorno”
porque durante a semana, eu estava em Fortaleza.
Depois de graduada, continuei fazendo esse trabalho voluntário, crendo eu, estar
contribuindo para a transformação da nossa realidade de estudantes de baixa renda. Os amigos e
estudantes pioneiros tinham muitas dificuldades com o estudo e prática de leitura e escrita, assim
como eu tinha sofrido antes de encontrar as minhas saídas por meio do desenvolvimento em grupos
125
particularidades de cada projeto. Nesse movimento, sob o desejo de entrar na universidade, assim
como todos os estudantes precistas, eu também já estava ansiosa para fazer vestibular novamente.
Foi assim que em 1998, fiz o vestibular novamente e mais uma vez não passei, mas a reação foi
melhor. Eu estava na igreja arrumando algo para levar para um culto campal na casa de um membro
na comunidade de Tamarina, quando me deram a notícia de que somente o Adriano Sérgio e José
Noberto tinham sido aprovados. Do fundo do meu coração, eu me senti muito feliz por meus
amigos terem sido aprovados porque eu havia caminhado com eles e sabia o quanto cada um se
esforçou para obter aquela vitória.
Naquele dia eu sabia que ainda não era o meu tempo de entrar na universidade, talvez
o sábio maior entendesse que eu não estava preparada e que o meu dia de vitória chegaria como o
de todos os companheiros que caminhavam conosco naquela jornada de estudos. No culto, eu
estava muito em paz comigo mesmo e sem nenhuma revolta com Deus, era como se Ele tivesse
passado um bálsamo em minha cabeça que anestesiou de qualquer tristeza o meu espírito. Quando
no culto abriram a oportunidade para testemunhos eu fui e falei da vitória dos meus dois amigos e
disse que mesmo eu não tendo passado, eu não estava me sentindo derrotada e finalizei a minha
fala, cantando um louvor de título: “Derrota não é coisa de cristão”.
Tínhamos voltado para nosso pequeno apartamento em 1999 e estava uma situação
difícil para eu estudar, pois eu tinha duas crianças com idade de cinco e três anos querendo brincar
o tempo todo em um espaço muito restrito. Então tive a ideia de passar três meses em Cipó para
poder focar mais nos estudos e assim conseguir entrar na universidade. Conversei com o Manoel,
com Dona Fransquinha, minha sogra, para ficar na casa dela e todos concordaram com o meu plano.
Fomos eu, minhas filhas Alzira e Alice, minha amiga Luiza, que me ajudava a cuidar das crianças
e minhas amigas Marcilene e Rosiane, as quais também prestariam vestibular naquele ano. Lá nos
reuníamos para fazermos nosso horário de estudos, de comer, de ouvir os debates da AM do O
POVO, de cochilar, de caminhar no trajeto da beira d’água, e de irmos à igreja à noite. Eu resolvi
fixar nas paredes de meu quarto, muitas frases de estímulo retiradas da Bíblia e do livro do Lair
Ribeiro Como passar no Vestibular, de 1997.
Nos vestibulares anteriores, eu tinha problemas com a redação devido ao fato de eu
não praticar muito, talvez porque eu assumia o papel de professora de redação do PRECE, vivia
corrigindo a redação de todos os estudantes, então eu pensava que assim, eu teria um bom resultado,
no entanto, eu precisava não somente ensinar, mas fazer redação. A experiência da baixa nota nos
127
vestibulares anteriores me conscientizou de que, dessa vez, eu teria que praticar muito mais que
antes e assim, comprei um caderno e quase o preenchi de redações. Nunca me disciplinei tanto em
minha vida, com um foco: fazer uma ótima redação e passar no vestibular.
No fim do ano, fui vitoriosa e passei para o curso de letras da UFC, logo para o primeiro
semestre, tirando uma ótima nota na redação – 7,6. Poucos dias depois que soube da minha
aprovação, descobri que estava grávida de minha filha caçula Ana Ester.
O primeiro ano de faculdade não foi fácil por conta da gravidez e, posteriormente, no
acompanhamento da amamentação da Ester, ainda pequena. Tive que trancar algumas disciplinas
e fazer prova no resguardo para diminuir o meu tempo fora de casa; e quando eu ia para a faculdade,
deixava leite materno na geladeira para a Ester. Na graduação, nunca deixei de dar aulas no PRECE,
todos os fins de semana. Iniciei o curso em 1999 e conclui em 2003. Sem dúvida, tudo para mim,
vinha se apresentando sempre como um grande desafio a ser enfrentado. E Deus, sempre comigo,
assim eu creio, por isso fiz das palavras bíblicas uma regra de fé: “Tudo posso naquele que me
fortalece” (BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 1164).
O desafio da faculdade e de criar filhos, tudo ao mesmo tempo, era, com certeza, maior
que o vestibular, mas eu nunca estive tão estimulada como naquele ano que eu consegui chegar à
universidade. Além da faculdade, eu trabalhava na igreja de Cipó com as crianças e, para me
aperfeiçoar no ensino bíblico, a igreja pagou um curso de evangelização de crianças na instituição
Aliança Pastoral de Evangelização de Crianças (APEC). Eu ia de ônibus, grávida todos os dias pela
manhã para a faculdade e a tarde para o curso que durou oito meses. Entendi um pouco mais sobre
Jesus, e havia questionamentos que surgiram do contato com a igreja evangélica e que até então
me inquietavam e que o curso esclareceu. Foi um momento importante para minha relação com
Deus.
Em 2004, a convite do meu amigo Francisco Antonio, fui trabalhar na coordenação de
dois projetos do PRONERA (Programa de Educação na Reforma Agrária). Nesses projetos,
trabalhei dois anos na formação de professores rurais, como exposto na (figura 38). Tratava-se de
uma parceria entre o MEC (Ministério da Educação), o MDA (Ministério do Desenvolvimento
Agrário), e a FETRAECE (Federação dos Trabalhadores(as) Rurais do Estado do Ceará) e a UFC.
Além desses, ministrei a disciplina de Português no curso de Pedagogia da Terra, em regime
especial. Essa experiência foi importante em minha carreira docente e para meu currículo.
128
desse projeto social, mas foi nele que decisões importantes da minha vida acadêmica e profissional
foram ficando mais conscientes e mais claras.
A minha opção pelo curso de Letras foi motivada a partir da perspectiva desse trabalho
social e muitas outras decisões importantes, diante da vida, os meus valores, crenças e modos de
viver. Todos esses receberam uma influência exponencial dessa experiência educacional. Não
somente em mim, mas em conversas com meus amigos pioneiros e outros precistas que vieram
depois dos sete, chegamos à conclusão de que existe algo que eu posso chamar de a formação de
um habitus precista.
Em 2004, iniciei a implementação da Escola Popular Cooperativa Ombreira, na minha
comunidade, juntamente com Manoel Andrade e outros líderes ligados ao PRECE, história relatada
à frente, junto com outras experiências educativas feitas por mim.
Em meados de 2004 e 2005 fiz o curso de especialização em estudos Literários e
Culturais e escrevi minha monografia sobre os escritores Jader de Carvalho e Graciliano Ramos.
Depois fiz pela primeira vez a seleção para o mestrado em Literatura Brasileira, em que passei na
prova, mas não consegui passar na entrevista. Era um sonho que acabou na entrevista pelo fato do
meu projeto estar mal elaborado. Hoje vejo que eu era muito imatura para ser pesquisadora. No
primeiro semestre de 2006, o Andrade estava planejando sua viagem de Pós-doutorado nos Estados
Unidos e disse para mim: “se você não passar no mestrado, nós vamos para os Estados Unidos para
eu fazer meu Pós-doutorado” e foi o que aconteceu.
Nos Estados Unidos, fomos morar na cidade de Iowa City onde tínhamos bons amigos.
Eles eram líderes da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, leste desse estado. Com muito amor,
se prontificaram a nos apoiar no ano em que moraríamos lá. Eles foram geniais, agiram como anjos
enviados por Deus. Chamaram outras lideranças do presbitério para ajudarem em nossa mudança,
alugando e mobiliando uma casa para nós, porque com nosso inglês limitado, tratar dessas
burocracias seria um sofrimento, assim, eles pensaram tudo por nós, mobilizaram as igrejas da
cidade de Muscatine e outras para nos ajudar, foi algo divino, um trabalho missionário e de amor
fraternal. Todos que nos ajudaram em Iowa tinham visitado o Cipó e conhecido o nosso trabalho
social no PRECE ou ouvido falar.
Eles organizaram a casa, conseguiram doações de móveis, roupas de cama, tudo o que
era preciso. Foram nos esperar no aeroporto e quando chegamos na casa, ficamos encantados com
tantos detalhes, cuidados e solidariedade. A cada cômodo que entrávamos havia uma surpresa.
130
Antes de nossa viagem, que foi no segundo semestre de 2006, houve um encontro organizado pela
liderança do PRECE no Cipó. E toda a comunidade precista, entre estudantes pré-universitários,
graduados, colaboradores e suas famílias se reuniram no estudantório “Sombra do Juazeiro” para
se despedirem de nós, pois só retornaríamos no segundo semestre de 2007. Saímos felizes pela
festa de despedida e cientes de que apenas íamos aprender mais para voltar para o nosso país e
continuar o nosso trabalho na educação, de forma melhor e com mais experiência.
Lá, passei por problemas decorrentes do pouco conhecimento da língua inglesa. Antes
da viagem, eu tentava estudar inglês, mas não conseguia devido a correria da especialização e
estudos para a seleção do mestrado. As meninas também sabiam muito pouco, somente o Andrade
tinha um inglês melhor. Assim, sofremos um pouco porque não sabíamos falar com os vizinhos.
Quando o inverno trouxe o frio, apesar do aquecedor, sentimos dificuldades para nos adaptar com
o clima, apesar de esse ter sido um inverno menos frio, segundo nosso amigo Gilbert Dietz. Houve
pequenas tempestades no inverno e não sabíamos muito bem como nos proteger. No início, as
meninas choravam porque não queriam ir à escola com medo do novo, do desconhecido e também
por ainda não saberem se comunicar em inglês. Mas para minimizar o sofrimento delas, creio eu,
Deus enviou, uma brasileira, estagiária do curso de pedagogia para a escola delas e essa pessoa
ajudou muito nossas filhas a se sentirem melhor na escola.
Lá, eu fazia comida para a família, às vezes deixava o Andrade na Universidade de
Iowa no carro que, gentilmente, nosso amigo David Jiruska nos emprestou durante aquele ano,
outras vezes, pegava as meninas na escola quando saiam mais cedo. Um objetivo que imputei a
mim, era o aprendizado do inglês, assim, fiz dois cursos não pagos nas igrejas de lá e, às vezes,
participava de estudos bíblicos na Igreja Presbiteriana de Iowa City, onde nos congregamos durante
nossa estadia lá. Depois de mais ou menos um mês que eu estava lá, certa vez, alguém bateu em
minha porta; fiquei um pouco apreensiva antes de abrir, pois pensava no que falar com a visita
estranha se eu não sabia falar quase nada em inglês, mesmo assim, acreditando que tudo daria certo
e que eu me sairia bem, abri a porta. Era uma senhora testemunha de Jeová com uma Bíblia na mão.
A mulher me inspirou confiança e fiquei aliviada pelo modo simpático e interativo como
conversava, inicialmente em espanhol. Ela era de Filipinas, mas naturalizada americana, casada
com americano. Naquele dia, ganhei uma amiga e professora de inglês, pois ela passou a me visitar,
semanalmente, para me falar da Bíblia em inglês. Como eu sempre gostei de religião e, naquele
momento, aprender inglês era meu principal objetivo, juntei as duas coisas e foram muito bons
131
nossos encontros. Antes de voltar ao Brasil, essa amiga e sua família serviram um jantar de
despedida. Ela me ajudou muito, tanto no aprendizado de inglês quanto no apoio emocional, pois
na solidão de estrangeira, sem poder fazer novos amigos pela barreira da língua, havia momentos
de tristeza e isolamento que meus amigos presbiterianos não percebiam, porque cada um estava
cuidando de suas vidas e já tinham feito muito por nós, naquela terra.
A partir dos cursos de inglês, mais intensivos que frequentei, fui ganhando mais
autonomia linguística e fui construindo novas amizades, a primeira foi a da professora Donna
Sanforek. Ela ficou nossa amiga de quase todas as horas, de passear com a gente, nos levar em sua
casa, de ir à nossa. Outros amigos, Alfred Airola e sua esposa Carol Airola, nos levaram para
conhecer New York e no caminho conhecemos New Jersey, onde ficamos na casa do irmão de Carol
Airola. Eles foram maravilhosos, contribuíram muito conosco, dando aula de inglês em nossa casa,
doando recursos financeiros para nossas despesas.
Foi algo extraordinário em bondade e amor fraternal diante de tudo de negativo que às
vezes ouvíamos falar sobre os norte-americanos. O Andrade mantinha-se informado de como
andava o PRECE por meio do Skype. Com seis meses, as meninas já estavam falando inglês e
interagindo muito bem com os amigos e amigas da escola e por causa disso, a Alice Manuela sentiu
muito a separação dos(as) amigos(as) de colégio quando viemos embora. A readaptação foi normal,
sentimos falta, principalmente, dos nossos amigos, da segurança que tínhamos ao andar nas ruas e
da educação dos motoristas no trânsito.
Ao chegar ao Brasil, eu estava com muita saudade da família e do ambiente precista,
do trabalho no PRECE. Dessa forma, em termos profissionais, decidi passar o ano de 2007 me
dedicando aos trabalhos voluntários no PRECE e revendo meus familiares e amigos. Outra grande
preocupação era com a minha carreira profissional, pois o PRECE, naquele momento, continuava
a não ter bolsas, nem recursos financeiros para nos ajudar, mesmo nos custos. Disso, eu já sabia,
pois, a maior parte da minha vida trabalhei no projeto por missão, para ajudar o outro a caminhar
e ainda por desejo de me capacitar na área do ensino e gestão de projetos. Mesmo que, psicológica
e inconscientemente, talvez todo esse propósito de ajudar ao outro se reflita como uma ajuda a nós
mesmos por uma necessidade latente que não sabemos explicar. Todavia, essas são reflexões que
tenho feito sobre mim mesma e que preciso amadurecer como questionamentos acerca do trabalho
voluntário e solidário.
132
9
Produção de textos dos estudantes – Anexo F
133
alguma relação com a vida deles. Levando em conta a dificuldade que tinham para escreverem um
texto, pensei em uma forma de minimizar o problema e disso resultou uma simples e boa prática
em minhas aulas no PRECE. Vejo nessa narrativa a importância de apresentar conteúdos
significativos na vida do discente e do docente, quando se tratar de ambientes formativos. Com
essa ideia, eu objetivava despertar neles o gosto pela escrita, assim, selecionei temas sobre a vida
deles e o resultado foi animador. Desse modo, foram surgindo temas sobre a importância dos
estudos, acerca da viagem deles para o Cipó, sobre o aniversário do PRECE, a casa do estudante,
dentre outros.
Nesse trabalho analiso seis produções de texto que giram em torno da descrição da casa
do estudante. Nas produções de 2002, na escolha desses tipos de temas eu seguia as orientações de
meus professores durante meu estágio em Linguística. Eles pediam que eu tivesse cuidado quanto
à escolha do tema e da tipologia textual a ser pedida nas aulas de produção de texto. Por exemplo,
solicitar a produção de uma tipologia já conhecida pelo estudante, em um tema não tão distante da
sua realidade, de assunto constante em seu repertório, é o mais adequado.
Percebi que o valor metodológico da atividade residia no fato de eu trabalhar as
questões do eu, não me preocupando somente com a dimensão cognitiva, mas também com a
emocional e a social. Para fazer esse resgate histórico, parto da análise de fontes primárias, ou seja,
das redações escritas pelos estudantes, observando no discurso textual, a presença dessas três
dimensões, todas acionadas pelo tema dado – nesse caso, acerca do espaço de estudo dos discentes
– de casa de farinha a casa de estudante.
Escolhi essa experiência de professora de Português porque fui orientadora nas aulas
de Literatura e Leitura e Produção de Texto. Sempre procurei abordar o estudo da gramática por
meio do texto, especialmente em nossa experiência, pois nossos estudantes tinham muitas
dificuldades com a leitura e a escrita. Os resultados de uma avaliação diagnóstica, feita com cada
estudante, nos mostraram essa realidade. Eu via que eles tinham dificuldades com a escrita e leitura
de textos, então não fazia sentido ensinar-lhes gramática normativa, sem contexto, como não faria
sentido em nenhuma situação. A foto abaixo (figura 39) mostra a parte interna da casa do estudante
a qual os estudantes descreveram:
134
Ao solicitar aos meus estudantes a produção desses textos sobre o tema “casa de
estudante” na tipologia descrição, levei em consideração o contexto de sua produção, o espaço
físico que dizia muito para eles naquele momento. Minha escolha pretendia ser coerente para que
eu também pudesse garantir que os estudantes fizessem uma produção textual com coerência de
propósitos, estabelecidos pelo uso efetivo deles como falantes nas situações reais de comunicação,
a qual considera a interação, as vontades, os desejos e as escolhas dos interlocutores.
Dessa forma, podemos dizer que uma maneira de atingir por meio da escrita, objetivos
de ensino - aprendizagem é enfocá-los dentro das dimensões afetiva, cognitiva e social, sabendo
que a dimensão cognitiva ocorre sempre e, especificamente, potencializada pelas duas outras.
Sobre o valor do contexto e da semântica na produção e análise de um texto, entendo que a
contextualização se dá na esfera do pragmático e também no contexto da situação semântica,
portanto, é sobre os sentidos que analisarei, mesmo de maneira breve, as redações por mim
escolhidas para esse trabalho que discute minhas experiências nas práticas educativas.
Passeggi (2008, p.120) ao falar sobre a sedução autobiográfica, pontua que “expor para
o outro, e por escrito, as histórias que contamos sobre nós mesmos e a nós mesmos, em nosso
discurso interior ou entre amigos, não é tarefa fácil, ainda menos quando se trata de escrevê-las
para os pares em posição de avaliado”. Sei que não é como um passe de mágica que conseguimos
organizar nossas experiências formativas, pois precisamos de muita energia e consciência de nosso
papel como indivíduos e cidadãos para dar o mergulho interior em nossa vida e balancear essa
narrativa que, no geral, se dá no domínio da oralidade e da escrita.
135
Nessa prática de ensino das aulas de produção textual, eu não tinha ainda certeza de
que surtiria bons resultados, somente muito depois, ao precisar escrever meu memorial por conta
de um trabalho acadêmico, foi que remexendo em meus documentos guardados, ao longo de anos,
encontrei as produções textuais pedidas aos meus estudantes com o objetivo de um dia me debruçar
sobre elas em algum trabalho de pesquisa. A escrita desse memorial foi um divisor de águas em
minha vida e com isso realizei o que desejei há muito tempo. Falar de mim, do que aprendi,
significa revisitar e valorizar, na perspectiva das histórias de minha vida, o meu percurso de
aprendizagens.
Ao tomar conhecimento de tantas pesquisas acerca das narrativas de si, vibrei e me
estimulei a cada leitura que faço. Sobre a importância da escrita do memorial em suas classificações,
Passeggi reafirma o seu valor em ambiente acadêmico ou escolar como elemento desencadeador
de processo formativo. Ela diz que:
No processo de escolha das produções textuais para a análise, vi nelas a presença das
dimensões afetiva e social acionadas pelo título dado. Em um horizonte de vinte redações, escolhi
seis pelo fato de conterem uma descrição de cunho mais subjetivo, em que sempre, concluíam os
textos como se quisessem dizer “enfim, penso que a casa do estudante me faz estudar feliz”. Claro
que estou começando já muito otimista, mas confesso que depois de reler todas as vinte redações,
me senti mais eufórica ainda para descrever as minhas práticas docentes. As produções não
selecionadas são muito parecidas com essas. Eu não as escolhi por causa do espaço/tempo e
objetivo desse trabalho que não comportaria a análise de todas.
Bachelar (1978) me veio por todo o tempo em que comecei a trabalhar com o tema do
espaço poético e social em minha monografia e dissertação de mestrado em Literatura. Acho o
trabalho de Gaston Bachelar sobre A Poética do Espaço muito profundo e verdadeiro. Acentuo este
aspecto aqui por achar nas produções de meus estudantes um tom poético ao falarem sobre o espaço
da casa do estudante. Essa ideia presente no pensamento do filósofo apresentado, sobre como me
sinto em determinados espaços, me inspirou a iniciar essa análise. Leiamos abaixo o excerto de A
Poética do Espaço e percebamos o valor que tem esse espaço milenar que todo ser humano deseja
ter – a casa.
136
Chegamos aqui a uma recíproca cujas imagens deveremos explorar: todo espaço
verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa. [...]. Em suma, na mais
interminável dialética, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em
sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. (BACHELAR,
1978, p. 200).
A casa do estudante, antes, casa de farinha, habitada pelos precistas, trouxe a eles a
essência da noção de casa e abrigo. Nesse espaço, os sete estudantes fundadores do PRECE foram
impulsionados a cooperarem e a se solidarizarem uns com os outros na batalha de estudar juntos.
A casa não tinha conforto material, mas tinha gente, sentimento de agregação e união por uma
causa comum a todos os estudantes que nela viviam. A casa os sensibilizou e ainda sensibiliza
quando lá retornam para os reencontros que propiciam a lembrança do tempo que nela viveram. A
casa se confundiu com o ser abrigado o qual mobilizou todo o espaço de seu abrigo e continua a
nos tocar sempre. Por isso ela simboliza a existência precista corpórea, real através da linguagem
das emoções e dos sonhos.
A primeira produção analisada tem como título “Transformação da casa de farinha”,
escrito em 1998 e faz um resgate histórico do processo de mudança da casa para melhor atender a
seu público. Esse texto trata muito mais da descrição física do ambiente, o que foi talvez o que o
seu escritor entendeu acerca do contexto da hora de sua produção. A redação foi escrita bem antes
das outras cinco. Ela abre o tema, sinalizando uma preocupação anterior, como essa temática
escolhida por mim, de enfatizar a reflexão sobre a nossa própria história. Por isso, resolvi inseri-la
no grupo de produções a ser estudado. O tempo da memória não deixa lembrar nitidamente minhas
orientações acerca desse trabalho naquele ano, quando eu ainda não havia iniciado meu curso de
letras, enquanto eu ia planejando minhas aulas com base na minha experiência prática, desprovida
de ação mais reflexiva e preventiva de erros. Esse texto nos prepara para entendermos melhor as
próximas produções destacadas aqui. Vejamos o trecho que nos fala acerca do assunto em discussão:
o outro, do seu papel ali naquele espaço de troca e de interação onde um dos valores principais é o
cuidado com a pessoa humana, focando o aspecto de cidadania existente em cada estudante que
chega à casa, já que cuidar da casa é como cuidar de cada estudante.
Quanto aos vocábulos que denotam a afetividade, eles são percebidos de modo tênue,
embutidos pela ideia do coletivo, quando ele coloca que transformações na casa trarão melhores
condições para a educação da região pobre, está falando do público de estudantes de baixa renda.
Vemos então, além da dimensão cognitiva de domínio do código da língua escrita, da articulação
coerente de ideias em seu contexto de produção, a dimensão social muito presente. Além disso,
percebemos pelas entrelinhas, a dimensão emocional da preocupação em preparar o espaço que
será habitado por esse indivíduo que compõe esse coletivo, denominado PRECE.
A segunda produção textual já no tema reatualizado, de título “A casa do Estudante”
denota agora lugar de estudantes e não mais de mandiocas. Esse escrito me fornece mais pistas à
minha indagação. Ele mostra, com mais força, a presença do sentimento de aconchego e apego nos
estudantes hospedados na casa, isso dentro da esfera da subjetividade e até do lirismo. A estudante
afirma que:
Logo ao entrar naquela casa, de cor clara, em meio a uma vegetação verde, fui tomada por
uma agradável atmosfera campestre. [...]. Ao fundo havia alguns banheiros, no centro da
casa, existia um auditório com alpendres rodeados de grades, que me permitiram uma
visão majestosa de uma paisagem natural, fui surpreendida por uma forte sensação de paz.
A vontade que tive foi de não mais deixar aquele local calmo, sereno e enriquecedor. [...].
(TEIXEIRA, 2002).
Quando a pessoa entra em um local e de imediato é tomada por uma agradável sensação
que lhe causa bem, isso nos remete ao estatuto da positividade, das coisas boas que nos predispõem
a receber e compartilhar saberes, de modo completo e inteiro do ser. Cassasus (2009) relembra a
importância de se criar uma atmosfera agradável na escola e essa atmosfera não é só física, mas é
relacional, interacional e pautada na quantidade de amor, afeto e respeito existente entre os
relacionamentos. Na casa do estudante, além desse ar puro vir do ambiente campestre, havia
também o ar agradável das relações e dos afetos entre os estudantes e facilitadores que chegavam
àquela casa. O vocábulo “majestoso” reforça a semântica do grandioso, de algo que é o melhor,
assim como a sensação de paz que é importantíssima hoje, em nossa sociedade contemporânea,
eivada de situações problemáticas, tanto nas relações afetivas entre estudante/estudante quanto
entre professor/professor, bem como destes com gestores escolares e políticos administrativos,
138
além das dificuldades de ordem material envolvidas. A estudante ainda declara querer permanecer
ali, na quietude que acalma sua alma e a prepara para se enriquecer de aprendizagens.
O estudante Luciano Pereira (2002) segue descrevendo o mesmo sentimento de bem-
estar ao estudar na casa, destacando a aura agradável que sente trazida pelo vento que batia no peito
e isso nos é até imagético, posso voltar ao tempo e vê-los a ler ou escrever, conforme a atividade
do dia. Suas descrições no corpo integral do texto fazem as descrições físicas dos cômodos da casa,
mas ao chegar no sentimento, é quando eles se utilizam de vocábulos mais sofisticados que buscam
no coração. Ele pontua que:
ao redor da casa existem várias plantas fazendo assim com que a atmosfera que paira no
ambiente seja muito agradável e ao mesmo tempo também muito saudável. O vento que
bate no peito da gente é muito gostoso de sentir [...]. (CUNHA, 2002).
Há uma casa exclusiva para estudantes. Esta, além de ter grande importância na vida de
cada jovem que a usufrui, está em constante transformação para garantir o conforto dos
alunos vindouros. [...], tudo foi reformado há pouco tempo para ficar de uma forma que
os alunos sintam-se integrantes e amantes da natureza. Afinal, é um ambiente que permite
aos estudantes respirarem ar puro todos os momentos. Ouvirem o cantar dos pássaros a
qualquer instante, isto é, eles têm livre acesso a natureza. Portanto, é uma casa especial
que tem a função de fazer feliz cada um dos seus hóspedes”. (SOUSA, 2002).
descrição objetiva não escapa ao sentido subjetivo, de ordem afetiva, pois mostra a preocupação
na integração de cada estudante à unidade grupal. O interesse é que todo o grupo se sinta parte
desse todo, portanto, um ser integrado e pertencente àquela célula com interesses e objetivos
comuns. O ar puro é sentido por todos. Ele é o oxigênio que alimenta os sonhos desses estudantes
que enfrentam chuva, cheias, lama, sol, calor, suor, distâncias, falta de comida, e outras coisas para
poderem vencer, realizando uma transformação de vida difícil para outra melhor. O cantar dos
pássaros leva alegria e esperança a cada um desses guerreiros das plagas do sertão do Ceará.
Essa esperança produz a perseverança nos estudos, embora muitos cheguem em déficit
e fora de faixa escolar. Essa escrita de si traz ideias fundamentais, como o retorno a natureza. O
espaço de estudos, a casa e seu entorno, traz à vida diária deles o regresso ao seu estado natural
onde o homem se volta a si, e se regenera, cura-se de males do corpo e da mente.
A casa não é qualquer casa, ela é especial, diferente e essa distinção se faz pelo que
nela habita, gente humana a procura de vida digna, de conhecimentos que libertam em todos os
sentidos e dimensões do ser. É uma casa feita para trazer felicidade àqueles abrigados por ela. A
felicidade, embora sendo um estado de espírito, gera bons resultados nas relações pessoais e sociais
e isso deve ser buscado por todos nós que trabalhamos com pessoas.
A quinta redação escolhida, assim como as anteriores, faz apologia às sensações
evocadas pelo espaço da casa e vai um pouco mais longe, utilizando-se de metáforas comparativas
entre a casa e a figura materna de todos nós, pelos braços da figura materna, as nossas mães.
Leiamos o texto da estudante Luciana Nunes (2002):
A autora retoma a ideia de um espaço tranquilo, alegre, onde ocorrem coisas boas que
serão armazenadas na memória de todos, pois, novamente, cada fala representa o grupo precista, e
o resultado é uma descrição coletiva do material ao sentimental. Vejo que apesar de todos estarem
ali com o objetivo de estudar, ou seja, destacando mais a dimensão cognitiva, do estudo, da regra,
do fato, o que eles mais falam com força é da dimensão afetiva, das emoções e dos sentimentos.
Verifico nesse texto, que a estudante cita reuniões, estudo, ordem e isso significa a não ausência de
140
certo rigor quanto ao ato de se ensinar e aprender na casa, porém, essas ideias vêm imbricadas nas
mais recorrentes, as de ordem afetiva.
Neste último texto, pareço demasiada enfática em destacar o pensamento denunciador
das emoções afloradas de meus estudantes quanto à atmosfera emocional que a casa do estudante
evoca, contudo, se relembre que o propósito da análise dessa experiência de ensino, era averiguar
a existência das dimensões afetiva e social, principalmente, expressadas nas produções de textos
de meus estudantes, quando solicitei a descrição da casa de estudos.
Esse tipo de atividade facilita a fruição das ideias na hora da escrita, já que muitos deles
tinham dificuldades de pensar, de formular ideias e organizá-las no papel, achei que por esse
caminho facilitaria esse processo. Digamos que esse tema e título fossem uma porta de entrada para
temas mais complexos, mais argumentativos próprios das provas de seleção e concursos. Vejo
como é surpreendente a emoção por eles descrita, o que hoje valorizo muito mais do que quando
mediei esse trabalho, que por sinal, também me faz ver meus erros em propor a eles certas
mudanças no texto que não fazem o menor sentido. Finalmente, para reforçar, o texto que se segue
retoma quase as mesmas ideias dos anteriores. Façamos, então, essa última leitura:
Movida pela curiosidade do saber, fui conhecer a Casa do Estudante, era uma ‘casa de
farinha’ que foi reformada e hoje podemos encontrar jovens e adultos a procura de um
objetivo, um sonho. [...]. O ambiente é bem agradável, boa iluminação e o vento sopra que
parece a nos levar, assemelha-se a uma área de lazer do que propriamente sala de estudos.
(OLIVEIRA, 2002).
A estudante fala novamente no vento que toca forte e a faz pensar em ser levada. A
descrição me faz visualizar essa imagem que tantas vezes vislumbrei, mas sem o saudosismo que
agora me toma, com um sentimento de que não aproveitei esse momento como deveria. Ela faz
uma comparação bem clara de que a casa mais parece um ambiente de diversão do que uma sala
de aula. Infelizmente, a visão de nossos estudantes sobre a sala de aula é sempre muito negativa,
mas em nosso caso, as produções nos mostraram que a visão deles acerca do espaço, apresenta a
casa como um lugar inusitado, uma casa quase mágica, pois nela todos se sentiam bem, seguros e
com vontade de estudar e aprender.
Na análise dessa experiência na disciplina de Produção Textual, revisitar as redações
dos meus estudantes, preservadas já com o intuito de estudá-las, vi o quanto foi importante
trabalharmos com as narrativas autobiográficas para nossa formação no processo de voltar e refletir
sobre o realizado, mirando o futuro, já anunciando novas formas de continuar nos formando. Nesse
141
trabalho de voltar e rever o vivido, percebi que, quando nós amamos aquilo que fazemos, a nossa
intuição nos encaminha para as boas práticas, muito embora não saibamos no que elas resultarão,
como foi o meu caso, nessa fase descrita, por desconhecer certas consequências do meu agir no
ensino e acompanhamento de estudantes.
Das vinte redações que venceram o tempo de dois mil e dois para cá, todas iniciam
descrevendo a casa, fisicamente, e nos parágrafos finais, falam de sentimentos bons e revigorantes
evocados naquele espaço. Assim, pude constatar que a escolha do tema, ligado à vida do estudante,
ajudou na aquisição de conhecimento de forma ampla que abarca as dimensões essenciais do ser
humano, como a cognitiva, ligada mais à razão, ao intelecto e a competência acadêmica e afetiva
que lida com as emoções, com os sentimentos, os desejos, as vontades, as quais nos movem com
força arrebatadora, em muitos momentos, nos fazendo invencíveis na busca de vencer barreiras.
Além das duas citadas, ressalta-se ainda a dimensão social que nos faz ser verdadeiros cidadãos do
mundo, vendo que sozinhos não somos suficientes para viver em paz conosco.
Percebi que valeram meus esforços neste trabalho pelos resultados que hoje são em
números e em valores internalizados na vida desses estudantes. O meu intento era despertar neles
o prazer da escrita e penso que atingi, pois eles produziram muitas redações sem grandes
desacordos de gramática ou de texto. O fato de eu ter selecionado temas do cotidiano deles facilitou
muito a compreensão situacional e do léxico. A metodologia que utilizávamos a do estudo em grupo
favorecia muito ao espírito coletivo e afetuoso, o que percebemos facilmente nos escritos, por meio
dos excertos das produções de texto destacados. De fato, vi que a dimensão afetiva e a social
ganharam destaque especial nas produções de texto. A semântica dos vocábulos utilizados pelos
estudantes expressa a dimensão das duas, imbricadas, juntas, uma não existe sem a outra e em todas
está também a cognitiva.
A análise dos textos me conduziu ao momento em que desenvolvi essa prática e me vi
cercada por vários sentimentos como o de que eu poderia ter interagido mais com os estudantes e
ter discutido mais acerca de seus trabalhos. Contudo, sei que sempre que trazemos algo de nosso
passado ao presente, haverá essa reflexão, esse saudosismo nostálgico das histórias de vida, mas
com isso vem também aprendizado e, diante disso é que vemos o valor desse tipo de metodologia
de formação.
A ideia de sugerir a descrição da casa do estudante veio a mim pelo fato de eu também
compartilhar do prazer que me dava está naquele ambiente de estudo, já que eu havia tido as
142
mesmas experiências na condição de estudante. Isso nos coloca a questão de que passamos para o
futuro a maneira como fomos nos construindo educadores e educadoras. Vi nas produções a
competência intelectual de uso da língua de acordo com o nível deles. A metodologia das histórias
de vida é bastante efetiva e eficaz pelo fato de se ligar à pessoa professor e à pessoa estudante,
estando carregada de significância na vida desses sujeitos.
seleção do vestibular e para a experiência acadêmica, tão sonhada por todos. Conduzi essa técnica
de ensino, aparentemente, usual, mas que gerou muitos resultados, pelo fato de terem estudado em
grupos cooperativos e solidários (com divisão de função, responsabilidade e competência
individual) e não em pseudogrupos, ou mesmo, virtualmente, como de costume, desorientando uma
metodologia que poderia ser bem dirigida e orientada. Nesse acompanhamento dos seminários,
aprendi muito com meus estudantes e na Faculdade de Letras, pois essa ponte entre o que ocorria
no ambiente universitário e como processávamos os estudos de literatura na casa do estudante era
muito benéfico a eles e a mim.
Eu trazia novidades, vídeos, músicas, poemas, crônicas e textos críticos que eu via nas
aulas do meu curso para ampliar o saber de meus estudantes nos estudos secundários e de
preparação para o vestibular. Isso tornava minhas aulas de literatura totalmente diferente das aulas
dos professores de literatura da escola pública da sede de Pentecoste; essa avaliação eles mesmos
faziam.
Como essa experiência traz no cerne princípios da metodologia da Aprendizagem
Cooperativa, oriento-me ainda por uma concepção vygotskyana utilizada por Alice Fontes e
Ondina Freixo, as quais dizem que “a Aprendizagem Cooperativa encontra a sua explicação teórica
em alguns conceitos dessa teoria como, por exemplo, a Zona de Desenvolvimento Proximal”
(FONTES; FREIXO, 2004, p.26).
O pensador soviético enfatiza o valor da interação social como motor para a
aprendizagem. Ao término, tenho sistematizada, a análise e a escrita de uma prática de ensino que,
ao passo que é transportada pelo tempo, também é ressignificada, orientando o fazer pedagógico
de hoje. A mesma poderia permanecer no anonimato como tantas outras, porém, agora, poderá
impactar outros profissionais da educação.
Traduzindo o conceito jossoneano das buscas, destaco aqui o da busca da felicidade.
Entendo que, essa busca pela felicidade implica ter um sonho, um projeto de vida para realizar,
tanto no nível individual quanto no social porque é quase impossível ser feliz sozinho. A felicidade
é algo coletivo, é além da dimensão material, é algo que passa pela descoberta de si e do outro.
Dessa forma, obter uma vida melhor, com dignidade e direitos garantidos é um grande passo, mas,
além disso, entendo que precisamos participar de uma comunidade solidária, amorosa e cooperativa
para, de fato, nos sentirmos felizes, apesar de que, ainda assim, não se garante, obrigatoriamente,
que todos devam estar felizes.
145
A felicidade, no meu entender é algo subjetivo, um estado de alma, mas acredito que
essas condições proporcionam e aproximam o indivíduo desse estado de felicidade, embora
alternados por momentos de ausência e presença desse sentimento. Sobre as buscas orientadoras
dos itinerários e das escolhas de vida, Josso discute o fato de que:
As narrativas de vida contam itinerários ao longo dos quais os autores qualificam as suas
experiências de vida classificando-as, quer em períodos felizes, quer em períodos psíquica
ou fisicamente dolorosos. A vida humana apresenta-se, pois, de forma ininterrupta nesta
dialética do bem-estar e do sofrimento. (JOSSO, 2004, p.88-89).
Ao longo de minha vida, observei que não deveria dizer que sou feliz, mas que tenho
momentos de felicidade e momentos que me sinto órfã dela. Hoje, ao narrar minha história no
PRECE percebo, claramente, que a todo momento eu buscava a felicidade na aprendizagem de
saberes para conseguir ser aprovada nas provas do Ensino Médio da EJA e do vestibular da UFC.
Dessa forma, com essas aprovações eu teria um momento de felicidade e meus amigos também,
pois, quando cada um de nós era vitorioso em provas de EJA ou de vestibular, ficávamos felizes
ou tristes, porque havia sempre alguém no grupo que era vitorioso e outro que não obtinha o mesmo
êxito. Sendo assim, a nossa felicidade não era completa, era uma sensação de estar e não estar feliz.
A partir dessa experiência afirmo que a felicidade é algo social e necessitamos vivenciá-la com
outro.
Os Seminários Literários eram parte de um plano de estudo global de todas as
disciplinas do ensino médio que nós, a liderança do PRECE, planejávamos para aplicar com os
estudantes da EJA e do pré-universitário. O planejamento desses seminários era feito junto com os
estudantes seminaristas que eram em número de 20, uma dupla para cada livro paradidático,
escolhido pela UFC a cada vestibular anual que divulgava uma lista de 10 livros, a maior parte
deles da literatura cearense para o certame. A prova de Língua e Literatura e o tema da Redação
eram feitos a partir de temas e textos de um ou mais livros dessa relação, por isso, a leitura dessas
obras era tão importante para nossos estudantes. Cada dupla se encarregava da leitura do
paradidático e de alguns textos críticos, da discussão dessas leituras, da organização de um
seminário literário para ser apresentado para o restante da turma que era em torno de 20 a 25
estudantes que deveriam também ter lido as obras e textos críticos sobre essas obras.
Diante do valor que havia em aprender sobre as obras, os 20 estudantes seminaristas,
quase todos monitores de disciplinas, tinham mais responsabilidade que os outros, porque teriam
146
que aprender para eles e para ajudar o restante da turma. Isso eu deixava claro e estava sempre a
alertá-los de sua missão nessa conjuntura de estudos.
Sobre a evolução dos estudantes seminaristas, vi neles um entusiasmo maior que eles
mesmos, admirava-me tanto o empenho e superação em aprender, em se preparar para aquela prova,
definidora de suas vidas e de sua felicidade, através dos seminários. Nesse ano, eu era estudante
universitária do curso de Letras, e quando eu contava a minha história de vida, do que tive que
enfrentar para entrar na universidade, para meus estudantes, isso era um exemplo vivo de superação
de dificuldades para poder vencer.
Os estudantes que chegavam ao projeto para continuarem sua escolarização ou para se
prepararem para o vestibular eram muito interessados e ávidos para estudar. Vinham nessa busca
por aprendizado, objetivando o crescimento intelectual e sonhavam com uma vida melhor. Na
verdade, todos vinham com o objetivo de buscar saída para um futuro diferente do de seus pais, na
maioria agricultores e pescadores de baixa renda, sem desmerecê-los. Não somente eles, eu também
sonhava em mudar a minha vida, cheia de ausências, e juntos sonhávamos em sermos mais felizes
e minimizarmos os momentos dolorosos.
Ao orientar cada seminário, sugeri que eles iniciassem a leitura espontânea dos livros,
depois fizessem um breve resumo, e seguissem em uma segunda leitura, mais crítica e analítica à
luz de algumas teorias da literatura cearense e brasileira de mais fácil compreensão. As indicações
das obras teóricas eu conseguia com meus professores do curso de Letras.
Os estudantes realizavam o seminário com muita responsabilidade e organização.
Como eu já tinha a experiência acadêmica dessa técnica, eu fiquei surpresa com o resultado final
dos seminários os quais foram muito melhores do que muitos dos que eu costumava ver na
graduação. Eu mesmo considerei que eles me superaram ao apresentarem os Seminários Literários
no PRECE, pois foram muito desenvolvidos tanto na dimensão cognitiva quanto na dimensão
social, na interação e cooperação dispensada pelos precistas na troca de ideias.
Para fechar o nosso trabalho feito na preparação para a prova de vestibular da UFC, os
estudantes e eu promovemos dois dias de revisão dos estudos e seminários literários dados no
decorrer do semestre. Essa culminância foi o clímax e a constatação de todo o esforço dos
estudantes, empreendidos nas leituras silenciosas das obras e da sua crítica; nas discussões de
grupos maiores, (geralmente de cinco componentes para falarem de temas das obras afins) e das
duplas (preparação da apresentação da obra escolhida), nas aulas ministradas por mim para
147
introduzir os conteúdos, no isolamento e concentração que esse tipo de atividade exige e nas
análises das mesmas. Esses dois dias de reapresentação dos seminários dados no decorrer do ano
2000 foram nomeados por mim como “Sabadão da Revisão” e “Domingão da Revisão” 10. O evento
ocorreu em dois fins de semana seguidos, na escola João XXIII, na cidade de Pentecoste.
Com essa experiência, hoje, penso que nem tudo se define pelo método em si, em ser
bom ou ruim, mas em sua funcionalidade e aplicação contextualizada com criatividade, e ainda se
é utilizado como uma pedagogia tradicional ou recriada por uma visão de pedagogia renovada e
ativa. Penso que há métodos e técnicas cobertos pelo véu da tradição infrutífera que podem ser
recriados e impregnados de princípios renovadores e democráticos que proporcionam a
participação ativa do estudante, cheio do ideal libertador e conscientizador da própria realidade dos
agentes envolvidos no ensino-aprendizagem.
Entendo que, em muitos casos, o que diferencia no plano e execução de práticas
educativas é a formação dada ao professor dessas práticas, que princípios de educação existem
cristalizados na mente desse líder de turma, que experiências libertadoras esse educador teve,
dentre outras possibilidades.
A nossa realidade na década de 1990, no interior do Ceará, era de ausência de
professores com formação nas áreas específicas nas escolas públicas e privadas para preparar bem
o estudante para a seleção do vestibular da UFC ou de outras universidades, de forma que muitos
estudantes nem sabiam o que era um curso superior e onde cursar. Era uma realidade longe dos
olhos deles, mesmo sendo um direito disponível para muitos, no setor público, a eles não era dada
essa garantia pelos gestores públicos.
Quando mostramos essa oportunidade e as viabilidades de concretização dessa possível
transformação de vida, tudo brilhou e surgiram muitas ideias, planos e projetos nas esferas
individual e coletiva.
Desde o início do PRECE, os grupos de estudo funcionavam satisfatoriamente, com
poucos conflitos, penso eu que pelo fato dos estudantes participarem por decisão própria, e não por
obrigação. É fato que alguns eram convencidos por seus familiares, mas eu sentia na convivência
com eles que estar no PRECE era algo vital e seguro para o futuro de cada um, no espaço da casa
de farinha, inicialmente, e em outros espaços, quando a experiência se multiplicou. Os depoimentos
10
Entrevista estruturada feita a estudante participante dos Seminários Literários do PRECE Francisca Mauzirene Alves
Teixeira - Anexo G
148
que eu ouvia em minhas aulas, levam-me hoje a essa convicção de que os discentes tinham uma
total liberdade para encaminhar as suas trajetórias de vida.
Todos os facilitadores do PRECE procuravam trabalhar com o estudo em células em
suas disciplinas. Dessa forma, eu seguia essa máxima, mesmo que a técnica dos Seminários
Literários fosse, por natureza, mais expositiva, eu os orientava a se reunirem para discutir as obras
lidas e planejarem a apresentação do seminário. Eu acompanhava, dando o suporte e apoio em suas
solicitações, mas eles sinalizavam ter autonomia e proatividade. Com isso, avançavam e
conseguiam filmes, músicas, poesias, imagens que abordassem o mesmo tema, trabalhando,
despretensiosamente, a transdisciplinaridade entre os diferentes formatos de arte. Faziam um
roteiro da apresentação em folder para distribuírem aos estudantes que também teriam a tarefa de
ler a obra de cada seminário.
Eu me extasiava com o nível de organização e de capacidade deles para aprenderem os
conteúdos e com a sensibilidade para os relacionamentos com o outro. Percebi nessa experiência
que o nível de cooperação mútua entre os estudantes aumentava. Penso que esses resultados eram
uma conquista de todos nós, líderes e facilitadores do PRECE, porque esses princípios eram
ensinados por todos nós, nos momentos de aulas, nos encontros com os coordenadores de
disciplinas, nas reuniões de gestão da parte pedagógica, nas reuniões de projetos comunitários, etc.
No PRECE também havia poucos professores graduados, pois em 2000, poucos
estudantes universitários da área de licenciatura tinham se graduado. Eu, por exemplo, era
estudante universitária e já atuava nas aulas de literatura por falta de um graduado. Não esqueçamos
que o PRECE foi, genuinamente, um movimento educacional de caráter estudantil, de estudo entre
pares, portanto, o estudante mais experiente ajudava o estudante com menos experiência e, assim,
o agrupamento foi se constituindo, sem ansiedade que seus estudantes se graduassem. Eu
acompanhava os estudantes durante os sábados à tarde toda, com um intervalo para o lanche. Para
a semana, eu deixava atividades para serem feitas em células (grupo), mostradas a mim no fim de
semana, momento em que as corrigia antes da nova aula.
Para trazer uma novidade, resolvi propor a eles que faríamos a revisão dos seminários
literários na cidade, com isso, promoveríamos uma interação maior entre os dois grupos de
estudantes do espaço rural com os estudantes do espaço urbano. Conseguimos o espaço que foi a
escola da CNEC João XXIII, por meio de um participante do PRECE, que estudava nessa escola.
149
Para o deslocamento dos estudantes de Cipó, alugamos um pau de arara11, pois esse era o único
transporte escolar da época, em nossa região. Tinha ainda o problema da falta de dinheiro para
oferecer lanches e almoço e nem os estudantes das comunidades rurais tinham condições
financeiras para isso. Como tínhamos que pensar em tudo, decidimos que cada estudante da cidade
levaria um ou dois estudantes das comunidades rurais para almoçarem em suas casas, todos
concordaram e foi um sucesso.
No fim de cada dia, iniciamos a avaliação da atividade e os depoimentos dos estudantes
foram emocionantes. Eles falaram que, tanto em aprendizado cognitivo quanto em interação social
e afetividades, os Seminários Literários trouxeram muito aprendizado. Sobre o almoço, os que
receberam um amigo em sua casa, afirmaram ter sido genial, a ideia de poder oferecer um almoço
e interagir mais. Segundo os que foram almoçar, eles sentiram que foi honroso ter um almoço
preparado especialmente para eles. Outro ponto destacado foi o fato de poder conhecer a família
do colega de estudo, poder conversar, almoçar juntos, enfim, foi tudo agradável e carregado da
dimensão afetiva. Posteriormente, percebi que eles ficaram mais próximos uns dos outros e isso
maximizou o aprendizado nas minhas aulas. Leiamos o que pensa, hoje, uma professora da rede
municipal de Fortaleza, então estudante do PRECE a qual apresentou um dos Seminários Literários:
A troca que havia dos meninos da zona rural almoçar nas nossas casas aqui da sede era
muito interessante, porque você estreitava os laços de amizade, você até debatia alguma
coisa que tinha acontecido no seminário, bem como você ajudava também, tinha a
oportunidade de estar matando a fome de alguém. Era ao mesmo tempo a fome da comida
e a fome literária. Assim, era um momento muito interessante, muito rico, de trocas. [...].
o ganho afetivo-social foi a questão das amizades, porque eu vejo que os meninos do
PRECE, que estudaram comigo na época, são como se fossem irmãos. O ingresso nas
universidades deles é como se fosse o ingresso de alguém da família. E a gente tem
amizades que vão para a vida inteira, que vão até hoje. (MAUZIRENE, 2018).
Vi que essa proximidade entre os estudantes fez com que eles se conhecessem mais e
à medida que se abriam para a mútua cooperação, nessa identificação de sonhos, de lutarem por
uma mesma causa, contra as dificuldades enfrentadas na luta pela conclusão da escolarização
(ensino fundamental ou médio) ou pela aprovação tão sonhada no vestibular; enfim, juntando tudo,
essa era a eterna busca pela felicidade, pela vitória, pelas conquistas dos que enxergavam à frente.
11
Caminhão de boleia e carroceria feita de ferro e madeira, com bancos de madeira dispostos na extensão dessa
carroceria, coberto com lona para proteger da chuva e do sol. Aberto nas laterais, e traseira. Conta com uma pequena
escada de ferro para as pessoas subirem. Não há nada para os passageiros se protegerem de quedas em caso de acidentes.
(Nota da autora).
150
A busca de si é inseparável de uma relação com outrem, mesmo quando, durante um tempo,
se privilegia uma exploração de si, em relação a si mesmo, a partir de autopercepções e de
auto-observações, sustentadas, ou não por um quadro terapêutico ou de desenvolvimento
pessoal. Nós não saberíamos viver, mesmo como eremitas, sem pertenças (reais ou
simbólicas). (JOSSO, 2014, p.95).
Para tudo que íamos realizar no PRECE, pensávamos no coletivo, em algo que não
seria somente para nós, mas para todos, não havia lugar para o individualismo, por mais que a nossa
natureza humana, em algum momento desejasse isso, não havia terreno fértil para tal
comportamento ou atitude. O sentimento de pertencimento também era algo muito presente em
todos os estudantes do PRECE.
Sentir-se pertencente ao grupo precista sempre foi um sentimento notório por todos, a
começar pelos líderes pioneiros e isso foi tomando conta dos novos que chegavam, porque esse
estado de espírito, de se sentir integrado no grupo sempre contagiou em todas as fases da história
do movimento. De acordo com minhas experiências no PRECE, sentir-se integrado, significa que,
quando não estamos no grupo, fazemos falta a todos os membros e que, quando estamos presentes,
inteiros, sentimos uma áurea agradável liberada por todos a partir da presença. A pertença é algo
152
12
Primeira logo do PRECE – Anexo H
153
nossas ações educativas se deram na esfera não formal de educação, porém a partir de 2008 a ideia
ganha estatuto de formalidade se transformando em um projeto de graduação da UFC, com o
objetivo de minimizar a taxa de evasão de estudantes de baixa renda na universidade. Depois, a
experiência já fundamentada pelos pressupostos teóricos da Aprendizagem Cooperativa ganhou
outros passos na escola secundária estadual e municipal do Ceará.
Pensando a Aprendizagem Cooperativa e a teoria socioconstrutivista de Vygotsky,
Alice Fontes e Ondina Freixo afirmam na publicação Vygotsky e a Aprendizagem Cooperativa que
o conceito Zona de Desenvolvimento Proximal 13 é fortalecido nas práticas educativas que se
utilizam da metodologia da Aprendizagem Cooperativa. Vejamos o que as autoras comentam
acerca dessa união de conceitos em uma prática pedagógica:
13
[...]. “Para Vygotsky, a aquisição da linguagem representa o momento mais importante do desenvolvimento cognitivo.
Enquanto outros autores se preocuparam apenas em estudar o desenvolvimento cognitivo real dos alunos, aquilo que
já tinha sido desenvolvido, Vygotsky foi mais longe e estudou as funções ainda em desenvolvimento, ou seja, o nível
de desenvolvimento potencial. É baseado nesta perspectiva de desenvolvimento que Vygotsky introduz o conceito de
zona de desenvolvimento proximal (ZDP): distância entre o nível de desenvolvimento real de uma criança (ZDR) –
realização independente de problemas – e o nível mais elevado de desenvolvimento potencial determinado pela
resolução de problemas sob a orientação de um adulto ou trabalhando com pares mais capazes (ZDP). A zona de
desenvolvimento proximal (ZDP) é, portanto, percepcionada pelo autor como uma atividade que se vai construindo,
no tempo, e, portanto, é histórica (Vigotsky, 1934:1998). A zona de desenvolvimento proximal é um espaço teórico
que se origina pela interação entre o professor (ou o par mais capaz) e o aluno em função do conhecimento sobre a
tarefa a ser realizada e dos saberes e recursos utilizados pelo professor. Aquilo que no momento é realizado pelo aluno,
com assistência. Não existe em cada aluno uma só zona de desenvolvimento proximal, mas inúmeras zonas que se vão
criando em função das tarefas que o aluno tem de realizar. Claro que nem todas as tarefas que os alunos executam
necessitam de ajuda, nem toda a ajuda gera uma ZDP, nem tão pouco todas as atividades desenvolvidas pelos alunos
têm o mesmo efeito em cada um deles”. (FONTES; FREIXO, 2004, p. 17-19)
154
contexto de estudo, acionava-se neles a zona de desenvolvimento proximal, ou seja, esse dispositivo
ia se construindo na interação, no espaço, no tempo, sendo, portanto, histórico.
Na ZDP aprende-se não mais sozinho, mas sob a orientação de um facilitador ou de um
colega mais capaz. Essa integração de saberes possibilitava, em algum momento, que todos
pudessem cooperar com o outro em determinada disciplina. Nos Seminários Literários, os
estudantes aprendiam muito com seus pares, se construindo nesse processo acionado pela ZDP que,
posteriormente, em processo de desenvolvimento, ampliava-se o aprendizado na universidade.
Vejamos o depoimento de Mauzirene, que realizou dois desses seminários literários:
No geral, a minha participação nos seminários literários dos anos 2000 foi de muito
proveito, tanto na vida pessoal quanto na vida acadêmica que seria iniciada no ano
seguinte. [...] e ser protagonista nesses seminários foi muito bom, porque [..] a partir do
momento que a gente era chamado para dar um seminário, assim como quando a gente era
coordenador de células, a gente, automaticamente já tinha a autoestima elevada, porque
outra pessoa tinha achado que você era capaz de administrar aquela célula, aquele grupo,
aquele seminário. [...] vejo tudo aquilo como um combo de coisas boas que elevava nossa
autoestima, nos fazia sentir-se capaz de passar para os outros. Ao mesmo tempo, para mim
que fiz o curso de Letras, funcionava como uma espécie de ensaio, como se fosse já um
treinamento para os seminários que eu iria apresentar na faculdade e assistir, [...]. [...] de
você ajudar a quem está precisando, a quem não dominava tanto a literatura, quem não
gostava tanto, vamos dizer assim, de literatura [...]. (MAUZIRENE, 2018).
docente, com certeza, mais lúcida e mais forte para desenvolver aprendizados mútuos através da
cooperação e da solidariedade aonde quer que eu atue.
A descoberta do conceito de Marie Christine Josso (2004) acerca das buscas, aqui
destacando a busca da felicidade, me fez refletir, que em tudo que realizamos em nossa vida,
estamos sempre buscando a felicidade. Sempre procurando acertar, embora nessa busca haja erros;
nesse processo, vamos estar em constante construção de nosso ser que não reside isolado, mas
mediante a busca da felicidade coletiva. Nessa pesquisa (auto)biográfica, acentuo, fortemente, o
valor desse outro, os precistas, os que caminharam e os que caminham ainda hoje, lado a lado nessa
busca. Na verdade, penso que para poder me sentir feliz, em muitos casos, preciso de alguém para
confirmar essa felicidade e participando dela.
Destaco ainda que foi essencial descobrir e consolidar através da análise, o valor que
tem a teoria de Vygotsky para os pressupostos teórico-metodológicos da Aprendizagem
Cooperativa e para a nossa experiência. Vi a importância da dimensão sociocultural dada por
Vygotsky no desenvolvimento e aprendizagem do estudante, pensamento que se liga às práticas
educativas em Aprendizagem Cooperativa.
Trabalhar de forma cooperativa significa passar por novos desafios e isso inclui tanto
os estudantes quanto o professor. Os desafios de trabalhar em grupo, relacionar-se com pares,
cooperando uns com os outros, construindo aprendizado e aprendendo a conviver não é algo fácil,
pois surgem sempre conflitos, mas isso amplia ainda mais o aprendizado que não deve ser somente
no âmbito cognitivo, de garantir o domínio dos conhecimentos historicamente acumulados, mas
também colocar lado a lado as práticas docentes que valorizem as aprendizagens da dimensão
social.
Em convergência, esse foi também o jeito que Vygotsky entendeu que seria a melhor
forma de aprender. Ao término tenho escrito e analisado mais um pouco de minha história, ou
melhor, de nossa história, que vai do individual ao social, por meio de uma prática de ensino que
resiste ao tempo, tendo hoje novo significado.
O PRECE, conforme falei antes, a partir de 2003, foi saindo dos limites de Cipó e
ganhou outras comunidades pela ação de novos estudantes, impregnados pela pedagogia do
156
exemplo dos seus antecessores. As EPC foram gestadas pelos próprios estudantes, muitos deles
foram se construindo, muito cedo, como mestres de novos discípulos que chegavam a cada ano.
Bem antes dessa multiplicação do PRECE começar no ano de 2003, eu desejava iniciar um projeto
semelhante ao PRECE em minha comunidade, de nome São Pedro, zona urbana periférica de
Pentecoste. Eu tinha saudade do meu trabalho na comunidade, discutido antes, por isso, eu pensava
em uma forma de resgatar aquela experiência com crianças e adolescentes, porém, com foco nos
estudos.
Em parceria, Andrade e eu conversamos e vimos que era viável a criação da EPC
devido haver alguns estudantes na comunidade que poderiam desenvolvê-la, além de mim, que
poderia realizar as ações aos fins de semana. Com isso, em 2004, iniciei a implementação da Escola
Popular Cooperativa Ombreira na minha comunidade, com Manoel Andrade e os estudantes
ligados ao PRECE que como eu nasceram na localidade.
Sabíamos da existência de um prédio do DNOCS abandonado, logo na entrada da
comunidade São Pedro, que abrigava adolescentes e jovens marginalizados que se drogavam.
Tivemos daquele lugar, uma nova visão, vimos não mais um lugar para a marginalidade, mas um
lugar para estudantes - crianças, adolescentes e jovens estudarem, brincarem, se alegrarem e
aprenderem, desde pequenos, a sonharem com uma vida melhor, pois essa comunidade é conhecida
por ter muitas crianças, portanto esse foi o nosso público inicial. Sonhamos com um lugar novo,
espaço para transformação de vidas e a partir desses sonhos, Andrade foi estimulado por nossa
vontade, digo nossa, porque não era somente eu a maior interessada, mas especialmente, eu e
Marcilene Oliveira, pois éramos as primeiras precistas dessa comunidade a ingressarem na
universidade e a saber do valor que tinha fundarmos um PRECE em nossa comunidade.
À nossa causa, somou-se a líder comunitária Rosa Araújo, uma educadora que ainda
ensinava as crianças a ler em uma grande mesa na sala, em sua própria casa. Com o aumento da
demanda, juntou-se a nós Jorge Araújo. Ele tinha experiência em trabalhar com meninos de rua em
Fortaleza, e, posteriormente, os estudantes Elvis Marques, Railson Feitosa, Rayssa Feitosa, Isaqueu
Viana, Manoel Barbosa Filho, Carlos Augusto, Nayane Azevedo, Jaqueline Viana, dentre outros
que se doaram a essa causa (figura 41). Assim, compusemos o primeiro grupo de fundadores da
Associação EPC Ombreira, em que, atualmente, todos estão na universidade, alguns já concluíram
seus cursos superiores, com exceção de apenas dois que preferiram trabalhar logo.
157
sobre isso, realizávamos visitas aos locais menos conhecidos da comunidade, proporcionando
atividades de lazer que tiravam os estudantes adolescentes dos riscos próprios da sua idade. Havia
um projeto bastante ativo que os meninos amavam, era o da Escola de Futebol Infanto-Juvenil no
qual se treinavam as técnicas do jogo. Dessa forma, era promovida a interação do grupo,
proporcionando o preparo físico com alongamentos e aquecimentos; trazendo a saúde do corpo e
da mente às crianças e adolescentes através do esporte. O grupo realizava torneios comunitários
que não tinha somente o objetivo de ganhar, de forma competitiva, mas jogar, de modo educado e
saudável. Para realizarmos esses projetos, alguns dessa equipe se responsabilizavam por mais de
um projeto.
Dessa forma, Jorge do Carmo iniciou o trabalho, usando, principalmente, a pedagogia
do xadrez e outros jogos educativos que eram o ponto forte de nosso trabalho nessa escola. Em
2007, os projetos que desenvolvíamos eram: Ação Complementar à Escola Pública; Educação de
Jovens e Adultos, Formação de Estudantes CooperAtivos, Horta Escolar Comunitária, Inglês
Cooperativo (figura 42), Escola de Futebol Infanto-Juvenil, Xadrez (figura 41) e Jogos Populares;
e Teatro. Nesse ano, atendemos um total de 104 crianças, 37 jovens e 11 adultos. (Relatório 2007,
p. 25).
Os resultados das nossas atividades educacionais e recreativas eram muito bons, apesar
dos poucos recursos que tínhamos oriundos do projeto aprovado da Fundação Lemann. Eis alguns:
um grupo de líderes comprometido com a Associação Escola, a diminuição da violência entre as
160
14
MIGNOT, Ana Chrystina; SOUZA, Elizeu Clementino de. Modos de viver, narrar e guardar: diálogos cruzados sobre
pesquisa (auto)biográfica. Revista Linhas. Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 10 – 33, set./dez. 2015. Disponível em:
http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas. Acesso em 09 maio 2019.
161
começou, na casa de farinha, em Cipó. No momento, a iniciativa ainda não é sistemática, ocorrendo
somente, aos fins de semana, mas estamos sonhando e planejando a criação de uma escola de
educação infantil em Aprendizagem Cooperativa, novamente, inspirada na forma que se
estabeleceu o PRECE em 1994.
Vejo um futuro promissor dessas novas influências teórico-metodológicas das
pesquisas em história de vida e formação e ainda da nossa história, aqui apresentada. Disso tudo,
teremos as bases teóricas para iniciarmos a nova jornada que será essa escola com responsabilidade
social que demarcará um novo momento na história do PRECE. Jornada de trabalhar com as
crianças e a partir daí, estudar e conhecer outras metodologias ativas, possíveis de aplicar com a
infância, e, baseando-nos em nossas experiências, poderemos iniciar com a Aprendizagem
Cooperativa e as Histórias de Vida. Sobre como trabalhar com esse novo público, enfocando o
estudo e a pesquisa a partir de suas histórias de vida Mignot; Souza (2015) vão dizer que:
Ao entrar em contato com esse trabalho do qual destaco o texto acima, senti o quanto
foi importante todas essas experiências docentes em História de Vida feitas por mim e por meus
amigos até hoje, de modo prático, sem a previsão de um estudo teórico metodológico como o que
tem se apresentado a partir dessa pesquisa e do que pode vir depois dela. Segundo esse estudo
apontado pelo excerto, é possível, em nosso trabalho com crianças, nos utilizarmos das
investigações sobre as histórias de vida infantis na escola. Com a minha experiência com crianças
desde jovem, percebi ser viável trabalhar com as crianças, suas histórias de vida (figura 43).
Martine Lani-Bayle (2008) em seu artigo “Histórias de vida: Transmissão intergeracional e
formação”, discute um pouco essa questão afirmando que as crianças:
Buscavam na verdade, era compreender a sua vida, ou o que a sua vida tinha sido até então
para elas e, por essa razão, precisavam saber o que lhes tinha acontecido e porquê. Os
adultos, que detinham esses saberes ausentes sobre elas, recusavam-se a lhes dar o que
lhes faltava. Supostamente, para protegê-las de aprendizagens difíceis ou dolorosas que
lhes diziam respeito diretamente. (ibidem, p.300-301).
Cabe iniciar discutindo que, apesar do método biográfico ter sido por muito tempo
relegado por outros grupos de pesquisa científica, os quais prezam o rigor, bem como o dado e o
racional acima de tudo, não desanimei no percurso de pesquisa por mim pensado, por saber que
essa ideia de ciência pura já se encontra em processo de superação. Nas últimas décadas, muitas
pesquisas têm demonstrado que o método biográfico tem sua autonomia científica e se apresenta
muito mais desafiador dentro de uma pesquisa pautada na ética e na legislação da pesquisa
científica.
O livro de Ferraroti (2014) traz uma discussão que nos faz entender esse processo de
fincar as bases epistemológicas do método biográfico como uma episteme vigorosa em relação aos
seus achados científicos. A metodologia das narrativas de vida tem se mostrado relevante por
trabalhar de forma individual, sem, contudo, deixar de mostrar o conjunto, o contexto. Assim,
apresenta-se um leque de oportunidades, por exemplo, a análise de narrativas autobiográficas nas
pesquisas educacionais, caso de meu estudo, no qual veremos a apresentação e discussão do meu
referencial teórico dentro do método biográfico.
O método biográfico
A partir da leitura desse fragmento, bem como do texto integral, tive a sensação de que
a autora dava ênfase a questões mais psicológicas, no âmbito mais terapêutico, porém a estudiosa
desfaz essa possibilidade. Ele diz não haver uma pretensão de se utilizarem as histórias de vida
como análise clínica no sentido curativo, mas no sentido (trans)formador, diria eu, processual, algo
que não ocorre de uma vez, mas numa construção diacrônica. Sobre as crianças, com as quais ela
trabalhava, dizia que na verdade “o que elas buscavam [...], era compreender a sua vida, ou o que
sua vida tinha sido até então pra elas e, por esta razão, precisavam saber o que lhes tinha acontecido
e por quê” (LANI-BAYLE, 2008, p.300-301).
Outro elemento que assenta os pilares desta episteme é a já mencionada carta da
ASIHVIF-RBE - Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e da Pesquisa
Biográfica em Educação (ASIHVIF-RBE, 2016). A ASIHVIF-RBE congrega pesquisadores,
professores e estudantes, dentre outros, “sensibilizados aos desafios da educação e os laços entre
formação e ‘história de vida’”. Suas pesquisas e suas atividades se inscrevem no campo da
formação durante toda a vida, assim como no aspecto da pesquisa biográfica (ASIHVIF – RBE,
2019, p. 177 - 178). Vejamos no fragmento abaixo um pouco de sua consistência e finalidades:
[...] a finalidade da ASIHVIF- RBE é desenvolver práticas de história de vida por meio da
narrativa no âmbito da formação, da pesquisa e da intervenção. Trata-se de um
165
procedimento que coloca, no centro, o sujeito narrador, enquanto aquele que define seu
objeto de busca e desenvolve um projeto de compreensão de si para si e pela mediação do
outro. A perspectiva que orienta, media e apoia as práticas da narrativa de vida é a
emancipação pessoal e social do sujeito. Entende-se por “emancipação” a ação que tende
a substituir uma relação de assujeitamento por uma relação de igualdade. Enquanto prática
de formação, a narrativa de vida permite ao sujeito apreender seus objetivos existenciais
no seio da coletividade. Enquanto método de pesquisa qualitativa, a narrativa de vida
constitui um procedimento inovador em relação aos modelos de pesquisa mais clássicos.
Enquanto prática de intervenção, a narrativa de vida permite ao sujeito, com base numa
explicitação de seu percurso de vida, dispor dos meios necessários à tomada de
consciência reflexiva e crítica, visando situar-se como ator social num projeto de ação
mais lúcida e mais pertinente. Este procedimento autobiográfico tem então uma tripla
função: a de pesquisa (produção de conhecimento), a de formação e a de intervenção
(configuração de si numa perspectiva de ação social) [...] (A carta da ASIHVIF-RBE in:
Revista Brasileira (Auto) Biográfica, Salvador, v. 01, n. 01, p. 177-179, jan. /abr.2016.)
Como vimos, a carta aponta para algo que vai se firmando e se construindo como uma
inovação na educação, que é a utilização da narrativa de vida como um poderoso instrumento
formativo. Entendendo o valor que há na conjunção entre formação e pesquisa, sem deixar o maior
alvo que é a intervenção. A orientação da Associação, por meio de sua carta de princípios, norteia
fazeres e põe o sujeito narrador como agente que possui um “objeto de busca” e sobre este se
debruça para compreendê-lo a partir dele próprio e através do outro. A orientação posta defende
que haja um processo que não despreze a dimensão pessoal e social do agente e isso é entendido
como uma luta para neutralizar uma relação de submissão por outra de igualdade, ou digo, eu de
equidade entre os envolvidos. A carta destaca que a narrativa de vida como processo formativo
evidencia interesses de vida dentro do ideal de grupo. Em respeito ao método de pesquisa
qualitativa, a narrativa de vida inova quando pensamos no modelo de pesquisa hegemônico que
privilegia o dado preciso quando na realidade, sabemos que nada mais é tão certo e infalível.
Finalmente, quando pensamos em fazer intervenção nos problemas do nosso contexto, a narrativa
de vida propicia mecanismos definidores de uma transformação profunda de realidades difíceis em
determinadas situações para uma mudança consistente das mesmas.
Na mesma tônica da ASIHVIF- RBE, há um grupo organizado com o objetivo de se
constituir como uma base sólida, fortalecendo-se cada vez mais, multiplicando-se pelo Brasil e se
constituindo como um movimento científico, com a possibilidade de pesquisar em ambientes
educacionais diversos, a partir de uma multiplicidade enorme de temas e públicos. Esse promissor
grupo de pesquisa senta base em boa parte das universidades públicas e privadas do país. Pelo
pouco que tenho observado, participando por duas vezes de seus encontros internacionais, os quais
consistem em serem momentos de clímax de todo o processo de construção de pesquisas nessa área
166
Nos cinco pontos destacados do estatuto da Biograph, vejo o quanto foi importante a
criação desse movimento de profissionais brasileiros da pesquisa (auto)biográfica. Considerando
o que vem no quesito primeiro, justifica-se o valor que há em se congregar, em cooperação no
desnudar dos fatos, das narrativas de existência dos objetos estudados, sejam indivíduos, eventos
ou instituições que foram preponderantes e impactantes no nível individual e coletivo para
melhorar a educação escolar e universitária. Enfatizo ainda o valor que há na promoção e
coordenação de estudo, ensino, pesquisa e a intervenção naquilo que foi considerado empecilho ao
crescimento da aprendizagem dos agentes educacionais.
Valoroso ainda é a promoção de eventos para divulgar os resultados obtidos da ação do
estudo, ensino, pesquisa e a intervenção para melhorar os resultados. Outros pontos destacados são
o diálogo, as parcerias; em tudo que se faz, fica bem melhor se tivermos companheiros com o
mesmo propósito. Sem parceiros fica mais difícil ou impossível obterem-se resultados. A união de
agentes pesquisadores e fomentadores, no âmbito da pessoa ou da instituição se faz sempre
necessária para o sucesso dos objetivos, assim como a promoção da crítica e do pluralismo de
ideias; isso tudo, essa junção de forças, tende a criar um ambiente de estímulo e fortalecimento
grupal dos pesquisadores em foco.
167
Ao fazer parte dessa Associação como sócia desde o ano de 2015, por ocasião da
apresentação de um trabalho no VII Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica em
Cuiabá, Mato Grosso, pude me aprofundar cada vez mais no conhecimento dos trabalhos teórico-
metodológicos em pesquisa (auto) biográficas, aliada esta à pesquisa em contextos de sala de aula
e de formação de professores. Ter-me associado foi importantíssimo para entender as bases
epistemológicas dos estudos em história de vida e formação, que é o percurso teórico-metodológico
por mim escolhido neste trabalho. Para compreendermos o universo das publicações desse evento
foi-me muito útil o trabalho de Mignot e Souza (2015), que publicaram o inventário das produções
para o VI Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)Biográfica (CIPA). Por exemplo, o tema da
formação aparece tematizado, segundo os autores em
Ao participar dos dois congressos e ver o alto nível de organização dos atores desse
evento científico, a competência dos palestrantes como também as apresentações de trabalhos e
ainda as diversas publicações de livros da Biograph e de seus parceiros, fiquei perplexa como quem
descobre uma mina valiosa. Senti que devia abraçar e permanecer nessa trilha que me levará a
novas experiências docentes. Além de ter o apoio com fartas referências bibliográficas constantes
nas coleções de livros da Associação publicadas a cada CIPA. A partir desse estudo da coleção do
VI CIPA pelos autores citados, pude entender mais sobre a construção de epistemologias publicadas
com uma variedade temática importante para vários interesses de estudo e pesquisa. Vi a
importância de trabalhos apresentados por estudiosos que se utilizam das narrativas de vida a partir
dos métodos (auto)biográficos na procura de entender-se mais acerca de seu trabalho, sobre a
formação de professores, mostrando o valor da memória e dos percursos de vida no nível familiar,
escolar, acadêmico e profissional vivenciados pelos agentes sociais.
Isabel López Górriz (2008, p.301) logo no início do seu texto, diz que “a autobiografia,
utilizada como método de investigação-formação, desencadeia processos formativos e educativos
profundos, gerando um modelo formativo-educativo de transformação existencial”. A autora
destaca ainda que na prática há uma investigação que produz processos “de tomada de consciência
das diversas realidades pessoais, familiares, profissionais e sociais” importantes, as quais permitem
168
mudar paradigmas gerados por um modelo “heterônomo” por outro mais “autônomo” (p.301). Vejo
nessas ideias algo novo e convincente, algo sólido que se afirma metodologicamente para o
processo formativo-educativo dos atores do ensino aprendizagem.
A partir desse estudo das publicações no método das histórias de vida, penso que
estaremos a contribuir com outros agentes deste campo a analisarem suas práticas docentes na área
do estudo-formação-ensino-aprendizagem, constituindo-se como soluções criativas em um
contexto educativo ávido por experiências diferenciadas que possam causar impactos na escola
perante os desafios postos por uma sociedade em constantes mudanças incompatíveis com o
modelo de ensino tradicional, não correspondente hoje ao que se vive na escola. Essa
incompatibilidade tem gerado uma crise escolar percebida pelo desânimo, desestímulo e apatia dos
estudantes que diante da metodologia tradicional que ainda impera na prática docente não se sentem
atraídos a gostarem de estar na escola. Por outro lado, o professor se sente meio perdido diante das
suas diversas dificuldades, inerentes ao ofício de ser professor no Brasil.
Vejo que a metodologia expressa nas epistemologias das Histórias de vida e formação
propiciaram a autorreflexão presente nas narrativas de si, por exemplo, no âmbito da profissão
docente e no papel do estudante como protagonista principal da sua aprendizagem, no que é ser
professor, no constituir-se professor, no que é ser estudante, no que é constituir-se estudante e
naquilo que cabe a ambos na sociedade atual. Esse olhar para si e para o outro poderá modificar
estruturas estéreis do sistema escolar vigente. A mudança precisa vir de dentro para fora, porque
como afirma Freire em Pedagogia do Oprimido (2011) quando os indivíduos se reconhecem como
seres históricos, alargam seus níveis de consciência e vem a possibilidade de revolucionarem e de
lutarem por uma transformação.
O pensamento freireano, em muitos aspectos se conecta com a metodologia das
histórias de vida e formação. Na experiência do PRECE, a utilização das narrativas de vida
mostrou-se bastante expressiva, gerando bons resultados; dessa forma, desde o começo de nossas
reflexões sobre a nossa prática de ensino-aprendizagem, já inseríamos Freire como nosso
referencial teórico-metodológico. Rodrigues (2007a), fala que o PRECE foi uma experiência
empírica que “se convencionou chamar de Educação em Células”. Para ele, “essa prática
metodológica constitui-se num processo de estudos em que estudantes colaboram entre si,
assemelhando-se aos círculos de estudos propostos por Paulo Freire”. Rodrigues fala que “a
proposta pedagógica do PRECE aponta para uma educação progressista fundamentada no respeito
169
e na participação horizontal dos sujeitos envolvidos nos processos educativos, conforme enfatiza
Freire no Pedagogia da Autonomia (1996)” (RODRIGUES, 2007a, p.53-54). Assim como
Rodrigues, percebi que mesmo com objetivos claros na preparação para a entrada na universidade,
nossa postura era sempre inclusiva, mediadora, horizontal e, como venho discutindo, carregada do
sentimento solidário, dialógico e transformador.
Além de Rodrigues (ibidem), a psicóloga Verônica Ximenes et al (2008), em uma
publicação junto com estudantes precistas, diz que o PRECE tem opção teórico-metodológica em
Freire e acrescenta a influência também das ideias de Carl Rogers. Além desses teóricos citados, o
processo histórico do movimento foi se delineando em uma prática de ensino dentro dos
pressupostos teórico-metodológicos da Aprendizagem Cooperativa que englobam um vasto
número de referenciais teóricos. Verônica diz ainda que todas as ações do movimento
“fundamentam-se na autonomia intelectual de jovens envolvidos e na cooperação entre eles, a fim
de proporcionar a formação de lideranças e de atores sociais comprometidos com a potencialização
de suas comunidades” (XIMENES et al, 2008, p.14). A autora aponta para a educação centrada no
estudante e pontua o valor que há em ensinar para gerar autonomia no discente. A abordagem das
histórias de vida e também da teoria freireana sempre protagonizaram um ensino-aprendizagem
voltado para o estudante como um ser histórico, criativo e agente de uma transformação de uma
situação opressora para outra, com liberdade para pensar e agir com assertividade. Essas
abordagens veem o estudante não como um agente passivo, mas ativo e rico em sua história e
saberes.
Continuando na discussão do valor epistemológico das histórias de vida, Maria Isabel
da Cunha (1997) chama nossa atenção, afirmando que a
A partir da fala da autora, destaco que quando nos distanciamos do momento de nossa
produção, do calor do ativismo professoral-formador para melhor sentir o fazer a partir do pensar
sobre, do sentir a prática cotidiana do ofício, aprendemos muito mais. Essa capacidade de criticar
a nós mesmos também nos ensina a valorizar as experiências aparentemente carregadas do malogro,
porém é quando aprendemos mais. Caminhar para si e afastar-se de si talvez seja a melhor fórmula
dentro dessa discussão. Entendo que devemos usar do dispositivo afetivo fundamental e crucial e
não de um olhar afetivo enviesado, que possa significar dispositivos afetivos posicionados de forma
contrária. Segundo Maria Isabel, olhar que não traz ressonância com a discussão teórico-crítica do
valor da afetividade na metodologia das Histórias de Vida e formação no âmbito do ensino.
Atentemos ao significado desse vocábulo, “enviesadamente”, o qual significa aquilo
que é direcionado de modo errado, inadequado, avesso e retorcido, etc. A partir disso, infiro que a
autora chama a atenção para que não trabalhemos a questão afetiva sem o devido olhar para onde
vão os nossos objetivos, que discutamos a questão dos afetos de maneira ética, respeitosa, com
amorosidade e afetuosidade com cada um dos envolvidos na relação com vistas aos objetivos do
ensino-aprendizagem nos ambientes formais e não formais.
Neste percurso teórico-metodológico, como vimos, trabalhar as histórias de vida é
também trabalhar o eu, o subjetivo. Muitas vezes, nas formações tradicionais, só se enfatiza o saber
ligado ao cognitivo, deixando-se de lado as emoções. Acerca das formações de professores de
línguas estrangeiras que priorizam mais a dimensão cognitiva, Castro (2014, p.28) afirma que “[...]
isso é fundamental, indubitavelmente, mas passa ao largo do que sentem os estudantes e os
professores. A dimensão afetiva precisa ser levada em conta na formação dos professores, e não
somente os de línguas”. A afetividade, as emoções propiciam um ambiente escolar de estudo e
formação com um clima emocional mais agradável. Essas pesquisas e outras aqui não levantadas
têm mostrado o quanto esse quesito favorece a maximização de resultados escolares satisfatórios.
E com certeza, ao se trabalhar a metodologia das Histórias de Vida, está-se a tratar dos afetos, do
eu, das relações interpessoais que compõem o ser individual e social, etc. Acerca disso, Casassus
(2009, p. 205) afirma que
[...] não há aprendizagens fora do espaço emocional, que tudo o que alguém faz tem uma
emoção na base, que o clima emocional da sala de aula é o principal fator que explica as
variações no rendimento dos alunos, que as emoções servem para pensar melhor, que elas
influem na saúde, para o bem e para o mal, que permitem a sobrevivência das pessoas e
dos grupos, que a inteligência emocional é mais importante do que a inteligência cognitiva,
171
Esses olhares e reflexões acerca do eu, no nível individual, e do nós, no nível coletivo,
encarregam-se de apresentarem as construções no campo de vida e experiências. Algo que o autor
discute e que considero fundamental é o respeito pela história do outro, da forma como se apresenta
a nós, daquilo que ela suscita, procurando nunca exercermos controle sobre a mesma. Uma das
ações que podemos ter na pesquisa com narrativas de vida é sempre informar ao ser narrado como
está sendo o tratamento com o corpus narrativo pertencente a ele. Além disso, o autor nos mostra
que na escrita autobiográfica os elementos formativos são fecundos para mostrarem a realidade
contextual, idiossincrática do homem e da mulher em suas construções na sociedade.
Pierre Bourdieu (2005), em esboço de autoanálise, deixa, mesmo que nas entrelinhas,
transparecer uma dúvida sobre a autonomia do método autobiográfico nas pesquisas em ciências
humanas. Percebo alguns vestígios das suas contribuições ao método, mesmo que perpassadas pelo
temor de tomar uma posição favorável clara. Para mim, tem sido difícil entender qual o lugar de
Pierre Bourdieu nas pesquisas (auto)biográficas. Essa dificuldade se exacerba à medida em que se
leem as análises de seus leitores. Em nota da edição francesa, diz-se:
[...] ele sabia que, tomando a si mesmo como objeto, corria o risco não apenas de ser
acusado de complacência, mas também de dar armas a todos os que ficam só aguardando
a ocasião para negar, justamente em nome de sua posição e de sua trajetória, o caráter
cientifico de sua sociologia e não enxergam o quanto o exercício reflexivo foi longamente
elaborado como um instrumento de cientificidade. [...]. (ibidem, p.22).
Parece-me haver uma enorme preocupação com o risco e a acusação da crítica de suas
obras, uma preocupação em não parecer arbitrário a tudo aquilo que foi e defendeu em sua vida de
cientista social, tudo o que lhe garantiu uma posição respeitada, construída por uma trajetória de
173
ética dentro do campo, com rigor cientifico. O conclame se dá no sentido de que não se deve
desprezar, nem se deixar despercebido o tamanho do exercício reflexivo elaborado
processualmente “como um instrumento de cientificidade” que Bourdieu realizou em sua
autoanálise. Porém, no meu entender, a postura do autor não anula a existência nesse processo na
utilização do método biográfico. Se foi usado somente como função auxiliar, mas me interessa
destacar a evolução dessa dinâmica de autonomia do método. Em Ferrarotti (2014), podemos ver
uma argumentação instigante sobre a autonomia do método biográfico, o que nos põe atentos:
A partir do excerto de Franco Ferrarotti (2014), percebo que essa discussão é histórica
e evolutiva. Como vemos, vem sendo construído um processo de autonomia que ainda está em
curso, que não parou na discussão um tanto polarizada de teóricos influentes como Bourdieu e
Ferrarotti. Cabe a nós não fugir da reflexão, sem medo de ousar e propor a nossa análise, mesmo
que iniciante. O autor deixa claro o seu processo de conscientização por meio de suas experiências
intelectuais práticas em relação ao problema da autonomia do método discutido. Em se tratando
de Bourdieu (2005), analisemos o trecho citado em seguida:
[...] Não pretendo me sacrificar ao gênero autobiográfico, sobre o qual já falei um bocado
como sendo, ao mesmo tempo, convencional e ilusório. Queria apenas tentar reunir e
revelar alguns elementos para uma autoanálise. Não escondo minhas apreensões, que vão
muito além do temor habitual de ser mal compreendido. Sobretudo por conta da amplitude
de meu percurso no espaço social e da incompatibilidade prática entre os mundos sociais
que tal percurso conecta sem de fato reconciliá-los, tenho o sentimento de que não posso
garantir - longe tampouco de me sentir seguro de chegar a tanto com os instrumentos da
sociologia – que o leitor saberá aplicar o olhar adequado, como eu enxergo, nas
experiências aqui evocadas [...] (ibidem, p. 37).
profundas talvez pelo que poderia vir do próprio horizonte científico, o qual não é imutável. O
autor fala de incompatibilidades e de não conciliação de pontos de vista. Ainda mais não se sente
seguro em realizar sua autoanálise com os instrumentos da sociologia. Por outro lado, Pierre
Bourdieu (2005) em sua reflexividade, paradoxalmente, parece mostrar brechas por meio de suas
não certezas de como se trabalhar nossa trajetória de vida na perspectiva de ciência não sendo
seduzido pelo método biográfico. Mas todas essas expressões me chegam demasiado enfáticas
transparecendo dúvida e incertezas. Desse modo:
[...]. Compreender é primeiro compreender o campo com o qual e contra o qual cada um
se fez. Sob pena de surpreender um leitor que espera talvez me ver começar pelo começo,
isto é, pela evocação de meus primeiros anos e do universo social da minha infância, eis
por que devo, como exige o bom método, examinar de início o estado do campo no
momento em que nele ingressei, por volta dos anos 50. [...]. (BORDIEU, 2005, p.40).
Destaco palavras como “bom método”, não seguir aquela história linear, iniciando a
“partir de quando se era criança, mas analisar a partir do campo no qual me formei”. Essa passagem
denota uma orientação para se chegar a uma narrativa que se diferencia do modelo criticado por
Bourdieu, assim, percebi que, em termos do método em questão, existe um Bourdieu muito
preocupado em propor uma organização de pesquisa autobiográfica diferente do corriqueiro,
convencional, em muitos casos, de acordo com sua visão, com temas pouco relevantes a um
175
propósito maior: o social. Em outros casos, cercado pela inutilidade, com pretensão a reproduzir
uma imagem real da vida de um indivíduo, sendo que isso nem sempre é possível.
Sobre a discussão, refiro-me ainda a Montagner (2007, p.04), o qual nos diz que para
Bourdieu “os eventos biográficos não seguem uma linearidade progressiva e de causalidade,
linearidade de sobrevoo que ligue e dê sentido a todos os acontecimentos narrados por uma pessoa”.
Percebo essa liberdade quando contamos oralmente ou escrevemos nossa história de vida. No
primeiro momento, vem uma parte dela e nos surpreendemos a cada narrar, pois ela vai vindo aos
poucos e não linearmente. De acordo com essa premissa de Bourdieu, esses eventos biográficos
“não se concatenam em um todo coerente, coeso e atado por uma cadeia de inter-relações: esta
construção é realizada posteriormente pelo indivíduo ou pelo pesquisador no momento em que
produz um relato oral, uma narrativa” (p.04). Tal constatação é algo que tenho vivenciado desde o
início deste trabalho. A investigação (auto)biográfica de uma pessoa ou de um grupo social vai
sendo feita, tecida por partes diferentes que compõem um universo multicor, nunca conclusivo ou
finito. Há, desse modo, sempre algo que não foi dito e que pode vir à tona.
Quanto às emoções em sua obra, elas foram equilibradas de modo a corresponder ao
balanço dado entre conteúdo e forma textual, algo que ele mesmo fez questão de esmerar, nesse
balanço fundamental, para nos trazer observações importantes para um modelo metodológico da
pesquisa autobiográfica que não seja posicionada à margem da Ciência. De modo geral, pelo
enfoque social, na obra lida, vi um sociólogo que nunca se coube naquele mundo escolar e
acadêmico, hegemônicos que, segundo ele, tinham práticas e valores pautados pelo
conservadorismo, difíceis de superar pelo fato de ele se ver diferente, em origem, cultura, ideias,
linguagem, interesses. Assim, me pareceu que Bourdieu sempre se posicionava de forma crítica em
não se formatar àquele modelo de educação francesa.
Não poderia deixar de apresentar um estudo de Passerggi (2014), o qual se detém a
analisar três trabalhos de Bourdieu, constantes em Miséria do Mundo (1993 e 2003); Esboços de
autoanálise (2005) e “A ilusão biográfica” (1986 e 1998). A autora levanta argumentos a partir de
uma tese de que Bourdieu teria pendido ao método biográfico. Ela une inferências de análises
desses três trabalhos do autor e vai tecendo uma discussão pertinente acerca das contribuições do
sociólogo ao método. Inicia a investigação pelo primeiro livro citado, especialmente, no capítulo
“Compreender”. Sobre essa leitura afirma que:
176
[...]. Entretanto, foi sem dúvidas pela harmonia entre suas propostas que fui facilmente
seduzida pelo livro, e em particular pelo capítulo “Compreender”, que se tornou uma
leitura complementar aos textos de Ferrarotti e uma forma de desmitificar a “ilusão
biográfica”, que me impedia de melhor compreender a contribuição de Bourdieu para a
pesquisa (auto)biográfica. O mais acolhedor na leitura desse capítulo era observar o
quanto Bourdieu, ao aderir ao autobiográfico, se deixara seduzir pela pessoa que narra sua
existência. [...]. (ibidem, p. 228).
Percebo que o conceito de habitus dialoga muito bem com o método biográfico e
pensando em nossas praticas no PRECE a partir das trajetórias de vida de nós agentes em ação
dentro do campo, podemos ver condições semelhantes e sistemáticas, ao passo que são distintas de
outros grupos sociais. Bourdieu (2007) em O Poder Simbólico apresenta a gênese de habitus e de
campo. Sobre o último, diz surgir como uma noção filosófica antiga, e retoma “a velha noção
aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em habitus” (p.61). Sobre a noção de campo ele
diz que inicialmente ela serviu à pesquisa, ao campo intelectual, depois vai além disso e ganha
autonomia. O autor segue descrevendo a evolução do conceito, e fala ainda que “compreender a
gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o
sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele
se geram.” (p.69). Gostaria de acrescentar outra reflexão acerca do habitus, apresentando ainda o
modo como Rogerio (2011) pensa sobre a noção de habitus:
[...] O habitus na qualidade de um sistema de disposições não é formado de uma hora para
outra. A incorporação das referências de leitura da realidade é um processo que se realiza
na prática, no contato entre os indivíduos, logo, em um ambiente datado historicamente.
As estruturas das instituições sociais, que se modificam com o passar do tempo, conforme
mudanças políticas, ideológicas, tecnológicas, enfim, culturais, se conformam nos
indivíduos, constituindo suas disposições e os indivíduos, por sua vez, tendem a se adequar
a este ambiente no qual se socializaram. As pessoas não ficam determinadas, “condenadas”
a reproduzirem as formas de vida nas quais se socializaram, mas o contexto aponta as
possibilidades de atuação do agente no campo [...] (ibidem, p.33).
estudo desse campo e das histórias de vida que se cruzam dentro dele, de acordo com o que vimos
da minha história e do que será apresentado da história de meus amigos.
Considero necessária uma pesquisa mais aprofundada dessa tipologia de habitus no
PRECE, porém, sugiro aqui alguns: habitus estudantil, professoral, acadêmico, cooperação,
solidariedade, autonomia, resistência, expressão oral. Além dessas, cabe citar outros vocábulos que
identificam nossa luta educacional: união, interdependência social, comunhão, coletivo, grupo,
célula, mutualidade, dentre outros termos colhidos da nossa ação educativa dentro do campo
educacional. No nível do significado, essas palavras têm sido incorporadas nos agentes precistas
tanto na dimensão individual quanto na social - tudo isso introjetado de forma a conduzir a uma
prática social precista.
Para Bourdieu (2007), capital significa “poder” e se manifesta na área econômica,
cultural e social. No campo social se reproduz e movimenta a ascensão social ou não. O autor
trabalha três tipos básicos de capital, o econômico, o social e o cultural, mas dentro desses, há
outros que particularizam mais a discussão de capital no vasto material do autor sobre o tema. O
tema é propício ao meu trabalho devido a experiência em análise ter um potencial de gerar capital
social. Bourdieu (2007, p. 190-191) fala que no capital político
[...] o homem político deve a sua autoridade específica no campo político [...] à força de
mobilização que ele detém quer a título pessoal, quer por delegação, como mandatário de
uma organização (partido, sindicato) detentora de um capital político acumulado no
decurso das lutas passadas, e primeiro em forma de postos [...] e de militantes ligados a
esses postos. O capital pessoal de “notoriedade” e de “popularidade” – firmado no fato de
ser conhecido e reconhecido na sua pessoa (de ter um “nome”, uma “reputação”, etc.) e
também no fato de possuir um certo número de qualificações específicas que são a
condição da aquisição e da conservação de uma “boa reputação” – é frequentemente
produto da reconversão de um capital de notoriedade acumulado em outros domínios e,
em particular, em profissões que, como as profissões liberais, permitem tempo livre e
supõem um certo capital cultural ou, como no caso dos advogados, um domínio
profissional da eloquência. Enquanto este capital pessoal de notável é produto de uma
acumulação lenta e contínua, a qual leva em geral toda uma vida, o capital pessoal a que
se pode chamar heroico ou profético e no qual pensa Max Weber quando fala de “carisma”
é produto de uma ação inaugural, realizada em situação de crise, no vazio e no silêncio
deixados pelas instituições e os aparelhos: ação profética de doação de sentido, que se
fundamenta e se legitima ela própria, retrospectivamente, pela confirmação conferida pelo
seu próprio sucesso à linguagem de crise e à acumulação inicial de força de mobilização
que ele realizou [...]. (ibidem)
Perspicaz é o olhar do autor acerca do sentido de poder que vem por meio de
determinadas oportunidades que vão além do poder econômico. Vejo que é fértil a discussão sobre
a relação que há entre o ato de narrar a nossa história de vida com o efeito pós-narração, momento
179
em que o ser narrado se sente empoderado, penso, impregnado da sensação do poder simbólico.
Ao me apropriar da minha história, sinto-me mais forte, pertencente, e com certeza o processo me
ajuda a ocupar um espaço simbólico de poder, mesmo que isso ocorra no nível subjetivo, porém,
certamente, pode impulsionar em direção a várias posições de aquisição de capitais. A trajetória
dos pioneiros e líderes do PRECE mobilizados pelo habitus precista forjou trajetórias de sucesso,
construindo, assim, um capital social significativo. Sobre o conceito de capital. Rogério (2011)
afirma que:
[...] a primeira visualização do capital pode ser feita pelo viés econômico, ligado à renda,
patrimônio, bens materiais; já o capital cultural é transmitido aos agentes pela família e
pelo sistema de valores cultivados na escola que pela ação duradora, pelo longo tempo de
contato com tais valores, estes são incorporados, mas se apresentam objetivamente na
escolha, por exemplo, de obras artísticas e também de forma institucionalizada, como na
forma de títulos acadêmicos. Já o capital social se define pela rede de relações sociais que
se convertem em convites recíprocos, frequência a lugares comuns e podem ser
convertidos em vantagens e desvantagens dentro do campo. E o capital simbólico é aquele
que traz o reconhecimento dos demais agentes do poder adquirido e exerce um controle
social, por exemplo, o papel social que é atribuído à figura do país em uma sociedade com
fortes traços patriarcal. O pai detém um capital simbólico que é reconhecido pelos demais
agentes do campo [...] (ibidem, p.37).
O contexto, já falado antes, é configurado pelo espaço social que, no nosso caso, tem
como cenário a comunidade Cipó, em Pentecoste. Esse é o contexto onde os agentes do campo
181
precista agem a partir do seu habitus, que pode se caracterizar em várias nominações, sendo todas
comuns ao agente precista que atua no seu campo estruturado e organizado. O Campo é o lugar
onde os saberes, a cultura precista agem e reagem, campo esse que ocupa um espaço dentro desse
cenário físico e ao mesmo tempo social.
Anastasio Ovejero Bernal (2019) faz uma análise crítica e de posição dentro de sua
área de pesquisa em educação na Espanha. A discussão sobre a Aprendizagem Cooperativa Crítica
vem ao encontro ao que anseio: a utilização de uma metodologia que fomente a crítica ao status
quo estabelecido e que toma conta de nossa sociedade a partir da ideologia de dominação das
minorias que compõem a maioria da população brasileira. Ovejero (2019) discute que:
[...]. Como mostré –creo que claramente– en un libro reciente anterior (Ovejero, 2018),
cuyo título ya lo decía todo (Aprendizaje cooperativo crítico: mucho más que una eficaz
técnica pedagógica), el aprendizaje cooperativo es de gran utilidad para la construcción
de una sociedad más democrática; es tal vez el principal instrumento que tiene la escuela
para contribuir a que la sociedad sea más cooperativa, más justa, más igualitaria y más
solidaria. Podríamos casi decir que el aprendizaje cooperativo crítico convierte a las
escuelas que lo practican en el reverso de las escuelas tradicionales, que suelen estar –a
menudo sin que el profesorado lo desee e incluso sin ser conscientes de la función que
están ejerciendo– al servicio del sistema y la reproducción social, como hemos visto en
los capítulos precedentes. De ahí que si siempre ha sido de gran utilidad –y sumamente
fértil– el que se implemente en las aulas el aprendizaje cooperativo –sobre todo si es un
aprendizaje cooperativo crítico y solidario-, la actual hegemonía neoliberal lo hace más
necesario aún; le hace incluso imprescindible, si no queremos sucumbir como espécie. [...].
(OVEJERO, 2014; CHOMSKY, 2017, p. 227).
Espero poder me aprofundar mais nessa discussão em um futuro próximo. Agora passarei a
discorrer um pouco sobre os antecedentes históricos da aprendizagem cooperativa.
A aprendizagem Cooperativa não é uma ideia nova, mas remonta aos povos antigos,
desde a existência do homem na terra, o qual para sobreviver teve que ser interdependente com
animais, as plantas, a terra, outros homens de tribos diferentes, em se tratando da era primitiva.
Assim, posso dizer, olhando para a experiência de vida, que a interdependência é uma noção quase
onipresente, ou seja, ela está presente na vida do homem, em todo o tempo, lugar e de modo
simultâneo, basta pensarmos que para tudo precisamos da natureza, e hoje, ela até está presente
imensidão de produtos feitos pelo homem.
As vestimentas que usamos, o alimento que comemos, a condução que pegamos, os
remédios que saram nossas doenças, os conselhos (conversas e diálogos) que nos orientam, os quais
vêm de pessoas formadas para nos ajudar no equilíbrio da mente, o livro que lemos, os eletrônicos
que utilizamos, dentre outras coisas na esfera objetiva e subjetiva da nossa vida, quase não fazemos
nada sozinhos. Essa é quase uma premissa da existência humana. A interdependência social
positiva é um dos cinco elementos da Aprendizagem Cooperativa mais importantes. Seus teóricos
chegam a afirmar que ela é o coração da metodologia. David W. Johnson (1998) faz uma breve
história do uso da Aprendizagem Cooperativa, enfatizando haver uma farta tradição da metodologia
no ensino superior. O autor destaca que:
[...] Há milhares de anos, o Talmud15 afirmou que, a fim de entender o Talmuld, a pessoa
deve ter um parceiro de aprendizagem. Sócrates ensinava seus discípulos em grupos
pequenos, engajando-os em diálogos em sua famosa “arte do discurso”. Já no começo do
século, Quintilino argumentava que os discípulos poderiam se beneficiar ensinando um ao
outro. O filósofo romano Sêneca advogava a aprendizagem cooperativa quando disse:
“Qui docet discet” (“Aquele que ensina aprende.”). Johann Amos Comenius (1592- 1679)
cria que os alunos se beneficiariam tanto ensinando uns aos outros como sendo ensinados
uns pelos outros. Através da Idade Média, os artesanatos tinham aprendizes trabalhando
juntos a pequenos grupos dos mais capacitados, os quais trabalhavam com o mestre e daí
ensinavam suas habilidades aos menos experimentados [...] (ibidem, p. 98).
15
O Talmude é um registro das discussões rabínicas que pertencem à lei, ética, costumes e história do judaísmo. É um
texto central para o judaísmo rabínico, perdendo em importância apenas para a bíblia hebraica. No geral, todas as
opiniões, mesmo as não-normativas, eram registradas no Talmude.( https://pt.wikipedia.org/wiki/TalmudeAcesso em
26 jun. 2019). O Talmud é um complemento da Bíblia. Preenche as lacunas e explica as leis da Torá (a Torá é o livro
mais sagrado do Judaísmo e é tratada com respeito especial). Além disso, inclui histórias e ditos que tanto direta quanto
alegoricamente oferecem a filosofia e sabedoria do Judaísmo. No entanto, o Talmud é um texto difícil de ler porque
contém muitas discussões (que ocorreram durante centenas de anos) na forma de prova e refutação. As progressões
lógicas se prestam a citações fora do contexto que representam uma presunção que pode ser derrubada em seguida.
(http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/talmud/home.html Acesso em 26 jun. 2019.
183
Percebe-se no excerto apresentado, que em todas essas épocas foi dado o destaque para
a discussão sobre o conhecimento e não apenas ao repasse desse conhecimento, como ocorre no
ensino tradicional e individualista. Afirmam que para se aprender bem, é necessária a companhia
de pares. Enfatizam o ensino para grupos, o diálogo e a mediação como centrais. O valor do ato de
ensinar algo a alguém, pois assim, estaremos usando a melhor forma de aprender e, assim, para que
ninguém detenha o poder do conhecimento, importa que cada um possa tanto ensinar quanto ser
ensinado. Seguindo nesse percurso histórico até aos nossos dias, destaco abaixo mais um trecho
dos autores citados; eles acrescentam que
[...] Ao final do século 18, Joseph Lancaster e Andrew Bell fez uso abrangente de grupos
de aprendizagem cooperativa na Inglaterra e na Índia a fim de proporcionar a educação de
“massas”; foi aberta uma escola Lancaster em Nova York, em 1806. Na Boston colonial,
o jovem Benjamin Franklin (vivendo em pobreza) organizou grupos de aprendizagem a
fim de conseguir uma educação. Dentro do Movimento da Escola Comum nos Estados
Unidos no começo do século 19, houve uma ênfase acentuada na aprendizagem
cooperativa. Nas últimas três décadas do século 19, o uso que o Coronel Francis Parker
fez da aprendizagem cooperativa dominou a educação americana. Por todas as primeiras
décadas do século 20, John Dewey promoveu o uso de grupos de aprendizagem
cooperativa como parte de seu método de projeto [...] (ibidem, p. 98).
[...].Continuando esta história tão rica, existem várias faculdades nas quais a
aprendizagem cooperativa está sendo usada hoje de maneira exemplar. A Florida
Community College em Jacksonville, por exemplo, tem implementado a aprendizagem
cooperativa em base de larga escala. O Estado de Michigan está implementando a
aprendizagem cooperativa por toda a universidade inteira. A fim de ajudar os praticantes,
James Cooper, na California - University-Dominguez Hills, publica um periódico
(newsletter) sobre o uso da aprendizagem cooperativa a nível de faculdade. O interesse
cada vez maior na aprendizagem cooperativa se reflete no número de apresentações em
conferências acerca do tema. Mais ainda, existem áreas relacionadas de trabalho que
convalidam o uso da aprendizagem cooperativa (...), incluindo o trabalho da aprendizagem
184
[...] Kurt Lewin afirmou que a essência de um grupo reside na interdependência de seus
membros (criada pelos alvos em comum). Os grupos são “todos dinâmicos” nos quais uma
mudança na condição de algum membro ou de algum subgrupo muda a condição dos
outros membros ou de outros subgrupos. Morton Deutsch (um dos alunos de Lewin),
primeiro formulou uma teoria da interdependência social nos anos 40, observando que a
interdependência pode ser positiva (cooperação), negativa (competição), ou não existente
(esforços individualistas). [...] (David foi um dos alunos de Deutsch), ‘nos anos 80,
publicamos uma formulação abrangente da teoria.’ - Fala David (grifos do autor) [...]
(JOHNSON, 1998, p. 93).
Para mim, foi inovador, pois mesmo com meu inglês básico, aprendi muito com quem
sabia melhor o inglês, e tudo era feito na prática, com muita interação estudante-estudante. A minha
visão sobre essa formação foi muito positiva. O livro traz estratégias bem práticas, como seu título
já anuncia, sendo um manual com dinâmicas e muitas figuras. Com esse material, podemos traduzir
e nos inspirarmos, de forma criativa, para aplicarmos a metodologia às nossas necessidades
educacionais na área da formação de professores nesse método pedagógico. O livro trabalha em
planos de aulas os conceitos da metodologia a partir dos seus 05 elementos fundamentais da
Aprendizagem Cooperativa, mostrando o percurso teórico-prático que pode ser utilizado pelos
docentes. Destaca de forma didática, cada um dos cinco elementos referidos, os quais são:
Interdependência positiva, Competência individual, Interação promotora face a face, Habilidades
sociais e processamento de grupo. (ibidem, 2011, p.1:31).
Overejo (1990) afirma que “[...] a forma como os professores estruturam o material que
vai ser utilizado durante uma lição pode levar tanto a uma aprendizagem acadêmica eficaz como a
uma interdependência positiva entre os membros do grupo [...]”. (ibidem, p. 25). Daí advém o papel
fundamental do professor nessa metodologia, pois a dinâmica da sala de aula é produto do tipo de
interdependência estabelecida pelo docente em seu planejamento, ou seja, a forma como ele
apresenta o conteúdo aos estudantes, realiza avaliação, que tipo de interação discente permite,
como lida com os conflitos. Enfim, tudo deve ser pensado de maneira a resultar na cooperação
entre os estudantes.
Acentuo ainda uma experiência de formação cooperativa de professores em Portugal,
o caderno de formação de número três intitulado de “Cooperação e Aprendizagem”, de Cochito
(2004). Em sua introdução, a autora discorre sobre a importância do conhecimento da metodologia
da Aprendizagem Cooperativa. Posteriormente, ela apresenta o que é uma educação intercultural,
noutro tópico, fala dos fundamentos dessa metodologia e, assim, nos presenteia com uma proposta
para curso de formação nessa metodologia. De acordo com a autora, assegurada por uma sólida
fundamentação teórica, essa metodologia tem natureza filosófica em Dewey, Freire, dentre outros;
no campo da psicologia se sustenta pelo pensamento de Vigostky, Bruner, Rogers, Lave, Wenger e
Bandura. Faz ainda uma referência a Freinet, no que se refere à centralidade que a cooperação
ocupa no modelo de escola preconcebida por ele e pela influência que tem na atualidade por meio
do Movimento de Escola Moderna. (COCHITO, 2004, p.24).
187
formação dos estudantes e professores pioneiros locais e líderes comunitários. O autor ainda expõe
um pouco da ação do PRECE na implementação da metodologia da Aprendizagem Cooperativa e
Solidária com sistematização pelo viés histórico-metodológico precista, a partir de 2009 na UFC,
como também em escolas da SEDUC. Esse trabalho de formação foi feito com estudantes
universitários da UFC e com professores e estudantes do ensino básico estadual e, posteriormente,
nos anos subsequentes, com a escola básica municipal de Fortaleza.
16
Roteiro de entrevistas elaborado pela equipe do Memorial do PRECE – Anexo I.
190
[...] o método de Schürtze, em sua forma original ou mesclada a outros métodos, fornece
pistas para compreender a articulação entre biografia e estruturas sociais na pesquisa sobre
juventudes desfavorecidas, especialmente mediante interpretação das “trajetórias” ou
processos de sofrimento que afetam tanto indivíduos quanto coletividades [...] (idem).
17
Conjunto de 09 narrativas de vida dos agentes fundadores do PRECE na modalidade textual – Anexo 10.
191
vestuário. Algumas partes foram citadas indiretamente, outras diretamente. Nessa procura por
temas que se ligassem à constituição das fortalezas do coletivo PRECE, senti falta de orientação
de método ligado à escolha de tema, interpretação e compreensão, e fui procurando isso nos
referenciais que me balizam desde a origem dessa investigação. Dessa forma, fui me aproximando,
inicialmente por intuição, e depois, com a leitura do trabalho de Souza (2014) que discute sobre a
“análise compreensiva-interpretativa”. Assim, fui reconstruindo as biografias a partir das
autobiografias de estudantes precistas, seguindo algumas etapas dessa sistemática. Sobre esses
pressupostos teóricos-metodológicos das Histórias de Vida e Formação quanto ao método exposto,
Souza (idem) discute:
Essa leitura me alegrou porque dá base a minha reconstrução e me fez enxergar coisas
ainda não processadas, porém que podem tomar copo nessa etapa final do trabalho. A partir dessa
leitura, tomando-se o excerto acima por referência, conceituo esse trabalho como uma “prática de
investigação – formação”. As narrativas analisadas configuraram-se “corpus de análise” pela sua
natureza subjetiva e “heurística”. A centralidade da pesquisa residiu nas (auto)biografias que
comportaram o que a memória nos trouxe de nossas experiências como agentes precistas marcados
por elementos históricos em comum, com o mesmo sentimento de pertença que nos moveu a
“lembrar”, “narrar” e “escrever” sobre nós. Cabe esclarecer, que de acordo com esse método, a
minha autobiografia aqui apresentada realizou os tempos de lembrar, de narrar, mas se deteve
pouco no tempo 03(três), sendo este o tempo de refletir. Isso ocorreu subjetivamente, todavia não
materializei a forma que deveria ser conforme a explanação sistemática e rigorosa do texto
metodológico citado anteriormente.
A partir de um título inspirado pela leitura do texto biográfico transcrito, procedi a uma
retirada de excertos (unitarização/categorização), não esquecendo a sua totalidade (dessa ideia de
totalização retirei o título), procedi a uma análise textual discursiva – no esforço da interpretação e
192
compreensão, não muito aprofundada, por não ser essa a proposta geral da pesquisa. Iniciei a
reescrita das biografias (o metatexto) seguindo pelas unidades temáticas por mim escolhidas em
um processo que ainda não acabou. Cito algumas dessas unidades temáticas e seu campo semântico
possível para uma maior clareza desse percurso metodológico –
Dificuldades/facilidade/oportunidade (pobreza material, espaço de vida, relações interpessoais,
estudo, trabalho, renda, sonhos, cooperação, solidariedade, protagonismo, autonomia, dentre
outros).
No sentido de respeitar o que há naquelas biografias e pensando nos agentes delas, foi
que ao concluir as partes principais em cada um, passei por um momento ímpar nessa trajetória de
pesquisa que foi a apresentação do novo texto para apreciação dessa nova biografia. Essa
reconstrução, em outra perspectiva, pretendeu trazer o nosso sentimento de pertencimento e de
legitimação social do coletivo precista. Esse trabalho, após todas as revisões que ainda farei, depois
das três bancas de defesa, irá compor o que chamo de Memória Coletiva do PRECE, o qual ainda
será publicado.
Paralelo ao trabalho com as autobiografias, uso algumas fotos dos agentes que
representam divisores temporais na trajetória de vida em questão, com o objetivo de confirmar as
interpretações feitas e também para ilustrar o trabalho. Ainda me detive em fontes documentais da
história do PRECE, as quais atestam a veracidade das informações aqui relatadas. Sobre as
unidades temáticas, destaquei algumas práticas educacionais de relevância que ajudaram nos
impactos do programa e, além disso, sublinhei ações que denotaram haver em todos nós uma
tomada de conscientização acerca da realidade, assumindo posição de liderança transformadora em
nossas comunidades, dentre outras ações. Em alguns momentos, procedi a uma análise do material
biográfico e dos documentos, em outros, faço apenas a análise do material teórico-metodológico
que me ilumina sempre, em todos os momentos do trabalho. Quanto à posição ética no processo
dessa pesquisa, esclareço que foram assinados os termos de consentimento livre e esclarecido do
uso de imagem e textos. O modelo utilizado foi o orientado pela Brazilfoundation, como também
outro modelo, da UFC.
Ao refletir sobre o presente capítulo, gosto de dizer que ele ainda não acabou, posto
que pouca coisa na vida é finita, quase tudo nela é um processo. Por isso, espero poder melhorar
essas discussões teóricas e metodológicas. Cabe dizer que a metodologia das histórias de vida e
193
formação é um labirinto a ser explorado por nós que amamos entrar nele, não para nos perdermos,
mas para nos aventurarmos na busca pelo caminho certo, para chegar ao horizonte logo depois.
194
O conjunto dos vocábulos “perfis biográficos” foi inspirado de uma leitura feita e
referenciada antes. Perfil18 a partir de seu significado nos fala de uma leitura de um olhar, de
uma caracterização, etc. Assim, é isso que pretendo me debruçar nessa leitura, análise,
interpretação e compreensão dessas biografias, à procura de construir uma releitura, um novo
olhar, outra caraterização que proporcione o encontro do eu, do particular com o nós, o social.
Dessa unidade, pretendo obter a memória coletiva do PRECE. Sobre esse percurso investigativo,
destaco as palavras de Momberger (2012, p. 524):
A partir da discussão feita por Christine Delory, procuro explorar “os processos de
gênese” do PRECE pensando no “devir” dos agentes no campo educacional do PRECE e fora
dele, quando as ações afetarem outros campos. Na análise das biografias busco captar a essência
daquilo que construíram significativamente das situações e fatos por eles experimentados.
Tomar, respeitosamente, formas culturais, maneiras, intenções que operaram em sua
maneira de se perceberem na narrativa. Dessa forma, colaboram para garantir a existência dessa
memória coletiva que é o PRECE. Memória essa que representa tudo o que foi produzido da
sua realidade social, algo amplo, realmente um habitus precista (“linguagens, códigos,
repertórios, figuras de discurso; esquemas, scripts de ação etc.”). (ibidem).
As biografias precistas favorecem essa “interface do individual e do social” que
ganham existência social um por meio do outro e isso remete a metodologia de ensino
aprendizagem aqui em estudo, a cooperativa e solidária. Esse estar no mundo em “processo
18
Significado de perfil: desenho, delineamento, contorno, silhueta, descrição, retrato, representação, caráter, feição,
gênio, índole, jeito, temperamento, tipo, etc.( https://www.sinonimos.com.br/perfil/ acesso: 28 de jun. 2019)
195
[...] Algo como uma classe ou, de modo mais geral, um grupo mobilizado para e pela
defesa de seus interesses, não pode existir senão ao preço e ao termo de um trabalho
coletivo de construção inseparavelmente teórico e prático; mas nem todos os
agrupamentos sociais são igualmente prováveis e esse artefato social que é sempre um
grupo social tem tanto mais oportunidades de existir e subsistir de maneira durável
quanto mais os agentes que se agrupam para constitui-lo já estejam mais próximos no
espaço social (o que vale também para uma unidade fundada sobre uma relação afetiva,
amorosa ou amistosa, seja ela ou não socialmente sancionada). Dito de outro modo, o
trabalho simbólico de constituição ou de consagração necessário para criar um grupo
197
[...]. E aí nessa história [...] eu consegui encontrar uma pessoa que foi[...], um jovem
que, ao conhecê-lo ele me convidou pra fazer.... ele chegou pra mim e disse: “ei...
você não quer participar do nosso grupo?” Eu disse, mas pra fazer o quê? Ele disse:
“pra estudar. [...] o que é que você mais gosta de estudar” aí eu disse: “olha, eu gosto
muito de Biologia”. [...] ele disse: “pois então você vai ser a pessoa responsável pra
nos ensinar Biologia. Nosso grupo é assim, cada um tem uma função. Cada pessoa
tem uma função”. E então eu fiquei maravilhado com aquilo sabe? Pensem bem, fiquei
maravilhado porque, primeiro eu era um estudante, um cara [...] que não sabia nem o
que era universidade [...]. (ANDRADE NETO, 2011).
A partir do convite feito a Manoel, o curso de sua vida trazia a ele uma grande
oportunidade, a de se unir com outros estudantes de forma cooperativa em prol de um objetivo
comum. Ele não havia refletido sobre como encontrar ou formar um grupo de estudo, a
experiência surgiu assim, inesperadamente, posso inferir isso pela maneira da abordagem do
novo colega com um chamado objetivo, de senso prático, sem muitas delongas: “ele chegou pra
mim e disse: ‘ei... você não quer participar do nosso grupo’? Eu disse: ‘mas pra fazer o quê’?”.
(ibidem). Assim, percebo a força do capital social presente na criação do grupo que se
fortaleceria ainda mais; entendo também que essa forma direta de relatar a passagem sobre o
grupo de estudo não sinaliza a existência de um plano prévio. Para compreendermos mais a
ação coletiva dos agentes desse grupo, leiamos mais um trecho do relato:
[...] quando eu encontrei esse rapaz ele tinha um grupo de estudo, [...] ele se reunia
em vários lugares, ele tinha um não, ele tinha vários, o Flávio tinha vários grupos de
estudos e ele era um cara muito inteligente, mas [...] além da inteligência, ele tinha
uma capacidade de articular pessoas, era muito sorridente, muito amigo, muito alegre
certo? E ele conseguia convencer as pessoas e contagiava as pessoas com aquela
alegria dele e com aquele estímulo para estudar, estudava muito, mas ele estudava
sempre com as pessoas e quando ele me chamou pra participar do grupo dele e [...]
me deu uma função e que eu fui estudar e eu vi que aquilo [...] que eu estava estudando
era útil para alguém, aquilo [...] fez uma grande diferença na minha vida, [...] muita
198
diferença! [...] e eu comecei a ficar feliz e satisfeito com o grupo, e dai, [...], isso fez
uma grande diferença na minha história de vida porque foi nesse grupo de estudo que
eu aprendi muita coisa sobre a universidade, o que era universidade, a importância da
universidade, do que era o vestibular, como fazer o vestibular, [...] quantas provas
tinham, o quê que a gente tinha que observar no vestibular, certo? [...]. (ANDRADE
NETO, 2011).
Percebo a força do capital social nessas relações com outras pessoas; encontrar um
amigo que aponte caminhos para um futuro de êxito, de melhoria de vida é uma força, um tipo
de poder. A partir dessa estrutura de ação proposta pelo jovem Flávio ao Manoel, a união dos
propósitos foi favorável a uma sinergia de forças positivas que os impulsionariam, certamente,
ao momento de chegada ao alvo, à meta sonhada. A empolgação com que Manoel fala sobre
suas primeiras impressões do grupo de estudo nos mostra o quanto ele foi importante para suas
realizações acadêmicas. Vejo o valor de se ter relações sociais, amigos que nos ajudam quando
temos um objetivo a perseguir. O Flávio, pela visão de Manoel, demonstra essa habilidade de
acionar pessoas, tocá-las, “ele tinha uma capacidade de articular pessoas” (ibidem) rumo a um
propósito e Manoel Andrade entendeu e buscou ir em frente com o grupo e isso mostrou um
novo horizonte à sua frente, uma visão de sucesso acadêmico.
Miceli (2001), em seu livro Intelectuais à Brasileira, levanta uma análise tomando,
além de outros, o conceito de Capital de Relações Sociais de agentes remanescentes de camadas
dirigentes do Brasil a partir de publicações memorialísticas e biográficas desses descendentes
intelectuais literatos. A esses chama de “parentes pobres” das oligarquias da Velha República
que, ao perderem o capital econômico por uma série de razões, agora dispõem somente do
199
capital de relações sociais e que, para acioná-lo, foi preciso uma série de estratégias de
reconversão para tentarem se aproximar do status de vida anterior. Da obra em questão fiz uma
leitura valiosa às minhas reflexões nesse trabalho e discuto algumas ideias do autor.
Em se tratando do objeto de análise de Miceli e contrapondo ao meu, eu poderia
trocar parentes pobres por “deserdados pela pátria”, por gostar desse título o qual expressa meu
sentimento, tomo de empréstimo da obra Os deserdados da pátria, 1997, do ilustre dramaturgo
português Norberto Ávila. Aqui se trata de deserdados pela pátria da exclusão social, que produz
centenas de pessoas sem cidadania plena, sem direitos fundamentais enquanto uma classe
abastada pelo capital econômico engorda separada, à parte e apática. Vejo que para os jovens
do grupo de estudo de Manoel também lhes restou somente acionar os mecanismos do capital
de relações sociais, pelos mesmos estarem sem herança não de seus familiares abastados, mas
de uma rica nação que não distribuiu nem distribui seus bens com todos os seus herdeiros. O
interesse desses estudantes não era o de reconversão de uma condição financeira alta, mas de
um lugar melhor na sociedade onde vivem. Vi que o grupo de estudo de Manoel movimentou
muito bem esse capital referido antes. Percebo isso de forma mais clara na parte relatada sobre
o seu encontro com o Flávio e em outro momento em que ele se relaciona com o professor
aposentado do Liceu do Ceará. Acompanhemos o depoimento abaixo:
Observei que o grupo foi se fortalecendo juntos com foco em um resultado comum
e que, de modo simbólico, nessa interdependência social foram gerando mais empoderamento
de seus integrantes que, como grupo, constituíam-se e se consagravam em união e propósitos.
As manifestações públicas ainda poderiam vir, mas segundo o relato de Manoel, não houve
nenhuma manifestação pública oficial desse grupo. Porém, sei que por esse grupo de estudos
ter sido, penso eu, o embrião do PRECE, essas manifestações têm acontecido, atualizadas por
esse último, numa espécie de diálogo entre gerações de grupos de estudo.
Bourdieu (2011) discute que nem todos os grupos podem se efetivar, mas que eles
terão mais chance de dar certo se seus integrantes tiverem laços afetivos e se forem mais
próximos no espaço social. Os participantes do grupo de estudo de Manoel Andrade tinham
200
relações afetivas alimentadas pelos encontros de estudo, pelos objetivos comuns, queriam entrar
na faculdade, por descenderem de famílias populares, por não terem capital econômico
favorável para pagarem escolas renomadas, por não terem espaço propício para estudarem em
suas casas, portanto, participavam de um mesmo espaço social e tinham habitus semelhantes.
Observemos no trecho a seguir como eles tinham problemas, dificuldades, desânimos, mas a
identificação de formas de ser e viver os sustentava, mutuamente:
[...]. Nós compartilhávamos os nossos sonhos, nós dizíamos o que é que queríamos
ser, e quando a gente tava passando por uma dificuldade, tinha algum medo, a gente
naturalmente, sem muito arrodeio, sem muita conversa, sem muita sofisticação, nós
compartilhávamos aquilo, às vezes tava chateado... “ei cara, tô chateado” ou então
dizia assim: “não tô muito a fim, não sei o quê, acho que não vai dar certo pra mim,
acho que não vou passar” e um dizia lá: “não mas tem...” e começava com aquela
conversa...[...] aquelas tristezas, aqueles momentos depressivos iam passando porque
nós tínhamos com quem compartilhar. Criamos um círculo de amizade legal [...].
(ANDRADE NETO, 2011).
[...]. A imagem utilizada do “caminhar para si” [...] foi escolhida como sendo a que
melhor pode condensar as várias ideias que estão no centro do nosso questionamento
sobre a formação, [...]. A escolha de um verbo sublinha que se trata, [...], da atividade
de um sujeito que empreende uma viagem ao longo da qual ela vai explorar o viajante,
começando por reconstituir o itinerário e os diferentes cruzamentos com os caminhos
de outrem, as paragens mais ou menos longas [...] do caminho, os encontros, os
acontecimentos, as explorações e as atividades que permitem ao viajante não apenas
localizar-se no espaço-tempo do aqui e agora, mas, ainda, compreender o que o
orientou, fazer o inventário de sua bagagem, recordar os seus sonhos, contar as
cicatrizes dos incidentes de percurso, descrever as suas atitudes interiores e os seus
comportamentos. [...], ir ao encontro de si visa à descoberta e a compreensão de que
viagem e viajante são apenas um. [...] a imagem sugere igualmente a questão temporal
e um processo: no caso presente, um processo de conhecimento de si mesmo que tem
início a partir de todas as pré-concepções que nos habitam no momento em que
empreendemos o caminho biográfico. É este o caminho que, de etapa em etapa, de
elaboração em elaboração, favorece a atualização destas mesmas pré-concepções. [...].
(JOSSO, 2004, p.58).
O indivíduo traz para o grupo sua marca, seu nome, suas idiossincrasias, seu habitus
familiar e no grupo social tudo isso converge nas particularidades de cada um, gerando algo
novo, rico pela proximidade no espaço das relações sociais. Agora são não somente vontades
202
individuais, mas interesses associados dos quais discorreu (BOURDIEU, 2011). Essa presença
de cada um constitui um caminhar para si, mas possibilitando passar junto com o outro em
diferentes cruzamentos com os caminhos de outrem e nesse caminhar, a viagem coletiva e os
viajantes são apenas um por meio da união de propósitos que gera uma energia vital,
proporcionando também o atingir das metas do projeto de vida de cada um no âmbito individual.
Tenho defendido aqui que a experiência formativa de Manoel Andrade nesse grupo de
estudo para entrar na universidade o impulsionou a iniciar o PRECE (Figura 45), juntamente
comigo e com os sete estudantes protagonistas pioneiros. Ao voltar para sua comunidade,
percebeu a situação dos jovens da sua região onde havia ausência de escolas rurais do ensino
médio, de professores qualificados, dentre outros problemas. Com isso, Manoel, assim como
ocorreu no seu grupo de estudo quando cursava o ensino médio, decidiu convidar alguns desses
jovens para estudarem em grupo e se fortaleceram com autonomia e assim, melhorarem vidas
através do estudo. A experiência de estudo em grupo, em Fortaleza, o fez acreditar que a ideia
daria certo também em Pentecoste, construindo assim, uma nova história – a precista.
Figura 45 – Sete estudantes do 1º grupo de estudo do PRECE, Manoel Andrade e sua mãe
Francisca Andrade
Essa nova história precista, inspirada em Josso (2004), comparo a uma viagem em
que o viajante Manoel Andrade foi explorado por e revelará uma gênese, uma origem
203
constituída por um ser humano que foi levado e preparado para gerar uma mudança vinda de
uma vontade individual, com reflexos sociais, mas a partir de motivações subjetivas, entre
tantas revelações possíveis que podemos descobrir na história dessa viagem.
Embarcando nessa viagem, Andrade Neto (2018) afirma que sua avó foi muito
importante na sua carreira e nos estudos. Alzira Marques foi enérgica em encaminhar o neto
aos estudos na capital, portanto, sem ela talvez ele não tivesse conseguido fazer um curso
superior, pós-graduação e ser professor universitário. Sem a ação dela, o destino dele hoje
poderia ter sido igual ao de alguns amigos, não desprestigiando o valor de cada um deles que
ficaram no sertão tateando, sem norte, vivendo sem recursos, sem melhores serviços de saúde
e educação e esquecidos pelo poder político.
Alzira era uma mulher determinada em fazer aquilo que acreditava ser o melhor
para alguém que amava, em mudar um destino que estaria sob a égide da desigualdade social.
Agora, ao retornar ao Cipó como professor universitário, Manoel sentia as agruras daquele
espaço e era um exemplo vivo de alguém que superou, sofreu a saudade do lugar de viver, mas
estava ali, vitorioso e cheio de experiências pelas dificuldades que teve para conseguir estudar
e fazer um curso superior, dentre outros desafios.
Segundo Andrade Neto (2018) ela fez de tudo para dar a ele a chance de mudar o
curso da vida de ciclos de ausência da educação em gerações antecedentes para um novo
momento de bonanças. E esse desejo da vó Alzira pela educação, hoje revive pela ação social
de Manoel Andrade - o estudo como forma de superação da ignorância e da pobreza material,
intelectual-acadêmica e de espírito.
Sobre essa volta à memória de Alzira, destaco as ideias de Martine Lani-Bayle
(2008), apresentado, acerca do conceito transgeracional e intergeracional. Esse sonho de
emancipação através da educação que talvez sempre existiu em Alzira, mas que não foi possível
a ela, nem a suas filhas e filhos realizar, foi então repassado para Manoel Andrade. Essa
ausência de formação superior pode ter gerado nela o desejo de ver algum de seus descendentes
realizando uma espécie de resgate de dignidade e oportunidade que garantisse o acesso ao saber,
de forma plena. Vi nesse episódio um diálogo entre duas gerações, portanto, um “parto reverso,”
Lani-Bayle (ibidem).
A partir dessa ideia, Manoel Andrade faz sua vó Alzira renascer pela realização de
um sonho que era dela, mas também dele e esse “intersonho” foi realizado duplamente e afetou
a outras gerações que seguiram na reatualização constante daquele sonho. A partir do conceito
de Lani-Bayle, vejo que o interesse pela história de vida de nossos ancestrais e modos de receber
deles alguma herança permite que, automaticamente, nos interessemos por nós, nesse ir e vir –
204
do passado ao agora para o futuro. Apesar de não termos feito parte de sua constituição, não
estamos sendo somente eles e nem somente nós, estamos sendo eles e nós, ao mesmo tempo.
Dessa forma, somos continuadores de uma cultura familiar que passa de geração
para geração. Essa herança e práticas herdadas retornam a nós em uma nova viagem. Isso nos
deixa alterar num jogo empático - inserindo, portanto, o sujeito na dimensão social. Percebo na
história de vida de Manoel um pouco da história de sua família, de seus pais, irmãos e de seus
avós paternos que se atualiza.
Na perspectiva transgeracional e intergeracional, nos narramos, não esquecendo o
fato de que contamos nosso percurso formativo, à medida que também nos formamos hoje para
perseguir novas conquistas. A autora fala que a “dimensão intergeracional nas narrativas de
vida” nos lembra, metaforicamente, uma mola propulsora que nos leva do presente ao passado
e nos joga para o futuro. Essa narrativa lança Manoel de um presente para o passado e desses
para o futuro, para sua história vindoura, individual e coletiva a partir de toda a história familiar
e da sua história no primeiro grupo de estudo do qual participou em Fortaleza e no grupo do
PRECE que continua se “metamorfoseando” a cada época.
Como agente do campo educacional, Manoel Andrade, a partir de suas motivações
subjetivas, resolve colocar um tijolo a mais na construção de novas pontes que conduziriam a
um novo mundo, o dos sonhos de vida digna e cidadã para homens e mulheres. Essa nova
realidade foi se configurando a partir do grande sonho coletivo para o espaço primeiro da vida
de Manoel Andrade a comunidade Cipó. E quando a semente é boa, ela vai germinando em
muitas terras e dando incontáveis frutos. Esses frutos somos nós, os precistas e assim se fez o
PRECE, nessa viagem que engloba o presente, o passado e o futuro.
Junto com Manoel Andrade, mergulhada nessa nova realidade, liderada por ele,
passei a minha vida dedicada à família, aos estudos e ao projeto. E no início, cada agente tinha
o seu nível de comprometimento. Posteriormente, na caminhada, fomos aprendendo mais sobre
nós mesmos e sobre o outro. Vi que a vida social dos sete estudantes fundadores na casa do
estudante e a ajuda mútua entre eles, permitiu-lhes descobrir o valor de suas histórias de vida.
Na viagem de cada um e na coletiva, foram se reconhecendo como sujeitos capazes
de viverem juntos, partilhando seus saberes. Ao analisar a minha vida e um pouco da vida desses
amigos de estudo, vejo que somente nessa partilha de nossos saberes, colocando nossa vida
juntos nessa viagem com alvo comum a atingir e que nos tornamos conscientes, libertos e fortes
em nossa práxis pedagógica.
Percebi na história, notadamente, no primeiro grupo, um processo de identificação
entre os agentes precistas pelo exemplo, na postura dos líderes, professores e estudantes, e isso
205
vem perdurando até hoje. Esse dispositivo desencadeador de aprendizagens e motivação, chamo
de pedagogia do exemplo. Sobre esse conceito, Paulo Freire destaca que o professor que
realmente educa e ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do
pensar certo, tem como falsa, a fórmula farisaica do “faça o que mando e não o que faço”. Quem
pensa certo está cansado de saber que as palavras a que faltam a corporeidade do exemplo pouco
ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo. Esse termo expressa bem o que o Manoel
Andrade representou para todos nós, estudantes fundadores do PRECE, juntamente com ele.
Na experiência, não somente o professor Manoel Andrade era exemplo vívido,
corpóreo, ali presente em sua prática, mas todos os que chegavam ano a ano no projeto se
esforçavam para viverem o que diziam, o que pensavam, com autenticidade. Sempre houve
espaço para a crítica e o pensamento divergente, embora que quase ninguém se aventurasse a
divergir em discussões ocorridas em nossas reuniões de gestão do PRECE, talvez pelo motivo
de não estarmos muito conscientes e entendedores de como realizar a crítica construtiva. O
saber fazer requeria essa ética nas relações de interdependência, presentes, de modo intenso,
principalmente, nos primeiros anos do PRECE.
A identificação entre todos nós, estudantes e líderes era muito forte, talvez por
sermos do mesmo contexto, sofredores dos mesmos problemas políticos, educacional e social.
Meus pais eram agricultores semianalfabetos e sem terra para plantar, e isso nos identificou,
gerou empatia, assim, somei-me a essa ideia genial a qual reatualizava os mesmos ideais que
representava bem a nossa luta social em experiências anteriores. Toda essa identificação com a
vida comunitária que sempre me fascinou, me impulsionou a viver a experiência com Manoel
Andrade naquela ousada iniciativa que objetivava o caminho pela formação escolar e acadêmica
dos jovens de baixa renda do espaço rural no qual me incluí.
A partir dessas reflexões acerca da trajetória de Manoel Andrade, percebi o quanto
foi importante o processo da entrada dele em seu grupo de estudo. O impacto que teve o diálogo
entre os estudantes Flávio e Manoel Andrade gerou muitas histórias de protagonismo estudantil,
fortalecidos por metodologias ativas e propulsoras de desenvolvimento educacional em nossas
comunidades populares. Esse tipo de prática educativa, como temos visto, se evidenciou pelo
cultivo de relações horizontais, sem barreiras hierárquicas, institucionais e burocráticas que,
usualmente, ocorre nos grupos de escolas ou universidades. No grupo, os integrantes eram
também pessoas de mesmo estrato social, todos com interesses comuns e solidários aos
problemas uns dos outros.
Percebi que Manoel Andrade e todos os outros componentes do grupo tinham o
mesmo princípio, ensinavam o que sabiam para os outros e aprendiam o que não sabiam com
206
os outros. Concluí, a partir da análise do memorial de Andrade Neto, que o seu grupo de estudo
imprimiu em sua história de vida, sua marca que contribuiu para uma nova viagem – a viagem
precista, agora atualizada e ressignificada em um espaço-tempo novo.
Na história de Manoel Andrade, vislumbrei o nascer de uma experiência
educacional que foi construída por crenças, valores e lutas de pessoas simples, populares. Na
esfera coletiva, vi que cada integrante do grupo contribuiu sobremaneira para modificar uma
realidade de desesperança para outra, repleta de sonhos e possibilidades de realização desses
sonhos individuais e sociais.
Por fim, sobre a discussão de capital social, percebi haver o acúmulo de capital
escolar, apesar da experiência ter se dado fora do contexto da escola, porém, por outro lado,
todos os estudantes do PRECE vieram da escola pública e traziam as marcas do sistema
institucional escolar. Com essa análise, vi a força do capital social do grupo de Manoel e do
PRECE na experiência construída a partir das necessidades do campo.
[...]. Meu nome é Adriano Sérgio da Silva Andrade, nasci no Cipó, em Pentecoste, em
06 de setembro de 1965. Tenho 9 irmãos, alguns moram lá no Cipó, outros moram em
Fortaleza. Meus avós já são todos falecidos, o Arão de Andrade e Alzira por parte do
pai, a vó Chiquinha e vô Nego por parte da minha mãe. Meus pais moravam no interior
desde adolescentes naquela comunidade. A propriedade era do meu avô, meu pai
comprou uma parte e fez uma casa, se casou e não saiu de lá. Meus avós por parte de
pai e os irmãos dele vieram para Fortaleza no período da seca, mas meu pai não quis
sair e lá ele criou 10 filhos [...]. (ANDRADE, 2017b).
famílias, elas têm de tudo que podemos gostar ou não. Pelo viés econômico, família maior
significava mais despesas para os poucos recursos.
Naquele contexto, a nossa realidade era a de que os filhos precisavam ajudar os pais
na economia familiar, de modo que os mais velhos sempre tutoravam os mais novos e eram a
representação dos pais quando esses estavam ausentes. Era bastante comum, os filhos, desde
pequenos, ajudarem aos seus pais, pois esses necessitavam garantir a sobrevivência de uma
família, geralmente, numerosa e pobre. De acordo com o relato, Adriano Andrade vai dizer que
precisava ajudar seu pai na roça e restava pouco tempo para a brincadeira:
[...]. Minha lembrança principal é o interior. [...], e [...] é de trabalho, desde os 7 anos
de idade eu já comecei trabalhando na agricultura. Meu pai sempre trabalhou na
agricultura e ele comprava gado. Ele passava até 20 dias ou mais fora comprando gado,
[...]. E eu ficava trabalhando na agricultura plantando alguma coisa, cuidando do gado.
Minha infância foi essa no Cipó. [...]. Quando começava a chover eu ia ajudar a plantar,
limpar mato, [...]. Quando meu pai não estava viajando, comprando gado, ele
trabalhava mais comigo, porque meus irmãos (os que ficaram no interior – grifos do
autor) eram menores. [...]. Com 15 anos de idade eu já tomava [...] conta do trabalho,
por exemplo, eu tinha 5, 6 trabalhadores que eu levava para o serviço. [...]. Eu tomava
[...] conta da fazenda, [...] eu ajudava mais na parte do plantio. A gente comia
basicamente arroz, feijão, queijo, farinha e rapadura, às vezes tinha carne, mas era
muito difícil. À noite a gente ia debulhar feijão no alpendre e ficava conversando. Os
vizinhos iam para lá e ficavam debulhando feijão e contando histórias. Às vezes a
gente ia brincar no terreiro, brincar de bandeira, esconde-esconde [...]. (ANDRADE,
2017b).
Identifico-me com essa história porque vivi também um pouco da cultura do plantio
de milho e feijão, da colheita e da debulha de feijão à boca da noite no alpendre com a família
e os vizinhos. As conversas, as histórias e o toque do rádio, em algumas ocasiões, fizeram parte
também da minha história. Esse relato representa um modo de viver dos agricultores de nossa
região e do valor dado ao trabalho na agricultura de subsistência que congregava toda a família
para garantir a segurança alimentar.
Assim como os sete agentes fundadores do PRECE, Adriano Andrade, sendo da
mesma região, também repetiu a 4ª série três vezes pela falta das séries seguintes em sua
comunidade. Isso foi recorrente em mais três relatos que foram analisados neste trabalho e que
mostram um contexto educacional precário nas comunidades dos estudantes precistas,
atestando cada vez mais a real necessidade de uma alternativa para a melhoria do sistema escolar.
Veja como se deu esse processo:
[...]. Antes de eu ir para a escola, quem primeiro me alfabetizou foi minha tia Sinhá.
Depois tinha uma casa, ali próximo, onde hoje é o PRECE, a casa da dona Rita, lá
tinha uma escola e a gente ia para lá ter aula com a Zizi. Era uma casa normal, a gente
estudava na sala, eu e algumas outras pessoas. [...]. Comecei a estudar [...] até a 4ª
série primária e tive que abandonar os estudos porque repeti a 4ª série três vezes
208
[...]. Meus irmãos (irmãs - 05 mulheres- grifos da autora) vieram pra Fortaleza aos
poucos para estudar. O Andrade veio logo novinho pra casa da minha vó estudar, ele
ficava um tempo em Fortaleza e nas férias ia para o interior. Ele contava histórias em
relação aos estudos e isso nos motivava a estudar. [...]. Eu queria estudar, quando é
jovem você tem vários sonhos, [...]. Nessa época da escola eu trabalhava um período
e estudava no outro [...]. (ANDRADE, 2017b).
Extraio do excerto, o estímulo dado pelo irmão mais velho, Manoel Andrade e o
reconhecimento de Adriano a esse apoio e suporte oferecido. Por outro lado, mais uma vez, a
paixão pela agricultura desde cedo o leva para viver nos ares frios da serra, no município de
Maranguape. Quando se pratica algo desde criança, acompanhado, junto com um grupo, uma
família, esse algo, essa cultura, vai fazendo parte de nós. No meu entender, esse direcionamento
dos pais para o trabalho na roça em colaboração ao sustento da família não se configura como
uma problemática própria de trabalho infantil, mas trata-se de uma cultura do espaço rural
particular do estrato familiar de baixa renda, dos interiores do pais.
Isso ocorreu com todos nós, filhos da classe popular que, se não contasse com a
ajuda de todos da família, poderia passar fome, portanto, isso era uma questão de segurança
alimentar. Seu relato me remete à noção de habitus discutida no referencial teórico. Adriano
em sua narrativa, viveu, por bom tempo de sua vida, em espaço agrícola, que propiciou um
campo social de práticas ligadas a agricultura, trabalhando com seu pai, convivendo com
209
[...]. Quando eu completei 18 anos, eu saí do Cipó e fui tomar de conta de um sítio
abandonado que meu pai tinha em Maranguape (na serra - grifos da autora). A partir
daí, eu comecei a ter mais liberdade. [...] antes de voltar a estudar. [...]. No tempo que
eu passei em Maranguape, eu me envolvi com movimentos de agricultura, criamos
uma associação e eu fui vice-presidente. Depois em Maracanaú eu me envolvi com
movimentos sociais, como grêmios estudantis, [...]. (ANDRADE, 2017b).
Adriano Andrade relata a necessidade de sair da casa de seus pais para procurar suas
realizações na área dos estudos e profissionalização. As diferenças foram surgindo no
relacionamento entre pai e filho e muitas vezes há momentos que não dá para integrar as ideias;
entendo que isso tenha ocorrido em sua experiência. Adriano Andrade, também como os outros
estudantes, precisou implementar suas buscas próprias da juventude ansiosa por mudança de
vida. A característica mais forte de Adriano Andrade é ser proativo. Ele foi se configurando
como um homem de ação. Esse ir e vir entre Cipó, Fortaleza, Maranguape e Maracanaú indica
essa inquietação, presente em seu modo de ser. Chegou o momento que precisava tomar uma
nova decisão:
[...] fiquei tomando [...] conta dessa terra durante uns 4 anos. [...]. O papai começou a
se sentir incomodado e ficou reclamando, aí eu saí e fiquei em Maracanaú me
dedicando aos estudos e não voltei mais para o trabalho voltado à agricultura. [...] eu
escolhi ir estudar. Eu sou o tipo de pessoa que quando quer fazer uma coisa, vai lá e
faz. Nesse caso eu queria continuar meus estudos, porque era uma vontade que eu
tinha desde novo [...]. (ANDRADE, 2017b).
[...]. Quando você tem esse sonho, não morre de uma hora para a outra. Tinha um
sonho de fazer faculdade, ter algum emprego, mas não tinha uma certeza. Eu queria
[...] concluir meus estudos e ter mais condições financeiras para me sustentar. [...]
estudando e tentando recomeçar [...] com o apoio do meu irmão mais velho, Manoel
Andrade. [...]. Foi na época que [ele – grifos da autora] passou no mestrado, conseguiu
uma bolsa e, a partir daí, ele alugou uma casa e deu apoio para os irmãos. Nesse
período eu concluí o supletivo do ensino fundamental. Eu comecei estudando em
escola convencional quando morei em Maracanaú, e quando vim para Fortaleza foi
que eu fiz o ensino fundamental através do supletivo [...]. (ANDRADE, 2017b).
210
[...] voltei para o interior para passar um período lá trabalhando de outra forma, já na
associação. Eu plantei algumas coisas, mas não tinha mais uma relação como a que
eu tinha antes. Eu voltei para mobilizar a associação, aí eu passo a desenvolver esse
trabalho lá. Foi fácil montar a associação, eu comecei a convencer o pessoal suficiente
que desse pra fazer esse trabalho [...]. (ANDRADE, 2017b).
solucionarem esse problema. Só, recentemente, esse problema da água foi resolvido na
comunidade de Cipó por recursos particulares e por doações destinadas ao PRECE.
Logo depois, Adriano conseguiu a aprovação do projeto de construção da casa de
farinha através da Secretaria de Indústria e Comércio. Abaixo (figura 46) tem-se uma foto da
construção da casa de farinha entre os anos de 1990 e 1991e da casa concluída, no dia da sua
inauguração:
[...]. Eu sempre fui inquieto, não ficava acomodado. Eu fiquei estudando em Fortaleza
e criamos uma associação no Cipó, a ACOMPARCC (Associação Comunitária de
Pequenos Agricultores Rurais de Capivara e Cipó – grifos da autora). A partir daí
comecei a ir atrás de projetos nas secretarias, conseguimos máquinas de datilografia.
Eu praticamente abandonei os estudos (nesse período – grifos da autora), já tinha
começado o ensino médio, e fui morar de novo no Cipó. Nesse período eu me envolvi
com a associação. Na época era o governador Ciro Gomes. A prefeitura na época não
apoiava, quando eu conseguia os projetos, (“porque eu não fazia parte do grupo
politico do prefeito”. – Ao apresentar essa análise, ele substituiu outra informação
por esta – grifos da autora) [...]. (ANDRADE, 2017b).
Não quero aqui justificar as motivações de cada um para se doar e sofrer pela causa
social, porque precisaria de um trabalho á parte, mas sei que, em muitos de nós, há essa
obstinação pelo trabalho coletivo.
Voltando ao projeto da casa de farinha, segundo Adriano Andrade, na inauguração
dessa casa pela primeira dama do estado, a mesma em seu discurso, falou que essa casa de
farinha tinha sido a maior do estado do Ceará. Esse elogio atestou que houve honestidade na
gestão dos recursos públicos destinados à construção. Na fala de Adriano, chamo a atenção de
como a casa de farinha passou a casa de estudantes:
[...]. Pegamos o projeto da casa de farinha e construímos num terreno doado pelo papai.
[...]. A casa de farinha era pública, mas a produção era individual, cada um ia lá e fazia
sua farinhada e deixava uma quantidade para a associação. Tiveram algumas
farinhadas, mas logo ocorreram mudanças. Quando iniciamos, a farinha era muito
cara, depois o preço baixou e não compensava mais produzir mandioca e farinha,
porque ia sair muito caro. O principal motivo que levou à paralização foi econômico,
e não a estiagem. Com a globalização, as pessoas começam a ter acesso a produtos
mais baratos e elas deixaram de plantar, e a casa de farinha ficou um pouco esquecida.
Foi uma soma de fatores [...]. (ANDRADE, 2017b).
A casa de farinha foi um presente para o PRECE, presente que representa muita luta
empreendida pelo líder comunitário Adriano Andrade e seus companheiros associados da época.
Para conseguir ganhar a aprovação desse projeto, o então jovem estudante e agricultor sofreu
muita espera nas secretarias do governo do estado. As várias reuniões realizadas com os
associados, o sofrimento em ter que lidar com a escrita de projetos sem uma boa formação
escolar na leitura e escrita, a falta de transporte próprio para o deslocamento de uma
comunidade rural longe 17 quilômetros da cidade, sede de Pentecoste.
Sabemos que para conseguir apoios públicos sempre temos que realizar muitas
viagens. Na análise, pude perceber que nada foi fácil para ele conseguir a casa de farinha, depois,
considerada um espaço sagrado para os agentes fundadores do PRECE e para tantos estudantes
que vieram depois dos pioneiros. Lugar para os estudos, o saber, a cooperação e a solidariedade.
A partir dos anos de 1990, Adriano Andrade recebe a ajuda de seu irmão Manoel
Andrade, que une suas forças e acelera mais as ações comunitárias da Associação. Ações no
futebol, nas creches e em novos projetos que seriam realizados na casa de farinha, dos quais
falei um pouco, anteriormente.
O trabalho de Adriano Andrade e Manoel Andrade, nesse começo, foi importante
para preparar as bases para o posterior sucesso do PRECE e foi no momento de baixa nas
atividades de plantação da mandioca, que a casa de farinha precisaria de outra função:
213
[...]. Quando diminuiu o movimento na casa de farinha, teve um tempo que o local
ficou abandonado, comecei a me envolver com o Andrade e a gente organizava
campeonato de futebol na comunidade. Nesse período, o Andrade convidou alguns
alunos para estudarem na casa de farinha. Antes disso teve o curso de datilografia, eu
consegui o material de escritório, e a “uma amiga” deu o curso para algumas pessoas
da comunidade, em parceria com uma entidade religiosa (Patronato Nossa Senhora
da Conceição - grifos da autora) de Pentecoste para entregar os certificados [...].
(ANDRADE, 2017b).
Em 1997, Adriano Andrade resolveu voltar aos estudos, ao ser estimulado por seu
irmão Manoel Andrade no PRECE junto com os 07 estudantes pioneiros e eu. Ele começou a
estudar para fazer o vestibular e se preparou na casa de fazer farinha, a mesma que lutou para
construí-la. Adriano fez o vestibular no mesmo ano para o curso de engenharia de pesca na UFC,
sendo aprovado na primeira fase, mas não passou na segunda fase. Porém, com a força do grupo
em sua vida, ele continuou estudando e foi aprovado para o curso de Geografia da UFC, em
1998, com 32 anos. Isso para ele foi um sonho realizado porque, mesmo gostando muito de
trabalhar na agricultura, sempre desejou fazer um curso superior. Com isso passou a morar na
residência universitária com os outros precistas conforme (figura 47). Para o estudante popular
do espaço rural, a residência universitária é de fundamental importância e para os precistas,
como mencionado antes, esse serviço público foi definidor do sucesso deles, sem isso, talvez
não tivéssemos conseguido tantos êxitos.
215
Apesar dos estudos ocuparem seu maior tempo, Adriano sempre praticou o trabalho
do campo, que considera muito importante na sua vida. Ele comenta a sua aprovação no
vestibular, expressando um sentimento de realização pessoal e coletiva:
[...]. Eu já tinha começado o ensino médio, mas tinha parado e, quando começou o
projeto do PRECE, eu fui motivado a continuar os estudos e concluí o ensino médio
através do ensino de jovens e adultos. [...]. Agora como professor eu tento ajudar os
meus estudantes, os meus alunos que sentem dificuldade em terminar o ensino médio.
Eu abandonei os estudos e só voltei a estudar a partir dos 25 anos de idade,
aproximadamente. Mesmo assim, me deu aquela vontade de continuar a estudar e
ingressar em uma universidade, “o cavalo passou selado” e eu não perdi a
oportunidade. Formei-me na Universidade e isso tem sido muito bom para mim,
mudou completamente a minha vida. Pude contribuir para apoiar a minha família e
muitas pessoas que passaram pelo PRECE. Foi muito bom poder contribuir de uma
forma ou de outra para aquelas pessoas que precisavam da mesma oportunidade que
eu tinha que era ter um apoio. Já que a universidade ainda hoje é um local para uma
pequena quantidade de pessoas, uma minoria. Para nós filhos de agricultores, a
oportunidade de chegar na universidade era mínima. Com o apoio do PRECE a gente
acreditou que era capaz de chegar. E chegamos [...]. (ANDRADE, 2017).
de Jacarepaguá – Sede Rio de Janeiro. Adriano Andrade ainda deu passos na política partidária,
que apesar de frustrante, a experiência de Adriano a qual podemos explorar mais em outro
momento, trouxe a ele muitas lições como também a nós, que temos construído juntos todas
essas histórias de lutas sociais na educação.
Esse trabalho mostrou um pouco da trajetória de resistência e superação que mesmo
diante de obstáculos que a vida impôs, esse agente encontrou possibilidades para sair dos
problemas surgidos no caminho e enxergar a vitória, apesar do contexto difícil da vida no campo,
sob a agricultura de subsistência, em uma família grande. Vi que essas histórias enriqueceram
ainda mais o registro da história pedagógica do PRECE que parte do individual, mas é social.
Por fim, o relato de vida de Adriano Andrade não se esgota aqui, pois é cheio de
temas importantes para serem analisados. Podemos aprender muitas coisas dessa história de
lutas, resistências, persistências e realizações de um personagem de ação e de senso prático que
se doou, sem medida, ao trabalho na família, na comunidade como voluntário e no projeto social
PRECE.
5.3 Francisco Antonio Alves Rodrigues: a motivação e a coragem para começar um novo
projeto de vida
esconde-esconde e bandeirante, além do futebol, coisas que ele lembra, com alegria. Logo,
Antonio teve que conciliar estudos com um trabalho de meio período para ajudar o pai. Ao
terminar a quarta série, e não sendo oferecidas pela rede de ensino municipal as séries seguintes,
ele se sentia motivado a repetir a 4ª série e assim fez por três vezes. Aos 17 anos de idade,
Antonio iniciou o curso supletivo do primeiro grau no centro da cidade, em Pentecoste. Para
realizar as provas desse curso, percorria 17 km de pau de arara durante um ano, passando depois
a ir de bicicleta. Apesar das dificuldades com a distância e com o estudo mais solitário e menos
em grupo, Antonio conseguiu concluir o Ensino Fundamental em dois anos e meio.
Infelizmente, na década de 1970, quando Francisco Antonio estudava, a educação
do campo ainda não era pensada como hoje, quando já contamos com as diretrizes curriculares
por uma educação do campo que determine uma educação contextualizada com a cultura do
povo. Não havia escolas regulares do 5º ao 9º ano, somente algumas através do sistema TV
Educativa, sob a liderança de professores (as) não graduados (as). A educação é a chave para o
desenvolvimento de uma cidade ou país, logo, sem o bom funcionamento do sistema
educacional, as outras áreas como saúde e economia, conforme dados exibidos anteriormente,
não iam bem, no contexto em que estávamos naquela década. Os estudantes, como Antonio,
para continuar na escola, tinham que ficar repetindo a mesma série pelo fato de não haver as
séries subsequentes. Destaco na fala de Rodrigues (2011), essa situação:
[...]. Eu entrei na escola aos seis anos. A escola era distante [...] em torno de quase
dois quilômetros, e daí eu ia a pé com os demais, meus irmãos e outras pessoas da
comunidade [...] sempre me interessei por aprender, [...]. Daí eu estudei 3 anos
repetindo a quarta série, a cada ano era aprovado, “no ano que vem eu vou de novo”!
e aí eu fiquei repetindo [...] somente para não abandonar a escola, eu gostava muito
de estudar [...]. (RODRIGUES, 2011).
Como ele gostava de estudar e não queria deixar a escola, se agarrava à única
oportunidade existente naquele momento, repetir a série que acabava de concluir. Esse fato
ocorreu também na narrativa de vida de José Noberto e Adriano Andrade. Essa narrativa
resultaria em um filme interessante sobre educação no interior, fatos semelhantes a esse, temos
ouvido nas histórias de vida de estudantes precistas não estudadas aqui.
Na narrativa de vida de Francisco Antonio, surge uma dificuldade própria do espaço
rural, as distâncias. Geralmente, as casas eram longe umas das outras e das escolas; isso, em
muitos casos, era a causa de desistência escolar de estudantes e constituía um obstáculo a ser
enfrentado pelos jovens. Esse problema foi recorrente em nossas experiências de estudantes
nessa década. Esses lugares longínquos e esquecidos pelos gestores, além das distâncias, não
eram aparelhados por bens públicos básicos como iluminação, água e transporte, recursos
219
essenciais para o desenvolvimento educacional e econômico. Essa soma era motivo para os
jovens abandonarem os estudos cedo e se acomodarem com a agricultura de subsistência,
conforme já tinham feito seus pais. Em relação ao problema das distâncias, Antonio tentava
superar, enfrentando o carro de horário, a bicicleta, julgando assim, que desistir, jamais! Tal
realidade é retratada no testemunho abaixo:
[...] (ia) de bicicleta até Pentecoste que era em torno de 17 quilômetros [...] era a
distância entre a minha casa e Pentecoste. [...] eu ia sempre no [...] pau de arara [...]
ou carro de horário que tem muito no interior, eu passei o ano inteiro fazendo isso [...]
às vezes, a gente tinha que fazer duas ou três provas, mas tinha que fazer só uma
porque o carro já ia voltar, [...]. Aí eu fui amadurecendo, fui aprendendo: [...] e passei
a ir de bicicleta [...] nesse trajeto […] entre minha casa e o local das avaliações [...].
(RODRIGUES, 2011).
[...] Eu já tinha até o ensino fundamental da sexta a oitava série, acabava que eu
ajudava muito ela (sua irmã-professora – grifos da autora) em sala de aula, e como eu
tive [...] meu esforço [...], os professores reconheciam, eles (disseram- grifos da
autora): “Olha, você não é professor, de fato, mas você [...] tem esse trabalho na
comunidade [...] ajuda sua irmã que é professora, então [...] você faz esse trabalho e
nós vamos lhe aceitar, [...] você vai fazer a seleção para cursar o que se chama de
Logos II”19 [...]. Ai magina, eu fiz essa prova e tirei 10[...]. (RODRIGUES, 2011).
19
Curso de Habilitação para Professores Leigos (CHPL)
221
percebo haver a existência de um capital social precista, como tenho me referido, e no caso de
Francisco Antonio, esse capital social foi mobilizado em sua vida estudantil, inicialmente, pela
força da sua irmã professora e de professores que já o conheciam como estudante de EJA;
posteriormente, pela força desse capital, presente no que significava o Movimento PRECE. Na
década de 1990, Francisco Antonio, com alta motivação, teve a oportunidade oferecida pelos
professores de EJA que já o reconheciam como bom estudante do ensino fundamental. No texto
ele afirma que demonstrou um ótimo desempenho, concluindo, satisfatoriamente, o ensino
médio profissionalizante.
Após o término do seu curso, em 1992, Francisco Antonio encontrou o professor
Manoel Andrade nos campos de futebol. Esse encontro foi um divisor de águas na vida do
jovem. Eles se tornaram amigos e, em pouco tempo, foram visitar a comunidade de Coelho e
viram as condições precárias que passavam os moradores do local, sendo muitos até analfabetos,
pois não existia escola. A partir daquele momento, os dois desenvolveriam, conjuntamente a
outros estudantes, práticas educacionais de transformação de uma realidade de exclusão social,
de cerceamento de direitos, para outra, pautada pela conscientização e libertação da ignorância
e suas consequências. A realidade posta naquela comunidade era a da negação, onde não se
sabia o significado do que era ser escolarizado e muito menos do que era ser universitário.
Assim, na tentativa de melhorar a condição das famílias, Manoel Andrade convidou
Francisco Antonio para ser professor dos estudantes de Coelho em um salão, cedido pela
comunidade. Criaram então uma escola, no sentido de grupo de estudantes e um professor, em
um espaço físico, distante 13 km da casa de Antonio. Os estudantes eram 20, que tinham entre
6 e 17 anos. O conteúdo compunha-se das matérias básicas da primeira escolarização. Um
tempo depois, Francisco Antonio e o professor Andrade requereram que a escola, por eles criada,
fosse regulamentada pela prefeitura, tornando-se escola municipal e Francisco, seu professor
oficial. No tempo em que era professor dessa escola, ele continuou sua procura por mais
formação, indo fazer o curso de datilografia (na época, coordenado por Adriano Andrade) na
comunidade de Cipó à 39 km da sua casa e, apesar da distância, sua alta motivação o fazia
percorrer esse trajeto de bicicleta. Sublinho as palavras de Francisco Antonio sobre esse
encontro:
escrever porque não existia oferta de escola na comunidade. [...]. Então [...] Manoel
Andrade ficou meio impressionado com aquilo e disse: “Rapaz que coisa? o que a
gente pode fazer por essa comunidade? [...] surgiu a proposta da gente ir na
comunidade dizer: “Olha nós vamos colocar uma escolinha aqui”, [...] tinha o salão
comunitário, que a comunidade usava para celebrações e nós falamos com a liderança
da comunidade e eles disseram: “Olha, a gente cede para vocês o espaço” e nós
prometemos que íamos. E a gente encontrou essa comunidade em momento de
campanha política e aí então [...] disseram: “Olha mais que promessa devagar essa,
claro que ninguém vem para cá botar escola”, e eles não acreditavam nisso [...]. E daí
a gente disse: “Olha vamos”, lembro que a gente comprou caderno, lápis, o professor
Manoel Andrade [...] comprou, e daí disse: “Toni, tu vai, [...] e eu vou lhe dar [...] uma
ajuda financeira e eu vou te dar por mês e você vai trabalhar. [...]. (RODRIGUES,
2011).
[...]. “Toinho, eu tinha um negócio para te falar aqui”, [...] lembro que era em dia de
jogo [...], “[...], mas a gente tá [...] cansado, num outro dia você vem aqui para a gente
conversar, um pouco” [...]. [...] eu fui lá [...] no outro dia e ele disse: “Olha Toinho, eu
tenho uma ideia de trabalhar com educação aqui [...] o futebol é uma estratégia boa,
mas não é suficiente, […] eu vejo que aqui os meninos saem todos muito cedo pra ir
pra cidade grande”, [...] “olha são meus amigos de infância e eu vejo aqui que a
situação é tão dura e tão difícil, e a ideia é que a gente faça alguma coisa que a
223
juventude de hoje, [...] não tenha que seguir esses passos difíceis, duros [...] de quem
foi da minha época não teve nada por aqui.” Aí eu disse (grifos da autora) [...] “Ah tá
bom, então qual é a ideia?” “A ideia é que a gente trabalhe com educação aqui na
comunidade” [...]. (RODRIGUES, 2011).
[...] Andrade, [...],“[...] vou conversar com os meus pais”, [...] falei: “Olha o Andrade
me convidou [...] pra gente fazer esse trabalho, e ele...”, [...] “Olha, você que sabe”,
eu acho que eles viam nisso também uma oportunidade [...] pelo fato de conhecerem
o professor Manoel Andrade, de saber o comprometimento dele com a educação [...].
Resolvi ir, [...]. “Andrade, vou, [...]”, beleza, isso era por volta de maio de 1994 [...],
mas em agosto, beleza! Mudei para Cipó [...]. E o Andrade: “Você vai morar aqui
com os meus pais, é..., por enquanto tá só você, e a sua tarefa é visitar as comunidades
e nós vamos oferecer para essa juventude um curso de datilografia [...], aquele curso
que você fez, agora vamos repassar para os demais [...]. (RODRIGUES, 2011).
224
Francisco Antonio estava consciente de sua decisão de estudar em Cipó para entrar
na universidade e compartilhou com as pessoas mais importantes da sua vida. Vejo ainda que
ele, sem formação universitária, foi convidado para um grande desafio. Daqui para frente,
projetos menores aconteceriam e foram resolvendo as dificuldades da vida estudantil nos
espaços rurais e urbanos. Mesmo realizando várias ações, Francisco Antonio, orientado pelo
professor Manoel Andrade, que gozava da confiança dos pais de Francisco Antonio, conseguiu
ampliar sua ação no campo, dando conta dos projetos iniciais do PRECE e também, estudar em
células com os amigos, na casa de farinha. Vejamos o relato da dinâmica de estudos desse grupo
pioneiro na visão de Antonio:
[...] antes de um mês de trabalho o grupo percebeu que era muito pouco [...] “olha,
nós precisamos de mais tempo para estudar”, aí veio a ideia de fazer o grupo durante
o dia e a ideia de morar na casa de farinha. Eu penso que essa conversa foi feita muito
mais com o Andrade [...] alguém lançou a ideia e as pessoas disseram “tá bom”, então
as pessoas foram concordando com essa ideia, então nós vamos estudar em tempo
integral na casa de farinha. Isso aconteceu [...]. As pessoas passaram a estudar o dia
todo, [...]. No grupo de estudo, a gente estudava de manhã, estudava à tarde, eram de
fato momentos de estudos intensivos. [...]. E aí a gente foi criando aquela [...] fama
entre aspas[...] “Olha, o pessoal ali né? sabe, tão sabidinhos [...] na casa de farinha”,
a gente começou a ser convidado para ministrar aulas de conteúdos específicos, “o
assunto tal você sabe? Sabe”, “Quem é que sabe aqui? Olha, Chicão sabe, Noberto
sabe, Toinho sabe, enfim, o Beto, o Du”, a gente começou a desenvolver essa relação
com a comunidade [...] que de certo modo era um retorno daquele grupo, para dizer:
“Nós estamos aqui, nós estamos crescendo e podemos contribuir também”. Então isso
gerou um respeito enorme da comunidade [...] um efeito muito grande[...] em termos
de comentário [...] em termos de organização, e isso ajudava o grupo a ter essa
credibilidade [...] essa aceitação. Nós tínhamos o trabalho do Andrade que era um
trabalho consistente [...] que vinha há tempos, e [...] o trabalho do próprio grupo, que
agora tomava uma identidade e passava a ter uma relação com a comunidade, na forma
de auxiliar [...] os professores em algumas questões que eles, é... nos demandavam,
pediam para que a gente pudesse contribuir [...]. (RODRIGUES, 2011).
final da seleção, Francisco Antonio foi aprovado em 14º lugar na primeira fase do vestibular da
UFC e em 1º lugar na segunda fase para o curso de Pedagogia. Vejamos mais uma fala sobre
esse evento:
Sobre a mediação no ato pedagógico, Lígia Márcia Martins fala “que o pensamento
se desenvolve a partir da atividade prática” e que esse “nunca deixará de ser a mediação central
da prática social”. (MARTINS, 2011, p. 49-50). Posteriormente, a autora falará sobre o valor
da afetividade na aquisição de conhecimentos e essa questão está, de modo exponencial, na
mediação junto com a racionalização, compondo assim o psiquismo humano. Em outro estudo
de Onilza Borges e Alvino Moser destaca-se uma fala de Vygotsky:
[...] a mediação era vista [...] sob os aspectos: signo, palavra e símbolo. As
contribuições dos autores M. Cole, J. Wertsch e Bruner conferem uma determinação
mais ampla ou restrita, conforme o ponto de vista. Nas Perspectivas de Vygotsky e
Lentiev, os conceitos de ‘meios mediacionais’ e de ‘ação mediada’ são essenciais para
compreender o verdadeiro significado ou processo da aprendizagem. [...]. (MARTINS;
MOSER, 2017, p. 11).
Vemos que a mediação é uma maneira mais humana de educar e que talvez
contribua para promoção de relações mais pacíficas no ambiente de aprendizagem entre os
atores do processo, porque a educação é uma via de mão dupla, a mão que dá é também a que
recebe. Trata-se, portanto, de uma dialogia do conhecimento, de uma troca saudável por meio
da superação da contradição do ensino tradicional e reprodutor. Com isso, talvez o que não tem
227
dado certo tenha a chance de conserto. De acordo com esse conceito, seria inconcebível haver
aprendizagem sem “meios mediacionais”, sem ações mediadas.
Francisco Antonio constrói uma trajetória de sucesso profissional, pois cedo, passa
em concurso público para professor do município e começa a exercer a profissão logo que
conclui a graduação. No início dos anos 2000, dentro da UFC, Francisco Antonio participou de
um grupo com professores e técnicos da Universidade, o qual recebeu de movimentos e outros
órgãos de representação social, a solicitação para escrever, propor e executar projetos de cursos
em educação básica na modalidade EJA e no nível superior, em pedagogia, denominados de
Alfabetização e Escolarização de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Ceará; e outro de
graduação em regime especial de alternância – Pedagogia da Terra, (Figura 50), dentre outros
posteriores e todos os projetos foram aprovados. Esses projetos foram idealizados em função
de uma parceria entre a UFC, o Ministério da Educação/Programa de Educação na Reforma
Agrária, para um público beneficiário oriundo de Movimentos Sociais, Sindicatos,
Organizações não Governamentais, Movimento sem Terra, Federação dos Trabalhadores (as) e
Agricultores (as) do Estado do Ceará e o Programa de Educação em Células Cooperativas.
Francisco Antonio, o Tony, como passou a ser chamado a partir da sua entrada na Universidade,
me convidou para trabalhar na coordenação desses projetos em 2004 e foi um período de
aprendizado em nossa história de formação.
[...]. Era uma casa normal onde se juntava um grupo de pessoas para ela ensinar
português, ciências, matemática, geografia, e a gente foi aprendendo a ler e a escrever.
Depois a prefeitura montou um colégio e ela foi dar aula nesse colégio e levou todos
os alunos para quem ela dava aula na casa dela. Isso foi muito bom porque a gente se
sentiu útil de estar numa escola de verdade. [...]. Uma das coisas boas que eu lembro
da infância é o colégio. Na época, tudo era difícil, mas a gente tinha [...] a convivência
com os colegas de aula, com os primos que a gente brincava brincadeiras de infância.
Fui crescendo e, depois da adolescência, comecei a trabalhar. Saí de casa e fui para as
comunidades vizinhas. [...]. (BARBOSA, 2011).
20
Nas comunidades rurais da década de 1990, não havia professores habilitados por área. Havia um professor
polivalente que fazia uma discussão básica e insegura após as aulas pela TV, assim, nem estudante, nem professor
aprendiam, gerando assim, um déficit de aprendizado.
230
ter ficado satisfeito, contrariando todos os relatos dos outros estudantes pioneiros e o meu que
apontam mais elementos desagradáveis nesse método de ensino do que êxitos. Leiamos uma
fala sua a respeito desse momento em sua trajetória:
[...]. Na escola de Cacimbas, a professora estava com o sistema TVE, que depois
passou a ser TVC21, e os alunos que terminavam a quarta série na Capivara passavam
a estudar em Cacimbas. Foi aí que fui transferido para lá e comecei a fazer a quinta
série com o sistema TVE, [...]. Era um sistema de televisão, com uma aula apresentada
pela TV e depois a gente debatia os tópicos que estudávamos. Era muito bom porque
a gente aprendeu a ver coisas diferentes do outro sistema convencional. Foi aí que me
entrosei com a turma de Cacimbas. Lá, eu [...] terminei o ensino fundamental. Foi um
momento bom porque teve festa de formatura. Naquela época que eu estudava em
Cacimbas, eu era envolvido com algumas coisas da comunidade. Eu dava aula de
educação física para o time de Canafístula, uma comunidade de Apuiarés, que fica
próximo a Capivara, município de Pentecoste. Eu gostava de fazer isso, me deslocava
aproximadamente uns 8km de Cacimbas até Canafístula a pé. E também dava aula de
educação física para o time de futebol da Capivara. Terminei o primeiro grau e surgiu
a oportunidade de eu ir para o PRECE [...]. (BARBOSA, 2011).
[...]. Com o passar do tempo, eu passei a morar na comunidade de Cacimbas, que era
onde eu estudava. Eu morava com uma tia [...] me sentia em casa morando naquela
comunidade, e me sentia útil também. Comecei a me envolver com aquela
comunidade e tive muitas oportunidades. Eu era marcador de quadrilha, porque eu me
destaquei e fui convidado [...] passei a conviver naquela comunidade, grande parte do
meu tempo foi lá. Até que terminou o primeiro grau e eu fiquei sem perspectiva de
vida, foi aí que [...] fui morar em Canafístula com um tio meu chamado Zé Canute,
[...]. Ali eu passei uma boa parte do meu tempo trabalhando cuidando de gado, [...].
Naquela época era muito difícil, não tinha capim para o gado e a gente tinha que cortar
bananeira, e eu me submetia a fazer esse tipo de trabalho porque não tinha outra
perspectiva de vida. Estudar em Pentecoste ficava difícil porque eu não sabia como ir,
21
TV Cultura
231
[...] e eu fiquei trabalhando como agricultor, não era muito o meu forte, mas tinha que
fazer isso [...]. (BARBOSA, 2011).
[...]. Depois retornei para Capivara, [...] foi aí que surgiu a oportunidade de ir para o
PRECE, o Andrade nos convidou. Na época tinha um curso de datilografia e, os alunos
que se destacavam, ajudavam os outros, e eu era um dos orientadores de uma turma.
Quando surgiu o curso de datilografia [...] na casa de farinha, que tinha desativado por
motivo de escassez na época de farinhada. O Adriano apoiou esse curso de datilografia
na casa de farinha. O Toinho do PRECE já fazia o curso, tinha terminado, a Silvia
Helena, colega de infância, tinha terminado, eles convidaram e incentivaram pra fazer,
e eu fui lá, fiz, me destaquei. Era a febre do momento, todo mundo achava bom o
curso de datilografia [...]. (BARBOSA, 2011).
mostrou proativo para colaborar com o que o grupo precisava. Apresento um trecho de seu
memorial sobre o convite do professor:
[...]. Foi aí que o Andrade chegou, [...] com um sonho de montar um sistema de grupo
de estudante para estudar e fazer universidade. Esse sonho dele tocou nossos corações.
Naquele momento estávamos eu, o Beto e o Toinho, os primeiros precistas, e ele
chegou e lançou a proposta de o que a gente achava de estudar junto, morar junto ali
e fazer um esquema pra que montasse uma escola, onde a gente pudesse estudar o dia
todo, debater o que aprendeu. Era um sonho dele montar essa escola, porque na época
ele se sentiu incomodado com o sistema que não tinha perspectiva de vida, e ele
pensou muito no futuro dos jovens daquela época. De início a gente ficou meio
temeroso, mas como a empolgação dele foi tão forte que moveu nossos corações e nós
fomos morar lá. Eu me empolguei logo e arranjei um fogão e um botijão da minha tia
e cozinhava para a turma. Foi aí que passei a morar na casa de farinha, trouxe minha
rede, juntamente com o Toinho, [...]. A gente não tinha como vir pra Fortaleza porque
não conhecia nada. Aí teve o sonho de estudar no PRECE, que seria uma preparação
para o futuro, o Andrade mostrou que o ser humano, o jovem, tinha que ter uma
faculdade, um conhecimento, uma formação, pra poder ter um bom emprego. Como
muitos jovens no interior, eu achava que terminar o primeiro era tudo, já podia arrumar
um bom emprego [...]. (BARBOSA, 2011).
A frase mais bonita dita por Antonio Eudimar foi “esse sonho dele tocou os nossos
corações” (ibidem). Um sonho individual e coletivo foi o início do PRECE, que brotou da
experiência de estudo em grupo sugerido pelo professor Andrade e nasceu no coração dos sete
primeiros estudantes do interior de Pentecoste. O PRECE se personifica através de vários
agentes estudantis nos projetos desenvolvidos por gestores e professores que hoje entenderam
o propósito de uma educação cooperativa e solidária. Esses valores advindos do PRECE em
suas origens são pilares e sustentáculos dos projetos atuais, integrantes de uma jornada dentro
da esfera do institucional.
Vemos no relato o dinamismo de alguém que é mais de ação do que de reflexão e
assim, talvez esse ativismo tenha contribuído com seu desestímulo para a concentração do
estudo. Existem várias maneiras de ser solidário, e a característica do Eudimar era em ser
diligente para resolver problemas bem práticos, objetivos e pontuais. Percebemos isso em vários
momentos da narrativa, onde vimos que ele, rapidamente, conseguiu um fogão e um botijão
para garantir a alimentação dos que aderiam a proposta de morar na casa de farinha para estudar.
A maneira de estudo foi descrita por cada um, em sua visão a respeito de como se deu o início
do projeto. Aqui veremos a percepção de Antonio Eudimar sobre a maneira de estudarem juntos:
[...]. O sistema de estudo era uma lâmpada fluorescente ligada na bateria e o grupo na
mesa e pegava um livro de história, lia os tópicos e depois debatia os tópicos. Daí
formou-se um grupo de estudantes. A gente estudava de dia, um pouquinho de noite.
Na época éramos eu, Toinho e Beto, depois a Raquel [...] depois convidamos outros
colegas, o Orismar, Francisco e Norberto. A gente montou esse grupo de estudantes e
tornou-se uma família, agradável. Passamos por momentos muito difíceis na época,
em relação a alimentação. Foi aí que a dona Fransquinha e o senhor Arão que nos
233
abraçaram e nos davam leite e cuscuz de manhã. [...]. Seria o sistema do PRECE, de
estudar, se capacitar, passar no vestibular e entrar na faculdade. E foi isso que
aconteceu, ele (professor Manoel Andrade – grifos da autora) montou o sistema e
ensinou como tinha que estudar e os alunos vinham com o sonho de estudar para
passar na universidade e voltar pra ajudar a turma. E é isso que está acontecendo hoje,
os alunos passam e voltam pra ajudar os outros, que estão engatinhando, a se levantar
e passar no vestibular para entrar na universidade [...]. (BARBOSA, 2011).
[...]. A gente mesmo [...] fazia o esquema de fazer o próprio almoço. E assim a gente
conviveu muito tempo, jogava bola junto, discutia sobre futebol. A gente achava que
o negócio não ia ter como andar, aí o Andrade chegou um dia 9 horas da noite, com o
carro carregado de livros doados por uma instituição e a gente montou a nossa estante.
Foi aí que começaram os sonhos de vida dos precistas, surgiram os provões em
Fortaleza, que fomos fazer no Liceu do Ceará. Inclusive eu fui um dos que não passei,
mas isso não me frustrou nem nada. [...]. Eu não era precista só de estudar, eu também
monitorava uma creche no período da tarde e de manhã eu dava aulas para as crianças
da comunidade do Cipó, também dava aulas pra escola de futebol em Capivara, onde
eu nasci e cresci. Juntamente com o Toinho montamos um grupo de escolinha, naquela
época nos envolvemos com muita coisa, fizemos campeonato no dia das crianças. Me
envolvi também com o time de futebol, fizemos torneios, campeonatos e a gente
mesmo quem organizava. O Orismar era o locutor. Uma coisa que marcou foi que na
época fizemos uma campanha de desarmamento, porque existia muita violência no
futebol e o PRECE abraçou essa causa e fizemos a campanha de desarmamento. [...].
(BARBOSA, 2011).
empreendido pela liderança para fazer com que esses materiais chegassem ao Cipó. Ao longo
da existência dos estudos em célula do grupo pioneiro e depois nas EPC, as doações e entrega
desses livros aos estudantes do PRECE foram muito importantes.
Dentre isso, ainda destacou o projeto do futebol, realizado com adolescentes e
adultos, com objetivos lúdico e educacional, pontuando também a campanha contra o
armamento, algo importante para diminuir a cultura de violência nos momentos de lazer que
até hoje ainda domina inclusive em Fortaleza nos estádios de grandes times.
Quanto mais conhecemos a narrativa de vida de Eudimar, mais ficamos intrigados
em saber do seu envolvimento e desprendimento pelas causas sociais que o PRECE abraçava,
porém, por outro lado, nos surpreende a sua desistência repentina, portanto, tendo tido uma
passagem meteora no projeto que ajudou a criar. Ao sugerirmos um comentário sobre os reais
motivos de sua desistência de continuar atuando no projeto, ele responde de uma forma simples
e natural:
[...]. Eu saí do PRECE porque eu precisava trabalhar pra sustentar minha família,
porque eu estava sem perspectiva e minha mãe não ia me sustentar. Eu estava
desestimulado e juntou com um motivo de força maior, [...]. Na época que eu fiz parte
do PRECE, em 94, eu tinha 22 anos e eu passei 3 anos no PRECE. [...] além da falta
de estímulo próprio, eu [....] tive que sair para me sustentar e sustentar a família, [...]
comecei a ficar meio desestimulado, uma coisa minha, mesmo. Não desacreditei do
PRECE, fiquei desestimulado comigo mesmo e parei de estudar. [...]. Eu [...] tive que
vir pra Fortaleza ter minha sustentação própria. [...]. Na época que eu ia sair do
PRECE, ele (o professor Manoel Andrade – grifos da autora) conversou muito comigo,
fizemos uma caminhada do senhor Arão até o açude, de 4 horas da tarde até 6 horas
da noite. Ele não queria que eu saísse, perguntou várias vezes o porquê, disse que me
ajudava no que eu precisasse. Eu tinha dificuldade de leitura por causa da minha vista,
ele me trouxe para fazer exame de vista em Fortaleza, mas mesmo assim não mudou
muita coisa porque já estava com vontade de sair. Ele fez tudo para que eu ficasse no
PRECE, mas eu saí. Tive apoio de todos os colegas para não sair, mas acabei saindo,
não teve jeito. Me arrependo de ter saído, perdi muito tempo com isso e perdi muito.
Admiro as pessoas que venceram até hoje. Na época estava desestimulado e saí, mas
quem sabe um dia se eu pudesse voltar e fazer diferente [...]. (BARBOSA, 2011).
Conforme sua narrativa, ele aponta algumas razões pelas quais desiste de continuar
no projeto, a primeira é o constrangimento de, aos 22 anos, ainda ser sustentado pela mãe.
Apesar disso, na mesma narrativa (Anexo J), logo no início, parece haver contradição, pois ele
afirma que seus pais o apoiaram, “meus pais me apoiaram, minha mãe queria me sustentar com
roupa, alimentação, e eu encarei”. (ibidem). Porém, suponho que esse apoio e aceitação por
parte de ambos deve ter acontecido no momento de sua entrada no projeto, e com o passar do
tempo, essa insatisfação deve ter ocupado centralidade na forma de encarar a sua realidade.
Esse estado de dependência financeira parece ter marcado fortemente o estudante,
causando nele desestímulo, talvez por não ver resultados rápidos, o que comumente ocorre com
235
jovens que não suportam as circunstâncias adversas das famílias de baixa renda e escolhem
trilhar pelo caminho do subemprego. Penso ainda haver a possibilidade de outros fatores de
ordem pessoal, difíceis de expor para as pessoas. Talvez existiram outros motivos para a escolha
pelo ganho rápido que não prover transformação de vida, na sua amplitude. Outra análise
possível é o fato de que existem momentos em que somos impelidos por sentimentos
emergenciais que tendem a nos conduzir por outros percursos, diferentes dos que nossos
próximos esperam. Assim, percebi que foi por meio de um conjunto de sentimentos e estados
de alma que cooperaram, negativamente, para gerar o desestímulo nele em continuar estudando
e atuando no projeto. Notei que a palavra desestímulo foi citada diversas vezes em seu relato.
O que ficou narrado em seu relato foi o que já se conhece da realidade da juventude
popular do interior: o fato de que muitos jovens não conseguem superar os obstáculos para
garantir uma vida com mais dignidade, segurança alimentar, educação e saúde de melhor
qualidade para a família. Sabe-se que há sacrifícios na dedicação de mais tempo com a formação
acadêmica e profissional para se conseguir essa realização. Antonio Eudimar falou que ao
deixar o PRECE e se mudar para Fortaleza à procura de emprego, enfrentou, inicialmente,
muitas dificuldades para se fixar em uma empresa. Com isso, vê-se que para o jovem popular
qualquer uma das escolhas traz mais sofrimento do que enfrenta um jovem de classe abastada.
Acerca do tema, na condição de líderes do PRECE, sempre mostrávamos os dois caminhos com
o intuito de conscientizá-los da sua realidade e de ajudarmos em suas escolhas:
[...]. Eu tinha desejo de vir trabalhar em Fortaleza, [...]. Lá em Pentecoste não tinha
trabalho, o único trabalho que tinha era para professor. Com o desejo de vir trabalhar
com o ensino fundamental a gente achava que já tinha o conhecimento de tudo e que
ia conseguir vencer com isso. [...]. Em 99 eu vim pra Fortaleza e comecei trabalhando
numa locadora de carro como colhedor de carro. Depois passei a trabalhar numa
panificadora, de lá mudei de emprego para uma fábrica de roupas, a Maresia, onde
foi meu primeiro emprego de carteira assinada. Eu já estava casado e passei a fazer
parte da igreja, conheci muitas pessoas importantes, interessantes. Quando eu saí da
Maresia, tirei a carteira de motorista, era um sonho meu, e passei a trabalhar de
motorista com um colega meu, [...] na JV e isso foi um crescimento muito bom,
porque conheci muita gente em Fortaleza. Conheci muita gente da Pague Menos,
Telemar, pessoas importantes, então fiquei muito conhecido [...] tenho facilidade de
comunicação. Saí da JV e fui trabalhar num restaurante, eu era saladeiro, depois saí
do restaurante e voltei para a padaria, onde estou até hoje [...]. (BARBOSA, 2011).
encarar a ausência da garantia do mínimo de seus direitos trabalhistas, não me pareceu haver
nele, sentimento de contestação.
A partir da análise dessa narrativa de vida, chega a mim como que nossos sonhos
são medidos de acordo com os nossos conhecimentos. Eudimar e todos os estudantes
fundadores do PRECE, inicialmente, só conheciam o seu mundo interiorano no qual nunca se
ouvia falar na palavra “universidade”, assim, como poderíamos esperar que nenhum estudante
desistisse do sonho de fazer uma universidade, se antes ninguém havia falado nesse sonho.
Apesar da sua desistência, conforme falou, passar pelo PRECE foi uma experiência que marcou
a sua vida.
[...] Passei muito tempo trabalhando, mas nunca deixei o vínculo com o PRECE,
sempre fiquei unido com as pessoas, conversava com o Andrade, o Toinho, o
Francisco e o Orismar me incentivaram a voltar a estudar. [...]. O PRECE foi e é um
marco grande na minha vida, foi onde eu aprendi a conviver, aprendi muita coisa.
Lamento não ter continuado, mas nunca saiu do meu coração. O PRECE foi uma coisa
muito importante. Quando eu já tinha saído do PRECE, vi que meus colegas já haviam
passado no vestibular, estavam cursando a universidade, vibrei com os primeiros
precistas que se formaram. Foi a resposta de um sonho, sonhado por um homem, se
realizando, isso foi um impacto muito grande. Estava andando, se multiplicou, e pra
mim é uma alegria muito grande ver que um sonho se tornou realidade. [...] Se for
preciso eu desenvolver alguma atividade, eu estou a inteira disposição para participar.
[...]. Teve um tempo que eu me senti menosprezado por mim mesmo, eu achava que,
como eu tinha saído do PRECE, o fato de eu sair do PRECE, eu achava que as pessoas
tinham me abandonado, eu não tinha perspectiva de vida, eu me sentia deprimido com
isso. Mas não era assim como eu pensava, as pessoas me abraçaram e perguntavam
quando eu ia voltar para o PRECE, se eu tinha vontade de voltar, e eu sempre dando
uma escapulida. [...] é um prazer [...] fazer parte de um memorial do PRECE está
sendo um marco na minha vida, estou gostando muito e espero que eu continue a fazer
parte da história do PRECE. [...]. (BARBOSA, 2011).
Eudimar, mesmo desistindo de estudar no PRECE, não ficou afastado, mas mantém
o vínculo, o sentimento de pertencimento ainda lampeja em seu interior. Ele cultiva o
relacionamento com os amigos de estudo e procura manter a presença do PRECE em sua
história de vida em sua vida em transcurso. Além disso, destaca o valor que o projeto teve em
sua vida, ajudando-o a conviver melhor com os outros. Percebi haver, de fato, felicidade em
Eudimar, pelo sucesso dos amigos que permaneceram e lutaram para realizar o sonho da
formação acadêmica. Esse é um sentimento forte do valor do grupo, do coletivo, a alegria pelo
sucesso dos demais marca essa nota social, de alguém que se importou com a causa coletiva do
grupo pioneiro e de tantos outros que viriam.
Houve na vida de Eudimar o tempo da tristeza, do aparente fracasso por não ter
seguido no mesmo caminho que seus amigos do grupo precista seguiu - caminho para a
realização do sonho individual e coletivo apontado pelo PRECE, concluir um curso superior.
237
Com isso, achou que não merecia a atenção dos precistas; pensava que eles não o aceitavam
mais, porém, os reencontros foram acontecendo e ele reconhece ter sido um engano dele.
Com minha convivência com Eudimar e agora com o estudo de seu relato, me
pareceu que seu sentimento foi trabalhado e, finalmente, o que há é um novo sentimento – o de
amizade que nunca acaba e o de se sentir acolhido pelos amigos do PRECE. Ele demonstra-se
muito contente por fazer parte da memória do movimento, tendo sua narrativa captada em vídeo
e áudio e suas fotos registradas nos arquivos do projeto Memorial do PRECE.
Antonio Eudimar destaca ainda em seu relato um pouco da sua vida pessoal, da
constituição da sua família, destacando fatos importantes e fortes como seu casamento e
nascimento de sua filha mais velha, e logo menciona a tristeza pela morte dessa filha por uma
doença rara. Porém, fala com renovo de sua alegria pelo nascimento de sua única filha, Lara.
Leiamos um pouco dessa parte de sua vida:
[...]. Na minha vida pessoal, conheci a Rosa na igreja onde eu frequento. A gente casou
e tivemos uma filha, Sara Tavares Barbosa, nasceu em 2001. Essa nossa filha cresceu
até 3 anos, teve um problema, uma doença rara, passou 7 meses na UTI e, pra mim,
foi um momento muito difícil, uma perda muito grande, mas fui abraçado por todas
as pessoas da igreja, todos os meus amigos precistas, pessoal do interior. Perdemos
essa filha em 2005 e isso foi um momento trágico na minha vida, só que, hoje, Deus
nos abençoou de uma forma tremenda nos dando outra filha, Lara Tavares Barbosa,
uma princesinha que está com 3 anos de idade [...]. (BARBOSA, 2011).
Vale destacar que um dos problemas que percebo na visão de muita gente é colocar
a universidade como a única ou, pelo menos, a melhor alternativa entre todas, contudo, a vida
é mais diversa do que podemos enxergar e, certamente, existem outras possibilidades de
desenvolvimento igualmente válidas e legítimas que precisamos aprender a reconhecer, ainda
que não sejam as opções que nós faríamos. O grande mérito da experiência do PRECE é tornar
a entrada na universidade algo possível, ou seja, transformar o impossível ou quase impossível
em uma realidade, dentro de um horizonte mais próximo, no entanto, nunca como a única
possibilidade válida.
Por tudo o que discuti, entendí que valorizar a história de vida de um estudante
desistente também se faz necessário para podermos compreender como se sente alguém que
pensou diferente do seu coletivo e escolheu outro percurso. Ver como se deu esse trajeto
divergente; refletir sobre esse processo nos ensina sobre a nossa realidade porque representa
tantos e tantas que tentaram e desistiram. A desistência, a escolha por outros percursos, faz parte
da vida de todos nós, saber se valeu a pena é outra descoberta que precisamos buscar a cada
história lida, interpretada ou refletida. A análise ampliou a minha visão na compreensão da
situação educacional e política do espaço rural e a ver o valor que teve a cooperação entre os
estudantes no estudo compartilhado.
239
Nessa narrativa de vida de Carlos Roberto Gomes, mais uma vez, destacarei a
importância do PRECE como prática docente centrada no estudante, impulsionando o mesmo
a ser um protagonista do seu processo de aprendizagem. Foi assim que os estudantes do projeto
se construíram a partir do educar-se em comunhão, mudando o destino de continuar vivendo
somente daquilo que seus pais tinham e podiam ensinar, geralmente, situações difíceis de
sobrevivência como: a agricultura de subsistência, trabalho na terra como diarista, pescador,
gerente de fazenda (para cuidar do patrimônio de donos de terras e de seus animais) etc., para
cidadãos realizadores de sonhos e livres pelo estudo em cooperação e solidariedade.
Carlos Roberto nasceu na comunidade de Jardim, filho de seu João Félix, que
trabalhava como vaqueiro na fazenda em que moravam em Cipó, e Francisca de Sousa Gomes,
chamada de Nenê, professora de 1ª a 4ª série do ensino fundamental. Carlos apresenta a si e sua
família na realidade posta a eles, que era a vida na condição de vaqueiro:
[...]. Sou Carlos Roberto de Sousa Gomes. Sou conhecido como Beto. Sou filho de
João Felix Gomes, vaqueiro. [...] de Francisca de Sousa Gomes, [...] conhecida como
Neném, professora. Eles dois são os pais de sete filhos, a minha família é formada por
sete filhos [...] mais uma menina que a gente criou que a gente considera como irmã.
Eu sou o terceiro mais velho. [...]. Meu pai sempre foi vaqueiro dos grandes
proprietários de terra daquela região, [...]. Sempre estava morando com esses
proprietários, morou um tempo com uma pessoa – numa fazenda do Zé Gomes e
posteriormente do Antônio Carneiro, [...] foi nessa fazenda do Zé Gomes que eu nasci,
na comunidade de Jardim, que fica há trinta e dois quilômetros de Pentecoste [....]. No
ano de 1981, foi morar numa fazenda no Cipó, [...] onde a gente passou vinte e um
anos lá, [...]. A minha mãe foi professora [...] do ensino fundamental básico, que
trabalhou durante [...] trinta e seis anos, com jovens, com crianças daquela
comunidade, [...] crianças carentes, crianças que buscavam um pouco de educação
[...]. (GOMES, 2011).
as crianças e adolescentes, porém também sem a valorização devida, com uma renda
pequeníssima, naquele tempo, mas com um pouco mais de chance de uma mobilidade social e
econômica para melhor e duradoura, além de que sua posição de professora garante a ela um
capital social e cultural importante em sua realidade.
Carlos Roberto está diante de dois campos de força de dois habitus bem definidos
– o habitus do vaqueiro e o habitus professoral. A cultura do gado, muito presente em nosso
estado, mesmo pouco valorizada em nossa região, fazia parte do interesse particular do contexto
familiar de Carlos Roberto. E a cultura do estudo, o valor dado a escolarização, a formação
intelectual por parte da professora Nenê. Acerca dessa paixão de Carlos Roberto pelos oficios
do pai, Apresento um relato de Carlos Roberto sobre esse momento que marcou a sua vida no
trabalho de vaqueiro, junto com seu pai:
[...] eu passei a fazer isso junto com o meu pai, a gente fazia/transportava gado de um
município para outro, [...] quando eu tinha [...] quatorze anos, foi uma das primeiras
viagens que eu fiz na minha vida. Foi de levar o gado do município de Pentecoste, da
comunidade de Cipó até uma comunidade chamada Rato, no município de
Maranguape, isso dá seis léguas ou sessenta quilômetros a pé. Isso eram dois dias, [...]
isso para mim foi um marco, né? Uma oportunidade de conhecer outra realidade, outra
comunidade[...] eu também passei a desenvolver uma atividade que foi o tirar leite,
eu passei de doze até dezoito anos. Nessa época quase todos os dias de todo ano eu
tirava leite, [...]. E durante o período do inverno, que é importante relatar, que na
fazenda a gente sempre fez queijo. [...] a gente tirava em torno de duzentos litros de
leite que dava uns quinze quilos de queijo por dia, [...]. Numa época em que a fartura
era bem significativa [...]. (GOMES, 2011).
[...] nesse período, [...]. Eu passei a desenvolver outra atividade [...] em um certo
período que foi capinar, né? E também, eu comecei a montar um roçado para mim
mesmo, [...] aos treze ou quatorze anos eu joguei aspirante, [...] Ou segundo quadro
como é chamado lá no nosso meio rural. [...] aos quatorze anos eu passei a jogar [...]
como titular do time de Capivara, Capivara Sport Club, [...] e joguei durante dois anos
até os dezesseis anos na Capivara, [...] E isso, foi um período de aprendizagem, de ter
novas amizades, de conhecer novas pessoas dentro do município, conhecer outras
comunidades, [...] em torno de quinze anos, eu fui [...] jóquei, [...] eu [...] gostava
muito disso, mas sempre a mãe e o pai diziam “só vai ser jóquei durante [...] o período
de férias [...]. (GOMES, 2011).
241
Aqui reside mais uma identificação entre as narrativas de vida dos sete primeiros
precistas. Há esse elemento em comum, o futebol, que compõe peça de destaque em quase todos
os relatos. Carlos, ainda adolescente, aprendeu todos os ofícios de seu pai e gostava de fazer,
demonstrando ter técnica ao se responsabilizar pelo trabalho. Por outro lado, a sua mãe,
professora Nenê, direcionava Carlos para prosseguir nos estudos e não somente no trabalho
com o pai. Ela dava o equilíbrio necessário na vida do filho e contava com o apoio do marido
nas suas decisões. Eles demonstraram querer outro caminho para a vida de Carlos. Dessa forma,
Nenê só liberava Carlos para ser jóquei quando estava de férias da escola. Aqui, percebo outra
identificação, pois semelhante a Adriano Andrade, Carlos Roberto, desde criança, gostava de
ajudar o pai, em seu ofício na fazenda.
É interessante ver o gosto dos filhos pelos tipos de trabalho dos pais, a ponto de eles
confundirem o trabalho com a brincadeira. Parece que eles se divertem trabalhando; é como se
trabalho e brincadeira fossem a mesma coisa. Percebi isso neste relato de Carlos:
[...] foi onde começou toda a minha infância, [...] nessa fazenda em Cipó, que fica há
dezoito quilômetros de Pentecoste. [...]. Minha infância foi [...] de uma criança no
meio rural, na qual fez todas as atividades do meio rural. [...]. Tinha atividade de
trabalho e atividade de lazer, de brincadeira como nós chamamos lá, no interior, no
meio rural. [...] nessa minha infância [...] a gente cuidava dos animais. [...] Pastorava.
[...] Ovelha [...]. A gente olhava quantos animais nasciam, se ia ter que curar as
bicheiras, se não ia. Caprinos também. E os equinos a gente usava mais para trabalho
da gente, [...] para cuidar desses outros animais, além de cuidar da ração, dar banho,
né? Tudo isso na parte do equino. [...]. Na parte de brincadeira nós tínhamos umas [...]
bem interessantes, [...]. Até doze anos [...] a minha brincadeira principalmente era
atirar de baladeira, ir para a escola, [...] que isso era uma obrigação, que lá em casa a
mãe sempre colocou os filhos, insistiu pra gente ir pra escola e o pai também sempre
apoiou. Um outro, jogar bola, [...] gostava muito de jogar bola, considerado lá no
interior como viciado a pessoa a jogar bola. Jogava todos os dias. Tinha um terreiro
na fazenda muito grande, [...] no qual a gente jogava bola junto com os colegas [...].
(GOMES, 2011).
Noto que ele divide o tempo da sua infância em atividades de trabalho e atividades
de lazer; com isso quase confundimos com “brincadeiras de trabalho” e “trabalhos de lazer”.
Com essa descrição bem detalhista de Carlos, pude ver que isso foi bem lembrado, marcou a
sua vida e o seu relato empolgante, me demonstrou que ele realmente gostava de realizar essas
atividades. Porém vamos passar a analisar o outro lado da vida de Carlos, o lado da sua história
estudantil. O excerto preparado por mim representa como foram os estudos da educação básica
de Carlos Roberto, da alfabetização ao oitavo ano:
[...] o colégio que eu vim estudar [...] o fundamental dois, o que nós chamamos nessa
época, [...] o primeiro grau. [...] foi o Manuel de Oliveira Sales, [...] no quinto ano de
1990 – (grifos da autora). [...] teve, acho que foi a segunda turma [...] da TVC[...]. A
gente estudava pelo manual de apoio, [...].(teve um corte temporal para morar na
cidade com o avô –grifos da autora): Meu avô estava morando em Pentecoste, e [...]
242
eu fui pra Pentecoste morar [...] com ele porque precisava de uma pessoa para
colaborar nas atividades [...], ele tinha um quintal grande e a mãe pediu pra eu ir, [...]
eu fazia a sétima série, [...] a mãe colocou eu para estudar no Tabelião. [...]. (Ele quis
voltar para Cipó – grifos da autora) “Vamos embora pro interior que aqui não dá certo
não pra eu continuar” [...]. A gente concluiu toda a oitava [...] pelo manual de apoio
e a TV na qual passa a aula, e nós estudávamos o manual de apoio com um apoiador,
[...] professora. [...] não tinha ensino médio [...] no interior de Pentecoste[...] a gente
conclui a oitava série ou o primeiro grau, que a gente faz da vida, [...] Foi [...] a
primeira vez que se ouviu falar em transporte. Transportar [...] os alunos para estudar
[...] em Pentecoste. [...]. (GOMES, 2011).
Carlos Roberto seguia a orientação de sua mãe nos estudos iniciais e, além disso, ia
com ela, diariamente, para a escola; as ações de Nenê me levam a crer que o maior objetivo
dela era os estudos dos filhos, Carlos e seus irmãos(ãs). Ambos enfrentaram as distâncias,
próprias do contexto onde viviam. Aqui reside mais uma regularidade, também na identificação
com a história de vida de Francisco Antonio que enfrentou as distâncias para poder vencer esse
período de formação em uma realidade difícil para ser ultrapassada – as distâncias - algo que é
comum a todos os agentes aqui estudados.
A mãe pedia a ajuda de Carlos para fazer companhia ao pai, mas ela demonstrava
sempre zelar pelo equilíbrio da vida estudantil do filho. Esse tempo que estudou na cidade ele
não gostou, então retornou e concluiu o oitavo ano, no espaço que amava, o das brincadeiras de
trabalhar com os animais, de respirar ar puro na vastidão do sertão. Esse amor pelo Cipó é o
que vai definir outra decisão na sua vida, a resposta a pergunta que desencadeará uma nova
discussão: Onde o Carlos Roberto e sua irmã Raquel Gomes (sobre ela falarei à frente) iriam
fazer o ensino médio? Já que só existiam escolas de ensino médio na cidade e não havia
transporte escolar disponível para levá-los até lá, tendo em vista que não queriam se mudar para
a cidade.
Essa era a questão posta na vida estudantil de Carlos Roberto e também de seus
irmãos(ãs). Sua mãe sonhava que o filho estudasse na escola Centro Educacional João XIII,
que, naquele contexto, era conhecida como a melhor do município. No entanto, quando pensava
nas dificuldades de deslocamento e no dinheiro que deveria retirar da pequena renda do esposo
vaqueiro e de seu minúsculo salário de professora do município, no início da década de 1990,
preocupava-se com o futuro de Carlos, de Raquel e dos outros filhos.
Dona Neném sentia-se cheia de dúvidas quanto ao futuro profissional deles, já que
no município não havia oportunidades de emprego. A única opção que se tinha, na época, eram
as ocupações próprias da região, citadas antes, e sempre tudo iria bem se houvesse uma boa
estação chuvosa, apesar dos outros transtornos com as enchentes do lugar já que a comunidade
de Cipó fica entre vários rios intermitentes que botam cheias nessa estação.
243
[...] “a gente vai ou não vai? [...] estudar em Pentecoste?”, e ficou nessa briga. Tinha
uma irmã, que também estava concluindo junto comigo, a Raquel, concluiu [...] a
oitava série. E nós: “Vamos ou não vamos? Vamos continuar nessa”, e foi, a gente
decidiu [...]. Depois de uma conversa [...] junto com a família, que não [...] ia para
cidade de Pentecoste – (grifos da autora). Eu tinha dezesseis anos, a Raquel com [...]
dezoito, e [...] passando para adulto, [...] a gente decidiu não ir. Foi um período [...]
que o PRECE chegou naquela comunidade do Cipó. Me lembro muito [...] de várias
conversas [...]. O importante antes disso é que o PRECE já vinha numa história de
campeonatos, de integração das pessoas [...]. Depois de eu sentar com o pai e com a
mãe, sempre a gente conversou, [...] E também numa conversa [...] que eu tive com o
Andrade[...], ele disse, eles disseram, né? porque não foi só ele: O pai me dava todo
apoio até eu me formar. Não tinha muito recurso financeiro, mas no que fosse possível,
as coisas básicas para as necessidades básicas. Mamãe do mesmo jeito, [...] isso é uma
oportunidade que muitos jovens do meio rural buscam, querem, porém, é uma
oportunidade [...] e isso ficou marcado na história da minha vida, [...]. (GOMES,
2011).
Assim, ele e Raquel decidiram ficar no projeto de estudos que se formava. Seus pais
já conheciam Manoel Andrade e sua família; e Carlos Roberto já era amigo dele nas interações
do futebol, esporte que era o grande ponto de identificação entre os precistas fundadores, pois
por todas as histórias ouvidas e analisadas aqui, não há dúvida de que o futebol uniu todos os
precistas pioneiros antes de começarem o PRECE. Com essa identificação, ficou melhor para
acreditarem em algo que ainda era uma ideia, mas que precisava ser posta à prova. Caso eles
tivessem que ir para Pentecoste, iriam, diariamente, em “pau de arara”, à 19 km de sua casa, na
zona rural. Nessa situação, o maior receio era a viagem longa a qual durava em torno de duas
horas (ida e volta). Levando em consideração que a aula começaria às 7h30min, eles teriam que
pegar o carro na estrada às 6 h. Para voltar, deveriam entrar no caminhão no máximo às 12 h e
chegariam em casa por volta de 13 h ou mais, cansados e famintos.
Essa rotina ocorria somente no verão, porque em estação chuvosa, a incerteza era
parte do dia a dia dos estudantes, isso por causa dos rios e riachos que, às vezes, impediam à
viagem para a escola. Essa era a rotina dos jovens que teimavam em continuar estudando para
se escolarizar. E ainda teriam que pagar as passagens no carro pau de arara, dobradas para os
244
dois, equivalentes a 16,00 reais, atualmente; levando em consideração o percurso de ida e volta,
multiplicando pelos dias letivos.
Percebi no depoimento de Carlos Roberto, a completa ausência do poder público
na criação de soluções para a melhoria da educação na região. Soluções como construir pontes
ou “passagens molhadas”22 nesses rios e riachos para garantir o transporte dos estudantes na
estação chuvosa, prover um transporte público para a locomoção adequada dos estudantes, ou
lutar por escolas na zona rural.
Atualmente ainda persiste esse descuido dos gestores públicos com a educação, pois
ainda não existem escolas de ensino médio na região, mas somente núcleos. Com tanta
dificuldade, muitos dos estudantes se desestimulavam e desistiam de estudar. A maioria dos
jovens dessas comunidades rurais concluía somente o ensino fundamental, já outros paravam
na 4ª série, pois o ambiente era desestimulador, o foco era nas atividades repassadas pela opção
que os pais tinham para ensinar aos filhos, ficando, portanto, impedidos de se desenvolverem
nos estudos.
Depois da conversa com Manoel Andrade sobre um plano de estudo e de vida, a
decisão de Carlos Roberto e Raquel foi de terem uma experiência no grupo precista que se
encorpava. A partir da conversa com o educador, Carlos Roberto decidiu entrar no projeto
PRECE e se dedicou aos estudos, cotidianamente, em busca de seus sonhos, através dos livros.
Durante as manhãs estudava, e à tarde jogava bola para descansar a mente, mas, depois começou
a estudar integralmente. Dessa forma, foi aumentando, gradativamente, as horas de estudo para
não sofrer uma grande mudança nas suas atividades.
Na conversa, Manoel propôs a ele fazer uma revisão do ensino fundamental,
levando em conta que a dificuldade dos estudantes daquele espaço com a leitura, a escrita e
conhecimentos da História e Geografia eram notórias. Ele, então, começou com essas
disciplinas, pois assim, estaria praticando a leitura a partir desses conteúdos.
Segundo Carlos Roberto, com o estudo da Geografia e da História, ele foi
aprendendo a interpretar e adquirir conhecimentos. Na sequência, veio o estudo das Ciências e,
nessa disciplina, ele conta que Manoel Andrade lançou um desafio ao grupo: aqueles estudantes
que demonstrassem ter estudado mais Ciências, ganhariam uma viagem para Minas Gerais e,
no final, os que se saíram melhor foram Francisco Antonio e Francisco Gonçalves, e os dois
ganharam a viagem.
22
Uma construção a partir de cimento e ferro no trecho da estrada carroçal onde os riachos passam. Isso evita os
atoleiros que podem barrar os transportes que trafegam pela rota.
245
[...] Essa nossa família sempre foi uma família abençoada por Deus e a gente sempre
teve muita abundância de alimentação nas quais muitos amigos da gente que moravam
perto; a gente levava mesmo para se alimentar lá em casa. Isso a gente tinha muito
feijão, muita farinha, animais, sempre a gente matava para ter carne durante a semana,
o pai sempre comprou muita carne e a gente sempre tinha muita abundância em
relação a isso [...]. (GOMES, 2011).
minguadas fazendas de ovino, caprino e bovino ou pescar no açude Pereira de Miranda. Nem
mesmo as duas fábricas, uma de derivados de leite, outra de calçados, que hoje há no município,
existiam àquela época. Assim, era preocupante a situação dos jovens pentecostenses, no limiar
da década de 1990.
Carlos Roberto fala que, em meados de 1995, o grupo pioneiro já estava mais
aglutinado e fortalecido. Eles já tinham feito as revisões do 1º grau e, a cada fim de semana, o
professor Andrade fazia um questionário para cada um e ainda uma avaliação oral para sondar
os conhecimentos do grupo. Essa estratégia, meio que despretensiosa, contribuiu muito como
elemento motivador e fez com que eles ficassem mais interessados. Esse início foi de muita
união do grupo, “um aconchego positivo entre as pessoas do grupo” (GOMES, 2015a). Ademais,
quando falo de Carlos Roberto, volto a mencionar o time de futebol, Estudantina, criado por
Manoel Andrade e os sete estudantes. Como vimos, anterior ao início do PRECE, esse encontro
para jogar uniu o grupo e o ajudou fazendo com que seus integrantes aprendessem a conviver.
Carlos Roberto lembrou ainda como tudo teve início dentro de dificuldades, mas, foi nessas
circunstâncias, que surgiu uma coisa boa, um movimento educacional que impactou a juventude
popular e até os mais abastados da cidade.
No começo, de outubro a dezembro de 1994, Carlos Roberto diz que “ninguém
sabia para onde ia, e isso mostrava que ninguém tinha uma visão de onde chegar e como chegar
e nem sabia se ia chegar; naquele início, ninguém sabia nem se existia uma universidade”
(ibidem). Ele comenta que acreditava, porque via o exemplo do professor Andrade, que nasceu
lá, morava lá e saiu para estudar, se formar e melhorar a sua vida para depois voltar, sonhar com
eles e transformar aqueles sonhos coletivos em realidade.
Os sonhos eram de mudança daquela vida dura do jovem popular agricultor. Ao nos
contar essa história, ele relembra como foi difícil o início dos estudos, a disciplina pessoal, criar
autonomia, pois na semana, eles deveriam estudar sem o auxílio de um professor, somente se
apoiando uns nos outros, no exemplo daqueles mais disciplinados e estudiosos, no auxílio na
hora da dúvida, dentre outras interações.
Carlos Roberto fala que foram criados pelo grupo, vários projetos e estratégias que
garantiam a permanência dos estudantes naquele espaço de aprendizagens. Assim como todos
os outros, ele relata sobre o primeiro projeto que foi o curso de datilografia que na realidade,
começou antes, como visto antes. Ele relata que no PRECE havia uma diversidade de
conhecimentos que para ele não existia antes. Reconhece que aquele momento foi um divisor
de águas em sua vida e não foi difícil decidir não ir mais estudar no centro da cidade. Expõe
que o plano para sua vida estudantil havia sido traçado na experiência no projeto, de modo que
247
tudo se tornava muito claro e certo no seu futuro. Ele já havia aprendido muita coisa na revisão,
na convivência e no aconchego dos amigos. Ao começar seus estudos na casa de farinha, se
sentia mais autônomo e gostava de estar no seu espaço livre, aberto e cheio de plantas. Não
compensaria deixar de estudar na casa de farinha para estudar no centro da cidade. Comparando
o tempo que gastaria e o quanto que aprenderia na escola da sede do município com o tempo
que dispenderia em estudar próximo da sua casa e o quanto que aprenderia nessa “escola livre”
e mais próxima da rotina de vida dele, não lhe restava mais dúvida, essa última, era a melhor
escolha. Carlos Roberto concluiu o ensino médio através da Educação de Jovens e Adultos,
orientado pelo PRECE e foi certificado pelo CEJA Professor Gilmar Maia de Souza, em
Fortaleza, em 1997.
Quando tentou o vestibular pela primeira vez, não obteve aprovação, ele relata que
tinha muita dificuldade em produzir redações. Em 1998, novamente prestou vestibular na UFC,
para o curso de Agronomia e na Universidade Estadual do Ceará (UECE), para Matemática,
obtendo aprovação em ambas, porém optou pelo curso de Agronomia. Preferiu a UFC por uma
questão de maior apoio público, tendo restaurante universitário e residência estudantil, como
discutido antes.
Ingressou na universidade no segundo semestre, porém no primeiro aproveitou para
suprir suas necessidades acadêmicas e fez alguns cursos das disciplinas básicas do ensino
fundamental e médio para poder compreender melhor e não ter dificuldades nos conhecimentos
acadêmicos que estariam por vir. Na universidade, envolveu-se com o time de futebol, época
em que foi a um campeonato universitário brasileiro em Aracaju. Enquanto universitário, assim
como os outros, retornava para coordenar células de estudo no PRECE, aos fins de semana,
cumprindo a pedagogia do retorno. Nesse tempo, foi também estagiário na Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Lá adquiriu diversos conhecimentos e conheceu
novos lugares. No mesmo período, deu aulas particulares de matemática e física, áreas nas quais
sempre se destacou e isso eu o admirava muito porque qualquer dúvida que eu tinha, corria para
solicitá-lo ajuda. Foi também bolsista de iniciação científica pelo Conselho Nacional de
Pesquisas (CNPq) e bolsista de extensão para dar aula no PRECE.
Depois de graduado, (figura 52) realizou um projeto pela Secretaria de Agricultura,
em parceria com o Instituto Coração de Estudante (ICORES), organização criada pelo PRECE,
explicado antes, trabalhando, diretamente, com o professor Manoel Andrade, em Pentecoste.
Posteriormente, trabalhou como educador social na Agência de Desenvolvimento Local
Sustentável (ADEL) e depois, foi contratado para trabalhar em Santa Quitéria no seu primeiro
emprego na assistência técnica e extensão rural em assentamentos do MST, com um convênio
248
Após essas experiências, retorna novamente para próximo de sua comunidade para
realizar um projeto de agricultura no vale do rio Canindé, novamente com o professor Manoel.
Ainda trabalhou como bolsista no projeto da Secretaria de Agricultura como professor da escola
agrotécnica do Crato na unidade de Umirim. Depois atuou como bolsista da Secretaria do
Desenvolvimento Agrário do Estado e em assistência técnica e extensão rural do município de
Maranguape. Hoje, Carlos Roberto foi aprovado em concurso público na Secretaria de
Agricultura e Desenvolvimento Agrário de Pacatuba, como Engenheiro Agrônomo. Ele é
casado e pai de um filho. Mesmo não residindo em Cipó, não esqueceu sua história com o
PRECE e sempre colabora e participa de encontros com os amigos que construiu durante sua
trajetória de estudos e de futebol. Carlos Roberto continua se preocupando com a formação, por
isso, em 2018, fez uma Especialização em Docência Superior na Faculdade Stella Mares.
249
Tem ocorrido uma conscientização de que não se deve por de lado, em nossas
pesquisas, a dimensão afetiva. Percebe-se que a afetividade foi essencial na experiência de
Carlos Roberto. Conviver no grupo de estudo do PRECE, aprendendo com os erros e acertos e
olhando pelo paradigma do cuidado, foi importante no grupo precista. Talvez por isso, seus
integrantes apreciam se reunir ainda hoje, creio eu, pelo afeto e os laços que construíram em
suas trajetórias de resistência às adversidades. O cultivo das amizades, alimentado pela
solidariedade foi algo que destaquei como umas das fortalezas do projeto inicialmente. Sobre a
afetividade Morin diz que:
A escola não formal dos sete estudantes, hoje chamada PRECE, em vários
depoimentos de seus protagonistas, primava pela educação integral, parecida com a vida porque
acontecia, diariamente, na convivência da casa de farinha, no campo de futebol, nos projetos
sociais comunitários realizados na comunidade etc. Os agentes fundadores falam sempre da
importância que tinham as conversas entre eles, o compartilhar das histórias de vida, dos
problemas que perturbavam a mente e que, muitas vezes, tendiam a impedir os seus estudos.
Tudo isso era dissolvido nessa comunhão e partilha.
Josso (2004, p.41) diz que “a perspectiva que favorece a construção de uma
narrativa emerge do embate paradoxal entre o passado e o futuro em favor do questionamento
presente”. Notamos na narrativa de Carlos Roberto esse ir e vir buscando informações que
foram essenciais para a sua vida, e esse movimento produziu uma reflexão importante para a
definição de quem é o Carlos Roberto hoje e qual o impacto que sua história de vida tem para
ele e para o outro. Ouvi-lo foi gratificante.
a casa, cuidar da roupa e fazer as refeições, servindo aos homens da casa em lugar da mãe,
quando necessário. Mas Raquel, apesar dessa realidade, era estimulada por seus pais a estudar.
Lembrando que Raquel tem a mesma mãe de CarlosRoberto; e que falei sobre a profissão dela
e do valor que dava aos estudos dos filhos.
Sua mãe, dona Nenê incentivava Raquel a estudar, embora ela, assim como Carlos
Roberto que ajudava ao pai, também precisasse ajudar a sua mãe na atividade doméstica da
casa. Essa atribuição se fazia necessária, pois sua mãe precisava trabalhar fora, como professora,
e isso não era visto como inapropriado pela cultura das famílias populares da época que
requeriam os trabalhos dos filhos e filhas para a sustentabilidade da casa, algo discutido antes.
Essa mesma cultura ainda separava as atividades domésticas somente para as mulheres da casa.
Essa era a cultura familiar valorizada por esse espaço social. A infância de Raquel foi na
brincadeira com os seus irmãos, pois os mais velhos eram quase da mesma idade, então a parte
das brincadeiras que o Carlos Roberto fazia incluía a Raquel, brincadeiras com os animais, as
de correr no terreiro da casa da fazenda, dentre outras, próprias do universo das meninas. Ela
relata um pouco da sua descontração na infância:
[...]. Fomos [....] para Cipó e lá nós vivemos a nossa vida por inteiro praticamente. Lá
eu acreditava que [...] era como se fosse um espaço nosso mesmo né, tinham os
animais o qual hoje ainda eu tenho muita saudade [...], do gado, das ovelhas, dos
cavalos. Lá eu tinha a oportunidade de andar de cavalo, brincar com os animais, mas
eu tinha muita responsabilidade também né, pois nós morávamos numa fazenda, [...]
a casa estava sempre cheia de colegas, mesmo a gente criança, a gente já tinha a nossa
família que sempre estava conosco. Aos finais de semana a gente sempre ia para uma
comunidade a qual eu nasci, [...] Boa Vista, que eu passava o final de semana com
nossos avós [...] eu [...] sempre fui uma criança que gostava de cumprir com algumas
tarefas, e nós éramos uma família muito pobre, não tínhamos condições, a minha mãe
só tinha aquele fogão chamado fogareiro que era colocado no chão. E a minha mãe
tinha colocado a panela no fogo e eu fui mexer nas louças dizendo que ia lavar e acabei
sofrendo um acidente, com queimadura, tive que vir para Fortaleza e passei muitos
meses deitada sob uma cama de palha de bananeira, [...]. São muitos os fatos que eu
tenho de minha infância, os fatos de menina sapeca, de pessoa danada, que gostava de
cumprir as tarefas e ajudar a minha família. [...]. (GOMES, 2011b).
Disse bem Raquel, desde pequena, “tinha muitas responsabilidades” e “que gostava
de cumprir com algumas tarefas” (ibidem). Ela aprendia com sua mãe como cuidar da
alimentação e limpeza da casa. Então essa prática doméstica, cedo ela foi dominando e tomando
gosto por essas atividades que aprendia desde pequena. Ela relata inclusive que sofreu alguns
acidentes na cozinha, aprendendo a ajudar a sua família.
Raquel iniciou sua alfabetização e estudos de 1ª a 4ª série, tendo sua mãe como
professora, pois ela trabalhava na escola dela, em Boa Vista. Como moravam distante, já em
Cipó, tinham que percorrer distâncias. O que Carlos não lembrou, Raquel falou, uma história
251
[...]. Lá próximo do Cipó, quando nós ficamos lá, minha mãe trabalhava três
expedientes, e ela continuou indo para Boa Vista e eu ia estudar junto com ela, nós
íamos em um burro, que chamava-se Batalhão, eu lembro muito porque que o nome
dele era Batalhão, porque nele cabia além da minha mãe, [...] mais 5 filhos em cima
dele a gente conseguia andar nesse animal, ele tinha características bem forte e a cor
dele era branco, e ele era um animal manso. E assim ele servia como transporte para
a gente né, [...] porque ela precisava ajudar na educação dos filhos e nas condições
financeira, que era difícil [...]. Meus primeiros anos de vida foram na escola Paulo
Ferreira, na comunidade da Boa Vista, com a minha mãe, Francisca de Sousa Gomes,
mais conhecida como neném, lá eu estudei mais ou menos durante um ano, aí depois
eu fui conhecendo outros professores [...] (e passou a estudar - grifos da autora) nas
Cacimbas, [...]. [...] (ela fala sobre a construção de uma escolinha em Cipó – grifos
da autora) uma escolinha onde só tinha uma sala de aula e lá funcionava manhã e tarde.
Após construir essa escola foi pedido a transferência da minha mãe, lá do Paulo
Ferreira pro Cipó, então já que construíram a escola no Cipó, ficou mais próximo de
eu voltar a estudar com a minha família [...]. Eu estudei com a minha mãe durante
alguns tempos né, estudei também com a filha do seu Arão [...] que é a Ioneide de
Andrade [...]. (GOMES, 2011b).
Com toda essa luta mais uma vez por causa das distâncias nesse meio rural espaçoso,
a notícia da construção de uma escolinha na sua comunidade foi alvissareira. Agora Raquel e
seu irmão Carlos começariam a estudar mais perto de casa. O burro Batalhão teria uma boa
folga a partir de então. Logo Raquel iniciaria o seu próximo passo, ensino fundamental:
Assim como seu irmão Carlos Roberto, Raquel estudava pelo sistema de TV
Educativa, na mesma escola. Esse sistema tem uma proposta de ensino à distância interessante
por oportunizar a escolarização a pessoas de realidades distintas. No entanto, no tocante à sua
252
implementação, nas escolas rurais da década de 1980, em nossa região, funcionava sob a
liderança de professores não graduados e despreparados, por isso, academicamente, teve efeito
contrário, pois colaborava para uma defasagem escolar. Falo isso por ter passado também por
esse sistema e não ter logrado êxito em meus estudos; e ainda por ter lido relatos negativos
sobre isso, nesse trabalho. Assim, Raquel vivia períodos de alta e baixa motivação, mas o
importante foi que nunca pensou em desistir. Ao contrário, foi resistindo às instabilidades de
sua vida e ao sistema que não cooperava até subir o primeiro degrau, a conclusão do ensino
fundamental.
[...] E quando eu terminei o ensino fundamental eu tinha muita dificuldade [...] mas
[...], eu procurei [...] melhorar [...] então foi, [...] quando certa noite, [...] eu fiquei
conversando com o Beto, [...] o Nacélio e o Du, perguntando o que é que nós iríamos
fazer agora que estávamos terminando a oitava série, como é que ia ser a minha vida
né [...]. (GOMES, 2011b)
Ela comenta que a fase inicial de sua escolarização foram anos de muitas
dificuldades, mas apesar disso, demonstrou obstinação e força para conseguir ir em frente.
Raquel havia sido ensinada a ajudar a sua família. Para ajudar a sua mãe, tinha que conciliar o
trabalho rotineiro e interminável do espaço doméstico (alimentação, limpeza da casa, lavar
louças, roupas, fazer queijo e a comida dos trabalhadores, etc) com os estudos. Além disso,
tinha que enfrentar problemas como as distâcias, a falta de professores preparados, dentre outros
problemas.
Mesmo quando se tem tudo nas mãos, o ato de concentração para o aprendizado
ainda não é algo pouco difícil para todas as pessoas. Vejo que tudo era um desafio para Raquel,
mas ela contava com o incentivo da mãe, do pai e do irmão Carlos Roberto, seu companheiro
de estudos, apesar da cultura de naturalização da situação da mulher naquela sociedade, que
não está longe da realidade social da mulher atualmente.
Raquel se perguntava como iria ser a sua vida após a euforia da festa de conclusão.
Para comemorar alegremente a festa, ela precisaria saber como seria dali para frente. Decidir o
que eles fariam para continuarem a estudar foi um processo interessante. Destaco um trecho de
como Raquel percebeu esse momento de sua vida:
[...] certa vez, (o Carlos Roberto – grifos do autora) se reuniu com o professor Manoel
Andrade e nessas reuniões [...] eu acho que, com certeza, eles ( o Eudimar, o Narcélio
o Carlos Roberto – grifos da autora ) falaram sobre estudo, porque quando eles
chegaram para mim, eles já estavam com o esquema montado, pra dizer se daria certo
né. E foi então que o Andrade chamou a minha mãe, o meu pai, os pais do Nacélio, e
o Du, para conversar um dia lá na casa do seu Arão, domingo à noite, na cozinha,
253
lembro muito como se fosse hoje, para falar sobre uma possibilidade de formar um
grupo de estudo. Mas, eu pensei, “formar esse grupo de estudos como?”, se nem de
nada a gente sabia, não sabia fazer praticamente nada, eu tinha apenas aquele pedaço
do papel na mão que seria o certificado (se referindo ao certificado do 8ºano – grifos
da autota). Mas naquele momento [...] eu não pensei realmente em ficar ali, porque eu
sabia que ia ter como eu ir para Pentecoste e estudar lá, mas no momento eu fiquei
pensando, aí [...] um dia a minha mãe se preparou para fazer a matrícula, [...] Lá em
Pentecoste, e eu não tive coragem de deixar ela fazer a minha matrícula, [...] ela fez
só a matrícula do meu irmão, [...] do Beto, e ele chegou a ir. [...]. Existiam duas escolas
lá, uma era João XXIII, que era particular, e [...] outra era Tabelião. Ele chegou a ir
[...] mas [...] ele passou algumas dificuldades, [...] porque nós éramos família pobre,
ele usava havaianas para ir para a escola e os alunos começaram a fazer mangofa dele
e essas coisas. E daí então foi que eu realmente percebi que nós [...] tínhamos que
acreditar em um grupo de estudos. [...]. (GOMES, 2011b)
Percebi que Raquel não pareceu estar muito empolgada inicialmente. Não
compareceu a primeira reunião, mas ficava sempre se informando com o irmão e os amigos.
Ela trazia o assunto, mas pareceu com dúvidas antes de tomar uma decisão importante em sua
vida. Dona Nenê precisou fazer a matrícula, e ao ser questionada por Raquel, ela decide
permanecer fora da escola para depois analisar se participaria da experiência do PRECE.
Entendi que, mesmo tendo conversado com o professor Manoel Andrade, sua mãe,
por cautela e segurança, fez a matrícula do filho em uma das escolas de Pentecoste, referida
antes. De acordo com seu relato, a professora Nenê fez a matrícula, contando com o apoio de
um familiar para hospedar o filho, caso fosse necessário, mas na verdade, Carlos Roberto não
pareceu gostar da cidade. Destaco abaixo a versão de Raquel sobre sua entrada no PRECE para
se juntar ao grupo pioneiro:
[...] O Andrade chamou outras vezes para conversar e acreditamos naquela conversa.
Nesse momento eu ainda não tinha idade para começar o ensino médio, (pela EJA –
grifos da autora) [...] porque aqui em Fortaleza nós precisávamos vir para fazer o
supletivo, mas nós precisávamos completar a idade de dezoito anos, [...]. Então nos
juntamos [...]. Toinho era uma das pessoas que já estava na ativa como professor. Ele
tinha feito aquele programa chamado Logos II. Então foi ele uma das pessoas que
contribuiu [...] porque ele era mais desenrolado como fala popularmente as pessoas,
[...]. Ele já era professor, ele não tinha tantas dificuldades como nós. Nós tínhamos
tantas dificuldades, a gente tinha dificuldade até em conversar um com o outro, dizer
como é que ia funcionar, se daria certo. Então [...] ficamos na casa de farinha, eu, o
Du, o Orismar e o Toinho. Aí após chegou o Noberto e o Francisco, foi um grupo, [...].
Assim, eu seria uma pessoa muito protegida, [...] e também, ao mesmo tempo
apontada pelos outros, né? Porque eu seria a única mulher no meio daqueles tantos
homens. Mas ao mesmo tempo eu estava protegida, pois eu estava ao lado do meu
irmão e a casa do seu Arão era próxima, e a minha família ficava bem perto [...].
(GOMES, 2011b)
Raquel tinha dúvidas se continuaria seus estudos do ensino médio, devido as muitas
dificuldades internas, sempre citadas por ela, nesse processo. Mas, na tentativa de tomar uma
254
decisão, resolveu ir junto com seus pais conversar com o professor Manoel Andrade. Depois da
conversa e estimulada pelo apoio dos pais, decidiu ingressar no primeiro grupo de estudos do
PRECE com seu irmão Carlos Roberto. O contexto de trabalho doméstico em que Raquel era
envolvida, desde criança, constituía a própria forma de ser de Raquel, a exemplo, suas
exigências, meio exageradas com a limpeza, com a organização da casa, isso tudo tomava lugar
de prioridade em sua rotina de jovem que precisava também estudar. E como nem todas as
pessoas conseguem conciliar duas prioridades; com Raquel, me pareceu ter ocorrido isso, ela
teve a dificuldade para ajustar, com êxito, a sua realidade.
Assim como os outros, Raquel iniciou o ensino médio na modalidade EJA no CEJA
Professor Gilmar Maia de Souza, em Fortaleza, com a ajuda do grupo pioneiro. Da mesma
forma dos outros estudantes, a proposta de estudar na casa de farinha passou a fazer sentido
também para Raquel. Proposta essa, apresentada pelo professor universitário que gozava de
muita admiração e respeito perante as famílias de Cipó e adjacências. Era perto de casa e eles
se sentiam mais autônomos. Vejo em suas narrativas, o espaço de estudo do PRECE como um
lugar do coração deles, um local que inspirava liberdade e confiança. Ao meu ver, essa ideia de
liberdade costuma exercer uma atração no jovem que, em maioria, anseiava exatamente por
isso. Nesse momento de autodescoberta deles como serem autônomos, foram construindo o
protagonismo, vocábulo que logo faria parte daquelas jovens cabeças fundadoras de uma
experiência inovadora àquela realidade e boa para gerar desenvolvimento local.
Ao chegar à casa de farinha para estudar com o grupo, Raquel se sentia pertencente
e bem acolhida pelos amigos. Sabia que não estava isolada porque havia uma casa vizinha, a
do seu Arão, pois isso era algo que ela não tinha na casa da fazenda que morava, e assim, ela
sentia-se desprotegida quando estava sozinha. Então tudo ali transpirava o melhor para ela que
foi se sentindo pertencente ao espaço e cedo resolveu adotar a postura de guardiã da casa no
tocante a limpeza do espaço de estudo.
[...] eu convidava sempre os meninos para almoçar lá em casa, jantar, [...] [...] às vezes
a gente deixava para ir para casa a noite que já era para ter um pretexto para levar eles
para jantar lá em casa, porque eu tinha pena de deixar eles com fome, sem condições.
Lá existia apenas um fogão e não tinha carvão, não tinha gás, porque nem eles tinham
condições e nem os pais deles, eles podiam ir lá na casa deles e ta trazendo, [...] e [...]
deixavam para ir a noite para o pessoal da comunidade não ver eles passando [...].
(GOMES, 2011b)
paradigma do cuidado com o outro. Ela cuidava deles com atenção, zelo, amor e serviço. Ela
os tratava como irmãos. Penso que eles jamais vão esquecer a presença de Raquel na vida deles.
Além disso, havia ainda o tempo das brincadeiras entre Raquel e os amigos, a hora
dos carões quando ela encontrava a casa de farinha suja e bagunçada, já que eles não
conservavam a limpeza da casa. Raquel ouvia os desabafos, as histórias de vida, por exemplo,
o fato de terem vergonha de passarem em frente as casas de suas comunidades para visitarem
os pais e pegarem comida; por isso deixavam para ir a noite para que o pessoal da comunidade
não os vissem e, consequentemente, não falassem negativamente acerca da decisão de morarem
em uma casa de farinha apenas estudando e sendo sustentados, mesmo que precariamente, pelos
pais e pelos amigos.
[...]. Eu sei que quando o tempo foi passando e nós fomos estudando em grupo, foram
muitas lutas e - muitas vezes eu pensei em desistir e deixar tudo para lá, né? Mas
assim, quando eu via que só acreditando no sonho e lutando que eu ia conseguir
superar todas as lutas, todas as dificuldades foi que continuei né? E naquele grupo às
vezes, eu era uma das pessoas mais [...] relaxada com meus estudos porque eu era uma
pessoa que gostava muito de limpeza, que não gostava de estar no meio de qualquer
coisa desorganizada [...]. (GOMES, 2011b)
[...] Sempre quando eu chegava à tarde para estudar, os meninos: Orismar, o Du, o
Francisco. O mais organizado era o Toinho, eles sempre tinham deixado alguma coisa
desorganizada, né? E eu não chegava lá e ia pegar logo meu livro não, eu ia fazer
alguma limpeza, varrer, cuidar. Eu me preocupava muito com os meninos, com as
roupas deles, com as coisas deles, porque assim, eu queria ver eles - não só apenas
formados, mas eu queria ver eles cuidados e zelados, por eu sabera que os pais deles
não estavam ali. [...]. Nós morávamos na casa grande né? E lá nós fazíamos um queijo,
uns cinco quilos, eu sempre procurava tirar, como as pessoas chamam, beirada de
queijo, levava rapadura, farinha, as coisas para mim e não só para eles, pra eu comer
e eles também. Porque [...] eu tinha pena deles, quantas vezes eu já cheguei lá e via
eles comendo farinha com açúcar. E as redes deles, sem condições, eu levava para
lavar as roupas, cuidava, lavava, engomava, porque assim, para mim eles eram, ainda
são até hoje como se fossem meus irmãos. [...]. (GOMES, 2011b)
256
Vejo que tudo tem relação com a forma que a pessoa se sente, Raquel não se sentia
menor pelo serviço que prestava aos amigos, ela não se sentia obrigada a fazer tais coisas, pelo
contrário, ela se sentia muito bem em ajudar os seus pares naquele momento de vida, na casa
de farinha. Era uma pessoa bastante organizada e se sentia responsável por cativar seus amigos
de estudo. Dessa forma, percebi que Raquel contribuía para o sentimento de irmandade.
Segundo Raquel, a primeira dificuldade enfrentada, na época, era o fato de ser a
única mulher em um grupo de seis homens, a moça que não podia ficar à vontade sem a presença
de alguém da família. Em uma sociedade machista, no espaço e tempo da década de 1990, havia
uma cultura preconceituosa que se expressava com força por meio de pensamentos retrógrados
sobre as mulheres e homossexuais, por isso algumas pessoas desvalorizavam sua presença no
meio dos rapazes.
Esses intragáveis comentaristas não viam isso com bons olhos, contudo, ela
continuou a estudar no grupo. No depoimento de José Noberto, ele expressa o mesmo
sentimento que Raquel, ele também expressa sua tristeza ao falar que os outros estudantes
também foram alvos de homofobia e difamações do tipo: “um bando de preguiçosos vivendo
juntos sem trabalhar”. (BEZERRA, 2011). Abaixo apresento o relato de Raquel que discute esse
tema:
Em relação aos comentários negativos sobre o PRECE, relatados não somente por
Raquel, mas também por outros precistas pioneiros representam o pensamento de uma
sociedade rural com muitas particularidades e características de um espaço onde não há muita
aceitação do diferente, onde há intolerância e práticas conservadoras. Além do mais, essa
sociedade rural é pouco afeita ao novo, àquilo que está fora do usual, do comum, do que é
conhecido por muito tempo e aceito, portanto, carregam um ranço tradicional. Não quero dizer
257
que isso seja geral, mas ocorre, costumeiramente, em determinados espaços interioranos de
nossa região.
Esses problemas somados a outros gerou nela uma fase de desestímulo. A
conjuntura de responsabilidades que ela priorizava foi deixando-a para trás nos estudos do
PRECE. Sua ausência nos momentos de estudo no grupo para se dedicar a outras atividades
causou nela um descompasso com o grupo. O desestímulo de Raquel a distanciou do grupo de
estudo precista e, nas buscas próprias da juventude, foi se envolvendo com outras atividades da
comunidade, no âmbito da arte e cultura nas escolas primárias da região, próxima ao Cipó.
Além disso, em 1998, surgiu uma hérnia de disco em Raquel e isso fez com que ela
não pudesse mesmo ir para a casa de farinha e nem mais trabalhar em atividades manuais de
forma intensa. Todas essas particularidades da vida de Raquel fizeram com que ela participasse
mais intensamente nos primeiros quatro anos de existência do PRECE, dando uma arrefecida
por um tempo. Porém, seu sonho não parou nesse espaço de tempo, pois a contínua participação
de seu irmão Carlos Roberto e de suas duas irmãs mais novas, Carmem e Lucinha, reacenderam
as suas memórias dos estudos no grupo pioneiro e essas lembranças, movidas pela “pedagogia
do exemplo”, a fizeram voltar a estudar com foco e a caminhar em direção à realização de seu
sonho que era “fazer um curso superior e se tornar uma profissional melhor”. (GOMES, 2011b).
Estimulada, Francisca Raquel resolveu recomeçar os seus estudos e em 2000
iniciou um curso de secretariado escolar à distância pela Fundação Demócrito Rocha, indo lá
apenas para fazer as provas. Como há tempo para todo propósito debaixo desse universo, o
tempo da realização do sonho de Raquel chegou como ela desejava: fazer sua graduação sem
sair de Cipó para morar em Fortaleza. Dessa forma, em 2002, ela começou a graduação em
História pela Universidade do Vale do Acaraú (UVA), em Pentecoste, com a diferença de que
essas universidades cobravam mensalidade. As fotos da (Figura 53) representam, à esquerda,
esse momento da volta de Raquel e, a da direita, a marca da sua primeira vitória, a festa de
formatura.
258
não tem limites, ela não é algo que utilizamos somente em determinados ambientes e em outros
não.
A nossa formação está em nós, em nossas emoções, ideias, escolhas, ações e modo
de fazer as coisas, em todo lugar. Vi na convivência entre os estudantes na casa de farinha,
grandes momentos formativos que foram lapidando, forjando cada um para um dia se tornarem,
quase todos professores, pois hoje, dos sete primeiros estudantes, quatro são professores
atuantes, dois no ensino básico público e dois no ensino técnico federal. Em relação a
afetividade, algo tão importante de se levar em consideração, hoje na educação, percebo na
história de vida de Raquel, como na dos outros precistas, essa questão presente em todo
momento. Eles eram cercados pelos afetos, no ouvir as histórias uns dos outros, na ajuda que
ofereciam e que recebiam para ajudar a resolver os problemas.
No momento da partilha de conhecimentos, no estudo em grupo, na hora das
refeições quando dividiam o almoço ou o lanche, no emprestar as coisas que faltavam ou
dinheiro; até nas defesas que faziam uns dos outros quando, por algum motivo, havia um
desentendimento. Esse começo já era marcado pela preocupação com o outro e com a causa
coletiva; e essa preocupação em contribuir para o bem comum já demarcava uma relação
afetuosa que assinalava a promoção de uma educação emocional que, sem dúvida alguma,
gerava um clima emocional propício ao aprendizado no ambiente da casa de farinha. Isso era
visível e hoje reside em cada depoimento dado pelos pioneiros dessa experiência. Sobre isso
destaco o que pensa Castro (2014) acerca do valor da afetividade na aprendizagem:
[...]. A meu ver, a afetividade não é devidamente destacada na formação humana. [...]
A despeito de estudos que indicam a relevância do papel das emoções e sentimentos
na interação humana, no processo de desenvolvimento e aprendizagem, tudo se passa
como se nada sentíssemos enquanto pensamos, estudamos, descobrimos, conhecemos
– mudamos”. [...]. (CASTRO, 2014, p.28-29).
Percebo pela minha prática de estudo e ensino e pelas experiências de vida dos
precistas em análise, que o aprender é mais eficaz quando vem pelo sentimento, mediado pelo
amor daquele que ensina por aquele que aprende. E as emoções favorecem o cognitivo na
aquisição de conteúdos, historicamente construídos pelas sociedades de todas as épocas, na
esfera global e local. Baseando-me na história de vida de Raquel, pude perceber que a pedagogia
do exemplo de cada estudante do PRECE e, especificamente, a participação de seu irmão e suas
duas irmãs no grupo e, consequentemente, a aprovação deles(as) para a universidade, foram de
suma importância para estimulá-la a vencer todos os seus obstáculos e a realizar os seus
objetivos de estudos e profissionalização.
260
5.7 Francisco José Teixeira Gonçalves: das pescarias no açude aos bancos da Universidade
Federal do Ceará, esboços de uma biografia
[...]. Eu lembro naquela época meu pai, antes de receber o lote, ele trabalhava, [...]
para o patrão, não sei se era de meia ou era de terça, sei que muitas vezes a gente ia
pro roçado, pra vazante, pegava o feijão, dividia tudo no meio e eu lembro que meu
pai ia devolver a parte do patrão, entre aspas, é dito que a terra foi deixada por Deus
e não disse pra quem era. Ainda alcancei essa relação de meia, trabalhe e a metade do
seu suor vai para alguém que se diz dono da terra. [...]. (GONÇALVES, 2011).
Como pontuei acima, Francisco estava lado a lado com seu pai; entendia como era
a vida dura dele para garantir a sobrevivência de sua família em uma região do semiárido como
a nossa, no Ceará, que sofre com o problema da falta de água, da falta de terra, da falta de
escolas no campo, da falta de saúde, da falta de coisas básicas na vida de uma pessoa; essa era
a realidade das famílias de baixa renda que compunham o público estudantil do PRECE, na
década de 1990.
A realidade educacional do município é, a todo momento, apresentada a partir das
falas dos protagonistas do PRECE quando narram as dificuldades que encontravam para
estudarem. Foram essas dificuldades que fizeram do PRECE tão importante e fundamental na
261
vida de cada estudante que viu nele a pedra fundamental para a realização do sonho - a formação
acadêmica e profissional que nortearia seus destinos. Francisco José, assim como os outros
agentes fundadores do projeto, saiu de um lugar humilde e simples; vinha de uma situação
incerta, aquela que hora tem fartura, hora a despensa está vazia. Dias em que o açude estava
seco, a chuva não vinha e a terra não estava disponível, pois a mesma não pertencia a seus pais
e assim eram várias as lacunas.
[...] lembro que nessa época a gente não tinha escola naquela região, a escola que se
tinha era em Pentecoste, ficava a 15km, então tinha uma prima nossa que morava lá
perto, (da casa dele – grifos da autora) ela tinha passado um tempo em Fortaleza e
aprendeu, se alfabetizou, fez a segunda, terceira série. Comparada com a gente, ela
tinha um certo conhecimento. E ele (o pai dele – grifos da autora) pagou ela pra nos
alfabetizar. Nessa época era eu e mais minhas duas irmãs mais velhas. A gente ia pra
lá e ela ensinava pra gente. [...]. Após ela, eu lembro que a gente foi estudar numa
escola que ficava do outro lado do açude. Ia eu e minhas duas irmãs, eu remando,
acostumado a remar canoa, um pequeno barco. Eu ia remando em torno de quase 1km
na água, remando, remando. Quando chegava lá, a gente andava mais uma meia hora
pra chegar na escola, e ali eu lembro que eu fazia o que hoje é equivalente ao primeiro
ano, não cheguei nem a terminar. Depois disso eu fui estudar na Capivara, localidade
distante 5 ou 6km de onde eu morava, quando eu comecei ia todo dia a pé. [...].
Comecei lá na segunda série, e lá eu fiz até a sétima série, quer dizer, não cheguei
nem a terminar a sétima série, porque a sétima série eu teria terminado se tivesse até
o final do ano, porque em 94, quando eu ia terminar a sétima série, logo em outubro
de 94, eu passei a fazer parte do grupo que hoje a gente conhece como grupo do
PRECE, que foi iniciado em 1994. [...]. (GONÇALVES, 2011).
[...] Como eu falei anteriormente, em 94 eu recebi o convite. [...] o Té, o Luís, chegou
lá de bicicleta e falou: “Francisco, o Andrade quer conversar com você”. Naquela
época a gente falava do Andrade como uma pessoa ilustre na região, minha professora
falava muito, se referia sempre ao Andrade como uma pessoa muito ilustre, professor
de universidade. Eu fiquei animado, curioso. O que será? Para quê? Conversar comigo?
Até então eu jogava futebol, saía todos os finais de semana, domingo à tarde, para
jogar futebol, e às vezes eu encontrava o Andrade nesses campos de futebol ali pelo
interior, na maioria das vezes na Capivara, Tamarina, Cipó, Serrinha, e ele chegava
pra mim e perguntava: “E aí, está fazendo o quê? Está estudando?”. E eu dizia: “Estou
estudando”. Mas nunca entendia o porquê da pergunta. Sempre que a gente se
encontrava, nem o conhecia direito, mas ele não perdia a oportunidade. [....]. Nesse
dia eu tive a oportunidade, o Andrade me chamou, a gente tomou um café na cozinha,
[...] depois a gente se reuniu na igreja e falou de todos os seus planos com relação à
criação do PRECE. Foi uma proposta que veio realmente como resposta para aquilo
que eu estava procurando. “Vocês vão ter a oportunidade de reunir um grupo nessa
casa de farinha, vocês vão ter dificuldades, com certeza, mas se vocês souberem passar
por essa oportunidade, vocês vão vencer, vocês vão ser universitários, vocês vão ter o
nível superior, vão ser profissionais, vão ganhar o dinheiro de vocês, vão construir
uma vida mais digna pra vocês, pra família de vocês”. E aquilo ali era um sonho que
eu tinha em mente que achava muito difícil de conseguir. [...]. (GONÇALVES, 2011).
A forma dos relatos biográficos muda, mas o tema continua o mesmo, o valor do
PRECE na vida deles, o como se deu todo o processo de participação de cada um a partir do
primeiro chamado.
É interessante ver a curiosidade do jovem Francisco acerca do chamado do
professor Manoel Andrade para vir para o projeto social. Também o modo como ele via a figura
do professor, alguém que lhe chamava a atenção ao lhe dirigir a palavra nos campos de futebol:
“E aí, está fazendo o quê? Está estudando?”. E eu dizia: “Estou estudando” (GONÇALVES,
2011). Mas nunca entendia o porquê da pergunta. Mais uma vez, o ambiente de jogo faz parte
desse contexto biográfico analisado. É interessante ver que Manoel Andrade tinha um sonho
coletivo e mirava pessoas para se juntarem em prol de um propósito coletivo. Depois do convite,
veio o iniciar da parte prática. Sublinho mais um relato de Francisco que demonstrará o início
do PRECE na visão dele:
[...] Eu lembro que logo na semana seguinte a gente já começou a morar na casa de
farinha, aliás, já começou a frequentar a casa de farinha. Começamos especificamente
no dia 18 de outubro, se eu não estou enganado, uma segunda-feira. Sentamos à mesa
eu, Toinho, Raquel, Beto, Du, eram 5, para estudar história, com aquele livro de
Nelson Piletti, um livro muito bom. A gente estudava juntos, lia um capítulo, cada
pessoa lia um parágrafo, e assim ia levando. A primeira semana foi assim. Tinha o
intervalo, quando dava 8, 8:30, a gente dava uma parada, ouvia umas três músicas e
começava de novo, ia até 9:30, por aí. Na primeira semana, todas às vezes, depois de
9:30 para 10h da noite, eu me deslocava para o Jardim na minha bicicleta. Na primeira
semana logo eu percebi que isso não ia dar certo. Lembro que o Andrade disse: “Se
não está dando certo assim, vão morar na casa de farinha”. Eu acho que era uma
vontade dele que realmente se morasse ali, porque ali ia se criar um grupo que ia viver
o dia-a-dia, que ia vencer as dificuldades juntos. [...]. (GONÇALVES, 2011).
263
Morar na casa de farinha foi um diferencial do que se vivia no ensino formal, onde
a prática escolar se posicionava muito distante da realidade do estudante. Além de terem um
espaço só para si, ainda contavam com parceiros de estudos, ou seja, criariam um grupo de
estudo onde seus participantes vinham da mesma localidade, com pontos positivos e negativos
em comum e lutariam por uma mesma causa; vejo isso como algo muito estimulante para
impulsioná-los ao sucesso que hoje celebramos.
O local não era bom para se morar, mas o mais importante foi a liberdade que
tinham lá, essa vida livre e solta é atraente para o jovem que sonha exatamente com a
possibilidade de ser protagonista de seu próprio destino. Outro ponto fundamental foi a
integração de sonhos e de propósitos que cada um trazia ao aceitar o convite do professor
Manoel Andrade. A possibilidade de sonhar juntos foi algo que uniu esse grupo pioneiro da
história precista.
Outro ponto da história de vida de Francisco José que me chamou atenção foi a
firmeza com que ele decidiu deixar a escola regular, algo seguro e oficial para iniciar um projeto
que ainda só estava na cabeça do líder principal. Penso que em nossa vida, uma das coisas mais
importantes é sabermos tomar decisões com esperança e fé de que elas nos trarão coisas boas,
e a decisão de Francisco, aparentemente, parecia uma loucura, mas hoje vejo que ele fez a coisa
certa. Francisco destaca a orientação de Manoel Andrade para eles morarem na casa de farinha.
Percebi que isso foi definidor para o sucesso de cada um nos estudos, pois estar morando juntos
na hora da necessidade individual, havia os outros com atitude solidário e isso foi gerando um
espírito de união e apoio mútuo. Lembro ainda que Manoel teve uma experiência similar,
morando em uma casa abandonada em Fortaleza com alguns amigos para estudar para o
vestibular, então morar na casa de farinha foi uma decisão importante na vida dos estudantes
precistas.
A fala de Francisco sobre o passo a passo dos estudos preliminares do grupo nesse
relato me passou segurança. Parece estranho, já que isso ocorreu há 25 anos, mas me toca muito
e valida a experiência do PRECE que, com o passar do tempo, foi se aperfeiçoando até chegar
no que hoje é com a sistematização da experiência baseada na metodologia da Aprendizagem
Cooperativa. Vejo que houve um trabalho não tão diferente do que se faz em uma escola regular:
Estudo: uma escolha de livro didático, um conteúdo, uma estratégia e um tempo; Descanso: um
tempo para o intervalo. Tudo regado pelo protagonismo ou posso ainda dizer, pela pedagogia
da autonomia (FREIRE, 1996). Esse foi o processo formativo mais verdadeiro que pude
vivenciar e agora refletir por meio das bases teóricas, resultantes das pesquisas em
264
Todos os sete estudantes pioneiros, em algum momento, tiveram que tomar uma
forte decisão, a de deixar, pela primeira vez, a escola onde estudava, a casa dos familiares, o
conforto de estar onde você é “filho de rei e rainha” para residir na casa de farinha.
A professora Lucinha, com suas palavras, representa os demais professores que
sabiam acerca da criação do projeto e das decisões tomadas pelos estudantes que optavam por
sair ou deixar de se matricular na escola regular; eles ficavam chocados com aquela atitude
nova, decisiva sobre o seu destino. Esses professores não costumavam ver semelhante coisa,
dentro de um contexto de dominação também na área da educação que não desenvolvia o senso
crítico dos estudantes para opinarem e tomarem as decisões sobre a sua pópria vida.
Francisco Gonçalves e os demais pioneiros estavam cheios de fé e crença no sonho
do professor Andrade que era também o deles, o sonho coletivo precista. Asssim, aceitaram o
convite para iniciarem uma trajetória de estudos em grupo com vistas ao alcance, em curto
prazo, da formação acadêmica e profissional, tão sonhada por eles. Juntos descobriram que se
conseguissem chegar à universidade, suas vidas melhorariam:
[...] Na segunda semana já começamos a morar lá. Eu acho que uma ou duas semanas
depois o Orismar chegou. Umas três semanas depois, o Norberto. Por isso eu costumo
dizer que foram 7 pessoas que criaram o PRECE porque, se você contar os 5 primeiros
que entraram, logo após vieram o Orismar e Norberto, um período muito curto. [...]
Na minha opinião, [...] esses 7 eu considero iniciante porque estiveram ali no início e
botaram a ideia pra funcionar. Na casa de farinha a vida corria tranquila e ao mesmo
tempo difícil. Tranquila porque você tinha liberdade, tinha os livros, tinha a mesa,
tinha sua rede, dormia na hora que queria, estudava. [...]. (GONÇALVES, 2011).
De fato, eles colocaram a ideia em prática. Tomaram uma decisão não muito usual,
pois tratava-se de algo novo, de uma ideia revolucionária, de transformação de mentalidades e
a convivência na casa de farinha proporcionou uma educação além dos conteúdos,
proporcionou, aprender a conviver, aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a ser
(DELORS, 2003). Eu poderia discutir esses quatro pilares propostos para uma educação do
265
século XXI, porém, não farei pela extensão do propósito tomado. Na casa de farinha, a vida
“corria tranquila”, mas “difícil”, acontecia livremente, sem amarras, leis rígidas, rigores
burocráticos, vigilância, grades, sermões, dentre outras formas próprias do sistema escolar
formal de ensino essas características destacadas por Francisco era ponto positivo para o
sistema PRECE; era um diferencial importante quanto a escola formal que favorecia o
aprendizado.
E quanto à experiência de estudo, eles dispunham do básico que precisavam e que
até então não existia em nenhuma escola regular: liberdade, mesa, livro, rede para deitar ler ou
para dormir, assim, havia um simples esquema e isso se agigantava pela força do sonho da
formação acadêmica tão propagada pelo professor Manoel e tão bem recebida por todos os sete
agentes integrantes do projeto. Segue mais um excerto desse começo na visão de Francisco
Gonçalves:
[...]. Normalmente a gente tinha o hábito de estudar a manhã todinha, logo no início,
à tarde a gente estudava até 4h, depois ia jogar um futebolzinho. Nessa época, à noite,
ninguém estudava porque não tinha luz, com exceção do Norberto, que conseguiu na
casa da mãe dele uma lamparina, nessa época ele fazia o supletivo do primeiro grau e
precisava terminar, então ele conseguiu na casa da mãe dele uma lamparina. Ele
costumava estudar à noite, mas os demais não estudavam à noite porque não tinha
nenhum esquema de iluminação. Depois de história, a gente começou português,
geografia, biologia, e assim a gente terminou todas as disciplinas. [...]. (GONÇALVES,
2011).
universidade, e às vezes eu nem mesmo acreditava que eu pudesse conseguir isso, ter
condições de estudo, porque não era uma escola convencional que você tem uma
receita de coisas que faz e no final das contas entra na universidade, a gente era mais
por nossa conta. Foi muito incentivadora essa aprovação do Toinho. Em meados de
1996 o Toinho entrou na universidade, e no início de 1997 foi a minha vez. [...].
(GONÇALVES, 2011).
[...]. Era difícil porque não existia um esquema de alimentação, na casa de farinha,
principalmente água, era difícil. Nossos pais eram pessoas com condições financeiras
muito difíceis. Para comprar coisas de necessidade pessoal, como sabonete, xampu,
sabão para lavar suas roupas, no interior se suja muita roupa, joga futebol, sua, vai a
uma viagem volta todo cheio de poeira. Não tinha dinheiro para nada. Algumas
pessoas tinham mais dificuldade ainda. Meu pai, por exemplo, não tinha condição de
me ajudar, nem minha mãe. [...] (na casa de farinha – grifos da autora) eu lembro que
várias vezes a gente acordava de manhã e não tinha nada para comer, e a gente se
refugiava como podia. Eu muitas vezes ia para o Jardim, que ficava a 6 ou 7km, [...].
(GONÇALVES, 2011).
[...] mas era muito comum também eu ir pra dona Neném, que é uma pessoa que me
ajudou muito, ela morava pertinho, e não conto as vezes em que eu ia para lá à tardinha,
jantava, dormia e quando voltava de manhã paro PRECE já tinha merendado, e às
vezes voltava meio-dia também. Foi uma pessoa que praticamente me criou ali, e eu
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agradeço demais, foi uma das pessoas que mais me ajudou. Nos finais de semana,
talvez para não dispersar, o senhor Arão e a dona Fransquinha sempre nos ajudaram,
a gente sempre almoçava e jantava por lá. Geralmente o senhor Arão matava um
carneiro e a gente era convidado, um convite muito bem-vindo, porque a gente não
estava querendo sair dali, porque o Andrade tinha chegado de Fortaleza e trazia
palavra de conforto, incentivo e motivação para gente. Se a gente saísse dali seria uma
perda, então normalmente a gente ficava lá, era importante ficar ali. Frequentemente
nos finais de semana o senhor Arão nos sustentava lá. [...]. (GONÇALVES, 2011).
a célula mãe, forte e resistente, e dela nasceriam muitos brotos como tem se reconfigurado a
cada época – a grande família precista no estado do Ceará. Segue uma fala sobre a casa de
farinha
[...]. A casa de farinha era uma casa ampla, havia sido construída uns quatro ou cinco
anos atrás, acho que em 1992 ou 1993, e logo em 1994 a gente começou a morar lá.
Uma casa que tinha passado alguns invernos, abandonada, os animais quebraram o
piso todo, o piso era muito irregular, a gente via os tijolos e a areia misturada. Era uma
casa toda aberta e tinha uma parte que era fechada. [...]. Na minha época não teve
nenhuma reforma, mas era ali que a gente se arrumava. O Andrade levou algumas
mesas, cada um tinha uma mesa pequena, dava para estudar, depois foram mais
cadeiras, livros, toda semana chegavam novos livros, e a gente foi tendo uma melhor
condição para estudar. Sempre assim: o livro e a pessoa; não tinha um esquema de
aula ainda. [...]. (GONÇALVES, 2011).
A casa de farinha é sempre lembrada como um espaço bom para estudar, pois na
casa de cada um não havia espaço para estudar. Além disso, nas casas deles não contavam com
ninguém para estudarem juntos como no PRECE.
A casa era um celeiro de estímulo e energia para continuarem, apesar das
dificuldades. Penso que para eles, estar na casa de farinha era como estar a um passo da
universidade, porque ali se respirava essa realização, fazer um curso superior e conseguir um
emprego que desse a eles uma vida digna. Sobre a aceleração dos estudos, Francisco fala:
[...]. Lembro que no ano anterior ao meu ingresso na universidade, a gente tinha um
esquema de estudo voltado para o vestibular. Nessa época, em outubro de 1996, a
gente se encontrava na casa de farinha, o Adriano Andrade, Elias, cunhado dele, eu,
Norberto, eram as pessoas que estavam mais pensando em vestibular. A gente tinha
um esquema de estudo de passar a tarde estudando, escolhia um horário para se reunir,
discutir e compartilhar conhecimentos. Depois a gente viajou para Fortaleza. Eu já
tinha morado em Fortaleza. Quando eu pensei em vestibular, chegou-se a uma
conclusão que eu tinha de apressar as coisas, porque tinha muita prova para fazer. Na
época eu fazia o supletivo do segundo grau [...]. Eu tive que ir morar em Fortaleza
para apressar essas provas, estudava o dia todo e à noite ia fazer a prova para que eu
terminasse logo o módulo. Eu ficava na casa do Andrade na época, o Norberto e o
Elias também ficavam por lá. A gente se arrumava por ali. [...]. (GONÇALVES, 2011).
[...]. Quando se criou o grupo de estudo no Cipó, passamos um mês no Cipó, foi muito
estudo, mas não era mais fazendo módulos, eu estava estudando as matérias do
vestibular, resolvendo questões, me preparando para o vestibular. Ficamos lá até o dia
do vestibular mesmo, um dia antes do vestibular fomos para o apartamento pequenino
do Andrade, para se arrumar, porque para estudar era uma loucura, mas a gente
conseguia discutir umas coisas, pegava umas questões. No outro dia pela manhã, no
dia da prova, todo mundo eufórico para fazer a prova, eu lembro que a gente acordou
cedo, fizemos um café e a gente reforçou a alimentação para passar um meio dia de
prova, o Andrade fez uma oração. [...]. (GONÇALVES, 2011).
[...]. Quando eu passei para Engenharia de Pesca, eu achei que fosse mais fácil de
entrar porque não tinha matemática, mas eu queria mudar para Agronomia, que foi o
que aconteceu no ano seguinte. Nessa época eu estava na residência universitária
como agregado enquanto regularizava a situação para morar regularmente na
universidade, [...]. Quando entrei na Agronomia, em 1998, entrei com vontade porque
era aquilo que eu queria. Logo eu comecei a estagiar no departamento de química
orgânica e inorgânica, no laboratório de síntese orgânica, o meu orientador era o
professor Arnaldo Viana. O Andrade me sugeriu fazer um estágio na botânica, na área
de sistemática vegetal, e eu passei uns quatro meses com o professor Edson, ia ao
herbário, pegar as plantas e eu estudava a pata de vaca. Depois fui para a área de
fitopatologia, na Embrapa, em 2001, e fiquei lá quatro anos. Lá eu me desenvolvi
muito e aumentou minha curiosidade. Fiquei lá até concluir Agronomia, em 2004.
Quando eu concluí, estava muito cansado devido ao processo da monografia, mas eu
sempre tive um sonho de fazer a pós-graduação. [...]. (GONÇALVES, 2011).
assim, era necessário criar algumas estratégias que ajudassem aos estudantes na tomada de
decisão na hora da escolha do curso superior. Uma das estratégias consistia em escolher o curso
menos concorrido e que fosse de área afim ao curso que, de fato, desejasse; para, posteriormente
realizar a mobilidade de um curso para outro.
Francisco foi um dos estudantes que mais demonstrou gostar da vida acadêmica.
Vejo seu relato sobre sua carreira dentro da universidade como algo prazeroso para ele. Foi
incentivado e orientado sempre pelo professor Manoel em como trilhar o caminho da pesquisa,
em vários momentos, o momento de bolsista de iniciação científica, do mestrado e o do
doutorado. Em seu relato, há uma convicção na escolha de seus objetos de estudo e análise,
obtendo sempre o sucesso acadêmico:
Francisco representa muitos precistas que vieram depois e que valorizaram muito o
retorno a Pentecoste para fazer o trabalho voluntário no PRECE e para visitar a família e
participarem da vida social e cultural do lugar de origem deles. A experiência deles nos dois
espaços, urbano e rural fez com que adquirissem uma visão mais ampliada da vida. Tornaram-
se mais experientes pelo aprendizado acadêmico na cidade grande e pelo contato frequente com
suas famílias e seus problemas no espaço rural. Passaram a ser referências em suas famílias, a
trazerem soluções de problemas, principalmente, ligados a educação. É notório que esses
precistas orientam a seus irmãos e irmãs a trilharem um caminho de vida focando nos estudos
para, assim como eles, conseguirem êxito. Em relação ao estímulo que os precistas foram e
deram para seus irmãos e irmãs estudarem e buscarem se realizar, profissionalmente, por meio
da educação, Francisco Gonçalves foi um caso sem êxito nesse aspecto, vemos isso por meio
deste fragmento:
[...]. Quando eu conheci o PRECE, me envolvi mais com a igreja, melhorei
espiritualmente, porque fui um adolescente imaturo, de relacionamento difícil. [...] eu
sou o único da nossa família que tem o nível superior. Na nossa família nunca existiu
uma tradição de estudo. A minha mãe, até hoje, é analfabeta. Meu pai fez até a terceira
série, ele conseguiu escrever, fazer as quatro operações, mas nada mais do que isso. A
gente nunca teve essa tradição, tanto que meus irmãos nunca encamparam essa luta.
Minhas irmãs começaram estudando comigo, mas logo foram deixando, casaram.
Lembro de uma das minhas irmãs, Maria José, que foi uma das pessoas que eu
incentivei a estudar [...]. (GONÇALVES, 2011).
não influenciou. Em outro momento, podemos pensar em uma análise mais acurada dos motivos
pelos quais Francisco José não conseguiu influenciar os seus irmãos e irmãs a estudarem, pois
sei pela minha convivência com ele e por sermos primos, que haviam uma forte empatia entre
ele e todos da sua família que ao meu ver o amam, admiram e respeitam. No próximo texto de
Gonçalves, ele faz um retorno em sua narrativa de vida:
[...]. Quando eu comecei a estudar, foi muito difícil, porque eu tinha que trabalhar para
sustentar a família. [...]. Um certo ano eu tive que parar de estudar para ir pescar num
açude no município de Tejuçuoca, no açude do Boqueirão, tinha que ir para lá com
meu pai pescar para sustentar a família. [...]. Havia a alternativa do ajudante. Mas essa
pessoa levava 30% da sua renda, quase a metade. [...]. Eu também me recordo em
alguns momentos que meu pai começou a despertar e perceber que eu tinha vocação
para estudar e eu acho que a partir desse momento ele começou a me liberar mais.
[...]ele se sensibilizou. Tanto que quando fui para casa de farinha não teve nenhum
questionamento. Eles não entendiam muito o porquê, mas eu já tinha 18 anos naquela
época, já tinha convicção dos meus anseios, dos meus sonhos. [...]. Logo após isso
eles me apoiaram muito. Frequentemente ia para casa e levava peixe, feijão, farinha e
eles nunca se furtaram dessa questão de ajuda, sempre me ajudaram muito. Se eu fosse
lá em casa 3, 4 vezes por semana, eu levava alimentos para ajudar, porque eles tinham
concebido a ideia de que, a partir daí, estava livre para estudar e investir naquilo que
eu tanto queria. [...]. (GONÇALVES, 2011).
Percebi pela fala acima que os pais de Francisco viram algo mais, algo que o
diferenciava dos outros filhos e filhas e isso permitiu a eles compreender que, mesmo nas suas
dificuldades econômicas, precisavam ajudá-lo. Outro fator que impulsionou ao jovem
Francisco foi também, o exemplo de Manoel Andrade, que é sempre lembrado por todos eles e
por mim. Andrade sempre contava sua história de vida estudantil com o objetivo de estimulá-
los a continuarem estudando, partindo do pressuposto de que se ele venceu tendo condições
mais difíceis, eles estavam tendo uma boa oportunidade para conseguir chegar onde seus sonhos
seriam realidades. Vejamos sua fala sobre o tema:
[...]. Quando eu passei a morar no Cipó, em 1994, a gente estava embasado na história
do Andrade. Eu lembro que ele falou para gente que estudou sozinho com outro colega
para entrar na universidade, um ajudava o outro. Ele falou que se a gente fizesse a
mesma coisa, a gente conseguiria entrar na universidade. Isso era uma coisa que fazia
a gente acreditar demais. Nunca me passou pela cabeça desistir. Quando o PRECE foi
criado, ninguém conhecia. [...]. Acredito que as coisas agora melhoraram muito no
interior, mas naquela época em que eu comecei no PRECE as pessoas trabalhavam
muito. [...]. Era muito difícil passar todas as semanas [...] em frente a minha
comunidade em direção à casa do meu pai, pegar alimento, as pessoas olhando para
mim, era muito doloroso para mim. [...]. Quando entrei na universidade e consegui as
primeiras bolsas, foi um alívio. É muito difícil passar o período da graduação e as
pessoas perguntando se você já está ganhando dinheiro. Hoje eu vivo uma vida digna,
tenho as coisas que eu quero, não preciso mendigar as coisas a ninguém, estou muito
satisfeito com o que consegui até hoje [...]. (GONÇALVES, 2011).
E sem pensar em desistir, caminhando sempre, foi que a vida melhorou a partir da
formação universitária. E com o estímulo do professor Andrade, o projeto havia começado com
273
Francisco e com os outros seis, apesar de tudo ainda parecer uma incógnita que precisava ser
encontrada pelo “cálculo da vida”. Nesse trajeto, Francisco foi descobrindo a fórmula, foi
resistindo, foi aceitando ser ajudado, nas mínimas coisas pela sua família e pelos seus amigos.
Mesmo com a vergonha que surgia pela total dependência, naquele período de formação de um
movimento estudantil que traria muitas coisas boas.
O PRECE se constituía como uma ação de enfrentamento ao descaso político na
educação de Pentecoste e essa situação trazia consequências não muito agradáveis para a
população jovem do município. Essa realidade era percebida pelos agentes fundadores do
movimento e, ao entrarem no PRECE já traziam no peito uma insatisfação com o sistema
político educacional, e penso que naquela situação, estar inconformado com a realidade escolar
arcaica, repetitiva e sem resultados era o primeiro passo para começar a estudar de forma
organizada.
[...] Quando o PRECE foi iniciado, em 1994, a gente estava saindo de um período da
história de Pentecoste chamada coronelismo, questão muito marcante no nosso estado.
Para se ter uma ideia, naquela época ninguém conseguia fazer um movimento, os
professores não conseguiam fazer um movimento por melhores salários, existiam
forças nos arredores que conseguiam sufocar. Lembro que teve umas iniciativas, na
época em 1993, mas logo, logo as pessoas eram desestimuladas a continuar, viviam à
mercê da política local, e passivamente elas se rendiam a isso. Era um município que
não tinha perspectiva de crescer. Quando o PRECE foi criado, lembro que minha
professora falava que sofria repressão se liberasse os alunos mais cedo, mas foi um
grupo que foi agregando pessoas. [...] no PRECE foi criada essa oportunidade, a falar
de revoluções, a trazer isso para o dia-a-dia, e isso começou a incomodar, e a gente
começou a se perguntar por que as coisas são assim. Por que não temos direito a boa
educação? Por que não temos direito a hospitais? Lembro de um senhor de idade que
adoeceu e quando foi para o hospital não tinha equipamento apropriado para recebê-
lo, e ele perdeu a perna. Na época, o prefeito deu uma cadeira de rodas para aquela
pessoa, e ele agradeceu muito ao prefeito por isso, mas na verdade o prefeito era para
ter lutado por um hospital de qualidade para que ele não perdesse sua perna. A gente
que começou a estudar e entender as coisas, vimos que aquilo não estava certo. [...].
O PRECE foi permitindo esse espaço de discussão, essa germinação de coisas que
existia nas pessoas e que estava esquecida, a capacidade de discutir, questionar e
criticar. [...]. Uma vez um vereador bateu no meu ombro e disse que eu ia votar nele,
mas eu falei que não era bem assim, sou eu quem decido se vou votar em você depois
que eu fizer minhas avaliações, e a pessoa ficou chateada comigo e ficou dias sem
falar comigo pela minha reação. Quando as pessoas com esse grau de crítica se tornam
numerosas, isso é uma coisa muito forte. [...]. (GONÇALVES, 2011).
analfabeto político, no geral entendo que tratamos de um ser resignado, acrítico e, na maioria
das vezes, messiânico, acredita que seu sofrimento é porque Deus quer e que só um messias
pode salvá-lo da miséria e da pobreza. Gonçalves expressa muito bem seu espírito crítico, a
percepção da sua realidade política e dos efeitos dela em sua vida cotidiana. Mostra que já sabia
fazer uma análise de conjuntura municipal. Ele cita casos observados no seu cotidiano que
embasam a sua crítica e finaliza deixando uma afirmação que me lembra FREIRE (2011) ao
conclamar que todos devem ser indivíduos críticos, de opinião e que devem se organizar para a
luta pela libertação das correntes do analfabetismo e do conformismo. Essa poesia atribuída
Euger Berthold Friedrich Brecht fez parte de alguns dos nossos discursos em aulas sobre
conscientização política da nossa realidade e dos ideais pelos quais lutávamos:
[...] O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa
dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida e nem que o preço do feijão,
do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões
políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que
odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta,
o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra,
corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais [...]. (BRECHT, 2019).
Alguns deles se diferenciavam e esse foi o caso de Francisco Gonçalves que foi e é
um dos precistas mais revoltados com a maneira dos políticos abordarem as pessoas em
períodos eleitorais. Ele considera que a experiência do PRECE nesse cenário politico, trouxe
esperança e libertação dos jovens dessa mentalidade dominada que aceitava esse tipo de política
vigente no município. Segundo ele, os resultados da experiência são valorosos no sentido da
transformação de vida dos jovens estudantes que não poderiam avançar em sua formação
acadêmica e profissional se não existisse o PRECE. Sua expressão lembra-nos algo redentor,
que nos faz ver o PRECE como aquilo que trouxe redenção àqueles estudantes que sonhavam
em poder melhorar as suas vidas por meio dos estudos, mas que tinham seus sonhos podados
pela desigualdade social, pela falta de oportunidade e pelo descaso desses governos locais desde
a história da origem do município.
[...] O PRECE hoje é conhecido no Ceará inteiro. Por onde eu ando as pessoas nos
conhecem. São pessoas que eu boto a minha mão no fogo, porque elas foram criadas
nesse clima de lutar por melhorias para o município de uma forma justa, correta,
honesta, elas não dependem do esquema local, são independentes. O PRECE ajudou
a formar pessoas independentes, críticas, com vontade de mudança. Você imagine o
que isso significava para o município de Pentecoste, ter pessoas com esclarecimento,
que sabem dos seus direitos, acho que isso foi o produto de tudo. Sem contar as
melhorias de vida de cada pessoa. Eu era um pescador, nada contra os pescadores, e
que estaria hoje com meu casebre na beira da água, meus 3, 4 filhos, sem nenhuma
perspectiva e reproduzindo aquilo. As pessoas que se envolveram com o PRECE,
principalmente aquelas de renda mais baixa, adquiriram uma vida digna para si. A
maioria hoje conseguiu ter um patamar de uma vida digna. Foi uma mudança muito
grande na minha vida, radical, sair de uma condição de pescador, passar pela
275
universidade e estar numa condição em que poucos conseguem chegar, não foi fácil.
Por onde eu passo no Ceará, lembro dessa situação, e lembro com um sentimento de
agradecimento muito grande às pessoas que me ajudaram e a Deus [...].
(GONÇALVES, 2011).
Sobre a narrativa de vida de Francisco Gonçalves, percebi ele como um jovem que
soube aproveitar todas as oportunidades a ele apresentadas nesse percurso dentro do PRECE.
Dedicação e foco nos estudos básicos, acadêmicos e na pesquisa da pós-graduação foram as
estratégias. Ainda o direcionamento dado, inicialmente, pelo professor Manoel e o apoio do
grupo pioneiro, tudo isso foi essencial e surtiu o resultado sonhado por ele e por nós do grupo
que sempre torcemos pelo sucesso de cada um. Depois de todo o resultado, por ele mesmo
avaliado, em sua vida, percebi haver nele o amor, a gratidão e o respeito por todos que compõem
o Programa de Educação em Células Cooperativas.
5.8 José Noberto Sousa Bezerra, a busca por uma vida melhor: o futebol, a via para os
estudos
Noberto Bezerra, o mais novo dos sete filhos de Felisberto Lopes e Maria Anésia
Bezerra, nasceu em Apuiarés, interior do Ceará. Seu pai era agricultor e sua mãe costureira.
Noberto estudou até a quarta série do ensino fundamental, mas parou em seguida por ter que
trabalhar para ajudar em casa, e isso foi uma das maiores dificuldades enfrentadas. Vemos que,
assim como os outros estudantes, seu pai precisava que ele o ajudasse na agricultura de
subsistência.
277
Como discutido, a maioria dos pais dos primeiros estudantes, tinham uma vida
difícil para sustentar uma família numerosa com renda muito baixa, assim, precisavam que os
filhos ajudassem na economia da casa. A maioria desses pais não compreendiam bem sobre o
valor dos estudos dos filhos, talvez por causa da herança política e cultural do analfabetismo.
No entendimento de seu Felisberto, bastava cursar até a quarta série e depois voltar
ao trabalho no roçado, era o que tinha; ao que me pareceu, ele não pensava fora dos limites do
seu espaço interiorano. Outro fator percebido foi que seus irmãos também queriam estudar, mas
não era possível todos deixarem de ajudar ao pai. Essa realidade se apresentava como um forte
empecilho para a trajetória de estudos de José Noberto.
José Noberto nasceu em um contexto educacional e político difícil, na década de
1970, na comunidade de Serrote do Meio, em Apuiarés. Nessa década, o município ainda passava
por um atraso político enorme. A educação e saúde não recebiam a devida atenção dos governos,
ainda remanescentes do coronelismo, dentre outras situações já tão discutidas que deixavam os
jovens dessas regiões em estado de vulnerabilidade.
De acordo com esses relatos, as distâncias eram um dos maiores problemas que os
jovens tinham que enfrentar para se deslocarem até a escola, nesse contexto. Quanto a influência
que os pais exerciam em ensinar seus ofícios para os filhos e solicitar-lhes a ajuda para melhorar
a renda da família foi muito recorrente nessas biografias. No excerto abaixo, José Noberto expõe
um pouco de como era a realidade do seu contexto:
[...] As casas mais próximas tinha um quilômetro de proximidade, então a gente era
praticamente isolado. [...]. E - como filho de agricultor, [...] Então a gente [...] também
trabalharia na agricultura seguindo o meu pai. A minha mãe também era costureira,
além de dona de casa, costureira, e as minhas irmãs, algumas se casaram no interior
aí, elas seguiram também a rotina da mãe. [...]. As minhas irmãs passaram a ser
bordadeiras, [...] e os homens agricultores. [...]. O mundo lá, era aquilo ali, fechado,
você é filho de agricultor, vai estudar até a quarta série que é o que era
promovido/oferecido na Canafístula e em seguida você ia voltar para a roça
novamente. Então era como se procedia lá em casa: [...] para quem estudava a tarde,
manhã ia para o roçado e a tarde ia para a escola [...]. (BEZERRA, 2011).
Noberto fala sobre o nível de estudos de seus pais e com isso, expõe a sua realidade
familiar, a questão do impedimento de continuar os estudos e, consequentemente, com as formas
de subsistência, realidade de todos os Antonios, os Franciscos, os Josés assim como José Noberto,
dentre outros. Essa era uma realidade comum na vida não somente de todos os Josés, mas de
todas as Marias, etc. Nesse grupo me incluo, pois minha família, a partir de meu pai e minha mãe
e alguns irmãos sofreram a pobreza com a qual, geralmente, se encontra o agricultor analfabeto.
278
Ao falar de analfabetismo nas Marias, acessei, por ocasião dos cursos de formação
de professores da Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC), nos quais participei como
formadora da Oficina de História de vida, o filme Vida Maria (2006). Esse filme retrata a dura
realidade do nordestino pobre e analfabeto, contexto presente no Ceará, onde estão inseridas as
comunidades dos estudantes do PRECE. O curta-metragem fala, objetivamente, do maior
problema social presente nas famílias de baixa renda, o analfabetismo, e a partir dessa condição
de analfabeto, surge uma série de outros problemas como a fome etc. Geralmente em nosso país
e, especialmente, no Nordeste, para quem é analfabeto só resta mesmo trabalhar como agricultor
no regime agrário de trabalho de subsistência, diarista, meeiro, etc. Destaco um trecho do
Memorial de José Noberto, o qual demonstra bem o que exponho:
[...]. No final, chega a TVC. Então eu digo: “Como ele me obrigou a fazer a quarta
série, eu crente, eu e o Clédio, que a gente continuaria na quinta série no ano seguinte”.
Aí, a gente foi barrado, porque todos os sete queriam e [...] ele disse: “É o seguinte”,
as mais velhas, já mocinhas e os mais velhos, rapazinhos. Então ele disse: “Eu não sei
se vocês querem estudar ou se querem namorar”. Aí, beleza, então ninguém foi, ele
não deixou ninguém, para ninguém ficar com queixa. [...]. Minha mãe já estava
morando na Canafístula cuidando da minha avó, que estava doente. Morando só elas
duas e tal, eu “Opa, vou arrumar um pretexto aí, para morar com ela”, é pertinho, vou
estudar em casa e tal. Então arranjei todo o discurso e cheguei junto de novo, “Não,
meu filho, eu não vou deixar porque eu não deixei para os outros”, o discurso dele era
o mesmo. Aí acaba logo, tem nenhum argumento. Eu expus todo o meu argumento
[...] (BEZERRA, 2011).
José Noberto expõe uma realidade que não era somente a dele, mas a de muitos
jovens brasileiros de sua época, e, herdada, em menores proporções, pelos jovens de hoje. A
sua história compõe um fragmento de nossa verdadeira História oficial brasileira; de uma
família, dentre outras, que herdou uma cultura patriarcal forte, onde o pai tem poder de mando
sobre os filhos. Ele fala de onde não existe obrigação legal que deve ser observada pelos pais
que teriam o dever de pôr seus filhos na escola, porém, viviam naquele micromundo, “isolados”,
sem informação e educação que auxiliassem as famílias.
Noberto fala de um destino que já estava traçado para todos os homens e mulheres
da casa, dar continuidade à vida ao mesmo modo do pai e da mãe. Uma cultura que regeria a
sua vida e que o predestinaria a continuar o mesmo ciclo dos Josés e das Marias. Ciclo esse
pelo qual passam milhões de brasileiros, realidade iminente na vida de José Noberto.
O que mais despertou minha atenção na história de vida de Noberto foi o fato de ele
desejar muito continuar os seus estudos e se ver na impossibilidade, por outro lado, foi a partir
desse impedimento que ele assumiu, com protagonismo, a sua vida através das buscas por saídas
daquela situação a ele determinada pelo pai que agiu, de modo natural, por uma forma
conservadora de viver.
279
Nessas procuras, Noberto tentou a estratégia de ir morar com a sua avó para poder
estudar, porém, sua ideia foi frustrada. Apesar disso, compreendo que esse desejo permaneceu
nele, mesmo que latente para ressurgir, no momento certo, a partir do ano de 1994, na experiência
precista que ele ajudaria a construir.
Na trajetória de vida de José Noberto, percebi haver a busca de si, do outro e,
principalmente, a busca de conhecimento. Josso (2004, p.96) afirma que “a busca de
conhecimento é orientada pelo desejo de se informar sobre e/ou de se apropriar dos saberes
construídos, apoia-se nas fontes das ciências do humano, das ciências da natureza e de numerosos
saberes não-científicos”. Noberto estava à procura de algo, orientava-se pelos saberes não
científicos encontrados em seu percurso, inicialmente, no futebol (Figura 55), pois era nesse
esporte que ele apreendia conhecimentos diversos em suas interações até ali encontradas, e,
posteriormente, em suas novas buscas, se apropriaria de saberes científicos construídos
historicamente, pela humanidade
Com o futebol, José Noberto deu início a sua formação a partir das leituras do
mundo em que vivia, das relações sociais feitas e das interações com o grupo do PRECE por
meio da cooperação solidária empreendida fora da educação formal. Todas essas relações
moveram as experiências socioeducativas e culturais, situação que forjavam a pesquisa
constante do conhecimento e gerava sentidos de viver.
Em seu relato memorialístico, ele nos presenteia abrindo o seu coração para mostrar
a sua realidade subjetiva, o seu sentido de existência, a sua análise de vida, a sua busca pelo
saber e ao mesmo tempo, a sua busca pela felicidade. Não à toa (TORRE et al., 2013, p. 71)
afirmam que “em uma civilização avançada do século XXI, as necessidades vitais têm a ver
com a dignidade humana”, e que “destruir o meio é prejudicar a nós mesmos”, mas junto às
várias formas de vida, dizem que esse ser tem “em suma, o direito a gozar a vida, a liberdade e
a autonomia e buscar a felicidade. O ser humano tem o direito de buscar sua própria felicidade.
Assim, todos necessitamos buscar a nossa felicidade e Noberto precisou buscar a sua, tomar o
rumo de sua vida, buscar alternativas e, de forma esperançosa, foi construindo sua trajetória de
vida. Leiamos seu relato voltando ao tempo de suas procuras:
[...]. Então começo a direcionar toda a minha vida em função do futebol, porque não
tinha outra coisa. O que se espera da vida? O que eu esperava da vida? Poxa, eu
esperava que a vida me desse uma oportunidade. O quê!, eu não sei!, porque eu não
sei fazer nada. E assim, sou só agricultor, sou só um estudante de quarta série, não fiz
mais nada. Então, esperar, às vezes, eu comentava que se aparecesse alguma coisa
para eu fazer, para sair, eu sairia naquele momento de completar os dezoito anos e sair.
Só que quando eu completo dezessete anos, dos doze aos dezessete anos eu investi
muito em futebol, não porque eu vou fazer um investimento, era vontade, era paixão
mesmo. Eu andava três quilômetros, corria para ir jogar um rachinha. Onde tinha uma
batidinha de bola, a gente corria lá. Chegava em casa a pé depois de andar seis
quilômetros. [...]. (BEZERRA, 2011).
O futebol no PRECE teve importância digna de nota, como já foi discutido, porque
os estudantes pioneiros da iniciativa entraram em contato com o seu líder e cofundador através
desse esporte. José Noberto foi primeiro um jogador protagonista e essa força, ele,
posteriormente, aplica na corrida para avançar nos estudos. Manoel Andrade foi o seu primeiro
281
treinador para jogarem bem nos campeonatos coordenados por ele, mas até aqui não se sabia,
que ele também seria seu principal orientador nos estudos, nas buscas e escolhas. Destaco mais
um relato de José Noberto sobre o lugar que o futebol ocupou em sua história de vida:
[...] dos ‘meus’ quinze aos dezessete ‘anos’ (grifos da autora), o Andrade já organizava
campeonatos na Tamarina, Pentecoste, campeonatos municipais, regionais. E eu
jogava pela comunidade de Canafístula, e no final do campeonato eles formavam os
selecionados, e eu sempre estava incluso nos selecionados. E o Andrade me conhecia,
assim, jogava junto. E [...], tudo o que eu queria, a minha semana girava tudo em
função do sábado quando o Andrade chegava para poder a gente treinar. Tudo o que
eu queria era que um dia [...] eu tivesse um treinador, mesmo que fosse futebol amador,
alguém chegasse e “vamos fazer algo diferente do que existe”. Então ele chegava com
essas propostas, fazia treinamento físico, treinava, e assim a gente reuniu um grupo
de pessoas na Tamarina, né? Que era onde acontecia a maioria dos jogos. [...]
Tamarina também ‘está no’ (grifos da autora) município de Pentecoste. Então aquele
momento era [...] de festa. Pessoas simples, mas ao mesmo tempo muito prazeroso.
[...]. (BEZERRA, 2011).
[...]. Um ano e meio depois, eu sempre em contato com o Andrade, ele me disse:
“Poxa, nós estamos montando um grupo aqui no Cipó, vem tirar dúvidas aqui do
supletivo, fazer suas provas”. Ele sabia como é que estava o andamento, estava um
ano e meio de supletivo, tinha feito menos da metade do supletivo em Pentecoste. E,
282
ele disse “vem para cá, vem para o Cipó estudar com os meninos”. Estava o Toinho,
o Francisco, o Du e o Beto, se eu não me engano. [...]. Aí, que eu digo: “Aí eu vou,
essa semana eu vou”. Na outra semana eu: “Não vim, não, mas na próxima semana eu
vou. E eu vou, e eu vou”. Sei que chega outubro, novembro, ele disse: “Afinal, tu vai
ou não vai?”, eu disse: “Vou”. Ele disse: “Olha, nós estamos montando um grupo para
morar lá”, e eu disse “Vou” [...]. (BEZERRA, 2011).
[...] Passar o dia no Cipó era muito bom, porque chegava lá eu encontrava cinco
amigos, de futebol, de vivência. Toinho, Francisco, Beto, Orismar, Du, a Raquel.
Então eu não conhecia só o pessoal do futebol, não era difícil eu estar ali, era bom e
eu estava disposto a enfrentar as dificuldades da vida. Só voltando atrás um pouco.
Quando meu pai morreu, veio um desespero muito grande, eu ia fazer vinte anos,
completamente dependente de pai e mãe. A minha tristeza naquele momento, além da
perda, era de dependência. Eu não ganhava nada, eu não sabia fazer nada e se minha
mãe morrer (ele se coloca no tempo presente do momento em que viveu – grifos da
autora) hoje, eu vou viver de que? Quem vai me sustentar? A partir dali vinha toda
uma mudança de mente. Eu tenho que passar a olhar para mim como a pessoa que vai
ter que construir a minha sustentabilidade, vou ter que ter uma profissão, alguma coisa.
E essa mudança é muito drástica, não tem experiência, nem orientação. [...].
(BEZERRA, 2011).
283
Esse momento foi um divisor de águas na vida de José Noberto, sem pai e
dependente da mãe, com as emoções abaladas e se questionando profundamente. Talvez por
esse motivo demorou a decidir vir morar na casa de farinha, porque teria que continuar pelo
tempo que fosse necessário, sem recurso financeiro, em meio a diversos tipos de privações e
isso não seria fácil. Diante desse quadro, ser protagonista do próprio destino e tomar a decisão
de sair de casa pela primeira vez, foi algo impactante para ele, sua mãe, irmãos e irmãs. Não foi
fácil o início e nem o tempo em que morou na cassa de farinha, como já exposto, vimos um
pouco dessa realidade da vivência na casa, relatada antes pelas biografias analisadas. Por outro
lado, para ele, foi um momento propício para permanecer em grupo e não isolado em sua
individualidade.
No PRECE, na formação de um grupo para estudar juntos, ocupando uma casa
abandonada, vivendo ali na energia da solidariedade dos amigos, tudo isso o ajudou a encontrar
seu caminho. Aquele espaço rural, distante de todas as notícias sobre o que seria uma
universidade, recebeu novos ares com a consecução do projeto. Apesar das circunstâncias, era
dada a oportunidade a um jovem que necessitava dar uma virada na vida estudantil como tanto
quis, ao concluir a quarta série. Houve, portanto, o início da formação de um novo capital social
que foi se encorpando e ganhando ascensão em suas diversas formas de atuação no campo
educacional não formal.
Disposto a vencer essa situação, com a ajuda do professor Andrade, ingressou no
PRECE e começou a perceber que o futebol não era sua real ambição profissional. Foi doloroso
deixar esse sonho de lado, porém, seu foco foi mudando de área. Saiu dos gramados para a sala
de aula, mudou-se para o Cipó, juntou-se aos outros seis estudantes e focou nos estudos.
Inicialmente, sua família não concordava com isso, porém, aos poucos, foram
cedendo à compreensão de que a ele pertencia o direito da escolha e percebendo que ele queria
apenas crescer intelectualmente e conduzir a sua vida por meio dos estudos, o paoiaram em
todos os sentidos.
Apesar de toda a vontade que movia José Noberto, vieram outros momentos de
crises, no entanto, esses momentos mais difíceis foram enfrentados pela cooperação e
solidariedade. A cada tristeza sentida, alguém vinha ajudar, ouvindo uma confissão ou um
desabafo de algo que estava dentro como empecilho ao crescimento individual e social. Foi
nesse momento que a solidariedade ganhou espaço naquele ambiente da casa de farinha com o
primeiro grupo de estudantes da experiência em discussão.
284
A solidariedade praticada por esse grupo carregava a filosofia da ajuda ao outro sem
esperar um retorno, tratava-se da mão que entregava sem esperar algo em troca. Assim, quando
um dos sete estudantes precisava de ajuda ao passar por algum problema emocional, cognitivo
ou de ordem material, sempre um deles ajudava, seja tirando dúvidas na hora dos estudos, seja
com apoio nas crises emocionais, seja para oferecer algo material. Por exemplo, havia a
conversa amiga, a escuta ativa das histórias de vida de cada um, o empréstimo de uma bicicleta
ou o compartilhar de alimentos trazidos de suas famílias, dentre outras coisas. Tudo isso
fortalecia e estimulava cada integrante do grupo a não desistir dos seus sonhos. Destaco esses
exemplos baseado-me em outros memoriais lidos e analisados e ainda pela experiência que tive
na convivência aos fins de semana quando eu os ajudava e era ajudada nos estudos de sábados
e domingos.
Destaco o depoimento de Noberto Bezerra acerca do apoio mútuo, da cooperação e
da solidariedade que cada estudante recebia ou concedia em suas dificuldades:
[...] Porque a gente passava a tarde conversando, várias vezes a gente sentava duas
horas para estudar, quando dava quatro horas a gente não tinha estudado quase nada,
conversando. Com o passar do tempo a gente percebeu que aquelas horas de conversa
não eram perdidas, era onde fortalecia nosso grupo. Naqueles momentos a gente saia
fortalecido, ia para o racha, brigava lá, saia brigado mais o Du e voltava, essas
dificuldades que a gente tinha, resolvia no grupo e isso fortalecia. [...]. Então a gente
vivia nesses picos, altos e baixos. [...]. (BEZERRA, 2011).
[...] Eu não consigo imaginar o mundo melhorando se nós não adotarmos, realmente,
o sentimento da solidariedade e não nos tornarmos imediatamente um grande bloco
de solidariedade, se nós não lutarmos pela solidariedade. [...] Na perspectiva de
algumas pessoas da esquerda nós deveríamos primeiro transformar radicalmente as
estruturas materiais da sociedade para poder atuar sobre a superestrutura e somente
com estas transformações estruturais concretizadas nós poderíamos ver a realização
da solidariedade na sociedade. [...], assume-se que no dia seguinte ao da promoção
destas mudanças estruturais profundas, teríamos um novo homem e uma nova mulher,
e nós poderíamos instaurar a solidariedade na sociedade. [...]. Nós precisamos
restaurar e inventar de novo o poder local. Restaurar e reinventar o poder local
285
sempre com essas pessoas, por isso houve um esforço para conseguir estar na mesma residência
que seus amigos precistas e isso colaborou com o estado emocional de José Noberto, resultando
em uma maior motivação para concluir a graduação.
Cada precista que entrava na universidade, a esse orientava-se que aproveitasse
tudo o que tinha direito dentro dela, que buscasse toda oferta de formação acadêmica, por
exemplo: fizesse curso de línguas, participasse de seleção de bolsistas de pesquisa e docência,
dentre outras possibilidades encontradas no mundo universitário. Essas orientações vinham
sempre do líder principal, inicialmente, mas depois do crescimento do PRECE, os orientadores
passaram a ser todo líder graduado ou aquele graduando que captava tudo bem rápido, ou seja,
tinha na mente uma imagem fotográfica da universidade.
Os resultados do percurso de José Noberto começaram a chegar; ele graduou-se em
química pela UFC, em 2003, (Figura 56) e logo ingressou no mestrado, mesmo momento em
que dá um novo passo na área amorosa, casando-se com Ana Beatriz, conterrânea sua e
professora da escolarização. Ele conclui o mestrado em 2006 e logo ingressou no doutorado em
Química de Plantas.
Nessa fase de sua vida, surgiu seu primeiro filho. Com as tribulações da vida
profissional, acadêmica e pessoal, Noberto sentia-se sobrecarregado, chegando até a parar o
doutorado por um curto período de tempo, pois não tinha mais forças para continuar. Após esse
período afastado, conseguiu, aos poucos, voltar, e foi melhorando cada vez mais. Após a
conclusão do seu doutorado em 2012, nasceu o seu segundo filho. Noberto sempre demonstrou
gratidão ao PRECE pelo seu sucesso acadêmico como estudante, monitor; como graduando, foi
professor; e depois de formado permaneceu ligado as ações do movimento PRECE até a
atualidade. Ajudou na construção das EPC e incentivou os jovens que iam para a universidade,
mostrando que seria possível a eles também fazerem o curso que mais se identificassem.
Em relação às experiências profissionais, após a sua graduação, em 2012, José
Noberto trabalhou com bolsa de pesquisador na EMBRAPA, em Fortaleza, período de muito
aprendizado para ele que o impulsionou a seguir a trajetória de professor e pesquisador. Passou
a exercer a docência no ensino Médio nos anos de 2014 à 2015 na Escola Estadual de Educação
Profissional Alda Façanha, onde experimentou a metodologia da Aprendizagem Cooperativa.
Nesse mesmo período, foi também professor-tutor da UFC virtual. Por quatro anos, um
semestre de cada ano de 2016 a 2019, foi professor temporário da Universidade Estadual do
Piauí (UEPI) - Campus Piripiri. Atualmente, já em 2019, foi aprovado no concurso público para
professor efetivo em EBTT (Ensino Básico Técnico e Tecnológico) do Instituto Federal de
Educação Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) - Campus de Camocim.
Ver resultados positivos no percurso de vida de José Noberto, cheio de lutas e
desafios é compensador, pois nem todos chegaram onde ele chegou. Mas é interessante perceber
que os que não chegaram, faltou-lhes, com certeza, ser rodeado pela cooperação e solidariedade.
Isso pode parecer um chavão, mas por tudo que discuti antes, isso não deve ser apenas palavras
desgastadas.
José Noberto construiu uma história de enfrentamentos à adversidades, mas
também uma história de vitórias. Ele ajudou outros a construírem outras histórias de
vencedoras. Em suas buscas, encontrou o futebol, paixão que viveu intensamente em sua
adolescência e com um desfecho feliz, pois a partir desse gosto apurado pelo esporte foi que
conheceu Manoel Andrade e o PRECE. Esse grupo o levou a olhar além do futebol e, ao
enxergar, ele caminhou sua trajetória individual e coletiva para obter o sucesso acadêmico e
pessoal.
288
José Orismar começa a narrar a sua história de forma mais organizada, talvez
porque como ele fazia parte do projeto de captação das histórias de vida dos estudantes do
PRECE, aprendeu bem a contar a sua história, de modo organizado, acho até um pouco mais
trabalhada. Ele não esqueceu de contar elementos crucias e fortes de sua história que outros
poderiam não querer contar. Ele começa:
Meu nome é José Orismar da Silva Barroso, tenho 4 irmãos, sou o primogênito. Meu
pai é Francisco da Silva Barroso, minha mãe, Ana Maria da Silva Barroso. Meus avós
paternos são Luis Vieira da Silva e Josefa Vieira da Silva. Meus avós maternos são
Celina Vieira e Felipe Vieira. Minha descendência é de Parnaíba, uma comunidade
que faz parte do município de Pentecoste [...]. (BARROSO, 2011).
A partir desse momento sua história de vida ganha existência, antes era como se ela
não existisse por nunca ter sido compartilhada. Um dos pressupostos de Christine Delory-
Momberger enfatiza a importância de entendermos que a nossa história para existir, precisa ser
narrada pela fala ou pela escrita. Daí porque esse trabalho de registro das histórias de vida dos
estudantes fundadores do PRECE é necessário para dar existência a memória individual e
coletiva da experiência. A autora afirma que:
[...] a história de vida, em outros termos, a vida narrada, não é a vida. [...] não existe
uma prática de formação que pretenda recriar para si própria, o que seria o transcorrer
factual e objetivo da vivência; todas elas, ao contrário, se dão por objeto primeiro de
trabalho a construção biográfica que o sujeito opera pela fala ou pela escrita quando
convidado a contar sua vida, ele se volta a si mesmo. (MOMBERGER, 2014, p.316).
A partir disso, entendo que a “história de vida” ou a “vida narrada” não podem ser
tomadas como postas, concluídas, mas ao contrário, são objetos de trabalho constante do agente,
que a constrói por meio da produção escrita ou falada. De acordo com a autora, a história de
vida não estava objetivamente pronta, acabada em sua memória ou na daqueles que conviveram
com o protagonista dessa história. Compreendo que nesse processo de construção biográfica de
cada um, há apagamentos de lembranças o que gera a possibilidade de não ocorrer somente o
real, mas pode haver o que não é real para preencher esses apagamentos.
Por exemplo, a história de vida de José Orismar não tinha existência semiológica,
existia apenas em fragmentos de memórias, de forma subjacente. A partir do momento em que
foi dada a ele a oportunidade para construí-la, empreendeu essa aventura que foi olhar para si e
se narrar, em um esforço de busca pelas lembranças, mas com certeza houve momentos em que
o real foi apagado e foi substituindo por aquilo que se considerou o real. Nessa construção que
sempre se renova, José Orismar não perdeu de vista o outro que está o tempo todo na história a
289
qual ganha fôlego e existência no mundo objetivo e no seu (inter)locutor. Com a (inter)locução
abre-se um espaço para uma co-produção, presente e futura, apontando para a dimensão social
das histórias de vida.
Agora, a sua história se faz notória, ela existe para que todos possam saber como
foi a vida dele. Como foi a vida com seus pais. Quais foram suas atividades infantis. Os seus
estudos. Como era seu jeito de ser. O que ela nos ensina? Com o que nos identificamos. Dentre
tantos interesses possíveis do porquê conhecer a história de vida de José Orismar. Iniciando
essa viagem, convido o leitor a conhecer um pouco dessa história e sua análise. Sobre como foi
a sua infância e a vida com sua família, destaco a narrativa dele:
[...] Lembro demais dos momentos em que nós nos reuníamos à noite no período
chuvoso quando vinham as safras [...]. Era mais comum na casa dos meus avós
paternos. A gente tinha montes de feijão e [...] debulhava esse feijão de forma manual.
Era gostoso, eu lembro dessa cena porque ali a gente ficava ouvindo as histórias deles
de quando eles eram crianças. Eu lembro que a gente andava naquelas veredas, minha
mãe ia na frente, eu ia na frente dos meus irmãos e meu pai era o último para nos
protegermos. Lembro de alguns serviços básicos que eu fazia junto com a minha
família. Lembro de ir buscar água, eu era o mais velho e pai sempre me dava essa
função, e geralmente a gente ia buscar essa água ou no açude que tinha lá perto ou no
leito do rio Canindé. [...]. A única fonte de renda era o meu pai e geralmente só dava
para comprar o arroz, o açúcar e a farinha. É um momento triste que eu lembro. Tinha
um serviço do governo federal para as pessoas menos favorecidas durante a seca que
foi a construção de um açude, e às vezes eu tinha que ir fazer o serviço no lugar do
meu pai nessa construção porque ele saía para fazer outras coisas. No dia que o pai
não podia ir, eu ia. Fiz isso poucas vezes, graças a deus, mas isso foi horrível. Tinha
que subir uma rampa com um carrinho de mão e eu não tinha muita força, era um
serviço muito ardoroso [...].(BARROSO, 2011).
[...]. Eu trago muito na mente a lembrança da alimentação, que era muito fraca mesmo.
Lembro quantas vezes eu não comia o café com farinha, quando tinha farinha, porque
quando não tinha era só o café mesmo, era horrível. Lembro de uma comida bastante
rotineira que era o arroz com ovo. Utilizávamos picica, farinha de gergelim, mandioca
era mais difícil porque meu pai não tinha terreno e não tinha como fazer o cultivo, a
gente adquiria com o meu avô, era a famosa carimã. A gente vivia nessa luta, uma luta
de muita resistência, dificuldades. Lembro que eu, em busca de algo para a gente se
alimentar, utilizava baladeira para caçar passarinho. Eu deixei essa prática cedo
porque eu era um jovem que me sentia muito incomodado quando eu matava os
passarinhos, me dava uma pena muito grande. Outra comida que a gente comia eram
os carás, que ficavam nas taperas, que são poças d’águas acumuladas durante o
período chuvoso. Meu pai chegava às vezes com um bornal e alguns carás. Quando
nós tínhamos o cará era uma boa companhia para o arroz. Em termos de alimentação
a minha infância foi muito defasada, passei muita necessidade. Feijão era coisa
raríssima, porque durante os períodos de seca a gente não conseguia cultivar o feijão
para passar o período não chuvoso se alimentando [...]. (BARROSO, 2011).
O relato sobre a infância de Orismar Barroso revela que o seu café da manhã era
café com farinha de mandioca e, as vezes, tinha um e não tinha o outro, nesse caso, tinha que
ser somente um. Há outra situação em que ele só tinha uma roupa para ir à escola, seus pais não
tinham como comprar vestuário, material escolar e nem pagar merenda na escola. Ele fala que
“tinha vergonha porque não tinha muita roupa para ir para escola. [...] também não tinha caderno.
Depois a bicicleta quebrou, meu pai não tinha como consertar e eu tive que parar os meus
estudos. Eu chorei, foi um momento cortante para o meu coração”. (BARROSO, 2011).
A trajetória de José Orismar expressa alguém que tinha uma vida muito escassa de
tudo, ele foi o estudante pioneiro mais pobre quanto a recursos materiais. Em seu relato, ele se
desnuda de forma autêntica, despido de qualquer orgulho, como podemos ver, até o fim da sua
narrativa. Antes eu não percebia a sua história porque ela nunca havia sido contada. Hoje me
emociono pela forma como ele captou a sua vida de pobreza, pelo quanto foi impactante para
ele esse estado de quase pobreza extrema, portanto, estou à frente de uma narrativa carregada
de superação e esperança.
291
Quando se é jovem, há sempre uma vergonha em ser diferente e por isso, Orismar
sofria pela vergonha de ter apenas uma peça de roupa, o que fazia ele não apresentar condição
emocional para ter uma boa relação interpessoal com os amigos de estudo, relacionando-se
pouco com eles, os quais pareciam ser mais abastados.
A merenda do café com farinha de Orismar também foi o meu cardápio no café da
manhã em muitas ocasiões. A farinha de picica também foi minha merenda da tarde outras vezes
e assim são muitas as identificações. Nesse momento de verificar tantas aproximações, penso
que nosso grupo se uniu muito pelas identificações. Entendíamos mais a linguagem da pobreza,
da dor, da baixa autoestima e da vergonha. O sentimento de pertencimento de todos do grupo
era forte e a convergência de um propósito maior em toda essa experiência foi determinante de
nosso sucesso.
Os estudos primários de Orismar Barroso deram-se no início da década de 1980 em
um alpendre que funcionava como escola. Uma descoberta foi saber que em sua alfabetização;
ele experimentou estudar à sombra do juazeiro devido ao alpendre da casa de sua professora,
algumas vezes, ser ocupado pelas cabras. E interessante foi que quando chegou ao Projeto,
novamente se encontrou com essa árvore que hoje é um dos símbolos do PRECE, por ter
abrigado em sua sombra, vários estudantes em seus grupos de estudos. Esse inusitado espaço
bucólico, tomado como ambiente de estudo surgiu da necessidade de salas de aulas que eram
poucas para uma metodologia em que seus grupos de estudantes precisavam tomar distância
por causa do barulho nas discussões que, normalmente, ocorrem quando se estuda em grupo. O
estudante narra esse momento:
[...] Lembro que comecei a estudar no início da década de 80, fui alfabetizado no
alpendre de um casarão. Lembro da minha ansiedade falando para o meu pai comprar
minha cartilha do ABC, que foi a única coisa que eu levava nos primeiros dias de aula
porque meu pai não tinha dinheiro para comprar os outros materiais. A minha primeira
professora, a tia Francisca, foi quem começou a me ensinar. Ela queria que eu
comprasse minha tabuada. Eu comecei lendo minha cartilha do ABC. [...] “no assero
do terreiro assim daquela casa que seria como escola, isso é bem emblemático
porque[...] depois a minha vivência com essa questão (que era a experiência de estudo
em grupo debaixo do juazeiro em 1994 no PRECE)[grifos da autora], tinha um pé de
juazeiro [...] às vezes quando não dava certo isso, os estudos no alpendre [grifos da
autora], ela a professora [grifos da autora] limpava aquele pé de juazeiro[...] ali nós
íamos sentar [...] embaixo [...] porque seria o melhor lugar do que mesmo no alpendre”.
[...]. (BARROSO, 2011).
Ele explica que trocavam o alpendre pelo juazeiro em decorrência do odor de fezes
e xixi das cabras no alpendre da casa da professora, hábito que os criadores de caprinos tinham
de deixar os animais se abrigarem em suas casas nos momentos de chuva.
292
Nesse período de sua alfabetização, surgiu a paixão pela literatura de cordel, e isso
serviu de estímulo para a continuação no processo de aprendizagem da leitura. O que me
impressionou na narrativa do estudante foi a persistência e a esperança que o fez vencer muitas
dificuldades para continuar estudando. Sobre essas dificuldades colocadas pela extrema
pobreza de sua família, que representava muitas outras, de baixa ou nenhuma renda, Paulo
Freire discute na obra Pedagogia da Esperança. Segundo Freire:
[...]. Depois, em 1992, 1993, eu me matriculei em outra escola que tinha da quinta à
oitava série, em Cacimbas. Era um ensino através da TV. Aí começaram as mesmas
dificuldades das outras vezes. Lembro que caminhava uma hora a pé até a escola, às
vezes pegava uma carona na ida e na volta. Às vezes ia para a escola sem comer nada.
Comecei a desenvolver amizade com a família da minha professora Irismar, e comecei
293
a passar dias na casa deles. Ela era uma pessoa muito acessível, me deixava muito à
vontade na questão da alimentação. Às vezes eu ficava de meses na casa dessa minha
professora. Eu agradeço demais porque senão eu teria sucumbido mais uma vez nos
meus estudos, porque meus pais não tinham condições. Às vezes eu voltava chorando
para casa. Eu fiz amizade com a merendeira e às vezes ela me dava buruaca com café
na volta para casa, às vezes me oferecia um almoço. Eu recebi isso com muita gratidão
porque eu entendia que eu precisava dos meus estudos e que eu não podia me intimidar
diante daquilo, e eu aceitava isso de muito bom grado porque as dificuldades eram
enormes e o meu sonho era continuar estudando. Meus pais e meus tios diziam que eu
já tinha aprendido a ler e já estava bom de parar, só que eu queria dar uma sequência
no meu estudo, eu pensava em terminar pelo menos o meu segundo grau. [...].
BARROSO, 2011).
[...]. Eu estava na sétima série, o ensino fundamental era só até o oitavo ano. Em 1994
eu tinha muita amizade com o Eudimar, o Du, que estudava na mesma escola que eu.
Ele chegou e propôs que eu fosse conhecer um projeto que havia se iniciado com
estudantes no Cipó. Eu já conhecia o Cipó porque eu já tinha ido lá algumas vezes
fazer o curso de datilografia com o professor Toinho. Depois o Du veio me falar que
tinha iniciado um projeto educacional no Cipó com o professor Andrade. Um dia nós
vínhamos na estrada entre Capivara e o Cipó, e o Du fazia o relato de como era essa
experiência. Lembro da primeira noite que eu cheguei, estavam o Toinho, o Du, o
Beto, o Francisco estudando e eu me agreguei na turma. Eu gostei do debate sobre
história, daquele grupo compartilhando, conversando. O Toinho tinha conseguido uma
294
lâmpada fluorescente ligada numa bateria porque ainda não havia energia elétrica no
Cipó. [...].BARROSO, 2011).
[...]. Nós conversamos e o Andrade começou a me dar umas orientações e eu fui fazer
o supletivo em Pentecoste. Era uma coisa muito difícil, eu fazia o trajeto na bicicleta
do Francisco, meu colega do grupo que nós tínhamos iniciado, e às vezes eu não tinha
condições de merendar. Mais uma vez essas coisas começaram a me perturbar. Nas
primeiras provas do supletivo eu ia fazer a prova e voltava de bicicleta com uma fome
horrível. Eu falei isso algumas vezes para a dona Fransquinha, mãe do professor
Manoel Andrade, e ela começou a me dar o dinheiro da merenda. Eu tenho que
considerar a igreja na minha vida nesse momento, que me ajudou muito na questão
espiritual, porque eu lembro que ia orando na bicicleta para Deus me fortalecer.
Terminei meu ensino fundamental entre 1994 e o início de 1995. [...]. BARROSO,
2011).
José Orismar aceitou a proposta exposta pelo professor, mas sabia que mais uma
vez, não seria fácil, porém decidiu iniciar os estudos pela modalidade EJA do ensino
fundamental. Apesar de ele ter saído da escola regular na sétima série, foi orientado pelo
professor Manoel Andrade a fazer uma revisão, para suprir a defasagem proporcionada pelo
sistema de ensino TV Educativa. Assim, ele seguiu, mesmo ainda sem recursos, continuou o
desafio da resistência e superação de obstáculos - agora novamente, a falta de se alimentar de
295
forma regular como todas as pessoas merecem. Como discutido antes, a presença do suporte
espiritual, emocional e material dado pelas mulheres da Igreja Presbiteriana Independente de
Cipó fez com que o estudante se sentisse cuidado e isso com certeza o ajudou a continuar.
Dentro dessas situações vivenciadas pelo estudante, destaco o episódio da migração
de sua família para o município de Barreira, em Ceará, em 1995. Como ele queria continuar
estudando e estimulado pelo compromisso com o grupo, decidiu ficar. Com a ausência de sua
família, o sentimento de que estava sozinho bateu em seu íntimo e isso o predispôs a momentos
de solidão, e, certamente, ampliou o raio dos problemas de subsistência, como a falta de
alimentos, roupas, materiais de higiene pessoal etc. Com isso, no grupo, ele era visto como o
mais necessitado.
Dessa forma, os seis estudantes o ajudavam com o pouco que traziam de suas
famílias também de baixa renda. Assim, ele passou a ser ajudado pela família dos amigos da
casa de farinha e pela família do professor Manoel Andrade. Para dimensionarmos as
dificuldades pelas quais Orismar relata ter vivido, destaco trechos de sua fala que apresentam
como se deu esse contexto difícil o qual delineio na breve apresentação: seus amigos tinham
saído para buscarem os mantimentos em suas famílias e ele, sozinho e sem comida, vê apenas
um peixe que já estava apodrecendo, e conta que para preparar essa refeição foi um imenso
trabalho, pois teve que ferver esse peixe em várias águas. Essa fala dele nos gera comoção. No
relato ele diz:
[...] lembro de uma vez que eu peguei um peixe velho [...] ‘vou fazer o meu almoço
desse peixe’ [...] esse peixe velho chega estava meio esverdeado, [...] lembro disso
porque [...] é uma cena fortíssima em termos de vivência dentro da casa de farinha,
[...] eu peguei o peixe, [...] ele tava assim [...] com um odor meio forte, [...] lembro
que a única coisa que tinha lá era colorau [...] ‘eu vou botar ele dentro de 3 a 4
águas’[...] botei ele pra cozir [...] quando eu vi que a água estava assim com aquela
cor, [...] despejei [...] todinha e botei outra e o bicho continuou, [...] fortíssimo ainda;
despejei também; ai botei três águas, a quarta água era pra fazer o meu pão, [...] nesse
dia eu comi esse peixe. [...]. (BARROSO, 2011).
Assim, ele resistia com bravura, o fragmento de sua biografia demonstra o tamanho
esforço para realizar seu sonho de se escolarizar e fazer um curso superior. Esse momento de
enfrentar os estudos dia a dia e a necessidade de se alimentar foi de muita determinação à
adversidade em uma situação-limite, a qual Orismar superou. Durante todo o relato, o estudante
ainda não tinha dado ênfase a suas dificuldades, porém nesse ponto, ele as destacou com força.
Por outro lado, Orismar depois de passar pela casa de farinha e de ter sofrido suas
experiências dolorosas, construiu grandes amigos, aprendeu sobre a vida e foi desenvolvendo
o seu potencial.
296
Além dos estudos básicos e de preparação para o vestibular, ele dominava a arte de
falar em público, era locutor de rádio (Figura 57) e narrador dos jogos do time do PRECE. Além
dessas atividades, ele tinha competência em tarefas que demandavam sua apresentação para
plateias.
[...]. No final de 2010 eu falei para ele que iria me envolver com as atividades do
PRECE. De fato, eu voltei mesmo, hoje estou desenvolvendo um trabalho com um
pessoal do grupo que está desenvolvendo um trabalho para Secretaria de Educação do
Estado. Estou participando de um projeto maravilhoso que é fazer a construção do
memorial do PRECE, eu quero compartilhar, quero fazer parte desse momento, para
mim é uma questão de honra. Eu acho que esse trabalho é fantástico, brilhante, e fazer
parte dessa história é tudo o que quero, porque afinal de contas o PRECE é dinâmico
em todos os sentidos, ele trabalha em todas as frentes e todas frentes de trabalho do
PRECE tem uma história bonita por trás, tem algo a ser contado, e o memorial não é
diferente. Com toda certeza vai ser algo que vai ajudar muito, não só a história do
PRECE, mas as demais pessoas que irão nos visitar, que vai servir de embasamento
ideológico para alguma coisa que vai estudar nessa história. É riquíssimo esse
momento de construção do memorial. [...]. (BARROSO, 2011).
298
6 CONCLUSÕES
entre os líderes e liderados, estudantes e monitores nas aulas, nas conversas, no apoio mútuo,
nas decisões importantes para as quais precisavam de orientação da liderança. Desse modo foi-
se construindo uma identidade de companheirismo e empatia no interior do campo precista.
Percebi, em minhas reflexões, haver na experiência educacional do PRECE
elementos importantes como o protagonismo estudantil que favoreceu uma relação horizontal
e de diálogo entre quem representava o educador e o educando. Com isso, considero que esse
protagonismo no PRECE respondeu a uma necessidade dos jovens rurais de tomarem a frente
de seu destino, pois os mesmos não dispunham de mecanismos públicos que dessem a eles a
oportunidade para se desenvolverem por meio da educação.
Vi que havia no sistema educacional municipal a falta de escolas rurais e
professores com formação superior que pudessem entender o que ensinavam quanto aos
conteúdos, e ainda, que fossem capazes de trabalharem também uma formação mais humana e
holística com o estudante.
Aprendi sobre a importância de fazermos algo mais do que, usualmente se faz; algo
diferente do que havia nas poucas escolas públicas rurais da época (e muitas fragilidades do
período ainda persistem até hoje) as quais não respondiam a problemas que travavam o
crescimento de seus estudantes.
Diante desse contexto, vi que foi necessário agirmos com criatividade e obstinação
em algo prático e significativo para o contexto do estudante. Dessa forma, dar uma guinada
positiva e gerar resultados potentes na vida dele que, nesse processo, foi o protagonista.
Compreendi que o melhor começo foi ouvir os estudantes mediante o
estabelecimento de um diálogo com eles, logo que chegavam, ouvir a sua história de vida
estudantil, pedir para que a contasse, escrevesse ou desenhasse, enfim, foi urgente primeiro
sempre buscar novas ações práticas de como promover o encontro para falar do sonho de cada
um.
Outro elemento que nos constituiu educadores e profissionais em processo para
entrar no campo educacional formal brasileiro foi o acompanhamento lado a lado, de modo
particular, privilegiando as diferenças, já que o estudante não é uma peça produzida em série,
todas do mesmo formato. Foi assim, desde o início, desde o professor pioneiro Manoel Andrade
ao estudante facilitador que chegou há poucas semanas, em todos os momentos e nas práticas
educativas.
Vi a partir da análise das nossas histórias de vida que o processo de aprendizagem
cooperativa e solidária na experiência do PRECE possibilitou impactos sociais como, por
exemplo, o fato de centenas de estudantes populares serem incluídos socialmente, tendo a
302
em suas conquistas. Apesar de tudo, ele não perdeu a esperança, mas superou porque, além da
sua força interior, havia a potência do coletivo ao seu redor e isso o estimulava a continuar.
Assim poderá acontecer nas escolas, o cultivo por um ambiente que abrace o estudante por
todos os lados, olhando para ele, em sua individualidade, em suas diferenças. Tudo isso é
possível com a força do grupo, dos pares e com a colaboração de um professor que entenda o
princípio social.
Analisando a narrativa de vida de José Noberto, percebi que a legitimação do
PRECE se fortalece a cada história de vida contada. Em José Noberto, vi que, apesar de seus
pais não entenderem o valor dos estudos para os filhos(as), ele lutou para romper esses
impedimentos. Com a dificuldade de ser entendido pelo seu micromundo, ele teve que
implementar sua busca e a primeira delas foi o futebol. Dessa escolha, ele chegou ao PRECE e
nele, mesmo com suas indagações e dúvidas, conseguiu vencer apoiado pela força do grupo e
da liderança que caminhava junto.
As fortalezas e fraquezas apontadas pela narrativa de José Noberto se expressaram
nas suas lutas por uma vida melhor; vencer as dificuldades do seu contexto de vida, as suas
perdas, as suas dúvidas e suas dores internas não foi fácil, mas ele suportou com paciência e
com amigos. Isso mostra que é possível construir histórias de vencedores desde que entendamos
que não podemos fazer nada fora de uma esfera social.
Noberto comenta sempre que o valor maior da experiência reside no trabalho em
conjunto e não no trabalho de uma única mão, de um “salvador da pátria”. Com isso, infiro que
no percurso biográfico analisado, encontramos um exemplo de luta, cooperação e solidariedade,
mas também, superação e resistência frente aos desafios impostos pela situação precária da
educação no município.
Em relação à narrativa de Eudimar Venâncio, percebi a importância de termos
valorizado a história de vida de um estudante desistente. Aprendi com o processo de busca por
causas que o tenham desestimulado e favorecido a sua saída do grupo de estudos. Entendi que
há outros percursos, não menos importantes do que esse apontado para o jovem que podem ser
trilhados, a depender do grau de satisfação de cada um diante de sua vida. Considerei importante
ainda a busca pelo que não saiu como esperávamos, portanto, posso dizer que isso também nos
constrói profissionais mais competentes para analisar as causas do fracasso estudantil.
No relato de vida de Francisco Gonçalves, percebi algo não muito comum, a sua
tomada de decisão em deixar a escola regular, ainda na sétima série e, em apenas dois anos, já
ter conseguido entrar na universidade. Francisco José se constituiu professor muito ao gosto
pelo estudo e pela pesquisa, e me pareceu foi muito focado na formação acadêmica. Ele
306
colaborou com suas aulas no PRECE e conseguiu aliar teoria e prática a contento. Todos esses
elementos destacados significam algumas fortalezas percebidas por mim, pela minha
experiência de vida com esse grupo e pelas análises de suas biografias.
A partilha de histórias de vida influenciou e impulsionou muitos estudantes que
passaram pelo PRECE a terem êxito em seus projetos de vida pela via do estudo e a tocarem
outros a fazerem o mesmo, gerando assim, um ciclo que tenho chamado de “Pedagogia do
Exemplo”. Dessa análise, resultarão retratos que facilitarão uma nítida compreensão de como
esse movimento de estudantes se constituiu e se fortaleceu tomando proporções inesperadas a
seus pioneiros.
Nesse trabalho, compreendi que fiz parte de uma nova maneira de fazer educação,
gerando inclusão social de estudantes populares de todas as faixas de idade que estavam em
posição de atraso em relação aos incluídos socialmente, em sua maioria, vindos de classe mais
abastada. Nessa análise, penetrei através da interpretação de biografias de amigos de estudo e
sobre mim mesma em um processo (auto) investigativo e (auto) analítico.
Essa foi uma breve tentativa de evidenciar um pouco de como nos constituímos
professores nesse processo formativo de nossas práticas educativas no PRECE e de como temos
nos incluído socialmente. Percebi haver na experiência do PRECE força transformadora com
base no poder do grupo, do estudo cooperativo e solidário que poderão ser inspiração
metodológica em Aprendizagem Cooperativa para ambientes educativos diversos.
Esse trabalho foi importante ainda para socializar alguns elementos constituintes do
habitus desses sujeitos quando desvelamos seus modos de vida, o ser estudante e/ou trabalhador
do campo, gente pobre que sofre privação, gente revolucionária, dentre outras configurações.
Por meio das histórias de vida individuais no campo educacional, pude perceber
categorias constituintes do habitus que contribuíram para a construção da nossa identidade
precista. Quando pensamos com base nos conceitos de habitus e campo de Bourdieu, presentes
em nosso quotidiano, vejo uma relação entre nossas práticas, distintas em caráter objetivo e
subjetivo. Essas configurações aparecem, ao meu ver, como o habitus estudantil precista, no
sentido do protagonismo estudantil e na relação horizontal. A esses se ligaria, por extensão, ao
que nomeio de habitus dialógico precista.
Ainda percebi a existência do habitus da solidariedade precista que favoreceu aos
estudos cooperativos, o habitus do engajamento, pois ao meu ver, nossas ações educacionais
tiveram certo grau de sentimento revolucionário na questão de se colocar na resistência
intelectual das lutas por melhoria na qualidade da educação, buscando saídas para a exclusão
social dos filhos das famílias de baixa renda da zona rural e urbana.
307
Aliado a esses habitus, posso nomear o habitus da cooperação que, sem pretensão,
criamos uma tecnologia social de educação a partir da solidariedade e da cooperação. Por último,
destaco o habitus do retorno, pois desde o primeiro universitário que passou no vestibular e
veio morar em Fortaleza, houve um processo de conscientização, coordenado pelo professor
Manoel Andrade quanto ao valor do retorno desses estudantes universitários para ajudarem os
outros que sonhavam em entrar para a universidade.
Com a filosofia do retorno, fomos sendo autossustentáveis em relação aos serviços
educacionais prestados à juventude. Fomos nos constituindo no aprender a conviver, no
aprender a aprender e no aprender a ensinar, dentre outras formas de aprendizado. Vi que o uso
das histórias de vida no primeiro grupo sinergizava, positivamente, para a compreensão mútua
dos problemas pelos quais cada um passava.
Por último, sinto ter o dever de restituir à sociedade o que na pesquisa está sendo
investido, com fé e esperança, creio que esses resultados os quais, creio eu, tem contribuído e
contribuirão com a diminuição dos problemas da educação brasileira, especificamente, no
combate à exclusão social de jovens populares por meio da educação libertadora e
transformadora. Entendo que toda pesquisa situada em países de muita pobreza como o nosso,
deve se preocupar em dar um retorno com possibilidades de transformação de realidades
opressoras que geram mazelas sociais.
A pesquisa fez-se relevante e necessária pelo fato de apresentar uma alternativa
prática, uma experiência de ensino – aprendizagem calçada na cooperação e solidariedade a
qual tem minimizado os problemas da exclusão social. Exclusão essa, em parte decorrente da
não escolarização do jovem popular e nem da sua inserção no ensino superior; e em resposta a
isso, o PRECE tem gerado sucesso escolar pela aprendizagem desses jovens em meios
populares. O resultado final poderá ser uma fonte, um referencial para professores, estudantes,
gestores e líderes comunitários em seu trabalho no campo educacional, na escola formal ou não
formal, enfim, em ambientes possíveis de aprendizado.
308
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Escola Pública: A mais eficaz estratégia para garantir igualdade de oportunidade e vida com
dignidade para todos.
Eu, candidato a prefeito de Pentecoste, caso seja eleito no dia 05 de outubro de 2008, após
assumir o mandato me comprometo a:
1. Considerar meu mandato como uma procuração passada pelo povo, com o objetivo explícito
de trabalhar para o bem da comunidade, procurando, com toda a minha equipe, encontrar
as respostas acertadas no trato da coisa pública;
2. Operar meu mandato com lisura, eficiência, zelo e probidade, dispondo-me a comandar com
os olhos voltados para um tipo de desenvolvimento e reorganização municipais vinculados
apenas com o interesse natural do município, empreendendo estudos socioecológicos onde
a tônica seja: a eficiência, transparência, honestidade e fraternidade, em seu sentido mais
amplo;
3. Nomear como meus secretários e assessores somente pessoas de real capacidade e
sensibilidade para com as questões municipais, abstendo-me de agasalhar dentro da
prefeitura, qualquer cidadão suspeito de ter praticado ou estar tentando praticar atos ilícitos
ou venais que venham macular a administração pública;
4. Devotar todo o tempo do meu mandato ao combate da vilania e da corrupção, expurgando
quaisquer indícios de favorecimento que possam por em dúvida a transparência do meu
governo e dos atos administrativos;
5. Não oferecer privilégios nem acobertamento a favor de ninguém e nem oferecer
conveniências nem favorecimentos na realização de obras públicas, garantindo que as
concorrências sejam transparentes e regidas por normas legais e absolutamente imparciais;
6. Não realizar qualquer tipo de contabilidade paralela, podendo quem o desejar requerer
informações e agir contra os atos irregulares que possam conduzir à corrupção municipal;
7. Não autorizar gastos supérfluos, não nomear parentes para cargos públicos e agir dentro da
maior lisura, sujeitando-me aos processos que a lei determinar;
8. Liberar toda a comunidade para que exerçam severa fiscalização sobre os atos
administrativos, formando mesmo uma cruzada para garantir que não haja no município a
fraude, a mentira, o logro, a demagogia e a corrupção;
9. Dar prioridade, juntamente com os assessores, auxiliares e secretários programas que visem
melhorar a educação, a saúde e a segurança do povo e que possam contribuir para s geração
de emprego, trabalho e renda para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos pentecostenses;
327
Declaro ainda que, li e estou de acordo com a carta de princípios e propostas apresentada pelo
Movimento em Defesa da Escola Pública e me comprometo a executar as propostas nela contida,
caso seja eleito prefeito de Pentecoste.
APRESENTAÇÃO
Esta é uma carta de princípios e propostas de projetos e políticas para causar impacto a curto,
médio e longo prazo sobre a qualidade das Escolas Públicas do Município de Pentecoste. Ela
foi construída pelos integrantes do Movimento em Defesa da Escola Pública de Pentecoste após
consulta a algumas lideranças comunitárias e escolares.
• Que a educação é um direito de todos e um dever do Estado, por isso deve estar acima
de interesses de pessoas e/ou partidos;
• Que a origem e perpetuação da injustiça social no Brasil estão diretamente ligados a
falta de escola pública de qualidade para todos, ou seja, a ausência de igualdade de
oportunidade entre ricos e pobres.
• Que uma escola não pode oferecer serviços de qualidade sem ter infra-estrutura física
adequada, recursos materiais e didáticos de excelência, bem como professores
devidamente qualificados, capacitados e justamente remunerados;
• Que não há escola democrática sem gestão democrática e para isso é preciso que cada
escola se esforce para construir seu conselho escolar atuante, assim como deve ser
estabelecido um conselho municipal de educação eleito pelo povo, forte e independente;
A VISÃO DO MOVIMENTO
O Movimento acredita que se houver um esforço conjunto por parte dos futuros prefeitos e
vereadores e das comunidades, bem como de toda sociedade civil organizada, poderemos
em pelo menos 12 anos, construir uma escola:
• Eficiente e eficaz que garanta a todos e a cada um o direito de aprender até onde o
permitam suas aptidões e vontade;
• Gerida democraticamente com a participação popular, sendo um espaço para a formação
de indivíduos capazes de assumir uma postura crítica e criativa frente ao mundo;
• Que ofereça ao seu povo um ensino de qualidade, para permitir que seus estudantes
possam competir igualmente com seus pares das melhores escolas particulares do país
no mundo do trabalho;
• E que contribua eficazmente para a construção da cidadania e da democracia no nosso
município;
328
1. Transparência na gestão
A transparência deve ser um princípio na gestão dos recursos municipais, dessa forma, o futuro
gestor deve se comprometer com a apresentação trimestral dos demonstrativos das aplicações
dos recursos públicos.
Por se referirem aos bens públicos, tais demonstrativos devem ser acessíveis a todos os cidadãos
e entidades da sociedade civil. Sugere-se que essas contas possam estar disponíveis
detalhadamente numa página da internet, por exemplo.
A exemplo do que tem ocorrido em várias cidades brasileiras, o futuro gestor deverá consultar,
diretamente, os munícipes de Pentecoste, para a definição da aplicação dos recursos do
orçamento municipal, em cada ano administrativo antes de enviar a proposta para a apreciação
do legislativo.
Outras experiências poderão ser tomadas como referência, para se aproveitar os aprendizados
decorrentes do exercício dessa prática.
Também aqui, as experiências anteriores podem servir para o encurtamento dos percursos a
serem trilhados; trabalhos como os realizados, em Fortaleza, pela Comissão de Defesa do
Direito à Educação e, em algumas cidades brasileiras, pela Campanha Nacional pelo Direito à
Educação podem ajudar na realização, local, dessa empreitada.
Após a comunidade ter sido mobilizada para a realização do diagnóstico do sistema municipal
de educação, estará traçado o percurso mais adequado para a realização da Conferência
Municipal de Educação, instância máxima de decisões na construção do Plano Municipal de
Educação.
329
Como em casos anteriores, a consulta a experiências anteriores são, sempre, salutares; ressalte-
se que a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação – UNCME, tem oferecido
assessoria aos municípios que assim o desejarem.
Cientes, também, de que os processos de consultas públicas podem ser eivados de vícios
fisiológicos, entendemos que é possível, e necessário, dar às consultas escolares um caráter
pedagógico que pode influir, de forma cidadã, os demais pleitos eleitorais.
Por entendermos que o Plano de Cargos, Carreiras e Salários em vigência é antigo e não acolhe
as mudanças legais e sociais ocorridas deste então, desejamos que o prefeito eleito se
comprometa com a reformulação / atualização do Plano de Cargos, Carreiras e Salários em
vigência, encaminhando-o na sua nova versão, após ampla discussão com os servidores, ainda
no primeiro semestre do seu mandato.
8. Piso Salarial
Qualquer que sejam as políticas e projetos implantados para dar qualidade à escola pública não
poderá prescindir da implantação de processos de formação profissional de professores, em
serviço.
De imediato, é importante frisar que tal dinâmica não pode ser entendida como simples cursos
de titulação que, na maioria das vezes, concede a diplomação, sem induzir mudanças
importantes nas salas de aulas.
Como a cidade de Pentecoste tem uma matriz operacional de grupos de mutua educação que
podem ser entendidos e utilizados na elaboração de uma matriz de formação de professores em
serviço, propomos o aproveitamento dessa experiência positiva, para:
• Implantar a Universidade Aberta em Pentecoste como uma forma e qualificação de
professores, especialmente nas áreas de Química, Física, Matemática e Língua Portuguesa
e;
• E, simultaneamente, desenvolver um intenso programa de formação continuada de
professores para garantir impacto imediato nas salas de aula.
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Manoel Andrade Neto (RG 10102104 CRQ-10)
_________________________________________________________________________________
Edilson da Costa, (RG 2004009219289 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
Raimundo Nonato Moura Furtado (RG 99099037474 SSP)
_________________________________________________________________________________
Maria Ione Moreira de Sousa Alves (RG 95015053152 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
Francisco José Martins Barbosa (RG 278362694 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
José Jocélio Simplício de Moraes (RG 2002015064058 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
ADEL Antonio Adriano Batista Alves Sousa (RG 2004019072752 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
EPC – Pentecoste Tony Werison de Sousa Ramos (RG 96002638309 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
EPC – Ombreira Jorge do Carmo Almeida de Araújo (RG 2004010098538 SSP-MA)
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EPC – Boa Vista José de Paulo Firmiano de Sousa (RG 2007009063372 SSP-CE)
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EPC – Providencia Ana Carla da Silva Firmiano (RG 2003025020809 SSP-CE)
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EPC – Cipó Maria do Carmo de Sousa Gomes (RG 99002037601 SSP-CE)
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EPC – Estrela D Alva José Ribamar da Silva Costa (RG 758736 SSP-CE)
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Instituto Coração de Estudante – Arneide Andrade Avendano (RG 90003029080 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
Sindicato dos Trabalhadores Rurais - Antonio Valdemir Almeida Marques (RG 1259827 SSP-CE)
_________________________________________________________________________________
Sindicato dos Servidores Pub. Municipais Manoel Valdeni Pereira Cruz (RG 292149694 SSP-CE)
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COAMPE Raimundo Macilio Sousa da Mota (RG 56572482 SSP-CE)
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UAVRC Itelvania Maria de Sousa (RG 3063475-96 SSP-CE)
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Paróquia de São Francisco Absalão Bandeira de Castro (RG 99418886 SSP-CE -
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OUTRAS TESTEMUNHAS
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No ______
Responsável ________________________________________
FICHA DE ADESÃO AS PROPOSTAS DO Movimento em Defesa da Escola Pública
1. O que você sabe sobre a origem de sua família? Por exemplo, a história de seus
antepassados, procedência, fatos marcantes, histórias interessantes sobre eles,
envolvendo a comunidade, etc.
2. Você pode descrever um pouco sobre as vidas de seus avós falar de como eles
influenciaram sua vida.
3. Fale um pouco sobre seus pais, como eles se conheceram.
4. Descreva um pouco a rotina de seus pais durante a sua infância, adolescência. Fale
sobre trabalhos e outras atividades que eles desenvolviam.
1. Como aconteceu o primeiro contato entre você e o PRECE? Em que ano isso
aconteceu.
2. Fale um pouco da sua vida antes de entrar no PRECE? sua situação educacional,
seus sonhos ...
3. Você se sentiu motivado por sua família a participar do Prece? Quem mais lhe
motivou? De que forma isso aconteceu?
4. Descreva sua primeira atuação junto ao PRECE?
5. Que atividades você realizou durante sua permanência no PRECE? Com qual você
mais se identificou. Por quê?
6. Qual o impacto que o PRECE causou na sua comunidade e na sua família?
Especifique como isso aconteceu?
7. Como você descreve a situação educacional da sua comunidade antes da existência
do PRECE?
8. Atualmente que atividades você desenvolve no PRECE?
9. Tem mais alguém da sua família que participa do PRECE?
10. Você se sente totalmente contemplado nas suas expectativas em relação ao PRECE.
11. Quais foram as principais mudanças na sua vida depois que você entrou na
universidade?
12. Como se sentiu no seu primeiro dia de aula na universidade?
13. Você conseguiu influenciar outras pessoas a se envolver com o PRECE? Quem?
14. Como foi o processo de criação da sua EPC?
15. Você sabe quais são os recursos financeiros da sua EPC?
16. Você sabe quais são os parceiros do PRECE
FINALIZAÇÃO
(futuro/avaliação)
Eu sou Manoel Andrade. Sou da comunidade de Cipó, em Pentecoste e meus pais são daquela
região, meus avos também são de cipó. Aliás minha família toda é lá daquela região. Eles
chegaram lá há quase cem anos, mas eu não nasci em Cipó. Eu nasci em Fortaleza porque os
meus avós, na década de 40, eles migraram daquela região de Cipó, lá de Pentecoste para
Fortaleza. A migração se deu por conta de problema de seca, eles ficaram...é... minha avó tinha
um problema... sofria de depressão. Naquela época, e eles... ela insistiu muito que meu avô
saísse pra procurar médicos para ela e lá não tinha condições como hoje as condições ainda
são poucas, as condições de saúde, de hospitais, praticamente não tinha médicos, eram os
práticos que atendiam, ela tinha conversado com todos e o problema dela não se resolvia e
também as condições de seca, dificuldades, então a família de meu avô que tinha, eram 11 filhos,
tinham alguns falecidos, mas, é...eles resolveram migrar e saíram de cidade em cidade
procurando melhorias de vida e acabaram vindo pra fortaleza, se estabeleceram em Fortaleza
na década de 50. E meu pai, meu pai veio também para fortaleza, mas é.. tinha uma ligação
muito forte com o interior porque minha bisavó ficou, bisavô também ficou, ele gostava muito
e e.. então ele resolveu ficar lá no cipó e conheceu minha mãe, eles se casaram, mas quando foi
pra eu nascer eu vim pra casa da minha avó, meu pai era o filho predileto de minha avó, o filho
homem, o homem mais velho e era o predileto, então eu... minha mãe veio pra cá pra... ali pro
Demócrito Rocha, naquela época, eles chamava tudo de Pici e.. aqui pela rua Belo Horizonte,
eu então nasci numa casa aqui na Belo Horizante, mas praticamente só fiz nascer, assim que eu
nasci, minha mãe já mudou-se para o Cipó, meu pai ficou fazendo uma casa lá e quando a minha
chegou comigo pequeno a casa ainda não tinha sido terminada, nem porta tinha, ah...ainda não
tava rebocada, e, então cheguei lá no Cipó nessa época.
Como meu pai era o filho predileto da minha avó e a minha avó era uma mulher assim, minha
vó Alzira era uma mulher muito forte quando ela gostava de alguém ela demostrava isso com
muito vigor e quando ela não gostava, ela também demostrava isso com muito vigor e então eu
herdei esse privilégio desse carinho, desse amor da minha avó, e, é, a minha avó ficou ali sempre
me trazendo pra Fortaleza, eu vinha aqui passava uns dias e voltava pro Cipó, então dividi ...
aquilo ali ... na minha infância [...] passava pouco tempo... pouco tempo...
Eu praticamente só nasci aqui em Fortaleza porque logo que eu nasci, meu...fui...é... minha
mãe foi comigo pro Cipó e... pra morar lá, meu pai estava construindo a casa, nós chegamos a
casa ainda estava inacabada é... e lá eu fui acolhido pela algumas pessoas da comunidade, era
uma comunidade pequena, tinha umas três ou quatro casas. Assim, eu fui acolhido por elas e,
então eu dividi esse período da minha infância com algumas viagens .... um tempo lá no Cipó
e algumas viagens aqui pra Fortaleza porque a minha avó, ela, ela como ela gostava mais de
meu pai ela passou a gostar mais de mim eu herdei essa paixão e ela queria sempre me trazer
sempre pra ficar aqui com ela, pra morar com ela. Minha avó morava aqui em Fortaleza, meu
avô nunca ficou de vez aqui em Fortaleza, ele ia e vinha, ia e vinha e a minha avó ficou aqui
com as filhas, algumas bordadeiras, bordando pra sustentar a família, meu avô já era velho, e
as minhas tias filhas da minha avó, algumas se empregaram e outras trabalhavam com bordado
e sustentavam a família, era uma família muito grande, então eu vinha aqui pra fortaleza passava
uns dias e voltava pra lá. Mas a minha avó, ela era uma pessoa muito forte, uma personalidade
muito forte, ela tinha um desejo muito grande de ver um filho estudando, e os seus filhos não
conseguiram estudar, as filhas mais novas, duas filhas mais novas ainda conseguiram terminar
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o ensino médio, a custo de muito esforço, muito trabalho, mas ela não teve o privilegio de ver
um filho ou uma filha assim, se realizar nos estudos, (então ela pôs) sobre mim o desejo de sua
realização pessoal .....em Fortaleza.
Ela se esforçou, falava com meu pai, [...]a minha mãe [...] a chorar também, ai quando ela
começou a chorar, acho que meu pai, numa situação muito dura de uma criança chorando
copiosamente, e a minha mãe começa a chorar também, ai meu pai, assim... nunca me esqueço,
ele, lá do alpendre, ele gritou: “não vai mais, você não precisa ir mais, pode voltar, quem não
dar pra sela dar pra cangalha”, ai eu parei, me virei pra trás, na verdade eu não cheguei a virar
pra trás, eu ia, fiz um ângulo de 90 graus olhando pra o sul e fiquei na dúvida se eu vou ou se
eu fico, eu vou ou fico, é...ficou aquela dúvida na minha cabeça vou ou fico e..eu não sei assim
muito descrever ou explicar porque isso, mas tomei a decisão de vir pra Fortaleza, tomei a
decisão de deixar o Cipó e vir pra fortaleza pra estudar.
Talvez na minha cabeça existisse a ideia de que apesar de Fortaleza ser um lugar que eu não ia
gostar e que eu já sabia, já conhecia mais ou menos, e era uma coisa completamente diferente
do que eu vivia, mas aquilo sinalizava pra mim um novo tempo, uma oportunidade de “ser”
alguém na vida, eu coloco entre aspas esse ser porque na cabeça da criança é aquela perspectiva
de ser diferente, de estar numa situação diferente, crescer e se desenvolver, uma criança de nove
anos, eu tinha nove anos exatamente nessa época, então eu decidi vir e vim, entrei naquele jipe
e me lembro que chorei toda a viagem. Chorei, mas chorei alto, não chorei assim, só
choramingando não, chorei alto.
Cheguei aqui em Fortaleza pra morar na rua, antigamente rua nova iguçu, rua Rodrigues de
Andrade, ali no Demócrito Rocha, casa dos meus avós e via assim um local completamente
diferente, cheguei aqui em Fortaleza e passei dois dias chorando, dois dias chorando. O choro
foi diminuindo, mas ainda ficou aquele choro, chorando, chorando, e eu me lembro que uma
tia minha já aborrecida com tanto choro, eu não me lembro qual foi a minha tia, mas já
aborrecida com tanto choro, ela disse assim: “por que que esse menino está chorando?, tu está
chorando por que?!”.
Assim uma incompreensão em entender o choro de uma criança, era um choro, uma saudade
tão grande, um negócio, parecia que o mundo tinha desaparecido e eu tinha ficado sozinho no
mundo. “E por que que você tá chorando menino?” e eu disse assim: “eu tô chorando porque
eu tô sentindo uma dor na perna”. Eu inventei que eu tava sentindo uma dor na perna porque
era a única forma de eu justificar o choro, eu não sabia dizer que eu estava chorando com
saudade, eu não sabia que sentimento era a saudade, imagine um menino do interior com nove
anos de idade, o vocabulário era muito restrito para expressar um sentimento tão profundo como
aquele, então eu disse eu chorei...tô chorando porque eu tô sentindo uma dor na perna. Eu não
esqueço disso, e, então aqui em Fortaleza, eu,... minha avó ela saiu atrás de escola pra mim. Ela
foi num colégio chamado Marupiara. Naquela época, nós tínhamos...era o último ano, o ano
anterior tinha sido o último ano do chamado teste de admissão, a pessoa só poderia entrar depois
que passava pelo teste de admissão. E eu tinha sido alfabetizado lá no cipó, eu fui alfabetizado
lá no cipó, eu aprendi na casa do vizinho, eu me lembro muito bem lá, dessa...dessa ...desse
momento que eu sentava ao redor de uma mesa, e que a professor lá ainda na época da
palmatória, tinha me ensinado as primeiras letras, depois eu comecei a ler, comecei a decorar,
decorar as, as... os pontos chamados né. Tinha um livro lá, eu me lembro do livro de história
que eu lia “havia um rei de Portugal chamado Dom Manoel em 1500”, e eu tinha que decorar
assim uma meia página, se não decorasse então entrava na palmatória, então tinha que decorar
aquele ponto, lá no cipó naquela época não tinha escolas, nenhuma escola, o que acontecia era
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que as pessoas, estudavam na casa das pessoas, tinha algumas pessoas que ensinavam particular,
outras as vezes... a prefeitura pagava uma mincharia para a pessoa dar aquela aula lá.
Então eu cheguei em Fortaleza pra fazer o segundo ano primário. Na verdade, eu não tinha feito
o primeiro ano, eu tinha “feito” alfabetizado. E eu fui....minha avó ficou atrás de escola pra
mim e encontrou uma escola a dois quarteirões da nossa casa, foi o primeiro ano, a escola foi
inaugurada naquele ano e eu “fez” parte da primeira turma dessa escola chamada grupo escolar
Senador Paulo Sarasate, então eu fui para aquela escola a dois quarteirões, era bom porque eu
não precisava pegar ônibus, não precisava me deslocar, eu não sabia pegar ônibus, eu não sabia
andar em fortaleza e lá eu tive assim uma experiência muito boa porque conheci muitos colegas
dali e eu estudava com várias professoras, só tinha professoras naquela época, professora de
matemática, professora Beatriz, professora Maria do Carmo que era uma pessoa jovem, a
professora Eliene que era uma professora de Ciências, e outras, professora Rita que ensinava
estudos sociais, Moral e Cívica, aliás, e naquela época e eu então ia todo dia pra escola estudar
lá naquela escolinha e foi assim... eu ia quando começava o semestre, o Cipó ia desaparecendo
um pouco da minha mente... vamos dizer assim... da memória, daquela memória recente,
da...da...do...do... daquela memória assim, vai ficando um pouco trás, ai eu ficava me
envolvendo mais com a escola, com os colegas, com as brincadeiras, jogando bola na escola
que era uma coisa que eu gostava de fazer, jogava bola na escola, chegava da escola jogava bola
no meio da rua, naquela época não tinha nem calçamento, naquela rua, era...era... estrada era de
barro... quando chegava no último dia de aula, quando diziam assim: “hoje é o último dia de
aula”, no outro dia, quando terminava aquele dia de aula, eu já viajava pro Cipó e a minha
viagem pro Cipó era uma coisa fantástica, eu viajava em um velho caminhão de três boleias,
aquele que a gente chamava de misto, ...a gente chamava de misto, o misto, o transporte que
levava as pessoas de fortaleza ao Cipó e adjacências lá em Pentecoste. É... a minha ida pro Cipó
não passava por Pentecoste, ela ia pelo outro lado, era uma área completamente rural, não tinha
asfalto, ela ia pelo outro lado, então eu no outro dia já ficava desesperado, ansioso, pra esperar
o misto pra ir pro cipó, isso se deu vários anos, até aos meus 15 anos, eu sofria de uma ansiedade
terrível no dia anterior pra ir pro cipó e quando eu voltava, voltava chorando, o choro foi
diminuindo porque eu fui ganhando mais autonomia, porque no início, o meu avô, que era um
andante, ele ia e vinha pro Cipó muitas vezes, passava um mês lá, depois vinha pra cá, trazia
meio saco de feijão, trazia uns ovos de galinha, trazia umas galinhas pra cá pra ajudar, ele ia e
vinha então era ele que me transportava, meu avô começava lá no misto, esperando o carro ele
ficava comigo, me levava pro interior para a casa do meu pai, essa história do retorno, do meu
retorno durante as férias no interior é uma história muito forte para mim, ela tem uma força
muito grande dentro de mim porque era o momento do reencontro, naquela época, nós tínhamos
quatro meses de férias, era o mês de julho todinho e nós tínhamos também o mês de dezembro,
janeiro e fevereiro, eram quatro meses de férias e eu tive a oportunidade de vivenciar todas
aquelas práticas do interior nesses meses de férias, por exemplo, no mês de julho, eu já
começava a apanhar algodão, no mês de dezembro, janeiro e fevereiro a época de plantação,
quando a chuva chegava nesse período, eu plantava feijão, plantava milho, cheguei a limpar a
terra, não como o agricultor faz, mas como alguém que vai passar as férias e ajuda, então eu ia
com os trabalhadores, todo aquele serviço da área rural eu fazia, eu tinha prazer em fazer porque
eu gostava do interior, tinha uma coisa importante que a minha ida para o interior, a minha ida
para o cipó, ela tinha uma emoção muito forte, quando eu voltava parecia que eu voltava para
o céu.
Então tudo relacionado com o interior, todas aquelas coisas que estavam relacionadas com o
interior, todas as atividades, todas as imagens relacionadas com o interior, com o Cipó, aquilo
era agradável para mim, então até mesmo o trabalho duro, apanhar algodão, apanhar feijão,
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carregar lenha de... em cambito em jumento, fazer cerca, pastorar arroz que é terrível, aquilo
dali é terrível, a gente saia as seis da manhã para pastorar arroz e voltava as seis da noite porque
os passarinhos que comiam o arroz, eles não davam trégua, quando o sol saia, eles tavam ali
em cima, a gente tinha que está ali em cima, senão eles acabavam com o arroz na época em que
o arroz estava cacheando.
E o banho no açude que era maravilhoso, o banho no açude era uma coisa, o açude estava
recentemente construído, fundo e muito peixe e então eu começava... pescava e saia de manhã,
assim com um bisaco que a minha mãe fazia cheio de... botava as vezes minhoca, uma varinha
de marmeleiro com anzol e passava o tempo a manhã todinha, só num pescava mesmo dia de
segunda feira porque a turma dizia que era o dia do peixe, nesse dia do peixe a gente não
conseguia pescar, é.., mas é assim,... era uma vida muito gostosa aquilo dali. O meu retorno
para o Cipó era como se eu estivesse indo pro céu sem morrer...[risos] que é muito interessante,
ir pro céu sem morrer, sem passar pela dor da morte, eu ia, isso acontecia todo ano eu me
alimentava muito com isso. Me fazia suportar a dor de viver aqui em Fortaleza. Tava em
Fortaleza eu sonhava, sonhava, sonhava com o Cipó, quando chegava alguém do Cipó, da
região ali em Fortaleza, eu entreva em êxtase. No dia que meu pai, meu pai raramente
“entrava”... vinha uma vez por ano em Fortaleza, quando ele vinha por acaso visitar a gente ai
aquilo dali era uma alegria, eu não conseguia dormir de noite, minha mãe raramente vinha,
nunca vinha, a minha mãe só vinha em Fortaleza quando eu estava doente.
Quando eu estava doente ela vinha, mas era muito difícil, porque os transportes eram muito
difíceis, então eu, meu retorno era uma coisa maravilhosa e essa trajetória nesse misto levava o
que hoje uma viagem pro Cipó uma hora e meia, naquela época levava mais ou menos 12 horas,
a gente saia 11 horas mais ou menos, a gente saia daqui a 1h da tarde e chagava lá às 12h da
noite porque esse misto, ele vinha .... traziam porcos, eles vinham vender aqui e aqui
compravam coisas e eles voltavam comprando, iam pra Maranguape, passavam em
Maranguape, pocinhos, itapebussu, lagoa do Juvenal, ai entrava na mata, e... eu nunca me
esqueço dessas viagens, ficaram marcadas na minha cabeça, nunca me esqueço, está aqui na
minha memória e vez por outra eu faço essa trajetória de carro pra me lembrar disso, e.... eu me
lembro que as pessoas,...a princípio, eu ia com o meu avô e eu comecei a ficar maiorzinho, ai
meu pai...e eu ia sozinho e meu pai que pagava a passagem lá, conhecia o dono do caminhão,
o caminhão era de um sujeito chamado Edimar Ricardo, era filho do seu Ricardo, então ele
tinha esse caminhão e conhecia meu pai, não precisava pagar a passagem, meu pai pagava,
acertava lá com ele, e, então no caminhão, durante a viagem aconteciam muitas coisas, muitas
coisas mesmo, por exemplo, é é...quando dava 4 horas da tarde, 5 horas da tarde, começava um
programa de forró né, não lembro o nome emissora agora, mas um programa de forró era
chamado assim... Alô Sertão. E aquele programa servia para tocar o forró, as músicas daquela
época, mas ao mesmo tempo servia para mandar recados, as pessoas que moravam em Fortaleza
mandavam recado pro seus pais, diziam quando era que iam, o cara dizia assim: “alô seu
Chiquinho que mora lá na comunidade da Boa Vista, seu filho Francisco tá dizendo que vai
chegar lá no dia tal e que espere, mande um jumento esperar ele” ...eu sempre ficava assistindo
aquele programa que eram umas duas.., mais ou menos umas duas horas de programa, eu
sempre ficava em cima do carro ouvindo, o Edimar ligava o rádio e eu ficava ouvindo aquele
forró, aquelas músicas que nunca me saem da memória, que quando eu ouço aquelas músicas
pra mim é como se eu estivesse vivenciando novamente, e aquele monte de gente, uns sentado
outros deitados em cima da boléia, ela era assim, tinha três boléias, em cima tinha uns ferros
que protegiam assim, era uma espécie de tablado protegidos com os ferros e a gente se deitava
em cima, naquela época não tinha fiscalização de detran, então nós íamos lá em cima e entreva
na noite e aquele forró ai depois muitas e muitas vezes naquelas estradas rurais de noite, 6, 7,
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8, 9 horas da noite a gente deitado em cima do caminhão vendo o céu estrelado, vendo a lua
dependendo da época que a gente viajava né, então essas imagens nunca me saem da cabeça e
as vezes o motorista, o dono do caminhão levava o caminhão e e..ainda ia entregar gelo nas
festas a meia noite, nas festas no meio do mato, me lembro uma vez eu tava lá ...e as vezes o
cara chegou, o Edimar entregava o gelo e batia um papo com um, era uma pessoa muito
descansado, tranquilão... assim...demorava muito nos cantos, não tinha pressa pra chegar...né,
eu desesperado, ansioso pra chegar, achava aquela viagem...assim... acho que a adrenalina ia lá
em cima, esperando pra chegar no meu Cipó, ele nem ai né, fazendo amizade com um, com
outro e tal..o cara esperava um tempão pra resolver uma coisa e ele com muita paciência. Eu
me lembro que um dia ele chegou numa festa lá entregou o gelo e nada de sair e eu deitado lá
em cima da da do caminhão das boléias e de repente eu ouvi foi um tinido de faca, os cabras
brigando lá, e ai eu pufo! fui pra debaixo do encerado é qui aquelas festas no interior também
era muito comum as pessoas brigarem de faca né, cada um ia armado de faca né, gente muito
legal, mas quando bebia uma cachacinha, começa a ficar assim... qualquer besteira já começava
assim a brigar né, e eu fiquei assim desesperado com aquilo dali, fiquei escondido lá debaixo
né, e chegamos lá ele me levava pra casa do pai dele, o seu Ricardo, ai o seu Ricardo armava
uma rede pra mim, eu deitava, isso quando eu já era... quando eu já andava só, quando eu andava
com o meu avô, do mesmo jeito porque chegava tarde da noite ai quando chegava no outro de
manhazinha eu ia a pé pro sertão, pro Cipó, isso ficava mais ou menos 2 a 4 quilômetros da
casa do meu pai. De manhã cedo, eu ia então a pé. Mas nós tínhamos também outras vezes que
íamos com pessoas que iam da região de cipó e quando nós chegávamos em torno de meia noite,
nós íamos a pé, a noite até chegarmos na casa de meu pai. Quando tinha gente que conhecia o
caminho a noite que eu passava assim quatro meses sem ir lá, as vezes mudava a paisagem,
porque o açude as vezes estava cheio, as vezes tava seco, então tinha um jeito diferente de
chegar lá e eu ia então, me lembro que uma vez um sujeito chamado Ademar, o seu Ademar,
era um homem já de seus setenta e poucos anos, cego, completamente cego, ele não enxergava
nada, mas ele tinha de cor o caminho todinho, ele sabia por onde ia, quer dizer, ele ia guiando
a gente, ele era cego, mas ele guiava a gente na noite escura. Nesse dia, eu nunca me esqueço,
nós chegamos assim no rio, fomos passar os rios, por sinal, os riachos e era uma noite de lua
cheia, lua batia assim naquela mata seca, naquele rio seco, naquela areia, dava um prateado
especial e eu cheguei na casa de meu pai por volta de 1ou 10 da manhã e lá quando a gente
chegava, quando eu chegava, o cachorro, normalmente a gente criava cachorro, o cachorro
vinha me procurar e ficava latindo com muita alegria, chegava 1 hora da manhã, batia na porta,
o meu pai, a minha mãe abria e aquilo, aquilo assim, eu, eu cheguei no céu e quando eu chegava
na casa de meu pai tinha uma sala, nós dormíamos na sala, eram 10 irmãos e na casa de meu
pai. Hoje é um casarão, mas naquela época era uma casinha pequena né e quando eu chegava
lá, minha mãe armava aquela rede na sala, a gente chamava de fianga aquelas redes armadas
naquela sala, um monte de meninos assim aquelas trempes, ...e eu me deitava naquela sala no
sentido leste oeste da sala né porque já era o mais preferido, porque era o filho mais velho e
tinha chegado de Fortaleza né, isso eu com 12, 14, 15 anos né, ai eu dormia ali naquela rede lá
no meio da sala. Então quando eu chegava a noite chamava o nome do papai, papaiii,
mamãeee...então eles abriam a porta e eu lá naquele quarto cheio de menino dormindo e a noite
eu ficava assim, menino dorme rápido né? Mas aqueles 2 a 3 minutos antes de dormir, eu ficava
fazendo oração pro dia amanhecer logo, pra eu começar a vivenciar o Cipó e o dia amanhecia
e assim, começava logo com aquele café maravilhoso... que a minha mãe fazia, tudo
completamente diferente daqui de Fortaleza, minha mãe tinha o hábito de manhã cedo fazer o
café preto, o café puro, sem comer nada só aquele café mesmo, vinha aquele café ai depois as
9 horas tinha aquela merenda né..que era um café também bastante forte com tapioca ou então
um café com batata, batata com leite ou então com jerimum com leite, ou então com pão de
milho e ai a minha barriga começava a se transformar né... antes em Fortaleza, a vida era
357
diferente, em Fortaleza, assim, tinha o café preto de manhã com um bico de pão, um pedacinho
de pão, pão francês, corta um pedacinho, cada um recebia um pedacinho, aquilo era a merenda,
isso era café e merenda ao mesmo tempo e o almoço era um arroz e as vezes, com muito
privilégio, um bife do oião que era um ovo frito, um ovo estrelado, é..raramente a gente tinha
uma galinha pra comer né, feijão, eu não gostava muito de feijão, mas era assim um prato
predileto das pessoas, dos meus avós, né, eles gostavam muito de feijão, a comida do interior.
E... assim, o jantar também uma coisa muito simples e eu ficava.... eu diminuía, a barriga
diminuia de tamanho, eu ficava assim... quando eu chegava no interior, lá na casa do meu pai,
ai era uma fartura, meus pais eram pobres, mas eram pobres que criavam capote, minha mãe
chegava a criar 300 capotes por ano. Criava galinha, criava pato, peru, ovelha, gado, né? Então
a gente comia ... todo dia se comia, uma galinha, comia capote, comia de tudo e comia farto,
né, olha, adolescente comendo muito em fase de crescimento, nunca deixava nada na mesa o
que sobrava, eu comia tudo, e ai quando terminavam as férias eu tava com o estomago
acostumado a comer muito quando eu voltava pra Fortaleza, ai a coisa era diferente, Fortaleza
eu tinha que reeducar o estômago a comer pouco, ai era um sofrimento até eu reeducar aquilo
dali. Mas ai quando eu chegava no Cipó era só maravilha, uma maravilha mesmo, fazia de tud,
brincando com os meus amigos, tinha o Riba, o Riba Pontes, o Chico Pontes que eram os dois
amigos que eu tinha que moravam ali encostado numa casa vizinha a nossa, e jogando bola a
partir de duas horas da tarde começava a jogar bola né, era jogo de bola, minha mãe, meu pai
nunca gostaram muito desse negócio de jogo de bola, tinha uma preocupação não sei por que,
e a minha mãe diziam vocês não podem jogar bola agora não, ai ela marcava: “quando a sombra
chegar ali naquele ponto, você pode jogar bola”, ai eu ficava com a bola na mão, debaixo do
braço olhando pra sombra né, esperando a sombra chegar, e a sombra chega num chega, quando
a sombra chegava, eu botava a bola debaixo do braço, corria pro campo e lá juntava a meninada,
a meninada eram poucos meninos, mas tinha ai a gente ia jogar bola, aquele joguinho besta pra
lá e tal não era jogo assim de time, e pescaria era uma negocio maravilhoso, naquela época, o
açude não estava assoreado e saia no riacho pegando minhoca e pescando pegando camarão e
pescando... que a gente chamava de enfieira, era uma linha naylon, um pedaço de arame na
ponta ......que enfiava na ponta e amarrado na então eu pegava e amarrava aqui (Gestos: na
cintura, no cós da roupa ) e saia dentro do riacho e saia dentro d’água andando e pescando,
quando eu pegava o peixe, arrastava pegava a enfieira aqui botava....e amarrava e saia e os
bichos ficavam tudo vivinho aqui dentro quanto terminava e chegava em casa ai a minha mãe
tinha preparado um almoço especial e aquela fome, diz que quando a gente está dentro d’água
dá mais fome comia e depois do almoço deitava, dormia e acordava as 3 horas da tarde com o
cheiro do café donzelo, sabe como é o café donzelo, o café donzelo é o primeiro café, naquela
época o meu pai comprava o café cru, a semente de café, ai a minha mãe torrava o café botava
açúcar, tinha um caco assim bem grande, um tacho e botava o café, botava o açúcar e ficava
torrando o café com açúcar. Quanto estava no ponto ela pilava as sementes, ficava bem
crocantezinhas, pilava e ai o primeiro café que você tira com todo aquele cheiro, aquele café é
chamado donzelo, a região toda sente o cheiro. O café tá com todo o cheiro, não perdeu nada,
está com todo o cheiro, tomava aquele café a tarde, muitas vezes com tapioca né? Nem se ouvia
falar de pão, pão não existia negocio de pão, o que aparecia as vezes eram umas bolachas doce,
umas bolachonas grandes assim [gestos], que a gente comia, botava dentro do leite, leite quente
ai as bichas se desmanchavam assim [gestos], então são as minhas lembranças daquela época,
uma coisa também que não me sai da memória, eu tinha 3 tias do meu pai que moraram lá que
foram mães pra mim. Eu tive o privilégio de ter 5 mães, aliás até mais porque tinhas as tias do
meu pai né que me amavam, que me adoravam, elas moravam com o meu pai, a tia Sinhá, a tia
Alice, a tia Silda, a tia Sinhá era viúva, a tia Silda e tia Alice não casaram e quando eu cheguei
logo no Cipó, criancinha eu tinha duas meninas, pequenas mocinhas que eram a Ceci e Araguaci
que cuidaram de mim também, ajudaram a minha mãe a cuidar de mim também. Eu tinha
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também a minha avó que foi pra mim uma mãe muito forte pra mim, então ali, as minhas tias
faziam tudo o que eu queria ali no interior e aqui em Fortaleza a coisa era um pouco diferente,
minha avó me adorava, mas eu tinha que concorrer com as minhas tias, muitas delas não
gostavam, tinham muito ciúme de mim porque a minha avó era uma pessoa que...ela guardava
a minha comida, fazia tudo pra mim e as minhas tias não gostavam muito disso e não era muito
legal, então eu vivia assim... meio..., fazia um jogo de cintura.
Quando eu chegava na minha casa, eu era um príncipe, todo mundo, tudo faziam as coisas pra
mim, até porque eu era um visitante, da casa eu era o visitante! Então eu me lembro que a minha
tia Alice que era a mais apegada de todas, ela fazia...fazia garapa de açúcar pra eu tomar de
noite, eu ia dormir e ela fazia aquela garapa de açúcar, garapa de açúcar acalma e tal..e..elas
eram maravilhosas pra mim, então essa...esse período assim do interior está associado a tudo
quanto é de bom na minha vida, não há nada no interior que eu possa dizer que tem... tenha sido
naquela época no Cipó o que foi de ruim que aconteceu, procuro na minha memória e não
consigo lembrar, uma fase muito boa da minha vida né, e isso, essa vivência, essa experiência
na...no Cipó junto com essa quebra, essa saída construiu tudo aquilo que eu sou hoje, tudo, tudo
o que eu sou e tudo o que eu faço, tudo o que eu faço, todas as coisas que eu faço hoje na minha
vida estão relacionadas com aquele período, com aquele interior, com aquele lugar, com aquele
espaço, com aquele tempo, e como.... tudo, tudo, assim a minha missão, a minha profissão...a
minha...o meu trabalho, aquilo que eu fiz na minha pesquisa na universidade, tudo tá
relacionado com o interior. É..eu..tenho uma ...uma ligação visceral com aquele... dizem
que ...eu não nasci lá no Cipó mas se tivesse nascido lá é é.... talvez alguém tivesse me dito que
o meu umbigo teria sido enterrado lá na porteira do curral né...porque eu nunca consegui me
desligar de lá. Como eu falei pra vocês os meus sonhos, eu sonhava, a noite, aqui em Fortaleza,
eu sonhava com o Cipó, eu imaginava voando... eu me imaginava, voando e eu olhando as
pessoas no Cipó, e....aqui, então foi assim uma coisa maravilhosa né? E... o tempo foi passando
eu fui ficando mais velho, eu fui ficando...amadurecendo, a infância foi desaparecendo né....eu
comecei a ver outras coisas, comecei a conhecer outras pessoas, a minha cabeça começou a
mudar, é...e...eu...eu tive muitas experiências na minha vida aqui em Fortaleza, née.. passei por
muitas situações assim...é...situações não muito alegres né, coisas tristes né..., eu me lembro
que eu queria muito que o meu pai viesse pra Fortaleza, viesse morar em Fortaleza, existia uma
certa... depois já sei lá de eu já com 17 anos, em torno de uns 16, 17 anos, eu já, eu já tava
acostumado com Fortaleza, muito ligado com o cipó, mas eu sentia muita falta dos meus pais,
da minha família, quando meu pai vinha me visitar eu pressionava ele pra ele vir, pra ele vir pra
Fortaleza, pra ele arranjar uma casa aqui e vir morar aqui, apesar de gostar tanto do interior, eu
queria tanto estar com os meus pais, eu tinha tanta, uma inveja tão grande dos meus amigos que
tinham, moravam com os pais né e eu não morava, inveja deles, assim, eu queria que, eu queria
ter meu pais aqui. E..ee..meu pai era vaqueiro, meu pai cuidava de gado, meu pai tinha um amor
muito grande, ainda hoje tem pela aquela terra, pelo Cipó, pela propriedade dele, pelas vacas
dele, pela...pelo que ele fazia entende?... jamais poderia passar pela cabeça dele a ideia de se
mudar pra vir morar em Fortaleza. Pra ele era uma coisa..era assim..era uma coisa sem sentido
né..e eu uma vez me lembro que eu fui falar com ele sobre isso, dele vir pra cá, dele..não era
nem de ele vir pra cá, mas dele comprar uma casa aqui, a gente queria que ele viesse, mas a
gente queria uma casa, um local onde ficar, refletindo bem era uma mistura, uma vontade de ter
os pais aqui, mas também a vontade de ter um lugar nosso porque eu morava na casa dos outros,
morava na casa da minha avó, mas minha avó, apesar de todo o carinho que a minha vó tinha
por mim, mas eu morava em uma casa em que eu dormia por último e acordava primeiro, porque
eu não tinha um quarto pra dormir, eu dormia na sala, então eu era o último a dormir porque
não podia armar a rede no meio da sala tinha que esperar todo mundo dormir, era o primeiro a
levantar porque quando as pessoas levantavam né tinha que...então eu queria que ...graças a
359
Deus que o meu pai não veio morar aqui, é.. graças a Deus, foi muito bom não ter vindo, se
tivesse vindo a nossa história teria sido completamente diferente, é... aqui uma coisa muito triste
que eu passei foi aqui em Fortaleza foi o que eu chamo de a doença da tristeza, eu tive a doença
da tristeza, hoje eu entendo como a doença da tristeza. Certo dia apareci com uma dor nas costas,
uma dor aqui do meu lado esquerdo e...é...a dor começou a aumentar e começou a incomodar
e... aquela dor incômoda e...então...começa os familiares que entendem de alguma coisa
começam a dar ...menino vamos...tome um chá, ...chá disso ai depois vamos tomar...a minha
avó, no interior o pessoal tem ..que uma limpeza intestinal cura várias dores né, não sei se vocês
sabem mas um remédio...um santo remédio no interior é o que eles chamam de azeite de
carrapato que é o óleo extraído da semente de mamona, eles pegam as sementes, eles
colocam...trituram a semente e ai colocam na água lá e aquece e ai aquele óleo depura e eles
tiram o óleo e tem um... toda uma ciência de preparar isso e o cara prepara aquela...aquele azeite
e guarda para remédio e é um azeite que ele... o azeite de óleo de mamona é extremamente
tóxico, mas como eles fazem o aquecimento, colocam ele no fogo, a toxina se decompõe e ela
deixa de ser tóxica, assim..tem uma toxina letal, ela passa a ser tóxica, mas não é tão letal. Então
a pessoa quando está com algum problema, uma dor, uma dor aculá uma coisa assim, diz-se
toma uma colher de azeite de carrapato, ai você toma uma colher de azeite de carrapato é laxante,
ai o sujeito, é..é...laxante, a pessoa fica bem, até porque realmente no passado os médicos
entendiam que um dos maiores problemas da pessoa era a pessoa não conseguir defecar direito
e tal e aquilo dali causa doenças, como de fato é verdade, dai vem aquela palavra “infezado”
né, uma pessoa enfezado é uma pessoa cheia de fezes né? Que tá lá né...fica de mal estar...e
então tomava aquelas colheres de azeite de carrapato e tinha lá você toma uma, toma duas, toma
três, quando tomava tinha de ficar em repouso absoluto porque pra curar você tinha de ficar em
repouso absoluto ai lá vou tomei azeite de carrapato, lacto purga, leite de magnésio, todo esse
tipo de coisas, mas a dor não passava e eu era...tinha mais ou menos uns 15 anos, ai vamos ao
médico, o médico disse é rins e ai tome remédio pros rins, remédio urupol, tomava o remédio
e urinava vermelhoo...e a do não passava, ai meu pai...minha mãe tinha uma irmã que trabalhava
com um deputado, deputado Gomes da Silva e era de dentro da casa do deputado e a minha tia
gostava muito de mim, então me levou lá pra casa e eu fiquei lá na casa dele. E ele mandou
chamar o médico particular dele naquela época era o Dr Lúcio Alcântara que foi governador e
o doutor Lúcio Alcântara me examinou e disse,...não, me levou pro São José aquele hospital
que hoje trata de doenças contagiosas, fui pro hospital São José e passei...cheguei lá e eu me
lembro que a enfermeira disse: “olha, você...foi me ajeitando e disse: “Você vai ficar internado”
e eu fiquei internado lá uns três dias eu não tinha tido febre ainda, era só aquela dor incômoda,
mas lá no hospital eu dei uma piorada, assim, eu tive uma febre de noite e tal..e..o diagnóstico
– pneumonia, diziam que eu tinha pneumonia, mas a verdade, era um diagnóstico confuso, as
pessoas diziam que eu tinha pneumonia, mas não tiravam raio x, não tiravam nada e diziam que
eu...é...três dias depois me mandaram para casa, “tenha cuidado”, eu tomei uns antibióticos lá
e tal fui pra casa, e ai depois fiquei bom, mas fiquei com medo daquela dor e tal e eu digo hoje
que era a doença da tristeza. Era uma doença que você...eu não tinha característica de
pneumonia, mas eu tinha...me disseram que eu tinha pneumonia porque tinha de ter uma doença
né, passei esses dias lá e vim pra casa e nunca mais senti essa dor e pronto, e assim apareceram
outras dores que eu fui associando as dores da tristeza. A ausência de... uma pessoa que tem
muita saudade, que vive de melancolia, que tem alguns distúrbios emocionais e tal. Então minha
mãe veio cuidar de mim quando eu sai do Hospital, eu me lembro muito bem disso, ai ela fazia
aquela comidinha especial, do jeito dela, e... eu me lembro que quando a minha mãe chegou,
eu choreiii e eu chorei tantas vezes e eu percebi que aquele choro me deu um alívio, sabe?
Sentindo falta da minha família, éé... eu vejo hoje tantas pessoas que não tem pai, que não tem
mãe, que vive fora e eu me lembro de uma vez que eu tava na casa de meu pai e o meu sobrinho
de mais ou menos uns cinco anos estava em uma rede chorando, ele chorava, chorava, chorava,
360
e a turma dizia: “o que é que esse menino tem que tá chorando?” ele tinha os pais separados,
ele não vivia mais com os pais e eu me lembrei daquilo, puxa vida!, eu me lembrei daquele
choro pela ausência das pessoas, e...mas eu fui me acostumando com vida em Fortaleza, fui
me acostumando e fui estudando, estudando nessa escolinha no Paulo Sarasate, depois eu sai
do Paulo Sarasate porque lá era só até o quinto ano e fui fazer o sexto ano no Ginásio Nordeste
e era um ginásio...ele era uma escola particular, mas era uma escola particular e a gente podia
estudar porque naquela época, o governo estava distribuindo bolsas, eles estavam querendo
melhorar, é...fazer com que os estudantes fossem pra escola e ao invés de investir na escola
pública e ai ampliar as escolas, ele resolveu dar bolsas pro pessoal irem para as escolas
particulares...isso ajudou muito as escolas particulares porque elas cresceram muito e eu ganhei
umas bolsas porque meu pai era ligado a esse deputado e votava nele, ai então eles distribuíam
bolsas e ai eu ganhei essas bolsas pra ir pra escola no Ginásio, no Ginásio Nordeste. Quando...
quando... é... estudando no Ginásio Nordeste, eu.. eu... inventei de trabalhar porque havia uma
pressão muito grande na minha família pra eu trabalhar, porque filho de pobre tinha que
trabalhar, principalmente as minhas tias, tinha que trabalhar, meus primos... eu tinha primos que
moravam com a gente foram trabalhar, já com 15 anos estava trabalhando... “olhe seu primo
está trabalhando, já tem quinze anos já e já está trabalhando, você tem que trabalhar também.
Eu não vivia com meu pai e minha mãe, minha queria “você tem que estudar” mas as minhas
tias diziam assim: “você tem que trabalhar” até porque as minhas tias sustentavam a casa, elas
trabalhavam e elas traziam... botavam as coisas dentro de casa, então ter um cabra de quinze
anos dentro de casa sem trabalhar era muito ruim, elas queriam que a gente trabalhasse né?
Algumas né, tinha assim as mais velhas iam trabalhando ai iam se casando, as mais novas iam
trabalhando e ai iam se casando e sempre tinha uma mais nova que ia trabalhando e ia
sustentando a casa, meu pai não tinha aquele rigor de mandar comida toda semana, todo fim de
mês, até porque era difícil transporte. Quando vinha ele trazia meio saco de feijão, mas trazia
uma galinha, trazia umas coisas, mas não tinha aquele .....então elas diziam vai trabalhar e eu
fui inventar de trabalhar, com 15 anos eu fui inventar de trabalhar numa empresa chamada Santa
Lúcia, fui ser auxiliar de torneiro mecânico, ai eu ia trabalhar, trabalhar ajudando no turno lá,
auxiliar na fundição, e...era uma empresa de tecelagem né, mas meu Deus! Eu não sei...eu não
aguentava, tinha que sair de manhã cedinho, já levava o almoço pronto e almoçava lá, ai
estudava a noite, chegava a noite eu não conseguia estudar, estudava dormindo, não tinha
interesse pelos estudos, e acabei saindo do trabalho e continuei...fui...continuei estudando.
Depois eu fui inventar de...necessidade de ganhar algum dinheiro e já tava começando a
namorar e tal, tinha que levar a namorada pro cinema, comprar uma roupinha né? Ninguém
comprava roupa, eram doações, as pessoas que davam pra gente e eu fui então inventar de
vender maçã na praça José de Alencar, ai vendendo maçã na praça José de Alencar, eu
cheguei...tinha um japonês lá e...ele entregava a caixa de maçã pra gente. Tinha dois amigos
que faziam isso e ai me levaram, a maçã tinha aquele cheiro, eu pegava a caixa de maçã e sentia
aquele cheirinho de maçã, botava a caixa na cabeça e entrava no ônibus pela porta da frente
saia pela outra oferecendo, mas na praça José de Alencar, tinha uns pontos que vendiam, quando
você encostava, tinha um negócio, parecia um imã, você encontrava ali,...apareciam muitos
fregueses pra comprar, mas esses pontos eram muito apresentados, e os guardas da prefeitura
que a gente chamava de rapa, eles perseguiam a gente, quando você chegava ali era proibido
vender, então eles chegavam e você tinha que correr, então você tinha que ficar se escondendo
dos guardas. Um dia eu tava ali naquele ponto um cara pegou uma maçã, outro cara pegou outra
maçã e eu muito satisfeito, baixa uma Kombi cheia de guardas ali na general Sampaio e eu aqui
quase na esquina com Guilherme Rocha em frente o IAPB ai eu fui olhando assim, a Kombi foi
baixando assim uns 50 metros e os guardas partindo em minha direção, eu só fiz peguei a
caixinha botei na cabeça, sai na general Sampaio, entrei na galeria Pedro Jorge, sai na Senador
Pompeu, voltei na Liberato Barroso, vim diretamente pra Liberato Barroso, depois da 24 de
361
maio cheguei pro seu fulano lá que eu não me lembro o nome dele “pode pegar sua caixa que
eu não vou mais vender maçã não” “porque?” “não porque os caras tão me perseguindo e eu tô
me sentido como se eu fosse...como se estivesse fazendo coisa errada, como se eu fosse um
ladrão” e eu com aquela ética toda que fui ensinado na minha família, não aceitava ser...é como
se tivesse correndo com medo da polícia né. Pronto, deixei de vender maçã. Ai fui morar com
o meu primo; tinha saído da casa da minha avó, temporariamente pra passar uns dias na casa
do meu primo e meu primo, ele morava num sítio, meu primo Irandir que gostava muito de
mim e a Araguaci que tinha sido uma daquelas moças que tinha cuidado de mim quando eu era
pequeno lá no Cipó, chegando lá, meu primo trabalhava nesse sitio lá, era motorista da dona
Célia Pinheiro e do Dr. Ernandes, um pessoal muito rico né, é..tinha sítio grande ali na Serrinha,
eu fui pra lá, chegando lá, é.. já comecei a trabalhar ali, ajudando no sitio né, ai a Dona Célia
disse: “olhe você não quer morar comigo lá na Aldeota, na Visconde de Mauá, num apart..tinha
uma casa lá, você pode me ajudar no jardim” ai eu fui pra lá pra ajudar pra ganhar um dinherim,
fui, fui ser jardineiro lá, ai lá eu ia buscar um leite que vinha da fazenda deles todo dia, vendia
o leite na vizinhança pra eles e cuidava do jardim, aguava as plantas, faziam umas coisas,
comprei uma bicicleta, ele me ajudaram a comprar uma bicicleta e eu ia de bicicleta pra aula,
eu já tava fazendo o ensino médio ai. Fui de bicicleta toda noite e voltava pra trabalhar lá. Passei
uns tempos mais ai, é...assim,..me aborreci um pouco porque era um pessoal muito rico e eu era
um cabra matuto do interior, então tinha hábitos do interior e aquilo causava um certo
aborrecimento a eles, eles, eles ... e eu resolvi sair , ai sai, sai de lá isso era..tinha mais ou menos
uns 16 anos, mas eu tinha aquela pressão da família, de trabalhar, tem que trabalhar, então eu
fui, dai eu fui ser o exército, isso quando eu tinha 18 anos, passei um ano no exército, ai perdi
um ano de aula porque eu não consegui estudar enquanto estava no exército. Sai do exército, ai
fui vender enciclopédia, Delta Larrouse, Dicionário Caldas Aulet, Enciclopédia Mundo da
Criança, ai eu sabia demonstrar, esses verbetes que tinha aquele dicionário, que tipo de papel,
aquela coisa toda, mas eu não me sentia muito bem vendendo, não me sentia muito bem
vendendo não porque os caras, ...chegava na porta, “não eu não quero comprar livro não!”, não
quero comprar livro e tinha que ser insistente. Sai com os meus colegas que eram vendedores
profissionais, o cara botava o pé na porta e dizia: “não eu tenho uma coisa maravilhosa para
mostrar”, inventava uma história até entrar e acabava vendendo né, mas eu não tinha
aquela...porque a minha auto estima, ela era muito baixa, eu era um cara do interior certo, assim,
morava...não morava na casa dos pais, então se você dissesse um não pra mim eu já virava a
cara, não, aquele enfrentamento aquela capacidade para enfrentar porque o vendedor ele tem
que ter a auto estima bastante elevada, ele não pode....o cara disse não você tem que insistir,
insistir né...e eu disse não, num dá pra mim não. Acabei saindo também.
E ai nessa história eu tinha, nesse... mas ou menos no período eu consegui encontrar uma pessoa
que foi... um rapaz, um jovem que... ao conhecê-lo ele me convidou pra fazer....ele chegou pra
mim e disse: “ei... você não quer participar do nosso grupo?” Eu disse mas pra fazer o quê? Ele
disse: “pra estudar. Você num”...ai eu disse: mas estudar...eu...Ele disse: “o que é que você mais
gosta de estudar” ai eu disse olha eu gosto muito de Biologia, ele disse: “pois então você vai
ser a pessoa responsável pra nos ensinar Biologia. Nosso grupo é assim, cada um tem uma
função. Cada pessoa tem uma função”. E então eu fiquei maravilhado com aquilo sabe? Pensem
bem, fiquei maravilhado porque, primeiro eu era uma estudante, um cara sem né... que não
sabia nem o que era universidade, eu não tinha...eu estudava porque a minha vô dizia: “meu
filho estude pra você ser alguém na vida!, meu filho estude que se você estudar você vai ter um
bom emprego!”. Ela dizia aquilo cotidianamente! Cotidianamente ela falava isso pra mim,
“estude pra que você possa ter um bom emprego! Ter um bom trabalho!” né... e eu estudava!,
eu ia a escola, eu..eu fazia uma coisa, não era um estudante...um bom estudante, e tal, então que
é que eu...quando eu encontrei esse rapaz ele tinha um grupo de estudo, ele entrava,.. ele... ele
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se reunia em vários lugares, ele tinha um não, ele tinha vários, o Flávio.., o Flávio tinha vários
grupos de estudos e ele era um cara muito inteligente, mas eée..além da inteligência, ele tinha
uma capacidade de articular pessoas, era muito sorridente, muito amigo, muito alegre certo? E
ele conseguia convencer as pessoas e contagiava as pessoas com aquela alegria dele e com
aquele estímulo para estudar, estudava muito, mas ele estudava sempre com as pessoas e quando
ele me chamou pra participar do grupo dele e di.... me deu uma função e que eu fui estudar e eu
vi que aquilo que o que eu estava estudando era útil para alguém, aquilo foi..fez uma grande
diferença na minha vida, muito, muito, muita diferença! Porque eu percebi que se eu aprendesse
alguma coisa, aquilo era útil para alguém e eu comecei a ficar feliz e satisfeito com o grupo, e
dai, dai isso, isso fez uma grande diferença na minha história de vida porque foi nesse grupo de
estudo que eu aprendi muita coisa sobre a universidade, o que era universidade, a importância
da universidade, do que era o vestibular, como fazer o vestibular, como..quantas provas tinham,
o quê que a gente tinha que observar no vestibular, certo? ee..porque esses jovens eram jovens
de vários lugares, então eles tinham....nós compartilhávamos experiências e conhecimentos. O
que ele sabia, ele passava pra gente, o outro também já passava outra coisa, nós vivíamos assim
fazendo esse compartilhar, o que eu compartilhava? Aquilo que eu sabia de biologia, mas eu
compartilhava das minhas histórias de vida, meu jeito de ser. Isso aparentemente não tinha valor
nenhum, mas para aquele grupo tinha, nós compartilhávamos os nossos sonhos, nós dizíamos
o que é que queríamos ser, e quando a gente tava passando por uma dificuldade, tinha algum
medo, a gente naturalmente, sem muito arrodeio, sem muita conversa, sem muita sofisticação,
nós compartilhávamos aquilo, às vezes tava chateado...ei cara, tô chateado ou então dizia assim:
“não tô muito a fim, não sei o quê, acho que não vai dar certo pra mim, acho que não vou passar”
e um dizia lá: “não mas tem ... e começava com aquela conversa..a gente...aquelas tristezas,
aqueles momentos depressivos iam passando porque nós tínhamos com quem compartilhar.
Criamos um círculo de amizade legal e nós, nesse mesmo período, eu tive a grata satisfação e
o privilégio de conhecer o Barroso que era o filho do Dr. Domingos Braga Barroso lá de
Itapipoca, um professor, ex-professor já aposentado da ..do Liceu do Ceará e esse professor, ele
tinha uma escola, uma escola que ...é....ele tinha sido professor do Liceu, mas ele tinha uma
escola, ele morava no Liceu, na praça do Liceu, e nessa praça do Liceu, ele tinha uma... atrás
da casa dele, tinha uma escola abandonada, então, nós nos reunimos lá e eu comecei a passar
mais tempo lá do que na casa da minha avó, comecei a ficar mais tempo do que na casa da
minha avó porque lá a gente estudava e tal e...ele vendo o nosso esforço, ele comprou uma
geladeira botou lá e botava comida pra gente, botava frutas, verduras, umas coisas pra gente e
ai, eu, as vezes, almoçava na casa do Barroso, me levava pra almoçar lá, então eu fiquei
vivendo... eu passava de 15 dias sem ir na casa da minha avó, só ia lá, as vezes levando as
roupas pra minha tia Zira lavar e eu pegava as roupas de novo e voltava e as minhas tias diziam
assim: “olha esse menino tem que trabalhar, ele tá vagabundando, tá...não tá fazendo nada!”,
eles não sabiam nem onde era que eu tava, eu tava dizendo que...eu não dizia nem que tava
estudando porque elas não entendiam né? E eu...Então eu fiquei, fiquei lá estudando, isso.. eu
tava... nessa época, eu tava fazendo o meu terceiro ano, terceiro ano do ensino médio, tava
concluindo, eu tinha uma bolsa, ganhei uma bolsa pra um colégio, um cursinho chamado
Esquema que também era uma escola, mas eu não ia a aula, eu ficava estudando com os meus
colegas, não ia a aula, não aguentava assistir aquelas aulas, não aguentava de jeito nenhum,
estudando com os colegas. A diretora lá, a pessoa responsável, ela dizia pra mim, ela dizia que
ia ser reprovado e eu dizia não professora e tal...eu ia lá fazia as provas de vez em quando como
era a escola particular, era uma escola particular, mas não era...era uma escola particular...era
uma empresa, uma empresa, inclusive uma empresa não muito boa porque era uma empresa
que pra ganhar bolsa e pra ajudar as pessoas, os meninos lá, mas eles não tinham aquela
responsabilidade de uma escola normal, naquela época tava um bum dessas novas escolas, né
que para pegar as bolsas do governo, mas eu estudando, lá de manhã, de tarde e de noite, vinham
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vários estudantes estudar e eu praticamente morava naquela casa, me lembro que tinha um
colchão velho lá, e a gente ....eu deitava no colchão e dormia lá, naquele período.
1. Vídeo 20171030_152402
mãe muito nova. Meu pai sempre trabalhou na agricultura, plantando e no gado, revendendo
gado. Minha mãe cuidava da casa e ajudava meu pai na agricultura. Minha rotina na infância é
que eu parei de estudar pra ir trabalhar desde novo. Quando começava a chover eu ia ajudar a
plantar, limpar mato, desde os 7 anos de idade comecei a trabalhar no campo. Quando meu pai
não estava viajando, comprando gado, ele trabalhava mais comigo, porque meus irmãos eram
menores. Quando meu pai estava viajando, quem ia para o roçado comigo era o Zé Chico e
também tinham outros. Com 15 anos de idade eu já tomava de conta do trabalho, por exemplo,
eu tinha 5, 6 trabalhadores que eu levava para o serviço. Eu tomava de conta da fazenda, meu
pai passava mais tempo viajando comprando gado e eu ajudava mais na parte do plantio. A
gente comia basicamente arroz, feijão, queijo, farinha e rapadura, às vezes tinha carne, mas era
muito difícil. À noite a gente ia debulhar feijão no alpendre e ficava conversando. Os vizinhos
iam para lá e ficavam debulhando feijão e contando histórias. Às vezes a gente ia brincar no
terreiro, brincar de bandeira, esconde-esconde. Normalmente os fazendeiros plantavam algodão
e no período seco botavam o gado, faziam uma associação entre a agricultura e a criação de
gado extensiva. Os proprietários de terravam davam a terra para os moradores plantarem feijão
e milho, e o algodão era de metade, então boa parte do feijão e milho ficavam para quem
plantava e o algodão era dividido. No final o proprietário ficava com o pasto para o gado. A
propriedade onde minha família morava era nossa. A casa na fazenda era próxima ao local de
trabalho, a gente morava próximo à represa do açude. No período chuvoso a gente ia pescar e,
quando a água baixava, ia surgindo a terra do plantio, as várzeas. Normalmente no interior não
tinha terra para plantio porque a terra seca, mas nós tínhamos as terras das várzeas do açude.
Quem morava com a gente eram as três irmãs, tia Alice, tia Sinhá e a tia Silvia. A tia Alice era
como se fosse uma mãe pra mim. Todos os filhos que nasceram foram cuidados pelas tias e se
apegaram a alguma tia, no meu caso, foi a tia Alice. Ela não era minha madrinha, nós éramos
de família protestante e não tem isso de madrinha e padrinho. Sempre gostei de lá onde eu cresci.
E o trabalho, pra mim, não foi sacrifício, sempre gostei de trabalhar, fazia com o maior prazer.
Teve um período, na seca, que eu ficava até às 10, 12 horas da noite aguando as plantas, eu
tinha uns 15, 16 anos. Eu gostava do trabalho, mas sempre tive vontade de estudar, mas não
tinha mais para onde ir, a não ser que eu me deslocasse de uma cidade para outra. No meu caso,
eu me envolvi com o trabalho, então se eu saísse eu deixava de trabalhar. Eu queria terminar os
estudos, mas, no meu caso, quando o meu pai viajava eu que ficava tomando de conta de tudo.
2. Vídeo 20171030_155715
Sempre trabalhei no meio de adultos. Era interessante, porque no início eles não queria me
respeitar quando eu fui crescendo e assumindo as coisas, depois eu fui me impondo e chegou
um momento que eles me respeitaram. Eu tinha 16 anos e fui assumir a gerência do açude. Eu
trabalhava até meio-dia e à tarde eu pegava alguns que iam trabalhar e pagava para eles
plantarem feijão. Meu avô me ajudava na gerência. No período de seca a gente alistava as
pessoas e elas iam trabalhar na construção de estradas e açudes nas fazendas e eu administrava
esse processo. Meu avô e meu pai trabalharam na construção do açude Miranda. Eu sempre
gostei de estudar. Antes de eu ir para a escola, quem primeiro me alfabetizou foi minha tia Sinhá.
Depois tinha uma casa ali próximo, onde hoje é o PRECE, a casa da dona Rita, lá tinha uma
escola e a gente ia para lá ter aula com a Zizi. Era uma casa normal, a gente estudava na sala,
eu e algumas outras pessoas. Meus irmãos vieram pra Fortaleza aos poucos para estudar. O
Andrade veio logo novinho pra casa da minha vó estudar, ele ficava um tempo em Fortaleza e
nas férias ia para o interior. Ele contava histórias em relação aos estudos e isso nos motivava a
estudar. Eu queria estudar, quando é jovem você tem vários sonhos, mas só tive a oportunidade
de estudar até a quarta série, tendo repetido três vezes só pra continuar estudando, pois não
havia oferta de outras séries. Nessa época da escola eu trabalhava um período e estudava no
365
outro. Desde novinho eu já acompanhava onde meu pai ia, era uma diversão. Meu pai trabalhava
com compra e venda de gado, e eu sempre fiquei na agricultura. O que realmente me fazia ficar
insatisfeito era porque eu ficava preso na fazenda, não saía nem para a sede do município, e
isso me deixava inquieto, eu não tinha a liberdade de sair para os cantos porque eu tinha que
trabalhar todo dia. Quando eu completei 18 anos, eu saí do Cipó e fui tomar de conta de um
sítio abandonado que meu pai tinha em Maranguape. A partir daí, eu comecei a ter mais
liberdade. Eu fiquei tomando de conta dessa terra durante uns 4 anos. Depois eu saí, foi na
época que o Andrade já tinha passado na universidade, aí o papai alugou uma em Maracanaú e
levou uns irmãos para lá. Eu fiquei um período estudando em Maracanaú e administrando o
sítio de Maranguape. O papai começou a se sentir incomodado e ficou reclamando, aí eu saí e
fiquei em Maracanaú me dedicando aos estudos e não voltei mais para o trabalho voltado à
agricultura. Meu pai reclamou e eu escolhi ir estudar. Eu sou o tipo de pessoa que quando quer
fazer uma coisa, vai lá e faz. Nesse caso eu queria continuar meus estudos, porque era uma
vontade que eu tinha desde novo. Quando você tem esse sonho, não morre de uma hora para a
outra. Tinha um sonho de fazer faculdade, ter algum emprego, mas não tinha uma certeza. Eu
queria estudar, fazer uma faculdade, concluir meus estudos e ter mais condições financeiras
para me sustentar. Foi na época que o Andrade passou no mestrado, conseguiu uma bolsa e, a
partir daí, ele alugou uma casa e deu apoio para os irmãos. Nesse período eu concluo o supletivo
do ensino fundamental. Eu comecei estudando em escola convencional quando morei em
Maracanaú, e quando vim para Fortaleza foi que eu fiz o ensino fundamental através do
supletivo. No tempo que eu passei em Maranguape, eu me envolvi com movimentos de
agricultura, criamos uma associação e eu fui vice-presidente. Depois em Maracanaú eu me
envolvi com movimentos sociais, como grêmios estudantis, mas não era ligado a nenhum
partido. Eu sempre fui inquieto, não ficava acomodado. Eu fiquei estudando em Fortaleza e
criamos uma associação no Cipó, a ACOMPAC [?]. A partir daí comecei a ir atrás de projetos
nas secretarias, conseguimos máquinas de datilografia. Eu praticamente abandonei os estudos,
já tinha começado o ensino médio, e fui morar de novo no Cipó. Nesse período eu me envolvi
com a associação. Na época era o governador Ciro Gomes. A prefeitura na época não apoiava,
quando eu conseguia os projetos, eles iam lá e desmanchavam porque diziam que eu estava
falando mal do Ciro no interior. Em Fortaleza não me envolvi com política porque não fui
estudar diretamente em colégios, eu fui pro CEJA. Quando comecei o ensino médio, comecei
a me envolver com a criação da associação no interior com o apoio do Andrade.
3. 20171030_163029
De início ele não achou nada interessante porque abandonar meus estudos, como aconteceu. Aí
eu voltei para o interior passar um período lá trabalhando de outra forma, já na associação. Eu
plantei algumas coisas, mas não tinha mais uma relação como a que eu tinha antes. Eu voltei
para mobilizar a associação, aí eu passo a desenvolver esse trabalho lá. Foi fácil montar a
associação, eu comecei a convencer o pessoal suficiente que desse pra fazer esse trabalho.
Construímos uma casa para a professora e ela ficou. Pegamos o projeto da casa de farinha e
construímos num terreno doado pelo papai. O papai aceitou a construção porque ele também ia
se beneficiar com o projeto. A casa de farinha era pública, mas a produção era individual, cada
um ia lá e fazia sua farinhada e deixava uma quantidade para a associação. Tiveram algumas
farinhadas, mas logo ocorreram mudanças. Quando iniciamos, a farinha era muito cara, depois
o preço baixou e não compensava mais produzir mandioca e farinha, porque ia sair muito caro.
O principal motivo que levou à paralização foi econômico, e não a estiagem. Com a
globalização, as pessoas começam a ter acesso a produtos mais baratos e elas deixaram de
plantar, e a casa de farinha ficou um pouco esquecida. Foi uma soma de fatores, mas não
tínhamos muito problemas com a estiagem por causa da várzea. Quando diminuiu o movimento
366
na casa de farinha, teve um tempo que o local ficou abandonado, comecei a me envolver com
o Andrade e a gente organizava campeonato de futebol na comunidade. Nesse período, o
Andrade convidou alguns alunos para estudarem na casa de farinha. Antes disso teve o curso
de datilografia, eu consegui o material de escritório, e a Vânia deu o curso para algumas pessoas
da comunidade, em parceria com uma entidade religiosa de Pentecoste para entregar os
certificados. Depois, quando o Toinho veio estudar na casa de farinha, ele deu continuidade ao
curso. Nós encontramos o Toinho num período onde eu me candidatei a vereador, fomos em
várias comunidades e o Toinho nos acompanhou e ajudou em uma dessas comunidades. O
Andrade contratou o Toinho e pagou do próprio bolso para ele ensinar os alunos nessa
comunidade durante uns 7 meses. Depois o Andrade convidou ele para ir morar na casa de
farinha no Cipó, junto com alguns outros que jogavam futebol, para continuar os estudos.
Depois da eleição eu decidi abandonar a política. Eu saí da associação e, nesse período que eu
saí, ficou meio abandonado lá, e o Andrade convidou as pessoas para irem morar lá na casa de
farinha. O Andrade se envolveu também na comunidade, primeiro com os campeonatos de
futebol, quando eu saí de lá o Andrade continuou e formou o grupo de estudo. Não participei
no início porque tinha saído e estava trabalhando. Foi quando o Andrade convidou o Toinho e
ele passou a ensinar os outros. Nós conseguimos algumas máquinas de datilografia a partir de
articulações políticas. Antes do PRECE nós conseguimos duas creches para a região, em
Capivara e Tamarina.
[0’00’’]
“Meu nome é:: Francisco Antônio Alves Rodrigues. É... Nasci no dia 07 de maio de 1971, na
localidade de Serrinha. Meus pais é o senhor João Alves Rodrigues, minha mãe Maria Alves
Rodrigues. E eu tenho é:: seis irmãos melhor dizendo cinco: Erivan, Maria do Carmo, Lucirene,
Marlene e Valdeci. É:: os meus avôs é:: maternos é o seu Floriano, é:: minha avó Cosma Alves
e:: paternos, é Pedro Barbosa e Petronília de Jesus. Eu nunca os conheci, nem quando eu nasci,
é:: [gagueja e inicia de outra forma] dá parte de meu pai não era mais vivos e por parte da minha
mãe eles moravam no estado do Pará e daí eu nunca conheci os meus avós, né?. [receio] Eu
acho que eu nunca vi nem por fotografias, naquela época as fotografias eram difíceis e acabou
que é... de fato eu não tive, infelizmente, a oportunidade de conhecer e de conviver com os
meus avós né? ((Respiração audível)) então assim, é... meus pais são pessoas é... do interior né?
é.... Meu pai né? assim, na época da juventude, ele veio a Fortaleza, por volta lá de 1950 né?
[19]52, [19]53, e daí, é:: aquela história, né? de (...) ((gagueja)) pessoas que vem e [gagueja]
buscam aqui alguma coisa, não é?? ou alguma melhoria... - e então, ele me (...) ((mudança no
raciocínio do pensamento)) nessa época ele me contava histórias muito engraçadas né? é:, por
exemplo que ele pregava chiclete nas ruas pra aprender o caminho de ir e vir ((sorri
demonstrando alegria)), né? ((oclusão na hora da fala)) Fortaleza ainda era uma cidade pequena
naquela época, mas obviamente bem diferente, é:: do espaço rural né? de onde ele ((respiração
curta)) é originário e viveu praticamente a vida inteira. Então, é:: essas coisas assim de que ele
falava num é::, e a gente ( ) ia pronunciar outra palavra mas desiste dela e fala outra]ficava né?
é::, pedindo para ele falar e a gente, e a gente ria junto das questões que eram incríveis não é?
é..., então assim, meu pai é:: passou aqui dois anos nesse período né? nesse período de 1951,
[19]52 e voltou ao interior... - já conhecia a minha mãe e eles se casaram ((muda o tom de voz))
e daí passaram a morar - mesmo na comunidade e viveram a vida inteira ali né? É:: - Onde eu
nasci, é... a casa que eu nasci foi a casa que eles moraram também, que eu morei até os 24 anos
né? De pequenos agricultores, meu pai tinha uma terra em torno de 40 hectares, então sempre
367
criava um gado, uma ovelha é... e vivia com né? tendo como base, a agricultura mesmo, sendo
a base de subsistência. Então, assim, eu cresci e aí [diminui o tempo da pronúncia como se
estivesse corrigindo o “aí”] fui me entendendo nesse ambiente no mesmo espaço de
simplicidade, é... De pessoas que é... Tinha né? [...]não tinha chegado, não tinha acesso a
bens ou energia elétrica, é... em decorrente disso a [pouco gaguejo] [...]” [3’43’’]
[3’44’’]
“[...]os eletros eletrônicos que precisavam de energia para funcionar né? então, magina só, a
primeira televisão, quando é... a gente conseguiu possuir, eu penso que eu já tinha lá seus 23,
25 anos né? Então a gente fica brincando que, às vezes, os meninos contam histórias de
programas que fizeram, é:: parte da infância de muita gente: “Eita, se não assistia é porque não
teve infância” ((risos)) enfim, são as brincadeiras. ((Entusiasmo)) (...)” [4’16’’]
[4’17’’]
“[...] [ã] Então o seguinte é... a gente tem poucos resistros [sic] fotográficos, quase não te né? a
não ser alguma coisa de binóculo né? que é bem antigo e muitos deles perdem porque o tempo
né? trata de, enfim, danificar e daí eu vou ter resistros já por volta desses 20, 18, 20 anos, que
é quando eu começo a estudar, é... fora da comunidade. Então, é... essa minha trajetória né?
familiar, ela é muito agradável né? era uma vida simples, porém, é... com muita
alegria, é... trabalhava com meu pai na agricultura e sempre gostei de estudar, desde criança
mesmo. Então, eu entrei na escola aos seis anos. A escola era distante né? em torno de quase
dois quilômetros, e daí eu ia a pé com os demais, meus irmãos e outras pessoas da comunidade
e:: sempre me interessei por aprender, né? É... Lembro que eu era uma criança muito ruim para
comer, na merenda, nossa! quase não merendava e as merendas eram boas né? ((sorriso)). Eu
lembro que eram coisas que, eram né? que tinham um paladar bom, mas dificilmente eu
merendava na escola. Eu achava aquilo ruim, daí hoje eu fico: “nossa como é que pode achar
uma comida daquela ruim”, né? É... daí, é... depois a escola passou a ser mais perto da minha
casa né? e eu estudei é... na minha infância com pessoas próximas. Primeiro, a minha primeira
professora depois ela passou a ser minha cunhada, na época, não. Na época, ela era professora,
não era casada com meu irmão, mas posteriormente eles casaram e:: ((receio)) na seqüência
a minha irmã passou a ser professora na comunidade e eu passei a estudar com ela. Então, até
o/a quarta série como nós conhecíamos, hoje é o quinto ano. Até a quarta série, eu estudei é... na
casa da professora, primeiramente, depois na minha casa mesmo e era uma sala reservada para
que acontecessem as aulas, porque não tinha pré-escolar na comunidade, é... [a comunidade
chamada] Serrinha aonde né? eu estudei é... nesse período. Ã:: daí a gente é..., a minha infância
é uma infância que é marcada pelaquelas brincadeiras comuns de crianças da zona rural, é
bandeira, é brincar do trisca, esconde-esconde num é? Ã... era sempre né? Esse tipo de
divertimento que a gente tinha é... não tinha muitas opções de ir a algum lugar, não, é, é... enfim,
era mesmo é... um ((gaguejos)) uma relação que se dava naquele meio não é? Naquele meio ali
com a comunidade mesmo, a gente não tinha muita experiência de ir a uma cidade, de participar
de alguma coisa diferente porque é... a nossa cultura ela era uma cultura de cuidar das coisas
ali mesmo, entende? Ela não conhecia até pelo fato de não conhecer as outras
possibilidades de ((gaguejo)) a gente conhecer coisas novas, enfim. Então meus pais
sempre, é:: pessoas que nos trataram né? com muito carinho, isso eles nos ensinaram muito,
né? A questão do acolhimento, a questão é... de passar para a gente o carinho que a gente
precisava, então a gente, eu aprendi muito né? desses ensinamentos na vida cotidiana, na vida
prática, não é? E daí, quando, é::, eu ((repetição)) gostava muito de estudar e meus pais: “então
tá bom, você vai trabalhar um período e o outro é para estudo”. E eu lembro que a gente
ficou, é..., eu gostava muito também de futebol, assim né? era apaixonado por futebol, e iam
acontecendo assim umas coisas incríveis né? [sorriso] eu era muito ruim [risos] muito ruim,
368
então, é... eu [repetição] ajudava a cuidar das coisas no campo de futebol, não é? E daí, é... eu
já tava grandinho, tipo, é..., sei lá, já 12 anos, 13 anos, e 14 né? enfim, até por essa faixa não
me botavam para jogar no time, que: “não esse aqui é muito ruim, não joga né?”. Aí eu lembro
que os meninos fazia assim: “Ah, mas tu trabalha no campo e ainda botam tu pra jogar”, mas
são malvados mesmo né? ((sorriso)) e daí, é... a gente [há uma quebra de raciocínio aqui], mas
eu jogava com os meninos né? e de repente né? assim, de forma muito rápida, é... eu melhorei
assim de forma né? extraordinária tão rapidinho que eu nunca passei, tem um negócio que
chamam de segundo quadro né? eu era tão ruim que nós jogava no segundo quadro e de
repente, é:: eu melhorei naquele jogo ali não é? e passei a jogar no que chamam de time
principal, assim de forma rápida. Eu nunca passei pelo segundo quadro, ( ) eu nunca fui do
segundo quadro né? que é aquele time que bota o pessoal que joga menos e tal, então de muito
ruim eu passei a ((gaguejos)), naquele contexto da comunidade, não é? naquele contexto ali, a
ser bom né?? Pessoa boa que dava para jogar no time principal. [9’48’’]
[9’49’’]
É... talvez para mim foi a coisa que, também né? fosse muito agradável né? nossa né? comecei
com 14, 15 anos, já jogar naquele time em que é o time principal da comunidade e daí da família,
eu sou o mais novo, então é... os meus pais sempre tiveram um cuidado muito grande, é aquela
história de á... né? é... um cuidado um pouco exagerado né? E eu lembro que com 14, 15 anos
teve um campeonato em Pentecoste, e daí eu já jogava bem, jogava no time, mas aí para ir para
Pentecoste é... meus pais disseram: “Não, não vai, tá?” muito novo, não pode”, né? E daí os
meninos ficavam falando, fazendo hora assim: “Rapaz, podendo jogar lá né? tu joga bem aqui,
é do time, é do titular e não vai porque os pais não deixam né?”. Mas aí assim, essa questão do
cuidado mesmo: “Não, meu filho está muito novo para sair daqui” né? para ir jogar em outro
espaço, e eu entendo isso de forma muito clara que é a questão do cuidado dos pais né?
sobretudo quem viveu naquele contexto comunitário mesmo, é... era difícil que eles
entendessem e vissem que era uma oportunidade, sei lá, uma coisa assim, e daí eu não
fui. É... Aí assim, na comunidade, os meus estudos, só tinha até a quarta série, então acabou
que com 10, 9, 10 anos eu já tinha concluído a quarta série e a gente, é::, não tinha como
continuar estudando ou seguindo adiante nos estudos na comunidade, não tinha nem o tele
ensino que na época era uma, era uma [repetição] possibilidade para a zona rural mas na nossa
região não tinha. E para ir para a cidade era muito difícil porque tinha que ter conhecido lá e
mandar o filho e a gente não tinha, tinha uns conhecidos. O meu irmão é... um pouco mais velho
do que eu, ele foi, estudou dois anos né? em Pentecoste, mas foi uma experiência difícil, porque
assim, meus pais não tinham essa condição financeira de tá ajudando, daí eu achei que não dava
para mim e não ia pra né? Daí eu estudei 3 anos repetindo a quarta série, a cada ano era aprovado,
no ano que vem eu vou de novo né? e aí eu fiquei repetindo é... pelo fato de, é::, somente para
não abandonar a escola, eu gostava muito de estudar. Chegou uma hora que isso não deu mais né?
para ((ênfase)), eu acho que por volta dos 13 anos, é::, eu parei completamente, porque né? já
tinha repetido umas três vezes a quarta série. Bom, daí eu fiquei centrado, é: “não, então eu vou
ficar trabalhando com meu pai”. E aí para trabalhar é:: tem o que a gente chama de pessoas que
trabalha é:: trabalhador, trabalha rápido né? então nunca trabalhei rápido [risos], mas sabe,
nunca mesmo é... porque assim, eu acho que era uma habilidade que me faltava não é? Então
meus irmãos trabalhavam rápido né? eram chamados bom de serviço, eu era ruim de serviço
((sorriso envergonhado)), é... porém, eu não deixava de ir né? eu não deixava de ir né? é::
((ênfase)) é:: eu sempre tava né? junto, só que eu trabalhava bem devagar, pra quem entende
de capinagem, por exemplo, as pessoas trabalham, cada um, no que eles chamam de carreira né?
fica uma plantação lá e você segue no que é chamado de carreira pra cada pessoa trabalhar.
Então eu nunca trabalhei numa carreira, porque eu só trabalhava com meu pai, a não ser que
ele não tivesse, quando ele não tava, ai eu tinha que pegar uma carreira sozinho e ficava
369
perdido e lá o pessoal ia embora né? e eu sempre trabalhava com papai em uma meia carreira,
era uma carreira para nós dois né? ((sorriso)) aí a gente ia e falavam: “olha...” ((interrupção de
fala)) é... me chamavam de Toinho né? “como tu é muito preguiçoso e tal, é::”. Meus irmãos,
eles eram, a minha diferença com o mais próximo é de 5, 6 anos né? coisa assim. Então assim,
eles ((gaguejos)) é.... Aquela faixa etária dele, tinha muito menino, então eles fizeram muita
vadiagem e tal. Aí, na minha/no meu crescimento eu já tinha, eu era o menorzinho e eles já
eram tudo maiores né? Então eu não participava de muitas coisas com eles tipo, ir pra açude,
então, por exemplo, eu não aprendi a nadar. Todos os meus irmãos nadavam muito e eu não
aprendi né? porque eu era pequeno e eu não ia porque, pra esse espaço, porque eu era pequeno.
Aí depois ficaram todos grandes quando eu já estava maior e tinham outras coisas para
fazer. É... andar a cavalo também, nossa ((empolgação)) né? Os meus irmãos eram também
muito mais afeitos a isso, corriam no mato né? com os cavalos, enfim. Daí eu não fazia isso né?
depois eu acabei fazendo. É aquela história, igual à do futebol né? depois eu consegui me
equilibrar melhor e fazia isso, mas, para ter ideia, eu já levei cada queda né? de animal que era
uma coisa incrível né? [14’46’’]
[14’47’’]
Então, assim. Lembro, uma vez eles pegaram né? tinha um jumento que: “vamos amansar esse
bicho para nós, mas somos pesados, então coloca o Toinho em cima dele”, e eu não sabia
montar né? ((empolgação)) Então eles botaram né? eles eram maiores, ficaram e o bicho ficou
parado e tal, aí eles disseram assim: “Não, esse não vai sair do canto”. Soltaram a corda, não é?
aí o bicho deu um pulo e eu fui lá para a orelha, e o bicho jogou a cabeça e me jogou
longe né? [risos]. É... então eu lembro disso e nossa, serviu pra gente ficar rindo depois né? que
o Toinho caiu desse jumento né? E teve uma queda, que eu também levei uma queda que foi
incrível, eu vinha, eu lembro que eu dava água aos animais e vinha montado num jumento, aí
papai criava porcos e botava sempre milho é... do lado lá, tinha um espaço. E o jumento vinha
pra, eu pensava que ele vinha entrar no alpendre, não é? E o caba((sic)) e o bicho vinha só
andando, literalmente andando né? é..., daí e quando ele se aproximou do alpendre, que eu
achava que ele ia entrar ele, ao invés de ele fazer o movimento para a esquerda ele fez o
movimento para a direita e esse foi o movimento suficiente para me jogar do outro lado né?
Nossa [Ênfase vocal ao iniciar este período], que queda, bati com as costelas, nuns materiais
que tinham lá, fiquei sem fôlego, enfim ((envergonhado)) Então foi desse jeito e aí o papai dizia:
“Ah, mais o Toinho não trabalha” aí o papai dizia assim: “Só que o Toinho é, se vocês trabalham
muito realmente né? mas o único que não me deu trabalho para ir trabalhar foi o Toinho, porque
ele não tem preguiça de ir né? ele vai satisfeito, a questão é que ele não trabalha rápido, mas
isso não faz muita diferença porque o importante é que ele vai sem, é... reclamar, não é?
satisfeito”(...)então pro papai isso já era muito importante né? ((expressão corporal animada) E
ai né? até uns 3 anos, 4 anos, a gente conversando sobre isso, ele dizia: “É verdade sim, o
Toinho ia sem reclamar. Vocês eram muito trabalhadores - com os outros né? - mas vocês
davam trabalho para ir”. E daí a relação com o meu pai né? foi uma relação boa. E ele me
ensinou muito da vida né? pra vida, é... a gente tava numa comunidade que tinha/não tinha por
exemplo, não tinha televisão, era longe a televisão aonde tinha, tipo dois quilômetros né? a
gente ia a pé, às vezes, com muitos colegas, muitos amigos, mas é, com o meu pai eu aprendi
uma coisa assim é..., ele gostava muito de assistir rádio né? então eu lembro demais de como a
gente ficava/todas as tardes a parir de cinco horas assistindo programas políticos, não é?
programas que tratavam de questões políticas para a gente se informar, pra gente
entender né? é... eu gostava daqui e o meu pai gostava tanto daquilo quanto da ‘Voz do Brasil’
que era um programa informativo né? Como a gente acompanhava, é... esses é... programas que
tratavam dessas questões né? de nível municipal, estadual, nível né? nacional. Então a gente era
muito atenado/ antenado com essa questão da informação, isso para a gente era como
escola né? a gente chegava do trabalho geralmente quatro e meia, tomava um banho e cinco
370
horas a gente ligava o rádio para assistir, a gente conversava só olhando né? “tá acontecendo
isso, é:: ah, mais esses, é..., deputados hoje fizeram isso”, a gente acompanhava né? apesar de
a gente tá em uma comunidade tão distante e pequena mas a gente tinha essa relação de
conhecer né? para além dali, então o rádio era esse elemento que nos propiciava esse
conhecimento né? Então, nossa, hoje eu gosto muito disso, e é uma herança sem
dúvidas né? é dessa, desse hábito que papai tinha de estar assistindo programas e programas
informativos. Então lembro demais que a gente ficava assistindo aquela, as questões do:: é... na
época do vestibular a gente nem sabia o que era direito, mas, sobretudo aquela história do
gabarito né? então como o vestibular era um grande evento, - imagina, a gente não sabia, mas
eu sei o que é hoje praquela época um evento extraordinário. E aí, as rádios paravam para falar
os gabaritos né? o A de avião o E de Eva, imagino como se fosse hoje como os repórteres
falavam essa questão do gabarito e a gente só parava e olhava assim, parecia coisa importante
né? porque as rádios param a programação normal para trazer essa informação, então é... a
gente tinha né? essa, essa relação com o marco né? através da mediação do rádio. A minha mãe
sempre tratou da questão da casa mesmo né? é... Também trabalhou na questão da agricultura
conosco né? mais ainda na época de colheita, minha mãe sempre era presente, como na época
de plantação. Então eram dois ciclos que ela participava de modo muito ativo, que era no ciclo
da prantação e no ciclo da colheita né? É... os meus irmãos, eles, é..., eu tenho dois irmãos
homens, então assim, um saiu cedo da comunidade, por volta lá dos dezoito anos, para vir para
Fortaleza, é... então ele veio em busca da [gaguejo] melhoria, aquelas histórias que/da
migração né? pela falta de oportunidade no espaço rural. E daí veio com a escolaridade muito
baixa também né? até a quarta série que ele estudou também né? depois veio pra Fortaleza e,
enfim, foi tocando a vida dele né? Depois ele retornou para a comunidade né? morou um tempo,
casou e depois veio embora para Fortaleza novamente. O outro meu irmão, ele também é...
gostava muito dessa questão da, de gado/então ele saiu primeiramente pra uma fazenda em
Caucaia né? “Á, vou trabalhar com é:: tiragem de leite, de questão desse tipo”,
depois é... passou um período e foi para Fortaleza de lá, e teve uma época que ficou só eu e
papai. As minhas irmãs casaram né? também muito novas, e teve uma época que a agricultura
tocava eu e papai, imagina, a gente não tinha muita produção porque, ((risos)) eu não era né?
aquele trabalhado de produzir, mas enfim, foi uma época que:: é... também foi muito
agradável né? Eu e papai, a gente trabalhava e cuidava do gado né? enfim é::, não foi uma época
ruim né? aliás, foi assim, foi uma época que, às vezes, eu tinha que ir sozinho [ênfase neste
último vocábulo], trabalhar não é? papai saia para algum canto, então, eu tinha que ir sozinho e
ai os roçados ficavam bem longe né? dois quilômetros da minha casa, né? então só para ir era
uma viagem, mas eu vejo isso como exercício importante da família, não é? dá família, porque
não é? pelo fato de você não ter um bom jeito que não vai fazer as coisas, que você não
compreende o sentido daquilo, é..., não é? só do ponto de vista do trabalho, é do ponto de vista
do: “olha nós somos família, a gente faz o que a gente pode né? a gente faz aquilo que é possível
fazer para que a gente mantenha né? as condições”, e daí a gente teve períodos difíceis, períodos
de seca não é? período de seca era um período muito ruim, porque não se produzia, as questões
econômicas ficavam muito mais difíceis, aquela época tinha o algodão. Algodão era, é..., uma
forma de tirarmos algum recurso daquilo que não era destinado para a subsistência não é? mas
isso também depois foi ficando difícil né? foi dando bicudo - quem é da agricultura conhece.
Então teve época que a gente enfrentava muita dificuldade né? aí o pai tinha que comprar no
comércio e ficar devendo 6, 7 meses, daí lá na frente tinha que vender um gado, uma coisa
assim, é... pra poder pagar né? essas contas, mas a gente ia se equilibrando com isso. A gente
ia administrando e tinha épocas que é... muito boas, de fartura, e tinha épocas que era difíceis
mesmo né? que você tinha dificuldade de comprar as coisas, era muito racionado né? é..., daí
eu vejo o esforço do papai para criar uma família dentro das condições que ele tinha que era a
agricultura de subsistência. E por vezes ele montava o comércio né? quando dava, então papai
371
procurava diversas formas de poder manter a família, sempre foi uma pessoa muito
responsável né? enfim. Ele é para mim uma grande referência né? minha mãe também, de luta,
de desejo de ver, é..., os filhos ali né? crescendo e eles apoiando em tudo quanto a gente
fazia. Daí nós tivemos esse período que eu não estudei, certo, magina a gente trabalhou/ Daí
como a nossa terra era pequena teve momentos que papai falou: “Á,
vou.. Á... Doutor Damário que era né? tinha uma fazenda e que isso ficava em torno de quatro
ou cinco quilômetros de onde a gente morava e lembro que uma vez a gente brocou ( ) e a gente
ia né? com bicicleta, é..., magina né? cinco quilômetros para ir trabalhar, e nessa época eram só
eu e o papai realmente, meus irmão não estavam mais morando [conosco] já tinham saído para
Fortaleza, outro tinha casado, o mais jovem não era casado, mas enfim, trabalhava em Fortaleza,
daí a gente ia né? e eu ficava: “Nossa” [ele prolongo o “no” como se estivesse expressando
novamente o encantamento que teve no passado] realmente é uma vida difícil né? Mas assim,
uma coisa que eu achava, sempre achei absurda: “Se eu for para Fortaleza, uma cidade...
[novamente uma quebra de lógica com mudança de pensamento] como é que eu vou
pedir pra alguém pa me dar um trabalho né?”. Então eu achava isso um negócio meio fora né?
de propósito para mim, não era aquilo que eu queria. É... meus irmãos: “Tu quer vir para cá?”.
Obviamente que eles não faziam muito esforço porque eu era o único que tava em casa ainda.
Mas da minha parte também não tinha o desejo de ir não, é... porque eu pensava: “Olha, eu
acho que deve ser um negócio muito complicado né? o que eu sei fazer, o que tá aqui; eu não
sei fazer, talvez, o que tenha lá e ainda vou pedir para alguém, se alguém não quiser me dar um
trabalho né?”, isso passava na minha cabeça. Aí bom, ficamos né? quando foi em 88, não
lembro né? a minha irmã, como era professora, ficou sabendo da primeira turma do supletivo
em Pentecoste, daí falou: “Olha vai ter...”, meu pai disse: “olha você quer fazer a prova?”. Então
eu fui, a minha irmã mais velha também, a gente se candidatou pra fazer essa prova. É... era
uma prova seletiva né? você só poderia fazer esse curso se tivesse uma aprovação nessa prova
que era feita no escuro, era tipo, um teste sondagem, que você tinha que fazer, dependendo do
seu rendimento, você passava a fazer parte do curso. Fizemos lá. É... passei, dentro da
média, é... em todas, porque tinha português matemática, estudos sociais e ciências, a gente
tinha que ter média 5 né? eu acho, juntando todas as provas, todas as áreas, consegui a média
6.9, ótimo né? Comecei o curso. Então daí começou a mudar um pouco né? a minha, o meu [Ele
acaba trocando a forma que irá usar] conhecimento e a minha relação com outros espaços, antes
era muito centrada na questão da zona rural mesmo. Daí eu já tava com 15, 16, essa época eu
já estava com 17 anos. É::, tive que vir em Fortaleza para tirar a carteira de
identidade né? magina né? eu vir aqui para fazer isso, fiz né? porque também era uma exigência
do curso que tinha que ter uma identificação e tal pra se matricular. Matriculei. A gente
estudava, recebia o módulo e estudava em casa e ia na Secretaria de Educação, não
era numa escola, era na Secretaria de Educação para poder fazer as avaliações né? periódicas e
tal. E nessa época, imagine, a minha mãe, ela não deixava, ela não concordava que eu viesse,
por exemplo, de bicicleta até Pentecoste que era em torno de 17 quilômetros né? que era a
distância entre a minha casa e Pentecoste. Ela não deixava de jeito nenhum: “Não, não vai de
bicicleta de jeito nenhum”, essa questão do cuidado né? e eu ia sempre no ca... [ele corrige-se
rapidamente e acaba não completando o vocábulo anterior] pau-de-arara né? ou carro de
horário que tem muito no interior, eu passei o ano inteiro fazendo isso né? ia no carro e, às
vezes, a gente tinha que fazer duas ou três provas mas tinha que fazer só uma porque o carro já
ia voltar, não é? Aí eu fui amadurecendo, fui aprendendo: “Não, olha, depois de um ano já dá
para ir né? enfim, sei bem o caminho” e passei ir de bicicleta não é? Nesse trajeto, é::, entre
minha casa e o local das avaliações. É:: isso me trouxe já outro amadurecimento né? me trouxe
um pouco mais de autonomia, então eu passei, eu acho que dois anos e meio, é... e conclui esse
curso. E o meu pai e mamãe sempre diziam: “Olha você gosta de estudar né? a gente lhe apóia”
não é? eu não deixei de trabalhar com o meu pai nesse devagarzinho de todo dia, então
372
trabalhava de manhã, que era o período que eu ajudava né? É... no período da tarde era
destinado para o estudo, não é? Eu ficava com os módulos, estudando e essa era a sistemática.
E aí como eu gostava de futebol e eu jogava todos os dias, de segunda a segunda,
quando dava cinco horas, quatro e meia, cinco horas largava o livro, e era uma comunidade,
como na época tinha muita né? adolescente, muitos jovens, então a gente jogava todo
dia né? É:: a maioria dos dias era com o pessoal que ficava ali pertinho de casa, vizinhos né? e
eram aqueles que tinham os treinos do time, do pessoal que vai pro futebol. Então jogava,
jogava demais todos os dias era uma questão que eu lembro muito: “nossa como a gente jogava
tanto daquele jeito?” né? jogava todos os dias à tarde, domingo jogava de manhã e de tarde,
porque na verdade também era uma forma de lazer né? de divertimento, era uma forma da
gente, é..., sair da rotina né? do trabalho, de estudo, então isso é uma questão que pra mim fazia
muito bem, né? fazia um bem enorme mesmo. É... Terminei o primeiro grau, o ensino
fundamental né? em dois anos e meio, então foi por volta né? foi em 88, no segundo semestre
eu entrei no curso, lá pelos anos 90 né? final dos anos 90 eu tinha concluído. Era um curso que
tinha uma, [ocorre uma troca de vocábulo, pois o anterior não serve para sua construção
frasal para concordar em gênero] um grau de dificuldade né? considerável, porque a rigor a
gente não tinha professores e tinha orientadores não é? nem sempre o orientador que estava lá
para aplicar a prova era daquela área e nem sempre conseguia tirar a dúvida da gente, então a
gente tinha que estudar mesmo em casa, exigia um esforço, exigia uma força de vontade mesmo,
muito grande. E eu lembro que a gente era em torno de 50 alunos e é... efetuaram a matrícula
inicial, e nós tivemos três alunos que conseguiram concluir né? pelo menos na minha época. O
curso supletivo ele não tem tempo para você terminar, mas nesses dois anos, dois anos e
meio é... chegaram a concluir, eu e mais dois né? alunos, é... a gente era amigos né? pessoas
que se dedicavam e “vamos terminar, vamos terminar” e terminamos. Houve né? aquela
festinha de conclusão de grau, é..., nesse período a gente [quebra da lógica de pensamento
mudando rapidamente para outro fato dentro do mesmo tema] daí eu já tinha uma
experiência né? de outros espaços e tal, [gaguejos ao iniciar a frase] e nós três desejávamos
continuar estudando e a opção era também a distância né? o que era chamado de Logus dois,
ele era um curso de formação pedagógica para professores, né? que não tinham habilitação,
porém eu não era professor né? daí assim tá aí primeiro impasse, porém é... como minha irmã
tinha até a quarta série né? e ela era professora até a quarta série né? e eu já tinha até o ensino
fundamental do sexto a oitava série, acabava que eu ajudava muito ela em sala de aula, e como
eu tive né? meu esforço e tal, os professores reconheciam, eles: “Olha, você não é? professor,
de fato, mas você né? tem esse trabalho na comunidade né? ajuda sua irmã que é professora,
então ela vai dizer que você faz esse trabalho e nós vamos lhe aceitar, é..., você vai fazer a
seleção para cursar o que se chama de lócus dois né?”. Ai magina, eu fiz essa prova e tirei 10 né?
aí, ó, muito bem, e as minhas amigas, as duas que concluíram também, as duas eram professora,
daí elas não tiveram problemas em cursar né? pra fazer a prova porque já tinham a legitimidade
de ser professor. E aí nós caminhamos, é... já com mais desenvoltura né? porque tinha
experiência, era semelhante ao ensino fundamental e o ensino médio eu devo ter terminado em
um ano e meio né? coisa do tipo. é... lembro que por volta de 92 né?
eu já tava concluindo. é... nesse período né? a gente passou a jogar o campeonato que era
organizado pela é... professor Andrade. Eu conheci o professor Andrade através do futebol né?
professor Andrade eu é o idealizador da PRECE, e daí nós íamos já é... em outras
comunidades né? e ai foi o futebol que fez essa aproximação da gente conhecer outras pessoas,
conhecer, enfim, idéias novas, e daí a gente né? ficou amigos, amigos um pouco distantes, mas
pessoas que tinha né? o futebol como a mediação de uma relação de amizade. Isso foi uma coisa
importante também né? essa questão de usar o futebol como uma estratégia para a gente
conhecer é... outros valores né? aproximar mais pessoas conhecendo mais pessoas. E a gente
tem isso como uma questão cultural importante né? fazia parte de um lazer né? que é... era
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comum a várias comunidades, o futebol ele foi aproximando pessoas, foi também é..., dando
essa oportunidade da gente ir trocando idéias né? Aí o professor Manoel Andrade passou a
conhecer e tal, teve [acaba trocando a linha de raciocínio], 92 foi um ano de eleição, e daí eu
lembro que a gente além do futebol tinha a questão da política, e o Adriano que era irmão do
professor Andrade era candidato né? E daí assim, a gente tinha é::, havia uma comunidade, uma
associação, aliás, Cipó-Capivara, aí nesse período as associações, elas eram
uma uma [repetição] uma instituição totalmente importante através do ponto de vista da
organização não é? da demanda de projetos, e a gente começou a ter essa relação também por
esse viés da associação. E aí a gente ia é:: visitar algumas comunidades e dentre essas
comunidades a gente visitou uma que era de uma pobreza imensa né? uma comunidade
chamada Coelho, é... a gente ficou assim, abismado, como é que pode pessoas viver assim no
total abandono das condições do poder público. Então era uma comunidade que não tinha
nenhuma estrutura, sei lá, de água, de alguma assistência, inclusive tinha nem escola, então as
crianças eram analfabetas, pessoas com 14 anos sem saber ler e escrever porque não existia
oferta de escola na comunidade. E as escolas eram distantes também né? e as pessoas eram
pessoas profundamente simples, e o trabalho que tinha lá na comunidade era um trabalho
organizado pela igreja católica, que a gente também conhecia né? A gente conhecia muito seu
João Bandeira, ele era um leigo que fazia aquele trabalho de porta né? de ir nas comunidades,
de enfim, de pregar a palavra, era uma pessoa militante da igreja, não é? então tinha esse
trabalho com ele também. Então seu Manoel Andrade ficou meio impressionado com aquilo e
disse: “Rapaz que coisa né? o que que a gente pode fazer por essa comunidade? ”
Nós é... independentemente de qualquer perspectiva política né? que haja, a gente não vai se
ater a pensar de como é que a gente enquanto cidadão pode fazer alguma coisa, sobretudo na
área de educação. E daí assim, surgiu a proposta da gente ir na comunidade dizer: “Olha nós
vamos é... colocar uma escolinha aqui, fazer uma né? tinha o salão comunitário, que a
comunidade usava para celebrações e nós falamos com a liderança da comunidade e eles
disseram: “Olha, a gente cede para vocês o espaço” e nós prometemos que íamos. E, a gente
encontrou essa comunidade em momento de campanha política e aí então eles não nos disseram
no momento, mas depois me falaram isso e disseram: “Olha mais que promessa devagar essa,
claro que ninguém vem para cá botar escola”, e eles não acreditavam nisso né? Mas a
comunidade é sempre, [corte de pensamento brusco] é aquela questão da educação né? eles não
disseram: “Á, lá vem vocês...”, não, eles: “vem? ”Tá certo se vier tá aqui o espaço, a gente
realmente precisa...”, mas no fundo no fundo eles me disseram: “A gente não tinha a
menor esperança né?”. É... daí a gente disse: “Olha vamos...”, lembro que a gente comprou
caderno, lápis, o professor Manoel Andrade que comprou, e daí disse: “Toni, tu vai, é... e eu
vou lhe dar é... não lembro, era 20, não sei que dinheiro era naquela época, era uma coisa assim
20 [ele emite um som simulando alguém dando dinheiro, de forma engraçada] uma ajuda
financeira né? e eu vou te dar por mês e você vai trabalhar”. E daí a gente, isso era por volta do
mês de setembro, início para outubro. Marcamos para antes, antes do processo né? ou aliás,
para depois do processo de votação. E a comunidade disse: “Agora que a gente entende que
isso não vai funcionar”. Por que não vai funcionar? Porque eles colocaram para começar depois
da eleição, se esse candidato não for eleito ele não vai pisar nem aqui, mas assim a rigor a nós
não tínhamos a menor né? a nossa compreensão era: “vamos fazer esse trabalho na comunidade
porque é uma comunidade que precisa” e a gente pode fazer isso, o professor Manoel Andrade
era professor na universidade, mas era muito preocupado com essas questões, tinha uma
ligação muito profunda com as comunidades né? sobretudo Capivara, Cipó, mas várias outras
que estavam ao entorno e a gente sabia que ia fazer isso. Marcamos o dia x lá pra começar, e
fomos no dia, eles estavam lá, os alunos, e assim foi uma comunidade que a gente aprendeu
muito porque eram pessoas simples mas que faziam também o melhor é... sobretudo por mim
que estava no dia-a-dia, sempre tinha a questão de: “Olha, tá aqui a sua merendinha né?”, um
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biscoito, um suco, um café e aquilo né? nossa, era uma gratificação muito é... era muito
gratificante para mim porque eu percebia a simplicidades, mas o carinho né? eu percebia como
as pessoas aceitavam aquele trabalho, e na sua maneira né? buscavam contribuir. Então foi um
período de um ano e meio, mas enfim. Em 92 nós levamos é... até dezembro, alfabetizando as
pessoas e aí era uma sala que tinha de alunos de 6 anos até 17 anos e era em média 20 alunos né?
se desdobrava, aprendendo obviamente né? era a minha primeira experiência em sala de aula,
apesar de já ter é... outros momentos substituído minha irmã, mas a gente vai aprendendo
sempre, sobretudo nesse desafio de trabalhar com pessoas de faixas etárias diferentes, de
interesses diferentes né? Obviamente que eu não tinha essa compreensão naquele, naquela
época né? era impossível ter, hoje você tem porque tem toda uma trajetória, toda uma
experiência, enfim. Mas levamos esse trabalho adiante, e lembro que em dezembro a gente fez
a festa de [gaguejos] finalização, a comunidade foi, é..., não lembro se o Andrade estava
presente, não lembro, mas enfim, lembro que a gente foi várias vezes lá, lembro que a gente ia
de moto as vezes, passava lá em casa à noite para a gente ir lá na comunidade né? conversar,
fazer reuniões. E a comunidade tinha uma base de organização faltava era serviço público, e a
gente levou esse serviço, foi importantíssimo né? É... daí no ano seguinte, dois mil e, 93 eu
já tava concluindo o Logus 2 a gente disse assim: “Andrade, vamos tentar isso, vamos tentar
pela prefeitura colocar essa escola né? de maneira que a prefeitura assuma”, foi tranquilo né?
“olha aqui já trabalhamos esse segundo semestre inteiro, queremos agora que a prefeitura
reconheça”, até porque para que o aluno tivesse essa certificação, o histórico escolar era preciso
que estivesse vinculado a prefeitura né? Vinculamos a escola à prefeitura, é... e daí, em 2013
em diante, nós começamos a trabalhar mesmo com a escola municipal, e daí a minha relação
era com a prefeitura, mas com o professore Manoel Andrade continuou porque a gente tinha o
futebol né? e assim, a gente sempre falava “a escola tá indo bem” e ele sempre me perguntava
isso. É... nesse período que eu tava dando aula né? então o Coelho ficava 13 quilômetros de
distância da minha casa, então eu ia de bicicleta, não tinha nenhum transporte que não fosse a
bicicleta, a gente não tinha moto que era, bem, um meio de transporte né? não tão comum, mas
enfim, que existia na época, mas poucas pessoas tinham, a gente não tinha. E a gente ia a
[gaguejos] bicicleta mesmo, ia de bicicleta. E aí eu as vezes, ajudava o papai quando dava
tempo né? quando podia, e eu lembro demais né? demais, demais disso [repete o demais para
dar ênfase a sua nítida lembrança desse assunto], uma vez eu ia dar aula e o
inverno tava rigoroso, não conseguia atravessar as lamas né? eu não consegui, aí voltei com a
bicicleta no ombro né? que não andava, eu lembro demais disso, tem uma terra chamada
massapê que gruda na bicicleta e você não consegue movimentar, aí cheguei em casa o
papai tava trabalhando, “ah, vou ajudar papai né?”, peguei a enxada. Aí tinha um trabalhador
que trabalhava lá que ele era muito engraçado, ficava assim: “Olha, ah, o Toin veio então eu
vou...”, [corta a fala para explicar algo que será necessário para uma melhor compreensão]
existe uma coisa chamada que assim, olha, você é... trabalha devagar, eu vou tirar duas
carreiras ou três enquanto você tira uma né? aí isso dá uma gofa muito grande [excitação ao
falar] , e nesse dia eu estava trabalhando sozinho né? “ah não, pois eu vou numa carreira
sozinho” e ele disse: “Olha, pois eu vou já...” tipo, dá duas por uma, “enquanto você tira uma
eu tiro duas”, aí eu digo: “não, não vai”, e nós né? aí o [gaguejos] milho tava grande e a
terra tava baixa né? então era muito quente. E daí né? ele ficou tentando fazer isso, tirar duas
enquanto eu tirava uma, e eu não, tentando responder rápido né? e quando foi tipo, 10:30, papai
disse: “não, tá bom, já trabalhamos muito né? tá bom, vamos pra casa”. E aí a minha roupa
estava completamente molhada, molhada, molhada né? blusa e calça, aí ele ficava: “rapaz hoje
tu tá bom, não deixou o fadaluz por um e tal”. Aí depois disso eu “Ah! Eu vou largar esse
negócio né? eu vou ficar só com educação”. Aí larguei né? de fato larguei, eu já tenho outras
ocupações, não vai dar de fato para eu ficar trabalhando na agricultura. Então é... isso vai se
refletir mais tarde no Cipó, porque na verdade quando a gente tinha uma um trabalho
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comunitário e os meninos devem falar isso assim: “eu trabalho um pouco por ali, depois eu vou
fazer outra coisa” é... porque a rigor, era como se eu tivesse entregado, encostado a chuteira
pela questão da agricultura né? naquele dia lá, que eu disse: “não, tá bom, eu já fiz o que era
para fazer não é?”, é... enfim. É... então assim, era professor na comunidade né? chegava a tarde
meio cansado, estudava ainda né? porque era questão do Logus 2, mas enfim, estava na fase
final, e eu lembro que a gente tinha, que a gente fazia aulas práticas e que basicamente a gente
tinha um semestre inteiro ou um ano, não lembro bem, a gente ficou só com as aulas práticas,
porque lá se tinha calendário né? se tinha calendário pra poder é... acontecer aquelas aulas que
eram marcadas pela coordenação do curso, a gente ficou né? é..., nesse contexto de aulas né?
de aulas práticas pra receber o certificado e tranqüilo né? Quando foi em 94 né? aí o professor
Andrade, a gente jogava, enfim, tinha uma proximidade pelo futebol, ele disse: “Ô, Toinho, eu
tinha um negócio para te falar aqui”, aí eu lembro que era em dia de jogo né? “não mas a gente
tá tudo cansado, num outro dia você vem aqui para a gente conversar, um pouco” né? Aí o
professor Andrade, eu fui lá né? no outro dia e ele disse: “Olha Toinho, eu tenho uma ideia de
trabalhar com educação aqui né? o futebol é uma estratégia boa, mas não é? suficiente, é... eu
vejo que aqui os meninos saem todos muito cedo pra ir pras a cidade grande”, ele falou a
história né? “olha são meus amigos de infância e eu vejo aqui que a situação tão dura e tão
difícil, e a ideia é que a gente faça alguma coisa que a juventude de hoje, ela não tenha que
seguir esses passos difíceis, duros né? de quem foi da minha época não teve nada por aqui.” Aí
eu, a gente [gaguejos]: “Ah tá bom, então qual é a ideia?” “A ideia é que a gente trabalhe com
educação aqui na comunidade”. E daí na época né? essa época também ficava meu irmão
dizendo: “Olha, mas o ganho daí e tão pouco, você podia vir para cá né?? Melhorar e tal” e
talvez até, um pouco, é... eu pensasse um pouco disso, mas na verdade é... no fundo no fundo
eu tinha uma resistência muito grande né? e eu já tava na escola, daí eu falei: “Á Andrade, eu
vou falar pros meus pais né? e ainda tem essa possibilidade de ir para Fortaleza”, mas na
verdade eu sabia que no fundo no fundo aquilo não me atraía, porque eu achava
que realmente era uma realidade muito desconfortável né? Então eu disse: “Olha, vou
conversar com os meus pais”, pros meus pais, falei: “Olha o Andrade me
convidou, é... pra gente fazer esse trabalho, e ele...” [Interrompe a fala do outro para acrescentar
informações], e ele disse assim: “Olha Antônio, só que pra fazer, você precisa deixar a escola
do Coelho e tem que vir morar aqui”, então Coelho e Cipó eram antagônicos né? então eram 13
para lá e 13 para cá. Então assim, eu sempre tive um esforço né? essa vontade de aprender,
então teve uma época que eu dava aula no Coelho que era 13 quilômetros né? 26 para ir e vir,
e à tarde, duas vezes por semana, eu ia pro Cipó, também esses 13 quilômetros né? e tudo de
bicicleta, pra fazer um curso de datilografia. Nossa, sol quente né? [risos]. Mas enfim
eu ia, aquilo para mim era muito significativo, então eu terminei o curso de datilografia também
pela associação no Cipó. Lembro né? quando a gente chegou no final a máquina quebrou mas
a [gaguejos] ACOMPARCC tinha também um trabalho desses em Ombreira, já urbana, e é... eu
fui lá terminar com o professor de lá, o curso né? enfim, recebi o certificado. Lembro né? que
o certificado para mim valeu muito. É... daí assim, tinha essa proposta de trabalhar lá e tal, e
falei pros meus pais né? “Olha, você que sabe”, eu acho que eles viam nisso também uma
oportunidade né? pelo fato de conhecerem o professor Manoel Andrade, de saber o
comprometimento dele com a educação né? Então, eles sabiam assim: “Isso é uma coisa boa,
você que sabe se vai ou se não vai” Eu acho que por uma coisa boa. Resolvi ir, tá bom [fungada].
“Andrade, vou, vou para cá”, beleza, isso era por volta de maio de 2004 né? daí eu disse: “Olha
eu preciso terminar o semestre né? na escola, e vendo que pessoa pode estar assumindo, pode
estar dando continuidade à escola, de uma maneira que a gente é, a comunidade não seja
penalizada por conta de um professor que não tem a escola”. Tranqüilo, uma pessoa disse que
iria assumir já, e ficou de certo modo acompanhando comigo naquele período ali, e né? junho,
último mês do semestre, então sem problemas essa modificação, a pessoa assumiu e continuou.
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Julho é férias né? então férias ninguém ia ter trabalhado nem em Cipó nem... A escola estava
de férias, mas em agosto, beleza! Mudei para Cipó né? e o Andrade: “ Você vai morar aqui com
os meus pais, é..., por enquanto tá só você, e a sua tarefa é visitar as comunidades e nós vamos
oferecer para essa juventude um curso de datilografia né? aquele curso que você fez, agora
vamos repassar para os demais.”, Á, tá bom, tranqüilo. É... já tava enferrujado, fiz um
treinamentozinho pra melhorar, enfim. E aí eu fui nas comunidades né? Canafístula,
e Tamarina, é... Boa Vista, Capivara, Jardins, a gente ia dizendo “Olha...” ia na escola né?
dizendo “Olha, tem um curso lá no Cipó, a gente tá convidando vocês pra uma reunião” e
marcamos a reunião, enfim. E o Andrade chegava no final de semana e perguntava: “Como é
que tá indo aí?” aí eu falava: “Olha tamo indo visitar né? tamo visitando”. O seu Arão e a
dona Fransquinha me receberam bem né? e aí o seu Arão tinha trabalhadores, lidava com
criação, com agricultura também. E daí, às vezes ele tinha né? é... uma relação que era dura
com os outros né? havia, enfim, mas uma coisa que eu e o seu Arão sempre nos demos
profundamente bem, assim, na nossa história, eu passei um ano e meio lá morando com eles né?
e a gente nunca chegou a ter reclamações né? nem de um, nem de parte nem de outra. Foi muita
viagem com ele a Pentecoste, e aí assim, eu ficava muito admirado com essa relação
porque é... o seu Arão era um pouco mais esquentado a dona Francinha já era aquela pessoa
mansa né? mas enfim. E isso gerou um bem querer grande né? então assim gostava muito e
gosto do seu Arão, porque a gente teve né? uma relação extremamente respeitosa, amigável né?
e isso eu percebia e percebo muito mais agora, que não era uma coisa fácil né? porque
eu tava no mesmo contexto né?né? eu era do meio. Então a gente conseguiu criar uma
relação né? sabe é::, que ela foi harmoniosa. Enfim, foi uma pessoa que eu tenho um carinho
imenso, é porque eu reconheço nele o esforço também por isso né? sabe, de fazer bem, de fazer
o melhor não é? e gostava muito de conversar com ele. [Antes de começar esse período ele
começa a sorrir, um sorriso que transmite que será contada uma lembrança muito feliz para ele]
Lembro que a gente colocava a cadeira ali à noite pra ficar conversando no alpendre né? e eu
gostei sempre de conversar com os mais velhos porque eu era o mais novo e lá na minha família
o meu contato era com os mais velhos mesmos né? então eu sempre desenvolvi essa
compreensão de conversar com mais velho, achava bom isso né? Eu acho que isso ajudou né?
no ponto da nossa relação, que era uma relação muito próxima né? morava na casa dele. Então
isso foi uma experiência boa, rica para mim né? Começamos os trabalhos de datilografia, os
jovens vieram né? é... em torno de 20 pessoas foi a primeira matrícula, e o professor Manoel
Andrade ficava assim: “Olha, nós precisamos fazer algo mais, não temos muita clareza do que
seja”, mas enfim, então a gente passou agosto e setembro é... nessa busca, primeiro a gente
colocou o curso de datilografia. Na seqüência nós criamos uma escolinha de futebol que era
para trabalhar com as crianças, então eu tinha esse trabalho sistemático né? então eu trabalhava
em Capivara e esses meninos a gente buscava ter uma organização né? não era só futebol, a
gente se organizava, conversava, fazia as coisas direitinho. E íamos pensando no que fazer, o
professor Manoel Andrade: “Tem pessoas aqui que pararam de estudar há muito tempo, mas
vamos atrás deles né?”. Imagino que ele fez conversas sobre o ensino fundamental, fez
conversas com o pessoal que tinha terminado o ensino fundamental na comunidade e não
tinha pra onde ir, pra continuar ou para ir embora ou coisa do tipo né? lembro demais, foi o
caso do Beto, da Raquel que concluíram o ensino fundamental pelo tele-ensino, mas aí não
tinha como tá prosseguindo. Aí tinha o Francisco que era de Capivara, tava indo bem na escola,
mas estava fora de faixa né? tipo 18 anos, 19 anos, fazendo sexta série não é? Então essas
pessoas que ele foi conversando, elas foram entendendo o que era a proposta, era para formar
um grupo de estudos para as pessoas estarem estudando. E daí a gente começou em outubro a
sistemática no grupo de estudos, daí assim, começou a se definir essa questão do grupo. Então
é, nesse período de agosto e setembro, era aquele período da gente tá tomando pé, vamos fazer
o que mesmo né?? Aí eu lembro que na igreja a gente sempre, “vamos pedir orações a Deus
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para o que é que a gente vamos fazer, o que é que a gente pode tá desenvolvendo aqui, a gente
tinha umas idéias” mas enfim, a ideia quando ela tá no início, quando não tem uma referência
atrás você fica se perguntando “vai dar certo? É isso mesmo? As pessoas vão querer? Nós temos
clareza disso?” mas enfim. Começamos o grupo, professor Andrade, lembro demais, tinha uma
coleção de histórias né? da sexta a oitava série, sexta, sétima, não, quinta melhor dizendo, quinta,
sexta, sétima e oitava série, era o material que a gente tinha para tá estudando. Daí esse grupo
era composto por pessoas que tinham, somente eu tinha experiência com ensino médio através
do Logus 2. Os outros eram pessoas que tinham ensino fundamental completo, outros
incompletos né? enfim. Daí esse grupo topou o desafio de se sentar todas as noites, esse foi o
começo né? a gente sentava a noite para estudar. Lembro que tinha o Orismar, que era um dos
que tava naquela fase de: “Ah, eu tô ainda no ensino fundamental né?”, mas começou a
participar com a gente. O Francisco foi decidido: “Não, eu vou ficar aqui. O Du já tinha
concluído o fundamental, Raquel né? Beto, enfim, esse grupo que sentou para começar esses
estudos. É... A gente estudava só à noite né? e na luz da lamparina, não tinha energia elétrica,
quando nós chegamos né? Então, lembro que a dona Fransquinha disse depois: “Meu filho essa
luz né? vai estragar a vista de vocês” e ela botou para nós um lampião, muito comum de onde
não tem energia elétrica né? se tem um butijãozinho de gás, gás de cozinha né? e bota lá e
melhora, e dá uma né? claridade melhor [risos]. Essa época a gente fazia tudo na casa de farinha,
tanto o curso de datilografia quanto o curso funcionavam na casa de fazer farinha. Era uma casa
de farinha que foi construída pela associação né? na época o Adriano era presidente. Aí lembro
que na inauguração a gente foi, veio a primeira-dama de helicóptero, nossa, pra gente era uma
novidade imensa [risos], e é... como as dificuldades de apoio eram grandes né? sobretudo do
pequeno agricultor, aí não deu né? muita produtividade e tal, falta de apoio mesmo né? e ela
ficou meio abandonada, então o gado entrava por dentro, quebrava o piso né? Aí quando a gente
chegou lá, tava esse estado, aí o André: “Não, então vamos aproveitar aqui para um trabalho
que de fato seja em benefício da comunidade”. Estávamos nós lá, lembro que como
no cerão sempre tinha muita gente né? e o pessoal ia lá para a casa de farinha é:: pra se divertir,
e a gente dizia: “Olha, vocês fiquem calados porque nós estamos estudando agora, viu”, e daí
o pessoal dizia: “Ora, besteira né?”, mas enfim, o pessoal sempre respeitou a gente e entendia:
“Não, esse horário a gente não faz barulho por aqui”. A gente estudava, a nossa sistemática era
a seguinte: “Vamos ler, certo, aqui o assunto do capítulo do livro, nós vamos discutir e nós
vamos responder as questões que são colocadas ao final”, então sempre essa sistemática, lia,
fazia um debate “entendeu o que? ” né? “como é que ficou isso aqui? ”. Ia fazendo perguntas
uns pros outros, depois a gente pegava o questionário e resolvia esse questionário também. E
quando dava entorno de, a gente começava seis e meia, por ai né? quando dava oito horas,
lembro, a gente tinha um radinho lá, não sei quem doou aquele radinho quebrado mas ele era
muito bom né? Aí oito horas terminava a Voz do Brasil né? de sete às oito, cê não tinha música,
quando dava oito horas, tinha um programa lá, um programa de forró, então aquilo era certo,
toda noite, e daí juntava a gente com o pessoal que trabalhava na casa de farinha não é?
trabalhava no seu Arão e vinha para a casa de farinha, e outras pessoas também da comunidade
e fazia aquele momento de conversa né? deixava o rádio tocando. Aí daqui a pouco: “Pessoal
agora a gente vai retomar os estudos né?”, aí desligava o rádio, voltava, estudava mais uma
meia hora ali, né? uma hora, e encerrava. Então isso era sistemático também, o pessoal já sabia,
toda noite, então eles não bagunçavam porque já sabiam “não, quando der 8 horas a gente vai
lá, que é o momento de a gente fazer enfim as conversas” né? que é uma coisa que é muito
comum do interior, as pessoas gostam muito de conversar não é? e isso é uma coisa muito
saudável, muito boa não é? É... e daí, nós é... ficamos, né? mas antes de um mês de trabalho o
grupo percebeu que era muito pouco né? “olha, nós precisamos de mais tempo para estudar”,
aí veio a ideia de fazer o grupo durante o dia e a ideia de morar na casa de farinha. Eu pensei
que essa conversa foi feita muito mais com o Andrade não é? então há coisas que eu não lembro
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direito, mas com certeza alguém lançou a ideia e as pessoas disseram “ta bom”, então as pessoas
foram concordando com essa ideia, então nós vamos estudar em tempo integral na casa de
farinha. Isso aconteceu né? as pessoas passaram a estudar o dia todo, daí assim a gente usava
menos a noite, porque à noite, a gente estudava o dia inteiro e ficava cansado. O grupo de estudo
a gente estudava de manhã, estudava à tarde, eram de fato momentos de estudos intensivos. E
nesse primeiro momento as pessoas vinham e tentavam trazer alguma coisa para a alimentação.
Lembro que conseguiu-se um fogão de duas bocas, alguém doou, não sei se foi a dona Nenê,
que é uma pessoa da comunidade, que teve uma grande importância na vida de muita gente, de
todos nós né? mas de pessoas, de outras pessoas de uma forma mais [empolgação ao falar e
com isso ele acaba gesticulando mais que o normal], é... Profunda essa importância né? Por que
que eu digo isso? Porque, na verdade, eu tinha um mesmo apoio que era a casa do seu Arão,
mas as outras pessoas não tinham é... Familiares tão perto né? então tanto a dona Fransquinha
quanto a dona Nenê eram os apoios, sobretudo na questão da orientação né? na questão da
alimentação, porque assim, passaram a morar, traziam algumas coisas, mas era uma
alimentação né? muito difícil né? então os meninos moravam em cinco pessoas, seis, e essa
parte de alimentação é... Não era uma grande coisa, não era, é... Era difícil, muitas vezes não
tinha né? Daí assim tinha que ir para a dona Nenê e dona Fransquinha. Bom, então esse grupo
não é? ele foi criando uma identidade muito boa, é... Por conta é... Do grupo em si,do estudo
também, das dificuldades que a gente atravessava e sobretudo que a gente buscava se ajudar
bastante, se ajudar com o incentivo, trazendo a palavra de ânimo quando a gente tava, quando
algum de nós tava, é... Desanimando, isso é normal né? na trajetória humana, às vezes fica
muito difícil e têm horas que você fala “olha, eu acho que não vai dar, não é?”, a gente se
apoiava muito, então era um grupo que tinha, na conversa não é? essa convivência que nos
possibilitava a gente ir se fortalecendo, quando a gente tava com dificuldade o outro dava uma
palavra legal “vamos continuar, vamos perseverar”. A gente tinha um sonho muito claro: “Olha,
nós vamos chegar na universidade, é por isso que nós estamos aqui, é por isso que nós saímos,
é... das nossas casas, da comodidade do nosso lar e vir para cá, então para todos nós era um
grande desafio né? por mais que a gente tivesse condições, no meu caso eu tinha né?
alimentação e dormida era tranqüilo, mas saí da minha comunidade, os outros também, enfim.
Então a gente foi, a gente passou é... nesse primeiro período né? o primeiro momento, o primeiro
ano, essa dificuldade né? de “é isso mesmo? Será que a nós tamo no caminho certo?” E ao, a
comunidade também, ela - não compreendia muito né? muito bem, quando eu digo comunidade
eu falo no geral, nas comunidades né? inclusive o pessoal do Cipó, aliás, o Cipó era uma
comunidade muito pequena né? eu acho que tinham seis, oito casas. E o Cipó era quem mais
entendia realmente, era quem mais tinha pessoas que colaboravam, que acreditavam, que
incentivavam né? A dona Nenê também era professora, enfim, dizia: “olha, vocês estão certos
mesmo, é... daí a gente tinha esses incentivos importantes, mas também tinha desincentivos
enormes não é? Tipo, diziam: “Á, mais que povo preguiçoso não é? não tem coragem de
trabalhar e fica dizendo que ta estudando, não tem coragem de ajudar os pais”. E a gente sabia
que tinha é... pessoas, grupos que de fato, precisavam é... de fato precisavam que eles
estivessem trabalhando lá, mas também entendiam: “Olha, você ai vai construir um futuro
melhor né?” e as pessoas só viam o imediato, né? Então esse imediatismo fazia com que as
pessoas da comunidade tivessem esse olhar. Isso não durou muito tempo porque esse grupo
começou a desenvolver também né? uma relação de saber, de aprendizado, de colaborar com
as escolas da comunidade, isso foi um ponto fundamental para a gente. Por quê? Porque nós
fomos adquirindo conhecimento, fomos acumulando conhecimento e é... cada pessoa daquele
grupo tinha uma habilidade para uma determinada matéria né? naquela época era matéria
mesmo, não disciplina, e tinham os que trabalhavam com língua portuguesa de forma mais
desenvolta, outros com a matemática, outros com a biologia, com história. E o tele-ensino que
era a oferta de ensino fundamental em algumas comunidades, ele tinha só um professor para
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trabalhar com todas as disciplinas do ensino fundamental né? então muitas vezes o professor se
via sem a condição devida. E aí a gente foi criando aquela, é... fama entre aspas [ele faz o gesto
das aspas para enfatizar e comenta sorrindo, pois o comentário é um elogio] “Olha, o pessoal
ali né? sabe, tão sabidinhos e tal na casa de farinha”, a gente começou a ser convidado para
ministrar aulas de conteúdos específicos, “o assunto tal você sabe? Sabe”, “Quem é que sabe
aqui? Olha, Chicão sabe, Norberto sabe, Toinho sabe, enfim, o Beto, o Du”, a gente começou
a desenvolver essa relação com a comunidade né? que de certo modo era um retorno daquele
grupo, para dizer: “Nós estamos aqui, nós estamos crescendo e podemos contribuir também”.
Então isso gerou um respeito enorme da comunidade né? um efeito muito grande. É... o
Andrade sempre foi uma grande liderança, em termos de comentário né? em termos de
organização, e isso ajudava o grupo a ter essa credibilidade né? essa aceitação. Nós temos o
trabalho do Andrade que era um trabalho consistente né? que vinha há tempos, e esse trabalho
do próprio grupo, que agora tomava uma identidade e passava a ter uma relação com a
comunidade, na forma de auxiliar né? os professores em algumas questões que eles, é... nos
demandavam, pediam para que a gente pudesse contribuir. [Ele começa a sorrir ao lembrar-se
do momento] Então a gente passou a ser convidado para vários eventos né? nossa, então esse
grupo, ele teve assim o auge né? [risos mais enfáticos nesse ponto da fala], imagina, eu vivi,
vivenciei essa experiência durante um ano e meio, porque depois de um ano e meio eu já passei
na universidade a ai a relação muda porque de certo modo a gente voltava só no final de semana
né? mas nesse um ano e meio, um ano e meio tão intenso né? profundamente intenso, por
exemplo, a escolinha de futebol, nós treinamos essa escolinha, houve um campeonato, nós
fomos campeão nesse campeonato com essa escolinha de futebol né? pra foi muito importante
e pra gente foi um prêmio muito grande, porque as escolinhas também eram bem organizadas,
enfim. Mas nós tínhamos um trabalho educativo, nós tínhamos um trabalho de fazer, passar
vídeo para esses meninos né? para fazer conversa, e nós não tínhamos um time tão bom do
ponto de vista dos jogadores, enfim, foi construindo o grupo. E foi uma satisfação enorme né?
é... chegar num campeonato, disputar, encontrar dificuldades né? E ai a gente tinha um sistema
de som, que transmitia os jogos, [começa a rir enquanto fala] e eu lembro demais que tinham
crianças que ficavam tão admiradas com aquilo né? que dentro do campo, dentro do jogo, eles
começavam a ouvir a transmissão e paravam e ficavam assim ouvindo né? eu lembro que a
gente levou um gol desse jeito, nos os jogadores, meninos né? 10, 11 anos, não sei, e tava tão
empolgado com aquela narração né? que parou e ficou olhando, e lá veio à bola, passou e ele
não viu, e veio o outro e fez o gol e depois “gente, por favor, né? vamos ter cuidado, nós estamos
no jogo, depois a gente vai ouvir né? os outros jogos narrados, quando a gente tiver em campo
vamos ficar mais atento né?”. Então tivemos um começo difícil né? perdemos jogos, mas fomos
nos classificando, fomos nos fortalecendo né? e chegamos a ser campeão, nossa foi uma festa
bonita. É... isso foi gratificante para mim, gratificante para o grupo né? uma coisa bacana. É...
lembro que também tinha uma creche né? uma creche que era coordenada pelo prece, tinha uma
relação com a “Febencio”, relação com uma instituição do estado, não lembro bem direito o
que é que era, mas enfim, a gente tinha turno manhã e tarde, e eu fiquei apoiando essa creche,
esses professores, cuidando na compra da alimentação né? cuidando das questões estruturais
pra que a creche tivesse as condições né? necessárias. E essa creche ela ficava numa escola no
comecinho da Capivara que era a casa do senhor Milton, tinha um grupo lá, que se não me falha
a memória, eles não tinham mais as aulas é... pela prefeitura porque tinha outra escola mais
adiante e concentrou tudo lá. Então esse grupo passou a ser exclusivo para a realização do
atendimento a creche, tinha turno manhã e tarde né? então eu coordenava o grupo e estudava
né? porque eu era também um estudante, tinha a escolinha de futebol, eu era professor no curso
de datilografia e acompanhava a creche. Mas isso tudo me ajudava a crescer muito né? nossa
[ênfase vocálica], porque eram atividades distintas né? e de certo modo, quando eu ia para a
escolinha de futebol né? era um momento de, ficava muito leve né? a questão do esporte e tal,
380
da creche era outra questão que a gente aprendia, enfim. Através da creche eu participei né? do
primeiro é... do conselho da criança e do adolescente de Pentecoste né? como membro titular,
lembro-me que a gente foi lá na Câmara né? foi a posse desse grupo. É ai que eu digo que foi
muito intenso né? pela convivência né? com esse grupo, é... e também com as outras atividades
que a gente desenvolvia [gesticula muito com as mãos em movimentos circulares durante essa
frase] que portanto a gente começou a ser reconhecido como um grupo com capacidade. Então
aí, com essa questão da intensidade de atividades né? e de viver mesmo. Ã... nós tínhamos uma
escolinha de futebol, eu era o treinador, acompanhava isso, era, ficava em Capivara. Nós
tínhamos o curso de datilografia que era ministrado é... na casa de fazer farinha, inicialmente
eu fui o único professor mas depois nós fomos compartilhando com outras pessoas que foram
concluindo, já acompanhavam né? já davam suporte, e nós certificávamos essas pessoas, nós
fazíamos festa de conclusão e entrega de certificado, era um negócio fantástico né? muito bom
e isso motivava muito o grupo, as pessoas não é? e eu também coordenava uma escola, aliás,
uma creche que ficava também em Capivara mas no comecinho da comunidade, fica numa
escola que já havia sido é... não havia mais aulas porque já havia sido construída uma escola
nova, e daí essa escola passou a abrigar essa creche, que era mantida pelo convênio da
associação ACOMPARCC né? Da qual a gente tinha esse amparo legal e o Governo do Estado
de Ceará, não lembro bem ser era a Febence, ou era alguma coisa, não sei o que é que era, mas
enfim. Lembro que uma vez eu tive que vir aqui em Fortaleza tratar disso, mas, sobretudo
cuidava da compra das, da alimentação desses meninos né? Daí todas as vezes, todo mês eu ia
com o seu Arão pra Pentecoste, lista de compra na mão né? depois acompanhar se estava tudo
ok, se estava tudo na mão. É... daí, a rigor, a rigor né? é... esse trabalho, ele já poderia chamar
de PRECE, embora PRECE não tivesse ainda com o nome formalizado né?? Isso foi
caminhando e o professor Manoel Andrade todo final de semana estava com a gente, trazia
professor às vezes né? para nos, ministrar aula para esse grupo né? pra gente que estava ali
estudando. A gente ia nessa dinâmica né? muito intensa né? No grupo, quem ia em casa sempre
trazia alimentação e quando eu ia em casa, toda semana, também trazia né? trazia coisas simples,
trazia bolacha, rapadura, farinha, mas isso era uma coisa boa não é? porque o outro que era
pescador trazia peixe né? cada pessoa trazia alguma coisa de maneira que é... quando a gente
saía, isso já era um sinal do comprometimento né?: “Olha, eu me preocupo com quem tá lá
também” e isso era fortalecer a identidade desse grupo né? ou seja, unir esse grupo. É... diante
de tudo isso né? a gente foi construindo também essa identidade de nome: “Á, então vamos dar
um nome não é?”. Hoje a associação trabalha com muitas coisas e nós queremos trabalhar só
com educação não é? e o professor Andrade: “Olha, vamos trabalhar só com educação” então
vamos deixar a, a associação para quem quiser tocar né? mas de qualquer modo a gente vai se
focar na educação né? agora: “Tá bom né? que nome?”, ai foram surgindo vários nomes e o
nome que ficou, que foi aceito foi Projeto Educacional Coração de Estudante, que a sigla passou
a ser PRECE né? lembro que a gente fez uma, um evento né? para lançar o PRECE, fizemos
uma lista de assinaturas, devemos ter isso porque ficou lá uma lista para quem vem participar
do evento né? fazer assinatura, dizer que esteve ali. E daí, então nós passamos a constituir o
grupo e também juridicamente, a gente foi no cartório reconhecer no papel e “ta aqui, agora
tem uma associação para os estudantes, chamada Projeto Educacional Coração de Estudante”.
Isso foi por volta do ano de 95, né?? Não lembro bem o ano, precisa consultar esse documento,
porque a minha relação com o PRECE continuou, então tem momentos que eu não sei se foi
antes de entrar na faculdade ou se foi depois. Eu até penso que essa relação de institucionalidade
foi depois que eu entrei na universidade que foi por volta de 96, eu não tenho claro o tempo né?
se foi antes ou depois que eu entrei na universidade, mas enfim, foi um momento de fazer uma
solenidade, juntar a comunidade né? e tinha a comunidade de Canafistula que é uma
comunidade é... comparativamente ao Cipó, grande não é? digamos, e vinha muita gente né?
tinha muito apoio, e também tinha muita resistência nossa né? da comunidade, de algumas
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pessoas [risos nessa última frase], mas enfim, era uma relação que nos ajudou profundamente
esse apoio né? e hoje é uma comunidade que tem uma quantidade de pessoas na universidade
que eu acho que é a comunidade com mais estudantes né? é... por pessoas que moram na
comunidade né? deve ser a comunidade com mais per capita de universidade, aliás de pessoas
já graduadas, enfim. Então, essa né? todo esse trabalho a gente é... lembro que 96 era a última
vez que a Universidade Federal ia fazer um vestibular no meio do ano, era o último ano ali, é...
que a gente iria ter oportunidade né? A gente ficava na igreja, orava né? pedia a Deus orientação.
Uma coisa importante também foi a igreja, acho importante ressaltar isso. Teve uma vez que o
professor Manoel Andrade destinava um recurso todo mês para a alimentação dos meninos que
moravam na casa de farinha. A igreja também contribuía com uma quantidade de recurso todo
mês para destinar a alimentação dos meninos, no caso a Congregação de Cipó, era uma
congregação pequena, porém é... tinha uma visão muito grande, tinha uma visão imensa a
respeito daquele trabalho. Daí é, muitos desses grupos também tiveram uma compreensão cristã
da vida não é? passaram a ter outra relação com questão da, não diria nem da religião, mas de
ser cristão né? de compreender, de se envolver, enfim, nós começamos a participar da igreja,
né? E a igreja teve um grande papel no apoio espiritual, não só no sentido da oração, no sentido
de nos fazer conhecer melhor a proposta do reino de Deus, nós fomos nos aproximando, fomos,
enfim, nos alimentando disso, sempre essa proposta de que o trabalho né? social, a
responsabilidade social é uma coisa inerente ao trabalho cristão, nós fomos aprendendo isso
também com a igreja, ela foi referência de ponto nesse sentido, não só espiritual, mas também
com a preocupação do social. Isso é uma marca muito importante. [entusiasmo iniciando] Então,
daí, lembro, a gente tinha essa movimentação toda era convidado para festas nas comunidades
né? Uma vez a gente cantou na Canafisto, eu e o Du, lembro a gente cantava um pouco: “Vamos
fazer depois da novena um momento de música, né?” e a gente cantando né? [risos]. E era mais
um aspecto de que esse grupo tinha potencialidade, enfim, a gente era, de fato, tinha essa
interação com [gaguejos] as comunidades né? e isso nos gerava também uma satisfação enorme
né? nos fazia muito bem. Bom, começamos em outubro de 2004 né? a estudar, quando foi pra
julho de 2006 né? aproximadamente teve aí um pouco mais de um ano e meio de começo do
trabalho, então devemos fazer o vestibular né? Aí o Andrade disse: “Toinho, você aqui tem
muitas atividades, eu acho que você tem que se afastar disso, se afastar, você precisa... vai ter
que ir lá para casa em Fortaleza”. Daí eu disse: “Sério?” “Vamos para lá dois meses antes né?
para você... Aí vai deixar a escolinha né? porque a escolinha lhe toma um tempo, tem a creche
que lhe toma um tempo e tem outras atividades aqui na comunidade e você vai lá, nesses dois
meses, se dedicar exclusivamente a estudos. Tudo bem né? concordamos, fomos, então isso é
de uma generosidade muito grande né? porque você levar alguém para a sua própria casa, aonde
você já tem filhos, é... tem as pessoas ali da casa e não era um apartamento grande, era um
apartamento pequeno, inclusive né? A gente vai vendo isso depois né? vai vendo a questão do
desprendimento, e nem sempre você vê na hora, mas depois você pega e começa a perceber
com a experiência de vida, com a própria experiência de vida e vai vendo esse desprendimento
né? esse espírito solidário, então eu passei dois meses lá, imagina não é? é... um apartamento
pequeno com cinco pessoas né? aí tinham outros que vinham do interior para fazer prova, então
se juntavam todo mundo é... enfim, era uma coisa muito comunitária né? só quem tem um
espírito muito solidário consegue fazer isso né? e enfim, sou muito grato por isso, porque foi
um tempo muito importante para mim também né? para que eu pudesse me concentrar mais, e
isso foi uma coisa extraordinária, enfim. Passei dois meses aqui me preparando né? aí o
Andrade conseguiu uma vaga no pré-vestibular do curso de história, PNV, pré-vestibular
histórico que a universidade tem, e daí assim, a gente tinha feito uma revisão completa, no Cipó,
do ensino fundamental, completinha né? da quinta a oitava série, todas as disciplinas, a minha
ideia era avançar em outros, outras, no ensino médio por exemplo, mas aí quando eu ia para
aula né? no ensino pré-vestibular, nem sempre, aliás, no geral, quando era física, matemática e
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química eu não entendia nada, aí comecei a dizer: “Olha, nesse horário aí eu não vou, se eu não
vou entender nada, eu perco o meu tempo”. Como tinha a disciplina de estudar em grupo, de
estudar sozinho, então eu fui organizando os horários e temas para ir estudando, história,
geografia, língua portuguesa né? biologia, espanhol, então eu ia porque aquilo me acrescentava
né? me acrescentava. Maravilha. É..., estudei dois meses né? tinha final de semana que eu queria
ir para casa, aí o Andrade: “Não, vai não, vai não. Você veio para estudar então vai ficar aqui,
você vai ficar estudando, né?”. Eu sei que isso era uma coisa importante da experiência de vida
dele e eu não enxergava, porque a questão da saudade né? família, namorada, enfim, aquelas
questões “não, você veio para estudar, vai ficar aqui”. Às vezes eu não concordava, tinha que
ficar, mas enfim né? mas foi uma coisa boa né? aproveitei melhor esse tempo de dois meses
que foi uma coisa curta né? É..., chegou à época do vestibular e nós não tínhamos experiência
alguma com vestibular, era a primeira vez né? primeiro participante, e como o vestibular era
sábado e domingo e o Andrade tinha sempre o trabalho no interior, realmente eu fiquei lá para
fazer o vestibular né? Fui no primeiro dia, okay, já conseguia me locomover de certa forma,
razoavelmente em Fortaleza, quando eu queria alguma coisa o Andrade: “ta aqui o endereço,
vá lá, você só aprende se for assim, se eu for lhe deixar lá, você não vai aprender nunca. Tá
aqui, ônibus tal e endereço tal”, e eu ia né? enfim, fui aprendendo a me, é... a ter um pouco de
autonomia. Fiz a prova né? o primeiro dia de prova. Eram dois dias. Um dia era provas da
disciplina né? português, história, geografia, biologia, espanhol, eu escolhi a língua espanhola
né? é... física e química, enfim. Mas antes disso quero só dizer assim, com a física e a química,
eu peguei dois assuntos né? peguei mecânica na física e peguei não lembro que assunto na
química né? Às vezes: “eu só vou estudar esses dois assuntos aqui porque eu só tenho dois
meses, tem coisas que eu não vou poder nem ver, quanto mais aprender não é? Então eu vou
garantir aqui dois assuntos, que eu aprendendo, se sair questões desse conteúdo aqui na prova,
eu faço, né?”. Fiz isso. Mecânica, questão de aceleração, questão de física consegui, dominei
aquele assunto, era um assunto pequeno, né? mas dominei, se sair aqui, eu faço. Da química
também, era uma questão da tabela periódica né? lembro. Tabela periódica. Se cair da tabela eu
faço. Beleza. É... na prova eu vim e fiz um e tal, quando chegou na matemática acertei uma
questão de, lembro demais, era uma questão que perguntava, ela dava, não era um quadrado,
ela um retângulo né? Dizia: quantos é... cerâmica vai caber aqui com espaço x? Acertei essa
questão, lembro demais como se fosse hoje. Questão da física também saiu uma questão que eu
sabia né? essa eu sei, essa eu faço. Da química, uma questãozinha, essa eu sei, ta aqui, ta
garantida né? Então assim, creio que Deus, ele também foi né? me abençoou nesse quesito
porque eu estudei coisa pequena né? mas o que eu estudei saiu na questão. Então eu pude
garantir uma questão, e naquela época você não podia zerar. Era questão de múltipla escolha,
você tinha que marcar vários itens em uma mesma questão, você zerou estava perdido né? Mas
o fato inusitado foi o seguinte, física e química, a rigor eu não conhecia né? não sabia, e eu fiz
as provas, as outras né? Eu fui entregar o gabarito, tipo faltando uma hora e meia ainda para
concluir o horário da prova. E o fiscal viu que estava em branco o gabarito né? e sobretudo na
química e na física, e a gente podia escolher aleatoriamente né? eu não sabia disso, eu não sabia
porque a gente não tinha orientação né? experiência, o Andrade fez o vestibular há tantos anos
né? atrás né? E aí, fazer eu não sabia, o que eu não sabia eu não chutava. Aí o fiscal: “Olhe,
tem uma hora e meia ainda, volte para essa prova, você pode fazer mais coisas aí ainda”. Aí eu
do interior e tal um pouco tímido né? Então ta bom, eu voltei e li a prova, não tem o que eu
saiba mais aqui, não tem condição, fui lá “ta aqui, não, vou devolver”. Enfim, eu não marquei
nada além do que eu achava que sabia né? teve questões que eu errei, mas eu marcava aquilo
que eu achava que sabia, o que eu não tinha a menor ideia, ficou em branco. Porque eu não
tinha a menor noção. Entreguei a prova, no outro dia era redação. Lembro que eu dormi um
pouco mais e fiquei atrasado né? Aí essa prova era no Pici, mais perto, aí dava para ir a pé,
então eu fui literalmente correndo para chegar lá dentro do tempo hábil. Fiz a prova. Lembro
383
que o tema da redação que eu fiz, era uma dissertação, aí eu tinha uma certa desenvoltura né?
e teve um colega nosso [ele pronuncia algo não identificável] que me orientava muito, “Toinho,
você está escrevendo bem, né? Eu acho que assim, você tem como fazer uma boa dissertação.”.
Então ele disse que eu era bom na dissertação mesmo, na argumentação, fruto do que eu
conhecia e fruto também dessa questão de assistir o rádio, o informativo né? com meu pai lá de
trás me ajudou muito né? Beleza. Eu fiz a redação, beleza. Depois eu fui ver com o Andrade as
questões, o resultado da primeira fase. Eu não lembro o que que era a segunda fase, se era
redação, sei que na primeira fase eu fiquei em 14º lugar para o curso de pedagogia.
[85’02’’]
E a minha relação com o PRECE ela foi sempre assim, intensa nos finais de semana, voltava
toda sexta feira a noite, quando muito sábado de manhã, a gente continuava dando aulas para o
grupo que ficava, participando da igreja né? participando lá em casa, participando com a família,
lógico né? nunca deixei que a gente perdesse esse contato próximo. Depois a gente
experimentou a vinda do pessoal de Pentecoste para o Cipó, foi um desafio, por volta do ano
2000, eu acho. Então assim, com a minha aprovação, a gente teve um momento de afirmação,
“olha, o estudo aqui, é um estudo que tem resultado, ele dá certo, é possível conquistar o sonho
de entrar na universidade né?”. Então é, a gente fez uma festa pra comunidade: “Olha, ta aqui
o nosso primeiro aluno, em primeiro lugar”, então a comunidade foi e participou, a igreja
sempre presente né? o pastor Áureo, que é aqui de Fortaleza e foi também nesse evento né?
comemorativo, minha família tava lá. Enfim, foi um momento para dizer para comunidade que
aquele trabalho né? era um trabalho sério, de busca da realização dos sonhos, da perspectiva
melhor de vida para cada pessoa que tava ali, naquele esforço de estudar e alcançar seus sonhos.
Então isso foi um impulso muito grande e aí, eu lembro que quando a gente começou, tava com
um ano e meio né? digamos, e o Francisco, ele estava fazendo a sexta série do ensino
fundamental, em dois anos no máximo ele ia terminar o ensino fundamental, eu lembro que
como o último vestibular era no meio do ano, mas no final do ano houve o vestibular do ano
seguinte, e Francisco, ele se candidatou ao vestibular né? e ele fazia o supletivo, que era
também outra atividade intensa para quem não tinha concluído o ensino básico né? além de se
preparar para o vestibular tinha que se preparar para as provas do supletivo, fazendo em
Fortaleza né? vindo com o Andrade, enfim, era uma coisa difícil, pela sua estrutura né? além
da questão do conhecimento. Então o Francisco, ele fez o vestibular né? lembro como se fosse
hoje para engenharia de pesca, que a identidade dele com a pesca era grande, ele era pescador,
o pai dele era, é pescador, [ele comenta rindo de felicidade] daí ele foi aprovado também, nossa,
foi outra vitória imensa né? porque na verdade, sem concluir né? e depois teve que correr para
concluir, porque no ato da matrícula ele tinha que ter o certificado né? Daí assim, foram essas
coisas que foram fortificando o grupo, fortalecendo e o grupo começou a se ampliar, começou
a ter pessoas interessadas a participar. Então, o grupo ficou muito tempo com 7/8 pessoas, de
muito tempo tipo, um ano, dois anos, dois anos e meio. E aí, a primeira grande mudança
acontece no ano 2000, se não me falha a memória, que é quando o pessoal de Pentecoste resolve
estudar aos fiais de semanas em Cipó, e é com um grupo de aproximadamente 40 pessoas,
comunidade pequena, uma estrutura também pequena, embora foi se modificando, a gente foi
adaptando a casa de farinha à ser uma casa de estudante né? a ter uma estrutura que pudesse
recepcionar pessoas para se instalarem né? para ter onde dormir, enfim. Daí a gente teve esse
desafio, nós recebemos esse grupo durante o ano inteiro, foi um esforço enorme, porque a gente
passava a semana aqui e os meninos se preparando no final de semana era muito intenso porque
era muita gente, mas foi outra experiência profundamente significativa. É... nós tivemos é...
nesse período, da seqüência, nós tivemos o Adriano que foi aprovado no ano seguinte, tivemos
a Ana Maria, a Aninha, que foi aprovada, tivemos o Beto. É... o Genival, quando o grupo de
Pentecoste chegou, nós tínhamos em torno de 5 ou 6 pessoas na universidade, e é óbvio que foi
isso que mobilizou esse grupo de Pentecoste, foi a quantidade de pessoas do Cipó que estavam
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entrando na universidade. E os jovens também tinham esse sonho, mas não tinham preparação
devida então decidiram ir para Cipó. Foi um ano inteiro de preparação, então nós tivemos uma
aprovação maior no grupo que tava concorrendo. Muitos jovens que vinham com a cabeça, sabe,
urbana né? de brincadeiras, muitas vezes de não levar os estudos a sério, mas que no Cipó eles
mudaram esse pensar, esse olhar, esse perfil e nós tivemos depoimentos deles, de vários deles:
“Olha eu vim aqui só para brincar, porque vinha gente e eu vim também”, mas acabou que o
trabalho em Cipó me mostrou que a realidade é outra, que nós precisamos nos comprometer,
nós precisamos nos envolver, e que portanto, nós somos responsáveis por aquilo que nós
almejamos para conseguir, a gente não consegue por acaso né? tem todo um trabalho, tem todo
um esforço para poder conseguir, e isso também foi impactante na vida daqueles jovens né?
que aprenderam não só o conteúdo, mas aprenderam noções que ajudou essas pessoas a ter um
olhar diferente, uma postura diferente diante da vida, que é preciso se envolver, que é preciso
ter o esforço, enfim, para você conseguir realizar os sonhos né? Daí nós começamos, o esporte
continuou né? então o campeonato acontecendo, depois a gente passou a participar de
campeonatos na própria sede do município, então futebol é sempre um ponto relevante, [começa
a gesticular com as mãos para dar ênfase a sua fala] um ponto também de trabalho, era um
ponto também que a gente usava como estratégia educativa, usava para representar a nossa
proposta de trabalho no PRECE né? um trabalho solidário, um trabalho de respeito ao outro.
Então a gente também tinha essa filosofia no futebol né? O futebol era representativo das ações
do PRECE né? era um dos ideais do PRECE, e ele não era somente uma questão de lazer né?
mas ele era além do lazer, uma questão de filosofia, de uma ideia. Levamos isso adiante. Me
casei em 99 né? imagina um negócio meio maluco né? não tinha me formado ainda, mas enfim,
fiz isso, continuei retornando aos finais de semana né? para as atividades, e fiz isso
sistematicamente até 2003. 2001 passei... [interrompe o pensamento] me formei em 2000. 2001
houve um concurso para professor do município, eu fiz o concurso, fui aprovado não é? Daí já
comecei a trabalhar como professor do município em Fortaleza. Durante esse tempo de
graduação, eu aprovei também para na universidade, construir um caminho né? experiência boa.
Eu fui o primeiro bolsista de extensão do PRECE. Lembro que em 2008 nós registramos o
PRECE como um programa de extensão da universidade. Eu e o Andrade, lembro, conversamos
com o professor Renê Barreda, na época ele era o pró - reitor de extensão. Tinha, não lembro
quem era o reitor, mas tinha outra pessoa intermediando, mas lembro né? que o Renê recebeu
muito bem a proposta, registramos como extensão e fui o primeiro bolsista do PRECE. Aí eu
passei a ir também durante a semana, porque a atividade de extensão, a gente conseguiu um
carro daqui e nós íamos ministrar aula uma vez durante a semana, todas as semanas na
comunidade de Cipó. Então assim, é só uma trajetória bastante rica na questão da participação.
No movimento estudantil, também participei, fui da Executiva Nacional dos Estudantes de
Pedagogia, que era uma instância que cuidava dos eventos anuais do curso. Em 2003, a gente
organizou, nós fundamos o PRECE aqui em Fortaleza, no bairro do Pirambu, experiência boa,
aonde até hoje nós temos esse trabalho, é um trabalho que tem surtido assim um resultado muito
bacana para a sociedade, é diferente das cidades do interior que as comunidades passam a
vivenciar isso e na cidade grande por falta da nossa disponibilidade de tempo, você não
consegue envolver muito a comunidade, mas você envolve pelo menos esses estudantes e eles
passam a ter uma visão, uma postura né? diferenciada dentro dessa comunidade e a gente vai
assim possibilitando que essas pessoas possam ter outra visão de mundo, no contexto em que
elas vivem, naquela cultura ali que não propicia isso, mas o projeto ele busca oferecer esse outro
olhar. Temos vários alunos graduados, vários alunos em concursos, vários né? na saúde, na área
militar, porque o pessoal lá é muito propenso a isso né? tem a marinha ali encostado, enfim eu
sei que muita gente lá tem esse desejo de ir para a carreira militar né? e temos esse trabalho lá
até hoje. Graças a Deus. E é um trabalho feito também nas dependências da Igreja Presbiteriana
Independente, que disponibiliza as suas salas de aula para que esse trabalho ocorra. Daí hoje
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nós temos somente pessoas do Pirambu a frente, mas inicialmente nós tínhamos várias pessoas
das comunidades nossas né? que apoiaram, Angelina, Elizângela, que são de Canafisto e deram
um grande apoio nesse começo, o Wilton de Pentecoste, o Marciano, o Titer né? o Rafael que
ainda hoje a gente conversa e ele diz: “Olha, não tenho mais tempo para ir, mas foi um
experiência boa”. Então nós envolvemos também pessoas que eram desse nosso grupo né? na
comunidade, no bairro di Pirambu, que quando nós chegamos era uma realidade muito dura né?
Nós não contamos as vezes que nós chagava e estava o pessoal que fumava entorpecentes, que
lá na frente a gente saía e tinha que sair de frente para eles e era uma situação muito difícil, mas
hoje está bem diferente né? Hoje a gente já tem uma situação muito mais tranqüila, e mesmo
assim nós persistimos com o trabalho na comunidade, que percebemos a importância dele para
aquela juventude né? sobretudo para pessoas de mais idade que participavam, tinha gente de 50
anos que participava também desse estudo lá no Pirambu. Em 2001 entrei na prefeitura, em
2004 entrei no mestrado aqui na Faculdade de Educação, foi outro passo também importante, e
a minha dissertação foi o PRECE, trabalhando mais essa perspectiva das ressonâncias políticas
e culturais, porque o PRECE ele passou a ter iniciação política né? e daí eu fui discutir essa
questão pra que ele, enquanto PRECE, começasse a prestar atenção nisso. E aí o PRECE
organizava encontros com todos os candidatos a prefeito. O PRECE não tomava partido, mas
ele fazia essa mediação de debate, isso foi uma inovação muito grande, foi uma oportunidade
que possibilitou que o eleitor olhasse no olho do candidato e falasse, fazer perguntas e, de certo
modo né? criar uma condição de cobrança posterior né? porque não era só a questão do palanque,
era a questão do olho no olho. Isso foi uma mudança imensa na cultura política do local, mas é
uma história longa né? e hoje o PRECE vai lidando e aprendendo e contribuindo com isso,
porque isso é uma questão processual. Depois disso, depois do mestrado eu diminui a minha
ida ao PRECE né? porque ficou o mestrado, eu ia só para entrevistar pessoas né? já não estava
mais envolvido com a questão das aulas, fiquei até 2003, sobretudo em Pentecoste, o PRECE
foi se expandindo né? essa história da expansão, então a gente foi acompanhando, contribuindo
né? e fizemos isso enquanto éramos possível, os afazeres foram diminuindo né? foi diminuindo
o nosso tempo, os afazeres foram aumentando. E daí eu participando do Pirambu né? eu
participo até hoje, e eventualmente participando de eventos do PRECE, mas não to envolvido
mais na comunidade, nos trabalho da comunidade. Né? assim, então o PRECE passou por
transformações enormes. Essas transformações eu já acompanhei muito mais de ouvir né? de
conversar com os meninos, mas não de participar efetivamente delas. Então hoje o PRECE é
uma instituição de um grande respeito, Instituto Coração de Estudante, na época eu também
estava participando dessa mudança, das discussões, como é que vamos passar agora à Instituto?
Por que né?? Qual é a razão, objetivo de a gente dar esse outro passo Institucional? Enfim, é
uma trajetória de, uma relação saudável, uma relação que é... marcada com grandes
aprendizagens né? As dificuldades acontecerem né? mas elas também me ensinaram muito em
uma carga de conhecimento que me ajudaram a entender melhor as questões da vida, elas de
certo modo nos ensinam né? ensinaram de uma forma profunda também todas essas questões.
E daí assim, hoje eu vejo o PRECE como uma instituição de um peso grande, para o município
de Pentecoste, quando eu vejo os meninos trabalhando em programas de rádio, desenvolvendo
ações junto a agricultores, agricultoras. Isso é... nos mostra o quanto né? o ideal lá de 94, ele
foi se ampliando, mas sobretudo é... foi se tornando consistente, no sentido de que a ideia da
solidariedade né? a ideia de que a gente construa uma educação que seja capaz de nos mostrar
que o trabalho solidário em grupo né? isso nos fortalece e nos dá as condições necessárias para
fazer as mudanças não é? e sobretudo realizar sonhos. Então isso para mim hoje é muito claro
né? e eu vejo o PRECE desse modo, mesmo estando com o trabalho mais focado no Pirambu,
mesmo tendo responsabilidades outras né? na prefeitura de Fortaleza, enquanto coordenador da
Educação de Jovens e Adultos, coordenador do Programa Brasil Alfabetizado, atuo também no
PRONEREC, que é educação do campo, então assim, peguei as minhas duas bases de origem
386
para trabalha, que é a educação do campo e a educação de jovens e adultos, que isso ia me
ajudar também não só no conhecimento teórico, mas prático né? das questões que são
desafiantes, nesses dois segmentos, e aí que a gente faz a trajetória é... bastante agradável né?
Aí pessoalmente, é... eu tive um relacionamento de 9 anos num casamento né? mas terminou.
Tive filho nesse casamento. E depois tive outro, tenho uma filha de três anos, que é também
uma grande fonte de ensinamento né? Nossa, como a gente aprende e amadurece né? porque
você vai se defrontar com outras situações de vida né? com outras formas de olhar a vida
também, com outras responsabilidades, então isso dá também um crescimento extraordinário.
E eu percebo isso claramente, o quanto a gente amadurece com filho, enfim. Então hoje eu
tenho uma relação familiar onde tem filha, que é uma coisa maravilhosa né? E a gente vai se
entendendo, vai se compreendendo né? e eu acho que essa é a vida né? a vida que segue, é a
vida que a gente precisa respeitar o outro profundamente né? sempre. E cada vez que a gente
errar é preciso retomar essa caminhada. E cada vez que a gente cair um pouco, é preciso levantar
e seguir né? com esperança, [gaguejos] sem mágoas, eu acho que isso é uma coisa muito
importante para a vida né? A vida é muito importante para a gente viver com pesos né? que não
nos ajudam a olhar a vida de forma bonita como ela é né? como ela nos oferece, como ela se
apresenta para todos nós. Então eu creio que o valor da vida em si ele está para além dessas
questões e a gente deve sempre ter a esperança e confiar, sobretudo no nosso criador né? no
Deus que nos criou e que nos colocou nessa vida para viver bem né? E a proposta que ele tem,
é uma proposta comunitária, é uma proposta que ela nos reconhece como seres limitados, que
erramos [ele bate no peito], mas, sobretudo temos que a capacidade de continuar, então isso
ficou sendo a minha filosofia de vida né? de continuar sempre. É, de experiência importante,
nos anos 2000, 2001, 2002, é que eu também estava coordenando a educação de jovens e adultos
no PRECE, através de uma parceria com o EJA de Itapipoca. E daí eu lembro que a gente passou
a atender muito mais alunos, e aí a gente atendia na própria comunidade, não tinha a necessidade
de o aluno ir para outras comunidades para realizar as provas, porque se passaria a permitir que
o aluno fizesse a prova na própria comunidade. Isso foi uma conquista muito grande e a gente
foi implementando outras ações também como estimular os alunos a já [gaguejo] no, na EJA,
começaram a fazer leituras, a fazer resenhas, fazer resumo de textos, a desenvolver com eles a
cada período, semestre, uma atividade que nós chamávamos de gincana cultural e esportiva,
então a gente fazia né? uma programação esportiva, que tinha desde corrida, tinha futebol de
salão, tinha futebol de campo, tinha futebol feminino né? a gente juntava várias modalidade e
envolvia também o pessoal do pré-vestibular, na verdade, o grupo que estava se preparando
para entrar diretamente na universidade. Isso integrava os grupos né? tinha pessoas do suplet...;
da EJA que também estavam se preparando para o vestibular, com [gaguejos] essa
movimentação esportiva, a cada semestre, e a gente chamava isso como, não era bem uma
olimpíada, mas era uma variedade de esportes que a gente trabalhava no sentido do grupo ter
uma espécie de lazer e, sobretudo uma grande interação. A gente fazia isso e era uma
programação de dia inteiro, começava de manhã e ia até a tarde, com intervalo pro almoço.
Então são experiências bastante preciosas pra gente que hoje atua na área da educação, e que
tem essa base como referência, uma atuação profissional, sem dúvida, mais verificada, mais
comprometida por essas experiências. Foi através do PRECE que a gente foi experimentando
esse aprender né? esse [gaguejos] desenvolver o trabalho dessa forma. Falando sobre a questão
de Pentecoste né? dos alunos que vieram no ano de 2002, foi um resultado extremamente
positivo né? muitos deles entraram na universidade, mas para 2003 viria o dobro daquele
número de alunos, então não era possível que o Cipó comportasse, porque era uma comunidade
pequena com estrutura pequena. Então o passo, a conversa seguinte era: “Então podemos
começar um trabalho em Pentecoste? Na cidade, não é??”. Lembro que a gente reuniu vários
alunos que estiveram em 2002 no Cipó, conversamos com várias lideranças né? igrejas,
lideranças sindicais, enfim, com escolas e conseguimos, em 2003, organizar a primeira
387
multiplicação do PRECE, que foi para Pentecoste, na base que veio pro Cipó de alunos, o grupo
de sustentação desse trabalho, e lembro que a gente ia, todos os dias da semana tinham pessoas
daqui indo para Pentecoste e em Pentecoste a gente começou a fazer um trabalho de segunda à
sábado, não é? então as estradas eram muito ruins, profundamente ruins daqui para lá né? a
gente pegava trechos quase intransitáveis. E a gente que ia, retornava a noite, retornava onze
horas, doze horas, chegando em casa não é? mas enfim era um esforço que ele era
recompensado porque a gente percebia, naquele grupo que era maior né? era um grupo que
tinha 4 salas de aula, imagino que tinha 100 pessoas tranquilamente, eu acho que era muito
mais que isso, mas que estava ali em busca de um sonho também, sendo mobilizada para uma
ação que era para ele, para eles, para aquele grupo e nós também de fundamental importância
para mudança de perspectiva. Então isso foi também né? uma coisa que foi maravilhosa, e que
hoje a gente tem em Pentecoste um trabalho consolidadíssimo, com a liderança forte e que a
base foi em 2002, lá no Cipó, que foi se multiplicando e esta aí, até hoje de forma autônoma,
mas também muito solidária né? de forma muito compartilhada com todo o restante do PRECE.
Foi muito bom né? muito bacana, isso é uma oportunidade de exercitar uma lembrança, e
registrar essa lembrança, eu que pelo menos não tenho fotos da infância, vai ficar registrada
essa lembrança, não é? Dizer que a gente tem amizades pessoais bacanas né? como é com o
professor Manoel Andrade, hoje nós temos uma relação, por conta da nossa ação profissional
que não permite mas essa proximidade de amizade, [gaguejos] de trabalhos juntos né? mas que
assim, há uma amizade que permanece né? porque ela foi construída e ela foi reconhecida não
é? pelo apoio, pelo incentivo, pela disponibilidade não é? então eu acho isso uma coisa que a
gente tem que considerar para a vida toda, então me sinto gratificado por isso, e dizer que a
gente não, por mais esforço que se faça, você não consegue contar os detalhes de uma história
né? que enfim, ela precisa de uma memória de um tempo e de ser recontada várias vezes, mas
que é uma experiência muito bacana, de a gente poder trazer as nossas é... vivências, para torná-
las agora históricas também não é? para torná-las disponíveis ao compartilhamento com outras
pessoas, e creio que esse é um exercício muito importante, porque a nossa história de vida né?
e de cada um que passará por esse momento, ela também tem uma contribuição né? no sentido
de orientar, no sentido de motivar né? no sentido de dizer: “Olha, é lutando, é através de uma
intensa... envolvimento e busca dos sonhos que a gente vai alterando uma situação, é dantes
considerada inalcançável. E a gente vai conseguindo as vitórias. [sorrisos].
Meu nome é Antônio Eudimar Venâncio Barbosa, sou filho de Luis Paulo Barbosa e Maria
Venâncio Barbosa. Meus pais são pessoas simples do interior, da roça. Sou da comunidade de
Capivara, município de Pentecoste, onde eu nasci e cresci. Na minha infância vivi muitos
momentos bons. Entre 11 irmãos, eu sou o caçula de 6 homens e 5 mulheres. Fui o único na
família que tive a oportunidade e interesse de estudar desde pequeno. Minha infância foi como
a de uma criança normal da minha época no interior. Comecei a estudar tabuada com 3 anos de
idade em casa mesmo, depois quando inteirei 5 anos fui estudar na casa de uma senhora
chamada Maria Lúcia Gomes Teixeira, a Lucinha. Era uma casa normal onde se juntava um
grupo de pessoas para ela ensinar português, ciências, matemática, geografia, e a gente foi
aprendendo a ler e a escrever. Depois a prefeitura montou um colégio e ela foi dar aula nesse
colégio e levou todos os alunos para quem ela dava aula na casa dela. Isso foi muito bom porque
a gente se sentiu útil de estar numa escola de verdade. Na minha infância e adolescência eu
ajudava muito meu pai na agricultura e na pescaria para a sustentação da família. Tem até um
episódio interessante que eu pescava com meu pai, onde estava um tempo difícil na família e
eu tive que ir com meu pai para pescar e poder comprar o alimento da família. Era um tempo
muito escasso e a gente até acreditava que não ia pegar nada. Acabamos indo pescar nessa noite
e foi uma pescaria muito boa. Até no outro dia foi uma bênção, porque me levou para o interior,
para Pentecoste, que para mim era uma atração andar de pau-de-arara e ir para Pentecoste.
Quando eu cresci mais, que eu poderia pescar com outras pessoas, eu ia pescar para o meu
sustento próprio e poder comprar minhas coisas. Na escola norma, a professora era Margarida
Gomes de Araújo. Na Capivara, município de Pentecoste onde eu nasci, a professora era a
Lucinha Gomes Teixeira. A gente gostava de ir porque gostava de chegar cedo pra jogar bola,
soltar pipa, pião. Uma das coisas boas que eu lembro da infância é o colégio. Na época, tudo
era difícil, mas a gente tinha era coisa boa que era a convivência com os colegas de aula, com
os primos que a gente brincava brincadeiras de infância. Fui crescendo e, depois da adolescência,
comecei a trabalhar. Saí de casa e fui para as comunidades vizinhas. Quando eu estudava na
comunidade da Capivara, fui mordido por um cachorro e nessa época passei por um trauma
muito difícil porque eu sentia muitas dores de cabeça e não sabia por que era. Depois fizeram
uns exames e disseram que o cachorro estava contaminado com o que, na época, chamávamos
de cachorro doido. Na época eu me revoltei na escola. Foi um momento muito difícil porque a
professora gostava muito de mim. Não fui expulso das aulas, mas saí porque estava passando
um momento muito difícil. Foi aí que terminei a quarta série do ensino fundamental. Houve
uma reunião das professoras para a transferência de alunos, porque essa escola da comunidade
da Capivara só tinha até a quarta série. Na escola de Cacimbas, a professora estava com o
sistema TVE, que depois passou a ser TVC, e os alunos que terminavam a quarta série na
Capivara passavam a estudar em Cacimbas. Foi aí que fui transferido para lá e comecei a fazer
quinta série com o sistema TVE, que um ano depois passou a ser o sistema TVC. Era um sistema
de televisão, com uma aula apresentava pela TV e depois a gente debatia os tópicos que
estudávamos. Era muito bom porque a gente aprendeu a ver coisas diferentes do outro sistema
convencional. Foi aí que me entrosei com a turma de Cacimbas. Lá, eu fiz a quarta, quinta,
sexta, sétima e oitava séries. Terminei o ensino fundamental. Foi um momento bom porque teve
festa de formatura. Naquela época que eu estudava em Cacimbas, eu era envolvido com
algumas coisas da comunidade. Eu dava aula de educação física para o time de Canafístula,
uma comunidade de Apunharés, que fica próximo à Capivara, município de Pentecoste. Eu
gostava de fazer isso, me deslocava aproximadamente uns 8km de Cacimbas até Canafístula a
pé. E também dava aula de educação física para o time de futebol da Capivara. Terminei o
primeiro grau e surgiu a oportunidade de eu ir para o PRECE. No começo, quando comecei a
389
estudar em Cacimbas, eu estudava até a tarde e tinha um transporte escolar que transportava os
alunos da minha comunidade até Cacimbas. Todo dia, 5 da tarde, o carro pegava os alunos e
deixava na nossa comunidade. A convivência de ida e vinda no transporte foi muito bom, porque
conhecemos pessoas, vimos a capacidade de cada um, debatíamos muita coisa juntos. Às vezes,
quando faltava o transporte, eu andava a pé, percorria uma distância de 7km. Isso era bom
porque tínhamos o desejo de estudar e se aprofundar nos estudos. Era uma novidade, na época,
o sistema TVC. E a gente fazia esse percurso muitas vezes a pé, quando não tinha carro. Com
o passar do tempo, eu passei a morar na comunidade de Cacimbas, que era onde eu estudava.
Eu morava com uma tia minha, que já é falecida, morávamos eu, ela e minha prima, que também
é falecida. Eu me sentia em casa morando naquela comunidade, e me sentia útil também.
Comecei a me envolver com aquela comunidade e tive muitas oportunidades. Eu era marcador
de quadrilha, porque eu me destaquei e fui convidado para marcar quadrilhas. Eu passei a
conviver naquela comunidade, grande parte do meu tempo foi lá. Até que terminou o primeiro
grau e eu fiquei sem perspectiva de vida, foi aí que eu voltei a trabalhar nas comunidades. Fui
morar em Canafístula com um tio meu chamado Zé Canuti, lá na comunidade chama Zé Bonito.
Ali eu passei uma boa parte do meu tempo trabalhando cuidando de gado, cortando bananeira
pra gado. Naquela época era muito difícil, não tinha capim para o gado e a gente tinha que
cortar bananeira, e eu me submetia a fazer esse tipo de trabalho porque não tinha outra
perspectiva de vida. Estudar em Pentecoste ficava difícil porque eu não sabia como ir, não tinha
implantado o sistema, e eu fiquei trabalhando como agricultor, não era muito o meu forte, mas
tinha que fazer isso. Depois retornei para Capivara, que é minha comunidade, foi aí que surgiu
a oportunidade de ir para o PRECE, o Andrade nos convidou. Na época tinha um curso de
datilografia e, os alunos que se destacavam, ajudavam os outros, e eu era um dos orientadores
de uma turma. Quando surgiu o curso de datilografia, era na casa de farinha, que tinha
desativado por motivo de escassez na época de farinhada. O Adriano apoiou esse curso de
datilografia na casa de farinha. O Toinho, do PRECE, já fazia o curso, tinha terminado, a Silvia
Helena, colega de infância, tinha terminado, eles convidaram e incentivaram pra fazer, e eu fui
lá, fiz, me destaquei. Era a febre do momento, todo mundo achava bom o curso de datilografia.
Como eu já tinha terminado o curso, nós estávamos debatendo sobre o que fazer, o que melhorar
no curso de datilografia. Foi aí que o Andrade chegou, era muito difícil ele aparecer, com um
sonho de montar um sistema de grupo de estudante para estudar e fazer universidade. Esse
sonho dele tocou nossos corações. Naquele momento estávamos eu, o Beto e o Toinho, os
primeiros precistas, e ele chegou e lançou a proposta de o que a gente achava de estudar junto,
morar junto ali e fazer um esquema pra que montasse uma escola, onde a gente pudesse estudar
o dia todo, debater o que aprendeu. Era um sonho dele montar esse de escola, porque na época
ele se sentiu incomodado com o sistema que não tinha perspectiva de vida, e ele pensou muito
no futuro dos jovens daquela época. De início a gente ficou meio temeroso, mas como a
empolgação dele foi tão forte que moveu nossos corações e nós fomos morar lá. Eu me
empolguei logo e arranjei um folgão e um botijão da minha tia e cozinhava para a turma. Foi aí
que passei a morar na casa de farinha, trouxe minha rede, juntamente com o Toinho, o Beto
morava numa comunidade vizinha. Dormíamos eu, Toinho e alguns outros colegas que
moravam na fazenda. Na época energia, água encanada, não tinha muita coisa. O sistema de
estudo era uma lâmpada fluorescente ligada na bateria. A gente montava o grupo na mesa e
pegava um livro de história, lia os tópicos e depois debatia os tópicos. Daí formou-se um grupo
de estudantes. A gente estudava de dia, um pouquinho de noite. Na época éramos eu, Toinho e
Beto, depois a Raquel entrou, depois convidamos outros colegas, o Orismar, Francisco e
Norberto. A gente montou esse grupo de estudantes e tornou-se uma família, agradável.
Passamos por momentos muito difíceis na época, em relação a alimentação. Foi aí que a dona
Fransquinha e o senhor Arão que nos abraçaram e nos davam leite e cuscuz de manhã. A gente
mesmo juntava os familiares e algumas pessoas vizinhas e fazia o esquema de fazer o próprio
390
almoço. E assim a gente conviveu muito tempo, jogava bola junto, discutia sobre futebol. A
gente achava que o negócio não ia ter como andar, aí o Andrade chegou um dia 9 horas da noite,
com o carro carregado de livros doados por uma instituição e a gente montou a nossa estante.
Foi aí que começaram os sonhos de vida dos precistas, surgiram os provões em Fortaleza, que
fomos fazer no Liceu do Ceará. Inclusive eu fui um dos que não passei, mas isso não me frustrou
nem nada. Vieram concursos para viajar, quem tirasse primeiro e segundo lugar viajava pra
fazer coletas de plantas com o Andrade, e isso empolgou muito a turma na época e incentivou
a turma a estudar. Eu não me destaquei muito na época porque eu não pensava muito nesse
negócio de viajar. Foi muito bom, achei muito interessante porque todos se empolgavam. Na
época que eu vim morar na casa de farinha, meus pais me apoiaram, minha mãe queria me
sustentar com roupa, alimentação, e eu encarei. E teve o apoio moral, que é o mais importante.
Teve um tempo que eu comecei a me desestimular, apesar de eu ter outras atividades no PRECE.
Eu não era precista só de estudar, eu também monitorava uma creche no período da tarde e de
manhã eu dava aulas para as crianças da comunidade do Cipó, também dava aulas pra escola
de futebol em Capivara, onde eu nasci e cresci. Juntamente com o Toinho montamos um grupo
de escolinha, naquela época nos envolvemos com muita coisa, fizemos campeonato no dia das
crianças. Me envolvi também com o time de futebol, fizemos torneios, campeonatos e a gente
mesmo quem organizava. O Orismar era o locutor. Uma coisa que marcou foi que na época
fizemos uma campanha de desarmamento, porque existia muita violência no futebol e o PRECE
abraçou essa causa e fizemos a campanha de desarmamento. Foi aí que comece a abandonar a
parte da creche e a escolinha, porque a turma cresceu e nós estávamos empolgados com o estudo
e querendo estudar mais. Eu comecei a ficar meio desestimulado, uma coisa minha mesmo. Não
desacreditei do PRECE, fiquei desestimulado comigo mesmo e parei de estudar. Depois tive
que vir em Fortaleza a trabalho. Eu me juntei com uma pessoa e tive que vir pra Fortaleza ter
minha sustentação própria. Passei muito tempo trabalhando, mas nunca deixei o vínculo com o
PRECE, sempre fiquei unido com as pessoas, conversava com o Andrade, o Toinho, o Francisco
e o Orismar me incentivaram a voltar a estudar. O Andrade tinha um programa de rádio que era
Coração de Estudante, antes do PRECE, e eu falei pra ele colocar o nome do projeto de Coração
de Estudante, depois veio o PRECE. Eu conheço o Andrade desde criança e a gente adquiriu
um respeito e admiração muito grande por ele. Na época que eu ia sair do PRECE, ele conversou
muito comigo, fizemos uma caminhada do senhor Arão até o açude, de 4 horas da tarde até 6
horas da noite. Ele não queria que eu saísse, perguntou várias vezes o porquê, disse que me
ajudava no que eu precisasse. Eu tinha dificuldade de leitura por causa da minha vista, ele me
trouxe pra fazer exame de vista em Fortaleza, mas mesmo assim não mudou muita coisa porque
já estava com vontade de sair. Ele fez tudo pra que eu ficasse no PRECE, mas eu saí. Tive apoio
de todos os colegas para não sair, mas acabei saindo, não teve jeito. Me arrependo de ter saído,
perdi muito tempo com isso e perdi muito. Admiro as pessoas que venceram até hoje. Na época
estava desestimulado e saí, mas quem sabe um dia eu pudesse voltar e fazer diferente. Em 99
eu vim pra Fortaleza e comecei trabalhando numa locadora de carro como colhedor de carro.
Depois passei a trabalhar numa panificadora, de lá mudei de emprego para uma fábrica de
roupas, a Maresia, onde foi meu primeiro emprego de carteira assinada. Eu já estava casado e
passei a fazer parte da igreja, conheci muitas pessoas importantes, interessantes. Quando eu saí
da Maresia, tirei a carteira de motorista, era um sonho meu, e passei a trabalhar de motorista
com um colega meu, João Lopes Vieira, na JV e isso foi um crescimento muito bom, porque
conheci muita gente em Fortaleza. Conheci muita gente da Pague Menos, Telemar, pessoas
importantes, então fiquei muito conhecido em Fortaleza, onde ando em Fortaleza tenho
facilidade de comunicação. Saí da JV e fui trabalhar num restaurante, eu era saladeiro, depois
saí do restaurante e voltei para a padaria, onde estou até hoje. Na minha vida pessoal, conheci
a Rosa na igreja onde eu frequento. A gente casou e tivemos uma filha, Sara Tavares Barbosa,
nasceu em 2001. Essa nossa filha cresceu até 3 anos, teve um problema, uma doença rara,
391
passou 7 meses na UTI e, pra mim, foi um momento muito difícil, uma perda muito grande,
mas fui abraçado por todas as pessoas da igreja, todos os meus amigos precistas, pessoal do
interior. Perdemos essa filha em 2005 e isso foi um momento trágico na minha vida, só que,
hoje, Deus nos abençoou de uma forma tremenda nos dando outra filha, Lara Tavares Barbosa,
uma princesinha que está com 3 anos de idade. Minha vida, hoje, eu trabalho na panificadora,
ajudo a administrar na parte da manhã. Na época que terminei o ensino fundamental, como não
tinha perspectiva de vida, como a gente via que terminava o ensino fundamental e pensava logo
em arrumar um emprego pra se sustentar. Eu tinha desejo de vir trabalhar em Fortaleza, só que
surgiu o PRECE, com outros sonhos de vida. Lá em Pentecoste não tinha trabalho, o único
trabalho que tinha era para professor. Com o desejo de vir trabalhar com o ensino fundamental
a gente achava que já tinha o conhecimento de tudo e que ia conseguir vencer com isso. Aí o
PRECE veio com outra atitude, com outro sistema, mostrar o que é a realidade. A gente não
tinha como vir pra Fortaleza porque não conhecia nada. Aí teve o sonho de estudar no PRECE,
que seria uma preparação para o futuro, o Andrade mostrou que o ser humano, o jovem, tinha
que ter uma faculdade, um conhecimento, uma formação, pra poder ter um bom emprego. Como
muitos jovens no interior, eu achava que terminar o primeiro era tudo, já podia arrumar um bom
emprego, mas eu não pensava muito assim não porque conhecia a situação das pessoas, do
próprio Andrade, e ele mostrou bem claro pra gente que queria mudar a situação daquela
comunidade, porque pra ele foi muito difícil estudar e não ter um emprego à altura do estudo
dele. Na época era muito difícil a pessoa terminar a faculdade e ter o emprego pronto para
receber você, e o Andrade queria mudar a situação do jovem naquela época, queria fazer
diferente. Pra ele chegar na faculdade, ele fez um grande percurso, então ele queria que os
amigos dele fizessem um percurso menor. Seria o sistema do PRECE, de estudar, se capacitar,
passar no vestibular e entrar na faculdade. E foi isso que aconteceu, ele montou o sistema e
ensinou como tinha que estudar e os alunos vinham com o sonho de estudar para passar na
universidade e voltar pra ajudar a turma. E é isso que está acontecendo hoje, os alunos passam
e voltam pra ajudar os outros, que estão engatinhando, a se levantar e passar no vestibular para
entrar na universidade. Foi fácil a convivência porque todos se conheciam, nos tornamos irmãos.
O PRECE foi e é um marco grande na minha vida, foi onde eu aprendi a conviver, aprendi muita
coisa. Lamento não ter continuado, mas nunca saiu do meu coração. O PRECE foi uma coisa
muito importante. Quando eu já tinha saído do PRECE, vi que meus colegas já haviam passado
no vestibular, estavam cursando a universidade, vibrei com os primeiros precistas que se
formaram. Foi a resposta de um sonho, sonhado por um homem, se realizando, isso foi um
impacto muito grande. Estava andando, se multiplicou, e pra mim é uma alegria muito grande
ver que um sonho se tornou realidade. Eu não sou envolvido com prece ainda não sei por quê,
mas eu sinto dentro do PRECE, estou pensando em voltar. Hoje se eu fosse convidado a
participar do PRECE eu abraçaria a causa com certeza. Se for preciso eu desenvolver alguma
atividade, eu estou a inteira disposição para participar. Pra mim, já faz parte de um sonho voltar
para o PRECE, porque eu já me sinto dentro do PRECE de novo. Teve um tempo que eu me
senti menosprezado por mim mesmo, eu achava que, como eu tinha saído do PRECE, o fato de
eu sair do PRECE, eu achava que as pessoas tinham me abandonado, eu não tinha perspectiva
de vida, eu me sentia deprimido com isso. Mas não era assim como eu pensava, as pessoas me
abraçaram e perguntavam quando eu ia voltar para o PRECE, se eu tinha vontade de voltar, e
eu sempre dando uma escapulida. Mas hoje é diferente, é um prazer estar no PRECE, fazer
parte de um memorial do PRECE está sendo um marco na minha vida, estou gostando muito e
espero que eu continue a fazer parte da história do PRECE. O meu desejo de recomeçar de onde
eu parei no PRECE é até mesmo para dar exemplo para minha filha, porque ela é muito dotada,
interessada, já está estudando no reforço. Estudar é muito bom, apesar de no passado eu ter tido
esse desestímulo, eu nunca perdi o contato, o desejo. No momento que eu me senti deprimido
em relação a isso era porque eu não sabia como voltar para o PRECE, era um orgulho, de achar
392
o que as pessoas iam falar de mim. Eu acredito na minha capacidade, acho que sou inteligente
e estou precisando mesmo só desse impacto na minha vida para que eu possa voltar para o
PRECE, ter a coragem de estudar e de encarar. Estou querendo abraçar essa causa de voltar a
estudar. O meu vínculo ficou só na saudade, mas não perdi o vínculo com ninguém. Seria muito
bom eu retornar para o PRECE, recriar esse vínculo com todo mundo e ajudar. Estava no meu
sonho que ficou no passado, mas o desejo de voltar para cooperar é muito grande, exatamente
porque eu tenho essa convivência na comunidade que não vai perder nunca. Na minha
comunidade o PRECE se tornou uma coisa muito importante, tem um impacto muito grande,
inclusive meus sobrinhos e minhas irmãs estão fazendo parte do PRECE. A alegria maior foi
eu conversar com minha irmã e ela pedir informação sobre o PRECE. Eu contei várias histórias
do PRECE, ela ficou empolgada e disse que era isso que ela queria para a vida dela. Eu saí do
PRECE porque eu precisava trabalhar pra sustentar minha família, porque eu estava sem
perspectiva e minha mãe não ia me sustentar. Eu estava desestimulado e juntou com um motivo
de força maior, porque tive que me juntar com a Cristiane, que achava que estava grávida, mas
era psicológico. Na época que eu fiz parte do PRECE, em 94, eu tinha 22 anos e eu passei 3
anos no PRECE. Quando eu saí, além da falta de estímulo próprio, eu também estava envolvido
com uma pessoa e tive que sair para me sustentar e sustentar a família, então tive que vir morar
em Fortaleza, motivo por que eu saí do PRECE. Hoje há a vontade de voltar para o PRECE,
estou sendo apoiado e incentivado pela minha esposa e por várias outras pessoas, dos precistas
que sempre tiveram vontade de me ter junto de novo, trabalhando e estudando, e eu acho isso
muito importante. Se eu voltar hoje, vou ter o apoio de muita gente e isso é muito bom.
Carlos Roberto de Sousa Gomes (Beto) – (Ano de 2001) – Fortaleza [Tempo da entrevista em minutos]
Vídeo - 01
[0’00’’]
“Boa tarde, né? A todos que estamos aqui, né? Pra falar um pouco sobre a vida, sobre a
minha vida, né? Eu sou Carlos Roberto de Sousa Gomes, conhecido como Beto. Sou filho
de João Felix Gomes ((microfone com falha)) ((Há uma pausa no relato para poder ajeitar
o microfone)) Oi? Oi? Beleza, sem nenhum problema! Posso reiniciar? Vou tossir! ((tosse)).
Pois então, boa tarde, né? A todos que estão aqui. Hoje eu vou falar um pouco da história,
minha. Sou Carlos Roberto de Sousa Gomez. Sou conhecido como Beto. Sou filho de João
Felix Gomes, vaqueiro. Sou filho de Francisca de Sousa Gomes, no qual é conhecida como
Neném, professora. Eles dois são os pais de sete filhos, a minha família é formada por sete
fi[lhos]/irmãos mais uma menina que a gente criou que a gente considera como irmã. Eu
sou o terceiro mais velho. O nome dos meus irmãos são Silvia Regina de Sousa Gomes,
Francisca Raquel de Sousa Gomes, eu Beto, Carlos Roberto de Sousa Gomes, Felix Neto
de Sousa Gomes, que já está falecido, depois a gente vai falar um pouco sobre a história,
Maria do Carmo de Sousa Gomes, Lúcia de Fátima de Sousa Gomes, João de Sousa Gomes
Filho e Edna - e Edna que é uma irmã que a gente criou, que a gente considera como irmã.
Os meus pais são filhos, o pai, o João Félix é filho de Manuel Félix Gomes e Maria do
Carmo Gomes. Eles/Os meus avós paternos eles eram mesmo daquela região da
comunidade chamada Mulungu, município de Pentecoste. Pentecoste fica há oitenta e seis
quilômetros de Fortaleza. E meus avós tem oito filhos, meu pai é o segundo mais velho
dessa família. E os meus avós por parte de mãe é Francisco Raimundo de Sousa e Francisca
Lima de Sousa. O meu avô é de uma família que eram dois irmãos, ele e a tia Lila que ainda
está viva, meu avô já faleceu, tanto por parte de pai quanto por parte de mãe. Raimunda
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Lima de Sousa é de uma família muito conhecida na região, que o pai dela era conhecido
como o pai Lima, né? Que é meu bisavô, e eles tiveram vinte e um filhos. E, é uma família
muito grande conhecida como a família Lima, né? E o meu pai, vou contar um pouco da
história do meu pai, como é que funciona, né? Meu pai sempre foi vaqueiro dos grandes
proprietários de terra daquela região, né? Sempre estava morando com esses proprietários,
morou um tempo com uma pessoa – numa fazenda do Zé Gomes e posteriormente do
Antônio Carneiro, né? Na qual foi nessa fazenda do Zé Gomes que eu nasci, na comunidade
de Jardim, que fica há trinta e dois quilômetros de Pentecoste. E - nesse ano, né? Nasceu
eu nessa fazenda no qual o pai morava. O/Depois desse tempo o pai veio morar em outra
fazenda chamada Esperança, também do Zé Gomes, passou mais um período. No ano de
[19]81, foi morar numa fazenda no Cipó, no qual a gente passou vinte e um anos lá, nessa
fazenda. O (3.0) /A minha mãe foi professora, né? Professora do ensino fundamental básico,
que trabalhou durante trinta, trinta e seis anos, com jovens, com crianças daquela
comunidade, com crianças carentes, criança que buscava um pouco de educação. O - pai
morou nessa fazenda e onde passei toda a minha infância, né? Sou de [19]78, de [19]78
para [19]81 eram três anos e foi onde começou toda a minha infância, foi nessa fazenda em
Cipó, que fica há dezoito quilômetros de Pentecoste. Em Cipó é o local que eu tive essa
infância, no qual a gente vai conversar um pouco sobre ela, como foi que iniciou. Minha
infância foi uma infância de uma criança no meio rural, na qual fez todas as atividades do
meio rural. Quais são essas atividades, né? Isso é importante para a gente relatar essa
atividade que a gente fez no meio rural. Tinha atividade de trabalho e atividade de lazer, de
brincadeira como nós chamamos lá, no interior, no meio rural. Vamos falar um pouco agora
das atividades de trabalho e posteriormente das atividades de brincadeira. O trabalho como
nós morava numa fazenda, nosso trabalho foi sempre cuidar de animais, de animais bovinos,
equinos e caprinos e ovinos. Nessas fazendas tinha esses quatro principais animais, né?
Que a gente chamava cavalo, boi, ovelha e bode. E durante essa infância, essa minha
infância que a gente cuidava dos animais. Cuidava como? Pastorava. O que é pastorar, né?
Isso é importante a gente relatar. Pastorar é você colocar um animal em um piquete,
capinera e ficar só naquela parte, não deixar escapar. Isso é um trabalho da gente. Ovelha?
A gente olhava quantos animais nasciam, se ia ter que curar as bicheiras, se não ia. Caprinos
também. E os equinos a gente usava mais para trabalho da gente, né? Para cuidar desses
outros animais, além de cuidar da ração, dar banho, né? Tudo isso na parte do equino.
[06’09’’]
[06’10’’]
Na parte de brincadeira nós tínhamos umas brincadeiras bem interessantes, né? De infância,
né?Até doze anos a gente fazia mais essas atividades que eu estou dizendo. Agora, até doze
anos. E::, a minha brincadeira principalmente era atirar de baladeira, ir para a escola, né?
Que isso era uma obrigação, que lá em casa a mãe sempre colocou os filhos, insistiu pra
gente ir pra escola e o pai também sempre apoiou. Um outro, jogar bola, né? Gostava muito
de jogar bola, considerado lá no interior como viciado a pessoa a jogar bola. Jogava todos
os dias. Tinha um terreiro na fazenda muito - grande, né? Fazenda tinha um terreiro muito
grande no qual a gente fazia/jogava bola junto com os colegas, junto com os amigos. Vamos
relatar até um pouco de como estava posicionada essa fazenda, como era que ela funcionava.
Fazenda tinha uma casa sede, na qual nós morávamos, a família toda. A casa sede sempre
tinha pessoas que/pessoas de fora que moravam com a gente. Tinha casa de moradores, na
qual o pai gerenciava essa parte toda de moradores, de trabalhadores que ia trabalhar nessa
fazenda e a infância da gente era relacionada a isso. Em relação aos animais que davam
leite, a parte bovina eu era responsável também por colocar os bezerros para as pessoas
tirar leite até essa idade de doze anos, gente fez muito isso nessa-/nessa fazenda. Até doze
anos eu estudei também num colégio, né? Primeiro eu estudei num colégio, falando um
394
pouco da minha vida ((o entrevistador comenta algo mais sobre a fazenda em que residiu,
a casa7, sobre as farturas)). [07’54’’]
[08’22’’]
A casa, né? A casa é uma casa grande que nós chamava, a casa da fazenda. Tinha cinco
quartos. Os quartos eram todos divididos, né? Tinha a família, a família sempre foi uma
família grande e tinha muitas pessoas amigas da gente que estava sempre presente com a
gente nesse/nessa casa da fazenda. Era uma casa que tinha sempre muita abundância de
alimentação, isso é muito importante a gente relatar isso nessa época, né? Essa nossa
família sempre foi uma família abençoada por Deus e a gente sempre teve muita
abundância de alimentação nas quais muitos amigos da gente que morava perto a gente
levava mesmo para se alimentar lá em casa. Isso a gente tinha muito feijão, muita farinha,
animais, sempre a gente matava para ter carne durante a semana, na semana a gente sempre
matava para ter carne e o pai sempre comprou muita carne e a gente sempre tinha muita
abundância em relação a isso. A casa era uma casa muito de alpendre. Muitas vezes a gente
sempre dormia de dez pessoas no alpendre, né? Os amigos da gente. Durante essa época
toda dormia muitos amigos da gente lá, nesse alpendre. Era uma casa aconchegante que
sempre tinha abundância. É importante relatar também que eu me lembro da minha infância
que todos os moradores tinha direito a uma certa quantia de leite. E a gente, por exemplo,
além do proprietário, né? O Antônio Carneiro ou Antônio Braga de Azevedo, como era
conhecido e depois ficou conhecido como Antônio Carneiro, e o nome dele verdadeiro é
Antônio Braga. Ele sempre colaborou com os moradores dele, né? Em relação a essa parte
de alimentação, isso é importante. Pessoas que tivessem dificuldades, moradores que
tivessem dificuldades ou se o pai conversasse com ele, ele sempre repassava um pouco
para isso, né? E ele sempre atendia os pedidos das pessoas que moravam com ele, né? E
durante essa parte importante a gente relatar também que vinha muitas pessoas para a
fazenda, tinha muitos trabalhadores durante todas essas épocas, né? Eu me lembro muito
bem dessa parte da minha infância. E minha vida estudantil, né? É importante relatar, isso
eu falei anteriormente até os doze anos. É importante relatar que o/vida estudantil começou
eu andando mais ou menos uns oito quilômetros a pé mais a mãe. A mãe era professora
desse colégio Paulo Ferreira, lá na comunidade de Boa Vista que fica mais ou menos a oito
ou dez quilômetros. A mãe era professora e como tinha que ter uma pessoa para ir com ela,
né? Ela me levava - todos os dias - para a aula e foi onde também eu iniciei minha vida
estudantil, né? Depois que fiz, acho que carta de ABC e tabuada, e fui estudar, fazer
alfabetização, num coleginho na comunidade de Cipó, conhecido como Manoel Andrade
Neto, o nome do colégio que até hoje ainda está erguido na comunidade de Cipó. E lá eu
estudei, né? A minha primeira professora foi minha mãe, felizmente, né? Pessoa que
colaborou muito com essa parte inicial da educação de uma criança. E até a quarta série eu
estudei nesse colégio. Da alfabetização à quarta série. Foi um período de cinco anos, na
qual nesse colégio também teve muitas brincadeiras, da infância da gente, até os doze anos,
( ) principalmente bandeira que a gente brincava, na qual a gente tinha um grupo. O que é
bandeira, né? O que é brincadeira de bandeira? É você colocar - um objeto em um local
que a pessoa vai lá e pega, tem que sair da velocidade que o outro não consiga pegar ele.
Se conseguir pegar ele, ele fica chamado colado naquele canto fixo. Posteriormente, uma
outra pessoa vai triscar nele e ele vai descolar ou sair do canto fixo. Tinha essa brincadeira
muito interessante. Também tinha umas brincadeiras de futebol, durante o recreio e
posteriormente no término das aulas, lá na comunidade de Cipó. É uma brincadeira muito
interessante também que era carimba, né? Carimba era uma brincadeira que colava/
Carimba? O que é carimba né? Carimba é você pegar uma bola e acertar na pessoa e ela
bater no chão. Se ela não bater no chão e a pessoa conseguir fixar a bola ou segurar, ela
continua sendo o jogo tranquilo, se carimbar ela sai da brincadeira. Durante até meus doze
395
anos a gente teve muito essas atividades, né? Passou dessa etapa de doze anos, aí a gente
teve uma outra/uma outra etapa que foi um serviço mais pesado que a gente vai continuando
aqui a conversa e eu vou repassar para os ouvintes ou meus colegas que vão continuar.
Pode parar aí? ((Eles fazem uma pausa na coleta do depoimento)) [13’18’’]
Vídeo – 02
[0’00’’]
É, um pouco do que aconteceu também posteriormente a minha infância com doze anos,
também a gente continuou na fazenda e teve um trabalho - um trabalho mais pesado, né?
Foi uma época que eu precisei, eu pulei da infância e passei a ajudar meu pai nas atividades
que ele fazia, né? Quais são essas atividades? Quais são as atividades de um vaqueiro? Vai
ser interessante a gente relatar. Vaqueiro, aqui no nordeste e aqui também no município de
Pentecoste, é a pessoa responsável que vai ao mato, corre atrás de animais no mato, gado.
Pega os animais de um cercado de um piquete repassa para outro. Tudo isso são umas
atividades de vaqueiro. E nessa época eu passei a fazer isso junto com o meu pai, a gente
fazia/transportava gado de um município para outro, vamos usar um exemplo aqui que
aconteceu quando eu tinha treze anos, quatorze anos, foi uma das primeiras viagens que eu
fiz na minha vida. Foi de levar o gado do município de Pentecoste, da comunidade de Cipó
até uma comunidade chamada Rato, no município de Maranguape, isso dá seis léguas ou
sessena quilômetros a pé. Isso eram dois dias, né? Que a gente andava com os animais, em
torno de trezentos a quatrocentos gados e um número x de vaqueiros, que eram em torno
de vinte e cinco vaqueiros levando todos esses animais. Isso foi a primeira viagem, né?
Que eu fiz com/saindo do município de Pentecoste e da comunidade. Isso para mim foi um
marco, né? Uma oportunidade de conhecer outra realidade, outra comunidade, mesmo
sendo o meio rural, mas isso foi importante. E, nessa época, né? Eu também passei a
desenvolver uma atividade que foi o tirar leite, eu passei de doze até dezoito anos. Nessa
época quase todos os dia de todo ano eu tirava leite, em toda essa época, né? E durante o
período do inverno, que é importante relatar, que na fazenda a gente sempre fez queijo.
Teve uma época que a gente tirava em torno de duzentos litros de leite que dava uns quinze
quilos de queijo por dia, né? Numa época em que a fartura era bem significativa, né? Na
fazenda ou na casa que nós morávamos, isso era muito bom. E também nesse período, né?
Eu passei a desenvolver outra atividade que eu desenvolvi em um certo período que foi
capinar, né? Eu comecei a montar um roçado para mim mesmo, né? Para a gente ter um
pouco de recurso, vai ficando adolescente, vai precisando de dinheiro para sair mesmo
sendo no meio rural, mas a gente precisava de um pouco de recurso. Além de durante esse
período, ne? A gente recebia um pequeno agrado do papai todo final de semana para ir pro
campo de futebol, né? Uma coisa é importante eu relatar aqui, que por exemplo, aos treze
ou quatorze anos eu joguei aspirante, né? Ou segundo quadro como é chamado lá no nosso
meio rural. Aspirante na cidade, segundo quadro. E aos quatorze anos eu passei a jogar, né?
Como titular, do time de Capivara, Capivara Sport Club, com quatorze anos eu comecei a
jogar e joguei durante dois anos até os dezesseis anos na Capivara, né? E isso, foi um
período de aprendizagem, de ter novas amizades, de conhecer novas pessoas dentro do
município, conhecer outras comunidades, né? Gente que está no meio do futebol. É
importante relatar também que durante, por exemplo, treze anos eu gostava muito e seu
Antônio Carneiro gostava de levar eu e um outro jovem de uma outra fazenda dele, o
Luizim, para passar os finais de semana na casa dele, e a gente já estava acostumado a ir,
né? E a mãe teve uma época que não deixou mais a gente ir, né? Precisava, porque precisava
fazer as atividades de casa. As minhas férias, todas durante esse período, né? De doze à
quatorze anos, em torno de quinze anos, eu fui um período que fui joquei, né? O que é ser
396
joquei, né? Joquei é uma pessoa que anda nos animais da região, né? E eu era um cara que
gostava muito disso, mas sempre a mãe e o pai dizia “só vai ser joquei durante um período,
ficar integral na/numa baia ou numa cocheira onde fica o animal durante o período de férias,
porque no período de aula vocês não podem ir. Teve uma época que eu perdi quinze dias
de aula e o pai foi me buscar para retornar as aulas, né? Que não era uma coisa que eu
poderia fazer ali por perto mesmo, né? Ser joquei. Eu era uma pessoa que gostava muito
de andar a cavalo. Isso facilitava as pessoas virem convidar para andar nos animais deles e
tudo mais. [6’00’’]
[6’01’’]
Durante esse período também, eu tive uma família que me acolheu com muito carinho, ia
sempre pra casa dela, dormia sempre lá, família da dona Maria Luca, que hoje mora na
comunidade de Tamarina, é importante ressaltar, ressaltar isso. Essa comunidade/essa
família tinha uns oito filhos, são sete homens e uma menina, eles são uma segunda família
para mim, né? Teve uma época de eu passar a semana lá, retornar só para ir para a escola,
e voltar para lá, e fazia todas as atividades e depois vinha dormir lá. E a gente tinha uma
brincadeira de futebol, brincadeira de amizade, de bila de peão. Tudo isso era importante,
né? Pra gente naquela época, até os quinze anos. É importante também que - quinze anos
né? Foi - quinze, quatorze anos, foi a primeira vez que teve quadrilha na nossa região e eu
participei da quadrilha, né? Participava, participei durante três anos dessas quadrilhas lá na
comunidade de Cacimbas, no qual foi o colégio que eu vim estudar, né? O fundamental
dois, o que nós chamamos nessa época, né? O primeiro grau. Nesse colégio, Colégio
Manuel de Oliveira Sales, o colégio, a gente começou a estudar no ano (5.0) no ano de
noventa. Em noventa teve, acho que foi a segunda turma do/da TVC, né? A gente estudava
pelo manual de apoio, né? A gente concluiu toda a oitava (2.0) quinta, sexta, sétima e oitava
[série] pelo manual de apoio e a TV na qual passa a aula, e nós estudávamos o manual de
apoio com um apoiador chamado, nesse caso foi a dona Irismar, Maria Irismar de Almeida
Costa, professora e colaborou também com a minha formação, com a minha educação,
durante toda/de quinta a oitava série. Nesse colégio nós tínhamos muitos amigos, muitos
amigos, muitas turmas. Você imagina um local que concentrava todos os jovens daquelas
regiões, de comunidades como Parnaíba, Boa Vista, Cipó, Tamarina, Capivara, todos os
jovens daquelas regiões, como era o único local que tinha quinta à oitava série, concentrava
naquela/naquela comunidade. E ali, a família da dona Irismar também foi uma apoiadora,
uma colaboradora de todos os jovens que passaram por aquele colégio. Infelizmente esse
colégio hoje está abandonado, que precisa ser reestruturado, precisa ser repensado algo
para aquele colégio, mas durante todo esse período de estudo, foi um período no qual eu
deslocava em torno de três ou quatro quilômetros a pé todos os dias, né? Importante a gente
ressaltar que quinta e sexta [série] era pela manhã e sétima e oitava [série] era a tarde. E
nós que iniciamos nessa época na quinta série, a gente começou pela manhã, e
posteriormente na sétima [série] a gente passou para a tarde. E todos aqueles jovens tinham
vários tipo de brincadeiras ali, quadrilha, era futebol, era carimba, e tinha aquela integração
de todos os jovens daquela comunidade que nós ali desenvolvemos, né? Aqueles jovens
fizeram essa integração, essa junção mesmo de amizade na qual muitas pessoas daquelas
hoje em dia ainda são amigos, colegas, onde a gente se ver, a gente conversa, ainda fica
relatando como funcionava aquele colégio, como era aquele colégio, como era um colégio
daquele que concentrava muitos jovens daquela região. [09’00’’] ((Entrevistador fala algo))
[09’07’’]
Quando começou o ensino fundamental, né? O importante era que não tinha ensino médio
naquela/no interior de Pentecoste, ou no interior ali do Matias que nem nós chamamos.
Matias é um distrito de Pentecoste na qual tem em torno de umas quarenta comunidades
dentro desse distrito. E dentro dentre distrito não tinha o ensino do segundo grau. E quando
397
a gente conclui a oitava série ou o primeiro grau, que a gente faz da vida, né? Foi no ano
em que a primeira vez ouviu falar em transporte. Transportar o transporte para levar os
alunos para estudar em escolas. Os alunos que estavam concluindo a oitava série nessa
época, eles poderiam estudar em Pentecoste. ((Carlos Roberto pede para comentar algo do
passado que ele havia esquecido de falar)). Importante também que, por exemplo,
na/quando eu estava na sétima série, né? Meu avô estava morando em Pentecoste, e foi um
período que eu fui pra Pentecoste morar junto com ele porque precisava de uma pessoa
para colaborar nas atividades do meu avô, ele tinha um quintal grande e a mãe pediu pra
eu ir, né? E no ano, eu não lembro o ano, mas é importante, eu fazia a sétima série, que a
mãe colocou eu para estudar no Tabelião. Você imagine uma pessoa do meio rural, daquela
comunidade estudar num colégio da cidade? Numa época atrás isso era muito difícil pra
mim, né? Mas mesmo assim eu fui, né? Durante, eu acho que uns cinco meses, aí eu disse
a mãe “Mãe, hoje eu vou indo, bora. Vamos embora pro interior que aqui não dá certo não
pra eu continuar aqui.” “Por quê? E tu vai perder um ano?” “Não sei, se perder a gente
depois conclui”, mas foi um período que ficou marcado, né? Na história pra gente, foi um
período que eu saí do meio rural, vim morar numa cidade. Nessa cidade, conheci vários
colegas, tinham várias brincadeiras nessa rua que eu morava, né? E hoje em dia, eu vejo
assim, desses meus colegas, né? Entraram no mundo da criminalidade, já saíram, já foram
embora, já mataram ou já foram embora por outros casos. E desses, eu acho que só tem
dois que eu ainda tenho um convívio, ainda consigo falar com eles, mas os outros, dessa
minha infância, não têm mais isso. Importante relatar isso, por quê? Porque é um período,
o jovem, um período de treze a quatorze anos, um período que a maioria decide sua vida e
onde você vai, e foi um período em que eu tive a oportunidade de ir a cidade, mas era uma
época em que a oportunidade de a pessoa fazer algo errado aparece com facilidade, mas eu
demorei uns cinco meses e retornei pro meio rural, na qual continuei, pedi transferência,
foi tranqüilo. E continuei lá no colégio Manoel de Oliveira Sales. O/ No ano, né? Que eu
concluí o ensino fun/o ensino do primeiro grau, eu – tive oportunidade, né? De
((Comentários do entrevistador)). Ensino fundamental foi no ano de [19]94, ano de [19]94.
E foi e [19]95, foi a primeira vez que ia ter carro, para transportar aluno do meio rural para
a sede. E em [19]94 eu concluí, né? O ensino, a oitava série. E tive a oportunidade de “a
gente vai ou não vai? Vai ou não vai estudar em Pentecoste?”, e ficou nessa briga. Tinha
uma irmã, que também estava concluindo junto comigo, a Raquel, concluiu junto comigo
a oitava série. E nós: “Vamos ou não vamos? Vamos continuar nessa”, e foi, a gente decidiu,
né? Depois de uma conversa, a gente decidiu, junto com a família, que não era, não ia. Eu
tinha dezesseis anos, a Raquel com dezesse/dezoito, dezessete anos, dezoito, e tava nesse
período de que tava iniciando, né? Essa fase passando para adulto, né? E a gente não decidiu
ir. Foi um período, Orismar, na qual a gente conversamos com outras pessoas, que o PRECE
chegou naquela comunidade do Cipó. Me lembro muito bem, não sei a data, não dá para
saber uma data fixa, mas eu me lembro de várias conversas, né? O importante antes disso
é que o PRECE já vinha numa história de campeonatos, de integração das pessoas,
integração. Aqueles campeonatos, naquela região nossa, eram campeonatos que faziam
com que as pessoas daquela comunidade chegasse a um objetivo, ser campeão, integração,
fazer com que as pessoas lembrem disso, né? Me lembro muito bem que eu joguei um
campeonato, foi o único que eu joguei o campeonato ACOMPARCC, teve em [19]89,
[19]90, [19]91, [19]92, eu joguei o de [19]93, são cinco ou seis campeonatos organizados,
né? pelas pessoas, principalmente pelo Andrade e o Adriano, duas pessoas que colaboraram
com a organização. organização das pessoas, organização do campeonato, e esse
campeonato foi um marco assim né? na qual era do mesmo jeito que nem eu falei do futebol
anteriormente, era um momento de integração das pessoas. me lembro muito bem no campo
da Tamarina, conhecido, né? Que tinha época de ter mil pessoas ao redor, vendo o jogo,
398
tinha narrações realizadas pelo Orismar e comentários por outras pessoas, naquela região,
pelo Toinho ou Toni, como é chamado no Prece. E várias outras pessoas organizando e
colaborando com aquilo. ((Comentários do entrevistador sobre pensamentos de Beto em
morar na cidade e sobre seus estudos)) [15’51’’]
[16’15’’]
Sim. Naquela época de, por exemplo, quando eu completei dezessete anos e foi um período
que o Prece já tinha iniciado, mas eu vou falar isso. Antes até os dezesseis anos tinha muita
vontade de morar na cidade. Mas dezesseis anos, vinha um colega meu, o Valmir, né? Que
é muito meu amigo hoje em dia ainda, somos amigos, ele veio morar na cidade e teve/veio
para trabalhar numa empresa de ônibus como o cara que fazia a limpeza, que organizava o
espaço, e quando eu tava com dezessete anos e meio, apareceu uma oportunidade, né
Orismar? Eu vim ser cobrador de ônibus e tu imagine uma pessoa que não ganhava nem
um real e passasse a ganhar quinhentos reais, era uma oportunidade que todas as pessoas
do meio rural busca, né? A maioria busca durante esse período. Depois de eu sentar com o
pai e com a mãe, sempre a gente conversou, né? E também numa conversa com eu tive com
o Andrado, né? Manoel Andrade, ele disse, eles disseram, né? porque não foi só ele: O pai
me dava todo apoio até eu me formar. Não tinha muito recurso financeiro, mas no que fosse
possível, as coisas básicas para as necessidades básicas. Mamãe do mesmo jeito, né? Isso
é uma oportunidade que muitos jovens do meio rural buscam, querem, porém é uma
oportunidade que para um cara que não passa de um cobrador, né? Isso ficou marcado na
história da minha vida, né? Durante isso aí foi no ano de [19]95, meados de [19]95 pra
frente. Isso ficou marcado, que foi um ‘tra’, né? Coisa que fixou que diz que isso não era/eu
não vinha para a cidade mendigar um emprego de trocador, concreto na minha vida e isso
não ia mais acontecer, né? durante todo esse período. Porém, quando eu me lembro uma
outra coisa, um outro marco histórico, uma outra coisa muito importante, que eu me lembro
muito bem, acho que foi no final de [19]94, uma coisa que ficou marcada, eu jogava no
time da Estudantina, né? Estudantina Sport Club. E eu tinha ido para uma festa dia de
sábado e nesse sábado, eu acho que eu tinha quinze anos, dezesseis anos, eu fumei um ci/eu
fumava um cigarro, né? E o professor Andrade também. Dia de domingo terminou o jogo,
né? e disse: “Beto, eu quero conversar contigo”. E sempre quando terminava o jogo a gente
ia conversar e disse: “Cara, Beto, ontem tava fumando na festa.”, ele tava na festa também
e viu, né? “Tava fumando um cigarrinho?”, eu disse: “Tava” Ontem, né? ((Fala do
Andrade))“E por que que fuma? tu já viu propaganda de cigarro na televisão?”, eu disse:
“Algumas eu já vi, o cara só pega mulher bonita, carrão, as pessoas que fumam cigarro pra
que? Para influenciar as outras pessoas a fazer isso”. E foi uma das únicas vezes, né? Isso
tava com um período de quinze dias, mais ou menos, que eu tava querendo fumar, que
alguns colegas meus fumavam, isso foi a última vez que eu coloquei cigarro na minha boca,
isso ficou uma coisa marcada na história para mim, porque foi uma oportunidade de eu não
me viciar em fumar cigarro, né? E quando eu cheguei aqui dentro da/quando eu cheguei
em outros ambientes, em outros locais também, os colegas meus perguntavam por que eu
não fumava e eu sempre contei essa história, que é uma história que fica marcada na vida
da gente. Em [19]94 teve tudo aquilo que teve os campeonatos, teve a minha infância. Em
[19]94 a gente teve encontros, né? conversas, mas o professor Andrade, ou Andrade como
eu chamava ou sempre chamo o Andrade, tava querendo montar um grupo para umas
pessoas estudar. Eu me lembro um dia de domingo, eu e mais três colegas, eu acho, sentado
em uma antigas casa de fazer farinha, em cima de uns tanques, ele perguntou, a gente, né?
a nós que estava lá: “Vocês querem estudar?”. A gente pensou que estudar era estudar e
tivesse um professor, tivesse uma pessoa que soubesse um pouco mais que a gente e ia lá e
dizia as coisas, né? E alguns colegas meus, né? como o Francisco, Toinho, Eudimar ou Du,
399
como é conhecido. E eu me lembro nós quatro muito bem. E eu era um dos caras, o Du
também nessa época estava concluindo, ou tinha concluído o ensino do primeiro grau, e o
Francisco estava estudando acho que na sexta, o Toinho tinha concluído logo o antigo
primeiro e segundo grau, era considerado o mais sabidão, né? o cara que sabia mais, mas a
gente sentou e começou a estudar, passou a semana a gente: “Se vocês quiserem estudar,
vocês me digam e no próximo final de semana a gente se reúne novamente.” A gente passou
o final de semana, quando teve oportunidade , nos reunimos de novo. ((Comentários do
entrevistador sobre o início do PRECE)) [21’50’’]
[22’05’’]
daquelas comunidades. Isso aconteceu durante um certo período, né? E passou um ano de
[19]94, passou acho que mais umas duas semanas e a gente estudando pela manhã, mais duas
semanas, acho que um mês mais ou menos, posteriormente a gente passou a estudar de forma
integral, manhã e tarde, por exemplo, nós estava se habituando ou se adaptando a estudar, e a
gente fez toda a revisão de geografia e iniciou a revisão de história. [27’03’’]
[27’04’’]
Por que essas duas disciplinas? A gente não entendia o porquê, mas com o passar do tempo a
gente veio entender que são as duas disciplinas na qual são as disciplinas consideradas menos
difíceis e de fácil conhecimento. Pessoas que já tinham concluído e pessoas que estavam com
o nível lá em baixo para ficar mais ou menos nivelado. Isso aconteceu muito bem durante um
certo período. E no ano de [19]95 já estava o grupo formado, já tava integração entre os jovens,
durante todo o/e quando a gente passou de estudar de manhã e tarde, né? Os jovens tinham que
trazer alimentação. Eu, no meu caso, eu tinha menos dificuldade porque eu dava uma trote [a
cavalo] ou uma carreira de dois quilômetros, tava em casa, comia né? que nem eu falei
anteriormente. Sempre a gente teve uma alimentação regular na nossa família, mas os meus
colegas que vinham de comunidades de dez quilômetros, de quinze quilômetros, de oito
quilômetros, como é que esses jovens/vamos conversar, mas mesmo assim a gente trazia
alimentação de casa para a gente fazer lá na casa de se fazer farinha, a gente fez um rodízio
primeiramente e posteriormente a gente continuou fazendo essa alimentação, mas o importante
também é que alguns colegas meus, muitos deles durante algum período, todos eles eu
convidava para jantar lá em casa porque eu conhecia a realidade deles, se não tinha alimentação,
se não tem alimentação saudável, o nível de conhecimento, não, o nível de - de aprendizagem
diminui, se diminui, rendimento vai cair, tinha todo esse processo, né? muitos deles se
alimentaram durante um certo período na casa de João Félix e Neném, no qual são meus pais.
E o importante que no ano de [19]95 chegou alguns novos colegas para fazer integração no
grupo. Lembro muito bem do Nacélio, Genival, esses dois jovens são uns dos que eu lembro
mais durante esse período, [19]95 eles chegaram a fazer parte do grupo da gente e eu
conversando com o genival, né? durante esse período de [19]95, no qual a gente terminou a
revisão de história e geografia, durante esses três meses, quatro meses, cinco meses, por aí,
terminamos aí a revisão de história e geografia, mas iniciamos um curso de português, dado
pelo Toinho, né? para a gente melhorar na escrita da gente, na leitura, e eles também
participaram durante esse período e o genival foi um dos caras que eu tenho amizade hoje em
dia muito forte, mas foi um cara que no início era um dos caras que a gente pensou muito que
ele não ia continuar nesse processo durante essa caminhada. Mas em [19]95 foi um período que
a gente fez toda a revisão do primeiro grau, fez a revisão e foi um período que teve a primeira
disputa interna, disputa no bom sentido de aprendizagem, né? Para duas pessoas serem
selecionadas para uma viagem em Minas Gerais junto com o professor Manoel Andrade. Tu
imagine um cara do meio rural ter a oportunidade de sair do Ceará nessa época. E isso pra gente,
a gente pensou que era uma disputa, mas professor ele sabia que era um estímulo a buscar mais
conhecimento dentro da ciência, né? E essa gincana, ou olimpíada, ou uma disputa interna de
conhecimento foi na disciplina de ciência e o Toinho e o Francisco foram os dois que foram os
caras que tiveram mais conhecimentos nessa disciplina, foram os caras que foram a viagem, e
quando retornaram no ano de [19]95, falaram da importância dessa viagem, de conhecer outros
locais. E a gente perguntava como era a alimentação, como foi a viagem, como foi a
hospedagem ou o local onde dormia, tudo isso pra gente era novidade - também uma
oportunidade da gente em uma outra disputa interna, um outro local, ir outras pessoas conhecer
os locais. No ano de [19]95 nós continuamos nesse estudo, né? de grupo. Hoje em dia conhecido
como estudo em células. Lá nessa época a gente estudou em grupo, quem sabia um pouco mais
foi coordenador, fui um dos caras, colaborei com matemática durante muito período, muito
tempo. E quando a gente terminou toda a revisão do primeiro grau, o Francisco nessa época,
401
relatando um pouco aqui, o Francisco foi o cara que deixou da sexta série, terminou o ensino
fundamental pelo supletivo. E durante todo esse período de [19]95. é importante também que,
durante esse período, a gente sempre buscava conhecimento nos estudo, né? Os melhores livros
de pessoas que doaram daqui de Fortaleza, de outras localidades, para os jovens que estavam lá
no Cipó, na casa de fazer farinha, estudar em grupo e ter acesso aos conhecimentos.
((Comentários do entrevistador sobre o estudo em grupo e o juazeiro, árvore)). [33’00’’]
[33’36’’]
Primeiro como eu falei, né? Era um período seco e juazeiro para quem não conhece é uma
árvore que no período seco ela tá verde, mas quase, eu acho que isso vem de uma história né?
do juazeiro, dizem que eram para os retirantes ter um local de apoio quando não tinha casa ou
era um sertão muito deserto, para os retirantes e os animais descansarem em baixo. E pra gente,
o juazeiro era um local que tinha uma ventilação agradável, o seu internamente, não ia gastar
energia para ter calor, para manter a temperatura do corpo. Isso facilitava todo o estudo. E além
de você estar em contato com a natureza, onde a gente realizava esse estudo debaixo do juazeiro,
né? de dois juazeiros muito famosos lá no Cipó, ainda hoje estão lá e a gente vai preservar eles
por muito tempo. E durante ((comentários do entrevistador sobre o processo de estudo na casa
de farinha e o ensino médio do Beto)). Isso é importante que, alguns colegas meus relataram
que foi em [19]95, [19]96, eu passei tudo fazendo isso, fazendo essas revisões, todo o ensino
fundamental. Aí os colegas meus disseram que em [19]95, [19]96, era para eu tá terminando o
terceiro em [19]97, terceiro ano do ensino do segundo grau ou do ensino médio, eu tava dois
anos sem/só estudando, fazendo revisões, junto com outros jovens daquela região. E, mas só
que alguns colegas meus já estavam nesse período de provas, né? e em [19]97, é bom relatar
aqui, em [19]96 a gente teve toda aquela/alguns cursos de ciências de português chamado
Robson - acho que é Robson, professor de português, na qual o professor Manoel Andrade levou
para dar um curso, né? de português, para a gente melhorar os conhecimentos em português.
Os professores daquela região, eles tudo colaboraram e melhoraram seu conhecimento. E em
[19]97, uns colegas meus estavam concluindo, o ensino médio, em Pentecoste, alguns que
pegaram carro, né? que tinha deles que andavam de trinta quilômetros de pau de arara. Quando
eu tava estudando ali e os colegas meu José Noberto e Francisco José ou Chicão, como também
era chamado, eles estavam fazendo supletivo em Fortaleza, no CEJA do Centro, né? que
infelizmente eu não sei o nome agora, mas eles tavam indo, né? e foi um período que o professor
Manoel Andrade, estava com dezessete anos, em 2000 e - 6 estava com dezessete anos né? (5.0)
dezessete anos e era um período que eu não poderia me matricular no supletivo. Por que a gente
não fazia o supletivo em Pentecoste? É bom relatar isso. E por que a gente quis fazer o supletivo?
Supletivo era a oportunidade da gente estudar, trazer o material para casa, e estudar, melhorar
seu conhecimento, repassar pros colegas e vir e fazer a prova. Em Pentecoste não tinha supletivo
de segundo grau nessa época. E aí? faz onde? Tem que fazer em Fortaleza. E me lembro muito
bem que até agosto - até agosto de (6.0) [19]96, até agosto de [19]96, de janeiro a agosto eu
fiquei só estudando os módulos, né? Como era que prestava esses módulos se não tinha nem
isso? Mas o professor Manoel Andrade conseguiu xerocar os módulos de história, geografia,
matemática, português, teve inglês, inglês ele não xerocou porque não interessava nessa época
pra gente. E levou pra gente estudar lá em Fortaleza. E eu me lembro que durante um mês que
eu me matriculei, né? Um mês que eu me matriculei aqui no CEJA, no Centro, eu fiz trinta e
duas provas, deu mais de uma prova por dia, porque eu tinha feito uma revisão dos módulos e
isso o pessoal do CEJA aqui do centro, disse que: “Não, tá errado. Uma pessoa não pode fazer
uma prova por dia. Levar um módulo e fazer uma prova por dia.” E até um deles, o coordenador,
o diretor me chamou para conversar né: “Como você está fazendo tudo isso?”. São relatos
importantes né? “Como você está fazendo tudo isso?”, E eu peguei e fui explicar né? como é
que eu tinha feito. Tinha feito todo esse período, tinha estudado, tinha feito revisão do primeiro
grau, tinha estudado alguns módulos,por isso tinha uma facilidade de fazer todas essas provas,
402
durante esse período. E eu me lembro muito bem que, foi quando concluí né? Isso foi em agosto
né? agosto para setembro iniciei as provas e quando foi em [19]97 concluí o segundo grau né?
Enquanto meus colegas estavam levando, [19]95, [19]96, [19]97, eu terminei ou concluí antes
deles e foi o período que eu tentei vestibular pela primeira vez. Quando eu terminei o/além de
estudar o módulo a gente tinha estudos em grupos, se preparando para o vestibular que alguns
jovens nossos, alguns colegas nossos, já estavam dentro da universidade e me lembro muito
bem que da primeira vez que eu fiz vestibular, acho que foi em [19]97, foi em [19]98, foi nessa
época aí né? que eu não sei muito bem. A primeira vez que eu tentei vestibular eu fiquei em
sessenta e quatro, eram cem vagas né? agronomia né? Eu disse: “não isso aqui é tranquilo, né?”.
Agora eu tinha uma dificuldade muito grande em escrever redações né? eu nunca tinha
escrevido uma redação. E durante quinze dias aqui, eu acho que eu escrevi umas três ou quatro
redações, o professor Manoel andrade colaborava com a gente e eu fiz vestibular, fiquei em
cento e - acho que foi em cento e seis e isso - isso ficou né? classificáveis. Eu recebi uma
cartinha, não tinha passado na hora do resultado, e eu recebi uma cartinha que eu estava nos
classificáveis e tinha perigo de entrar. E eu só sei que entraram os outros cinco classificados e
eu era o próximo e não chamaram né? mas também não se desesperou, sabia que isso era um
momento de transição, precisava melhorar os conhecimentos em algumas coisas, isso foi um
momento que de morar aqui no/Fortaleza né? mas antes disso eu já tinha vindo fazer todos os
((tosses)) os módulos aqui em Fortaleza, né? E vim, professor Manoel Andrade, quando tinha
uns jogos aqui né? Um dia me deu um desafio de colaborar com um jovem que morava nessa
casa pertencente a igreja presbiteriana, na qual colaborou muito com a gente lá na Princesa
Isabel, duzentos e noventa. [42’10’’]
[42’11’’]
E, isso foi um momento de melhorar meus conhecimentos principalmente na parte de
matemática e biologia, né? que eram as específicas. E nesse momento né? eu fiz uma seleção
também, nesse período que eu estava aqui. Além de estudar durante todo o dia com os jovens
que estavam nessa casa pertencente a igreja, teve um projeto, um vestibular aqui da
universidade e também fui aprovado para participar, né? Eu me lembro muito bem um dia de
domingo, fiz isso, passei nessa seleção e aqui teve uns colegas meus, colegas e colegas, que a
gente fez também um grupo e levava para lá para estudar junto com a gente. E foi um ano no
qual eu prestei vestibular, no ano seguinte. Todos os finais de semana retornava para Pentecoste,
colaborava com o jovem que estavam lá, mesmo não estando na universidade ainda, colaborava
com ele, com o time, com todas as organizações que a gente pertencia né? E isso, no ano de
[19]98 prestei vestibular novamente e fiquei, infelizmente, aumentou para cento e quarenta vaga
o curso de agronomia, e eu fiquei em duzentos e dois. Aí eu disse: “Um ano de estudo, invés de
melhorar o conhecimento, isso tá alguma coisa errada.” Só sei que fiz a segunda fase né? Nesse
mesmo período eu me inscrevi para a UECE, curso de matemática, e saiu o resultado da UECE
dois dias anteriores e depois saiu o da UFC, da segunda fase. E eu me lembro que o da UECE
eu estava / nisso nesse eu tinha retornado para o meio rural e estava esperando o resultado lá.
Na UECE eu tinha sido aprovado, para matemática, já tinha ficado um pouco mais tranquilo. E
quando saiu o resultado da UFC, eu me lembro como se fosse hoje, estava lá com aquele sonzão
ligado, pertencente ao Orismar, sonzão: “Resultado do vestibular acabou de sair”. Comecei a
ver o nome né, e eu tinha visto no jornal que o único Carlos Roberto que tinha era eu. E quando
saiu Carlos Roberto aprovado, eu sabia que tinha sido eu. E foi assim, um momento de alegria,
um momento de saber que tava tendo uma nova oportunidade da vida, de vir a universidade e
tava em dois cursos. Tanto em matemática e em agronomia. Isso eu fui para agronomia na UFC,
por que? Isso é muito importante relatar esse porquê. Por que esse cara não faz matemática?
Esse cara tinha muita vontade de fazer veterinária, mas não tinha conhecimento, curso muito
difícil na UECE e gostava muito de matemática. Fui influenciado por outros amigos que
estudavam matemática, na qual fizeram matemática na UECE. Nesse mesmo período passaram
403
também. Mas UFC por quê? Porque nós tínhamos, quando viesse, residência, local onde morar,
não precisava morar na casa de tios, de parentes. Tínhamos alimentações de graça. A
alimentação, residência, isso era pra gente que vem do meio rural é altamente interessante, é
altamente um local de apoio que você tem um local especificamente para estudo. Você imagine
morar na casa de um tio, de uma tia, aonde as pessoas não têm o hábito de esse local ser para
estudar, e você está estudando e as pessoas virem e conversar e atrapalhar sua concentração. E
isso tem feito que isso era dividido em duas turmas né? Passei para a segunda turma, mas aí foi
uma/pra mim foi ótimo. Eu, primeira coisa, nós estava num campeonato muito pesado em
pentecoste, no período de treinamento. Como eu já era universitário, já estava matriculado,
tinha oportunidade de vir treinar no time da universidade, seleção universitária de futebol e
treinava todo santo dia. O que eu fazia? Depois de/eu passei né? fui morar na casa da igreja e
colaborava com a parte de limpeza, de todo o ambiente da igreja, do espaço, e isso fez né? com
que eu fosse treinar no time da universidade, e fui selecionado pela primeira vez para sair do
estado do ceará, pra ir jogar um campeonato brasileiro. A gente foi jogar em Aracaju, durante
esse período, como eu já era universitário, como eu não estava cursando mas já estava
matriculado. Mas estava credenciado para a pessoa participar do time. E durante todo esse
período foi um período para eu aprender um pouco mais dentro do horto. O horto de plantas
medicinais da universidade. O professor Andrade com o professor Marques deram esse
momento de eu conhecer as plantas, conhecer algumas plantas medicinais, algumas plantas da
caatinga que tinha dentro desse horto. Isso para mim foi uma grande aprendizagem. Trabalhava
um expediente, trabalhava nesse horto, estagiava um expediente, treinava, retornava pra igreja,
colaborava com meus amigos na parte de matemática, biologia e física, para que eles entrassem
também dentro da universidade. E durante esses seis primeiros meses de universidade, eu/foi
isso que aconteceu, fiz alguns cursos dentro da universidade que dava cursos gratuítos e vou
iniciar mesmo a faculdade, as disciplinas. Dá uma paradinha aqui só para eu tomar um
pouquinho d’água. [48’21’’]
VÍDEO 03
[0’00’]
Agora, né? eu já tava na universidade e tudo, mas antes disso, importante a gente relatar que no
início do PRECE, no início o professor Andrade juntou os grupos de jovens, em seu carro, numa
F1000, que a gente veio conhecer Fortaleza, foi a primeira vez que a gente foi a um shopping,
primeira vez que a gente conheceu uma universidade, mostrar uma universidade, o que é uma
universidade pra gente, isso é uma forma de estímulo, alto estímulos pras pessoas. Conhecer
esse mundo pra conhecer, você conhece um mundo pequeno e depois tem todo esse mundo que
você pode conhecer e ter oportunidade. Fomos ao cinema pela primeira vez, isso é altamente
importante pra gente. E, eu acho que, isso também foi um período, ratificando aqui, o período
que eu entrei na universidade foi em [19]90/[19]98, fui aprovado e entrei pro segundo semestre
em [19]99. Porém, quando eu iniciei a faculdade, me lembro muito bem, das primeiras/me
lembro muito bem da primeira prova que eu fiz, uma das primeiras coisas que/ curso de
agronomia é um dos cursos que tem duzentos e cinquenta e quatro créditos, curso grande que
tem um período de cinco anos, que leva muito sacrifício dos estudantes e me lembro muito bem
da primeira prova, das outras eu não lembro, mas da primeira eu lembro. Professor conhecido,
vou relatar o nome dele, que é um professor que a gente não esquece, né? primeira prova que a
gente fez na universidade, né? Professor Euclimar, professor de física um, e me lembro né? que
eu, uma das disciplinas que eu gostava muito, né? E minha primeira nota foi 7.5, porém porque
eu sabia todas as questões, mas a primeira prova que o cara vai fazer dentro de uma universidade,
o cara nervoso, errei lá uma conta, errei lá uma multiplicação, e fiquei com essa nota. E durante
todo esse período da faculdade, é importante relatar agora, que passou o primeiro período
quando eu iniciei a universidade e tive a oportunidade de ir pro laboratório de bioquímica, com
404
o professor Beníldo Carvalho. O professor deu apoio para pesquisar sobre lectina, algumas
plantas que tinham suas lectinas, a pesquisa e isso para a gente foi uma oportunidade magnífica,
conhecer um laboratório de bioquímica, e trabalhar e ficar como estagiário durante esses seis
meses. O importante é que todos os finais de semana dentro da universidade a gente retornava
com o professor Andrade e o seu carro durante um período mais ou menos de dois anos, todos
os finais de semana, sexta-feira a noite. E durante esse período, a gente tinha dificuldades,
dentro da universidade a gente tinha dificuldade de ter recurso mesmo pra sair pra ter roupa
bonita, tudo isso a gente não tinha porque vinha de família simples, porém dentro da
universidade eu fui um cara que me dediquei muito. Estava dedicado nas minhas disciplinas,
curso de agronomia é um dos cursos no qual a pessoa tem que ter uma dedicação exclusiva. E
quando foi no/terminando o segundo período, no terceiro consegui uma bolsa do (2.0) CNPQ
(2.0), essa foi até o sétimo período, sétimo, oitavo período. Trabalhando especificamente, eu
era o estagiário/bolsista de estatística, porém o meu orientador Ivaldo, José Ivaldo, professor de
estatística, deu oportunidade e abriu as portas da Embrapa para eu ser estagiário dentro da
Embrapa, mesmo eu sendo bolsista do CNPQ. E durante todo esse período ((tosse)) eu tive
oportunidade de conhecer os campos experimentais da Embrapa, tanto em Pacajús que nem
Paraipaba, trabalhando com o melhoramento de cajueiro, mamão, melão, desculpa, não é
mamãe, melão e orquídeas. Professor, pesquisador Paiva, Paiva Rodrigues da Embrapa, que
hoje em dia está aposentado. Foi um dos caras co-orientador meu, no trabalho que a gente fez
sobre acerola, na qual eu pesquisava especificamente acerola, né? E durante todo esse período
fui estagiário, sempre gostei. E uma coisa que foi importante, Orismar, que eu aprendi durante
todo o período do Prece antes de entrar na universidade é que o que você aprendesse, passasse
aos outros, nunca mais seria esquecido e tinha um melhoramento no seu conhecimento. E isso
pra mim foi uma oportunidade para eu receber um recurso de aulas particulares, por exemplo,
eu dava aulas particulares pros meus colegas, os caras dentro da universidade junto comigo,
mas eu tinha um pouco de destaque, a gente tinha um grupo de estudo, colaborava, a gente fazia
ali uma vaquinha e colaborava para que eles passassem/para eu repassar um pouco de aula pra
eles. [05’31’’]
[05’32’’]
Durante esse período, eu dava aula particular de matemática e física para alguns alunos de
colégios especiais, nos colégios de Christus, 7 de setembro, durante esse período da
universidade. Durante todo esse período que eu estava dentro da universidade eu sempre tive
integração contínua. E no penúltimo período já, concluindo o curso, já pensando no que ia fazer.
Eu fui ser bolsista de extensão para desenvolver um projeto que todos os finais de semana, antes
de/mesmo sem ser bolsista de extensão eu desenvolvi um projeto, colaborava com o projeto lá
nas comunidades de Pentecoste. Na qual o Prece, né? E durante todo esse período, [19]90 e no
penúltimo semestre, nono e décimo semestre, nós/eu fui ser bolsista de extensão orientado pelo
professor Andrade, e isso fez com que a gente desenvolvesse os trabalhos naquela comunidade.
E, no décimo período, final, na festa, na formatura que nem nós chamamos, tive oportunidade,
vai fazer mestrado ou vai trabalhar? Imagine, já tinha passado todo esse período, né? sem
receber recursos financeiros, e mandei meu currículo para Viçosa, né? Minas Gerais, junto com
mais dois colegas que concluíram. E os três foram selecionados, aí eu digo: “Eu vou ou não
vou? Tem mais uma decisão na sua vida. Eu e deixo minha comunidade, meu município, sem
o desenvolvimento, sem a colaboração que eu vim e peguei conhecimento ou vou para Minas,
faço meu mestrado, posteriormente meu doutorado, e continuo na vida acadêmica, não sei
onde?”. Aí eu decidi a ir trabalhar em Santa Quitéria, em 2004. Concluí esse curso em 2004,
concluí que nem hoje em junho. Agora, com cinco dias, estava trabalhando. Teve outras
empresas que vieram atrás né? Pelo currículo e histórico. A gente teve oportunidade de trabalhar,
né? Eu fui trabalhar em Santa Quitéria e durante esse período um ano e meio em Santa Quitéria.
Fui mais uma vez desafiado. Ganhei dinheiro, brinquei muito, fiz tudo de bom. Durante/fui
405
mais uma vez desafiado, retornar Pentecoste para iniciar um projeto de apoio aos agricultores
familiares daquela região. Depois veio a experiência. Agora teve um problema, né? Eu ganhava
x e a oportunidade veio para x sobre dois. Você tá com um patamar, acostumado a gastar x e
vai gastar x sobre dois. Isso é um desafio na vida da gente. E eu retornei pra Pentecoste, né?
Pra:: iniciar esse projeto com os agricultores familiares do Vale do Rio Canindé, com o grupo
em NAPR, Núcleo de Assessoria ao Produtor Rural. Isso foi uma experiência magnífica que eu
passei a conhecer todo o município. Conheci aquela região toda do Canindé, conheci várias
pessoas, hoje em dia ainda conheço, tenho a oportunidade de conversar. E desenvolvi esse
projeto durante um ano no qual deu vários resultados positivos, tanto pro Prece, que nem para
mim, que nem pras pessoas, pros agricultores daquela região. E tive oportunidade, Secretaria
de Agricultura me chamou para prestar um serviço, Agricultura de Pentecoste, e foi a
oportunidade que eu tive de conhecer todo o meu município, né? de conhecer cento e:: quarenta
e três comunidades, se eu não me engano. Unir esse município de Pentecoste, ele todo, terminei
de conhecer todas as comunidades, todos os locais, não conheço todos as pessoas, mas conheço
todas as localidades. Isso é uma oportunidade que a pessoa só tem se tiver dentro da comunidade,
dentro do município. E durante esse período também trabalhei prestando serviço para o estado,
com agropolos. Isso foi minha vida profissional. Hoje em dia, sou educador social da ADEL,
Agência de Desenvolvimento Econômico Local, na qual ela é fruto de jovens que vieram do
meio rural, vieram a universidade, tiveram a oportunidade de conhecer e retornar a sua
comunidade para prestar um serviço aos produtores, jovens, pessoas daquela região, daquela
comunidade e do território de Itapipoca, né? A ADEL trabalha nessa perspectiva. E hoje nós
trabalhamos especificamente, hoje eu estou trabalhando especificamente com jovens mas
também trabalho em vários outros programas, projetos que o Prece desenvolve, sempre estou
no meio, porque isso é uma oportunidade que a gente teve de aprender durante todo esse período
e isso faz com que a gente fortaleça as amizades, fortaleça o conhecimento e isso dê força para
desenvolver vários outros frutos, várias outras oportunidades para outras pessoas.
((Comentários do entrevistador sobre sua moradia durante a universidade)) [11’10]
[11’37’’]
Primeiro eu fui para a residência 2133, na qual eu fui colocado para essa residência, e foi durante
seis meses, foi um período que eu não tive presente na residência, que eu tinha uns amigos na
igreja, ia para a igreja, ia na residência e ficava na igreja. Mas depois me transferi para o Castelo,
chamado, residência conhecida como Castelo. E lá tinha muitos precistas, já tinha muitos
precistas nesse período. Toinho, Adriano, Noberto, Francisco e eu. Éramos cinco, já tinha
muitos precistas nessa residência. Quando eu entrei foi no semestre que o Toinho saiu, mas isso,
por exemplo, o convívio na relação entre pessoas que o Prece dá oportunidade a gente, isso
colabora muito para que isso aconteça quando você tem a oportunidade de ir trabalhar com
pessoas, de ir conviver com outras pessoas, isso faz com que essa integração ou esse
partilhamento, aconteça de forma bem legal, bem:: legal mesmo. ((Comentários do
entrevistador sobre o falecimento do irmão e de como as amizades o ajudaram a superar essa
fase)). Certo, eu acho que assim, né? A vida do ser humano, seja ele como independente de
beber ou não, isso eu acho que é orientado ou é guiado por Deus. Eu vejo nesse sentido e isso,
nesse momento, desse falecimento, da morte ou do acontecimento, como queira ser chamado,
eu não estava aqui no município de Pentecoste, eu estava em outros municípios. Foi um dia de
domingo, eu acho que isso ficou muito marcado para im. Eu tinha terminado de chegar do
trabalho, estava chegando no hotel e ia descansar, aí um colega meu, conhecido como Tetê,
Valdeir Souza Silva, conhecido como Tetê, ligou e disse que tinha acontecido uma tragédia, eu
pensei, no momento que ele ligou e disse, que aconteceu uma tragédia: “ Que foi que aconteceu
cara? Meu irmão que no qual era o Félix, matou ou morreu?” Eu já/antes de eu ter saído, quinze
dias antes, eu tinha dito a ele que tivesse cuidado na vida, que deixasse mais dessas bebedeiras,
dessas coisas, mas eu acho que Deus tem todo um propósito para a vida de cada um, apesar de
406
ter acontecido na Tamarina, as coisas poderiam ter acontecido lá ou ter acontecido em outra
comunidade, em outro local, porque aquilo já estava planejado, as pessoas já estavam
planejando aqui, felizmente a gente não sabia, aconteceu lá porque nesse momento ele estava
lá e eu acho que iria acontecer em um local ou em outro, isso não ia fazer uma grande diferença.
A gente luta por justiça e esperamos que a justiça de Deus, justiça da prisão e não justiça feita
pela mão da gente, isso que é o mais interessante, acho que nós lá em casa a gente tem orado
para isso, crer em Deus para isso, que isso vai acontecer ((Comentários do entrevistador sobre
a importância do Prece na vida do Beto)[15’10’’]
[15’28’’]
Rapaz, falar do Prece assim na minha vida, eu acho que quando eu comecei a ter vida, quando
eu comecei a me sentir gente, foi o momento que o Prece surgiu na minha vida. E durante todo
esse período que eu tive afastado ou não, sempre eu tive ligações com o Prece, sempre estive
participando dos eventos, dos acontecimentos nos quais o Prece esteja envolvido. E falar do
Prece na importância da minha vida, eu acho que o Prece hoje em dia é/que deu horizonte, que
deu visibilidade, que deu oportunidade, que fez com que eu conhecesse quatorze estados do
Brasil, faz com que todos os meses, muito difícil eu não viajo para estado diferente, faz com
que eu ande de avião, faz com que eu tenha um salário digno, faz com que a minha vida
financeira, pessoal e de amizade, integração, tudo isso e falar do Prece para mim, né? E isso
são oportunidades na vida da gente que nem eu falei anteriormente, são oportunidades que
aparecem. Sempre eu digo para os meus jovens que hoje em dia eu estou educando, na qual é
perspectiva, sua vida você perde hoje e ganha amanhã, se você ganha hoje, tem que economizar
porque amanhã você pode perder, isso o Prece tem feito na vida de várias pessoas, na minha
não é diferente. É dar oportunidade, dar conhecimento, dar empoderamento e dar essa fortaleza
de vida, né? que nós temos a nossa família, não só eu, mas a nossa família como um todo hoje
em dia, minhas irmãs que são três graduadas, minha mãe é graduada, tudo isso vem do fruto de
integração e de oportunidade que o Prece gera na minha vida e na minha família. ((Entrevistador
pede que ele faça agradecimentos, se achar necessário)). Sim, agradecimentos, né? Primeiro
nós temos que agradecer a Deus. Deus tem dado essa oportunidade, tem colaborado com a gente
nessa vida magnífica que nós temos. Meus pais, né? Meus pais, todos os eles especiais, meu
pai, minha mãe, meus irmãos. Colaborar, eu acho que uma pessoa que colaborou muito na vida,
o professor Andrade, que deu incentivo na hora de dar incentivo, deu conselho, colaborou com
um efeito de não é hora de fazer isso, mas tudo isso são oportunidades. Meus amigos, especiais
eu vou falar alguns aqui, Genival, Orismar, Noberto, Francisco. Minhas irmãs em geral, meus
irmãos que tem/sempre nós estamos unidos na discussão, ver o que é melhor para a família, ver
o que é melhor para cada um. Isso tem feito muito e outras pessoas, né? De famílias, acho que
tem algumas famílias que a gente deve dar sim como agradecimento. a família da Mariluca,
meus avós, todos dos dois lados, João Neto e Rabi, meus tios, né? que são para mim também,
tia Nonata, tia Tonha, tia Maria, tia Rosenir, tia Osida foi a que eu tive menos contato, que mora
em Brasília, tio Estevam, tive pouco contato também que mora em Fortaleza, mas esses outros,
todos eles, quando a gente tem oportunidade, a gente agradece pelo apoio, pelo incentivo que
tem dado a gente, né? E mais, a gente tem que buscar melhoria, ver qual é nossa perspectiva.
Qual a nossa perspectiva? aonde que nós queremos que nós cheguemos, não só o Beto, mas o
Prece? as pessoas? Aqui a nossa comunidade tenha pessoas de vida digna, moradia digna,
alimentação digna, e isso seja não só em uma família, mas em todas as famílias que compõem
o município de Pentecoste. ((Comentários do entrevistador sobre como ele vê a cidade de
Pentecoste e suas perspectivas de futuro para si e para a cidade)) [19’25’’]
[19’42’’]
Me lembro bem que nossa meta era que em 2000 nós tivéssemos dez universitários, lembro
bem dessa meta. Em [19]94 começou o Prece e em 2000 nós tivéssemos dez universitários. E
407
nós tínhamos dez universitários. Em 2010 nós temos uma outra meta, fazer com que as pessoas
tenham educação de qualidade dentro do município de Pentecoste. Isso vem desenvolvendo
através das EPC’s, né? E vou botar em 2025, que é a minha perspectiva, é que o município de
Pentecoste tenha uma administração de pessoas que tenham capacidade de gerenciar, de
administrar e capacidade e fazer com que as pessoas tornem-se honestas, fazer com que todo
recurso que venha para ser aplicado, seja ele em qual algo seja, ele seja aplicado daquela
maneira e não pessoas enricando através do dinheiro do povo, isso é que entristece a gente que
tem um pouco mais de conhecimento. Mas isso leva tempo para mudar. Hoje nós temos uma
oportunidade de uma escola magnífica, escola técnica de Pentecoste na gerência do Prece, junto
com a universidade ((Universidade Federal do Ceará - UFC)), coordenadoria do Prece com
apoio da universidade. Isso faz com que o ponto de apoio, de segurança, de mostrar coisa
diferente para o município de Pentecoste. E também estamos com a oportunidade do Prece ser
conhecido em todo o estado, através da coordenadoria do professor Andrade junto com o estado.
Isso faz com que dê visibilidade. E o nosso município, buscamos que em 2025 seja um
município exemplo de honestidade, de pessoas de conhecimento, e que todas as pessoas tenham
oportunidade dentro daquele município. ((Comentários do entrevistador sobre a simplicidade e
a humildade de Beto e questiona se ele já pensou em desistir em algum momento)). Como eu
falei anteriormente, o momento que eu pensei em desistir foi o momento em que apareceu a
oportunidade para eu ter um emprego aqui em Fortaleza, mas depois de um momento de
conversa com o pai e a mãe, e o professor Andrade, isso posteriormente passou e depois de ver
os exemplos de outros jovens que tinham o mesmo conhecimento que vinha de famílias iguais
a minha, isso gerou só visão, fortalecimento e não mais desistir de jeito nenhum. ((O
entrevistador questiona sobre a espiritualidade de Beto)). Espiritualidade? assim, sempre
participei. Teve um momento que eu estive mais ligado a igreja, teve momentos que eu tive
menos ligado a igreja, e agora agente tá nesse momento de decisão na vida, isso é importante
para a gente relatar na paz espiritual. E eu tenho orado a Deus, para que Deus me oriente nesse
momento, para que Deus me dê visibilidade do que é bom para mim, que eu já sei o que é parte
bom para mim, mas eu quero orientação de Deus. Minha mãe sempre conversa comigo sobre
orações. Minha mãe é uma pessoa que está muito fiel, que está sempre na igreja, que/mas
também eu gosto muito de participar de cultos, vou sempre a missa também. Eu acho que
preciso ter uma decisão mais concreta de apoio na parte espiritual. Eu preciso disso e eu estou
buscando isso aos poucos. ((Entrevistador pergunta se Beto gostaria de relatar algo que tenha
esquecido)). Acho que algumas coisas relatar são importantes, relatar no período que nós íamos
para o interior no carro do professor Manoel Andrade que muitas vezes foi multado, muitas
vezes ficou no prego, muitas vezes ficamos atolados no meio rural, né? Isso são relatos que
ficam marcados na vida da gente. E teve um relato que ficou marcado também, foi no dia que
o Andrade trouxe todo o time da Estudantina para jogar dentro do campo da universidade contra
o time do Odiorne. E na volta, né? isso é um relato, é uma brincadeira, mas aconteceu. E na
volta o - alguns jogadores vinham em cima do carro, outras vinham na bolé, e um frio daqueles,
lá para as doze horas, uma fome daquelas que só Jesus Cristo, tinha depois do jogo, né? E um
dos nossos colegas, né? amarrou - o cadarço do sapato de um colega nosso no outro em cada
pé. Rapaz, quando foi/o Andrade comprou um refrigerante com pão, que esse colega foi pular,
nós precisamos segurar, quando a gente segurou, aí eu vi o homem zangado, querendo brigar
com a gente ((risos)), mas aí o colega da gente, a gente não precisa citar nomes, um dos
colaboradores do time da gente, cara que colaborou muito com o time, né? E também, eu acho
que durante esse período teve uma amizade que ainda hoje é muito fortalecida entre a gente.
((Comentários do entrevistador)). Eu acho que todos os jovens que queiram, sejam eles ricos
ou pobres, ou classe média que nem hoje em dia tem. De primeiro só tinha ricos e pobres. É
oportunidade na vida, oportunidade que a vida oferece hoje em dia, é o que eu digo sempre para
os meus alunos e jovens que colaboram comigo, é que busquem a educação que todos nós temos,
408
agora conhecimento a gente tem que buscar, tem que ir melhorando aos poucos. E isso, através
do conhecimento, você tem oportunidade de melhorar de vida, de fazer com que sua família
melhore de vida, sua comunidade, posteriormente, seu município. isso é o que eu digo aos
jovens desse nosso território, desse nosso estado. [26’17’’]
[0’00’’]
Me chamo Francisca Raquel de Sousa Gomes, nasci em 8 de abril de 1977, sou filha de João
Félix e Francisca de Sousa Gomes. Os meus avós paternos chamam-se Manuel [para de falar e
depois continua], chamam-se Manuel Félix Gomes e Maria do Carmo Gomes. Manuel Felix já
está em memória né, já está com Cristo, mas foram um casal de pessoas que contribuíram muito
assim, pra educação mesmo, sem ter muito nível de estudo, mas eles contribuíram pra nossa
educação, assim através de conversa, existiam aqueles grupos onde eles sentavam com os netos
para conversar e mostrar exemplos, caminhos da igreja. Eles eram uma família muito católica,
como afinal até hoje são, mas eles sempre nos ensinaram os bons modos. E já faz mais de 14
anos que a gente perdeu o nosso avô né, o Manuel Félix. Mas, nós graças a Deus, mantemos a
nossa avó e até hoje eu tenho convivência com ela e trabalho numa escola bem próximo a casa
dela. Tenho a oportunidade de sentar com ela, conversar, mesmo com ela com a idade acima de
88 anos né. Graças a Deus. Enquanto os meus avós maternos assim, eu tive mais afinidade com
ele, porque a minha mãe, nós éramos muito pequenos, e a minha mãe deixava a gente sob a
responsabilidade da minha avó né. Á, o meu avô materno chama-se Francisco Barbosa de Sousa,
ele também não está mais conosco, Deus chamou ele para a vida eterna e ele não está mais
conosco. E a minha avó chama Raimunda Lima de Sousa e atualmente ela mora com a gente
na nossa casa né. E assim, o meu avô, ele perdeu sua mãe muito nova né, e teve que ser criado
pela irmã dele, Luzanira Barbosa de Sousa, e assim, foram muitos sofrimentos na sua infância,
teve uma [ela muda a frase] ele teve que morar numas comunidades e a gente pode até narrar
[interrompe a fala para mudar a frase], que foi muito importante [interrompe a fala para mudar
a frase] que foi assim, que foi muito triste quando a gente lembra desse fato né, que são as
coisas que a vida permite que você faça né, foi quando meu avô tinha apenas 5 anos de idade e
ele se perdeu em um serrote na comunidade da Capivara, que mora próximo a minha casa e só
foi achado após quase 8 horas depois, ele já estava dormindo mas graças a Deus não aconteceu
o pior né. Então assim, ele conheceu a minha avó, ele foi morar nos terrenos dos pais dela, os
pais dela tinham mais condições, meu bisavô que se chamava Zé de Lima, e lá ele foi trabalhar
ajudar nos serviços da roça e lá ele conheceu minha avó e casaram, ela com a idade de 15 anos
e ele com a idade de 18 anos, e tiveram sete filhos, que foram a mais velha se chama Rosenir,
a segunda é minha mãe Francisca de Sousa Gomes, mais conhecida como Neném, em seguida
vem a Maria Lima, aí tem o Estevão, o Antônio e a Ozita e a caçula que é a minha segunda mãe
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que é a Nonata, que eu tenho ela como se fosse a minha segunda mãe que foi uma das pessoas
que muito ajudou na nossa criação. A tia Maria também ajudou né, mas a tia Nonata é como se
fosse uma mãe mesmo. E [pausa] o tempo foi passando e os filhos da Raimunda Lima, no caso
que é a minha avó, cresceram né, e a minha mãe conheceu o meu pai com a idade de 12 anos
né, e o meu pai tinha 16 anos, que ele é mais velho que a minha mãe. E eles namoraram por
mais de 10 anos, e casaram e tiveram sete filhos né, e eu sou a segunda filha. Sobre a minha
infância eu tenho muitos fatos a falar né assim, não na casa onde eu nasci, que era muito pobre,
simples, onde aço não existia antes como existe hoje, portas normais né, as portas eram umas
portas feitas de vara, aquelas portas de palito mesmo e não tinha energia, não tinha água, a casa
era toda chorada né. E assim, uma das coisas que a minha família fala para mim que assim
sempre quando eu vou falar sobre a minha vida, sobre a minha infância, eu lembro muito disso
que foi eles que já contaram, que eu nasci nessa época e não posso lembrar né, que assim, eu
nasci na sexta feira da paixão, quatro horas da manhã né, e naquela época a igreja católica era
muito diferente de hoje né, você tinha que ter mais responsabilidade, as pessoas acreditavam
mais que qualquer coisa que você se alimentasse, no caso a minha mãe mesmo de resguardo
tinha que comer peixe, essas coisas porque tava na época da páscoa né, e as pessoas falam
também que é muito importante as pessoas que nascem nesse período da páscoa né. [4’56’’]
[4’57’’]
E assim, sobre a minha infância né, quando foi com a idade de mais ou menos 3 a 4 anos, nós
começamos a morar na fazenda chamada Esperança, que fica no município de Pentecoste, bem
próximo a sede. La era de um senhor chamado José Gomes, e esse senhor tem um fato que eu
lembro muito, eu era pe [interrompe a fala para contar outra coisa], assim, talvez eu tivesse a
idade já [interrompe novamente] tava com dois anos e meio, quatro e meio, criança lembra
muito das coisas, um dos fatos foi que eu tomei muito banho num canal que existia lá e eu fiquei
doente, fiquei com vi, virose, e acabei gripando e tive que pegar outros dias doente. Depois nós
fomos embora para outro lugar eu se chamava Jardim, próximo ao Mulungu. E lá, eu já sempre
fui uma criança que gostava de cumprir com algumas tarefas, e nós éramos uma família muito
pobre, não tínhamos condições, a minha mãe só tinha aquele fogão chamado fogareiro que era
colocado no chão. E a minha mãe tinha colocado a panela no fogo e eu fui mexer nas louças
dizendo que ia lavar e acabei sofrendo um acidente, com queimadura, tive que vir para Fortaleza
e passei muitos meses deitada sob uma cama de palha de bananeira, na casa de um parente que
atualmente é meu padrim, o Adalberto. São muitos os fatos que eu tenho de minha infância, os
fatos de menina sapeca, de pessoa danada, que gostava de cumprir as tarefas e ajudar a minha
família. Logo em seguida quando nós saímos da Esperança, nós fomos pra, [corrige-se] pro
Cipó e lá nós vivemos a nossa vida por inteiro praticamente. Lá eu acreditava que ali era como
se fosse um espaço nosso mesmo né, tinham os animais o qual hoje ainda eu tenho muita
saudade né, do gado, das ovelhas, dos cavalos. Lá eu tinha a oportunidade de andar de cavalo,
brincar com os animais, mas eu tinha muita responsabilidade também né, pois nós morávamos
numa fazenda, de um senhor fazendeiro né, chamado Antônio Braga de Azevedo, mais
conhecido como Antônio Carneiro, e lá a casa era muito grande, a casa estava sempre cheia de
colegas, mesmo a gente criança, a gente já tinha a nossa família que sempre estava conosco. Os
finais de semana a gente sempre ia para uma comunidade a qual eu nasci, que era a comunidade
da Boa Vista, que eu passava o final de semana com nossos avós né, que é a Raimunda Lima e
o Francisco Barbosa, que nunca chamávamos de vô, sempre de mãe Raimunda, que era a forma
carinhosa e pai Chiquim né. Aí na segunda feira voltávamos. Houve também quando eu era
criança um fato também sobre um inverno pesado que houve assim, que as pessoas ficavam
fazendo medo a gente, que os açudes iam arrombar, e nós morávamos no Cipó e lá ficava bem
próximos os açudes né e quase todas as vezes quando ficava bonito para chover, nós tínhamos
que se deslocar da nossa comunidade para ir para outros lugares pedir abrigos, por causa das
chuvas né. E lá nos finais de semana, vinham sempre os filhos do senhor da fazenda que nós
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tinha umas boa convivência com eles, mesmo nós sendo de classe pobre e eles ricos, mas nós
tínhamos nossas amizades, nós tinha nossos compromissos, nossas responsabilidades. Lá
próximo do Cipó, quando nós ficamos lá, minha mãe trabalhava três ixpidientes, e ela continuou
indo para Boa Vista e eu ia estudar junto com ela, nós íamos em um burro, que chamava-se
Batalhão, eu lembro muito porque que o nome dele era Batalhão, porque nele cabia além da
minha mãe, com mais 5 filhos em cima dele a gente conseguia andar nesse animal, ele tinha
características bem forte e a cor dele era branco, e ele era um animal manso. E assim ele servia
como transporte para a gente né, como hoje que você tem seu transporte né, naquele tempo as
coisas eram difíceis e eram diferentes, e também a minha mãe tinha que trabalhar três
ixpidientes, porque ela rpecisava ajudar na educação dos filhos e nas condições financeira, que
era difícil como até hoje algumas pessoas passam, porque as coisas não se tornaram tão fácil
assim. E, após eu sair da [interrompe a fala e muda o que ia dizer], meus primeiros anos de vida
foram na escola Paulo Ferreira, na comunidade da Boa Vista, com a minha mãe, Francisca de
Sousa Gomes, mais conhecida como neném, lá eu estudei mais ou menos durante um ano, aí
depois eu fui conhecendo outros professores né, como no caso da escola que eu passei muitos
anos lá né, mas logo os primeiros ano foi nas cacimba, com a professora Maria Dismar de
Almeida Costa, que até hoje ela ainda está na ativa, continua prestando serviço pro estado, e lá
eu estudei durante alguns tempos, de Pentecoste passava pela administração da prefeita
Margarida Gomes de Araújo, e lá nesse tempo, além da escola regular que tinha, que tinha lá
uma escolinha que não era bem um prédio, que funcionava na casa da professora, existia
também uma creche, existia lá também posto de saúde né, onde as famílias eram cadastradas, e
pagavam uma quantia pela uma associação e tinha direitos a medicamentos e remédios,
funcionava pela associação, a qual além da professora Erismar ser professora ela também era
presidente da associação e trabalhava também no posto de saúde junto com a minha tia, no
NADA que foi, foram as duas primeiras pessoas da comunidade vizinha trabalhar na área da
saúde. [11’07’’]
[11’08’’]
Com o passar do tempo, eu passei esse tempo estudando lá, surgiu a escola no Cipó, que foi
feita pelo prefeito João Gomes [pausa] João Gomes, sendo que não é o João Gomes filho, é o
João Gomes pai, o João Gomes velho né, que foram construídos no terreno do Arão de Andrade
né, uma escolinha onde só tinha uma sala de aula e lá funcionava manhã e tarde. Após construir
essa escola foi pedido a transferência da minha mãe, lá do Paulo Ferreira pro Cipó, então já que
construíram a escola no Cipó, ficou mais próximo de eu voltar a estudar com a minha família
né. Eu estudei com a minha mãe durante alguns tempos né, estudei também com a filha do seu
Arão que passou algum tempo na ativa né, que é a Ioneide de Andrade. Lembro também dos
fatos de algumas análises que eu fiz com os meus professores que eu não posso deixar de narrar
os fatos né, é que assim, naquela época, existia uma parte chamada de vocabulário e a Ioneide
pediu que eu estudar para que ela fizesse as perguntas e eu sempre fui muito teimosa e achava
que era dona da situação, e eu não estudei, não participei da atividade que era como se hoje
fosse uma dinâmica e não respondi, aí ela disse pra minha outra colega que se chama Cirleane,
que nós não íamos para casa cedo, nós íamos ficar até depois de 5:30, então assim ela ficou em
uma porta, e como o colégio tinha duas portas, ela ficou em uma porta e fechou a outra, e nós
conseguimos sair, e ainda saímos chamando nomes desagradáveis uns com os outros colegas,
os outros colegas tinham feito as atividades direito e a gente não tinha feito, achemos ruim
porque eles tinham feito o dever né, que a gente não tinha feito, e hoje eu vejo assim, que quanto
é difícil você estar na ativa, você ser professor né, naquela época as pessoas respeitavam mais
e mesmo assim eu fiz isso né, imagine hoje você na ativa, do jeito que as escolas tá mudada, a
educação tá mudada, até por falta de educação dos próprios pais com os filhos né. E são tantos
os fatos de minha infância e tem outros também que eu não posso esquecer, é assim, eu
participava das atividades da igreja com a dona Sinhá, era uma tia do Arão, mais velha, ela me
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ensinou muitos bons modos. Tem uma parte que ela ensinou que até hoje eu lembro muito, que
é assim, Deus deu essa oportunidade a mim, que ela falava muito sobre a mulher sábia né, e
assim, eu consegui graças a Deus ser essa mulher sábia, e assim, isso também eu devo a ela,
que era uma mulher de idade, levava a gente para a escolinha e ensinava bons modos. E algumas
atividades e algumas coisas sapecas que eu fazia em minha vida, assim, meu pai muitas vezes
passou a mão em minha cabeça, mas aminha mãe não, ela sempre cobrou, deu carinho, deu
respeito, mas disciplinou quando foi necessário. E assim, eu devo isso tudo a eles né, porque
sem eles eu não estaria aqui, não seria a pessoa que eu sou hoje né, graças a Deus. E também
assim, agora eu vou falar um pouquinho dos meus irmãos né, que assim, estão presentes na
minha vida né, e as coisas foram assim, graças a Deus para mim a família é tudo, assim, família
é o sustento né, é uma árvore edificada né, é um muro. [14’52’’]
[14’53’’]
E assim, a minha irmã mais velha, que é a Silvia né, ela é especial, mas ela assim, não teve
muita oportunidade de aprender, ela conhece algumas coisas, tudo o que você fala, ela sabe né.
Ela assim, ela me ajuda, me ajudou desde o tempo de criança até os dias atuais hoje né, que ela
participa das atividades comigo, vai para a igreja comigo, fica na minha casa comigo, fica na
casa da minha mãe, mesmo ela tendo alguma deficiência, mas ela sempre esteve presente em
nossas vidas. E o segundo né, é o Beto, que tá presente comigo em todos os momentos, desde
a formação do PRECE até os dias de hoje né. O Beto também tem uns fatos né, que ele muitas
vezes teve que ser disciplinado, porque assim, tinham umas brincadeiras que a gente fazia, eu,
o Beto e o Felix, que era os mais ativos né, nós tínhamos muitas brincadeiras, como de pega-
pega, de jogo de bila, de pedra e de amarelinha. E assim, eu sempre conseguia ganhar deles né,
lá em casa se alguém ganhasse alguma coisa do outro, se chorasse tinha pea né. E assim, eu
lembro de duas vezes que o nosso pai colocou a gente de joelhos e deu umas lapadas na gente,
mas ele tinha tanta pena de bater na gente que ele batia com a chinela. Ele fazia mais zuada
[interrompe a fala para mudar a frase], a dor da zuada era maior que a dor da chinelada que ele
dava na gente né. E sempre, o meu pai teve muito cuidado com os filhos, e assim, ele passou a
mão na cabeça às vezes com medo de chatear. E assim, isso em alguns momentos, talvez
naquele momento que eu era criança eu achava isso muito bom né. Hoje não, hoje eu quero que
cada vez mais eu, como você mãe ou pai, tem que cobrar mesmo dos filhos, não passar a mão
na cabeça com medo de chatear né. Mas graças a Deus, nossos irmãos, nossa família, não deram
trabalho uns pros outros. E também tem o Felix né, que é um menino que não está mais no
nosso meio, que o destino permitiu que ele fosse pro céu, não está mais aqui no nosso meio,
assim, ele ajudava meu pai nas atividades né, do gado, pegava o gado, gostava de jogar bola,
participava das festas né. E assim, teve um fato que aconteceu em minha vida que eu lembro
muito assim, lembro de tudo quando aconteceu. Nós [gagueja e reinicia a frase de outra forma],
como eu estava falando né, nós fazíamos parte das escolas das cacimbas, na Manuel Sales, com
a professora Maria Irismar, e todas as datas comemorativas, ela era muito organizada, ela
organizava diversas atividades, então ela organizou o dia das mães e quando chegou lá, eu fui
com as crianças porque eu levava meus irmãos né, os mais novos, no caso o Beto, O Félix e a
Silvia, não tenho lembranças se a Carmem foi, mas nós 4 eu lembro muito. E quando chegou
lá, tinha um senhor que chama Chico Carlos e existia os filhos da dona Celeste, né, é d eoutra
comunidade também do Cipó, vizinho, e tinha o Félix e o Beto. E eram mais ou menos umas
seis crianças, o filho da dona Celeste irmão do Eudes Costa, o Carlinhos e o Mardoni e outros,
e os filhos do seu Edimar. E lá essas crianças começaram participar de queda de corpo e quem
ganhasse o senhor Chico Carlos daria um pacote de bolacha e uma rapadura, e o Félix, mais
forte, sempre conseguia derrubar uns os outros. Aí a mãe de um, do Erialdi chegou a ver isso
né, então ela foi lá, pegou o Cipó e bateu no meu irmão, mas eu logo fui lá e fiz a mesma coisa
com ela, porque assim, é por isso que eu digo que família é a base de tudo, porque assim, mexeu
com a minha família, mexeu comigo né, e principalmente assim, você criança, naquele tempo
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não existia muito essa fase de adolescência como hoje você passa por etapa né. E naquela hora
eu fui lá e disse para ela, se você realmente vai bater no meu irmão, eu vou bater em você, mas
hoje eu como educadora, eu como professora, eu como defensora do programa do PRECE, faço
tudo, tenho que dar exemplo, eu sentaria para conversar, mas quando você é criança, você não
pensa assim. E após eu sair dessas escolas, foram momentos de estudo, eu passei por muitas
dificuldades nos meus estudos. Eu estudei também com outra professora, que se chamava
Glaucineide, que era uma das filhas do seu Arão que passou bem pouquim dias, que foi questão
de dias que ela substituiu lá, às vezes a Claudia, passei por várias experiências em sala de aula
com os professores né. [19’54’’]
[19’55’’]
Assim também tem meus outros três irmãos né, dois praticamente foi eu que criei né, no caso a
Lucinha, que hoje moram aqui em Fortaleza também tá na ativa, trabalhando como professora,
e o João Filho. Assim, foram duas crianças que éramos como se fosse meus filhos, quando eu
ia sair de casa eles choravam para eu não sair, e eu tinha que cuidar deles como se fosse mãe,
porque assim, como eu já falei né, a minha mãe trabalhava três horários, e assim eu tinha que
ter responsabilidade de cuidar das crianças, fazer as atividades da casa na qual a casa grande
que eu morava, que parecia com a história da senzala que era a casa grande que eu morava,
onde tinha diversas responsabilidades, você tinha que limpar e cuidar né, mas mesmo assim eu
tinha que dar conta daquelas duas crianças, que a Lúcia assim, até hoje eu digo assim, é como
se fosse a minha filha. E assim, o João Filho foi uma criança que passou por uns problemas de
saúde, que não foi muito boa, e assim, todas as vezes que ele ia sentir uma crise, que ele dava
aqueles ataques que eram problema de saúde, ele gritava sempre o meu nome: “Raquelzinha
não deixa que eu morra”, e assim eu tinha ele, tenho né, meu irmão mais novo como se fosse
o meu filho né, ele nunca gostou de estudar muito, nunca chegou a terminar o ensino [pausa
curta] médio né, ele não gostava de estudar. E assim, devido esses problemas de saúde minha
mãe não pode cobrar tanto quando ela cobrou dos outros né, porque ele não gostava de estudar.
E ele está bem, ta com sua vida mais ou menos, é casado, tem um lar né, mas quem é que não
deseja que todo mundo possa cursar o ensino superior né, ter a sua vida estabilizada e possa
voltar para ajuda as suas comunidades, porque não adianta você só estudar e estar bem, e
esquecer que lá atrás você deixou uma comunidade que tanto acreditou em você. [22’06’’]
[22’07’’]
Aí também tem a Maria do Carmem, né, que é conhecida como Carmem, que é professora de
educação física na escola da Eteuvina Gomes Bezerra e na escola Tabelião, lá no município de
Pentecoste. E a Carmem, uma menina calma e serena né, tem fatos que nós precisamos ser
disciplinadas, pois como morava na casa grande né, tinha a safra de algodão, e lá as pessoas
trabalhavam na fazenda e sacavam aqueles sacos de algodão e ficavam todos lotados, nós
abríamos espaço entre eles, lá no alpendre, para se esconder e ficava brincando, quando nós
estávamos brincando de repente apareceu uma vaca e eu e a Carmem barruamos uma na outra,
e aconteceu um acidente, ela levou um corte no olho, passou um monte de tempo doente né. E
quando tudo isso acontecia, sempre quem era culpada era eu, porque era a mais, era como se
fosse a mais velha, porque a Silvia é especial e não tinha o tanto da responsabilidade né, as
cobranças vinham para mim, à disciplina maior sempre era cobrada por mim, né. Também tem
a Edna né, que a minha mãe mais meu pai uma vez foram fazer uma visita na casa de uma
senhora, na comunidade de Cacimba, essa senhora estava doente com câncer e quando chegou
lá, meu pai viu o pai dela batendo muito nela, né, sem ter carinho e sem ter respeito ele
perguntou se ele daria aquela criança para morar com a gente, e ela já tinha sete anos. Eles
deram. Ela morou coma gente durante nove anos. Aos dezoito anos ela encontrou uma pessoa,
vive com ele, tem um filho e também não quis muito estudar, nem terminou o ensino médio,
mas assim ela... nunca é tarde para você recomeçar né. Eu acredito que eu vou ver todas essas
pessoas da minha família, mesmo que não seja formada, eu vou ver estabilizada e podendo
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mostrar um dia que todo mundo vai vencer no tempo certo, porque o tempo de Deus é diferente
do nosso tempo né. E hoje eu ouvi uma frase, que eu acho que essa frase vai ser para o resto da
minha vida, porque assim, onde a frase aparecia, dia que “a sua casa vai se encher de estrelas”,
e as estrelas que a qual eu acho que precisam preencher a minha casa é estrelas mandadas por
Deus, estrelas de educação, estrelas de políticas públicas, estrelas de dias melhores, não só para
a minha casa, mas para a comunidade do Cipó e o município de Pentecoste, as pessoas que
formam a família Prece em si né, porque assim, falar de educação você não pode deixar de botar
a instituição PRECE em si em primeiro lugar, pra que essas estrelas possam brilhar pra nós que
fazemos parte dessa instituição possamos estar servindo de exemplo para essas pessoas, né.
[25’19’’]
[25’21’’]
Então chegamos ao momento de começar, iniciar o meu estudo no fundamental, né, que foi na
mesma escola, na Manoel de Oliveira Sales, com a professora Maria Irismar. Nessa época a
gente trabalhava com o sistema de TVE, algumas pessoas conhecem esse tipo de sistema, onde
o professor passa a explicação na TV e depois a gente se reúne em grupo para debater o assunto
e foram quatro anos, quatro anos de muitas lutas, de muitas dificuldades, como as pessoas
sabem né, que na escola regular você tem muitas dificuldades de leitura, de escrita, de
interpretação de texto, até porque era uma só professora para trabalhar todas as disciplinas do
português, inglês, matemática, geografia, biologia, educação física, artes e outras disciplinas
que apareciam naquele momento né, e só era aquela professora para dar conta desse tanto de
disciplina. E quando eu terminei o ensino médio, eu tinha muita dificuldade né, mas assim, eu
procurei tentar melhorar né, então foi, então quando certa noite, nós estávamos na minha casa
né, já participava de [ela muda de frase] surgiu umas reunião lá no Cipó, na antiga casa de
farinha né, aí uma certa noite, nós estávamos na minha casa né, com meus irmãos, tava nos
preparando para a festa do oitavo ano, que naquele tempo se chamava oitava série, que hoje
chama oitavo ano, lá na escola das Cacimbas, e eu fiquei conversando com o Beto, que é o meu
irmão né, e o Nacélio e o Du, e perguntando o que é que nós iríamos fazer agora que estávamos
terminando a oitava série, como é que ia ser a minha vida né. Mas assim, naquele momento eu
tinha uns planos né, pois eu morava na casa do prefeito na fazenda, e eu tinha certeza que se eu
terminasse a oitava série e conseguisse fazer o segundo grau, eu tinha todos os empregos
garantido, pensava eu que aquele sonho se tornava realidade né, tinha os empregos garantido
porque eu morava na casa do prefeito, e aparentemente era como se ele dissesse assim: “Faz e
vai acontecer né”. [27’41’’]
[27’42’’]
E eu terminando a oitava série com professora Maria Irismar, fizemos aquelas festas, aquelas
coisas que acontecem no interior né, e ficamos né, parada, pensando, isso foi em dezembro.
Quando chegava janeiro, você tinha que pensar né. Lembrando que era no ano de oitenta e oito
a oitenta e nove, por aí, era oitenta e nove. Quando terminamos essa festa né, ficamos pensando.
Aí apareceu a casa de farinha, que já estávamos lá, aí a casa de farinha não era muito funcionada
como casa de farinha né, mas existiu algumas farinhadas lá, algumas farinhadas foram feitas
pelas pessoas da comunidade da Capivara e o Cipó chegaram a fazer farinhada lá. E aquele
espaço estava lá né, acontecia também na quadra que tinha lá, jogos com as crianças, mesmo
sem saber que aquele espaço seria um dia unicamente voltado para estudos né. E o Beto
participava de jogo com os meninos, com o Du, com o Narcélio e os meninos da Camarina
também. Uma certa vez, ele se reuniu com o professor Manoel Andrade e nessas reunião por aí
eu acho que, com certeza, eles falaram sobre estudo, porque quando eles chegaram para mim,
eles já estavam com o esquema montado, pra dizer se daria certo né. E foi então que o Andrade
chamou a minha mãe, o meu pai, os pais do Nacélio, e o Du, para conversar um dia lá na casa
do seu Arão, domingo à noite, na cozinha, lembro muito como se fosse hoje, para falar sobre
uma possibilidade de formar um grupo de estudo. Mas, eu pensei, “formar esse grupo de estudos
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como?”, se nem de nada a gente sabia, não sabia fazer praticamente nada, eu tinha apenas aquele
pedaço do papel na mão que seria o certificado. Mas naquele momento eu não pensava, eu não
pensei realmente em ficar ali, porque eu sabia que ia ter como eu ir para Pentecoste e estudar
lá, mas no momento eu fiquei pensando, aí quando foi um dia a minha mãe se preparou para
fazer a matrícula, né? Lá em Pentecoste, e eu não tive coragem de deixar ela fazer a minha
matrícula, então ela fez só a matrícula do meu irmão, né? Do Beto, e ele chegou a ir. [30’11’’]
[30’12’’]
Existia duas escolas lá, uma era João XXIII, que era particular, e era outra era Tabelião. Ele
chegou a ir né, mas por lá ele passou algumas dificuldades, né? Porque nós éramos família
pobre, ele usava havaianas para ir para a escola e os alunos começaram a fazer mangofa ((sic))
dele e essas coisas. E daí então foi que eu realmente percebi que nós realmente tínhamos que
acreditar em um grupo de estudos. O Andrade chamou outras vezes para conversar e
acreditamos naquela conversa. Nesse momento eu ainda não tinha idade para começar o ensino
médio, né? Porque aqui em Fortaleza nós precisávamos vir para fazer o supletivo, mas nós
precisávamos completar a idade de dezoito anos, não é como hoje que você pode começar a
fazer e receber o certificado quando tiver dezoito anos. [31’04’’]
[31’05’’]
Então se juntamos né? Toinho foi/era uma das pessoas que já estava na ativa como professor.
Ele tinha feito aquele programa chamado Logus Dois. Então foi ele uma das pessoas que
contribuiu assim, porque ele era mais desenrolado como fala popularmente as pessoas, né? Ele
já era professor, ele não tinha tantas dificuldades como nós. Nós tínhamos tantas dificuldades,
a gente dificuldade até em conversar um com o outro, dizer como é que ia funcionar, se daria
certo. Então fomos/ficamos na casa de farinha, eu, o Du, o Orismar e o Toinho. Aí após chegou
o Noberto e o Francisco, foi um grupo, né? Assim, eu seria uma pessoa muito protegida, né? E
também, ao mesmo tempo apontada pelos outros, né? Porque eu seria a única mulher no meio
daqueles tantos homens. Mas ao mesmo tempo eu estava protegida, pois eu estava ao lado do
meu irmão e a casa do seu Arão era próxima, e a minha família ficava bem perto. [32’10’’]
[32’11’’]
Lembrando né, que eu quero fazer uma correção que não foi no caso no/no/ no noventa e nove,
mas sim no ((mil novecentos e)) noventa e três que nós terminamos o ensino fundamental, no
caso eu, o Eudimar, conhecido como Du, Nacélio e o Beto, porque nós éramos os quatro alunos
que vinham da escola das Cacimbas, da Escola Manuel Sales, e fomos as pessoas que foram
participar do PRECE. Mas no primeiro momento o Nacélio não foi participar com a gente né,
só depois de um tempo. Quem foi foi o Du e os demais colegas que já foram citados, né? E lá
no Cipó eu lembro que uma das nossas primeiras reuniões de estudo, o Andrade levou uma das
colegas com ele, que era a Kátia, e:: onde ela foi para fazer enfermagem, e levou também uns
materiais de biologia. E lá ele botava a gente para estudar na semana e quando chegasse o final
de semana, nós tínhamos que falar alguma coisa daquele livro para ele, e assim eu
particularmente tenho medo até de falar, né? Porque assim, nós não sabíamos muitas vezes nem
pronunciar as palavras que estavam dentro do conteúdo do livro. O Toinho era que nos ajudava,
né? E antes da formação desses sete grupos/sete pessoas num grupo lá em Cipó, que fomos
sete, existiu também o curso de datilografia que foi passado pelo Toinho, vinha gente da
Serrinha, da Canafistla, do Riacho do Meio, da Capivara, e um curso de português também, né?
Que eu participei junto com as minhas irmãs e minhas primas, até hoje eu ainda tenho meu
certificado guardado lá em casa. Lembrando que nós estamos numa era moderna, numa era
digital, né? Mas eu ainda tenho meu certificado de datilografia guardado como lembrança
daquelas dificuldades que nós passamos. E naquele tempo não era todo mundo que tinha a
oportunidade de fazer o curso de datilografia. Algumas pessoas tinham que ir lá para Pentecoste
pagar bem caro e lá não, esse curso acontecia sem nenhum pagamento, cada pessoa participava
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de duas aulas durante a semana e existia um tempo x para você realizar as suas atividades.
[34’29’’]
[34’31’’]
E existiam também naquele momento, lá também, uma creche, naquele momento as creches da
formação com o PRECE, existiam também umas creches que funcionavam na Camarina, na
Capivara, chegou funcionar até em outras comunidades mais distantes, que era a do Mulungu.
Eu sei que quando o tempo foi passando e nós fomos estudando em grupo, foram muitas lutas
e - muitas vezes eu pensei em desistir e deixar tudo para lá, né? Mas assim, quando eu via que
só acreditando no sonho e lutando que eu ia conseguir superar todas as lutas, todas as
dificuldades foi que continuei né? E naquele grupo às vezes, eu era uma das pessoas mais assim,
relaxada com meus estudos porque eu era uma pessoa que gostava muito de limpeza, que não
gostava de estar no meio de qualquer coisa desorganizada. Sempre quando eu chegava à tarde
para estudar, os meninos: Orismar, o Du, o Francisco. O mais organizado era o Toinho, eles
sempre tinham deixado alguma coisa desorganizada, né? E eu não chegava lá e ia pegar logo
meu livro não, eu ia fazer alguma limpeza, varrer, cuidar. Eu me preocupava muito com os
meninos, com as roupas deles, com as coisas deles, porque assim, eu queria ver eles - não só
apenas formados, mas eu queria ver eles cuidados e zelados, por eu sabia que os pais deles não
estavam ali. Nós morávamos na casa grande né? E lá nós fazíamos um queijo, uns cinco quilos,
sempre procurava tirar, como as pessoas chamam, beirada de queijo, levava rapadura, farinha,
as coisas para mim e não só para eles, pra eu comer e eles também. Porque assim, eu tinha pena
deles, quantas vezes eu já cheguei lá e via eles comendo farinha com açúcar. E as redes deles,
sem condições, eu levava para lavar as roupas, cuidava, lavava, engomava, porque assim, para
mim eles eram, ainda são até hoje como se fossem meus irmãos. Porque assim né, convidava
sempre os meninos para almoçar lá em casa, jantar, e assim sempre, às vezes a gente deixava
para ir para casa a noite que já era para ter um pretexto para levar eles pra jantar lá em casa,
porque eu tinha pena de deixar eles com fome, sem condições. Lá existia apenas um fogão e
não tinha carvão, não tinha gás, porque nem eles tinham condições e nem os pais deles, eles
podiam ir lá na casa deles e ta trazendo, que mais fazia isso e que fazia, e eles deixavam para ir
a noite para o pessoal da comunidade não ver eles passando com as bicicletas e ainda diziam
assim pras pessoas da comunidade, além de viverem, porque algumas pessoas da comunidade
chamava a gente de os desocupados, os vagabundos, que iam virar gays, que ia acontecer isso,
que ia acontecer aquilo. Mas assim, a gente nunca levou isso em conta porque eles eram pessoas
menos esclarecidas, não conheciam uma educação de qualidade, não eram voltados para as
políticas públicas e a gente sabia que as pessoas da comunidade falavam sem nenhum sentido.
Ruim mesmo era quando você via algum educador, algum professor, que realmente sabia o que
era a educação e eles em vês de nos ajudar, eles apontavam e saíram fazendo comentários sobre
a gente, porque assim, eles tinham uns medos da perda dos alunos deles, a instituição ((PRECE))
foi crescendo, o número de pessoas foram aumentando, e eles foram tendo medo que iam perder
o espaço deles na educação, mas eles não poderiam pensar assim, eles tinham é que se juntar a
gente para creditar que dias melhores viriam pela educação. E quando a primeira pessoa passou
no vestibular que foi o Antônio Rodrigues né? O Toinho, conhecido como Toinho, começou a
modificar aquela comunidade, a comunidade começou a acreditar né? Nós existíamos lá, que
nós que fazíamos parte do PRECE, fazemos, a maioria das pessoas, elas fazem parte do PRECE,
mas elas também fazem parte de uma instituição da igreja né? E nós nos reunia, nas quintas
feiras nas orações, aos domingos, aos sábados, para orar por esse grupo e até hoje esse grupo
ainda é sustentado a base de oração, porque quando você crê que existe um deus, você tem que
entregar as coisas nas mãos de Deus, né? [39’06’’]
[39’07’’]
E assim, a primeira vitória do primeiro aluno do PRECE, no caso o Toinho, foi uma benção de
Deus, porque no momento que acontecia o vestibular, mesmo vendo só aquele rapaz que veio
416
lá pra casa do Andrade, somente ele, a nossa igreja ficou reunida no domingo pela manhã,
porque naquele tempo os vestibular só aconteciam no domingo pela manhã. Todo mundo ficou
orando e pedindo vitória para ele. E assim, as coisas foram melhorando, Toinho veio embora
para cá, e teve uma ótima colocação no vestibular e nós ficamos lá, nós seis, foram aparecendo
pessoas como Nacélio, o Chagas passou um tempo morando na casa de farinha, o Genival, e
foi chegando pessoas novas. Mas assim, nós ajudávamos financeiramente, assim, não em
termos de dinheiro, mas em alimentação, a minha família, a família do Seu Arão, sempre o que
estava disponível ajudava, em dormida, em rede, em qualquer que seja a coisa, porque assim, a
minha mãe já tinha o emprego dela já mais ou menos fixo, Seu Arão tinha a família que estava
em nível mais ou menos, e só existia aquelas duas famílias que mais apoiavam. E assim, existia
duas famílias que nos apoiava né. Algumas pessoas poderiam dizer assim: também se a tua
família não apoiasse, quem apoiaria né. Mas era a minha mãe e a família do Seu Arão. Essas
duas famílias não mediam esforços para apoiar, era com os animais que utilizava, era com as
bicicletas que eram o transporte que tinha naquele momento, era com aquele cuscuz com leite
e algumas pessoas, às vezes, dizia que só comia isso. Isso fortaleceu e deu certo. Hoje né, todos
praticamente já venceram, já estão estabilizados. E assim, é por isso que eu digo assim, que
você não deve deixar de lembrar das coisas boas e das dificuldades que você passou né, porque
assim, as vitórias são muito mais saborosa quando é com luta né? E também tem um fato que
eu não posso deixar de narrar que foi acontecido na nossa época de estudo, certa vez eu fui para
Capivara com minha prima chamada Fátima, mais conhecida como Preta, quando seu Orismar
mais o Nacélio, organizaram lá uma brincadeira meia chata com a gente, utilizando cordão e
bomba, na hora que a gente abrisse a porta a bomba explodia né? E assim, foram muito medo,
muitos nomes feios que a gente chamou com eles, eu mais a Fátima, mas nós não podia fazer
nada não. Nós tentamos destelhar as telhas, jogamos pedras neles, para que eles aparecessem.
E o pior é que eles não apareciam, ficavam escondidos e a gente pedindo socorro e as bombas
explodindo, eles amarraram diversas bombas nesse cordão. [42’06’’]
[42’08’’]
E também o apoio que o Andrade nos deu né? Porque assim, ele tinha a sua família né? Tinha
a sua filha pequena. Ele e a Ana não mediam esforços para nos ajudar, e nós vínhamos, utilizava
as camas que tinha na casa, comia a comida, usava o espaço no carro. Tudo, ele foi a base de
tudo. Porque assim, nunca mostrou cara feia, se gostava do que nós fazia ou não, a cara era a
mesma. Ele nos ajudava com conselho, com oração, com leitura, com escrita, com tudo. Muitas
vezes ele chegou quando tinha algumas férias, uns feriados, eu, Francisco e o Norberto, que era
os que fazia supletivo aqui passávamos de semanas tomando conta do apartamento, ocupando
aquele espaço e comendo o que tinha na casa dele, o que tivesse lá era como se fosse nós,
mesmo sem nós ajudar. E assim, muitas vezes para nós vir aqui para Fortaleza, no caso deu
mais meu irmão, quando os pagamentos da prefeitura chegou um período que era na época que
o João Paraíba Filho estava na ativa. Ele chegou atrasado diversas vezes, o pagamento, e a
minha mãe não podia pagar nossas passagens, ela tirava galinha do terrero dela e vendia para a
gente vir e pagar nossas passagens. Eu não tenho vergonha de dizer das dificuldades que nós
passamos, de muitas vezes querer merendar e não ter com que, tinha que comer aquilo que seu
dinheiro dava, não é todo dia que/essas histórias, sanduíche, pizzas, essas coisas, isso não existia,
porque nós não tínhamos com que, mas assim, eu sou muito feliz porque o que tinha na nossa
casa não era só da minha família, era da minha família, do PRECE, como até hoje. A nossa casa,
a minha casa, a casa da minha mãe, a casa da minha família é aberta para as pessoas que fazem
parte do PRECE e de outras instituições também que precisarem de pessoas. Porque assim, eu
tenho que mostrar diferença, eu sonho com educação de qualidade pra Petencoste, eu sonho
com dias melhores, eu sonho com políticas públicas, onde os educadores podem expressar sua
opinião, o que deve mudar dentro da sala de aula, o que deve mudar na saúde, porque a
constituição ta lá, feita e organizada, bonitinha. O estatuto da criança ta lá, mas funciona? Não!
417
Então assim, você que faz parte da educação, você tem que mostrar diferença, tem que ter
coragem de arregaçar as mangas e lutar pela educação de Pentecoste, de Apunhares, de General
Sampaio, que é onde o PRECE está se expandindo, crescendo cada vez mais, né? [44’46’’]
[44’47’’]
E o meu ensino médio, eu fazia no Centro, né? Aqui em Fortaleza, vinha para a casa do Andrade
como eu já destaquei, vinha eu, Francisco e Norberto, né? E fazíamos prova. Então surgiu a
ideia lá em Pentecoste de fazer o curso lá mesmo, então lá eu iniciei e passei alguns meses
fazendo lá. Com o passar do tempo apareceu a ideia da EJA vir direto da Itapipoca até o Cipó,
então de quinze em quinze dias vinha dois representantes da EJA passar prova no Cipó. Aí nesse
tempo não ficou mais só os três alunos, chegou ao momento de ter dezoito, vinte alunos, que
faziam prova em quinze e quinze dias. E naquele tempo não era como hoje, naquele tempo a
média era oito. [45’34’’]
[59’21’’]
E assim, que bom seria se nós estivéssemos em cada área, por exemplo, eu que sou de história
estivesse só com a história, alguém de geografia estivesse só com geografia, isso seria um dos
primeiros passos para que começassem melhorar o nível de educação. O professor da educação
infantil tem que ser especializado naquela área, você ser especializado na sua área e trabalhar
com o que você faz, né? O PRECE teve uma contribuição que eu não tenho palavras para
descrever o que ele mudou na minha vida, né? Porque com o conhecimento que o PRECE
repassou, com as lutas, dificuldades divididas entre eu e meus sete colega e os demais que hoje
são milhões, né? Que a gente pode contar que são muitos e muitos alunos né. Foram - tudo que
a gente aprendeu foi dividido junto, e ele me ensinou muitas coisas, dividir o bom, dividir o
ruim, aprender a esperar, que há momento para tudo na vida, se antes o que era sonho, ele me
fez ensinar que vai se tornar realidade, hoje quando eu vejo aquela que era a antiga casa de
farinha, está naquela casa, daquela forma, e vai se transformar num museu, quando eu vejo
aquele auditório todo pronto daquele jeito, eu não acreditava só via plantas ali, né? E o PRECE
me ensinou que a minha comunidade vai ser diferente. Hoje não/ta tudo diferente? Não está.
Mas levo tempo? Leva. Mas vai conseguir. Aquelas escolas não estão como eu quero, mas ele
me ensinou que vai dar certo, não é hoje, não é amanhã. Leva dez anos? Leva. Leva vinte? Leva,
mas vai mudar. Hoje após o PRECE eu sei assim, que eu posso falar, mas eu tenho que aprender
a falar na hora - certa e ter cuidado quando se fala, porque assim, às vezes nós somos apontadas
por muitas vezes, né? Muitas lutas, e nós que fazemos parte do PRECE temos que ter cautela
com as coisas, porque nós somos muito observados, muito visto, e ele me ensinou tudo isso, né?
E o que ele mudou na minha vida? Eu ainda sou explosiva, mas eu aprendi a esperar, que todos
vão vencer na hora certa, ele vai me dar tudo certo na hora certa, ele vai me dar tudo certo na
hora certa. Quem é esse alguém que vai dar a gente? É Deus. Porque assim, tem uma coisa que
nós precisamos colocar na nossa cabeça, que Deus nos dá tudo na hora certa. E assim, sem o
PRECE, já imaginou? Como é que aqueles alunos, como é que eu, Beto, a Lúcia, os meus
irmãos teriam nível superior, quando é que a minha mãe teria dinheiro para pagar esse curso
para todo mundo? E lembrando também que através do PRECE, a minha mãe conseguiu fazer
um curso pela UECE, e tem curso superior e tem pós ainda, né? E a minha mãe também ainda
está na ativa, a minha mãe ama a profissão dela. E assim, o PRECE contribuiu para a vida da
minha mãe? Contribuiu. Contribuiu na minha vida? Contribuiu. Todo mundo na minha casa faz
parte do PRECE, mesmo aqueles que não estudaram, mesmo aqueles que não cursaram nível
superior, e ele fez eu aprender isso, que mesmo aquele que não está cursando nível superior,
como o meu esposo, a minha cunhada, o meu irmão, eles fazem parte da família PRECE em si,
porque eles vêem a importância da instituição, eles contribuem de uma forma ou de outra para
que aconteça, eles ajudam quando precisa em qualquer que seja a situação, pro programa
acontecer em si. [63’21’’]
[63’22’’]
418
Porque assim, fazer parte do PRECE, e acreditar - e aceitar que ele ensina as pessoas, é confiar
que existe alguém lhe ajudando, mesmo distante. Porque assim, são tantas pessoas contribuindo
para a formação do PRECE, estão por detrás da gente e a gente nem percebe essas pessoas.
Então essas pessoas eu devo meu muito obrigado, porque assim, meu muito obrigado assim, o
Andrade eu não tenho palavras para agradecer ele, né? A Ana. São as pessoas que fizeram
acontecer, né? O Adriano Andrade fez a sua parte, mesmo distante, mas ele fez acontecer. Ele
conseguiu trazer a EJA para ali, para Itapipoca, foi ele que conseguiu. Ele conseguiu trazer para
aquela comunidade uma creche que passou alguns tempos. E hoje nós temos, através do PRECE,
no Cipó, uma sala de informática, nós temos a nossa biblioteca, nós temos um espaço lá pra
reuniões, nós temos um espaço que funciona como um:: parte dos estudos da DELL, que
acontece um curso de uma formação durante um ano, que a gente se encontra duas vezes por
mês e é lá nesse espaço para acontecer as nossas atividades, não apenas do PRECE em si, as
atividades voltadas à educação, religiosas, são diversas as coisas. E foi isso que o PRECE nos
ensinou que o que nós temos, nós temos que dividir com os outros. O espaço à educação, o
compromisso, a responsabilidade. Porque assim, se eu quero uma educação de qualidade para
a minha família, eu tenho que querer para todas as pessoas da minha comunidade. E assim, um
dos sonhos que ainda está no papel, na minha, que assim, eu vou lutar junto com o PRECE, isso
vai acontecer, talvez nunca foi falado mas vai ser falado hoje, é assim, ir criar um programa
voltado direto pros adolescentes, onde eu não veja esses adolescentes próximos a bar, a jogo
desagradável, a programa que eu vejo as escolas, bem próximas as escolas, tem um bar e eu
vejo adolescente de quinze, quatorze anos jogando sinuca e eu não suporto isso. E eu me vejo
como educadora de não estar contribuindo com isso, o que eu fico me perguntando: o que eu
devo fazer e como planejar um projeto para que eu tire essas crianças, esses adolescentes daí?
Porque eu considero eles ainda como crianças. Nós temos uma comunidade lá que ( )/ nós temos
uma comunidade que precisa ser trabalhada, Mulungu, Boa Vista, Capivara, e outras mais, Cipó,
então assim, eu não posso me preocupar apenas com o Cipó, eu tenho que me preocupar com
todas as comunidades, porque assim, eu quero uma educação de qualidade. Quando vai
acontecer? Eu não sei, mas eu tenho esperança que vai mudar. Porque assim, se são diversas
pessoas na minha comunidade, na comunidade vizinha, que conseguiram se formar no ensino
superior, terminaram mestrado, terminaram doutorado, porque que eu não vou sonhar que isso
vai acontecer? Já vai fazer dezenove anos, né? Dezenove coisas muitas coisas mudaram. Antes
só era um espaço desocupado dentro do Cipó, hoje nós temos a Boa Vista, onde funciona uma
EPC que você vê que tem bons resultados no ENEM, no vestibular no caso, né? Que já passou
e hoje é no ENEM. Temos a Canafístula que funciona, temos a Providência que passa lá por
suas dificuldades, mas funciona. Temos na Serrota, temos em Umirin, em Pentecoste, na Eva
Moura, no Jardim, na Pedra Branca. Então assim, eu acredito que foi o PRECE que fez e me
ensinou a sonhar que eu vou ver todas as comunidades lutando com um só objetivo, que é mudar
a educação do nosso país. [67’23’’]
[67’24’’]
A casa grande, né? Lá no Cipó, lá na fazenda Cipó, que era do proprietário Antônio Braga de
Azevedo, mas que era mais conhecido como Manta Carneiro, né? Que passou dezesseis anos
como prefeito de Pentecoste, onde esse homem tinha muito poder, mesmo não tendo muita
formação, mas ele tinha muito poder. ((emocionada)) E uma certa vez ele lançou um candidato
a prefeito, e ele ficava mos/pergun/mos/pedindo que as pessoas fossem na nossa casa e
perguntasse quem a minha família estava realmente apoiando, né? E, uma certa vez, as minhas
duas irmãs que faziam faculdade aqui em Fortaleza, e quando os representantes dele chegaram
lá na fazenda e perguntaram para ele se elas iam apoiar o candidato ao qual era o candidato
apoiado por ele, e ele/elas acabaram falando algumas palavras que para ele foram palavras de
sentimento desagradável, e ele começou a juntar aquela falta de estudos públicos, a falta de
políticas públicas porque para ser político você precisa di/estudar o significado daquela palavra,
419
política, porque política quer dizer uma coisa e política lá era outra, e naquele momento
passaram alguns dias com a perda daquele candidato, o senhor Antônio Carneiro chamou o meu
pai e disse para ele que nós tínhamos que sair da fazenda e tinha outra condição de ficar, se meu
pai mandasse eu, minha mãe e minhas irmãs para fora da fazenda, né? Só poderia ficar eles,
meu pai e meus irmãos homens, né? E naquele momento meu pai estava com a cabeça quente,
fazia vinte e três anos que nós estávamos ali, ele chegou, quando eu cheguei do trabalho, ele
chegou e pediu para que nós arrumássemos as coisas que nós vínhamos embora. E nós tínhamos
uma casa que estava apenas começada, onde não tinha piso e não tinha porta, e nem tinha nem
energia. E o meu pai disse que nós íamos embora para ela ((Abaixa a cabeça)). E aquele
momento foi assim, muito doloroso na vida da gente, né? Eu particularmente, acreditava que
tudo aquilo era espaço que era nosso, e quando/ eu disse pro meu pai, que a gente não ia embora,
que a gente ia colocar ele na justiça e ia fazer os cálculos de quanto/ em quanto em dinheiro nós
tínhamos dinheiro, porque estava com vinte e três anos que nós morávamos ali. E meu pai não
aceitou a ideia e nós viemos morar na nossa casa, né? Que atualmente a minha mãe mora nela,
vizinha a minha casa. E assim, foram momentos de sofrimento, onde chegava na hora do almoço
e eu não tinha coragem de comer porque era como se eu “vêsse” aquele espaço, o gado, não
estaria mais ali. Mas assim, hoje eu vejo que tudo foi passado, né? Nada se volta mais atrás,
mas assim, eu não consigo entender como as pessoas se deixam levar por esse tipo de atitude.
Passou alguns dias, isso foi onze de outubro, agora onze de outubro completou sete anos que
nós estamos morando nesta mesma/ ma casa nossa, que hoje é nossa, graças a Deus, que Deus
((O entrevistador pede que ela mencione o ano que ocorreu o fato para situar quem está
assistindo se situar no tempo)) E assim, completou sete anos no ano atual em 2011, que é o ano
que nós estamos, né? E no mesmo ano/ no mesmo mês que nós viemos embora, quando nós
completamos dois meses que estávamos lá, nós tínhamos conseguido deixar a casa mais ou
menos organizada e meu pai teve um começo de AVC, e com esse começo de AVC, o prefeito
que ainda estava na ativa e ia ficar até janeiro, no caso, ele ligou pro meu celular para saber se
realmente era verdade que o meu pai estava sentindo alguma coisa, eu disse que era, mas que
eu não queria conversa com ele e ele procurou a gente, foi na nossa casa, pediu perdão a gente,
pediu desculpa e pediu para que a gente voltasse – tomar conta – da fazenda. E eu disse pro
meu pai, que dali eu só sairia para uma casa que fosse minha e a minha mãe disse a mesma
coisa e nós não saímos, e ele não aceitou, meu pai continuou trabalhando com ele, né? E quando
foi/ naquele momento eu fiquei com muitas mágoas deles, mas graças a Deus eu busco um Deus
vivo e Deus não queria isso para mim. O tempo passou e foi esquecido todas essas coisas velhas,
como diz a bíblia “ficou tudo para trás, tudo se fez novo”, né? Ele começou a andar na nossa
casa, na casa que era da gente mesmo, passava lá, conversava com a gente, mas nós não
voltamos mais para lá. Tenho saudades? Muitas. Não gosto de passar lá, que dá vontade de
chorar, porque foi uma vida que eu praticamente cresci e vivi lá, acreditava que aquele espaço
era como se fosse meu, e você não pode acreditar que o que pertence aos outros um dia pode
ser seu, mas todas àquelas experiências foi apenas para nós crescermos, e o senhor Antônio
Carneiro ele também não acreditava em si, na instituição do PRECE em si, mas ele também
nunca tentou impedir de nós participar, porque ele sabia que nós tínhamos ideia própria,
acreditava que nós tínhamos formação feita já. E a nossa mãe sempre procurou nos mostrar o
que era certo e o que era errado. [73’26’’]
[73’27’’]
E, quando foi em março, o senhor chamou esse homem para junto dele, eu não sei o que
aconteceu com esse homem, mas ele já não está mais entre nós em vida, o Antônio Carneiro.
No início do ano 2000, né? O senhor Antônio Braga morreu, né? E hoje atualmente existe o
gestor municipal, né? Que é João Pessoa Tabosa, que é o gestor municipal. E, tem algumas
coisas – uns lados bons e os ruins da educação, mas ta funcionando. Têm muito a desejar na
saúde, em alguns pontos, né? Todos na educação, mas com o tempo nós vamos conquistando
420
esses espaços e acreditamos que uma das coisas que precisa estar acontecendo em Pentecoste,
que já faz mais de dez anos que não acontece, que é um concurso público, pra que melhore as
condições do funcionário público em geral e não só dá educação e saúde, mas em geral que ta
precisando, né? E assim, se você tem uma educação de qualidade, você vai ter melhor condição
financeira, melhor condição de saúde. Se você tem melhor condição de saúde, você vai ter sua
casa, vai ter outras condições favoráveis para que você comece a cobrar melhor de seus filhos,
porque uma das coisas que mais preocupam os pais de família é a preocupação de não poder
dar para seus filhos uma educação de qualidade, dar uma saúde pública ao seu filho como sonha,
porque como é que você ganha tão risório e vai oferecer isso a sua família? E assim, hoje eu
moro na minha casa, né? Graças a Deus. Tenho o meu trabalho que não é um trabalho fixo, mas
eu sou contratada pelo estado, né? E esse contrato já faz algum tempo que tem sido renovado,
e tenho desenvolvido a minha parte como educadora, faço as minhas atividades no PRECE, e
estou esperando por um concurso público para que eu possa me tornar efetiva na área da
educação, que é a área que eu trabalho e que eu sou formada, né? Sonho mesmo trabalhar com
pesquisa na área de história. Precisa de tempo? Precisa, mas vai levar tempo para acontecer?
Vai, mas nunca é tarde, né? Tivemos o exemplo aí da família do seu José de Alfredo, né? Seu
José de Alfredo se formando, seus filhos formados, é por isso que assim, você tem que se
espelhar, tem que acreditar nessas pessoas, você tem que acreditar que dias melhores virão,
nunca é tarde para recomeçar, e principalmente quando se refere à educação, à saúde, à
condições melhores para a sua comunidade, você tem que ser uma pessoa esperançosa, acreditar
que vai acontecer. E essas coisas acontecem em nossas vidas porque existe essa instituição que
contribui para que essas coisas aconteçam, porque sem o PRECE como você teria idéias
formadas? Como é que você teria se formado? Porque assim, algumas pessoas têm condições
para pagar cursos superiores, isso nós não podemos dizer que não tem, mas outras não têm. E
essas outras que não têm, tem só a inteligência, como poderiam – estar formadas? Estar
contribuindo para a educação? Saindo de sua comunidade, né? Dia de sexta-feira, com curso
universitário, sai àqueles que já são formados às vezes, né? E vão para as suas comunidades
ajudar, e eles poderiam muito bem dizer assim: Não, já estou formado, já fiz minha parte, vou
ficar tendo lazer. Não. O PRECE ensinou a gente que mesmo formados, que mesmo já tendo
feito a sua parte, você tem que ter o compromisso e a responsabilidade de aos sábados, final de
semana, um período de férias, no período que muitas vezes está acontecendo greve, você ta ali,
ajudando aquele adolescente, aquele aluno da escola pública, aquele espaço, ajudando a
conhecer e a melhorar a educação, porque, no caso, né? No dia que vai ser feito o ENEM, né?
Que agora foi substituído o vestibular pelo ENEM. Cada uma das pessoas do PRECE tem o
compromisso de começar a relatar sua história, dizer como foi que conseguiu. Um dia eu
também passei por isso aqui, um dia também eu estava nervosa e deu certo, eu cheguei aqui.
Então assim, são essas experiências que você tem que começar a relatar para as pessoas, para
que as pessoas vejam, se alguém venceu você vai vencer também. [78’22’]
[78’23’’]
Meu agradecimento, assim, primeiramente a Deus, né? Porque ele tem me sustentado nas mãos
dele, e sem ele eu não estaria aqui, sem ele eu não seria a pessoa que eu sou hoje, né? A ele que
eu devo todo meu agradecimento. E assim, segundo lugar a minha família, né? Que não
mediram esforço para me ajudar. Família envolvendo irmãos, pai, cunhado, e o meu esposo, né?
Que é tudo na minha vida, a minha mãe, que não mede esforço até hoje para que - a educação,
não só dos filhos dela, mas a educação em termos geral aconteça. Eu vejo o esforço da minha
mãe fazendo isso acontecer com as crianças que ela trabalha, eu vejo os sonhos dela formando
teatro, pegando caixa, reciclando e levando para formar teatro dentro de uma escola, que não
mede esforços até hoje para que - a educação não só dos filhos delas, mas para que a educação
em termos gerais aconteça.
421
1. Introdução
Fortaleza, 18 de agosto de 2011, aqui no estúdio do PRECE, Benfica, narra sua história de vida,
hoje, Francisco Gonçalves, um dos primeiros sete estudantes do PRECE ali iniciado no Cipó
em 1994.
2. Vídeo 1
Meu nome é Francisco José Teixeira Gonçalves. Teixeira Gonçalves porque meu pai, no caso,
é Gonçalves, uma família que tem origem na região do Tururu, no Ceará, e minha mãe, que é
Teixeira, uma família grande de Itapipoca. Eles se conheceram em Pentecostes, e hoje estão
espalhados por aquela região. Eu nasci no município de Pentecostes, em 1974, no dia 05 de
março, especificamente. Eu me criei numa comunidade chamada Jardim, município de
Pentecoste. Na minha infância, em torno de 08 anos, já comecei a ajudar meu pai, na época era
pescador, ainda hoje é, mas num foco mais esporádico. A gente pescava pra sustentar a família.
Meu pai também exercia outra profissão, ele era vaqueiro. Meu pai não era um vaqueiro
tipicamente como se dá aquela imagem de vaqueiro hoje. Ele era uma pessoa que cuidava de
gado, mas era especialista em tirar leite, gostava realmente, era muito eficiente nessa parte. Ele
campeava o gado a pé, isso nos momentos mais difíceis, ele exercia essa profissão também,
mas a maior parte do tempo ele também fazia pescaria pra ajudar no sustento da família. Logo
a partir dos 8 anos eu comecei a ajudar no sustento da família. Na minha infância, eu lembro
que a gente ficava alternando o local onde a gente morava. Morava em Pentecoste, Monsenhor
Tabosa, inclusive fica muito longe de Pentecoste. Quando as condições estavam difíceis aqui,
a gente ia pra Monsenhor Tabosa, lá tinha um fazendeiro que recebia a gente, meu pai, como
falei, era vaqueiro, então passava certo tempo por lá, tendo o apoio e tudo. Quando as condições
aqui eram boas, aqui em Pentecoste, estou falando aqui porque a gente está bem próximo, aqui
em Fortaleza. Eu falo condições boas quando chovia, o açude enchia, dava peixe, a gente
retornava pra cá. Eu lembro que em 1982, a gente retornou de Monsenhor Tabosa pra morar em
Pentecoste e não retornou mais. O açude estava cheio, quer dizer, quando a gente retornou o
açude estava seco, mas teve um inverno muito bom, o açude encheu. A partir desse momento
eu lembro que o DNOCS interferiu numa área que era do fazendeiro, dividiram lotes, e meu pai
pleiteou um lote desse. A gente começou a atividade de agricultura ali mesmo, e aí nos fixamos
ali, até hoje a gente tem uma relação muito forte com aquela terra. Eu lembro naquela época
meu pai, antes de receber o lote, ele trabalhava, eu lembro que ele trabalhava pro patrão, não
sei se era de meia ou era de terça, sei que muitas vezes a gente ia pro roçado, pra vazante,
pegava o feijão, dividia tudo no meio e eu lembro que meu pai ia devolver o parte do patrão,
entre aspas, é dito que a terra foi deixada por Deus e não disse pra quem era. Ainda alcancei
essa relação de meia, trabalhe e a metade do seu suor vai pra alguém que se diz dono da terra.
Mas o meu pai, na comunidade ele era uma pessoa que, além de pescar, era um comprador de
peixe, um comprador de peixe era visto como uma pessoa diferente dos pescadores, era como
se fosse uma pessoa que ganhava dinheiro, porque era comprador. Mas meu pai era um
comprador de peixe diferente, ou seja, eu lembro que os pescadores de peixe da época, falar
422
como um exemplo, o cara comprava um quilo de peixe por 1 real e vendia por 5, faziam uma
relação assim. Meu pai, não, meu pai comprava um quilo de peixe por 1 real e vendia por 1,10,
então meu pai, vamos dizer assim, se lascava de trabalhar e não ganhava nada, ajudava mais os
outros. Tem uma certa época a gente tinha uma certa condição, eu lembro que nessa época a
gente não tinha escola naquela região, a escola que se tinha era em Pentecoste, ficava a 15km,
então tinha uma prima nossa que morava lá perto, ela tinha passado um tempo em Fortaleza e
aprendeu, se alfabetizou, fez a segunda, terceira série. Comparada com a gente, ela tinha um
certo conhecimento. E ele pagou ela pra nos alfabetizar. Nessa época era eu e mais minhas duas
irmãs mais velhas. A gente ia pra lá e ela ensinava pra gente. Eu lembro que aprendemos as
primeiras letras do alfabeto com ela. Não, me engano, tinha uma senhora que a gente tinha sido
alfabetizado, ela já deu um certo adiantamento, aprendendo a ler um pouco. Após ela, eu lembro
que a gente foi estudar numa escola que ficava do outro lado do açude. Ia eu e minhas duas
irmãs, eu remando, acostumado a remar canoa, um pequeno barco. Eu ia remando em torno de
quase 1km na água, remando, remando. Quando chegava lá, a gente andava mais uma meia
hora pra chegar na escola, e ali eu lembro que eu fazia o que hoje é equivalente ao primeiro ano,
não cheguei nem a terminar. Depois disso eu fui estudar na Capivara, localidade distante 5 ou
6km de onde eu morava, quando eu comecei ia todo dia a pé. Antes de sair de casa, onze e meia,
meio-dia, ia estudar. Comecei lá na segunda série, e lá eu fiz até a sétima série, quer dizer, não
cheguei nem a terminar a sétima série, porque a sétima série eu teria terminado se tivesse até o
final do ano, porque em 94, quando eu ia terminar a sétima série, logo em outubro de 94, eu
passei a fazer parte do grupo que hoje a gente conhece como grupo do PRECE, que foi iniciado
em 1994.
3. Vídeo 2
Pra enfatizar um pouco como era a minha vida no Jardim, onde eu nasci. Eu tenho 7 irmãos: 4
irmãs e 3 irmãos. Na época, a minha vida basicamente era pescar, jogar um futebolzinho e
estudar. A vida era mais ou menos assim, acordava de manhã e ia pra água, tirar os armamentos
de pesca que tinha colocado no dia anterior, pegava o peixe que ia pra comercialização. Em
período de vazante, ia pra vazante dar uma ajuda ao meu pai e logo a tarde já ia pra pesca
colocar os armamentos de pesca, chama galão, pra o dia seguinte. À tardinha a gente jogava
futebol, tinha um campinho pequeno lá na comunidade, era minha diversão. Depois de 16 anos
já passei a sair mais da comunidade. Lembro que ia assistir um jogo na Tamarina, ia pra uma
quadrilha na dona Irismar. Na época da política a gente se reunia, a gente morava a 3km da
beira da estrada onde passavam os carros, normalmente à noite os carros passavam ali pra levar
as pessoas pro comício, aquilo pra gente era uma diversão. Eu tinha uma bicicleta, meu meio
de transporte, e ia pra Pentecoste e pra as comunidades vizinhas de bicicleta. Os meus irmãos
eram mais jovens, não se envolviam muito ainda, não tinha aquela coisa de querer sair, conhecer
as coisas, viviam mais em casa, o mais velho ajudava um pouco, minhas irmãs ficavam em casa
ajudando a mãe, coisas muito simples. Como eu falei anteriormente, em 94 eu recebi o convite.
Estava num momento em que o açude estava seco, eu lembro que o açude estava seco, e a gente
tinha plantado as vazantes, e tinha muito legume, inclusive jerimum, nessa época estava
vendendo jerimum, uma época boa, relativamente boa. Estava fazendo a sétima série, na escola
onde eu estudava já dava algumas aulas, às vezes minha professora saía pra fazer alguma
atividade fora e eu ficava dando aula no lugar dela, eu estava começando a sonhar, começando
a pensar o que eu queria pra minha vida, talvez continuar dando aula, talvez futuramente fosse
um professor na comunidade. Cheguei em pensar a servir no exército, meu pai uma vez me deu
essa ideia, mas ele mesmo cortou. Pensei muitas coisas, mas eu não tinha pernas pra ir até onde
eu queria, era uma coisa muito limitada. Eu estava sonhando demais, com alguma coisa que eu
não tinha nem ideia direito do que era. Lembro de um domingo pela manhã, eu estava no Jardim,
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e uma pessoa que mora no Cipó, no caso o Té, o Luís, chegou lá de bicicleta e falou: “Francisco,
o Andrade quer conversar com você”. Naquela época a gente falava do Andrade como uma
pessoa ilustre na região, minha professora falava muito, se referia sempre ao Andrade como
uma pessoa muito ilustre, professor de universidade. Eu fiquei animado, curioso. O que será?
Pra quê? Conversar comigo? Até então eu jogava futebol, saía todos os finais de semana,
domingo à tarde, pra jogar futebol, e às vezes eu encontrava o Andrade nesses campos de futebol
ali pelo interior, na maioria das vezes na Capivara, Tamarina, Cipó, Serrinha, e ele chegava pra
mim e perguntava: “E aí, está fazendo o quê? Está estudando?”. E eu dizia: “Estou estudando”.
Mas nunca entendia o porquê da pergunta. Sempre que a gente se encontrava, nem o conhecia
direito, mas ele não perdia a oportunidade. Nesse dia eu fui lá pro Cipó. Eu saía do Jardim e ia
de canoa lá pelo açude e chegava em frente ao Cipó, no açude que fica em Pentecoste. Eu olhava
para aquela região, para aquelas terras, e eu via a casa do senhor Arão lá detrás das algarobas,
mas eu achava um local tão difícil de chegar, porque ali tinha um grande fazendeiro e talvez se
eu encostasse a canoa na beira da água e descesse talvez viesse alguém me dizer: “Aqui não
pode entrar”. Eu já tinha visto o Cipó por aí, e também já tinha passado na estrada, mas nunca
tinha parado ali pra entrar na casa e tudo. Nesse dia eu tive a oportunidade, o Andrade me
chamou, a gente tomou um café na cozinha, inclusive era uma cozinha muito diferente de hoje,
era uma cozinha pequenina, uma casinha de taipo onde ficava a cozinha, depois a gente se
reuniu na igreja e falou de todos os seus planos com relação à criação do PRECE. Foi uma
proposta que veio realmente como resposta para aquilo que eu estava procurando. “Vocês vão
ter a oportunidade de reunir um grupo nessa casa de farinha, vocês vão ter dificuldades, com
certeza, mas se vocês souberem passar por essa oportunidade, vocês vão vencer, vocês vão ser
universitários, vocês vão ter o nível superior, vão ser profissionais, vão ganhar o dinheiro de
vocês, vão construir uma vida mais digna pra vocês, pra família de vocês”. E aquilo ali era um
sonho que eu tinha em mente que achava muito difícil de conseguir. Eu lembro que logo na
semana seguinte a gente já começou a morar na casa de farinha, aliás, já começou a frequentar
a casa de farinha. Começamos especificamente no dia 18 de outubro, se eu não estou enganado,
uma segunda-feira. Sentamos à mesa eu, Toinho, Raquel, Beto, Du, eram 5, pra estudar história,
com aquele livro de Nelson Piletti, um livro muito bom. A gente estudava juntos, lia um capítulo,
cada pessoa lia um parágrafo, e assim ia levando. A primeira semana foi assim. Tinha o intervalo,
quando dava 8, 8:30, a gente dava uma parada, ouvia umas três músicas e começava de novo,
ia até 9:30, por aí. Na primeira semana, todas as vezes, depois de 9:30 pra 10h da noite, eu me
deslocava pro Jardim na minha bicicleta. Na primeira semana logo eu percebi que isso não ia
dar certo. Lembro que o Andrade disse: “Se não está dando certo assim, vão morar na casa de
farinha”. Eu acho que era uma vontade dele que realmente se morasse ali, porque ali ia se criar
um grupo que ia viver o dia-a-dia, que ia vencer as dificuldades juntos. Nessa primeira semana
eu estudava à tarde na escola convencional, só que, quando eu fui morar na casa de farinha, eu
cheguei pra minha professora e disse: “Olha, dona Lucinha, o Andrade me convidou pra gente
criar um grupo de estudo lá no Cipó, e eu estou pensando seriamente em abandonar aqui de vez
e ir pra lá”. Eu lembro que na época a dona Lucinha estava com alguns alunos envolvidos com
educação e disse: “Como é que você vai sair de uma escola convencional, que vai te dar um
diploma, e vai pra um local que você não tem diploma, você fica solto. Você vai fazer isso? Está
terminando a sétima série”. Mas eu tinha uma confiança muito grande no Andrade, não tive
dúvida, e ela não me convenceu, eu realmente sabia que ia pra um local seguro: “Dona Lucinha,
é isso que eu quero, vou pra lá, a gente vai criar um grupo de estudo”. Na segunda semana já
começamos a morar lá. Eu acho que uma ou duas semanas depois o Orismar chegou. Umas três
semanas depois, o Norberto. Por isso eu costumo dizer que foram 7 pessoas que criaram o
PRECE porque, se você contar os 5 primeiros que entraram, logo após vieram o Orismar e
Norberto, um período muito curto. Quanto ao Narcélio, veio um pouco mais depois. Na minha
opinião, já não considero mais um iniciante, mas esses 7 eu considero iniciante porque
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estiveram ali no início e botaram a ideia pra funcionar. Na casa de farinha a vida corria tranquila
e ao mesmo tempo difícil. Tranquila porque você tinha liberdade, tinha os livros, tinha a mesa,
tinha sua rede, dormia na hora que queria, estudava. Normalmente a gente tinha o hábito de
estudar a manhã todinha, logo no início, à tarde a gente estudava até 4h, depois ia jogar um
futebolzinho. Nessa época, à noite, ninguém estudava porque não tinha luz, com exceção do
Norberto, que conseguiu na casa da mãe dele uma lamparina, nessa época ele fazia o supletivo
do primeiro grau e precisava terminar, então ele conseguiu na casa da mãe dele uma lamparina.
Ele costumava estudar à noite, mas os demais não estudavam à noite porque não tinha nenhum
esquema de iluminação. Depois de história, a gente começou português, geografia, biologia, e
assim a gente terminou todas as disciplinas. Era difícil porque não existia um esquema de
alimentação, na casa de farinha, principalmente água, era difícil. Nossos pais eram pessoas com
condições financeiras muito difíceis. Pra comprar coisas de necessidade pessoal, como sabonete,
xampu, sabão pra lavar suas roupas, no interior se suja muita roupa, joga futebol, sua, vai a uma
viagem volta todo cheio de poeira. Não tinha dinheiro pra nada. Algumas pessoas tinham mais
dificuldade ainda. Meu pai, por exemplo, não tinha condição de me ajudar, nem minha mãe. O
Norberto, na época a mãe dele já era aposentada, eu acho, já tinha um diferencial, não vou dizer
que ele vivia bem, mas tinha um certo diferencial. O Toinho já ganhava um pouquinho que dava
pra comprar essas coisas, ele tinha diferencial porque foi o primeiro a chegar na casa de farinha
e tinha um esquema de alimentação no senhor Arão, que era pertinho. Quando o Andrade o
convidou pra morar lá, ele tinha essa condição: “Você fica fazendo as refeições lá no papai”.
Tinha um poço, um cacimbão aqui do lado, um açudinho que tem ainda hoje, que é do senhor
Arão, a gente ia lá pegar água pra tomar banho, pra beber. E alimentação, eu lembro que várias
vezes a gente acordava de manhã e não tinha nada pra comer, e a gente se refugiava como podia.
Eu muitas vezes ia para o Jardim, que ficava a 6 ou 7km, o Norberto às vezes ia pra casa da
mãe dele, mas era muito comum também eu ir pra dona Neném, que é uma pessoa que me
ajudou muito, ela morava pertinho, e não conto as vezes em que eu ia pra lá à tardinha, jantava,
dormia e quando voltava de manhã pro PRECE já tinha merendado, e às vezes voltava meio-
dia também. Foi uma pessoa que praticamente me criou ali, e eu agradeço demais, foi uma das
pessoas que mais me ajudaram. Nos finais de semana, talvez pra não dispersar, o senhor Arão
e a dona Fransquinha sempre nos ajudaram, a gente sempre almoçava e jantava por lá.
Geralmente o senhor Arão matava um carneiro e a gente era convidado, um convite muito bem-
vindo, porque a gente não estava querendo sair dali, porque o Andrade tinha chegado de
Fortaleza e trazia palavra de conforto, incentivo e motivação pra gente. Se a gente saísse dali
seria uma perda, então normalmente a gente ficava lá, era importante ficar ali. Frequentemente
nos finais de semana o senhor Arão nos sustentava lá. Eu lembro que a gente foi estudando, eu
comecei a me estudar mais pela área de biologia, o Toinho, mais pela geografia, o Beto, mais
pela matemática, e a gente começou a pegar nome nessas disciplinas. Lembro um certo ano,
nas férias nós demos curso das disciplinas para os alunos. Na época era uma casa de farinha:
“Vai ter o curso de biologia na casa de farinha”. E os alunos se matriculavam e iam, tinha o
grupo e eu era o professor de biologia, me sentia muito honrado de fazer isso. O Toinho era
história, geografia, o Beto, matemática. E aí as coisas foram andando, de forma que logo no
primeiro ano o Toinho já começou a pensar em vestibular: “Olha, Andrade, eu acho que eu já
estou numa condição que dá pra arriscar o vestibular”. Eu lembro que o Andrade o aconselhou
a não fazer, mas ele se inscreveu no vestibular e passou em primeiro lugar para o curso de
Pedagogia, na UFC. Isso foi uma bomba de incentivo para os demais que tinham ficado na casa
de farinha. Eu particularmente recebi isso como uma coisa muito boa, porque eu estava
querendo uma coisa que eu sonhava muito, que era entrar numa universidade, e às vezes eu
nem mesmo acreditava que eu pudesse conseguir isso, ter condições de estudo, porque não era
uma escola convencional que você tem uma receita de coisas que faz e no final das contas entrar
na universidade, a gente era mais por nossa conta. Foi muito incentivadora essa aprovação do
425
4. Vídeo 3
Nesse período eu morei em Fortaleza pra apressar as provas. Tinha que fazer muita prova pra
que eu terminasse a tempo de, caso eu fosse aprovado no vestibular, tivesse a condição de entrar.
Quando eu vim pra Fortaleza apressar o supletivo, eu lembro que estava fazendo os módulos
de química, e praticamente todos os módulos das matérias mais difíceis, todos os módulos de
426
química eu fiz nessa época. Eu morei com Adriano Andrade e Arleide, irmã dele, numa casa
que tinha próximo à av. Sargento Hermínio. Foi um esquema de estudo muito forte, tanto que
eu concluí os módulos de química e fiz o primeiro módulo de física. Quando se criou o grupo
de estudo no Cipó, passamos um mês no Cipó, foi muito estudo, mas não era mais fazendo
módulos, eu estava estudando as matérias do vestibular, resolvendo questões, me preparando
para o vestibular. Ficamos lá até o dia do vestibular mesmo, um dia antes do vestibular fomos
para o apartamento pequenino do Andrade, pra se arrumar, porque pra estudar era uma loucura,
mas a gente conseguia discutir umas coisas, pegava umas questões. No outro dia pela manhã,
no dia da prova, todo mundo eufórico pra fazer a prova, eu lembro que a gente acordou cedo,
fizemos um café e a gente reforçou a alimentação pra passar um meio dia de prova, o Andrade
fez uma oração.
1. Vídeo 4
Depois do café da manhã, a gente foi para o carro, com o coração acelerado, o pneu estava seco
foi ágil, mas tranquilo, e essa tranquilidade dele me deixou mais nervoso. Cheguei na hora da
prova, foi um momento que nunca esqueci, parece que estou lá hoje, sentei na última cadeira,
era no Christus Anexo, que fica no final da av. Pontes Vieira. Se eu deixasse o nervosismo de
lado, conseguiria fazer uma boa prova. Na primeira hora foi muito nervosismo, porque foi uma
coisa inédita pra mim, mas depois disso fiquei tranquilo e consegui expor aquilo que eu tinha
de conhecimento. Fui aprovado na primeira fase do vestibular pra Engenharia de Pesca, na UFC,
e imediatamente me dediquei aos estudos do supletivo, que eu tinha deixado anteriormente pra
me dedicar ao vestibular, e faltavam quase todos os módulos de física, era uma das matérias
que os professores no supletivo levavam muito a sério, tinha que memorizar fórmulas, um mês
talvez fosse pouco pra fazer todas as provas de física quando fui aprovado pra segunda fase do
vestibular. Quando fui aprovado de fato na segunda fase, com a minha vaga na universidade
garantida, ainda faltavam as provas mais difíceis, e tinha que estar com o diploma na mão. Foi
um período de angústia porque eu acreditava que não fosse dar tempo. Geralmente saía de
manhãzinha e ficava o dia lá, às vezes voltava pra casa e não tinha feito prova porque não dava
mais tempo. Um dia antes da matrícula eu consegui fazer a última prova. Eu já tinha avisado
ao pessoal da secretaria de que precisava do diploma com urgência e eles foram muito ágeis.
Deu tudo certo. Cheguei em casa umas 5h e comi muito, e dormi bem, relaxado, alegre porque
no dia seguinte eu iria à CCV fazer minha matrícula no curso de Engenharia de Pesca na SDrá,
no vestibular pra entrar na primeira turma de 97. Na universidade era tudo diferente mas eu
consegui me sobressaí em algumas disciplinas, principalmente naquelas relacionadas com
biologia. Quando eu passei pra Engenharia de Pesca, eu achei que fosse mais fácil de entrar
porque não tinha matemática, mas eu queria mudar para Agronomia, que foi o que aconteceu
no ano seguinte. Nessa época eu estava na residência universitária como agregado enquanto
regularizava a situação pra morar regularmente na universidade, morava com o Toinho, que já
tinha vindo seis meses antes. Me identifiquei com as disciplinas relacionadas à biologia, mas
não gostei muito das disciplinas na área de cálculo. Quando entrei na Agronomia, em 98, entrei
com vontade porque era aquilo que eu queria. Logo eu comecei a estagiar no departamento de
química orgânica e inorgânica, no laboratório de síntese orgânica, o meu orientador era o
professor Arnaldo Viana. O Andrade me sugeriu fazer um estágio na botânica, na área de
sistemática vegetal, e eu passei uns quatro meses com o professor Edson, ia ao herbário, pegar
as plantas e eu estudava a pata de vaca. Depois fui para a área de fitopatologia, na Embrapa, em
2001, e fiquei lá quatro anos. Lá eu me desenvolvi muito e aumentou minha curiosidade. Fiquei
lá até concluir Agronomia, em 2004. Quando eu concluí, estava muito cansado devido ao
processo da monografia, mas eu sempre tive um sonho de fazer a pós-graduação. Quando meus
colegas entraram na pós-graduação, eu fiquei admirado e feliz porque, se eles entraram, eu
427
também teria essa chance. Quando me formei, fui pra Aracati trabalhar numa empresa de
assessoria técnica em assentamentos rurais da reforma agrária, numa empresa que é comandada
pelo pessoal do MST, e eu passei um ano morando em Aracati. Em 2006 eu tive uma
oportunidade de trabalhar em Pentecoste, assessorando os agricultores da região, no sentido de
melhorar suas condições de produção. Em 2007 recebi uma proposta de ser professor de uma
escola família agrícola no estado do Piauí, na cidade de Pedro Segundo, próximo da Ibiapaba.
Na época eu criei uma disciplina de fitossanidade e nunca perdi o contato do Freire da Embrapa.
Meus colegas estavam no mestrado, doutorado. Comecei a trazer plantas para o doutor Freire
descobrir espécies novas de fungos e reacendeu o sonho da pós-graduação. O mestrado que eu
queria fazer não tinha em Fortaleza. Comecei a estudar na prova da Universidade Federal Rural
de Pernambuco, no mestrado em fitopatologia. Consegui ser aprovado no mestrado da UFRPE,
sempre mostrando interesse por micologia.
2. Vídeo 5
O curso de Agronomia eu estive envolvido com muitas outras coisas. Nos finais de semana ia
para o interior jogar futebol, atividades do PRECE, e terminei Agronomia em seis anos. Em
Recife, na UFRPE foi um período muito intenso de estudo pra mim, tudo muito novo, ambiente
competitivo, e tem que atingir um certo perfil de notas, senão perde bolsa, é jubilado. Quando
passei no mestrado, minha proposta era trabalhar com virologia vegetal. Fiz o primeiro semestre
e no meio do ano eu falei com o professor da área de micologia, disse que estava interessado
em trabalhar com ele e consegui minha transferência pra trabalhar com o professor Marcos
Câmara. Em 2010 eu havia concluído o mestrado. Logo após descobri a aprovação no doutorado.
Eu nunca quis sair do Nordeste e fiz a seleção na UFRPE e passei. Estamos em agosto de 2011
e eu já terminei as disciplinas do doutorado, falta defender a tese. Hoje o que eu trabalho com
fungos endofíticos do bioma caatinga, fungos que vivem no interior das plantas sem causar
nenhum sintoma de doença. O objetivo desse estudo é fazer um levantamento.
7. Vídeo 6
A segunda parte do trabalho é você ver o potencial biotecnológico desses fungos, as substâncias
que eles possam produzir e possam ser usadas contra o câncer e outras doenças, como diabetes.
9. Vídeo 8
pai fez até a terceira série, ele conseguiu escrever, fazer as quatro operações, mas nada mais do
que isso. A gente nunca teve essa tradição, tanto que meus irmãos nunca encamparam essa luta.
Minhas irmãs começaram estudando comigo, mas logo foram deixando, casaram. Lembro de
uma das minhas irmãs, Maria José, que foi uma das pessoas que eu incentivei a estudar. Minha
própria mãe, às vezes não entendia direito por que estudar. Ela não foi uma incentivadora de as
minhas irmãs estudarem, porque ela achava que mulher não ia exercer uma função importante
estudando, ela entendia que não era o adequado, eu não consigo compreender até que ponto
isso é verdade. A única pessoa da minha família que eu vejo expressar esse sentimento de
orgulho e satisfação é minha mãe. Quando eu comecei a estudar, foi muito difícil, porque eu
tinha que trabalhar pra sustentar a família. Mesmo quando eu comecei a estudar na Capivara,
com a dona Lucinha, periodicamente eu tinha que interromper esse ciclo de estudo. A dona
Lucinha me incentivou muito nos estudos, trazia livros pra eu estudar. Era triste, pra mim, ter
que interromper. Um certo ano eu tive que parar de estudar pra ir pescar num açude no
município de Tejuçuoca, no açude do Boqueirão, tinha que ir pra lá com meu pai pescar pra
sustentar a família.
10. Vídeo 9
Lembro que no dia que a gente ia sair meio-dia e eu demonstrei uma certa insatisfação, aquela
angústia de ter que sair pra pescar quando estava tão bem na escola, mas meu pai disse que não
podia fazer nada, porque eu tinha que ajudar ele, não tem outra saída. Havia a alternativa do
ajudante.
11. Vídeo 10
Mas essa pessoa leva 30% da sua renda, quase a metade. Pra quem ganha pouco, isso é muita
coisa. Eu tinha que segurar a onda. Eu também me recordo em alguns momentos que meu pai
começou a despertar e perceber que eu tinha vocação pra estudar e eu acho que a partir desse
momento ele começou a me liberar mais. Uma vez ele viajou pra pescar em outro canto e
contratou outra pessoa e eu fiquei não muito satisfeito pelo fato de estar indo outra pessoa, mas,
por outro lado, estava pensando nos meus estudos. A partir desse momento ele se sensibilizou.
Tanto que quando fui pra casa de farinha não teve nenhum questionamento. Eles não entendiam
muito o porquê, mas eu já tinha 18 anos naquela época, já tinha convicção dos meus anseios,
dos meus sonhos.
12. Vídeo 11
Logo após isso eles me apoiaram muito. Frequentemente ia pra casa e levava peixe, feijão,
farinha e eles nunca se furtaram dessa questão de ajuda, sempre me ajudaram muito. Se eu fosse
lá em casa 3, 4 vezes por semana, eu levava alimentos pra ajudar, porque eles tinham concebido
a ideia de que, a partir daí, estava livre pra estudar e investir naquilo que eu tanto queria. Quando
eu passei a morar no Cipó, em 94, a gente estava embasado na história do Andrade. Eu lembro
que ele falou pra gente que estudou sozinho com outro colega pra entrar na universidade, um
ajudava o outro. Ele falou que se a gente fizesse a mesma coisa, a gente conseguiria entrar na
universidade. Isso era uma coisa que fazia a gente acreditar demais. Nunca me passou pela
cabeça desistir. Quando o PRECE foi criado, ninguém conhecia. O PRECE se difundiu antes
na universidade do que em outros municípios. As pessoas falavam que os estudantes do PRECE
eram pessoas que não tinham muita habilidade para o trabalho pesado. Eu acredito que, de certa
forma, elas tinham razão, porque os meus amigos que tinham mais encaravam o trabalho pesado
estão lá. Eu particularmente nunca acreditei que você trabalhar até se lascar vá me dar uma vida
429
mais digna. Acredito que as coisas agora melhoraram muito no interior, mas naquela época em
que eu comecei no PRECE as pessoas trabalhavam muito. Eu criei outras estratégias, estudando,
dando aulas em troca de dinheiro, talvez até passar a impressão para o meu pai de que eu estou
ganhando dinheiro. Era muito difícil passar todas as semanas passar em frente a minha
comunidade em direção à casa do meu pai, pegar alimento, as pessoas olhando pra mim, era
muito doloroso pra mim. Quando entrei na universidade e consegui as primeiras bolsas, foi um
alívio. É muito difícil passar o período da graduação e as pessoas perguntando se você já está
ganhando dinheiro. Hoje eu vivo uma vida digna, tenho as coisas que eu quero, não preciso
mendigar as coisas a ninguém, estou muito satisfeito com o que consegui até hoje. Quando
começou o PRECE, em, 94, a gente ainda vivia no coronelismo muito pesado, era uma fase de
transição, as pessoas eram oprimidas em Pentecoste. Ninguém conseguia fazer um movimento
em Pentecoste por melhores salários, isso era abafado. Você tinha ideia, mas não tinha coragem
pra isso.
13. Vídeo 12
Quando o PRECE foi iniciado, em 94, a gente estava saindo de um período da história de
Pentecoste chamada coronelismo, questão muito marcante no nosso estado. Pra se ter uma ideia,
naquela época ninguém conseguia fazer um movimento, os professores não conseguiam fazer
um movimento por melhores salários, existiam forças nos arredores que conseguiam sufocar.
Lembro que teve umas iniciativas, na época em 93, mas logo, logo as pessoas eram
desestimuladas a continuar, viviam à mercê da política local, e passivamente elas se rendiam a
isso. Era um município que não tinha perspectiva de crescer. Quando o PRECE foi criado,
lembro que minha professora falava que sofria repressão se liberasse os alunos mais cedo, mas
foi um grupo que foi agregando pessoas. Antes de eu entrar no PRECE, comecei a ler história,
a conversar com as pessoas, porque em casa, com pais analfabetos, não tinha espaços de
discussão, e no PRECE foi criada essa oportunidade, a falar de revoluções, a trazer isso para o
dia-a-dia, e isso começou a incomodar, e a gente começou a se perguntar por que as coisas são
assim. Por que não temos direito a boa educação? Por que não temos direito a hospitais? Lembro
de um senhor de idade que adoeceu e quando foi para o hospital não tinha equipamento
apropriado pra recebê-lo, e ele perdeu a perna. Na época, o prefeito deu uma cadeira de rodas
para aquela pessoa, e ele agradeceu muito ao prefeito por isso, mas na verdade o prefeito era
pra ter lutado por um hospital de qualidade pra que ele não perdesse sua perna. A gente que
começou a estudar e entender as coisas, vimos que aquilo não estava certo. O PRECE foi
permitindo esse espaço de discussão, essa germinação de coisas que existia nas pessoas e que
estava esquecida, a capacidade de discutir, questionar e criticar. Logo após nosso grupo foi
crescendo. Uma vez um vereador bateu no meu ombro e disse que eu ia votar nele, mas eu falei
que não era bem assim, sou eu quem decido se vou votar em você depois que eu fizer minhas
avaliações, e a pessoa ficou chateada comigo e ficou dias sem falar comigo pela minha reação.
Quando as pessoas com esse grau de crítica se tornam numerosas, isso é uma coisa muito forte.
Trazendo aquela época para hoje, o grupo PRECE está muito numeroso, que atua positivamente
na política local, composto por pessoas honestas. O PRECE hoje é conhecido no Ceará inteiro.
Por onde eu ando as pessoas nos conhecem. São pessoas que eu boto a minha mão no fogo,
porque elas foram criadas nesse clima de lutar por melhorias para o município de uma forma
justa, correta, honesta, elas não dependem do esquema local, são independentes. O PRECE
ajudou a formar pessoas independentes, críticas, com vontade de mudança. Você imagine o que
isso significava para o município de Pentecoste, ter pessoas com esclarecimento, que sabem
dos seus direitos, acho que isso foi o produto de tudo. Sem contar as melhorias de vida de cada
pessoa. Eu era um pescador, nada contra os pescadores, e que estaria hoje com meu casebre na
beira da água, meus 3, 4 filhos, sem nenhuma perspectiva e reproduzindo aquilo. As pessoas
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que se envolveram com o PRECE, principalmente aquelas de renda mais baixa, adquiriram uma
vida digna para si. A maioria hoje conseguiu ter um patamar de uma vida digna. Foi uma
mudança muito grande na minha vida, radical, sair de uma condição de pescador, passar pela
universidade e estar numa condição em que poucos conseguem chegar, não foi fácil. Por onde
eu passo no Ceará, lembro dessa situação, e lembro com um sentimento de agradecimento muito
grande às pessoas que me ajudaram e a Deus. Acredito que Deus tinha meu caminho traçado.
Se eu fosse agradecer às pessoas que me permitiram chegar aqui, começaria agradecendo às
pessoas lá do Cipó, minha família, minha professora dona Lucinha, na Capivara, dona Neném,
senhor João Felix, senhor Arão, dona Fransquinha, Andrade, Freire, e a todas as pessoas que
me ajudaram indiretamente. Peço a Deus que cubra essas pessoas de bênçãos.
14. Vídeo 13
Quero dizer para as pessoas que estão na escola pública, que estão na escola cooperativa, no
PRECE, que todos os recursos que você tem pra estudar e fazer você entrar na universidade, o
recurso mais importante é você próprio, a energia está toda dentro de você. Ao entrar na
universidade, nos primeiros meses tem algumas dificuldades, mas depois se iguala tudo e você
não sabe qual aluno veio de escola pública e qual aluno veio de escola particular. Na minha
turma, os melhores alunos eram de escola pública, na Engenharia de Pesca e na Agronomia.
Está mais dentro do aluno do que propriamente em todos os outros recursos que ele tem. Se
vocês usarem essa energia e a saúde pra estudar, com certeza farão vestibular e serão aprovados.
Você deve ter a certeza de que vai entrar.
15. Vídeo 14
16. Vídeo 15
Eu entrei na universidade no início de 97, nessa época eu era apenas agregado na residência
onde o Toinho morava. Eu fiquei 7 anos na residência, 1 ano na Engenharia de Pesca e 6 anos
na Agronomia. A residência oferece moradia com estrutura básica, com local pra estudar. Minha
vida na residência era estudar e dormir. Durante a semana tinha o restaurante para alimentação,
e a minha residência ficava próxima ao restaurante universitário, e eu fazia minhas refeições lá.
Agronomia era um curso pesado, mas eu lembro que ainda tinha um gás nessa época e conseguia
estudar à noite. Geralmente nos finais de semana eu viajava para o interior, e era uma coisa
muito boa. Os demais colegas que moravam comigo na residência, e que não eram PRECISTAS,
não tinham condições de viajar todo final de semana para o interior. Teve uma época que eu
fiquei uns 6 meses afastados do PRECE, mas eu sempre ajudei.
José Noberto Sousa Bezerra – 11 de Agosto de 2011 – Fortaleza [Tempo da entrevista em minutos]
Vídeo 01
[0’00’’]
Eu sou José Noberto Sousa Bezerra, né? É:: filho de Felisberto Lopes Bezerra e Maria Nezo
Sousa Bezerra. Nascido em dezoito de outubro de 1994, na comunidade de Riacho do Serrote,
município de Apuiarés, Ceará, né? É:: meus pais são pessoas semi-analfabetas, filho de/meu
pai era agricultor, analfabeto, e minha mãe costureira, semi-analfabeta, então aprendeu a ler e
431
a escrever é:: com algumas aulas. Ao longo de sua vida jovem, né? Teve a oportunidade de sair
pra fora de/do Ceará, né? Passou dez anos no Amazonas, passou cinco anos. Aí depois retorna
com o irmão dele, voltam, passam mais quatro anos, né? E:: ele sempre contava essa história
de que na última volta deles, eles vinham com um objetivo, que era casar. Então nesse momento
ele chega, é:: conheceu a minha mãe, né? E três meses depois eles casaram. Não era gosto da
minha avó porque ele bebia na época e ela dizia que/mas a minha mãe quis, casaram e tiveram
sete filhos: a Nádia, a mais velha, Nilberto, eram quatro homens e três mulheres. Nádia, Nilberto,
a Clésia, o Cláudio, a Natalice - Clédio e o Noberto. Então eu sou o mais novo dos sete. Aí um
fato interessante que quando meu pai casa, já tinha quarenta e três anos e a minha mãe com
vinte e nove, né? Não sei se na época é uma data comum, acredito que não. E ainda tiveram
sete filhos. E:: dentro da realidade dessa nossa comunidade Riacho do Serrote, ela é composta
de, na época, cinco casas. As casas mais próximas tinha um quilômetro de proximidade, então
a gente era praticamente isolado. Costumo falar que a gente era criado como índio, meio
isolados. E - como filho de agricultor, né? Então a gente é:: também trabalharia na agricultura
seguindo o meu pai. A minha mãe também era costureira, além de dona de casa, costureira, e
as minhas irmãs, algumas se casaram no interior aí, elas seguem também a rotina da mãe. Que
é que aconteceu? As minhas irmãs passaram a ser bordadeiras, a minha mãe costureira e os
homens agricultores. Então a minha diferença de idade para meu irmão mais velho é de sete
anos. Então quando eu já pequenininho, cinco, seis anos, queria ir pro roçado, ia todo mundo e
eu ficava só. Então eu já queria ir pro roçado, chegava lá tava meia hora, queria ir embora. É::
coisa de menino, né? Muito atrevido. Então assim, história de/Como é que consegue colocar
água para casa? Bezerro, né? Latinha de vinte litros e menino atrevido, peguei uma latinha de
vinte litros, bota em cima da caçamba, “Á! Então já pode. Você vai ser o bombeiro da casa”.
Então todo mundo ia pro roçado e eu seria o bombeiro da casa, pessoa que ia colocar água
dentro de casa, pro consumo diário, né? E, aos sete anos né? Foi o meu primeiro contato com
escola, seria então minha pré-alfabetização, nem sei a nomenclatura na época, mas eu sei que
eu ia para uma casa, uma casinha ( ) a gente caminhava em torno de três quilômetros e meio,
por volta de meio-dia, para ir para lá, passar a tarde lá com a professora, que era uma dona de
casa, uma sala da casa dela era nossa escola, né? Então a gente passava a tarde lá. Ela passava
a tarefinha e ia bordar lá do lado. E antes de terminar o ano, ela vai embora e passa para uma
outra professora, que nem essa sala tinha, era uma salinha pequenininha, a gente sentava no
chão, no banquinho, em qualquer coisa e a gente concluiu o ano. Foi como a gente passou a -
é:: ser alfabetizado na Canafístula. Dentro desse período, que assim, meus irmãos todos
estudavam, já tinham sido alfabetizados, alguns já estavam indo para a Canafístula, sendo
alfabetizados lá. E tem assim umas histórias para mim que eu acho marcante. A gente não tinha
é:: ((Vídeo interrompido)) [4’50’’]
Vídeo 02
[0’00’’] ((Continuação))
Como sair de casa a noite, então seis horas, sete horas a gente tava todo mundo jantando, né?
Em seguida vai dormir. Isso é uma rotina, a gente não tem vizinhos, não recebe vizinhos,
geralmente não é corriqueiro. Mas tinha uma coisa interessante, meu pai fazia o seguinte, a
gente ficava na mesa, jantava e ele ficava contando história dele, passado dele, as presepadas
que ele fazia, a viagem dele de Amazonas, como eles trabalhavam lá, os riscos que eles corriam,
né? E tem outros momentos que eu achei que me deixava/achava aquilo bonito, é que ele pedia
para as minhas irmãs ler, as matérias da escola. Então assim “lê o que você aprendeu na escola
hoje”. E aquilo eu achava muito bacana. Então assim, isso, eu vou chegar lá, né? Talvez eu
tenha tido esse privilégio que eles não tiveram, porque assim, quem lia para eles? Então eu via
meus irmãos e minhas irmãs, geralmente as mulheres, que são as mais/têm essa habilidade né?
então elas liam. ((vídeo interrompido)) [1’01’’]
432
Vídeo 03
[0’00’]
Então até aí, o que a gente tem na mente, naquele lugar, naquela circunstância? Tô falando pro
Osmar, pouco a pouco. O mundo lá, é aquilo ali, fechado, você é filho de agricultor, vai estudar
até a quarta série que é o que era promovido/oferecido na Canafístula e em seguida você vai
voltar para a roça novamente. Então como se procedia lá em casa: manhã, para quem estudava
a tarde, manhã ia pro roçado e a tarde ia para a escola. Quem estudava pela manhã, a tarde ia
para a escola, geralmente ia os blocos, né? Geralmente os mais velhos, depois os mais novos.
Nunca ia só. Então assim, eu lembro que - após o primeiro ano que a gente teve na biposta, com
as duas professoras, em seguida a gente foi para fazer a alfabetização na Canafístula, que é a
coisa mais clara que eu tenho dos meus estudos, né? Alfabetização com a dona Vanda, né? Que
era a professora da alfabetização da Canafístula. E primeiro ano e segundo ano com a dona
Gizelda Costa, que assim, a gente tinha um medo “a Gizelda Costa era valente”, que ela brigava,
e assim, ((ele para momentaneamente de falar, emocionado)). No primeiro semestre a gente
tinha sempre a mesma dificuldade, chuva, inverno, né? Então a gente não ia para a escola. Eu
lembro, primeira série e segunda série foi muito marcante. Porque no primeiro semestre quase
que não fomos a escola, eu e o Clédio estudávamos juntos, a gente não foi, estudou praticamente
o segundo semestre que é quando acaba o inverno. Então assim, qual a justificativa? É porque
a gente ia trabalhar na roça. E no final do ano a gente foi promovido para a segunda série, os
dois. Ótimo. No ano seguinte a mesma coisa, primeiro semestre quase não frequentamos a
escola, e o segundo semestre, o Clédio foi reprovado e eu fui aprovado para a terceira série.
Houve uma confusão porque eu tinha todas as minhas notas, eu sempre guardei minhas notas e
no final do ano eu fui reprovado, só que eu tinha as notas, todas as notas que eram possíveis
para eu ser promovido para a terceira série, e a minha mãe foi lá falar com a professora, né?
Que era a Gizelda Costa. E ela disse “Olha, se você quiser”, ela com um tom meio chateado,
“Se você quiser aprovar seu filho, quiser botar para frente eu boto, mas não me responsabilizo”.
Quando ela foi verificar no diário dela, realmente ela tinha se enganado, eu tinha sido aprovado
e quem tinha ficado era um colega meu, que tinha um nome completamente diferente, mas era
José também. A partir daí, eu fui com uma responsabilidade maior de ter que ser aprovado,
aquele medo, né? Mas a gente passava a frequentar a escola normal, os dois semestres. A gente
frequentou direitinho. E - nessa altura do campeonato meus irmãos mais velhos, a Nádia,
Nilberto, Clésia e Cláudio, já haviam terminado e a Natalice a quarta série, que era o que tinha
lá, então só tava eu e o Clédio. Nessa altura, eu - vou um ano a frente, né? Cheguei a terceira
série, ele repetiu a segunda, fiz a quarta e ele fez a terceira com ( ) Luz e completamente
diferente, aquela pessoa muito professora, muito meiga e tal. E assim, eu nunca fui um aluno
trabalhoso em sala de aula, nunca fui aquele cara rebelde, eu era ligeiramente comportado. E
tinha as minhas dificuldade quanto à aprendizagem. Eu era um aluno que estudava. O que eu
sempre achei estranho é que assim, em casa eu praticamente eu não lia, eu levava a tarefa sem
fazer. Não dá tempo, deixa para a última hora, né? Coisa de cearense mesmo, de praxe e assim
ia. Quando eu fiz a quarta série, foi quando essas coisas mudaram aí na minha vida, porque
assim, poxa vai chegar na Canafístula a TVC. TVC ia oferecer de quinta à oitava série. Como
o meu, é::, perdão. Quando eu fiz a quarta série, o Clédio fez a terceira. Então eu encerrei. Não
tinha mais nada, o Clédio ia fazer a quarta, Aí, meu pai me obrigou a fazer a quarta de novo,
me matriculou, porque ele disse que menino não tinha querer. Porque eu não ia, mas menino
não tem querer. “Você vai, vai para fazer companhia a ele”. Beleza, porque lá do Serrote para
Canafístula são seis quilômetros e a gente fazia esse percurso a pé, no horário de onze meia,
doze horas. Então assim, beleza, eu vou. Voltei, fiz novamente. No final, chega a TVC. Então
eu digo: “Como ele me obrigou a fazer a quarta série, eu crente, eu e o Clédio, que a gente
continuaria na quinta série no ano seguinte”. Aí, a gente foi barrado, porque todos os sete
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queriam e que ele disse: “É o seguinte”, as mais velhas já mocinhas e os mais velhos, rapazinhos.
Então ele disse: “Eu não sei se vocês querem estudar ou se querem namorar”. Aí, beleza, então
ninguém foi, ele não vai deixar ninguém, para ninguém ficar com queixa. Só eu e o Clédio que
queria. Aí, o Noberto era aquele menino que pedia as coisas ao papai. Tudo “Vai, manda o
Noberto, tal...”, Aí, ele: “Não, meu filho, dá certo não! Eu não dei aos outros, então não vou dar
para você, não!”. Entendo. Eu, talvez no lugar dele, fizesse a mesma coisa. Então, não deixo.
No ano seguinte, só eu queria, Aí, eu preparei todo um argumento, sondei toda a história. Minha
mãe já estava morando na Canafístula cuidando da minha avó, que estava doente. Morando só
elas duas e tal, eu “Opa, vou arrumar um pretexto aí, para morar com ela”, é pertinho, vou
estudar em casa e tal. Então arranjei todo o discurso e cheguei junto de novo, “Não, meu filho,
eu não vou deixar porque eu não deixei pros outros”, o discurso dele é o mesmo. Aí acaba logo,
tem nenhum argumento. Eu expus todo o meu argumento[ 6’59’’]
[7’00’’]
Então começa a direcionar toda a minha vida em função do futebol, porque não tinha outra
coisa. O que se espera da vida? O que eu esperava da vida? Poxa, eu esperava que a vida me
desse uma oportunidade. O que, eu não sei, porque eu não sei fazer nada. E assim, sou só
agricultor, sou só um estudante de quarta série, não fiz mais nada. Então, esperar, às vezes eu
comentava que se aparecesse alguma coisa para eu fazer, para sair, eu sairia naquele momento
de completar os dezoito anos e sair. Só que quando eu completo dezessete anos, dos doze aos
dezessete anos eu investi muito em futebol, não porque eu vou fazer um investimento, era
vontade, era paixão mesmo. Eu andava três quilômetros, corria para ir jogar um rachinha. Onde
tive uma batidinha de bola, a gente corria lá. Chegava em casa, a pé, depois de andar seis
quilômetros. O pai chegava em casa e a gente ouvia a batida da bola nos campos mais próximo,
que era às vezes um quilômetro, um quilômetro e meio. Aí, chinelava, batia o racha e voltava,
tomava banho, dormia e acabou-se. Aos dezessete anos me incentivaram a vir para cá, fazer
teste aqui no time Fortaleza, nem lembro qual o nome. Eu vir para Fortaleza, eu tinha dezessete
anos, treinar no time do Ceará. Então, com essa idade, eu além de trabalhar no roçado, jogava
bola. O pessoal: “Tu tem futuro. Tu joga bem. Então vai lá.”. Vim acho que no início de junho,
quando foi em agosto já voltei, porque nesse período não tinha mais peneira. Então eu já entrei
em uma turma em andamento. Então eu fui deixado na turma e fui ficando. Só que quando eu
voltei a primeira vez, na casa que eu estava, morava com um primo aqui e ele já tinha
conversado com o papai e tinha dito que não compensava, porque era só custos, que eu não
ganhava nada e fez toda a cabeça dele. Então ele já chegou para mim e disse “Eu vou lá falar
com o homem”, não é assim que funciona. Futebol não funciona assim, não é nem dono de uma
ovelha, de um bicho, chegar lá: vende ou não vende? Paga ou não paga? Existe ainda uma
mente do pessoal profissional de um clube desses, o pessoal já vai fazer contrato e tu já vai
ganhar dinheiro. Não funciona assim. Aí eu digo: “Não, tudo bem. O senhor não vai precisar ir
lá, não. Eu volto”. Porque assim, até então quem tinha custeado todos os meus gastos tinha sido
eu mesmo, que ao longo desses dezessete anos, que além de criar ovelhas e cabras, eu tinha
parte das cabras, do rebanho, era meu, acho que umas vinte cabeças. Então era meu. Ele vendia
e mandava o dinheiro. Aí eu: “Não, tudo bem. Eu volto”. Isso já em agosto. Quando foi em
outubro, a minha irmã, a Clésia, ela sabia que o Andrade morava só e nesse/dos quinze aos
dezessete, o Andrade já organizava campeonatos na Tamarina, Pentecoste, campeonatos
municipais, regionais. E eu jogava pela comunidade de Canafístula, e no final do campeonato
eles formavam os selecionados, e eu sempre estava incluso nos selecionados. E o Andrade me
conhecia, assim, jogava junto. E assim, tudo o que eu queria, a minha semana girava tudo em
função do sábado quando o Andrade chegava para poder a gente treinar. Tudo o que eu queria
era que um dia alguém/ eu tivesse um treinador, mesmo que fosse futebol amador, alguém
chegasse e “vamos fazer algo diferente do que existe”. Então ele chegava com essas propostas,
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fazia treinamento físico, treinava, e assim a gente reuniu um grupo de pessoas na Tamarina, né?
Que era onde acontecia a maioria dos jogos. Em Tamarina também é município de Pentecoste.
Então aquele momento era um momento de festa. Pessoas simples, mas ao mesmo tempo muito
prazeroso. [10’53’’]
[10’54’’]
E, ela foi e falou com ele sem eu saber, para eu vir morar com ele. Eu estava completando meus
dezoito anos em outubro. Depois ele me falou e aceitou, ele estava dizendo: “se ele souber
cozinhar”. Ele já era professor da universidade, então eu vim em outubro. Retornei para cá.
Completei dezoito anos. Aí, nessa vinda, eu tinha conversado, ele desafiou para eu voltar a
estudar. Eu já estava com quatro anos parado, então eu nem pensava em reatar. Não tinha tido
essa oportunidade ou essa visão. Ele pa/ele, todo um argumento, né? “Poxa, você é um jogador
profissional. Se você não for muito bem instruído seu empresário pode comer todo o seu
dinheiro, fazer e tudo lá”. E eu “poxa, é verdade”. Então assim, eu voltei em outubro, retorno
lá no Ceará. Já é final de ano, a turma já estava encerrando e voltava em janeiro, “os
campeonatos já encerraram. E, o senhor vá fazer supletivo, pertinho do centro ali, aqui em
Fortaleza”. Aí, eu pego e vou fazer as provas, que era o teste de habilidade de português e
matemática, fui reprovado em português. Eu passei um mês fazendo nivelamento de português.
Fiz a prova e fui aprovado para português e redação, e cheguei ainda a pegar um fascículo.
Nesse momento o Andrade estava casando, dezembro, então já volto/ele tentou conseguir aqui
algumas casas que precisariam de jovens para morar, pessoas idosas, em qualquer canto para
eu não voltar e continuar estudando. Agora sim, eu já volto com outra visão, com outro
propósito. Então futebol não era, naquele momento, a principal via. O estudo agora era uma via.
Então, eu via minhas irmãs querendo muito estudar e nunca puderam porque o pai não deixava,
porque não deu a um não vai dar a outro. Agora, com dezoito, ele não pode mais impedir. Então,
isso acontece, eu volto para casa, para Canafístula. Nesse momento eu já estava morando em
Canafístula e as minhas irmãs, a Clésia e a Natalice, passam a vir comigo. Vamos lá, fizemos
novamente o teste em Pentecoste, sondagem em Pentecoste, e fomos aprovados, todos os três.
Nesse período, [19]93, no início/final de julho, aí, o pai adoece. Quando fomos fazer a matrícula,
o pai estava no hospital. Ele foi para o hospital domingo e nós fomos fazer a matrícula na
segunda, e ele faleceu em novembro. Então nesse período a gente praticamente não fez prova,
nenhum dos três. E, a Clésia sempre foi àquela menina/a queridinha da casa, a mais desenrolada,
a mais cheia de doidice, e assim, quando o pai volta para casa. E ela assim, quando o pai volta
para casa, ele não falava mais, teve trombose, teve um monte de coisa. Então ele não falava, ele
não andava, e ela puxava conversa com ele. Às vezes eu fazia ele rir, né? E chegava a falar para
ele que estava estudando, que estava fazendo isso. Então quando o pai morre há todo um
desequilíbrio lá em casa, da família, quem vai cuida? Porque a mãe sempre foi a pessoa, que o
pai decide tudo, meu pai não fazia nada que ela não concordasse, mas ela tomava uma decisão,
ela não vendia um palito de fósforo, não dava nada sem antes consultar ele. Então quando ele
morre, tem todo esse desequilíbrio. Quem vai cuidar? Então eu já era/tinha uma outra noção de
vida do meu irmão mais velho, tinha uma visão de mundo diferente. Então assim, era ele quem
ia conduzir, apesar da gente ter um contraste de ideias, de pensamentos. E a gente passou por
momentos difíceis nessa situação. Então eu vi a vinda do meu irmão para Fortaleza, o mais
velho, depois veio a Clésia, minha irmã também para morar com ele, a Nádia já tinha casado,
então tava eu, Cláudio, Clédio e Natalice. E, por alguns momentos, eu tinha alguns contrastes
de ideias, com Nilberto, que ele queria que eu viesse morar com ele, e eu digo: “Não, vou não”.
Ele bebia, lá em casa assim, meus irmãos todos bebiam na época, só não eu. E, a gente foi
tentando ( ) esse desequilíbrio. Um ano e meio depois, eu sempre em contato com o Andrade,
ele me disse: “Poxa, nós estamos montando um grupo aqui no Cipó, vem tirar dúvidas aqui do
supletivo, fazer suas provas”. Ele sabia como é que tava o andamento, tava um ano e meio de
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supletivo, tinha feito menos da metade do supletivo em Pentecoste. E, ele disse “vem pra cá,
vem para o Cipó estudar com os meninos”. Estava o Toinho, o Francisco, o Du e o Beto, se eu
não me engano. O Osmar ainda não estava, não. Aí, que eu digo: “Aí eu vou, essa semana eu
vou”. Na outra semana eu: “Não vim, não, mas na próxima semana eu vou. E eu vou, e eu vou”.
Sei que chega outubro, novembro,ele disse: “Afinal, tu vai ou não vai?”, eu disse: “Vou”. Ele
disse: “Olha, nós estamos montando um grupo para morar lá”, e eu disse “Vou”. Porque assim,
apesar de tudo que estava acontecendo lá em casa, eu tinha um, assim, um ambiente, não tinha
terra nos pés, então você não tem força para reagir. Futebol naquela hora estava sem ter apoio,
não tem nada, é só verme, vontade de jogar. Eu digo: “Eu vou”. Isso foi num domingo à noite.
Segunda a gente fazia até uma despedida do Olavo, naquele momento era o melhor amigo que
eu tinha e eu praticamente vivia na casa dele, e ele estava vindo para Fortaleza também. E ele
disse: “Vamos fazer a despedida dele, gosto muito do Olavo”, e eu: “bora”. [17’10’’]
[17’11’’]
Quando eu cheguei em casa eu disse para a mãe: “Eu tô indo morar no Cipó”. Assim, limpo e
seco, né? o clima já não era tão. Ela fez de conta que nem ouviu, né? Aí eu entrei e comecei a
arrumar as minhas coisas e ela percebeu que era verdade: “E não pode deixar para ir só amanhã?
E esse negócio vai dar certo?”, “Vai, por isso que eu tô indo agora.” Então, eu fui para a
despedida do Olavo e em seguida peguei minha bolsa, botei e me mandei. Então assim, passei
a semana sem vir em casa, vim depois da semana. Na primeira conversa que o Andrade teve
com ela, aí pronto, ela mudou, é:: ela começou a acreditar, começou a apoiar, começou a ajudar
mesmo dentro do que ela podia. E os meninos, as minhas irmãs, que começaram comigo,
casaram, tiveram filhos, uma abandonou o supletivo, a outra não, a Natalice ficou, fazendo
devagarinho, mas não abandonou de jeito nenhum, continuava fazendo. A Clésia abandonou,
casou, trabalhou, rodou, voltou de novo. E, o Cláudio veio embora para Fortaleza com o
Nilberto, passou um tempo, depois veio o Clédio, aí vieram as cachaças, e o Clédio veio para
cá. É:: e aqui ele tava trabalhando, perde o emprego, se envolvendo com pessoas que agente
não sabe a procedência, o pessoal preocupado, minha mãe chorando e pedia para eu ir falando
com ele. Porque assim, até então eu era a pessoa mais próxima dos irmãos que me davam
ouvidos, que me ouviam. E ela queria que eu viesse aqui, e eu: “Mas eu posso oferecer o que
para ele, vou levar ele para lá para quê? Ele não vai querer ir”. A única coisa que eu poderia
ajudar era se ele quisesse voltar a estudar, mas o Clésio sempre foi uma pessoa que teve
dificuldade, ele chorava, ele tinha dores de cabeça violentas antes de ir para a aula, eu acho que
era para ele não ir. Eu sabia, eu estudei com ele, eu sabia de toda a dificuldade. Aí, um dia eu
conversando com a minha mãe, nas minhas idas e vindas de Cipó para Canafístula, a noite, sete
quilômetros de bicicleta ou a pé, me fazia refletir muito como eu poderia ajudar, e eu fiz esse
comentário com a mãe, então não precisou eu vir aqui à Fortaleza, ela veio e ele voltou, e ela
comentou com ele. Aí, um dia agente se encontrou, bateu um racha na Canafístula e fomos
para o riacho do Serrote a pé, a noite, caminhando como a gente fazia antes, a gente fez isso
bastante. Então, ele já tocou no assunto, que sabia da dificuldade, nunca tinha gostado, mas
assim, ele tava tão sem saída que ele ia enfrentar, ia tentar. Então eu chego em casa, estava a
mãe e o Cláudio e a Natalice, se eu não me engano, e o Clédio, e eu falei: “ele vai trabalhar um
expediente e o outro ele vai estudar”. Ninguém riu, mas ficou todo mundo assim: “Você nunca
quis nada”. Aí, veio toda a história por trás, Nilberto não acreditava, Cláudio não acreditava,
Clésia não acreditava. O certo é que meses depois ele foi morar no Cipó comigo, levei ele para
lá, então ele já estava dando certo, estava começando a tomar gosto e ele foi, fez também o teste
de supletivo da cidade de Pentecoste, passou, e foi morar lá em Cipó. E daí, de lá para cá, ele
veio por conta, nunca precisei: “Ó, tu tem que estudar, tu está brincando”. Ele diminuiu as
bebidas e veio estudar e chegar a entrar na universidade. É:: então assim, paralelo a isso
acontecia a história do Claudinho, que ele foi o primeiro, a história, a ovelha negra da casa dos
436
homens. A mãe dizia assim: “no dia que beber, chegar em casa, apanha”. Mais homem, né? O
Cláudio foi o primeiro, cedo ele começou a beber, influência das amizades, ele estava numa
situação que ele fugia, saia de casa, foi morar sozinho para beber, se ele não tivesse bebido ele
não vivia, mas se tivesse, ele vivia. Ma sele ia fazer compra na imposta, já um pouco distante,
mas lá tinha cachaça e ele acabava bebendo. Assim, por várias vezes ele chorava porque o
dinheiro que ele ganhava não pagava as contas que ele tinha e isso foi por muito tempo. O
Cláudio, como é, bebe para deitar e levanta para beber, estava numa situação desse jeito.
[22’11’’]
[22’12’’]
E:: minha mãe ficava apavorada, porque ela nunca gostou de quem bebe e assim, e ter que
cuidar, e o Cláudio chegava melado, ia pro banheiro e voltava com a roupa toda molhada dentro
de casa, e ela ficava com aquela angústia e não podia fazer nada. E um dia meu cunhado disse
que a gente desprezava o Cláudio, que não dava a atenção que ele merecia e por isso que ele
vivia daquele jeito e ia levar ele para um curador. Eu entrei por um ouvido e saiu pelo outro,
porque eu não acreditava que o problema dele fosse um curador e a mãe naquela hora eu ouvi
ela dizendo assim: “Se ele for curar e não resolver o problema dele, eu pago é despesa”. Aí
entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Eu, passou um dia, eu passei a noite acordado, todo dia,
até quatro horas da manhã, que eu vou fazer? Já estava aqui na faculdade, que eu vou fazer para
impedir que isso aconteça? Porque a situação já estava ruim, então pelas minhas crenças vai
piorar, eu não acredito nisso e o problema do Cláudio não é esse. então assim, eu não sei o que
fazer, o Cláudio também foi outro que na quarta série mais bebia e namorava que estudava,
então ele reprovou três vezes, a quarta ele desistiu. Aí eu digo: “Puxa, não sei o que fazer de
jeito nenhum”. Mas assim, eu sou o único que nesse momento entrou na universidade e eu tenho
outra mentalidade, não devo, por mais que eu seja o mais novo da casa, não devo, eu acho que
por obrigação minha ou responsabilidade, deixar que as coisas aconteçam àquilo que eu não
acredito. A conclusão que eu cheguei às quatro horas da manhã é que eu ia conversar com ele,
juntamente com a mãe, com meus irmãos que estavam em casa e primeiro passo ele ia pagar as
contas dele, que eu sabia que uma das coisas que fazia ele beber era não pagar as contas, e as
contas só multiplicam, você sabe como é que funciona. E, essa foi a minha proposta. E outra
coisa, com a morte do pai até aquele momento, existem umas mudanças, a gente se sente mais
livre, não tem mais quem cobre, estava um pouco distante da igreja, nós não sentávamos para
almoçar todo mundo junto, quem chegar primeiro come. Então assim, acho que a gente perdeu
isso, então a minha proposta era essa, vamos se juntar, vamos fazer novamente, vamos ser um
grupo, né? Os que estão em casa. Nós vamos quitar as contas dele e vamos tentar recuperar isso,
frequentar um pouquinho mais a igreja, almoçar juntos, jantar juntos, vamos buscar isso. Então
eu fui daqui com essa proposta, quando eu cheguei na sexta feira, eu vim pro Cipó, bati o racha,
no sábado, cheguei em casa, anunciei: “Olha eu queria muito fazer uma reunião com vocês esse
fim de semana”. Por coincidência, as coisas tudo certinho, o Clédio na época estava tentando o
vestibular, o ENEM na verdade, e o nome dele não veio, a prova do ENEM era exatamente no
domingo, então ele não viajou, ficou em casa. Aí, eu fui pro racha no Cipó, vim do Cipó para a
Canafístula só pensando em como eu vou fazer essa reunião, muito mais prático para mim era
desistir: “Á, não, deixa pra lá”. Porque é muito difícil, pois eu sou o mais novo, vou querer dar
lição de moral pros meus irmãos mais velhos? É no mínimo chato, você ter que/tem horas que
você tem que ter cara de pau, muita crença no que você tá falando ou tá fazendo, quando eu
chego em casa, tá todo mundo, Cláudio, Clésia, marido da Clésia, Clédio, a mãe, aí eu digo: “É
agora”. Nem tomei banho, sentei no pé da mesa e sentou todo mundo. A Clésia disse: “vai
casar?”, aí eu digo: “Não. Não vai ser dessa vez, não”. Então, conversamos, falei exatamente
isso pra todo mundo, né? E eles só ouvindo. A mãe falou, o Clésio falou, Clédio falou. E, o
pessoal gostou da proposta, a única coisa que ele disse no final: “A única coisa que eu prometo
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para você é que eu vou deixar de beber, porque eu já sou dependente”. Beleza, mas ninguém
pediu para ele parar de beber. A gente estava se colocando à disposição dele para ajudar. Passou
uma semana, só que nesse período todo ele se inscreveu no, como é que é meu Deus? é um
programa que, esqueci o nome. Ele concluiu o ensino médio, o fundamental, espécie de EJA
que ele fez, com as cachaças e tudo, mas ele conseguiu fazer. Na semana seguinte quando eu
cheguei” ((A gravação encerra para Noberto lembrar-se de algumas coisas). [27’20’’]
Vídeo 04
[0’00’’]
Meu irmão me oferecia bebida toda vez que eu passava em frente ao bar que ele tivesse bebendo.
Ele chegava, me chamava e me oferecia bebida, sabia que eu não bebia, e eu educadamente
dizia que não queria e ia embora. Morrendo de raiva porque eu sabia que era só para provocar,
né? E eu revidava dessa maneira. Dentro do campo eu fazia a mesma coisa, quando alguém me
dava uma pancada se eu pudesse dar um drible nele, eu dava. Dar um banhozinho, um chapéu,
qualquer coisa para descontar, para mostrar para ele que eu vim para fazer outras coisas. Então
assim, paralelo a universidade, nós trabalhamos muito nisso. Então, futebol ficou não mais
como um rumo profissional, apesar de que eu fui tentar novamente quando cheguei na
universidade. Professor Gilberto, lá do departamento de química, ele já me conhecia, já tinha
jogado comigo, ele disse: “Quer não continuar a jogar com vinte e três anos. Se quiser, o
Tiradentes, um time aqui de Fortaleza, treinava lá no campo. Se tu quiser eu falo com o
treinador”. Eu digo: “Não. Quero não. Agora eu quero ser estudante mesmo. Eu vou ser
professor e vou ser profissional em outra área”. Mesmo dizendo contra a minha vontade, eu
tenho certeza que naquela hora minhas pernas doeram para correr pro campo, mas eu não corri,
tive a resposta. Depois treinei com o dito treinador, mas defendendo a universidade. Então assim,
nós éramos tratados como universitários, não como profissionais. Passei a jogar. Quando eu
decidi estudar, o meu medo, a minha dificuldade era “como é que eu vou deixar de jogar bola?”,
porque eu achava que para estudar tinha que deixar de jogar bola, porque eu não teria tempo.
Quando eu entrei, comecei a ver diferente. Eu não precisei deixar de jogar futebol, e eu passei
a jogar de uma forma inteligente ou mais educativa, pensava assim, eu achei que a gente começa
a ler e a entender como é que se joga futebol de fato, e não só aqueles negócios que se vê nos
campos de peladas. Ainda vim para cá, joguei pela universidade no Norte-Nordeste, em Maceió,
e joguei um Brasileiro, que é o Jubs, em Natal, esse eu fui, estava com vinte e oito anos, eu fui
querendo ir para a seleção brasileira de universitários, e acho que foi o meu melhor campeonato.
Já tinha quebrado a perna, já tinha ficado bom e voltado. Joguei quatro jogos em Natal, ficamos
em quinto colocado, mas assim, foram bons jogos. E:: a resposta que no final meu nome foi
cotado para a seleção brasileira, mas por conta da idade eu não fui, porque a seleção brasileira
o limite era vinte e oito anos e no ano seguinte eu estaria com vinte e nove. Então o único nome
que foi cotado foi o meu. De qualquer forma, foi uma resposta para o que eu queria. Fiquei com
pena de não ter ido, mas ao mesmo tempo satisfeito. Então assim, quando, já terminando a
graduação, quando eu termino a graduação eu largo o futebol praticamente de vez, sem muita
dificuldade, porque ao longo da minha graduação eu projetei o seguinte “Eu vou fazer mestrado,
eu vou fazer doutorado.”, porque se eu sair, eu corro risco de não voltar mais. Primeiro, eu não
sou mais nenhum menino, tinha trinta anos. Eu nunca ganhei dinheiro, daí a gente começa a
ganhar e acha que está ganhando muito e quer ganhar mais e acaba não voltando. Então eu vou
continuar vivendo de bolsas e fiz. Fiz o mestrado, entrei. Casei no ano seguinte já terminando
o mestrado, foi uma outra/era um desafio, mas foi uma projeção, uma atitude saudável. Eu não
pensei em aumentar minha carga, eu pensei em dividir minha carga. Casar naquele momento
foi sem muito pensamento. Parceira, a Beatriz, achava a mesma coisa. A gente tinha projeto de
vida em comum, então deu certo. Eu não quero uma mulher para eu ficar preocupado com ela
438
não, nem você um marido para ficar preocupada, porque assim nem eu vou trabalhar e nem ela,
nem eu vou estudar e nem ela, mas graças a Deus casei no último ano do mestrado. Terminei o
mestrado em 2006, em março. Em janeiro já estava fazendo a seleção do doutorado, foi muito
corrido. Deus tem sido presente na minha vida e mostrando as coisas que assim, tem horas que
eu digo: “Deus me carregou, porque eu não teria forças”. [5’08’’]
[5’09’’]
No final do mestrado, eu estava/eu defendi em março e em janeiro eu estava terminando de
escrever a tese, e é ao mesmo tempo da seleção do doutorado. Fiz o projeto, Andrade não viu o
projeto, ele era meu orientador. Houve um contratempo e ele não viu. Então dois colegas meu,
me ajudaram, fizeram as correções, e ele só me ajudou a escolher a planta. Fiz o projeto,
mandei o currículo, mas eu estava cansado, muito cansado naquele período que eu fui para a
entrevista com um propósito. Se a banca botar qualquer dificuldade, eu certo que vou só
terminar meu mestrado e ir pro mercado de trabalho, porque eu não tenho mais força do que o
que eu tenho agora. Se eles me exigirem mais do que eu não posso dar. Quando eu chego para
a entrevista, a banca era conhecida. E:: por incrível que pareça, estava com a tabela de notas e
eu vi só o cantinho, dez no currículo: “Eu posso tirar um seis no projeto”. O Andrade não tinha
visto meu projeto. Eu fui para o interior para as viagens de rotina, cheguei domingo às dez horas
da noite, fiz a apresentação até às cinco horas da manhã e apresentei às oito horas. Foi puxado,
eu dormi de seis às sete e ainda tirei um oito no projeto. Aí eu comecei a dizer que eu ia fazer
o doutorado porque Deus queria que eu fizesse, ele não ia me abandonar. No doutorado vem o
primeiro filho, eu já estava com um ano do doutorado, aí eu pego a disciplina mais pesada que
eu achava, que era a disciplina do Ediberto e ao mesmo tempo trabalhando no laboratório e
nasce o Artur no finalzinho de abril. Então continua seminário, fiz o seminário, pediram para
eu repetir, eu mesmo não gostei da apresentação. Quando eu terminei a disciplina do Edilberto
foi finalzinho de julho, eu não tive férias. Aí, criança, eu não dormia a noite toda, eu estava ali.
A criança acordava de madrugada eu ia ajudar a Beatriz. E:: quando chega em agosto eu
papoquei. Não rendia, não conseguia. Era exatamente para eu reapresentar o projeto/o
seminário, não consegui de jeito nenhum, aí tive um problema de saúde, passei/caiu, baixo
estima estava a flor da pele, cansaço e fui lá na coordenação, perguntei qual era o meio legal de
trancar o curso, porque eu sabia que se eu não terminar o curso eu tenho que devolver as bolsas
que recebia e a coordenadora viu a minha situação e disse: “Rapaz, não tranque. Não desista”.
Eu estava matriculado, fazendo a disciplina e ela disse: “Tranque a disciplina que você fez e se
matricule em tese”. Porque em tese você pode se matricular até o final do curso, até defender.
Então pronto, ela fez tudo isso e eu nem voltei mais lá. E eu fiquei seis meses afastado. Nessa
época o Andrade estava chegando dos Estados Unidos, conversei com ele, falei para ele e disse:
“O que você decidir eu estou do seu lado. O que você quiser continuar/se você não quiser, eu
estou do seu lado”. Tudo bem. Alguns amigos vieram lá em casa, conversaram, e eu estava
numa situação que, se eu quisesse fazer alguma coisa, eu tinha que anotar. Se eu quisesse
lembrar de alguma coisa do dia anterior, eu tinha que anotar. Eu não lembrava de jeito nenhum.
Então, criei uma agenda, eu mesmo fiz a agenda em casa, queria nem ver livros, nem ver nada.
Então eu fiz uma agendinha e se eu quisesse fazer alguma coisa, pensei agora, anotei. Se eu
quisesse lembrar as coisas de ontem e eu ia lá no caderninho e lembrava. Eu perdi a bolsa, foi
retirada a minha bolsa porque eu não apresentei o seminário, então eu fui punido com o
cancelamento da bolsa. E foram sete meses sem bolsa do doutorado. Quando foi em março o
ano seguinte, isso foi finalzinho de agosto. quando foi março do ano seguinte eu consegui
reapresentar o seminário, aí foi mais tranquilo, eu gostei da apresentação. Sete meses depois
eles me devolveram a bolsa e as coisas continuaram muito lentas. É:: aí na reta final tive que ir
para Mossoró, que foi outra parte árdua, o professor lá cedeu o laboratório, muito bom, eu
viajava domingo a noite para Mossoró, saía daqui às onze horas e chegava três da manhã na
439
rodoviária, ficava até às seis da manhã para ir para a pousada, de lá ia para o laboratório e sexta
retornava, isso foi de agosto a dezembro, onde lá eu consegui os resultados que desse para fazer
a defesa. E graças a Deus nese ano eu consegui fazer a defesa do doutorado, foi em fevereiro e
estou aí. ((Comentários do entrevistador)) [11’09’’]
[11’22’’]
Então assim, eu fui aprovado para licenciatura em química, fui graduado, licenciado. Fiz o
mestrado em química de produtos naturais, é uma área e a sub-área é química orgânica, e
doutorado também em química natural. Trabalhei com tipi, uma plantinha inclusive utilizada
na medicina caseira no interior e no doutorado trabalhei com a oiticica, que foi uma planta
bastante explorada no nordeste, na época de seca. Foi criada uma indústria que trabalhava com
o óleo do fruto da oiticica, que ela fechou agora, acho que em [19]97, desde/foi quase um século,
mas só foi explorado o fruto. Uma coisa que pouca gente sabe é que a folha da oiticica ela,
assim como a folha da pata de vaca, ela é utilizada para controle de diabetes. Se você não tem
acesso a pata de vaca, que é mais difícil, tem acesso a oiticica. A folha da oiticica tem essa ação.
Eu descobri também por acaso, gostava da oiticica, mas meus primos todos sao diabéticos da
parte do pai, e eles trabalhavam com a folha da oiticica. Eu fui buscar na literatura e alguns
relatos já mostravam isso. Enfim. ((Comentários do entrevistador)). Pronto. É porque ficaram
algumas coisas deixadas por fora. Paralelo às atividades da universidade, estar na universidade,
voltar para o Prece no Cipó, nos meus dez primeiros anos, foram voltados para o Cipó. Eu
trabalhei praticamente em Cipó. Prece cresce e então ele é dividido, ele é feito nas comunidades,
associações, Escolas Populares Cooperativas (EPC). Então a Canafístula, uma das comunidades
que eu diria mais representadas no Prece, pela quantidade de pessoas que existe na comunidade
e presente no Prece. 2004 a gente começa as atividades na Canafístula, comunidade de origem,
onde a gente começou com grupos de estudos, com EJA, e em 2006 a gente vai com a proposta
de fundar a EPC, se não me engano dez/doze universitários já e a gente começa as atividades.
As atividades com um certo medo: “Será que nós estamos preparados? Não temos professores
para todas as disciplinas”. Aí já temos um público mais seletos, universitários com uma visão
mais/tem que dar uma boa aula, saber o conteúdo, senão eu não posso mais ser o professor da
disciplina e nós tínhamos dificuldades com isso. E::, mas assim, a procura tem sido constante,
inclusive a média de público que procura a escola parece que não muda, todo ano nós estamos
com uma média de trinta e cinco estudantes. E:: a gente vem trabalhando de modo que se ela
foi criada, a associação foi criada e registrada em 2006/2008, não tenho certeza agora. É - e o
pessoal passa, vem sendo aprovado, existe uma curiosidade nesse ponto, a gente tem um público
muito bom de graduados, universitários, mas nós temos um público pequeno de pessoas que
trabalham ministrando aula. As aulas para universitários é um ponto que segura estudantes, lá
você prepara, orienta para outras atividades, como construir horta no quintal, vamos, sei lá,
trabalhar com esportes, trabalhar com projetos de espanhol para crianças, mas o que prepara a
pessoa, o que norteia, o que orienta o estudante é o pré-vestibular. E a gente tem tido essa
dificuldade, pois algumas pessoas não puderam voltar ou não quiseram voltar, outros acham
que não se formaram para dar aula, outros imaginam que não é só para dar aula que o Prece
existe, e assim está passando por um momento quanto a isso, mas a escola na Canafístula é
crucial, porém hoje em dia eu faço algumas críticas a mim mesmo pro grupo, né? Porque nós
temos ao lado da EPC uma escola de ensino básico, não tem muito sentido o estudante passar
ali o tempo todo do ensino fundamental, do médio, depois ir para a EPC, para estudar para vir
para uma faculdade, ele podia fazer tudo isso na escola, já se prepara lá para vir para cá [17’16’’]
[17’17’’]
Então, esse é o meu questionamento. Segundo, questionamento é o seguinte: A gente vem, passa
a semana aqui, a gente sai domingo à noite, no micro-ônibus, volta sexta à noite, a gente chega
440
lá de madrugada, sete horas da manhã as atividades iniciam. E nós não temos um professor da
rede pública, que todos os professores da rede pública, da escola de Canafístula, são de lá. Não
tem um de fora, são todos de lá. E nem um deles trabalha conosco. Então assim, existe alguma
coisa errada. E tem filhos de professores estudando com a gente. Eu fiz até um comentário hoje
com um colega e ele não entendeu, parece trabalho de abestado, né? De pessoas que não têm
noção do que estão fazendo. Estou fazendo uma coisa que o pessoal não tá fazendo isso. Por
que eu estou indo para lá, mas não temos recurso de nada? O único recurso que a escola dispõe
hoje é de uma taxa que o pessoal paga, se não me engano de quinze reais, que não paga nem a
xerox que a gente leva mensalmente. E nós temos o custo com energia, com água, com
alimentação de algumas pessoas que estão lá. Então assim, eu acredito que nós precisamos ter
um novo marco na comunidade. Porque o Prece deixou de ser o veículo de transformação, para
ser um veículo que leva pessoa para a universidade, antes que elas tenham uma opção, esse
pessoal já chegou/e testemunhos, eu fiquei muito feliz, a pessoa ter capacidade de falar aquilo.
Às vezes é muito triste, porque eu tinha detectado, comentei, mas ninguém assume. Hoje ele é
precista por vaidade, por orgulho, dentro da comunidade, sente-se orgulhoso. Eles não assumem
isso agora, mas quando chegam aqui na universidade que a gente vai para as reuniões, que
aparecem as dificuldades. Eu também era assim, eu me sentia orgulhoso, achava até o fato de
comparação. O Prece hoje no interior é o aluno do Farias Brito aqui em Fortaleza, é o cara
orgulhoso, pomposo. Os estudantes que vão para a escola, que é uma crítica que eu faço porque
eu acho que o Prece não peca, porque a gente não está pegando os alunos carentes de fatos,
carentes que eu digo ali, daquele local. Nós não estamos pegando. Estamos pegando o pessoal
de classe média e média alta daquele local, da Canafístula especificamente. Vem um ou dois
gatos pingados. E os estudantes que não vão para a escola, eles não vão porque não querem, é
porque eles acham aqueles meninos metidos, os que vão. Acham metidos, que eles sabem muito
e eles não sabem nada. Por isso eles não vão. Porque eu defendo o critério de seleção na escola.
Qual critério de seleção? É o que tem vontade de ir, não é o que sabe mais. Eu defendo esse
critério em todo canto. Quem é que deve estudar lá? Aquela pessoa que tem muita vontade de
estudar, que tem vontade. É essa que tem que ir. Então as pessoas não vão porque o carinha que
na escola parece que sabe muito ou é filho de uma pessoa influente, é mais desenrolado, vai ((o
vídeo acaba e a fala é interrompida)). [21’09’’]
Vídeo 05
[0’00’’]
Só passar vergonha. Como é que eu sei disso? Pelo testemunho dos próprios estudantes que
acabam de entrar, que eles têm muita resistência, quando vai, quando chega lá descobre que os
estudantes não sabem tanto assim, não são as estrelas que demonstram ser e muitos estudantes
bons não vão. Aí chego lá, são melhores do que já estão. Aí eles começam: “Poxa, então a
história aqui é outra. Existe uma coisa boa na escola que todo mundo aqui se valoriza, trata pelo
nome, as pessoas aqui ajudam, colaboram. Quando alguém tem alguma dificuldade, todos
ajudam”. Então esse é o forte da escola do Prece. O pessoal preocupado em entrar na
universidade, preocupado com as pessoas que estão dentro da comunidade que não estão
participando e nós estamos caminhando paralelo a comunidade. Então a proposta do ano
passado para cá é que a gente, de 2010 para cá, é que nós passássemos a fazer eventos culturais
para que a comunidade pudesse participar e ao mesmo tempo a gente estar ajudando na
organização da comunidade. E isso tem acontecido em alguns eventos e a comunidade tem
participado. Qual é o problema aí? É que pode ser isso só uma forma de maquiar, as atitudes
podem não mudar. Eu acho que isso a gente tem que estar trabalhando também, é:: esses fatos,
porque assim, essa é a parte que mais me preocupa e me deixa muito triste. Não é esse o Prece
que eu quero, não é esse Prece que eu vou defender, de jeito nenhum, eu não vou defender
441
pessoas simplesmente por virem para cá. Eu vou defender pessoas que queiram se transformar,
que queiram uma alternativa, meios, que para mim os grandes resultados do Prece como todo
não é a quantidade de pessoas que se formaram ou chegaram a universidade, é um Claudim,
uma Clédia, um Zé Alfredo, é um Valdeir, e quantos outros que eu não conheço que não tinham
essa oportunidade, estavam aí direcionados para qualquer canto que não sejam coisas boas, e
eles tiveram oportunidade, seguraram. Valdeir foi uma pessoa que foi muito insistente, chegou
lá sem dar um pingo de atenção a ele, e ele ficava lá só vendo a gente. Ele foi resistente e tá aí
terminando o curso de agronomia. E, por conta disso, já está o Milton, o Berto e outras pessoas
já vieram por conta deles. Então assim, essas nossas atitudes, os sucessos e os insucessos servem
para que você atraia pessoas que buscam, que estão precisando de uma luz, de uma alternativa.
Que eu vou fazer? Às vezes eu fico: “Poxa, como eu posso fazer algo para ajudar a comunidade?
Hoje assim, meu pensamento, porque eu acredito que estudar seja muito difícil, estudar não é
para todo mundo. Nem todo mundo quer. Eu conheço pessoas, e várias pessoas lá no interior
dizendo: “Eu quero morar aqui, eu só quero terminar meu ensino básico e vou trabalhar na
agricultura, trabalhar por aqui mesmo. Vou trabalhar na prefeitura, em qualquer canto, mas eu
quero morar aqui. Eu quero estar aqui. Estudar é muito difícil”. Assim, como é que você pode
me ajudar? Aonde é que nós vamos poder entrar com projetos, com políticas públicas, sei lá,
que a gente possa chegar para aquelas pessoas, pais de estudantes, ex-estudantes daquela
comunidade para que ele possa se fixar lá mesmo, ganhar um dinheirinho, uma quantia que ele
possa sobreviver e viver dignamente. Mas é difícil, está além das nossas condições, mas o
primeiro passo é detectar, segundo é sentir e que existem pessoas que se sensibilizam por isso.
Aí, chega o período da política e o pessoal chega e esmaga todos os sentimentos de simplicidade,
de honestidade, de dignidade, porque eles não têm. Isso eles não têm e eles não querem nem
saber ((comentários do entrevistador)). Eu nunca deixei de voltar, né? Fui três anos e meio
presidente do Instituto, então encerrando agora no início de 2011. Logo em seguida fui
agraciado com a coordenação da escola. Não era os meus planos, porque eu queria que pessoas
novas também passassem. A ideia lá é construir um ciclo e todo mundo passar pela mesma
cadeira e sentir os mesmos problemas para poder reconhecer e entender o sofrimento, mas estou
lá com a equipe e me propus a dar aulas de química, então vou há cada quinze dias, com uma
proposta junto com os estudantes, e por conta disso eu tenho muito contato com esses problemas
da comunidade. Acho que hoje eu trabalho mais conversando com os meninos, né? Mostrando
para eles algumas vertentes, alguns sentimentos, algumas possibilidades de fazer algo diferente,
de mudança do que mesmo atuando, apesar de que estamos lá, frequentemente. [5’59’’]
[6’00’’]
E assim, só esqueci de falar que no final do doutorado ainda veio a chegada do Ricardo, que foi
o meu segundo filho, mas graças a Deus ele já veio na reta final. Dois meninos com muita saúde,
uma diversão, porém eu só quero esses dois mesmo, já tá bom, né? Já é um bom trabalho de
muita responsabilidade. Hoje eu percebo que talvez a gente precisasse de uma política voltada
para isso, construção de família, porque o que se vê hoje mundo a fora, em se tratando de interior,
pessoas tendo filhos a torto e a direita, por incentivo de um salário maternidade ou então para
um adolescente porque um cara prometeu uma moto ou um carro. Então no interior tem muito
isso, pessoas novas que não tem perspectivas, desafios, mas eu ainda acredito que hoje com o
país deveríamos ter um controle de natalidade, não ser livre para se ter filhos a vontade. Acredito
que precisaria desse controle, talvez ajudasse muito na organização nacional. ((comentários do
entrevistador)) Assim, eu gosto de falar. Eu não, sei, não tenho nenhuma palavra para classificar,
mas é uma pena que a gente não tem/espero que o vídeo do Prece seja bom para que pessoas
ouçam , fiquem ouvindo aí, a vontade, outras pessoas que não temos contato, Meu
questionamento com os meninos é: Poxa, vocês não querem saber de nada dos outros estudantes?
Eles não perguntam quase nada. Não é nem da gente. É sobre o curso, sobre a universidade. Eu
442
acho que a gente precisava ter rodas de conversas desse tipo em outros momentos, para
compartilhar. Porque a gente acaba não conhecendo a vida dos outros estudantes, dos amigos.
Eu digo até que minha história é dividida em duas fases, uma antes e uma depois do Prece. Tem
toda uma história depois do Prece, um outro mundo, uma outra coisa. Um broto nasce ali com
outra visão, com outra proposta, que é voltada para a educação. ((Mais comentários do
entrevistador perguntando se ele gostaria de fazer algum agradecimento)) Olha, Gláucia, eu,
assim, na verdade, prefiro não fazer, não porque eu não seja grato porque eu sou grato há muita
gente, porque para eu agradecer e esquecer alguém/porque eu sou grato desde quem me criticou,
porque eu conheço pessoas que me criticaram, me caluniaram, como dizem, e hoje tá pegando
na minha mão e dizendo: “Parabéns. Sua história é muito bonita”. E como o Andrade diz, se
me jogarem num rio não me procurem em água rasa, me procurem em água contra a corrente,
mas assim, eu adotei essa teoria. Eu não preciso provar para ninguém que não sou gay, eu não
preciso provar para ninguém que sou homem e eu não preciso provar para ninguém que posso
ou só para mim mesmo. Mas no fundo a gente acaba dizendo/você diz que não vai conseguir,
quer falar uma crítica mesmo e não assumindo. E a gente tem isso. [10’07’’]
[10’08’’]
Mas assim, a coisa ela é tão certa, eu era tão convicto que teve algum momento que as coisas
dariam certo. Teve algum momento que eu pensei em desistir? Nunca. Eu era tão rebelde, estava
tão obstinado. Uma vez eu estava conversando com o Andrade, vocês estão gravando mais não,
né? ((Risos)). Estava conversando com o Andrade, já tinha alguns anos, ele ainda estava lá e
ele estava desestimulado, cansado e estava perguntando como estava cada um, e eu: “Olha, se
você quiser acabar o Prece hoje e desistir pode ter certeza, eu daqui não volto, não tem mais
volta, eu não paro”. Então assim, eu sei o que eu quero hoje. Daí ele disse: “Que bom, era isso
que eu queria ouvir”. Porque se o Prece acabar, acaba a ação dele ali com o grupo, mas eu tenho
certeza que o grupo que estava lá, estava muito ciente do que queria e de onde ia chegar. Então,
eu digo isso e eu tenho certeza, e por alguns colegas, eu falo por eles, que a gente não para. A
gente vai chegar lá onde a gente está ( ). ((Comentário do entrevistador sobre o Claudinho) Tá,
Claudinho tá estudando ainda. Gláucia, o Cláudio, para mim, ele não precisa entrar, eu já disse
isso para ele, “você não precisa entrar, de jeito nenhum”. Mesmo até querendo poupá-lo do
sofrimento de estar na universidade. Eu gosto muito dele, admiro muito a atitude dele, a
capacidade dele. Ele é meu braço, minha perna, um monte de coisa. A escola é como se fosse
dele, a mãe fica reclamando porque ele dorme na escola, ele está morando na escola. Ele cuida,
ele briga, ele reclama, a escola é dele. Ele adotou, se identificou com a proposta do Prece, que
eu não sou dono de nada, estou aqui para lhe ajudar. Eu não tenho nada, o que é meu é seu
também. Ele adotou isso, ele já tinha essa característica. Então ele estava nessa proposta. Mas
como ele me disse: “Noberto, eu tenho certeza de que eu não preciso entrar na universidade
para ser o que eu sou, mas por questão de orgulho, hoje eu quero entrar”. Sei que algumas
pessoas não valorizam mais, mas aumentaria a autoestima entrar na universidade, mas como
ele diz que o que ele quer fazer, ele já sabe o que quer e o que precisa fazer. Ele não quer entrar
em universidade, não. Já falei para ele que tem um semi-presencial, tem uns cursos técnicos,
então se você quiser fazer, a gente vai lhe apoiar e eu estou aqui a sua disposição e ele sabe, ele
gosta muito da gente lá em casa, qualquer coisa ele liga ou então quando a gente chega lá a
gente conversa, coloca as coisas em ordem, contar as coisas dos bastidores que não são
divulgadas. Ele é o informante oficial, mas assim, ele não precisa, de jeito nenhum. Eu digo
isso com muita segurança, como eu já disse para ele ((comentários do entrevistador)). Ele é
muito prestativo, muito atencioso, muito fiel às crenças dele, ele é muito ((suspiro)). [13’47’’]
Vídeo 06
[0’00’’]
443
Como o Cláudio tinha concluído o ensino fundamental, né? Na Canafístula, e após toda a
reunião feita, a proposta. Então na semana a gente já providenciou o pagamento de algumas
contas e no final de semana seguinte eu cheguei em casa e ele disse que queria voltar a estudar.
Aí eu: “Beleza, agora eu posso lhe ajudar porque eu não tenho dinheiro e nem trabalho para lhe
dar, mas se você quer estudar ou qualquer um que queria, é o único bem que eu tenho que posso
contribuir”. O que eu fiz? Levei ele pro Cipó nos fins de semana, eu dava aula de matemática
do ensino fundamental, levava ele para a sala comigo.. Ele assistia aula, uma hora de aula e
depois eu só saía ou ficava com ele na sala. Eu mandava ele ir pro quadro, ele voltava.
Aconteceu um fato muito providencial na vida dele. Lá todo mundo chamava ele pelo nome,
todo mundo chamava ele, pedia ajuda e o Cláudio sempre gostou de ajudar. Ele começou a se
sentir importante ou começou a se sentir gente, coisa que ele não se sentia mais na Canafístula.
Eu lembro que uma vez eu estava saindo da Canafístula, no carro do Elizeu, pai do Elton, e um
cara gritou do outro lado da rua: “Claudinho, no Cipó não tem cachaça, tu vai fazer o que lá?”.
Ele fez de conta que não ouviu. O Cláudio começou a criar força, criar ânimo, voltou a estudar
devagarinho. De repente ele passa a morar no Cipó, pessoal chegava final de semana de
Pentecoste, os universitários chamava Claudinho pelo nome, os momentos de conversa, de
estudo. Então ele começou a achar um ambiente em que ele pudesse se recuperar, naquele dia
eu acho que o melhor remédio que ele precisava tomar, ele estava tomando naquele momento.
Então ele passou a morar no Cipó. E, como ele ainda bebia, menos do que ele bebia antes, lá
no Cipó não tinha bebida. E uma das festas de padroeiro lá das comunidades, da Capivara, junto
com os amigos que ele arranjou lá e deram dinheiro e pediram para ele comprar cachaça. No
final de semana seguinte, estava um bafafá forte, a dona Fransquinha veio falar comigo que ele
tinha bebido e que ele tinha pago a bebida para os meninos. Aí eu fui conversar com ele. Ele
disse: “Olha, eu não comprei porque eu não tinha dinheiro. Eles me deram o dinheiro, eu
comprei e bebi com os meninos. Toda vez que você precisar me chamar atenção, pode ficar a
vontade, acho que você está aqui para isso. Você tem esse direito. Eu vou tentar fazer com que
isso não aconteça mais. Essa foi a primeira e única vez.” Então com pouco tempo logo tinha
parado de beber, voltou a estudar, passou a trabalhar lá. Ele gosta de trabalhar, serviço braçal
mesmo. Ele estuda por conta própria, tocou a vida para frente sem a bebida. Ele vai para as
festas, vai com os adolescentes, a turma vai bebendo e ele vai com uma garrafinha de coca-cola,
vai e volta. Hoje ele está na canafístula, com o Prece lá e com essa filosofia e todo mundo gosta
dele, a comunidade passou a tratá-lo diferente. Eu acho que ele nem sonha em beber. Então
assim, essas direções que foram tomadas ao longo dos dez anos, doze, quinze anos que a gente
tem de estudo. Então, retornando a história de [19]93, [19]94, quando meu pai morre, desde o
início do Prece e todo o período conturbado, um barco sme direção, onde eu sempre dizia que
se eu cambaleasse, eu tive amigos que me dessem aa mão, digo que são minhas muletinhas. Na
Canafístula tinha o Olavo, final de semana tinha o Andrade. Então assim, a gente se dava bem,
ainda hoje o Olavo tem muito respeito pelo Andrade e vice-versa. A gente tinha ansiedade pelo
final de semana. E quando eu vou pro Cipó eu vou levanto toda aquela angústia, aquela mágoa
da Canafístula, eu tinha brigado, brigado não, porque eu nunca briguei, mas eu não estava
satisfeito com o time da Canafístula, jogava na Tamarina, então eu não jogava na Canafístula,
a única coisa que eu fazia era jogar bola e estava estudando lentamente. Eu tinha discutido, o
pessoal brigava muito e eu não concordava. Então eles disseram: Dê o seu jeito. Então eu saí
com o Olavo para jogar na Tamarina. [05’38’’]
[05’40’’]
Então quando eu saio, saio carregando tudo isso. O cara que eu tinha que era muito amigo, que
me dava força, apesar de pouca instrução, era o Olavo. Toda noite na época tinha jogo na Band
e a gente ia assistir. Ele gostava e eu também. Era eu e o Osvaldo na época, e ele lançava a
gente nos melhores time, fazia a propaganda. Todos esses acontecimentos me empurram para
444
essa oportunidade que está sendo jogada e eu não estou pegando. Essa onde de dificuldade me
joga para aquele ambiente. Passar o dia no Cipó era muito bom, porque chegar lá eu encontro
cinco amigos, de futebol, de vivência. Toinho, Francisco, Beto, Osmar, Du, a Raquel. Então eu
não conhecia só o pessoal do futebol, não era difícil eu estar ali, era bom e eu estou disposto a
enfrentar as dificuldades da vida. Só voltando atrás um pouco. Quando meu pai morreu, veio
um desespero muito grande, eu ia fazer vinte anos completamente dependente de pai e mãe. A
minha tristeza naquele momento, além da perda, era de dependência. Eu não ganho nada, eu
não sei fazer nada e se minha mãe morrer hoje, eu vou viver de que? Quem vai me sustentar?
A partir dali vem toda uma mudança de mente. Eu tenho que passar a olhar para mim como a
pessoa que vai ter que construir a minha sustentabilidade, vou ter que ter uma profissão, alguma
coisa. E essa mudança é muito drástica, não tem experiência, nem orientação. Nesse período eu
busquei, meus amigos mudaram de faixa etária, acho que pela perda do pai, eu mudei. Meus
amigos, a maioria são da terceira idade, porque eu vivia pedindo conselho, conversava com eles.
Cansei de sentar com o Andrade, horas e horas, contando problemas e ele sugerindo, dando
ideias. Seu Gilberto, Olavo, seu Brando, um monte de pessoas, pai de estudantes da minha
época que a gente conversava e me dava uma esperança: “Poxa, tu tem capacidade, vai lá”. Às
vezes nem tinham instrução, mas uma palavra motivava. Isso foi forte. Então assim, no Cipó,
quando eu venho morar e formar esse grupo, vem outras dificuldades, atribulações. Eram um
bando de preguiçosos, para os mais malvados, alguns gays. Na boca de algumas pessoa o
Toinho era gay, para a Canafístula, algumas pessoas eram gays, então o resto também é, né?
“Poxa, tem dois gays lá, então o resto também é”. Isso foi forte e o que fortaleceu no nosso
grupo de estudo, naquele momento. Porque a gente passava a tarde conversando, várias vezes
a gente sentava duas horas para estudar, quando dava quatro horas a gente não tinha estudado
quase nada, conversando. Com o passar do tempo a gente percebeu que aquelas horas de
conversa não eram perdidas, era onde fortalecia nosso grupo. Aqueles momentos a gente saia
fortalecido, ia pro racha, brigava lá, saia brigado mais o Du e voltava, essas dificuldades que a
gente tinha, resolvia no grupo e isso fortalece. [10’00’’]
[10’02’’]
Então assim, para mim tinha uma coisa que era muito difícil, era seis horas da tarde, batia uma
angústia grande, que era exatamente o horário que eu ia pro Olavo. Na semana não tinha Olavo,
Andrade, não tinha ninguém. Naquele horário me faltava alguma coisa. E aniversários, fazer ali
me dava uma tristeza, um desespero. E graças, as coisas foram melhorando. De repente, veio a
aprovação do Toinho. Pedagogia. Primeiro lugar. Tudo muda, a minha curiosidade aumenta e
as coisas vão melhorando. Eu quero tomar uma postura, fazer alguma coisa. Ainda foi
organizado o último campeonato, em [19]95, [19]96, a gente organizou juntamente com o
Andrade, tinha o Orismar que era o locutor, que saia com as caixas de som todos os jogos, mas
tinham alguns jogos que estavam muito perigosos, passou a fazer alguma coisa. Fui professor
de português, sei nem escrever direito. Tinha um pessoal que estava lá, acho que a Dayana era
minha aluna. De repente, fui professor de matemática, nós passamos a dar aula substituindo
professores da rede pública quando ia para Pentecoste para fazer feira. “Liga pro Noberto para
dar aula de matemática, liga pro Toinho para dar aula de história, de português. Então a gente
ia porque a gente tinha essa necessidade de mostrar que estávamos evoluindo, que estávamos
aprendendo alguma coisa. Existem os momentos da gente que é de tristeza, de fraqueza. Eu,
pelo menos, sou assim. Tem horas que eu acho que estou aprendendo tudo, mas de repente estou
me sentindo o pior cara, o que tem mais dificuldade de aprendizagem. Então a gente vive nesses
picos, altos e baixos. Quando eu tô no pico muito alto, ponho o pé no chão porque eu não sei
tudo e quando eu estou lá em baixo eu começo a arranjar uma estratégia, eu olho para quem
ficou na minha época, para quem não quis estudar, onde que ele está e onde que eu estou. Então
eu já caminhei muito, eu não sou o último biscoito do saco nem o último da fila, a fila ainda tá
445
grande. Então isso me fazia entrar em um equilíbrio. Eu usava muito as minhas viagens de Cipó
para Canafístula para sonhar. Sonhava, projetava, comentava com o Andrade: “Poxa, eu
imagino, mas chega um momento que eu não sou mais capaz de imaginar como será minha
vida. Eu sou capaz de imaginar hoje até entrar na universidade, até me formar. Imagino eu como
professor ganhando meu salário. Mas e agora? Eu vou fazer o quê?” Chega um momento que
dá uma angústia, que me fazia pensar um pouquinho mais, sobre depois que eu me formar, eu
sendo professor, se eu vou ganhar bem. O que eu vou fazer depois? Porque só para trabalhar,
ganhar e tirar ali em casa não é vida para mim. Eu quero fazer algo diferente, alguma coisa para
alguém que não seja só o profissional, né? O pessoal também. Então, veio em seguida a
aprovação do Francisco. Com a saída do Toinho, que era a nossa liderança, a gente começa a
caracterizar uma nova liderança, no caso, o Francisco e o Noberto. O Francisco era mais manso,
mais estudioso e o Noberto mais atividade, vai pro roçado. E aquilo não me incomodava, não
me fazia mal. E eu tinha aquilo ali com tem em um livro de história da alfabetização da semente:
a semente era doida pelo mundo lá fora e ela se desesperava porque não podia ver. Era uma
semente de uma laranja. Um dia a laranja secou, deu uma ventania, quebrou a laranja e a
semente saiu e viu o sol, mas em seguida, por causa da ventania, foi coberta por uma camada
de folha seca. Daí ela pensa “saí de uma laranja e agora vou para uma camada seca”, mas em
compensação eu vou frutificar e ver o sol e a lua todos os dias. [15’11’’]
[15’12’’]
Então eu imaginava que aquilo ali era passageiro. Eu não estou trabalhando para ser agricultor,
não que eu não quisesse ou valorizasse, mas eu estou estudando para se professor. Agricultura
era algo passageiro, era um ganho, uma forma de me mostrar que eu também posso trabalhar.
Há cada dia eu internalizava mais isso, eu não preciso enganar ninguém, dava trabalho puxar o
Orismar para ir pro roçado, mas eu até entendo. Eu não posso deixar de perder essa
oportunidade, eu não quero aparecer para ninguém, eu quero aparecer para mim mesmo, eu
quero provar que eu posso e que eu possa fazer uma atividade que seja honesta, que seja um
trabalho legal. Eu estava disposto ali, mas estava crente que minha vida não era aquilo ali. Eu
estou aqui de passagem. Quando eu vim em [19]92 treinar no Ceará, eu vim com o sentimento
de que eu voltava, eu não vim com o sentimento que ficava. Quando eu vim pro Cipó em [19]93,
eu não vim com o sentimento de que voltava, que de lá eu ia mais para a frente. Era um
sentimento que eu tinha, que dali eu não voltava. Eu não vou voltar para o fracasso. Eu vou
voltar para uma alternativa. No ano seguinte vem a minha aprovação. Foi aquela alegria que só
sabe, só sente, só classifica, se é que tem como, quem passa, quem sente ou quem sentiu naquela
circunstância, porque hoje é tão fácil passar no vestibular, é tão normal, mas naquela época era
muito diferente, muito difícil. Eu estava com o Andrade quando recebi o resultado. O Andrade
tava com o resultado que a Aninha não tinha passado e eu ali bem quietinho, doido para gritar,
sorrir, fazer qualquer coisa. Cheguei no Cipó, peguei a bicicletinha, corri para casa. Isso vai
dando outro norte na vida da gente porque são outras responsabilidades. Eu sou um cara muito
medroso, cauteloso, penso muito, ajo pouco. Acho que o medo faz você pensar muito no que
você vai fazer ou dizer. Então vindo para Fortaleza, universidade, residência. Eu confesso que
meu medo maior era a residência. Poxa, eu vou morar com gente de costumes diferentes, hábitos
diferentes. Eu já sou difícil, não sou fácil. Apesar de me achar um cara legal, eu sou difícil de
conviver, porque eu falo pouco, quase desisti da residência, primeiro semestre praticamente eu
não fui, aí o pessoal foi me dedurar na Pró-Reitoria. Eu estudava a noite e eu dormia na Igreja
Presbiteriana, no Centro de Fortaleza e durante o dia eu passava na residência, eles não me viam
porque a maioria do pessoal estudava durante o dia. E, resumindo, no final do semestre eu
quebro a perna jogando bola. Então, o Adriano Andrade tomou conta disso e fez minha
transferência para a residência dele, daí foi onde eu vim me encontrar. Eu morava na residência,
no mesmo quarto morava o Adriano Andrade, o Toinho, que foi o primeiro que tinha passado,
446
o Francisco, que foi o segundo que tinha passado e comigo, quatro. Aí, depois saiu o Toinho, e
chegou um carinha, ele era veterano, um carinha gente fina. Então, me dei super bem, morei até
completar os cinco anos de residência que eu tinha direito, e nunca tive problema de
alimentação, mas o meu medo era ir. Porque o curso em si, naquela altura do campeonato, eu
tenho certeza que ia ter dificuldade. O nosso máximo era o mínimo que a universidade exigia,
eu precisava me superar, trabalhar mais que os outros, estudar mais que os outros. Disso eu
tinha medo. Eu lembro de chegar numa aula e o professor dar aula de química de coisas que eu
nunca vi na vida, mas não é problema, eu vou lá no livro e vou ler. O curso todo eu fiz dessa
maneira. Aí, o futebol fica como? Futebol foi por muito tempo, no Prece, um meio de educar.
Nós tínhamos um time, participávamos do campeonato municipal de Pentecoste. Junto com o
Andrade, a gente liderava, organizava o time de crianças e eu sentia uma carga muito pesada.
Noberto não era uma pessoa agressiva em campo, nunca fui expulso de um jogo. Quando a
gente jogava nas comunidades, era o Prece que estava jogando. Então, qualquer atitude que a
gente tomasse, agressiva. Às vezes, eu escutava o pessoal falando: “ E é porque é precista, e é
porque mora com o Andrade, e é porque é evangélico”. Então assim, essas atitudes são muito
fortes. Às vezes eu digo assim: Se você quiser conhecer uma pessoa, o que ela é capaz de fazer,
jogue bola com ela. Porque você está jogando bola com o sangue fervendo, e o cara te xingando,
te batendo e você simplesmente tem que levantar e no mínimo ficar calado se você não quiser
revidar. Então, eu adotei isso para mim muito cedo, eu não quero brigar, o meu desafio é não
ser expulso, eu não agredi e eu me tornei um dos jogadores mais duros do time da Estudantina.
Eles me classificavam como o jogador mais pesado, mais duro, mas eu não era agressivo, não
batia, eu não revidava. E a gente jogava com isso, ficava o tempo todo: “Se acalma, respira
fundo”. Eu já vi colega meu levar mãozada na cara e eu ter que pegar o cara para não bater,
porque se eu tivesse no lugar dele eu também iria querer bater. O cara chorando de raiva porque
quer pegar o cara, mas não pode e não deve. Levar chute no umbigo e sair caladinho, não porque
eu tivesse medo, mas a comunidade toda estava ali vendo e você quer queira ou não queira,
jogador de futebol amador no interior, ele é um modelo. Os jovens, as crianças estão lá fora te
olhando. Eu internalizei isso muito cedo, então eu achava que educação não é somente dentro
da sala de aula, é o meu comportamento, as minhas atitudes. Eu tenho que defender uma
ideologia, mas no dia-a-dia eu tenho que praticar. Para algumas pessoas eu digo: “Ser cristão
ou ser uma pessoa boa dentro da igreja, é fácil demais porque vai todo mundo para a igreja
desarmado. Ninguém vai para lá para brigar, vai querendo conforto. Agora, quero que seja um
cristão bom lá fora da igreja. No meio do quente, onde está todo mundo lá te apontando, te
olhando, querendo te desafiar”. [23’54’’]
08/08/2011
1. Vídeo Cap0919_000(0002)
Meu nome é José Orismar da Silva Barroso, tenho 4 irmãos, sou o primogênito. Meu pai é
Francisco da Silva Barroso, minha mãe, Ana Maria da Silva Barroso. Meus avós paternos são
Luis Vieira da Silva e Josefa Vieira da Silva. Meus avós maternos são Celina Vieira e Felipe
Vieira. Minha descendência é de Parnaíba, uma comunidade que faz parte do município de
Pentecoste, distrito de Matias, e meus familiares são daquela região mesmo. Meus avós paternos
são de Itapipoca, tem todo um envolvimento com política, e meus avós maternos são da região
do Parnaíba e mexem mais com agricultura. Eu me desenvolvi naquela comunidade. Nasci em
447
1977 e foram momentos preciosos naquela comunidade. Na minha infância eu lembro de vários
momentos que vêm à minha mente quando eu paro para refletir. Lembro quando, juntamente
com meus irmãos e meus pais, naquela vida simples daquela comunidade tão bucólica, não
tinha televisão naquele período, a gente caminhava bastante, andava, brincava. Lembro demais
dos momentos em que nós nos reuníamos à noite no período chuvoso quando viam as safras e
a gente se reunia. Era mais comum na casa dos meus avós paternos. A gente tinha montes de
feijão e a gente debulhava esse feijão de forma manual. Era gostoso, eu lembro dessa cena
porque ali a gente ficava ouvindo as histórias deles de quando eles eram crianças. Eu lembro
que a gente andava naquelas veredas, minha mãe ia na frente, eu ia na frente dos meus irmãos
e meu pai era o último para nos protegermos. Lembro de alguns serviços básicos que eu fazia
junto com a minha família. Lembro de ir buscar água, eu era o mais velho e pai sempre me dava
essa função, e geralmente a gente ia buscar essa água ou no açude que tinha lá perto ou no leito
do rio Canindé. Lembro de uma infância que tinha essa coisa bastante positiva, que eu gostava
demais, que era curtição dessa coisa bem tranquila do início dos 80 na comunidade de
Pentecoste. Lembro das partes ruins também. Meu pai tinha uma bodega, foram um dos poucos
momentos fartos na minha vida, muito curto mesmo. Lembro isso porque parece que as coisas
boas que a gente recebe e fica na nossa mente. Eu não tinha mais do que 4 anos, eu pegava uma
bolacha doce e comia bastante. Depois meu pai desistiu, não tinha como continuar com a
bodega. Naquele período éramos eu, minha irmã e meu irmão, depois nasceram os outros 2, e
teve muita dificuldade, foi uma infância muito difícil. Eu trago muito na mente a lembrança da
alimentação, que era muito fraca mesmo. Lembro quantas vezes eu não comia o café com
farinha, quando tinha farinha, porque quando não tinha era só o café mesmo, era horrível.
Lembro de uma comida bastante rotineira que era o arroz com ovo. Utilizávamos picica, farinha
de gergelim, mandioca era mais difícil porque meu pai não tinha terreno e não tinha como fazer
o cultivo, a gente adquiria com o meu avô, era a famosa carimã. A gente vivia nessa luta, uma
luta de muita resistência, dificuldades. Lembro que eu, em busca de algo para a gente se
alimentar, utilizava baladeira pra caçar passarinho. Eu deixei essa prática cedo porque eu era
um jovem que me sentia muito incomodado quando eu matava os passarinhos, me dava uma
pena muito grande. Outra comida que a gente comia eram os carás, que ficavam nas taperas,
que são poças d’águas acumuladas durante o período chuvoso. Meu pai chegava às vezes com
um bornal e alguns carás. Quando nós tínhamos o cará era uma boa companhia para o arroz.
Em termos de alimentação a minha infância foi muito defasada, passei muita necessidade.
Feijão era coisa raríssima, porque durante os períodos de seca a gente não conseguia cultivar o
feijão para passar o período não chuvoso se alimentando. A única fonte de renda era o meu pai
e geralmente só dava para comprar o arroz, o açúcar e a farinha. É um momento triste que eu
lembro. Tinha um serviço do governo federal para as pessoas menos favorecidas durante a seca
que foi a construção de um açude, e às vezes eu tinha que ir fazer o serviço no lugar do meu pai
nessa construção porque ele saía para fazer outras coisas. No dia que o pai não podia ir, eu ia.
Fiz isso poucas vezes, graças a deus, mas isso foi horrível. Tinha que subir uma rampa com um
carrinho de mão e eu não tinha muita força, era um serviço muito ardoroso. Eu participei de
várias atividades da lida no interior, arrancar mato, toco, meu pai fazia empleita e eu ia com ele
para ajuda, sempre era eu porque eu era o mais velho. Foram momentos de muitas dificuldades.
Tinha que ir atrás de lenha às vezes. Nos intervalos tinha os meus amigos que eu ainda hoje
tenho na comunidade onde nasci. O futebol era coisa que eu mais desenvolvia. O que eu queria
relatar era a questão da minha escola. Lembro que comecei a estudar no início da década de 80,
fui alfabetizado no alpendre de um casarão. Lembro da minha ansiedade falando para o meu
pai comprar minha cartilha do ABC, que foi a única coisa que eu levava nos primeiros dias de
aula porque meu pai não tinha dinheiro para comprar os outros materiais. A minha primeira
professora, a tia Francisca, foi quem começou a me ensinar. Ela queria que eu comprasse minha
tabuada. Eu comecei lendo minha cartilha do ABC. Lembro que minha professora tinha uma
448
bodega e a gente dividia o lugar no alpendre com alguns clientes que chegavam para comprar
algumas coisas. Ela criava algumas cabras e, no período chuvoso, era uma dificuldade porque
elas não gostavam muito e invadiam o alpendre e ficava tudo cheio de urina, era o horrível o
mau cheiro. Às vezes quando não dava tempo de limpar o alpendre, a gente ia sentar debaixo
de um pé de juazeiro porque seria melhor sem o odor. Lembro que desenvolvi rápido a
alfabetização e comecei a pegar um certo gosto pela leitura. Uma coisa interessante é que nas
famílias dos meus avós maternos e paternos são totalmente analfabetos, a minoria dos meus
tios sabe ler, ninguém tem uma formação. No período da minha infância havia literatura de
cordel e eu desenvolvi minha leitura por gostar dessa literatura. Quando eu saí dessa escola que
era uma casa grande de tijolo e eu fui para uma escola que era só uma classe misturando as
pessoas de diferentes níveis. No segundo grau, comecei a estudar uma escola da minha
comunidade, com a professora Ricardina, uma pessoa memorável que me ajudou muito. Hoje
eu tenho a felicidade de agradecê-la, que mãe de um colega meu que é professor também. Essa
história nessa escola foi até o início dos anos 90, eu tinha uns 13 anos, porque só tinha até a
quarta série, da quinta em diante eu teria que procurar colégios fora da minha comunidade, e o
colégio mais próximo era na Providência, que ficava em torno de 6 léguas da minha casa.
Comecei a ir pra essa escola na bicicleta do meu pai com uma colega minha da região. Aí
começou a surgir dificuldades, eu tinha vergonha porque não tinha muita roupa pra ir pra escola.
Uma outra barreira era a questão da comida. Eu também não tinha caderno. Depois a bicicleta
quebrou, meu pai não tinha como consertar e eu tive que parar os meus estudos. Eu chorei, foi
um momento cortante para o meu coração. Depois, em 92, 93, eu me matriculei em outra escola
que tinha da quinta à oitava série, em Cacimbas. Era um ensino através da TV. Aí começaram
as mesmas dificuldades das outras vezes. Lembro que caminhava uma hora a pé até a escola,
às vezes pegava uma carona na ida e na volta. Às vezes ia para a escola sem comer nada.
Comecei a desenvolver amizade com a família da minha professora Irismar, e comecei a passar
dias a casa deles. Ela era uma pessoa muito acessível, me deixavam muito à vontade na questão
da alimentação. Às vezes eu ficava de meses na casa dessa minha professora. Eu agradeço
demais porque senão eu teria sucumbido mais uma vez nos meus estudos, porque meus pais
não tinham condições. Às vezes eu voltava chorando para casa. Eu fiz amizade com a
merendeira e às vezes ela me dava bruaca com café na volta para casa, às vezes me oferecia um
almoço. Eu recebi isso com muita gratidão porque eu entendia que eu precisava dos meus
estudos e que eu não podia me intimidar diante daquilo, e eu aceitava isso de muito bom grado
porque as dificuldades eram enormes e o meu sonho era continuar estudando. Meus pais e meus
tios diziam que eu já tinha aprendido a ler e já estava bom de parar, só que eu queria dar uma
sequência no meu estudo, eu pensava em terminar pelo menos o meu segundo grau.
2. Vídeo Cap0919_000(0004)
tinha 9 anos e gostava de política, lembro que fiz campanha para o Tasso Jereissati. Nas
brincadeiras de futebol eu narrava as partidas, entrevistar os meus amigos com um microfone
que eu tinha feito. Outra coisa que eu lembro é que os adultos da minha comunidade me
ajudavam, eu me sentia muito feliz e queria zelar por isso.
3. Vídeo Cap0919_000(0005)
Eu estava na sétima série, o ensino fundamental era só até o oitavo ano. Em 94 eu tinha muita
amizade com o Eudimar, o Du, que estudava na mesma escola que eu. Ele chegou e propôs que
eu fosse conhecer um projeto que havia se iniciado com estudantes no Cipó. Eu já conhecia o
Cipó porque eu já tinha ido lá algumas vezes fazer o curso de datilografia com o professor
Toinho. Depois o Du veio me falar que tinha iniciado um projeto educacional no Cipó com o
professor Andrade. Um dia nós vínhamos na estrada entre Capivara e o Cipó, e o Du fazia o
relato de como era essa experiência. Lembro da primeira noite que eu cheguei, estavam o
Toinho, o Du, o Beto, o Francisco estudando e eu me agreguei na turma. Eu gostei do debate
sobre história, daquele grupo compartilhando, conversando. O Toinho tinha conseguido uma
lâmpada fluorescente ligada numa bateria porque ainda não havia energia elétrica no Cipó.
4. Vídeo Cap0919_000(0007)
Eu comecei a gostar muito e comecei a entristecer porque eu não sabia como ia continuar lá.
Nos primeiros dias eu dormia numas cadeiras de escritório que era onde havia umas máquinas
de datilografia. As primeiras semanas foram dentro dessa realidade. Comecei a frequentar o
PRECE, mas tinha a questão de como eu iria terminar o primeiro grau. Como eu já fiquei no
PRECE direto, eu parei de ir para a escola convencional. Nós conversamos e o Andrade
começou a me dar umas orientações e eu fui fazer o supletivo em Pentecoste. Era uma coisa
muito difícil, eu fazia o trajeto na bicicleta do Francisco, meu colega do grupo que nós tínhamos
iniciado, e às vezes eu não tinha condições de merendar. Mais uma vez essas coisas começaram
a me perturbar. Nas primeiras provas do supletivo eu ia fazer a prova e voltava de bicicleta com
uma fome horrível. Eu falei isso algumas vezes para a dona Fransquinha, mãe do professor
Manoel Andrade, e ela começou a me dar o dinheiro da merenda. Eu tenho que considerar a
igreja na minha vida nesse momento, que me ajudou muito na questão espiritual, porque eu
lembro que ia orando na bicicleta pra deus me fortalecer. Terminei meu ensino fundamental
entre 94 e o início de 95. O PRECE já estava estabelecido, houve uma comunicação entre nós
que estudávamos lá e o Andrade, dona Fransquinha e senhor Arão, e eles passaram a nos ajudar
até em termos de alimentação. Meu pai e minha mãe foram embora para Barreira, e eu falei
para os meus pais que eu ia ficar estudando no PRECE. Foi uma decisão difícil porque eu sabia
que ia sofrer, mas entre o sofrimento e parar de estudar, eu decidi ficar no grupo. Eu não tinha
ninguém e me socorria com os meus amigos, que às vezes traziam comida de casa e eu fiquei
realmente dependente dos meus amigos em todas as situações, foi um momento muito difícil
pra mim.
5. Vídeo Cap0919_000(0008)
Algumas vezes faltou comida. Lembro de momentos em que eu comi farinha com açúcar. Comi
farinha com açúcar. Tinha uma casa velha que era acima da casa de fazer farinha e às vezes eu
ia me deitar lá meio-dia com muita fome. A gente não tinha geladeira porque não tinha energia,
e uma vez eu peguei um peixe velho e decidi fazer meu almoço como esse peixe. Os meninos
tinham saído pra levantar alguns recursos e eu fiquei sozinho porque eu não ia pra canto nenhum.
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Às vezes eu ia e às vezes não ia, porque eu estava meio triste, abatido. Peguei esse peixe velho,
ele estava meio esverdeado.
6. Vídeo Cap0919_000(0009)
Ele estava com um odor meio forte. Depois que eu peguei e joguei dentro de uma panela. Não
tinha tempero, a única coisa que tinha era colorau. Botei ele pra cozinhar dentro da água, quando
via que estava com uma cor meio assim, despejei a água e botei outra. Ainda continuava com
odor forte. Na quarta vez eu pensei “agora vou fazer o meu pão aqui”.
7. Vídeo Cap0919_000(0010)
Dentro da farinha o bicho não ficou muito gostoso, porque era só colorau, estava meio salgado.
Nesse dia eu comi esse peixe. Eu tinha muita vergonha, eu não falava com meu pai, nesse
momento meus pais moravam longe. Quando eles perguntavam como era minha vida lá, eu
omitia essas verdades, não gostava de contar porque era algo que me fazia muita vergonha. Aí
começou a aparecer dúvida na minha mente, de como eu ia continuar resistindo a tudo isso,
porque era muito sofrimento. Quanto a alimentação, essa cena do peixe esverdeado foi
fortíssima.
8. Vídeo Cap0919_001(0000)
Naquele momento, como eu já tinha terminado o ensino fundamental, eu fiz minha inscrição
no ensino médio, e naquele período nós não tínhamos como fazer a prova do supletivo lá no
próprio PRECE, não havia essa possibilidade, então nós tínhamos que fazer em Fortaleza. Foi
assim com todos os meus colegas, todos fizeram o ensino médio em um supletivo em Fortaleza.
Nós vínhamos com o Andrade, era ele e sua família que providenciava tudo, nós ficávamos no
apartamento dele, fazíamos as provas e depois voltávamos para o Cipó. Minha experiência do
ensino médio foi basicamente isso. Enquanto uns estavam estudando para o ensino médio,
outros estudavam para o vestibular, no caso o Toinho, que já tinha o ensino médio. Ele fez o
vestibular e foi o primeiro que passou. Isso ia nos fortalecendo como grupo, na certeza de que
nós iríamos vencer. No meu ensino médio eu precisava de dinheiro e eu comecei um
empreendimento. Eu puxava quadrilha, uma época eu narrei a quadrilha numa escola que eu
estudei nas Cacimbas e ganhei 18 reais. Eu reservei 10 reais, fui na casa dos meus pais em
Barreira já certo de que quando eu voltasse para o Cipó eu iria começar alguma coisa pra eu ter
alguma fonte de renda. Quando eu voltei ao Cipó, montei uma caixa, fui para Pentecoste com
o senhor Arão e a dona Fransquinha, comprei alguns pacotes de bombons. Lembro que era
época de eleição e estava tendo comício. Eu saí da minha zona de conforto e fui. Fui meio
receoso, mas fui. Enchi os departamentos da minha venda, botei uma cinta e fui. Cheguei lá e
tive ótimas vendas, apurei 15 reais nessa noite e ainda ficou um bocado de bombom na casa de
fazer farinha. Fiquei superfeliz e comecei outro momento. Eu estudava e comecei a aumentar
minhas vendas, comecei a comprar rapadura, bolacha e o comércio começou a crescer. Depois
eu estava abastecendo a comunidade inteira, vendendo todo tipo de cereais. Eu já estava
vendendo fiado para o mês, chegava no final do mês eu ficava orando a deus que os mesmos
voltassem para me pagar porque senão eu quebraria. Eu chegava a vender 600, 700 reais, era
uma boa grana para a época. Eu ia reservando algum dinheiro, lembro que tirei um tijolo e era
ali que eu reservava as poupanças, ninguém sabia do segredo desse fundo fácil. Foi muito bom
porque eu comecei a ter minhas atividades, uma certa independência financeira. Eu comprava
minhas coisinhas, sabonete, xampu, passagens. Isso foi maravilhoso, só que isso me atrapalhou
em alguns momentos porque o comércio me tirou tempo demais. Muitas vezes eu deixava de
451
estudar para ir vender ou fazer compras. Nesse período já havia chegado energia elétrica, aí eu
comprei uma geladeira, um som, uma tv, e foram coisas que me tiraram tempo. Atrasei demais
meus estudos por causa disso.
9. Vídeo Cap0919_001(0001)
Tomei essa atitude meio radical. Comecei a recolher as finanças, os fiados, tentando evitar
vender fiado para as pessoas com medo de receber um calote. Afinal de contas eu recebi, mas
algumas pessoas ficaram me devendo.
Fui meio receoso, mas fui. Enchi os departamentos da minha venda, botei uma cinta e fui.
Cheguei lá e tive ótimas vendas, apurei 15 reais nessa noite e ainda ficou um bocado de bombom
na casa de fazer farinha. Fiquei superfeliz e comecei outro momento. Eu estudava e comecei a
aumentar minhas vendas, comecei a comprar rapadura, bolacha e o comércio começou a crescer.
Depois eu estava abastecendo a comunidade inteira, vendendo todo tipo de cereais. Eu já estava
vendendo fiado para o mês, chegava no final do mês eu ficava orando a deus que os mesmos
voltassem para me pagar porque senão eu quebraria. Eu chegava a vender 600, 700 reais, era
uma boa grana para a época. Eu ia reservando algum dinheiro, lembro que tirei um tijolo e era
ali que eu reservava as poupanças, ninguém sabia do segredo desse fundo fácil. Foi muito bom
porque eu comecei a ter minhas atividades, uma certa independência financeira.
Em 95, o PRECE já funcionando a pleno vapor, nós estudávamos já com um grupo formado,
eram meus irmãos. Desenvolvemos as atividades diariamente dentro daquela casa de fazer
farinha. Pra você ter uma ideia, eram vários tanques próprios pra fazer farinha, tinha o forno
onde torrar farinha, algumas máquinas. Nós sentávamos muitas vezes naqueles tanques, às
vezes nos reuníamos numa parte que parecia um salão, ficávamos nas cadeiras e estudávamos,
desenvolvendo nossas atividades. Aqueles que tinham mais habilidade para ensinar algumas
matérias, eles iam ensinando. Alguns conheciam mais de matemática, português, história,
biologia, geografia. Na maioria das vezes os meninos iniciavam os debates daqueles assuntos.
Nós estávamos cheios de esperança. Esperança era o que não faltava. Os apoios começavam a
chegar, as circunstâncias começaram a melhorar. Ali a gente tinha nossos momentos de diversão,
conhecíamos uns aos outros muito bem. Durante a tarde a gente ia para a quadra perto da casa
de fazer farinha, adaptamos e transformamos em quadra de jogar futebol. A gente discutia, mas
nunca brigou. Tinha o Francisco que era mais agitado e violento e o povo ficava com medo.
Serviu demais aquele espaço para a gente crescer como amigos, irmãos, companheiros da
equipe. Ali a gente dividia todas as atividades, as discussões, os debates fortes, como em
qualquer ajuntamento de pessoas sempre tem esses probleminhas, essas discussões. Isso
aconteceu algumas vezes, mas aconteceu de forma que nós entendíamos que precisávamos
resolver aquele problema entre nós mesmos. Quando a coisa pegava, sempre tinha um que
conciliava. Discutia algumas vezes com o Francisco, com o Norberto. O Norberto era um cara
que tinha alguns problemas, mas foi um amigo que no desenvolver a gente foi fortalecendo a
amizade e ele também foi melhorando e hoje ele é bem-sucedido nessa luta. Todos nós somos
grandes amigos, essa primeira célula tem uma força em termos de amizade. A gente sempre se
encontra, conversa, liga para o outro. Houve um acordo entre o professor Manoel Andrade e o
senhor Arão e a dona Fransquinha em termos de alimentação, a partir daquele momento seria
cedido alimentação e a gente trabalharia meio expediente. O senhor Arão passaria a ser o chefão
452
dessa questão. O Andrade ajudava, a igreja ajudou bastante porque ela dava uma parcela dessa
alimentação. Fizemos várias atividades, fui plantar capim com o senhor Arão e outras atividades
que ele precisasse. Era meio expediente, a luta era difícil. Melhorou consideravelmente, tinha
esse serviço, mas a alimentação foi tudo de bom, porque todo dia a gente tinha a merenda
reforçada, muitas vezes cuscuz com leite, café, bolacha, muita fartura. Isso era só de segunda a
sexta-feira. Depois entrou o Narcélio no projeto, eu fiz muita amizade com ele e comecei a ir
para a casa dele nos finais de semana e comecei a construir uma outra família nesse sentido.
Naquele momento, como eu já tinha terminado o ensino fundamental, eu fiz minha inscrição
no ensino médio, e naquele período nós não tínhamos como fazer a prova do supletivo lá no
próprio PRECE, não havia essa possibilidade, então nós tínhamos que fazer em Fortaleza. Foi
assim com todos os meus colegas, todos fizeram o ensino médio em um supletivo em Fortaleza.
Nós vínhamos com o Andrade, era ele e sua família que providenciava tudo, nós ficávamos no
apartamento dele, fazíamos as provas e depois voltávamos para o Cipó. Minha experiência do
ensino médio foi basicamente isso. Enquanto uns estavam estudando para o ensino médio,
outros estudavam para o vestibular, no caso o Toinho, que já tinha o ensino médio. Ele fez o
vestibular e foi o primeiro que passou. Isso ia nos fortalecendo como grupo, na certeza de que
nós iríamos vencer. No meu ensino médio eu precisava de dinheiro e eu comecei um
empreendimento. Eu puxava quadrilha, uma época eu narrei a quadrilha numa escola que eu
estudei nas Cacimbas e ganhei 18 reais. Eu reservei 10 reais, fui na casa dos meus pais em
Barreira já certo de que quando eu voltasse para o Cipó eu iria começar alguma coisa pra eu ter
alguma fonte de renda. Quando eu voltei ao Cipó, montei uma caixa, fui para Pentecoste com
o senhor Arão e a dona Fransquinha, comprei alguns pacotes de bombons. Lembro que era
época de eleição e estava tendo comício. Eu saí da minha zona de conforto e fui. Fui meio
receoso, mas fui. Enchi os departamentos da minha venda, botei uma cinta e fui. Cheguei lá e
tive ótimas vendas, apurei 15 reais nessa noite e ainda ficou um bocado de bombom na casa de
fazer farinha. Fiquei superfeliz e comecei outro momento. Eu estudava e comecei a aumentar
minhas vendas, comecei a comprar rapadura, bolacha e o comércio começou a crescer. Depois
eu estava abastecendo a comunidade inteira, vendendo todo tipo de cereais. Eu já estava
vendendo fiado para o mês, chegava no final do mês eu ficava orando a deus que os mesmos
voltassem para me pagar porque senão eu quebraria. Eu chegava a vender 600, 700 reais, era
uma boa grana para a época. Eu ia reservando algum dinheiro, lembro que tirei um tijolo e era
ali que eu reservava as poupanças, ninguém sabia do segredo desse fundo fácil. Foi muito bom
porque eu comecei a ter minhas atividades, uma certa independência financeira. Eu comprava
minhas coisinhas, sabonete, xampu, passagens. Isso foi maravilhoso, só que isso me atrapalhou
em alguns momentos porque o comércio me tirou tempo demais. Muitas vezes eu deixava de
estudar para ir vender ou fazer compras. Nesse período já havia chegado energia elétrica, aí eu
comprei uma geladeira, um som, uma tv, e foram coisas que me tiraram tempo. Atrasei demais
meus estudos por causa disso. Meus colegas foram terminando o ensino médio, e às vezes eu
ficava de mês sem vir em Fortaleza pra fazer a prova porque eu não tinha estudado, eu estava
muito empolgado porque eu estava ganhando dinheiro. O Andrade me aconselhando, e eu
resistindo à ideia. O tempo foi passando e quando foi em 99, decidi q ia acabar com o comércio.
Comecei a recolher os fiados com medo de receber um calote. Em fevereiro de 99, já estavam
morando na Igreja Presbiteriana do Centro o Genival e o Narcélio, foram eles dois que me
ajudaram bastante. Eu não podia ajudar muito porque não trabalhava. Eu reservei um dinheiro
e fui gastando aos poucos. Surgiu a possibilidade de os meninos irem morar na Igreja, e serviu
até de base naquele primeiro momento para o PRECE, porque a gente não tinha um espaço tão
grande. Depois que eles vieram, ampliaram as possibilidades. Depois que os meninos passaram
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no vestibular, eu assumi o cargo deles e fazia a zeladoria na igreja. Comecei a ganhar um salário
que eu dividia com o Jairan. Fiz o vestibular uma vez para Pedagogia e não fui aprovado, fiquei
nos classificáveis. Na segunda tentativa, perdi a prova. Quando foi em 2001, terminei o ensino
médio no supletivo. Eu comecei a pensar em fazer Teologia e decidi fazer. Terminei o curso no
Seminário Teológico De Fortaleza e hoje estou pegando só validação, estou fazendo um
seminário na Faculdade Católica. Quando eu terminei o seminário, tinha a perspectiva de
trabalhar na igreja, só que ao terminar houveram mudanças de perspectiva. Eu não me sentia
no momento maduro e responsável suficiente de assumir como pastor de uma igreja. Foi muito
difícil pra mim porque eu estava casado, tinha a família da minha esposa que não entendia o
porquê disso, mas foi uma questão ideológica da minha parte. Minha esposa também ficou meio
receosa num primeiro momento, não entendia. Eu ui desenvolver atividade numa outra coisa
que não tinha nada a ver com o curso, fui trabalhar numa empresa administradora de
condomínios. Eu trabalhei ali muito mais porque eu não tinha como ficar desempregado, fiquei
uns 2 ou 3 anos nessa empresa. O questionamento de todo mundo era por que eu era formado
em Teologia e trabalhava numa coisa que não tinha nada a ver comigo, mas eu simplesmente
tinha seguido o intuito do meu coração. Realmente eu posso retomar essa coisa a qualquer
momento, eu não descartei, eu só não me sinto no momento certo até hoje, não sei por que mas
surgiu isso na minha mente, eu não tinha maturidade suficiente pra ser pastor. Eu acho que em
algum momento essa ideia vai retornar, e eu vou aceitar isso com muita prontidão. Eu
desenvolvi algumas atividades na igreja, ponto de pregação, mas não de forma oficial, fiz com
os meus conhecimentos, mas de forma voluntária, porque nunca recebi nada pelos serviços que
prestei na igreja. Trabalhei mais de 4 anos numa comunidade no Pici, fiz lá uns grupos e a gente
se reunia pra falar das dificuldades e refletir. Hoje eu tenho perspectiva. Eu nunca perdi meu
vínculo com o PRECE, mesmo eu trabalhando numa empresa que não tinha nada a ver com o
PRECE, mas eu sempre mantinha contato através dos e-mails, dos blogs, eu sempre procurava
me alimentar do que estava acontecendo na dinâmica do PRECE. E o meu contato com o
professor Manoel Andrade, uma pessoa que eu tenho uma consideração enorme porque ele
sempre reforçava a ideia do meu retorno quando me encontrava, e eu também tinha esse desejo,
mas estava faltado mais entusiasmo da minha parte. No final de 2010 eu falei pra ele que iria
me envolver com as atividades do PRECE. De fato, eu voltei mesmo, hoje estou desenvolvendo
um trabalho com um pessoal do grupo que está desenvolvendo um trabalho pra Secretaria de
Educação do Estado. Estou participando de um projeto maravilhoso que é fazer a construção
do memorial do PRECE, eu quero compartilhar, quero fazer parte desse momento, pra mim é
uma questão de honra. Eu acho que esse trabalho é fantástico, brilhante, e fazer parte dessa
história é tudo o que quero, porque afinal de contas o PRECE é dinâmico em todos os sentidos,
ele trabalha em todas as frentes e todas frentes de trabalho do PRECE tem uma história bonita
por trás, tem algo a ser contado, e o memorial não é diferente. Com toda certeza vai ser algo
que vai ajudar muito, não só a história do PRECE, mas as demais pessoas que irão nos visitar,
que vai servir de embasamento ideológico pra alguma coisa, que vai estudar essa história. É
riquíssimo esse momento de construção do memorial. Eu tenho outras perspectivas ainda, é
incrível esse meu sentimento. Estou envolvido agora com o PRECE, mas penso em desenvolver
outras atividades, de empreender em alguma outra situação dentro do PRECE, porque eu acho
que vão surgir outras oportunidades, e essa é a minha perspectiva de futuro dentro do PRECE.
Eu não quero mais sair do PRECE, aliás, eu nunca saí, mas eu não quero perder esse link de
forma ativa dentro do PRECE, eu penso em desenvolver outras atividades também. Eu queria
falar um pouco da minha vida sentimental. Desde a minha infância, alguns pontos traumáticos
surgiram na minha vida, alguns bloqueios. Quando eu fui chegando na minha adolescência, eu
tive um problema muito sério de acne, quando eu cheguei no PRECE estava muito forte. Isso
pra um jovem é muito difícil, eu enfrentei isso com muita dificuldade, não vou negar. Foi uma
crise crônica, e eu não tinha a mínima possibilidade de cuidar dessa questão dermatológica, era
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muito caro e eu não tinha. Eu não tive namorada até os 18 anos, era uma barreira realmente. Eu
gostei de duas meninas desde 93 até a minha história no PRECE. Eu gostei de uma menina,
depois gostei de uma menina que fazia parte do PRECE, esse eu cheguei a mencionar o
sentimento, não foi um sentimento platônico, não deu certo, ficou naquela coisa do vamos
esperar, mas acabou não dando muito certo. Eu tive muita dificuldade em relação a isso, muitos
bloqueios mesmo, não vou negar. Depois que eu já estava em Fortaleza, conheci a minha esposa
atual, o nome dela é Cleide. Eu a conheci numa palestra que ela foi dar pra gente lá no Cipó
sobre a dengue. Havia alguns contrastes de realidade. Eu morava na igreja, de uma certa forma
eu era um estudante zelador da igreja. Ela já era uma pessoa formada, em processo de mestrado,
uma pessoa com diferença de idade maior do que eu, já tinha sua vida totalmente independente,
enfermeira concursada do estado. Eu comecei a gostar dela, só que eu tinha que enfrentar essa
situação. Não sei como a minha autoestima foi tão boa nesse sentido. E assim eu fiz. Nós
começamos a namorar, nos casamos, hoje nós temos três filhos, o João Pedro, a Nicole e a
Dafne. A gente rompeu alguns modelos de estrutura de sociedade que não foi muito fácil nem
pra ela nem pra mim, mas tivemos essa coragem de enfrentamento. Nosso casamento tem sido
uma bênção, algo maravilhoso. A gente sonha junto, analisa as coisas juntos, compartilhamos
as coisas, ela me apoia demais. Temos uma vivência muito boa, eu diria que nós somos um
casal de muita maturidade, porque apesar de tudo o que aconteceu ela me dá apoio. Quando eu
disse que não enfrentar a questão de ser pastor, ela simplesmente deu apoio para que eu fosse
fazer um serviço que não tinha nada a ver com a minha área, mas ela me apoiou.
Eu tive sentimentos por duas pessoas, de 90 até 94, foram paixões duradouras. Antes dessa
primeira, tinha uma prima que gostava muito de mim, mas eu não tinha muito interesse por ela.
Eu era muito fiel aos meus sentimentos, eu não tinha nenhuma motivação só porque ela estava
gostando de mim. A partir de 2004 foi uma menina de dentro do PRECE. Eu sofri muito com
esse sentimento. Surgiram outras oportunidades, só que, pra mim, isso gerava um certo conflito
porque eu tinha a paixão mas não acontecia, e as meninas que gostava de mim eu também não
queria por uma questão de fidelidade de sentimento, eu queria mostrar pra pessoa que eu
gostava era dela. O que me angustiava era porque o tempo ia passando, eu cheguei aos 23 anos
e eu sentia vergonha porque eu não namorava. Minha esposa foi minha primeira namorada de
forma efetiva, eu não havia namorado antes. Meu primeiro beijo foi com ela. Tudo pra mim era
descoberta, porque eu tinha 25 anos. Eu nunca falei isso pra ninguém. Não muitas aventuras
amorosas, tive sentimentos, paixões duradouras, mas não aconteceu nada. Eu não tinha coragem,
tinha medo de receber um não. Um dia depois do culto eu fui falar com ela e dei um beijo na
boca dela, um selinho.
Foi algo que aconteceu corajosamente, não sei onde encontrei essa coragem. Depois disso foi
namoro, eu fiquei todo empolgado e feliz porque tinha dado certo. O namoro evoluiu, a gente
noivou, depois fui conhecer a família dela, foi muito interessante. Por ser meu primeiro namoro,
eu consegui me fortalecer muito nesse momento na questão da autoconfiança. Eu acho que não
adquiri isso do nada, foi dentro da minha vivência dentro do PRECE, de resistência. O problema
com a acne foi muito difícil porque eu não conseguia olhar olho no olho das pessoas, mas eu
resistia em não ser assim. Tudo isso me atrasou em algumas situações, principalmente em
termos de estudo. Na questão do meu casamento com ela eu tenho que levar em consideração
esse monte de situações culturais que nos contrariavam em várias situações. Não foi fácil pra
mim, pra ela nem pra família dela. Mas eu tinha que mostrar quem eu era, posso não ter recursos,
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mas posso dar amor e sustento pra ela. Graças a deus não temos muitas cobranças. Uma coisa
que eu penso em realizar é desenvolver algo na área de comunicação, porque eu gosto muito.
Eu gostaria de finalizar esse momento do memorial dizendo que hoje eu valorizo muito as
minhas conquistas. Eu não valorizo medindo pela régua convencional da titularidade, não tenho
doutorado, mas eu valorizo demais essas conquistas, porque eu acho que tenho que respeitar
todas as minhas limitações, por isso eu digo que sou um cara vitorioso. Eu conquistei muitas
coisas, sou realizado, sou feliz por isso.