O Pequeno Restaurante Da Felici - Ito Ogawa
O Pequeno Restaurante Da Felici - Ito Ogawa
O Pequeno Restaurante Da Felici - Ito Ogawa
Edição original publicada no Japão em 2008 por POPLAR Publishing Co., Ltd.
Edição revista publicada no Japão em 2010 por POPLAR Publishing Co., Ltd.
Edição portuguesa publicada por acordo com POPLAR Publishing Co., Ltd., e le Bureau des Copyrights Français, Tokyo
EDITORIAL PRESENÇA
Queluz de Baixo
2730-132 Barcarena
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www.presenca.pt
No regresso a casa do meu part-time no restaurante turco, deparei com o interior
da minha casa vazia. Tal qual a carapaça oca de um animal. Desde a televisão à
máquina de lavar roupa e até às luzes do teto, cortinas e tapete da entrada, tudo
desaparecera.
Por momentos, pensei que me tinha enganado na porta. Contudo, por mais
que verificasse, era realmente o ninho de amor em que vivia com o meu
formato de coração.
O interior estava igual ao dia em que a casa nos fora apresentada pelo agente
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especiarias garam masala e a chave dupla do meu namorado, que brilhava no
neste quarto que tínhamos conseguido alugar com muito esforço. A pele dele
postais do rio Ganges. Apesar de não conseguir ler nada em hindi, às vezes, só
passar o dedo por cima dos caracteres das cartas vindas da Índia enchia-me de
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Estes sonhos encantavam-me como um lassi de manga. Aquele quarto estava
vivemos juntos.
casa. Nos dias em que o meu turno acabava cedo, a felicidade de cozinhar ao
entardecer, envolvida pelo sol poente, era algo incomparável. Não era uma casa
cozinha tinha uma janela, o que era vantajoso, pois assim, quando grelhava
familiarizado.
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O almofariz e o pilão da época Meiji que herdara orgulhosamente da minha
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comprar com o meu primeiro salário; os moritsukehashi de ponta fina que
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restaurante biológico; o avental de linho confortável; o tarajari indispensável
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para cozinhar jazuke de beringela; até a frigideira de ferro que fui comprar de
Ainda que a mobília fosse pouca, a cozinha, pelo menos, era rica em utensílios
Para me certificar, vasculhei o interior das gavetas da cozinha, uma por uma.
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ar. Até mesmo o meu querido frasco de umeboshi , que tinha cuidadosamente
preparado com a minha avó há alguns anos, escolhendo as ameixas uma por
desaparecido.
O primeiro e único prato fermentado japonês que ele conseguia comer era o
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meu nukazuke . Ele comia apenas isso, sem exceção, todos os dias. Se não for
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feito com o nukadoko que a minha avó me deixou, o sabor não é o mesmo. Por
isso, guardava o frasco ao lado da porta de entrada, num local pequeno com a
Por favor, por tudo o que é sagrado, que pelo menos o nukado não tenha sido levado.
conservado, que tinha descascado com a ajuda de dez cortes feitos junto à raiz,
Graças a Deus que está são e salvo. Inconscientemente, agarrei com ambas as
mãos o frasco gélido e, levando-o ao peito, abracei-o. Este nukado é tudo o que me
resta.
Volto a tapá-lo com a tampa e levo-o só com uma mão para dentro, apesar de
ser pesado. Apanho as chaves com os dedos dos pés e, com a outra mão, pego
A porta fechou-se com um baque tão violento, que era como se tivesse sido
fechada eternamente.
não entornar o nukado, passo a passo, devagarinho, desço até ao exterior. A lua
Ofereci apenas umas madalenas artesanais ao senhorio, que nos tinha deixado
alugar esta casa sem fiador; o nosso ninho de amor. Agora, já não havia volta a
dar.
era fim do mês, já tinha pagado a próxima renda há uns dias. Se não me engano,
antes de mudar de casa, uma pessoa tem de avisar o senhorio com um mês de
antecedência, pelo que suponho que não haja problema. De qualquer das
mudado.
Lá fora, está completamente escuro. Uma vez que não tenho relógio nem
compra do bilhete para o autocarro noturno com rumo à minha terra natal, na
qual não punha os pés desde a primavera dos meus quinze anos, altura em que
nukado e o cesto.
Desde que saí de casa com quinze anos, não tinha voltado uma única vez.
A casa da minha mãe ficava no meio das montanhas, numa aldeia pacata,
«Feliz Ano Novo». Alguns anos após ter saído de casa, numa fotografia a cores,
enviada com um desses postais, via-se uma porca trajada com um vestido
chique, aconchegada às saias da minha mãe, que usava uma vestimenta parecida
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com as dos membros de uma Chindon’ya .
Eu, que outrora partira para a grande cidade, regressava então à casa da minha
avó.
A minha avó veio receber-me com um sorriso gentil, saindo da cozinha e indo
até à entrada. Quando digo avó, refiro-me à materna. Ela vivia numa vivenda
das mudanças sazonais. Era uma pessoa que tinha um jeito especial para as
palavras, assim como para as pessoas, e, não obstante, um forte carácter; as
na autoestrada.
O cabelo, que não tinha cortado uma única vez desde que começara a
chegavam ao meio das costas. Isto porque o meu namorado dizia que gostava de
escuridão, num ímpeto, abri a boca o mais que pude. Como uma baleia-jubarte
monocromática.
autocarro que a criança que sonhava com as luzes da grande cidade tinha
repleto de gotas.
Desde quando é que decidi tornar-me uma chefe profissional de cozinha? Para mim,
que me tornei por fim capaz de socializar normalmente, fazer a minha vida
normalmente, falar e rir normalmente, a minha avó deu o seu último suspiro,
em silêncio absoluto.
restaurante turco, junto à mesa de chá pequena e redonda decorada com vários
Encostei os ouvidos ao seu peito magro, mas não havia sinais de qualquer
som, e, levando a palma da mão à sua boca e ao nariz, não senti qualquer sopro.
Nem me passou pela cabeça que ela voltaria à vida. Sem contactar ninguém,
decidi calmamente passar pelo menos uma noite junto a ela, só nós as duas.
Aos poucos, o seu corpo ia ficando gelado. Passei a noite toda a comer dónutes
a seu lado. Penso que nunca esquecerei o sabor acolhedor da massa com
sésamo, os dias ensolarados que tinha passado com a minha avó vinham-me à
As suas mãos brancas com as veias salientes a mexer o frasco do nukado; as suas
a à boca, provando.
cabeça.
E foi durante esses dias em que estava em baixo que conheci o meu namorado
indiano.
Era uma pessoa gentil, de estatura alta e com uns belos olhos, um pouco mais
novo do que eu, e conseguia falar um pouco de japonês. Só de ver o seu sorriso e
sentimento de perda por a minha avó já não estar neste mundo comigo.
na minha cabeça de modo extraordinário. Por alguma razão, quando via o meu
namorado de pele escura e típicas feições indianas a comer caril de feijão ou
vegetais, por detrás dele estendia-se uma paisagem turca de um cristalino mar
Certamente que é o sítio onde nos conhecemos que está a criar este cenário.
No fim de contas, este part-time acabou por ser aquele em que me mantive
mãos cheias, ocupada a sobreviver mais um dia, tanto física como mentalmente.
Todavia, se olhar para trás, esses dias foram como um milagre e eu não os
um azul límpido.
instante. Apenas tinha vestida uma saia até ao joelho, colãs e uma camisa, pelo
A paisagem não tinha mudado; era como se tivesse saído de casa ontem. Só os
tons estavam desvanecidos, como se uma pintura a lápis de cor tivesse sido
entrei numa loja de conveniência que havia perto e, com o dinheiro que me
Escrevi em cada página palavras que iriam ser-me úteis no dia a dia, numa
Como está?
Muito obrigada.
Prazer em conhecê-lo/a.
Por favor.
Desculpe.
Faça favor.
Quanto custa?
em que abri a porta de casa que fiquei sem palavras! Isso deve-se ao estado de
No entanto, isso não queria dizer que tivesse ficado completamente muda.
Apenas a minha voz se tinha desligado inteiramente do meu sistema. Era como
Fiquei um pouco espantada, mas não estava triste. Não era doloroso nem
angustiante. Pelo contrário, apenas me sentia mais leve. Além disso, não tinha
Não obstante, estou ciente de que, após vinte e cinco anos vividos, é
que apanhei prossegue a uma velocidade muito lenta. Assim que a manhã
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onigiri que tinha sobrado do almoço da véspera e tirei-o do cesto, que
continha apenas uma carteira com uns trocos, um lenço de bolso e lenços de
papel.
funcionários.
projeto poderia ter sido em vão, era como se a mente ficasse inundada de tinta
branca.
O dinheiro para abrir o restaurante não estava num banco, mas sim guardado
dentro do armário, entre dois colchões que normalmente não usávamos. Esse
envelope de um milhão de ienes que juntei aos poucos, vivendo que nem uma
miserável, não era apenas um. Assim que me lembrei disso, a minha cabeça
um sabor distante. Era, de facto, o último umeboshi que tinha feito com a minha
avó.
Para não ficar com bolor, vigiávamo-lo por turnos à noite. Na altura do
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doyouboshi , durante três dias, espalhávamos as ameixas no alpendre e
acidez por todo o meu corpo. Esta ameixa, para mim, tinha o mesmo valor que
uma joia secreta. Os dias que passei com a minha avó enchiam-me o coração.
juntar a ela e aprendi a cozinhar. A minha avó não explicava muito por palavras,
Quando vivia com a minha mãe, no que toca a comida, esta era pré-feita e
enganada. A comida da minha avó era sempre caseira, desde o miso até ao molho
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de soja e às kiriboshi daikon . Quando soube, pela primeira vez, que numa
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colher de sopa de miso estavam niboshi , katsuo , soja, malte, entre outros
numa luz angelical, enchia-me uma sensação de paz. Só de ficar a seu lado a
Não percebia patavina quando a minha avó dizia «a olho» ou «a gosto», mas
aos poucos acabei por entender o seu significado. Essas expressões indicavam a
chegado o verdadeiro outono. Ao comer o onigiri, fiquei cada vez com mais frio.
densa. Como era de esperar, estou inquieta e o meu coração está aos pulos.
Sempre que fazemos uma curva, é possível ver ao longe a «Montanha dos
Seios». São duas elevações densas e dispostas ao lado uma da outra. Ambas têm
a mesma altura e no topo está uma rocha. À distância, assemelham-se aos seios
de uma mulher a dormir de barriga para cima. Foi assim que, desde
E assim, entre os dois montes, no vale que se encontra no meio dos seios, foi
Descobri isto nas notícias faz alguns anos, por mera coincidência. Em ambos os
Gotas de chuva caíam do céu nublado. Agarrando o nukado com a mão direita
e pegando com firmeza no cesto com a esquerda, comecei a caminhar em
assunto nuns arbustos. Nesta aldeia, com uma população inferior a cinco mil
habitantes, numa estrada montanhosa como esta, seria muito difícil cruzar-me
com alguém. Enquanto fazia o serviço, uma rã algures deu-me a conhecer a sua
cara e olhou para mim fixamente. Ao esticar o dedo, ela subiu para a palma da
de entusiasmo.
costas, sem que ela saiba. Ruriko é o nome da minha mãe e na extensa
encontram as memórias, amontoadas umas nas outras, dos dias que passei com a
um dos lados. Não sei se é por causa de o ambiente ser o desadequado, mas as
Era realmente uma mansão pobre e mal acabada, com uma cor baça, como se
lhe tivessem despejado cinzas por cima, tendo havido cuidado somente nos
locais que saltavam à vista. Até agora, se pudesse destruir tudo aos pedacinhos
da minha mãe. Desde que nasci, não sei quem é o meu pai, mas espero que
sejam todos menos ele.
Passei diante do bar em silêncio absoluto, de forma que a minha mãe não
desse por mim, e, em seguida, segui em direção ao campo que havia nas
traseiras.
esse dinheiro e iria uma vez mais para uma terra desconhecida, algures. Como
ela não confiava nos bancos, enterrava o dinheiro dentro de uma garrafa de
Entrei na horta. O céu escurecia cada vez mais e caíam grandes gotas que
A minha mãe, que não nutria interesse nenhum pela agricultura, tinha agora
frente dos meus olhos, cresciam batatas-doces com folhas grandes. Além disso,
A maior parte das pessoas pensaria que num sítio daqueles, que salta à vista,
percebi que conhecia aquela lata vazia de biscoitos. Acanhada, abri a tampa do
baú.
Andava sempre com uma pistola de água. Enchia-a com sumo de laranja e
frequentemente com o ioiô nos tempos mortos. Adorava brincar com ele,
qual tinha escrito em letras brancas «mãe», usava-a nas alturas em que ela
uma ferramenta essencial para me animar o espírito. Na parte de trás, com lápis
de cera, desenhei uns olhos, um nariz e uma boca parecidos com os da minha
mãe.
borboleta que encontrei à beira da estrada, uma muda de pele de uma cobra,
conchas de amêijoas e bivalves de água doce que tinha comido; uma panóplia de
levada de volta àquele tempo. O tempo em que fazia tudo sozinha: comer o
lanche, o jantar, ver televisão, fazer os trabalhos de casa, tomar banho, dormir...
tudo.
A minha mãe estava sempre ocupada a encantar os clientes do bar Amor com
o seu charme.
Fiquei com vontade de brincar com o ioiô de novo. Quando esticava o cordel,
esbranquiçada e redonda veio na minha direção a alta velocidade. Era uma porca
de verdade, que eu apenas tinha visto nos postais de Ano Novo. Tal qual um
diante dos meus olhos. A minha mãe vivera sempre com ela desde a minha
saída de casa. Era muito maior do que aparentava nas fotos e impunha um
esperava. Tropecei inúmeras vezes nos vegetais da horta, quase caindo, fugindo
desesperadamente.
De cada vez que a ponta do focinho da porca tocava no meu rabo, eu ficava
omnívoros, portanto, quem sabe se não comem humanos. Sem forças, agora com
No entanto, o pior estava para vir. A minha mãe, que ouviu o estrilho da
minha voz, começou a gritar em voz alta «Ladrão, ladrão!» na minha direção.
Como trabalhava até altas horas, devia tê-la acordado. Calçava umas botas
pretas de cano alto por baixo de uma lingerie de renda, e, com uma foice na mão,
Agora com mais dez anos e sem qualquer maquilhagem na cara, tinha a
plástica, apenas com algumas partes mais côncavas e vestindo roupas de mulher.
Quando eu estava caída no chão, ela levantou a sua foice e fez pontaria para o
Quando dei por mim, chovia a potes e o vento soprava forte como uma
para casa sem dizer uma única palavra. Quando chegou à entrada, virou-se para
mim e mexeu ligeiramente no queixo. A porca, com a sua cauda que mais se
parecia com um broto de feto a dar a dar, seguia atrás dela em pequenos
passinhos.
As minhas roupas estavam cobertas de lama.
a ela. Era o pior dos cenários. Agora, era demasiado tarde para recomeçar a
minha vida num sítio diferente. Aliás, nem sequer tinha dinheiro suficiente
segurando o frasco do nukado numa mão e o cesto na outra, fui para casa da
boca.
principal.
Após tomar banho, falei com a minha mãe, escrevendo no verso de um folheto
Tinha trocado as roupas por um pijama que ela me emprestou. O cheiro intenso
Por alguma razão, sem falar, ela escreveu na parte de trás do folheto com uma
caneta de cor diferente. Tinha-me esquecido por completo de que a sua letra era
de prever, faltou-me a força nas mãos para escrever e a minha letra miudinha e
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Sentámo-nos viradas de frente uma para a outra, enfiadas no kotatsu e
costurámos palavras à vez. Entre nós, erguiam-se dez anos do tamanho de uma
A escrita continuou por mais de uma hora ao som da chuva, fustigadora como
um chicote.
um empréstimo, que foi claramente negado, como era de esperar. Mas, ao que
parecia, uma mãe não é capaz de deixar que a sua filha se torne numa sem-
abrigo. E, com relutância, consentiu que eu voltasse para casa. A condição era
eu ficar responsável por Hermès. Isto, claro, sem incluir as despesas da comida,
utilidades e renda que teria de pagar. Para tal, precisava de trabalhar, ou seja,
procurar emprego nesta terra remota e deserta. De certeza que até a empresa de
exibido como uma casa-modelo e que, por isso mesmo, estava em boas
condições e o seu interior era amplo. Na verdade, era demasiado bom para ser
Além disso, no que tocava a trabalho, não sabia fazer mais nada senão
no meio das montanhas, certamente que de agora em diante seria capaz de viver
meu âmago.
Perdi tudo o que era meu, desde a mobília aos utensílios de cozinha. No
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O kimpirá de umeboshi, o cozido de bardana com vinagre, o barasushi
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abundante em vegetais, o chawanmushi leve cozinhado lentamente em dashi, o
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Toda a experiência acumulada que tinha, a trabalhar em coffeeshops, izakayas ,
gravada no sangue, carne e unhas deste corpo como anéis das árvores.
seria capaz de cozinhar à mesma. Tomando a maior decisão da minha vida, pedi
à minha mãe:
— Por favor, peço-te. Vou dar o meu melhor, mas podes, por favor, emprestar-
me o armazém?
E passei-lhe com respeito a folha. Logo depois, baixei-me para o chão com a
sinceridade.
bocejando, para retomar o sono interrompido. E, assim, ficou decidido que iria
O dinheiro para a abertura acabou por ser emprestado pela minha mãe, que o
Depois de muitos anos, voltei ao meu quarto. Quando pensava que tudo fora
destacou-se no meio das outras. Mudei para essa. O fato de treino grená com
duas riscas em cada lado ficava-me um pouco apertado. Não obstante, mesmo
bem feita. A mesa estava uma bagunçada, com todas as embalagens de copos de
A cozinha que a minha avó tratava com tanto carinho era diferente.
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de nori ; as algas tinham perdido o seu brilho. Passados meses e anos, estavam
agora acabadas. Fiz de conta que não vi e voltei a pô-las no devido sítio.
aqueceram o peito como água agradavelmente tépida. Para ser sincera, estava
exagero.
De cada vez que espreitava para o nukado, assim se gabava dele. A minha avó,
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nascida no período Taisho , dizia que o tinha herdado com honra e estima da
sua mãe. Tendo isso em conta, este nukado provavelmente teria passado de
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geração em geração desde o período Meiji ou até desde o Edo . Mesmo que eu
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Desde que o recebera, misturava sempre cuidadosamente o katsuobushi e o
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niboshi do dashi usado na sopa de miso, assim como casca de laranja.
lactobacilos. Estes variam entre pessoas, mas os que saem das palmas das
Esperei que a chuva parasse e fui dar uma volta pelas redondezas, como
antigamente.
era a altura certa para dormir e a minha mente estava em efervescência, sem
uma pinga de sono. Além disso, havia uma árvore à qual tinha de ir, antes de
tudo.
desenfreadamente até àquele sítio nostálgico. Aí, numa pequena colina, havia
uma figueira ilustre e especial. Durante estes dez anos, nunca pensei em visitar
a minha mãe, mas desta figueira tinha tantas saudades que até a procurava nos
meus sonhos.
Na verdade, quem me tinha apaziguado o coração não tinha sido nem a minha
Com vinte e cinco anos, em comparação com esses tempos, estava mais
pesada, mas mesmo assim consegui subir ao topo da figueira como antes.
Passados dez anos, o seu tronco estava mais robusto. Os seus ramos, mais fortes.
ramos, vergados pela fruta que brotava, era como se tivessem sido enfeitados
dedos pelos figos. Estavam ainda verdes, como as costas de uma criança de
Tirei uma tesoura do bolso. Agarrei na franja com a mão esquerda e, com a
Mas não foi apenas a minha franja. Com a mão esquerda, agarrei em pedaços
dos lados e da parte de trás e cortei-os. Queria que ficasse mais leve, nem que
com as mãos, cortei o resto. O cabelo que outrora se prolongava até ao meio das
minhas costas tinha-se tornado curto num instante. Senti a minha cabeça ficar
mesmo tempo que observava a «Montanha dos Seios», que se erguia à distância.
— Olá!
Repentinamente, ouviu-se uma voz masculina vinda de baixo.
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Espreitei por entre as grandes folhas da figueira e ali estava o senhor Kuma ,
assustadora, com feições salientes como uma rocha, mas o interior era gentil. O
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rumor dizia que o seu verdadeiro nome era Kumakichi , mas os outros
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— Olha...! Não me digam que é a menina Ringo !
Eu odiava o nome que a minha mãe me dera. Por ser filha bastarda, pusera-me
o nome de Rinko
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; todavia, como todos os habitantes desta aldeia tinham
mim.
O senhor Kuma tirou do bolso do peito os seus óculos e tentou ler, voltando a
olhar para mim duas vezes. Ou a letra era demasiado pequena, ou ele não
subitamente, disse:
— Arganaz.
O sol de outono vertia a sua luz quente sobre as nossas caras como um regador.
Arganaz.
Porque seria que estava a chorar tanto naquele dia? Quando estava a chorar
levou-me às cavalitas até à sala de arrumações, onde era proibido entrar. Como
grandes e calorosas.
Nesse pequeno lugar sombrio e com um cheiro característico, havia uma série
de materiais amontoados. Um vapor branco saía de uma chaleira que tinha sido
Por estar tensa e nervosa, o senhor Kuma tirou de um armário de parede uma
castanha.
— É um arganaz — disse-me.
para cima.
que dormia, com uma das suas mãos e colocou-o na palma da minha. Sem se
mexer, o arganaz dormia que nem uma pedra. Quando dei por mim, parara de
chorar.
Estava esquecida disto por completo, mas lembrei-me subitamente. Era como
Abri a página que dizia «Como está?» e mostrei-lha de novo. Ele acenou a
encantadora.
Pelos vistos, a Siñorita era bem mais nova do que o senhor Kuma.
Tinham-se casado e começado a viver juntos na casa dos pais dele, juntamente
com a sua mãe, sendo a seguir presenteados com uma filha. Uma menina
adorável com uns grandes olhos, que ele me mostrou numa fotografia.
entre nora e sogra amargou e, certo dia, a Siñorita, que era uma mulher da
O senhor Kuma, tal como os seus antepassados, era um homem cujo coração
pertencia às montanhas. E achava que não conseguiria viver longe da sua terra
natal.
Além disso, não era capaz de abandonar a sua velhota. Por fim, desistiu de ir
atrás da Siñorita e assentou nesta pacata aldeia. Agora, fazia a sua vida solitária
brincava com elas na palma da mão, chocando-as uma contra a outra, ouvia-se
«Muito obrigada.»
Com um sorriso na cara, como se o seu gesto não tivesse tido importância, ele
Dizem que a sua perna esquerda, ligeiramente coxa, era a medalha e a prova
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— Se deixares as castanhas embebidas em shochu , ajudam a sarar cortes —
mostrara o arganaz.
Como tinha cortado recentemente o cabelo sem usar um espelho, pelo sim, pelo
não, queria conferir como estava. Ajoelhei-me sobre as ervas daninhas e
espreitei com receio para a superfície da água. Ali estava eu, com o cabelo
A minha aparência tinha mudado bastante, mas a minha cara era a mesma.
Passei os dedos pelo cabelo que até hoje fora suave, comprido e embaraçado;
Nem estava assim tão mau. Sentia-me leve como merengue feito a partir da
clara de ovo.
Fiz uma concha com as mãos e bebi água do riacho, que tinha um sabor suave
para lá do caminho pelo qual tinha vindo depois de sair do autocarro, ouviu-se
acontecido algum acidente, mas, quando pensei melhor, era apenas um berro
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Nada mudara — os louva-a-deus, as akebia quinatas , as pimpinelas; a
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jizo-sama à beira da estrada tinha um belo pano por cima e o interior do seu
frasco de saqué estava decorado com pétalas de crisântemo de uma cor viva; as
mão.
Atravessei a estrada e uma galeria de lojas. Todas elas com os seus telhados
enferrujados com chapas soltas e o céu azul a espreitar lá para dentro. Este lugar
fora em tempos uma próspera estância termal. Há pouco mais de dez anos, com
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o boom das termas isoladas , ficou repentinamente muito conhecido e repleto
difícil acesso, sem capacidade para alojar grandes quantidades de pessoas e, não
Apesar de ainda ser hora de almoço, metade das lojas estava fechada. Lembrei-
mas nunca fechava os olhos por completo. As cortinas das lojas lembravam-me
minha mãe, quando estava bêbeda, tentava enfiar-me à força na boca, enquanto
eu dormia, o pudim desta mesma loja. Uma mulher que me era desconhecida
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Ao lado da loja, havia um restaurante de tonkotsu fechado. Um pedaço de
papel preto rasgado estava colado nas suas cortinas, como se alguém tivesse
havia agora uma loja de aluguer de DVD, mas quase sem filmes; no vidro da
única coisa que tinha mudado era a máquina de vendas solitária que dizia:
tratava de uma povoação, havia vegetais frescos para todos e até para partilhar
mineral de propósito, bastava ir à nascente mais próxima para beber água fresca
Nas vastas fazendas, havia vacas, cabras e ovelhas. Leite fresco era coisa que
fôssemos corajosos. Havia uma pocilga e um aviário, pelo que a carne de porco e
aves era fresca, assim como os ovos que se arranjavam com facilidade. Não
importa o que dissessem, a partir de agora era época de caça. Se pedisse com
jeitinho ao caçador, ele devia dispensar-me algumas das presas que capturou.
Além disso, esta aldeia situa-se no meio das montanhas, e o mar também fica
com vinho local de qualidade, e, claro, também havia boa água e arroz. Por
que parecia, a minha mãe sabia usar a Internet como os outros. Assim, devia
Todos eles, um tesouro para a minha cozinha. Comparando com a cidade, fui
lentamente.
Tinha uma cor laranja carregada, como a gema de um ovo acabado de pôr. O
sol citadino, que se punha por entre os prédios, também era bonito, mas este
pôr do sol era diferente, como se fosse obra da força de toda a natureza. Diante
aproximava-se.
Para não ser engolida pela escuridão, regresso a casa à pressa, a correr pelo
caminho calcetado.
A estas horas, a minha mãe já devia ter saído de casa e estar no bar.
por uma pequena janela, via-se uma estrela a brilhar timidamente. Era uma luz
A princípio, nunca pensei que pudesse ser o «velho mocho», pois já se tinham
passado dez anos desde que eu saíra de casa. Não era possível que ele estivesse
Mais vivo do que nunca, ele fazia soar o seu pio, certeiramente, à meia-noite.
O velho mocho vivia na parte de trás do sótão da casa. Sem descansar um dia,
extraordinários...
desta casa; então, eu também não duvidava. Até aos dias de hoje, ninguém
jamais o viu, e essa razão fazia dele uma presença ainda mais divina. Quem diria
Saí de casa sem rumo há dez anos. Agora, voltava, novamente sem rumo, com
o coração partido, e o velho mocho continuava o seu trabalho todos os dias,
Não estou a exagerar quando digo que é uma das criaturas que mais respeito.
E estar a ser protegida por ele dava-me muita coragem. Muitas vezes, quando
ainda era criança, nas noites em que me sentia sozinha, só de pensar que o velho
que a batida das asas de um falcão da «Montanha dos Seios». O tempo em que
Não quer dizer que nunca me lembrasse do meu namorado, mas nem tempo
tinha para isso. O meu dia começava comigo a cuidar de Hermès. Nas notas que
e questões sobre a sua alimentação. O que era irónico era ela ter escrito na parte
sobre a ração: «Dar quantidade moderada, senão fica gorda como uma porca.»
Para a minha mãe, Hermès era mais do que apenas uma mera porca de estimação.
Eu tinha a certeza de que o seu nome vinha do gosto que ela tinha por marcas.
Mas, na verdade, era a junção de «L», que aludia à raça Landrace, e «mès», que
significava mulher
41.
De acordo com o livro que a minha mãe tinha sobre porcos, Landrace era uma
White
42, destacava-se por ter o focinho comprido e as orelhas descaídas.
Podia dever-se ao seu nome, mas a verdade é que Hermès tinha realmente as
feições elegantes.
Dizem que os porcos são asseados, e era verdade. Esta até tinha direito a uma
casa de banho e a um sítio para comer distintos.
assim que nascem, os leitões escolhem o seu medindo forças. O mais forte fica
com o mamilo que tem mais leite e os outros acabam por enfraquecer cada vez
foi para o pé da minha mãe, apenas três. Ao que parecia, era bem mais pequena
era uma cria, mas, quatro meses após ter nascido, mesmo até depois de ter
atingido a puberdade, Hermès não teve o cio. Sem acasalar e sem se reproduzir,
A horta por trás da casa era propriedade de Hermès. O cheiro peculiar que lá
vegetais viçosos. A minha mãe não ligava nenhuma à comida dos humanos, mas
no que tocava a Hermès era picuinhas e fazia questão de a alimentar com ração
consistia em milho não alterado geneticamente. Até o pão era artesanal, feito
com fermento natural que a minha mãe encomendava numa loja conhecida em
Talvez porque o que comia era de qualidade, certo é que o pelo de Hermès era
constante no focinho.
Todavia, como eu não tinha capacidades económicas para comprar tal pão de
luxo, não me restava outra hipótese senão fazê-lo. Como era a época das maçãs,
moldava a massa e cozia o pão no forno. No fim de contas, era algo trabalhoso,
momento em que a integrei no ritmo do meu dia a dia, nem era uma chatice.
ingredientes medíocres que usei, mas virou costas ao meu pão. Mesmo que se
Pensei que tinha sido uma boa ideia ter misturado bolotas na massa. Nas
notas que a minha mãe me deixara, havia uma indicação a dizer que os frutos
secos eram a comida favorita de Hermès; então, decidi dar-lhe uma hipótese. E
Desde então que adiciono sempre à massa sem fermento frutos secos que vou
bochechas cheias, mastigava alarvemente o pão que lhe tinha feito. A pouco e
para uma irmã verdadeira. Por alguma razão, tenho um sentimento de repulsa
para com a minha mãe, que estimava tanto Hermès; em contrapartida, da porca
Como os porcos adultos são encalorados, abri a parte da frente da pocilga para
contra o frio, mas era preciso mudá-la uma vez por dia e arejar o local. No chão
abertura do meu novo restaurante. A única coisa que tinha estabelecido desde o
início era que seria um restaurante. Não seria um café, nem um bar nem um
Costurar toalhas de mesa com panos de sobra, sair para a vila e comprar
Evidentemente que, durante esse período, também não conseguia falar com
senhor Kuma. Como vivia aqui desde há muitos anos, conhecia quase toda a
como pregar, serrar e carregar madeira, enquanto outros, como pintar, encerar,
aplicar os azulejos, estavam a meu cargo. Para nós, havia sempre algo que
nunca acabavam.
dia após dia. À hora do almoço, ficavam cada vez mais pequenas, quase
conseguia pegar-lhes.
encantadores.
Mais ou menos após um mês de trabalho, tínhamos conseguido criar um
às que o seu pai carpinteiro fazia com castanheiro, quando ainda era vivo. Tinha
Pertenciam a uma sala de concertos, feitas de madeira e tecidas com corda, com
vida.
As paredes interiores, por cima do reboco, foram pintadas com tinta natural
estrangeiro que residia na aldeia, para que ele pintasse a deusa Kannon
45 com
umas asas de anjo, num toque leve de inspiração Cocteau, na parede do fundo.
vizinha, que tinha fechado. Do que eu mais gostava, era o lustre de velas de
cliente ficasse com sono após a refeição ou se tivesse vindo de carro e bebido
saber que tinha um sítio onde dormir, caso discutisse com a minha mãe e fosse
clássico com um padrão de flores. E com o mesmo pano costurei o forro das
almofadas que lhe coloquei em cima. O cobertor foi fabricado na Austrália e
Uma das paredes da casa de banho era feita de azulejos de cores diferentes
tinha saído nada mal para quem tinha improvisado. Por mais que a comida
fosse boa, se a casa de banho não tivesse um bom aspeto, não valia de nada.
Mesmo poupando noutras coisas, decidi investir na casa de banho e escolhi uma
sanita e um bidé de última geração. Abri uma pequena janela na parede, o que
neoconservador tinha uma porta, mas era de alumínio e não condizia com o
«U», e, para o puxador, usei um pedaço de ferro em forma de lagarto, que tinha
em cima do joelho com o senhor Kuma. Agora, bastava ir dando uns retoques
Graças ao senhor Kuma, a cozinha, que era o meu local de trabalho, tinha
ficado ainda melhor do que tinha em mente. Tirei logo o nukado da cozinha
O lava-louça brilhava como novo e, por alguma razão, era perfeito para a
servindo-me de um balde de lata, não era perfeito, mas até era bonitinho. Mais
importante do que tudo isso, deitei abaixo a parede a oeste, troquei-a por um
vidro e agora, quando cozinhava, era envolvida por uma luz maravilhosa.
que tinha plantado. O senhor Kuma colocou no teto vigas feitas a partir de
madeira desbastada, pelo que eu podia pendurar livremente os cestos que fazia a
vários part-times, já me deparara com muitas cozinhas, mas nunca com uma tão
perfeita.
com o resultado final. Fiquei com a que estava no fundo do armário, que a
minha mãe me deu. Não era usada, mas tinha sido escolhida pela minha avó, de
Aname
47, 48
mamezara de imari ware
49, pires de imari ware, pratos brancos de
50
sopa da Richard Ginori e, o mais importante de tudo, copos de champanhe de
design antigo da Baccarat, que já não eram fabricados. Na parte de trás de cada
uma das peças de louça, estava escrita uma explicação num autocolante, com a
que para ela era lixo e apenas ocupava espaço, para mim, era agora um tesouro.
avó para neta e assim sucessivamente. Ou seja, a minha mãe opôs-se à sua
própria mãe, que era demasiado pura, e optou por um estilo de vida caótico, e
eu, criada por essa mesma pessoa, não querendo ser igual, também optei por um
branco.
51
Decidi arrumar a louça no armário da Mizuya que estava esquecido na casa
como novo. Decidi colocá-lo debaixo da janela com vista para a «Montanha dos
Seios», que era possível ver a partir da mesa onde os clientes comiam.
Foi num dia desses que o senhor Kuma veio ter comigo no seu triciclo para
cargas pesadas. Na verdade, devia haver um nome técnico para este triciclo
especial, só que eu não sabia. Tinha duas rodas atrás e um grande cesto. Até
sorriso:
— Aqui tens, menina Ringo, um presente. Dei-o à Siñorita antes, mas ela já
não o usa... Não lhe poderás dar uso? Vou passar-lhe um bocadinho de tinta,
cima a baixo com a tinta azul-turquesa que eu tinha usado para pintar as
cadeiras.
nas suas costas. No fim de contas, era o estimado triciclo que a sua amada
Siñorita lhe deixara. Eu não seria capaz de o aceitar. Era apenas uma conhecida.
E foi isso que lhe expliquei. Porém, independentemente dos meus protestos,
decidir o mais importante. Não obstante, o nome «Amor», apenas essa palavra,
de certeza que não podia ser. Se colocasse esse nome, todo aquele mês de
trabalho com o senhor Kuma, durante o qual conseguimos criar este ambiente
Quando cheguei a casa a altas horas da noite e me enfiei na cama, não parei de
cabeça «Cantina dos Caracóis». Passados alguns segundos, tive a certeza de que
Enrolada nas mantas como uma torta, estalei os dedos. Iria seguir em frente,
Uma vez dentro de uma carapaça, isso passava a ser uma zona de conforto para
mim.
Mas a verdade é que eu não tinha voz. Por isso, tínhamos combinado uma
regra: ligar-lhe para o telemóvel e tocar-lhe uma canção como sinal para vir.
A música que o senhor Kuma tinha escolhido era o hit de uma cantora
que fugira com a sua filha, costumava cantar-lha no karaoke do bar Amor. Por
isso mesmo, eu andava sempre com a cassete da música que ele gravara e o
leitor de cassetes dentro do meu cesto predileto. Os meios que temos para
Quando passou a fazer parte do meu dia a dia, percebi que mesmo não
conseguir falar não era assim tão agonizante como os outros imaginavam. Não
era uma pessoa faladora por natureza e, se pensar que vivia sozinha, não era
sintonia.
trás do cesto do triciclo para adultos, que tinha pintado de azul-turquesa no dia
Sem hesitar, levei-o num test drive e parti para dar uma volta pela nossa pacata
aldeia no vale.
Na verdade, como não tinha carta, não sabia para onde havia de me virar. Na
cidade, conseguimos viver sem carro, mas, numa aldeia rural isolada como esta,
não podemos desenvencilhar-nos sem ele. Sentia-me mal por chamar o senhor
No entanto, com o Caracol, pelo menos até ao centro da vila conseguia ir por
mim própria. Foi difícil nalgumas estradas montanhosas que não estavam
com gratidão e carinho o Caracol que o senhor Kuma tinha oferecido como
presente à Siñorita.
se pelo céu. Do seu corpo gigante sem coração, esqueleto ou ossos, os seus
como um ruído.
A meio caminho, encontrei uma videira. Provei uma uva. Era amarga e
agridoce. Não podia ser comida crua, mas tive uma ideia e, antes de serem
também as pus dentro do cesto. Usá-las-ei depois de fervidas e secas, para fazer
o pão de Hermès.
Como sempre, sem falhar uma vez por dia, pisei as fezes de Hermès. Algumas
acabados de pôr e sentir o seu calor; observar as gotas de água mais bonitas do
que diamantes nas folhas molhadas pelo orvalho da manhã; o belo cogumelo
véu-de-noiva que se parecia com uma base de copos bordada a renda, que
acrescentei à minha sopa de miso... Estava tão grata por tudo isto, que até tinha
sobre o que iriam querer comer, a sua estrutura familiar, os seus sonhos,
isso, se possível, queria abrir o restaurante às seis da tarde. E, tal como o seu
necessárias.
Como o cheiro a fumo altera o sabor da comida, será proibido fumar. Quanto
à música, não haverá nenhuma. Preferia que os clientes desfrutassem dos sons
madeira que trouxera da montanha e que cortara com o machado para acender o
forno a lenha.
Tirei o meu bloco, esperei pelo momento em que as mãos dele estavam livres
e pedi-lhe:
Não sei porquê, mas fiquei envergonhada, como se tivesse declarado o meu
amor a um rapaz. Não sei se foi por causa dos meus nervos, mas a minha mão
há muito tempo.
Era um agradecimento por toda a ajuda que ele me tinha dado. Sinceramente,
oferecer dinheiro ou bens materiais era algo que ainda não estava ao meu
alcance. Mas podia cozinhar. Todo o meu corpo e alma me asseguravam a cem
Contudo, talvez por não estar à espera de tal pergunta, e com uma expressão
de quem tinha comido algo amargo que esperava ser doce, ele fez um esgar.
adorada filha. Passava-se o mesmo comigo. Desde que voltei para a minha terra
feridas; na verdade, iam ficando mais profundas com o passar dos dias.
Quando saí para a vila e deparei com a silhueta das costas de um homem que
se assemelhava a ele, pensei que me tinha vindo buscar e corri atrás dele para
lhe ver a cara, apenas para poder confirmar que não era ele. Só de cheirar um
cintura, os seus dentes brancos que brilhavam no rosto moreno, o seu olhar
argila de duas cores. O sentimento de impotência por ter sido deixada pela
pessoa que amava não era algo que pudesse ser substituído por nada.
comida que a Siñorita lhe fez foi caril. E murmurou com um olhar vazio, como
— Já que perguntas, estou farto de comer todos os dias a comida que a minha
Assim que ouvi aquelas palavras, o meu coração sentiu-se vitorioso e decidi
fazer-lhe o melhor caril da sua vida. Para mim, o caril também era uma comida
cheia de memórias. Não sei, mas talvez porque o cozinhara várias vezes para o
meu namorado. Como era indiano, caril era a comida que lhe sabia a casa.
52
Após ter comido kamaage udon ao almoço com o senhor Kuma, que tinha
acabado de arranjar a lenha, fui rapidamente lavar e ferver com cuidado as uvas
Ficaria pronto dali a doze anos. Fechei os olhos e tentei imaginar com que
Quem sabe se não falharei a meio? Não importa: dentro de doze anos, quero
guincho.
Até o tempo combinava com o nome, A Cantina dos Caracóis, pois chuviscava
desde manhã cedo nesta pacata aldeia nas montanhas. Tal como um verdadeiro
caracol, ergui o rosto e desfrutei do banho de chuva.
A tabuleta que tinha feito na véspera, em meio dia de trabalho, estava húmida
Era uma tabuleta que pedira ao senhor Kuma para cortar do tronco de uma
árvore com uma espessura de mais ou menos dez centímetros, e, com a ajuda de
jardim de infância.
forma de U, à qual ainda não estou habituada, chiou como se estivesse a dar-me
as boas-vindas.
Como só servia um conjunto de clientes por dia, não fiz grande publicidade ao
grande grinalda de flores como celebração. Talvez tivesse sido a minha mãe a
dizer-lhe. Era uma das grinaldas coloridas que se veem expostas às portas nos
53
dias de inauguração de um pachinko . A boa intenção deixava-me feliz, mas,
ficaria estragado.
Ainda não tinha parado de pensar no tipo de caril que prepararia para o
senhor Kuma. Refletia tanto nisso, que quase perdia o sono. E, por mais que lhe
memória dele era vaga e, por mais parecido que ficasse, era muito pouco
provável que ficasse ao mesmo nível daquele que ele comeu nessa altura, com
trabalho iraniano do restaurante turco. Como leva muitas romãs, fica com uma
Eu nunca tinha ido ao Irão, mas naquela altura parecia-me ver a região
desértica numa cor sépia. Tinha combinado com o meu namorado que iríamos
árvore, provei um pouco de uma romã. Era mais agridoce do que estava à
sabor, esta era totalmente diferente. Esta romã esperava, silenciosamente, por
um sentimento sagrado. Apertei bem o meu novo avental, enrolei uma toalha à
monge.
No dia em que voltei para a minha terra natal, tinha cortado o meu cabelo no
topo de uma figueira, mas mesmo assim ainda estava demasiado comprido e
aldeia e cortei-o rente com a máquina. Agora, eu própria rapava o cabelo a cada
três dias. Assim, não tinha de me preocupar se cabelos meus caíam na comida.
Achei que talvez fosse melhor rapar as sobrancelhas, para evitar qualquer tipo
de contaminação dos alimentos, mas pensei duas vezes. Mesmo que eu não
tivesse problemas com isso, não queria assustar os clientes com a minha figura.
No balcão polido que brilhava por tudo o que era canto, além das romãs,
Quando dei por mim, apesar de nunca ter sido ensinada por ninguém, isto
de serem cozinhados.
Claro que pode ser da minha imaginação, mas a verdade é que realmente
Por favor, que eu consiga fazer um bom caril sem percalços. Que consiga ser bem-
ingredientes.
No momento em que senti que a minha prece era ouvida, abri os olhos
Eu própria não percebia se era a cebola que me ardia nos olhos ou se eram as
gordas que escorriam pelas minhas bochechas eram como tartarugas que subiam
romã.
Deixei a cidade com a minha cabeça em água e, assim que regressei à minha
terra natal, envolvi-me logo nos preparativos para abrir o restaurante. Estive
sempre a evitar o assunto para não pensar nele. E, agora, veio tudo ao de cima.
As memórias de nós os dois eram como um truque de magia rasca, feita com
aqueles lenços coloridos de nylon que aparecem à frente dos olhos uns atrás dos
outros, tingindo a minha visão de uma cor nostálgica. Por culpa disso, não
conseguia perceber como estava o refogado. Apesar disso, cerca de dez minutos
achei que um delinquente tivesse vindo dar cabo de mim. Podia ser por causa
dos direitos da loja ou por uma pessoa que sentisse algum ressentimento pela
apercebi-me de que era o senhor Kuma, que me disse no seu descontraído tom
habitual:
— Bom trabalho!
O senhor Kuma tinha vestido um fato preto com uma extravagante gravata
vermelha e o seu cabelo cada vez mais ralo estava arranjado num penteado à
militar com laca. Contudo, reconheci os seus pés pelas botas de cano alto,
sempre sujas de lama ou folhas de árvore, mas que agora brilhavam da graxa
Ele foi-se dirigindo para o seu lugar, ao mesmo tempo que verificava
estava empolado.
Mostrei a nota que tinha guardada no bolso do meu avental, que dizia: «Por
favor, aguarde um pouco.» Num passo apressado, voltei à cozinha e pus mãos à
gordo charuto. A verdade é que era proibido fumar, mas, como ele era um
cliente especial, decidi fechar os olhos desta vez e fingir que não sabia. Dei-lhe
logo um cinzeiro.
Doseando com cuidado a quantidade de sal no caril, agora finalizado, servi-o
Pus uma colher de madeira novinha em folha ao lado do prato, fiz uma vénia
Com exceção do meu namorado, eu não era capaz de olhar para as pessoas
diretamente enquanto comiam a minha comida. Para mim, era algo mais
meus mamilos com uma lupa. Apesar disso, estava a morrer de curiosidade para
perfil.
Ajustei o ângulo da lupa, de forma que lhe visse o rosto. De cada vez que a
luz se refletia na lupa, era como se uma borboleta branca voasse pela sua cara.
Todavia, sem prestar atenção a isso, ele continuou a comer o caril tacitamente,
sem qualquer expressão facial. Sem dizer se estava bom ou mau; não disse uma
Nestas situações, insegura de mim própria, tendia a olhar para o lado negativo
Ah... Afinal havia uma grande diferença entre gostar apenas de comida e ser
de tirar o mais rapidamente possível o caril meio comido da sua mão e deitá-lo
pelo lava-louça abaixo.
Porque é que não pensei com clareza numa comida que fosse mais ao encontro do gosto
dele?...
55
Devia ter-lhe servido antes um caril japonês ou um katsukare , ou um
Não era a altura para me lamentar e estar afogada nas memórias do meu
O que devo fazer? Isto era apenas autocomiseração. E, enquanto ia ficando cheia
Não sei se ele sabia que eu estava escondida logo atrás das cortinas, mas virou-
Antes, estava a chorar de desânimo, mas desta vez eram lágrimas de felicidade.
expressão facial de alguém, consigo perceber se uma pessoa gosta de chá preto
ou de café; e, se for café, que tipo de café. Talvez isto se deva ao facto de quando
me mudei para a cidade, ter trabalhado durante alguns anos na caixa de uma
clientes iriam pedir, olhando apenas por momentos para as suas caras. Acerto a
maior parte das vezes com uma probabilidade de noventa por cento.
avental como gorjeta, até eu recusar e dizer: «Não é preciso.» Depois voltou
para casa, calmamente, pela estrada montanhosa ainda iluminada pelo sol
tardio.
Do meu bolso, saía um cheiro nobre. Afinal, era uma ocasião especial. Pensei
que quanto mais cedo, melhor, e decidi fazer nessa mesma noite um arroz de
56 57
matsutake e dobin mushi como celebração. Como a janela da cozinha estava
embaciada de vapor, não tinha reparado que a chuva que caía desde manhã
tinha parado e que lá fora um belo pôr do sol se estendia pelo céu. Era como se
milagre.
Ao que parecia, a Siñorita tinha voltado da cidade para casa do senhor Kuma
com a filha.
Ele veio contar-me a correr, entusiasmado. Estava tão atrapalhado, que tinha
apenas tinha vindo buscar algo importante de que se esquecera. Sem querer
sequer beber um chá, saiu logo. Mesmo assim, ele disse-me com um ar muito
sério:
— Mas, sabes... Se ela não tivesse sentimentos por mim, não voltaria.
O rosto dele estava radiante. Ninguém tem o direito de destruir os sonhos dos
honestamente.
O senhor Kuma concluiu por si próprio que isso tinha acontecido por causa
do caril que comeu. Achei impossível, que era apenas uma coincidência, mas ele
enfatizou o seu sabor especial e até ter chorado e dado graças a Deus. Depois
apertou a minha mão com força, infinitas vezes, quase até me esmagar os dedos,
e, no mesmo estado de excitação, regressou a casa.
De qualquer modo, era uma grande honra tê-lo deixado mais feliz do que
imaginara.
trazer a Amante que vivia na casa ao lado da sua; e assim apareceram n’A
Cantina dos Caracóis. Claro que não era uma verdadeira amante.
Ela era uma senhora famosa nesta pequena aldeia montanhosa. Não havia
ninguém que não a conhecesse. Eu conhecia-a desde que era criança. Contudo,
facto de ela vestir um traje preto de luto, tanto no verão como no inverno.
homem já tinha falecido há muito tempo. Ao que parecia, morrera na casa dela,
Isso era algo que a coscuvilheira da minha mãe comentava no seu bar com os
clientes habituais enquanto bebiam álcool. Por isso, não sei o grau de
veracidade, mas diziam-se coisas como que a sua voz tinha ecoado por toda a
Porque é que se ouvia o seu riso e não o seu choro... era o que eu imaginava
com a pouca experiência que tinha. Quem sabe se chorava como quem ria.
Desde aí, a sua personalidade mudara por completo, tornando-se uma idosa
reservada que apenas vestia roupas de luto, desde o falecimento do seu amado
até hoje.
O senhor Kuma, que morava ao lado, preocupava-se com ela desde há muito.
tentar ter filhos, tratava o senhor Kuma como se fosse um desde que ele era
criança. Por essa razão, ele sentia que a única coisa que conseguia fazer era
pés à cabeça.
Como não conseguia andar bem, usava uma bengala, cambaleando de cada vez
impressão que tenho dela mantém-se desde que sou pequena. Sei que é
grosseiro, mas ela nada mais parece do que um fantasma. Esta idosa recatada ter
sido outrora uma pessoa alegre e animada, como dizia o senhor Kuma, era algo
Tentámos inquirir sobre o que queria comer, todavia, a concubina era como o
contínuo, e não foi capaz de decidir. E, não sendo capaz de me dar ideias, não
58
bênçãos que esta terra nos deu. Por exemplo, um kinpira de shiitake , um tofu
minha avó. Mas, pensando melhor, cheguei à conclusão de que não fazia sentido
tivesse comido. Pensei em fazer-lhe uma comida que acordasse as suas células
A ementa que elaborei para a concubina que estava de luto há décadas foi a
seguinte:
Nukazuke de maçã
shochu
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Risoto de karasumi com arroz acabado de colher
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Sorvete de yuzu
Talvez esta ementa não agradasse aos gostos da velhota. Além de ser copiosa,
Por favor, que as pálpebras fechadas do seu coração voltem a abrir-se novamente. Era
Suponhamos que acontecia algo como ela deixar a comida toda no prato.
Desafiei-me a mim própria, pensando que comê-la-ia eu. Durante alguns dias,
seu camião para escolher com os meus próprios olhos as ostras e o peixe cabeça-
bloco de notas:
O licor de quivi era um licor com sete anos que o senhor Kuma tinha
mordiscados por mosquitos. O que quer dizer que eram tão saborosos que até os
Ao virar-me para trás, reparei que a luz do lustre que a concubina me dera se
casa.
preparado.
da mistura do nukazuke, tal como o vinho tinto quando entra em contacto com
o ar, perderiam o sabor; por isso, preparei-as apenas antes de ela chegar. O
sofisticado.
Desejei-lhe com respeito, do fundo do coração, uma boa refeição e voltei logo
ficar quente.
que uma galinha era esmagada. As galinhas fugiam, correndo às voltas, e eram
A verdade é que quis desviar o olhar inúmeras vezes. Tinha medo até do meu
que fica logo tonta sem querer. No entanto, pensei que era algo a que tinha de
assistir e resisti arduamente para não fechar os olhos. Passado um pouco, a
Senti que tinha de dar o máximo, tanto para a galinha que dera a sua vida,
que se distinguia pelos seus grãos rugosos e pelo sabor adocicado e sumptuoso.
A razão pela qual decidi usá-lo foi por o senhor Kuma me ter dito que tinha
visto uma fotografia da concubina com o seu homem na casa de férias dele no
Havai. O sal forte de mais era um problema, mas se, em vez disso, fosse insosso,
estava à espera, mas ainda não tinha provado o cocktail nem a entrada.
Analisando a situação, julguei que seria melhor esperar mais um pouco até
cozinha.
espreitar pela fresta das cortinas, vi que a concubina levava lentamente uma
garfada de nukazuke de maçã à boca. Aliás, vendo bem, até já tinha bebido um
pouco do cocktail.
cavalo. Calcei as luvas de borracha e, com a minha faca especial, abri as ostras.
O seu corpo gordo e inchado saltava à vista. Sem as temperar, coloquei-as num
durante cerca de meio dia, juntando sal e azeite. Finalizado esse prato, comecei
Tirei a galinha já quente para pôr na sopa, coloquei-a numa tábua e cortei-a
nukazuke de maçã e as ostras. Afastei o prato com o resto do carpaccio para o lado
comida no prato, eu faço questão de não o levantar. Acredito que é assim que se
deve fazer.
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Usei o lombo do cordeiro, envolvendo-o em mostarda e panko e assando-o
com óleo de amêndoas. Juntamente com o pão ralado, misturei alho picado e
que fica na boca é delicado e, por mais que se coma, passados alguns segundos,
desaparece como se fosse levado por uma leve brisa. Mesmo de barriga cheia,
bosque secreto que o senhor Kuma me indicou. Este lugar onde plantas
selvagens e cogumelos cresciam era um segredo tão precioso, que ele nem
contava à sua família. Obviamente, fiquei contente por ter aberto uma exceção
para mim. Salteei os cogumelos selvagens acabados de colher com bastante alho.
cocktail estava completamente vazio. Por isso, enquanto a carne cozinhava, abri
natural, fabricado na mesma adega que o vinho branco, com uvas locais. Já o
Talvez ela também bebesse vinho tinto. Esse rasgo de esperança veio-me ao
coração. E então, tal como eu esperava, o vinho tinto desceu gole a gole.
magro. Até o meu namorado, que tinha um forte apetite, talvez não tivesse sido
capaz de comer toda aquela refeição, que, sem quaisquer dúvidas, ia sendo
comida, mesmo que aos poucos, pela concubina com a sua pequena boca.
Apenas uns minutos antes de o velho mocho fazer soar a meia-noite, ela tinha
bebido a garrafa de vinho tinto até ao fim e começado a comer o sorvete de yuzu
Durante esse tempo, e enquanto levava o banquete que lhe tinha preparado à
boca, não sei no que pensava a concubina. Mesmo tendo bebido bastante álcool,
a sua cara continuava da mesma cor e ela não parecia estar minimamente
restaurante.
planeado usar o ar fresco exterior para fazer o gelado. Assim que pus um pé lá
fora, estava tanto frio que até os meus ossos gelaram. Um ar frígido envolvia
Senti-me realizada.
Estava tão feliz, que fiquei com o peito pesado e com dificuldade em respirar,
Nunca imaginara que um dia iria fazer gelado assim para alguém, por baixo
deste extenso céu. Nem que o meu sonho de muitos anos se concretizasse a esta
velocidade...
rum que acrescentei a meio fazia-me cócegas no nariz. Da minha boca, saía um
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claramente como um teatro de sombras chinês. Era um copo Edo Kiriko , do
período Taisho, que fora oferecido pela minha avó à minha mãe. Brilhava como
baunilha, e servi-os juntamente com o café expresso forte. Fiz questão de usar
Via o seu perfil com o meu espelho, tal como da outra vez com o senhor
Kuma, por entre as cortinas. O seu reflexo oscilava por culpa da minha mão que
tremia.
único sorriso há mais de dez anos, devotava-se unicamente a fazer luto pela
Preocupei-me com os seus dentes, se não lhe doeriam por estar demasiado
amante.
Sorveu de novo o café e, desta vez, levou à boca uma colher de tiramisu.
No fim de contas, acabou por rapar todos os pratos que eu lhe preparara.
Foi a primeira vez que ouvi a sua voz. Era feminina e elegante, como se
tivessem polido a superfície irregular e áspera com uma lixa. Fiquei pasmada
com tal voz. Nesse momento, apenas por um mero instante, foi como se um
A ponta dos dedos dela, que toquei levemente, estavam quentes. Com a
profundamente.
Dito isto, a concubina passou a noite n’A Cantina dos Caracóis até à manhã
seguinte.
concubina.
Ela, que até então sempre vestira obstinadamente o traje de luto, caminhava
No início, não percebi que se tratava dela. Pensei que fosse uma estrangeira
rica que se tivesse enganado e vindo parar a esta aldeia, e, o que era muitíssimo
No entanto, quando vi bem, era sem dúvida a concubina que tinha ido ao
Tal ocorrência tornou-se uma grande notícia nesta vila pacata, passando de
que ela tinha ido ao restaurante, após a refeição, enquanto dormia na modesta
cama que lhe fiz, a concubina teve um sonho. Ao que parecia, o seu amante
Tudo indicava que ela passara os dias até agora rezando noite após noite,
apenas para conseguir vê-lo nos seus sonhos. Mas, até ao momento, o seu desejo
não se concretizara nem uma única vez. Contudo, naquela noite, tinha
voltou a insistir com grande veemência que tudo isto se devia ao facto de ela ter
concretizava desejos e trazia finais felizes se foi espalhando, aos poucos, entre as
— Pode fazer com que os meus sentimentos pelo Satoru se tornem mútuos?
Assim que ouviu os rumores, quem me enviou uma carta através do senhor
Num belo dia ameno de fim de outono, a menina Momo trouxe Satoru
consigo de bicicleta e apareceram n’A Cantina dos Caracóis. Momo era uma
rosto inocente.
Uns dias antes, quando tinha vindo conversar comigo, mostrou-se muito
alegre, falando com vivacidade, e contou-me variadas coisas sobre a sua família
acabado de ser adotado. Talvez fosse dos nervos, mas até quando os conduzi à
mesa não trocaram nem uma palavra entre si. E eu sorria ao ver a figura
preparar a sopa. Ao olhar de relance para a luz que vinha da janela, vejo que se
começo, achei que seria bom fazer algo doce. Então, experimentei confecionar, à
63
laia de teste, uma tarte de maçã, um baumkuchen e um crepe. Todavia,
da paixão, e o amor que tinha por ele faziam com que perdesse o apetite. Além
disso, cheguei à conclusão de que comer com faca e garfo, pela primeira vez, à
Por isso, decidi fazer uma sopa que caísse bem no estômago, por mais nervosa,
tensa e enjoada que Momo estivesse. Sem pensar demasiado nos ingredientes
que usaria, decidi inspirar-me após ter estado com eles os dois.
Usei os legumes que tinha na cozinha, uns atrás dos outros, piquei-os e fritei-
se uma só. Era como se tivesse deixado o prato encarregado a um pintor e ele
louro e, no final, triturei com a varinha mágica, ficando a sopa espessa com uma
cor suave. Pensando que o amor não precisa de adornos desnecessários, temperei
apenas com sal. Não há que aperfeiçoar o sabor com leite ou natas, nem usar
uma fada tivesse sido enviada para concretizar o amor. Enquanto servia a sopa
com cuidado para as tigelas de madeira, percebi que ambos olhavam fixamente
juntamente com uma colher de madeira. Dentro do tacho, ainda sobrava muita
sorrir. Entretanto, como já tinha escurecido, levei umas velas feitas de cera de
abelha; Satoru tinha saído do seu lugar e estava agora sentado ao lado de Momo.
Com o coração aos saltos, abri a tampa do tacho e a sopa tinha desaparecido por
completo.
sussurro.
Era como se na sua voz estivesse impregnado o desejo forte de não querer
«Não têm frio?», rabisquei eu à pressa no meu bloco, que entreguei a Momo,
E foi nesse momento que reparei que eles estavam a dar as mãos por baixo da
mesa. Mesmo que pequena, no meu peito acendia-se uma luz como a da chama
de uma vela de cera de abelha por ter contribuído para a felicidade dos dois.
fiz o máximo de barulho possível, abrindo a torneira e lavando a louça suja que
por conta da casa, como celebração do seu amor, dispostos num pequeno prato.
framboesa.
Ao imaginar que, de agora em diante, os dois iam experienciar cada vez mais
a inocência agridoce do amor, não consegui evitar sorrir. Dirigi-me para a mesa
sopa num beijo. Virados um para o outro, com os olhos bem cerrados, não se
mexiam, quais estátuas. Fiquei com vontade de continuar a vê-los assim, mas
Saí pela porta das traseiras em pezinhos de lã e, por algum tempo, dediquei-
Satoru.
deixá-los partilhar aquele doce momento, por mais um segundo que fosse.
Quando a lua quase cheia surgiu entre a «Montanha dos Seios», os dois
levantaram-se finalmente e voltaram para casa de mãos dadas.
Mais tarde, a sopa com legumes sazonais passou a fazer parte da ementa
principal. Alguém lhe deu o nome de sopa «Je t’aime» num blogue e, desde aí,
significativamente. Até então, achava que era eu quem estava a cozinhar, mas,
Penso que aprendi algo muito precioso através da sopa «Je t’aime».
Não sei se foi o efeito da sopa ou não, mas a verdade é que desde aí surgiram
inúmeros casais adoráveis que saíam d’A Cantina dos Caracóis para o mundo.
E foi por esse motivo que um dia me pediram para preparar uma refeição para
um casamento arranjado.
Apesar disso, eu era contra juntar os dois à força. Somente seria capaz de
encontros; porém, os seus critérios eram tão elevados, que não se contentavam
timidez». Por outro lado, a mulher era professora de japonês no liceu e era uma
«beldade esguia».
Ele era o mais baixo dos dois, apenas com um metro e sessenta e oito
centímetros, enquanto ela tinha um metro e setenta e cinco. Todavia, isso não
diferentes.
no peixe, a professora tinha uma alimentação mais vegetariana. Por mais que eu
puxasse pela cabeça, era impossível servir-lhes a mesma refeição. Mesmo que se
uma possível separação futura por causa da divergência nos seus gostos.
casamenteira no fim da entrevista numa voz meiga, dando-me uma palmada nas
muito animada. Por sua vez, os dois interessados entraram devagar atrás dela
— Agora, cabe aos dois jovens. Está na hora de os mais velhos se retirarem.
uma solução: fazer um prato francês apenas com vegetais. É comum pensar-se
que não é possível fazer um prato francês sem carne ou peixe, mas, se os
legumes tiverem força suficiente, é possível criar um cardápio no qual são a base
do prato. E há um segredo para isso.
francês: o tempero deveria ser subtil, mas o aspeto teria de ser arrojado e belo. E
finalizava o prato.
Para a entrada, fiz uma salada de morangos. Pus rúcula, agriões e morangos
o com cogumelos shiitake secos e temperei com sal, molho de soja e azeite.
Contudo, mais tarde, não sei se a meio ficaram com vontade de beber álcool,
conversa era pouca; todavia, ao olhar para a expressão de ambos, tornou-se claro
Podia não ser comida francesa à letra, mas, em seguida, fiz um risoto. Juntei
Por fim, usei toda a variedade de legumes que tinha na cozinha, triturando-
os.
apanhado junto ao riacho, assim como a casca dos rabanetes usados no bife e a
mostrei-lhes o meu bloco, que estava no bolso do avental, no qual tinha escrito:
«Ficaram satisfeitos?»
O meu coração deu um pulo de alegria quando ouvi a pergunta que tanto
meu coração. De tal forma que, impaciente, expliquei através de gestos que
— O quê?!
Na verdade, eu tinha pedido ao senhor Kuma, uns dias antes, para me levar
entanto, combinámos que ficaria em segredo até ao próprio dia. Pelos vistos, de
acordo com a tia casamenteira, ele não se sentia muito orgulhoso de ser o filho
herdeiro de um agricultor.
Quem sabe se com aquela refeição ele conseguisse ultrapassar esse complexo.
Eu ficaria muito mais feliz com isso do que com o desfecho do próprio
arranjinho.
crème brûlée com açúcar mascavado e torrei-o com o maçarico da cozinha, ficando
também um bule de chá com um ligeiro aroma a rosas. Por fim, diante da
marcavam o meu coração com um belo borrão que ficará para sempre.
Mesmo assim, tudo isto não queria dizer que o meu restaurante tivesse sido
com o funcionário mais velho, havia uma lenda que dizia que, se queimássemos
Seguramente, era a primeira vez na minha vida que eu ouvia tal coisa sobre
E então, como era hora do almoço, comemos todos juntos um waiwaidon e eles
foram-se embora.
O waiwaidon era uma especialidade que a minha avó tinha inventado para
momentos em que não havia tempo. Ela servia-a nas alturas em que aparecia o
cabos.
A história das salamandras queimadas passou por uma anedota, mas uns dias
nos pessoalmente para conversar no dia anterior à reserva, mas, como ele estava
muito ocupado, acabámos apenas por trocar alguns e-mails.
Naqueles que me enviou, ele nem respondia a metade das coisas que eu queria
saber. Ao que parece, era um indivíduo que não gostava muito de falar sobre si
mesmo.
vontade de experimentar a minha comida, pelo menos uma vez. Não era
Ele só estava livre no intervalo entre as três e as quatro da tarde. Por isso,
decidi à pressa agendar excecionalmente duas reservas para esse dia e cozinhar
para ele antes dos clientes da noite. O seu orçamento ia até aos mil ienes e
queria comer uma sanduíche: foi o único desejo que consegui obter dele.
Uma vez que só se teriam passado duas a três horas depois do almoço, supus
que não quisesse uma sanduíche pesada. Seriam horas do lanche e, como tal,
Estava na altura do ano das peras europeias. Sem demora, peguei no Caracol e
saí em direção a um pomar que ficava nos arredores da vila. Escolhi os frutos
doce.
Para a sanduíche, usei pão de forma inglês no qual juntei passas misturadas na
ficar bastante elástica e fina. A farinha artesanal, sem pesticidas, fora-me dada
por um agricultor das redondezas. Podia ser da minha imaginação, mas o pão
com farinha nacional tinha uma sensação diferente ao ser amassado. Finalizada
suco da fruta. Assim, mesmo que barrasse a mistura no pão, não haveria perigo
O pão com passas ficou cozido por volta do meio-dia. Agora, era só
Tratava-se de uma festa para nove pessoas, ou seja, muita gente para um
restaurante como A Cantina dos Caracóis. Ao que tudo indicava, o objetivo era
juntar certas pessoas deste grupo e formar casais. Decidi fazer uma bouillabaisse
num grande tacho de barro para que todos pudessem comer descontraidamente.
Quando dei por mim, já passava das duas e meia da tarde. Acelerei e comecei
a preparar a sanduíche de fruta. Para não passar ao pão o cheiro a peixe cru,
plástico, pu-lo dentro do balde próprio para fazer a ração de Hermès. Por via das
sódio, concentrei-me e cortei o pão ao meio com uma faca para tal. Por causa do
De forma a prevenir que o pão não ficasse empapado e para obter o sabor
combina melhor com o creme e a fruta. Ao dar uma dentada no meio do pão
Juntei as natas ao creme de iogurte e adocei com mel, que pedi emprestado ao
passatempo.
cortei-as em pedaços finos, prensei-as dentro do pão barrado com creme e fiz a
Assim que o homem chegou, baixei a cabeça num gesto profundo como sinal
Ele era mais velho do que eu tinha suposto a partir da nossa troca de e-mails, e
a proporção do seu cabelo era de sete cabelos brancos para três de cor normal.
Era de estatura pequena, mas tinha um corpo bem constituído; vestia um colete
de lã, que parecia ser de boa qualidade, por cima de uma camisa às riscas
brancas e azuis.
pouco nervosa.
Soube instantaneamente o tipo de chá que lhe iria servir ao ver a sua cara e
aparência. Fervi água e fiz uma infusão de chá preto, preparando tudo
rapidamente para que ele pudesse começar a comer o mais rápido possível.
sabor da sanduíche muito passageiro, seria o chá ideal, nem que fosse para lhe
dar mais contraste. Mesmo que ele achasse o creme da sanduíche pesado, podia
entrada da cozinha.
sanduíche de fruta que tinha feito até agora. E fiquei à espera, cheia de
problema? Não estava a perceber nada. No começo, até pensei que fosse uma
piada, que ele tentava assustar-me de propósito. Mas estava bem enganada.
creme, estava prensado entre as duas metades da sanduíche que o homem tinha
separado.
Ora, o meu cabelo estava praticamente todo rapado e, para estar ainda mais
nenhum bar de striptease e, sempre que estou na cozinha, uso sempre roupa
interior e calças. E até vejo bem. Ainda por cima, tinha verificado tudo
instantes antes. Era impossível uma coisa daquelas ter ido ali parar.
fotografia que tirara com a sua câmara digital. Uma foto ampliada do pelo
suportar qualquer tipo de humilhações, mas não me conseguia perdoar por não
fazer justiça à sanduíche de fruta, que não tinha culpa desta situação. O pelo
ração de Hermès, mas esta sanduíche de fruta não era capaz de lha dar.
E deitei-a no lixo, a sanduíche que tinha feito com todo o amor. Senti uma
angústia semelhante à dor de uma mãe que tivesse afogado o seu próprio filho
E, juntamente com a sanduíche, uma lágrima minha, uma só, caiu dentro do
caixote do lixo.
Adicionei leite e uma boa dose de açúcar ao chá, agora já morno, e bebi-o de
Neste mundo, existem vários tipos de pessoas. Mas, mesmo tendo consciência
No dia seguinte, descobri que esse homem geria uma antiga padaria de
obter foi que, aparentemente, ele andava com falta de clientes e o negócio não ia
de feição.
Nestes tempos, com o poder da Internet, e mesmo que fosse mentira, se ele
como prova. Porém, passada uma semana, e depois um mês, nenhum rumor que
Quem ficou ainda mais chocado com o que se passara foi o senhor Kuma.
Arrependia-se de me ter apresentado o homem assim sem mais nem menos, sem
Mesmo que não tivesse sido culpa minha, passei a ser ainda mais minuciosa.
Como tudo estava a correr às mil maravilhas, quem sabe se Deus não enviara
Seios» já estava levemente branca, como se lhe tivessem posto um sutiã branco
de renda.
seis pessoas.
A menina, aflita, parecia estar prestes a chorar, tal como as nuvens no céu.
— Por favor, ajude-me! — gritou ela num tom suplicante, assim que me viu.
Com as mãos cheias de carne picada e sem conseguir abrir o meu bloco, olhei
abusos sexuais nesta zona, mas, imaginando coisas desagradáveis, pensei que, se
maneja algo perigoso, tirou uma caixa do saco de papel que segurava.
todo esfarrapado, no qual se podia ver o nome dela escrito pela mão de uma
Kozue pegou com cuidado na caixa por baixo, levou-a até à mesa e pousou-a
Era um coelho.
— Ele está muito fraco... Por favor, ajude-me! — suplicou ela novamente,
fitando-me.
dela se escapar em pequenas nuvens brancas. Por isso, para lhe aquecer o corpo,
Usei o tempo em que aquecia o chocolate para pegar no bloco de notas que
estava ao meu lado; abrindo uma nova página, escrevi em letras grandes e
infantis: «O que se passou?» Como tinha a mão direita ocupada, não tinha
hipótese senão escrever com a esquerda. De tal forma, que ficou uma letra de
criança. Para o chocolate quente não pegar no fundo do tacho e queimar, mexia-
bati as natas fofas em castelo por cinco minutos e decorei o topo com uma folha
de menta fresca. A menta era boa para acalmar os nervos, pelo que seria perfeita
nervosa.
Fiz um gesto para ela começar a beber, e Kozue, com a caixa do coelho no
colo, esticou a mão de modo acanhado para a caneca. Nas suas pequenas unhas,
vapor que subia da taça, uma expressão fugaz de alívio passou-lhe pelo rosto,
semana.
Nessa altura, ele estava numa caixa maior, de cartão, com feno e ração. Lá
dentro, também se encontrava uma carta que o dono verdadeiro tinha escrito.
não posso continuar a cuidar deste coelho.» Era tudo o que constava na folha
branca.
Kozue levou o coelho para casa, mas a sua mãe não gostava de animais e não
permitiu que ela ficasse com ele. Zangada, mandou-a devolvê-lo ao sítio onde o
tinha encontrado. Porém, Kozue, com pena dele, não fora capaz de o abandonar,
durante o dia, levava-o para a escola, cuidando dele. Contudo, aos poucos, o
coelho começara a deixar de comer a ração e há já dois dias que não comia
absolutamente nada.
Quando acabou de me contar o que tinha acontecido até este dia, Kozue
agarrou com ambas as mãos a caneca que arrefecera um pouco e bebeu o resto
mais suave.
acinzentada.
Qualquer um destes sinais mostrava silenciosamente como ele tinha sido bem
Tanto para mim como para Kozue, o único consolo nesta situação difícil era
supor que o coelho não tinha sofrido maus-tratos ou violência pelo seu dono
Agarrei na caneta, desta vez com a mão direita, e escrevi no meu bloco,
por um dia?»
O mais certo seria ficar a odiar-me para o resto da vida. E tornar-se-ia uma
Kozue prometeu-me que voltaria no dia seguinte à mesma hora. Depois pôs a
Ficando sozinha com ele n’A Cantina dos Caracóis, soltei um enorme suspiro.
Por muito invulgar que fosse o meu restaurante, nunca tinha cozinhado para
um coelho anoréxico.
psicólogo já terá sorte se, depois de um longo processo de terapia, conseguir que
Para não o assustar, aqueci as pontas dos dedos com o meu bafo e,
Belisquei a sua cauda redondinha, que mais parecia um novelo de lã, mas ele
manteve-se imóvel. Mesmo se lhe fizesse cócegas, estou certa de que o bicho não
Com todo o cuidado, enfiei as mãos por baixo da sua barriga e ergui-o. O seu
coração, como se estivesse em carne viva nas minhas mãos, batia fortemente.
Era a prova irrefutável de que estava vivo. Todavia, tirando isso, o resto do seu
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corpo pendia como um mochi acabado de fazer, estático como uma pedra.
Olhei de frente para o seu focinho: o seu olhar era vago, sendo impossível
dizer o que estava a ver. Se eu tivesse de exprimir por palavras o que me dizia
aquele olhar, diria que as suas pupilas negras, semelhantes a gelado de café,
estavam viradas para um passado distante. Era como se olhasse, com um mau
Quem tinha feito a reserva fora a esposa, que era dona de casa. O marido geria
em neblina.
impossível colocá-las a todas no bolo, preparei oito velas grossas e cinco mais
pequenas.
lenha da sala, que tinha acendido mais cedo, a madeira ardia às mil maravilhas e
Usei o pouco tempo livre que me restava para juntar uma porção de cenouras
cristalizadas, que fizera a mais para o menu infantil, num pires para o coelho, e
esmaguei-as com um garfo. Estas cenouras eram tão boas, que eu passara a
encomendá-las regularmente à quinta do famoso agricultor que tinha vindo cá
Peguei numa caixa de vinho, daquelas que sobraram depois de ter feito o sofá-
cama, entalei no interior uma folha de jornal e pus lá o pires com o puré de
cenouras cristalizadas, juntamente com uma pequena tigela de água. Após ter
colocado tudo num canto da cozinha onde não fizesse muito calor, fui buscar a
caixa do coelho.
encostado a mão junto ao seu coração para verificar se batia, não saberia dizer se
Primeiro, transferi-o para a sua nova casa. Pensei que a caixa em que Kozue o
colher de café com puré de cenoura. Se ele não quisesse algo sólido, presumi que
pelo menos água beberia. Assim, enchi uma colher de chá com água e tentei
também levar-lha à boca. Todavia, como já esperava, ele continuou com o olhar
vago, virado para um passado longínquo, e não mostrou nenhum interesse nem
nos vegetais nem na água. Então, ocorreu-me a ideia de lhe fazer cócegas na
ponta do focinho com a rama seca de uma cenoura, mas também isso não teve
qualquer efeito.
da noite.
braços, fazendo com que eu pudesse não ter tempo para preparar a refeição, isso
não era culpa dos clientes. Se tal incidente influenciasse a qualidade da minha
equilibrados, e, tanto pelo aspeto como pelo conteúdo, dava-lhe nota positiva.
servi porções pequenas, embora suficientes para que um adulto ficasse satisfeito.
Fiquei na dúvida até ao último momento se deveria dispor uma bandeira por
cada prato. Por fim, nos últimos dez minutos, decidi que fazia falta e fiz uma
com papel e palitos. E, usando o lápis de cera amarelo que guardava dentro de
senhora.
E, para minha grande surpresa, era uma família em que, literalmente, não
havia crianças.
liceu e vestia uma farda da escola com colarinho à chinesa, e mesmo que a sua
irmã mais nova, com um fato de treino da escola básica local, ainda tivesse uma
Depois entrou o avô, que a mãe me tinha dito no dia anterior que estava um
inválida. O seu rosto estava desprovido de qualquer emoção, como se ele usasse
comer, que o velhote não estava apenas um pouco senil: estava completamente
taralhouco. De tal forma, que eu compreendia a razão pela qual a senhora queria
esconder isso. Quem queria o menu infantil não eram as crianças, mas sim o
sem usar colher, garfo ou pauzinhos. De vez em quando, com a boca cheia,
nem a sua família, que sempre vivera com ele, compreendíamos uma palavra do
A julgar pelo que eu podia ver à distância, o velhote estava convencido de que
a sua esposa inválida era a mãe. E tratava o filho e a nora como nada mais do
Mesmo assim, por poucas maneiras que tivesse, ninguém o repreendia: toda a
Num instante, os seis acabaram o menu infantil, que não era particularmente
copioso.
Como a senhora me avisara de que eles não tinham muito tempo, levantei de
bolo de aniversário.
filha, o filho, e depois para o marido e, por fim, qual doença infecciosa, até para
som das palmas que se repercutiu, mas sim uma série de soluços, que mais se
assemelhavam a gritos. Posso estar a ser grosseira, mas o ambiente era pesado,
Ele, com a sua expressão apática, ia apagando as velas uma a uma, num sopro
Era verdade, o velhote estava gagá. Isso era certo. Mas porque é que todos os
verter lágrima após lágrima? Sem dúvida, ele perdera a memória e esquecera o
Foi só quando eles se levantaram e a mãe veio até à entrada da cozinha para
— Vamos levá-lo esta noite para um lar... — explicou-me ela com um sorriso
agradecer, acrescentou: — Mas hoje foi uma grande ajuda. Não sei porquê, mas
sua esposa inválida, recusando a ajuda dos outros membros da família até ao
fim.
— Mas isso também não significa que nunca mais o vamos ver, não é? — E
acrescentou, numa voz pausada: — Voltaremos cá. Por favor, faça a refeição
preferida dele, está bem? O seu menu infantil de hoje estava muito melhor do
Eu não era capaz senão de pensar que ele tinha conhecimento sobre o seu
destino.
Bem, se eu não fizer nada, tu vais morrer, disse-lhe no meu íntimo. Não era
Por via das dúvidas, tinha marcado a caneta de feltro o nível da água no
exterior da tigela, mas não parecia que estivesse a diminuir, e, quanto ao puré
Infelizmente, não fazia sentido servir um bolo se não estivesse inteiro e, por
carregava consigo.
Após ter acabado de limpar tudo a preceito, decidi fazer-lhe uns biscoitos.
O seu pelo lustroso, ter sido colocado propositadamente dentro de uma caixa,
a carta que lá estava dentro... tudo indicava que ele fora bem tratado. Ou seja,
não tinha sido abandonado por alguém que já não gostasse dele. A carta, escrita
num computador, podia parecer um pouco fria, mas talvez fosse tão-só a
Eu não sabia muito sobre coelhos, mas o seu encanto saltava à vista; além
disso, não era da mesma raça daqueles que costumam ser criados nas escolas, o
que queria dizer que o seu dono devia ser abastado. Tinha sido criado com
levaram-me a um segundo raciocínio, isto é, por mais que ele tivesse sido bem
tratado, talvez tivesse acontecido algo difícil de ultrapassar apenas com o amor
da sua família. Como por exemplo, o falecimento da dona velhota que cuidava
dele ou até ter mudado de casa para uma na qual os animais não eram
menu infantil.
Eles queriam viver com o avô e ele queria viver com a família. Todavia,
complicada em que o seu dono se encontrava. Nem o avô nem o coelho falavam,
O que será que ele sentira dentro da caixa em que foi abandonado?
de passos a aproximarem-se. Vozes ao longe. Uma luz fraca. Uma tristeza e uma
Sozinho, querendo reaver o dono e ser aconchegado nos seus braços o mais
rápido possível, com certeza que teria chorado naquela penumbra. Mesmo que
depois, cansado de tanto chorar, sem outra hipótese, talvez tivesse desistido de
viver. E era possível que essa desilusão permanecesse até agora e ele tivesse
ele vinha, devia comer doces com frequência. Tinha sido essa a minha sensação
diante do frigorífico. E tinha sido por isso que, momentos antes, ele reagira
Estendi uma camada fina de massa numa placa de ir ao forno e, por cima,
polvilhei-a com pétalas de lavanda secas. A lavanda tem um efeito calmante nos
Será que o avô já chegara ao lar? A minha esperança era de que ele estivesse a
dormir o mais profundamente possível, para não ter de passar por uma
concubina vira o seu amado falecido em sonhos, mas, desta vez, para mim.
amassada.
Aliás, para ser mais precisa, ainda não acabara. Só darei o dia por terminado
Por mais que quisesse esquecer o olhar suplicante e pleno de confiança com
que Kozue olhara para mim, ele continuava gravado no meu espírito com a
Não estava a ser ingénua ao ponto de pensar que ele fosse confiar logo em
mim. Porém, se tivesse sido mimado e acarinhado, não só pelo seu dono, mas
por toda a família, imaginei que lhe fizesse falta calor humano. Se estivesse no
Deitei-me de lado na cama, virada de frente para ele. Pus uns quantos
como gelado de café do coelho luziam no escuro. E então, com a mão pousada
da minha mão. Era uma pena, mas nem uma migalha desaparecera.
pensar.
Sentia-me sufocada pela apreensão: será que o coelho iria morrer naquela
noite?
A certa altura, dei por mim a gemer no meio do sono agitado, absolutamente
desorientada.
Assim que abri os olhos, acordada por uma sensação estranha na palma da
mão, o restaurante estava imerso num turbilhão de luz ofuscante e pura. Por um
E, então, surpresa!
Era o famoso coelho anoréxico que, com a sua engraçada língua cor-de-rosa,
lambia sem parar a palma da minha mão. Como um caule cortado de uma
planta que volta à vida quando é posta em água, as suas orelhas estavam bem
Mas o mais impressionante era que nem um biscoito restava na minha mão!
Por um momento, achei que os deixara cair enquanto dormia, mas não era o
Aconcheguei-o nos meus braços com todo o meu amor. Um abraço sentido e
firme, mas gentil, para não o esmagar. Em seguida, pus bastantes biscoitos na
Ainda bem! Acima de tudo, estava orgulhosa por ter conseguido manter a
Ao longe, como que se estivesse a reclamar a sua refeição, a porca não parava de
guinchar.
seu corte de cabelo à tigela, veio ter comigo ao restaurante, apreensiva como
Estava de tal maneira espevitado que corria por todo o restaurante e, por isso,
sentindo alguma pena dele, eu fizera-lhe uma coleira com o relógio de pulso
que usava antigamente e prendi-o lá fora com uma guita, no jardim de ervas
aromáticas.
Inesperadamente, ele não se mostrou contrariado por estar preso. Longe disso.
Era apenas mais uma das minhas especulações, mas quem sabe se, pelo
contrário, ele se sentia seguro por estar atado. Mais do que uma trela, talvez ele
Na verdade, ele tinha um ar tão frágil, que ela ainda não lhe pegara uma
Uns dias antes, tinha ido à floresta nos arredores apanhar castanhas para as
com natas. Iria servi-los como sobremesa para os clientes daquela noite, mas,
pelo sim, pelo não, tinha feito a mais. No bule, tinha posto em infusão um chá
Já começava a fazer frio, mas dispus uma mesa e cadeiras lá fora e, com
da manta e aninhou-o. Ela, que apenas na véspera estava tão tensa, agora ria,
rejubilante.
mentalmente gratificantes.
Kozue. Eu estava algo preocupada por os bolos levarem manteiga e álcool, mas,
quando terminou de comer o pedaço que lhe foi dado, ele pediu por mais com a
sua pequena língua cor-de-rosa. Realmente, era um coelho perdido por doces. E,
por sua vez, Kozue, com a sua carita tão adorável quanto a do coelho, também
Ainda bem que abri A Cantina dos Caracóis, pensei, ao ver o cume da
— A minha mãe deixou-me ficar com o coelho. Vou cuidar dele em casa.
Muito obrigada! — disse ela de forma sagaz, olhando para o céu noturno de
eles, esta viagem era uma lua de mel secreta. Como não queria estragar o
ambiente romântico, pedi ajuda ao senhor Kuma e, nessa noite, decidi servir-
fosse o Pai Natal. Não tínhamos bebido nem uma pinga de álcool, mas tanto eu
Tudo o que eu fazia era cozinhar, mas isso era suficiente para que cada uma
coração.
Obrigada, obrigada!
até ela perder a força. Contudo, por mais que agradecesse virada para o céu
senhor Kuma.
pelo casal.
No fim do ano, fiz uma limpeza profunda com bicarbonato de sódio a todos
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esplêndido osechi , pelo menos de aspeto, independentemente de o seu sabor ser
bom ou não.
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deslumbrada. Sorvia o toshikoshisoba enquanto assistia ao festival de fim de ano
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o-toso . Passávamos os primeiros dias do ano a petiscar o osechi que tínhamos
feito e a beber saqué. Era sempre assim que eu começava o ano com a minha
avó.
Desde que ela faleceu, passei a celebrá-lo à maneira indiana com o meu
sem falha, roupas novas. Nesse dia, eu também envergava as roupas punjabi que
as noivas usam antes do casamento. Enfiava uma túnica folgada de seda fina de
alta qualidade, umas calças largas e enrolava uma comprida écharpe à volta do
pescoço. E depois fazia uma tarte frita de caju, coco e amêndoa, chamada
ghughra.
Nesse inverno, no dia de Ano Novo, a minha mãe foi para o Havai com os
seus clientes habituais do bar Amor, para jogarem golfe e fazerem compras. A
tia casamenteira também fazia parte do grupo. E, por isso, acabei por passar a
passagem de ano sozinha. Claro que tinha a companhia de Hermès. Pus o osechi
Feliz Ano Novo!, pensei, dirigindo-me a Hermès, mas, como é evidente, ela não
respondeu.
neve. O tempo que me restava, passava-o a tirar com uma esponja própria as
Assim passava os meus dias enquanto A Cantina dos Caracóis entrava num
período de hibernação.
As estradas estavam cortadas por causa da neve e, por isso, os clientes que
viviam fora da aldeia, mesmo que quisessem, não conseguiam vir, porque o
miniautocarro que, até agora, fazia várias viagens de ida e volta por dia,
outra região e quisessem vir ao restaurante, eram obrigados a passar uma noite
Já tinha ouvido dizer que os seres vivos, quando não usam uma das suas
Uma vez, quando era mais nova, enquanto comia um prato de noodles no
como o apetite, o desejo sexual e o sono, cozinhar era um pilar da minha vida. E
costume.
Eu era capaz de amar quase todas as pessoas e seres vivos. Porém, a única
pessoa que não conseguia amar do fundo do coração era a minha mãe. A minha
raiva por ela era algo tão profundo e pesado como a energia que me fazia amar
Penso que as pessoas não são capazes de nutrir sempre os sentimentos que
momentos em que palavras feias lhe vêm à cabeça e, por outro lado, até num
Por isso, para preservar limpa esta água barrenta, pensei em manter-me o mais
silenciosa possível.
Quando um peixe se debate, a água acaba por ficar turva; pelo contrário, se eu
mantivesse o meu coração calmo, o lodo iria acabar por assentar no fundo e a
A desavença que tenho com a minha mãe era precisamente a lama dentro de
mim, mas, se permanecesse serena, ela não sujaria todo o meu coração. Assim
sendo, tentava evitar a minha mãe o melhor que conseguia. De certo modo, era
Foi num desses dias meditativos de janeiro que o senhor Kuma apareceu de
repente e disse:
— Ringo, não queres ir agora à minha terra natal, conhecida pelos seus
rabanetes vermelhos?
esqui para se proteger do frio, estava a convidar-me para ir visitar os campos nos
casal gay.
Fui apanhada desprevenida por aquele convite em cima da hora, mas, como
marinhas, calcei as minhas habituais botas de cano alto e saí de casa. Fomos na
carrinha dele até onde esta podia ir e, a partir daí, calçámos as nossas raquetes
baixo dela.
— Queria mostrar-te, pelo menos uma vez, a vista daqui, Ringo... — disse o
Não sei o que ele levava dentro da mochila, mas parecia ser algo bastante
pesado.
quase absoluto. A cada passo que dávamos por aquela extensão de neve em pó
guincho de um coelho-bravo.
Tudo o que a minha vista alcançava era um mundo de neve e gelo. Estava um
— Campainhas-brancas!
caule, rebentava uma flor branca inclinada para baixo. Mas não se tratava apenas
rebentaram quando ela estava cá, só floresceram quando ela se foi embora... Não
são bonitas?
ribeira. Uma rajada de vento com um aroma ligeiramente doce varreu a planície
de neve.
— Chegámos!
Assim que o senhor Kuma anunciou isto, o meu corpo voltou a aquecer
completamente.
pequena, com uma cara de tal forma idêntica à dele, que quase pareciam
vermelhos.»
caneta. Não sei se ele adivinhou isso mesmo, mas o senhor Kuma traduziu
O que vinha dentro da sua grande mochila era um piquenique para toda a
gente.
mesmo tempo que abria os tupperwares que trouxera, uns atrás dos outros,
espalhando-os pela mesa. — Não sei se vão gostar do tempero da minha mãe,
À nossa frente, estavam vários pratos como nishime, karaage, onigiri e vários
pickles, atravancados, uns a seguir aos outros. Como estava com fome, resolvi
A refeição que a mãe dele nos preparara tinha um sabor leve, como a comida
excelência feito com dashi, enquanto o tempero habitual da minha mãe era
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nishime estavam macios e bem cozidos, desfazendo-se na boca. Não sei se o
dashi era feito apenas a partir do niboshi, mas tinha anchovas japonesas inteiras.
70
A tamagoyaki estava bem tostada na parte inferior, com um intenso sabor a
Alasca fritas.
minha boca. Jamais teria o requinte de uma refeição num restaurante de luxo,
mas era um grande banquete com fortes raízes desta terra, permitindo-me
— Este é o tipo de comida que mais me faz sentir em casa — murmurou com
Havia já muito tempo que eu não comia uma refeição feita por alguém.
mesmo assim, comi o máximo de onigiris que pude. A minha barriga enchia-se
cada vez mais de satisfação. E isso devia-se ao facto de a mãe do senhor Kuma os
ter feito esmeradamente, a pensar em nós. Era como se estivesse a comer não
Foi nessa altura que uma recordação me veio à memória. Aquela sensação não
me era estranha.
Fui tomada por uma poderosa sensação de déjà-vu. Então, percorrendo o fio
das minhas recordações, vi-me subitamente diante da minha avó. Ali estava ela,
senhor Kuma nos fizera e os pratos que a minha avó confecionava possuíam a
lágrimas.
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Após bebermos o chá de dokudami que a esposa do produtor de rabanetes
Quando o trinquei, era de tal forma suculento que o seu suco quase me saltou
para a cara. Tinha um sabor fresco, e o equilíbrio entre o doce e o picante era
perfeito. Como ele teve a gentileza de nos dizer para comermos o que
desejássemos, tanto eu como o senhor Kuma não nos fizemos rogados. E, apesar
O céu estava limpo e por entre as árvores cobertas de neve avistava-se o mar.
A linha do horizonte que separava o mar do céu, ambos com cores subtilmente
diferentes, prolongava-se até ao infinito, como se tivesse sido traçada com uma
régua.
— Estás bem? — O senhor Kuma, que caminhava à minha frente, veio logo
socorrer-me.
Envergonhada, deitei a língua para fora enquanto ria como uma palerma.
que me pus de pé, sem força nas pernas, voltei a cair em cima da neve. Não
tinha fraturado nada, mas, pelos vistos, caíra mal e fizera uma entorse no
Estava prestes a tentar de novo, pondo o meu peso apenas sobre a perna
direita e zelando pela esquerda, quando o senhor Kuma tirou a mochila das
costas.
percebi o que ele pretendia. Então, ele pôs as costas a jeito e disse:
— Vá, não estejas com cerimónias, põe-te às minhas cavalitas. Ainda sou
capaz de te levar.
substituída por um cenário bem mais alto. Respirando fundo, o senhor Kuma
começou a andar.
Tal como tinha feito naquele dia, quando eu estava a chorar sozinha num
d’A Cantina dos Caracóis. Já tinha passado por muito, mas eis que agora me
Estava tão habituada a isso, que me esqueci de que quem tinha um problema na
Senhor Kuma, porque é que é tão bom para mim?, perguntei-lhe em silêncio.
descarreguei na tua mãe, fiz muitas coisas más... Mas ela ouviu-me sempre com
gostaria que o senhor a ajudasse. Por esta altura, deve estar a subir a alguma
figueira. Pode ir ver, se faz favor?» E então eu fui logo de seguida, e não é que
aconteceu exatamente como ela tinha dito? Por mais que eu agradeça à tua mãe,
inesperadamente enfiado uma ameixa seca na boca. Não fazia a mínima ideia.
— Ringo, se fores às termas, pode ser que a tua perna fique boa mais
depressa. Eu fico de olho se alguém vier, que achas? Vamos? Eu não espreito,
águas das termas desta aldeia têm a reputação de ser eficazes para hematomas e
«Obrigada.»
«Mas o senhor Kuma deve estar com frio. Que tal se entrasse também?»
talvez não déssemos de caras com os velhotes da aldeia que vinham tagarelar
para os banhos.
Quando dei por mim, o sol pusera-se por trás das montanhas e apenas a neve
festa.
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Ao voltar para casa, depois de ter posto a marinar o kimchi para Hermès no
A festa teria lugar no bar Amor e, pelos vistos, tratava-se do banquete anual
de peixe-balão.
Muitos deles tinham ido com ela na sua viagem ao Havai no fim do ano. O
noite tranquila, a ler ou a tricotar. Além disso, não queria ver a cena que seria a
Mesmo assim, decidi ir. E a razão era eu também querer comer peixe-balão.
Claro que já tinha experimentado uma ou duas vezes. Contudo, as fatias eram
finas como papel e, por muito que mastigasse, não conseguia definir muito bem
o seu sabor.
tardiamente.
Pouco depois das cinco da tarde, alertada por uma grande algazarra no
tentava atar um renitente cavalo branco a uma palmeira. Sem dúvida que tinha
vinha no seu adorado Mercedes-Benz, mas montado num cavalo, e logo branco.
A minha mãe divertia-se a espalhar esse facto e eu, que já quase me esquecera
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takifugu que encomendara de Ota especialmente para a ocasião era grande e, à
Eu verti o ponzu
4
7
caseiro que ele trouxera para cada uma das pequenas taças.
banquete.
Eram todos grandes apreciadores que tinham esperado ansiosamente por este
dia. Cada um tinha trazido bebidas alcoólicas — saqué, sochu, cerveja, vinho...
Rosé. Por mais que tentasse disfarçar, a minha mãe adorava esse champanhe. Eu
também já vira uma garrafa certa vez, na montra de uma loja de produtos de
luxo importados. Claro que nunca o tinha provado, mas sabia que era muito
como se fizesse parte de um sonho. Seria isto a que chamavam bênção? De facto,
belo sonho.
impacientemente.
Apesar do nome, não tinha mesmo veneno; apenas lhe chamávamos assim a
fígado. Verdade seja dita, esta forma de comer peixe-balão era proibida fora da
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peixe-balão grelhado, o karaage e a zosui . Por isso, todos concordaram em
segundo no fim, mas desta vez com o fígado. Assim, mesmo que alguém
morresse, não haveria remorsos. Uma ideia que só podia vir de verdadeiros
glutões...
Rosé, arrefecido pela neve, mas, vá-se lá saber porquê, vinha enrolado num
estavam a separar o champanhe que iriam beber do dos outros. Nos seus
próprios copos, vertiam o Cristal Rosé e, nos outros, um Pommery Rosé. Estava
maldisposta.
diferente, mas, aos olhos de toda a gente já bêbeda, ninguém deu por isso. Na
verdade, nenhum dos convidados imaginava sequer que alguém pudesse fazer
rapidamente, sussurrando:
Tentei devolver-lhe o copo, mas ela já se sentara no seu lugar. Nessa altura, o
brincadeira:
E, depois de brindar, pôs uma copiosa porção de fígado em cima de uma fatia
de sashimi e enfiou-a na boca. Ao mesmo tempo que eu pensava que até não
— Safei-me!
Que pena!, pensei, soltando um grande suspiro. Em seguida, para afastar esse
Tal não queria dizer que não me sentisse mal pelos outros, mas tratava-se de
Rosé.
Eu ainda não era capaz de imaginar com clareza como seria o Paraíso, mas, se às
suas portas me servissem nem que fosse apenas um gole deste champanhe,
karaoke, outros dormiam no chão. Com uma voz arrastada, um debatia o estado
Sozinha atrás do balcão do bar, limpei tudo. Era incapaz de deixar os pratos
sujos.
A minha mãe, que tinha bebido mais de metade da garrafa de Cristal Rosé
Para não os ver aos apalpões, concentrei-me na louça suja. Desde pequena, fui
testemunha diária deste género de espetáculo, mas, tivesse eu que idade fosse,
Foi então que ouvi as palavras melosas que o neoconservador soprou ao ouvido
da minha mãe:
— Então, Ruriko... Diz que sim, nem que seja só uma vez. Dei-te a comer
um peixe-balão delicioso, não dei? E o Cristal Rosé também era bom, não era?
— Qual é o problema? Isso não se estraga com o uso... Não será por o fazeres
uma vez na vida que serás castigada... Hás de arrepender-te se morreres sem
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A princípio, pensei que estivessem a fingir que contracenavam num manzai .
desde que eu era criança. Com todo o dinheiro que lhe dera, era o indivíduo que
tinha subido à condição incontestável de seu amante. Era muito difícil acreditar
— Olha lá!
Irritada, enfrentei-o, fitando-o firmemente nos olhos. Ele deu um estalo com a
— Realmente... não há nada a fazer. Teimosas que nem mulas! Tal mãe, tal
filha. Era só abrir as pernas... É por seres assim casmurra que a tua filha tem
— A patroa pode parecer que não, mas é pura... Isso não é algo bom? A
Ruriko diz que quer manter a virgindade, o que, atualmente, faz dela uma
fazerem isso logo na primeira vez que estão com um tipo que nem conheciam
ficou ali plantado de microfone na mão, mesmo depois de a música ter acabado.
A minha mãe é virgem...? Então, isso quer dizer que eu não sou filha dela?
esperava, Ruriko podia não ser a minha mãe verdadeira. Algures neste planeta,
eu tinha uma mãe benevolente e gentil à minha procura até agora... Uma réstia
Subitamente, a minha mãe levantou a cabeça, com a cara tão rosada como o
embebedava, não era uma novidade. Fora assim que conseguira enganar muitos
homens.
Estava de olhos arregalados. Mas quem estava estupefacta era eu, e fiquei com
voltou a falar.
— Tu és um bebé-pistola de água...
Um bebé-pistola de água...
Não conseguia pensar; era como se tivesse gesso na minha cabeça. Então, o
pormenorizadamente.
Tudo o que ele contou era novidade para mim e eu nem sabia se deveria
Quando andava no liceu, a minha mãe tinha um namorado que era um ano
decidiram manter uma relação platónica até a minha mãe terminar o liceu, e
minha mãe estudou com afinco. E, notavelmente, entrou para uma universidade
Neste ponto da narrativa, pensei que talvez fosse por isso que eu chamava a
minha mãe à maneira de Kansai. Mas a história ainda não tinha acabado.
Desde essa altura, a minha mãe tornara-se desesperada. Por isso, para tentar
começar a viver a sua própria vida. Mas, como nunca tinha imaginado oferecer a
sua virgindade a outro, decidiu que não importava quem fosse. Todavia, quando
chegou a hora da verdade, sem conseguir esquecer os sentimentos que tinha por
respondeu:
— Pois não. Até mesmo agora os bancos de esperma não são bem aceites no
Japão.
acaso, num encontro noturno. Encheu a pistola de água com o esperma dele,
fazendo gestos.
— Como ele tinha uma aliança no dedo anular da mão esquerda, quase de
certeza que era casado. Por isso, eu disse para comigo que aquela criança era
fruto de adultério e foi por isso que te chamei Rinko. Nada mau, hem?
— A Ruriko tem um coração devoto. Até agora, ainda tem sentimentos pelo
ressonando.
ouvido que era possível engravidar com uma pistola de água cheia de esperma,
mas se isso era mesmo verdade eu era certamente a primeira bebé no mundo
Com o rosto contra o balcão, a minha mãe não parava de balbuciar enquanto
dormia.
Alguns pagavam a conta enquanto outros dormiam como uma pedra, deitados
no chão. Para não os acordar, eu continuei a limpar.
Sempre fui muito ingénua, acreditando logo no que me diziam. Por isso,
tinha as minhas dúvidas e perguntava-me se eles não estariam feitos uns com os
Honestamente, sabia, algures no meu coração, que as pessoas que ali estavam
Nessa noite, descobri uma outra Ruriko que se movia num mundo que me era
— Tenho de ir mijar.
Mas o bar tem uma casa de banho. Que necessidade tens de ir lá fora? Além disso,
Ainda me sentia contrariada quando ele voltou, com as costas curvadas por
causa do frio e a puxar energicamente pelo fecho das calças, que tinha ficado
grande grinalda de flores, mas, como parecia mais apropriada para um pachinko
sem graça, eu guardara-a nas traseiras do bar, onde ainda continuava. Era de tal
maneira grande, que não tive coragem de a deitar fora e, entretanto, esquecera-
me completamente dela.
minha cara e, de uma forma ordinária, acrescentou num tom ainda mais
desagradável:
— Ah... Não cozinhas para gajos de quem não gostas, não é? Mas quem achas
que és? E ainda dizes que és a chef d’A Caracoleta? Só podes estar a brincar
comigo. Se escolhes os teus clientes, não és uma profissional. O teu jogo de faz
Quando acabou de falar, tinha nos cantos da boca duas bolhas de espuma,
Era isto que eu queria responder-lhe. Além disso, eu já passei por muitas
de merda. E, no que toca ao amor que sinto pela comida, estou confiante de que
Além de que esses insultos não me afetavam só a mim, mas também aos deuses
havia apenas um resto de sopa de miso com dashi pré-cozinhada. Ou seja, não
estava com esperanças de encontrar alguma coisa no frigorífico, mas, para não
Mas, tal como previa, não havia nem um ingrediente que pudesse usar. Até o
fiel jarro de nukado estava vazio. E ainda era demasiado cedo para comer o
kimchi de couve-chinesa que tinha posto a marinar alguns dias antes. Até o
procura há já algum tempo. Estava guardado na gaveta de cima, mas devia ter
Na panela de arroz do bar, ainda devia haver arroz branco que não fora usado
antes para o zosui. Ora, com aquele katsuobushi, eu podia fazer um dashi de
Peguei com as duas mãos numa saladeira com o katsuobushi e as algas e voltei
em passo de corrida para o bar, onde enchi uma caçarola com água. O
movimentos.
mundo... Estás a falar com um homem que já foi até à Tanzânia só para comer
Porém, fingi que o que ele me disse tinha entrado por um ouvido e saído por
hipopótamo tantas vezes desde pequena, que já estava farta de a ouvir. Cada vez
para ele era um trabalho tormentoso, mas esforçava-me ao máximo para não me
lembrar disso, visto que o sentimento de aversão seguramente se iria refletir nos
sabores. Resumindo, esvaziei tanto o meu coração como a minha cabeça, porque
coisas agradáveis, ficando de pé, calma e alegremente. Palavras que a minha avó
Calculei o timing certo e tirei as algas da caçarola. Após suster a respiração por
ali, tudo saíra bem, como era habitual. Apenas faltava aprimorar o sabor com
sal.
Foi então que reparei que não era capaz de saborear nada. Talvez fosse porque
tivesse comido muito e, além disso, bebido muito álcool. Normalmente, sabia
logo se a comida tinha sal suficiente, mas naquele momento vi-me incapaz de
determinar se estava no ponto certo. Por mais que colocasse sal, tinha a
impressão de não ser suficiente, mas, ao mesmo tempo, parecia que já estava
pitada de sal para finalizar. Depois servi o arroz na tigela que aquecera
também.
«faça bom proveito», fitei os seus olhos. Devia estar bêbeda, porque me sentia
Se fosse n’A Cantina dos Caracóis, poderia fingir que me recolhia na cozinha,
espreitando a sua reação com o meu espelho. Contudo, no bar Amor, as coisas
não seriam à minha maneira. Sem ter para aonde fugir, não tinha hipótese senão
O som dele a devorar o ochazuke ecoava por todo o bar. Era como se toda a
os pauzinhos na tigela.
Apreensiva, olhei para a sua cara; não sei porquê, mas ele tinha os olhos
Por mais barbaridades ou comentários inoportunos que dissesse, ele não era
precipitei-me para a casa de banho. Não era capaz de chorar à sua frente.
banho, ele já se tinha ido embora. Por debaixo da tigela, deixara dez mil ienes
da conta e mais uma nota de dez mil ienes. E era evidente que não fora por
estendia-se o rasto dos pequenos cascos do cavalo, à mesma distância uns dos
outros. A minha mãe, que fora deixada sozinha no bar, tossia intensamente.
desagradável. Num sono profundo, o perfil dela parecia mais magro do que o
habitual. Podia ser imaginação minha, mas ela estava com má cor.
Tinha sido um dia muito preenchido.
Não sabia a quem tinham sido dirigidas essas palavras, mas a sua voz era
como um véu fino e macio que tivesse sido pousado gentilmente sobre os meus
ombros.
Era assim que eu via a minha relação com a minha mãe e o neoconservador.
hibernava no meio da neve. Tanto num caso como no outro, não fizera de
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E à tarde, enquanto fazia os preparativos para a acqua pazza de rodovalho,
costumavam sair de uma vez como uma pregadeira, mas naquele dia ficou tudo
desfeito. Para piorar, deixei cair a valiosa garrafa de azeite virgem que tinha
Pouco depois das onze da noite, voltei do restaurante para casa e, quando
entrou por ali adentro, completamente nua. Fiquei petrificada. Quando vinha a
noite, ela ia trabalhar para o bar e raramente ficava em casa. Mesmo quando eu
era pequena, não me lembrava de alguma vez ter tomado banho com ela.
Estava sóbria, mas começara a falar num tom muito animado, como quando
bebia.
— Voltei a ver o Shou, dos meus tempos de liceu. Encontrámo-nos por acaso.
O Shou? Do liceu?
Por mais que estivesse sempre pronta a usar o meu bloco, não o trouxera para
a casa de banho.
— Não ouviste no banquete? Aquele meu primeiro amor, com o qual prometi
Tanto o tom de voz como a sua maneira de se exprimir eram de certa forma
diferentes do habitual.
olhando em frente:
— Sabes, ele não mudou nada... Claro que, uma vez que não nos vemos há
mais de trinta anos, já envelhecemos os dois, mas... mas no fundo ele não
Olhei-a de relance e pude ver que o seu pescoço estava ligeiramente tingido
tinha estado tempo suficiente dentro do banho a refletir sobre várias coisas e a
Pensando que ela tivesse acabado, tentei saltar para fora da banheira.
Até porque podia perfeitamente ouvir aquela história fora do banho. Mas foi
acabara de me fazer. Mesmo assim, não entendia nada. Ela tinha um cancro e só
lhe restavam alguns meses de vida, e o oncologista que a atendera tinha sido o
seu primeiro amor, Shou. E ela descrevia isso como: «Um daqueles acasos da
televisivos que passavam depois do almoço. Eu não era capaz de acreditar que
Para mim, a minha mãe era forte, determinada e com mau temperamento, o
meu adversário nas discussões. Nunca a vira chorar, nem uma única vez, e
pensava que era imortal. Era como um saco de areia que nunca rebentava por
mais pancada que eu lhe desse. Que essa forte personalidade, que fazia recuar
até as bestas, fosse vencida pela doença, e ainda para mais uma doença vulgar
com apenas duas sílabas, era uma piada de mau gosto. Eu estava convencida de
e, na verdade, era ainda do tempo em que eu tinha deixado esta casa, há dez
anos. Reparando bem, a geleia tinha bolor que mais se parecia com neve. Ao
maionese, meio usados, estava o cadáver de uma barata abandonada. Tudo isso
Então, será que a sua morte significaria que todos os sinais dela, incluindo
tudo aquilo, iriam desaparecer rapidamente deste mundo? Não era possível.
Gritando no meu íntimo, fechei a porta do frigorífico com toda a força que
tinha.
Sem pregar olho toda a noite, vesti um blusão de penas por cima do pijama e
saí para a rua. No céu noturno gelado, via-se uma miríade de estrelas.
Sem ninguém com quem pudesse conversar, fui para ao pé de Hermès. A noite
mar. Era como se estivesse a ser engolida aos poucos, desde a ponta dos pés, pelo
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líquido de yokan gelatinoso.
Ainda não era capaz de acreditar em nada do que a minha mãe dissera. Queria
que ela me dissesse que era tudo uma brincadeira de mau gosto.
Esta curta frase, que ouvira tantas vezes ao ponto de ficar a odiá-la, era o que
Hermès estava com os olhos entreabertos. Pelos vistos, também não conseguia
bem mais adorável do que à luz do sol. Emocionada, agarrei-me às suas grandes
costas.
Mesmo fazendo um esforço, não se podia dizer que cheirasse bem, mas o seu
corpo era quente, e o meu nariz já se habituara àquele cheiro, como o perfume
Sei bem que somos impotentes face a certas realidades da vida. São escassas as
coisas que dependem da nossa própria vontade e, na maior parte dos casos, os
com a nossa vontade dentro da imensa palma da mão de uma instância superior.
A vida tem muito mais coisas más do que boas, sobretudo, a minha, mas,
que...?
Quanto mais pensava, mais frustrada ficava. Encostei a cara ao dorso áspero de
Hermès e não consegui evitar morder com força os meus lábios ao ponto de
sangrarem.
Na manhã seguinte, pela primeira vez desde que eu voltara à minha terra
minhas notas sobre os cuidados a ter com ela, nas quais estava escrito, na letra
elegante da minha mãe: «Em caso de diarreia, acrescentar duas ou três colheres
Sem demoras, pus mãos à obra. Acho que também a porca devia ter sentido
Desde então, noite após noite, na minha cama ou junto a Hermès, passei as
às voltas na minha cabeça, perdia a vontade de dormir. Mais cedo ou mais tarde,
ela fosse enfraquecendo, passando tanto tempo quanto possível com ela. Fazia
Pressentia que, se parasse, nunca seria capaz de me recompor. Além disso, ver
restaurante declarar o seu amor ao rapaz de quem gostava, regressou com ele,
cozinheira.
ela continuava a mesma, atrás do balcão do bar com a sua roupa espalhafatosa e
Passados alguns dias desde o seu desabafo, ela apareceu no restaurante com o
seu primeiro namorado, atual noivo. Chamava-se Shouchi.
citadina, mas ao mesmo tempo dava ares de monge. Bastava olhar para ele, tal
como com o neoconservador, mas da maneira oposta, para se perceber que não
era o meu pai. Era bastante atraente, ao ponto de endoidecer a minha mãe até
agora. Talvez essa sensibilidade à beleza física fosse um ponto em comum entre
nós.
a água quente, rezei para que dali desabrochasse uma flor tão bela como a de
lótus, que emerge da lama. As duas chávenas, que coloquei uma ao lado da
Ao que parecia, Shouchi vivera muitos anos no estrangeiro. Como tem uma
grande diferença de idade da minha mãe, pensei que talvez ela estivesse a ser
enganada por ele. Suspeitei de que ele fosse um vigarista com o objetivo de
para viver.
No entanto, era um homem sério, declarando-me com paixão o seu amor pela
era uma pessoa honesta. E, tal como a minha mãe, ainda era solteiro.
Desde que se separara da minha mãe, Shouchi tinha namorado com umas
quantas senhoras. Porém, nunca se resolvera a casar-se, porque, dizia ele, não
fora capaz de a esquecer. Pelo menos, como confessara que tinha tido outras
namoradas, não era obviamente virgem. Supunha que na idade deles isso já não
teria importância.
segura de si:
— Por favor, deixe-me casar com a menina Ruri... quero dizer... com a
Depois, não sei o que lhe deu, mas ajoelhou-se repentinamente, baixando a
Eu disse-lhe que parasse com aquilo e consegui fazer com que ele erguesse a
cabeça. Parecia prestes a chorar. E a minha mãe, claramente, também tinha
Que maçada!
era capaz de pensar em mais nada. Além disso, na situação em que ela se
Seria assim que o pai de uma noiva se sente ao dar a mão da sua filha?
Depois, passou-se tudo muito depressa; a minha mãe, a futura noiva, avançou
Shouchi, muitas vezes preso ao seu exaustivo trabalho no hospital, vinha vê-la
queriam viver juntos e nunca dormiram um com o outro. Ambos perto dos
E então, certo dia, por causa de uma reserva que tinha sido cancelada no dia
anterior, o restaurante estava fechado. Sem querer, dormi até mais tarde e, ao
acabar de cozer o pão de Hermès, como tinha tempo, fui tomar banho
mais forte.
mais forte que a minha mãe fosse, a doença ia-lhe corroendo o corpo pouco a
pouco.
Ao que parecia, até lhe custava estar de pé, pelo que se acocorou junto à porta
envidraçada.
casamento.
Depois, estava previsto convidarem vários amigos e conhecidos e fazer uma boa
Ou seja, estava à espera de que eu fizesse comida para toda a gente, era isso?
Pensando bem, nunca tinha cozinhado para a minha mãe. E, como sentia que
queria fazer por ela tudo o que estivesse ao meu alcance, concordei de boa
— Pensei em comer a Hermès para a ocasião. Ela será mais feliz assim. Quando
Num dos primeiros dias de primavera, com a ajuda do senhor Kuma, coloquei
Estava muito bom tempo, o sol parecia sorrir no céu azul, os passarinhos
molemente como peitos descaídos de uma velha, deixavam cair as suas gotas,
Cada vez que ouvia o som dos passos de Hermès, que sentia o seu cheiro, que
amassava o pão de que ela tanto gostava, a cara bem redonda e quase sorridente
Quando disse que a queria comer, ela ainda dizia piadas como «Eu é que lhe
faço a folha», ou «Tenho a certeza de que o sangue deve cheirar a rosas, uma vez
que ela é uma parte de mim». Porém, à medida que o momento de passar à
apetite.
Tens a certeza?
Por várias vezes, escrevi esta pergunta no meu bloco, para me assegurar.
No fim, sem chamar o fotógrafo profissional para tirar uma foto dos dois após
deu-lhe o seu pão de nozes preferido e, enquanto ela comia extasiada, regressou
a casa.
Eu observei-a a fazer tudo isso desde a pequena janela do meu quarto. Depois,
desde esta manhã, não voltou a levantar-se da cama. Esse acabou por ser o
seus botões, Hermès, que seguia meio desnorteada e devagarinho, tinha os olhos
murchos e enfiados nas órbitas. Dir-se-ia que sorria, ou então que se debatia
Eu já não sabia se o que estava prestes a fazer era a coisa certa ou errada.
Quando quase alcançava alguma resposta, ela facilmente se escapulia por entre
os meus dedos.
gritaria «Somos nós!», e a minha mãe viria receber-nos com um sorriso, sem
era um antigo colega de escola do senhor Kuma, o seu melhor amigo e parceiro
leiteiras, vendendo leite e iogurte. Mas antes a atividade era bastante mais
como este homem ajudava o seu avô a matar os porcos desde criança, tinha uma
larga experiência nisso e, algumas vezes por ano, a pedido dos vizinhos,
matadouro.
Hermès sabia. Quero dizer, intuía. O seu próprio destino, mas também a
tanto com a de uma velha; era mais o semblante sábio e pensativo de um velho.
As suas pestanas brancas brilhavam à luz do sol que ia alto no céu. As suas
com uma expressão ainda mais doce, abrindo a boca como quem sorria e, por
Obrigada. O nosso tempo foi curto, mas fiquei feliz por poder passá-lo contigo —
local.
— Menina Ringo, já posso? Posso mesmo? Olhe que este vai mesmo ser o seu
Contudo, sem lhe responder, não... na verdade, não fui capaz de lhe dizer
nada. Apenas baixei tanto a cabeça que quase tocava no chão. Junto às minhas
pernas rastejavam insetos e, ao olhar para cima, o sol ardia como uma bola de
fogo.
calma até há pouco, começou a chorar num pranto como se os seus sentidos
tivessem despertado.
O seu choro soava desesperado como se pedisse ajuda à sua mãe, como um
recém-nascido.
O corpo de Hermès, todo ele levemente lavado com água, foi pendurado no
com o seu corpo pendurado. O choro violento que continuara até agora, parara,
talvez de cansaço. Apenas a sua respiração intensa chegava aos meus ouvidos.
Abri os olhos e caminhei lentamente até ela. A cada respiração o seu corpo
enchia-se como um balão. Debaixo dela estava um balde. Estava tudo pronto.
Desta vez, a responsável pela sua destruição era eu. E, por isso, tinha a
O amigo do senhor Kuma dá-me uma faca que trouxe do celeiro. Como se me
Kuma.
Nos seus olhos, semelhantes a passas, julguei ver lágrimas. Era insuportável.
Passado um pouco, o sangue que lhe irrigava o corpo encheu o balde por
superfície, para evitar que coalhasse, pois era necessário para fazer enchidos.
Estou convencida de que todos os alimentos são seres vivos, quer se trate da
sempre muito cuidado para não desperdiçar nada. No caso de Hermès, esse
sentimento era mais forte do que nunca. Em Okinawa, diz-se que se come tudo
do porco, exceto os seus grunhidos. Quanto a mim, decidi cozinhar tudo exceto
os olhos e as unhas.
modernos para este tipo de trabalho, mas o corte pode muito bem ser feito com
os utensílios que tínhamos à mão. Isto consistia em cortar a traqueia com uma
Todavia, como era uma tarefa pesada, o amigo do senhor Kuma ajudou-me,
No chão, estava o tanque que tínhamos usado para tirar os pelos. Os órgãos de
cores vivas caíram ruidosamente, uns atrás dos outros, sobre o plástico azul.
Ainda palpitantes, brilhavam à luz do sol. Como se fossem os filhos que Hermès
Quando o pus na balança, pesava apenas trezentos gramas. O fígado era macio.
No fim, apareceu o útero que Hermès nunca tivera ocasião de usar. As porcas
focinho ainda húmido. Era a cara de Hermès, que, instantes antes, ainda se
mexia. Não sei se sofrera quando tinha sido morta, mas o contorno dos olhos
estava molhado.
Desculpa. Mas, como já não há volta a dar, vou fazer o melhor prato de carne de porco
do mundo.
Decidida, enfiei a mão dentro da sua boca e cortei a língua. Depois também
lombo, presunto, pá, tudo era cortado e posto em sacos, colocados depois à
sombra das árvores. Uma vez que a pele gelatinosa serviria para os enchidos,
chouriço de sangue fica com melhor sabor quando é preparado com a fressura
ao sangue que vertera para o balde. Tinha decidido usar o «sal da lua cheia».
Trata-se de um sal natural recolhido em noites de lua cheia nas costas perto
daqui, produzido segundo as técnicas antigas, e ao qual se atribui uma energia
vital especial. E eu queria presentear o corpo da minha mãe com este sal.
Depois juntei a pele cortada aos pedacinhos, misturei a banha com um pouco
uma salada de orelha de porco. Depois fendi a cabeça em duas partes iguais.
pequeno do que eu pensava, estava envolvido numa leve luz, como uma pérola.
Uma das metades seria para fazer um estufado quando eu voltasse para o
confecionar um salsichão.
Claro que Hermès já não era Hermès. Já não guinchava, comia ou pedia mimos.
Sim, mesmo nos pedacinhos com apenas um milímetro quadrado, a alma pura
pela sua aura calorosa, que flutuava agradavelmente ao sabor de um mar calmo
e familiar na primavera.
Visto dali, o céu do entardecer tinha uma bela cor de pêssego esbatida. Sim.
Como a de Hermès.
No total, seriam cerca de cem quilos. Durante o dia, nas pausas para fumar
um cigarro, o senhor Kuma e o seu amigo tinham trocado os seus experientes
pontos de vista: que, para uma porca velha, a carne era bastante fresca e que
talvez isso se devesse a ela nunca ter parido. Para mim, a carne de Hermès tinha
um bonito tom rosa-claro, nem demasiado gorda nem demasiado magra, num
equilíbrio perfeito. Certamente que a minha mãe lhe dava ração de boa
Como tinha estado um dia inteiro a trabalhar de pé, as minhas pernas estavam
Bebericando o meu chá verde, pensei vagamente que, a partir do dia seguinte,
já não teria de cozer o pão para Hermès. No frigorífico, ainda havia o fermento
que fazer. Não era altura para me deixar levar por sentimentalismos.
A minha ideia era oferecer à minha mãe uma volta ao mundo gastronómica.
lua de mel; todavia, ultimamente, a sua fraqueza começava a ser cada vez mais
visível e severa, e não me parecia que isso fosse possível. Aliás, Shouchi achava
que ela não teria sequer forças para ir ao aeroporto, quanto mais estar em
ciente disso. Para mim, era um desafio magistral que excitava a minha alma de
A partir dessa altura, raramente regressara a casa e dormia n’A Cantina dos
costeletas, preparei salgados e rolo de carne; o peito serviu para fazer toucinho e
as coxas para o fiambre. Com a carne da cabeça, dos jarretes e das aparas,
misturei tudo e fiz carne picada, que usaria depois para confecionar salame,
Era a primeira vez que eu ia fazer fiambre. Era uma das comidas favoritas da
minha mãe, que tinha pedido, como seu último desejo, que eu o distribuísse
por todos os que a tinham ajudado na vida. Será que é isto o que chamam de
Fazer comida com um porco inteiro era uma tarefa árdua, tanto para a mente
como para o corpo. Havia muitas coisas que eu não sabia. Nessas ocasiões,
muito saborosa, podia ser cortada fina e cozida. O lombo, a parte situada entre
qualquer tipo de comida. Como a perna não era gorda, assá-la-ia sem tirar os
ossos. A carne que ia da parte de baixo do peito até à barriga alternava com
saborosa. Por fim, a carne das patas, que é mais rija, podia ser confecionada
das partes do porco. Graças às instruções que me deu, por um lado, pude
decidir aos poucos os pratos que iria confecionar e, por outro, reunir os outros
ajudaram a encontrar.
E foi assim que chegámos à véspera do copo-d’água.
Voltei a casa pela primeira desde há muito tempo e, como começaria o dia
cedo, pensei em fazer uma pequena sesta, deitando-me na cama. Não havia
dúvida de que, em comparação com o sofá feito com caixas de vinho, a cama
Devia estar mesmo muito cansada, porque nem ouvi o piar do velho mocho.
para mim.
Dei conta disso por causa do cheiro do seu perfume. Todavia, fingi que estava
a dormir. O ódio que sentira por ela extinguira-se por completo. Podiam
que antes.
— Ringo...
Pela primeira vez em muito tempo, ela pronunciou o meu nome. Quase
— Peço-te... fala comigo antes que parta... — murmurou numa voz rouca,
desajeitadamente a minha pele. Mesmo assim, não fui capaz de abrir os olhos e
continuei a fingir.
que não fora capaz de lhe dizer, pensei em abraçá-la e pedir desculpa por tudo,
mas nesse momento ela levantou-se e saiu do quarto sem fazer barulho.
Podia ser apenas uma vez, mas queria ser abraçada com força por ela. Porém,
não tive coragem.
Sob uma chuva de pétalas de flor de cerejeira, o casamento da minha mãe com
Shouchi foi festejado com grande pompa, numa quinta da aldeia com as folhas a
despontar.
Pela primeira vez com uma maquilhagem leve, o seu rosto era branco como a
neve. Atrás dela, Shouchi segurava-a discretamente. Claro que quem puxava o
trio formado pela minha mãe, pelo neoconservador e por Shouchi parecia
Por todo o lado, trevos brancos em flor brilhavam como pérolas semeadas no
prado da quinta.
Era uma prece pelo amor eterno entre a minha mãe e Shouchi; uma prece por
Hermès, que sacrificara o seu corpo por nós e também uma prece pelas
cozinhar.
estivesse num buffet, escolhendo a seu gosto entre os vários cozinhados que eu
tinha feito. Hermès mudara de forma e dava os primeiros passos numa nova
etapa da sua vida. Agora, entraria no corpo dos humanos e, a partir do interior,
cerejeira.
guarnecidas de talharim de arroz com uma gema de ovo por cima, um prato
O chispe, igualmente cozido durante várias horas, vinha servido com vegetais
vinagre balsâmico.
A aba, que tinha salgado, fora fervida com agrião para fazer uma sopa de miso.
guarnecido com alho-francês. O resto da aba fora salteado com o kimchi posto a
marinar no inverno.
O lombo tinha sido usado quase por completo para o fiambre, mas, seguindo
salada de batata. O pedaço congelado tinha sido assado sem remover os ossos e
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servido com yuzukosho . O resto, cortado aos bocadinhos, dava corpo a um
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mabôdôfu bem picante ao estilo de Sichuan. Os últimos pedaços tinham
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turco. Por fim, as sobras recheavam uns pirozhki russos.
Com uma parte do peito, tinha preparado toucinho, que misturei em massa
estufado em lume brando com cola. As partes com ossos tinham sido envoltas
O seu aspeto não era o melhor, mas consegui, de alguma forma, fazer o bolo
Qualquer destas flores, sendo naturais, também eram comestíveis. Até a minha
água, resultaram num chá de acácia com um aroma fresco, perfeito para a
cerimónia.
massa de inhame recheado com feijão azuki, no topo do qual pincelei um ponto
sorridentes.
Por favor, que este sorriso permaneça nem que seja só por mais um dia.
bolos.
Obviamente que não conseguira levar a cabo todo este trabalho sozinha. Se
não fosse graças à ajuda e esforço de todos os habitantes da vila, certamente que
o copo-d’água não teria sido possível. Eu não tinha noção, mas tanto a minha
mãe como o bar Amor tinham raízes profundas nesta pequena aldeia no meio
das montanhas.
Quem olhasse para ela, percebia imediatamente que estava doente. Todas as
E também a minha mãe, tal como Shouchi, que não saía do seu lado nem por
Na verdade, ela reunira toda a sua energia só para estar presente, mas não foi
As recordações que mais prezo, guardo-as a sete chaves bem fundo no meu
coração, para que ninguém mas roube; para não perderem a sua cor à luz do sol
Ela reencontrara o seu primeiro amor, que nunca tinha esquecido, casara-se e,
mesmo que por apenas algumas semanas, vivera com ele. Talvez tivesse perdido
completamente a vontade de viver. Talvez a sua alma tivesse achado que já era
suficiente.
coloquei o meu bloco no seu caixão. A maior parte das folhas continham os
também havia os vestígios das nossas trocas de palavras, raras e valiosas. Já que
não era capaz de falar, pelo menos queria que as minhas palavras a
acompanhassem.
d’água.
mais pesado do que a tristeza que sentia pela morte da minha mãe.
Porque tinha sido incapaz de lhe falar, mesmo depois de ela me suplicar
daquele jeito?
Sabia que não valia a pena lamentar-me sobre o passado, mas mesmo assim
não conseguia impedir-me de pensar nele. Nunca mais verei a minha mãe.
Mesmo que, no futuro, recuperasse a minha voz, ela não me poderia ouvir.
Todas as noites, por mais que tentasse, não era capaz de adormecer até o velho
Naquele dia, fui distribuir a todos os seus amigos e conhecidos, e também aos
voluntários que tinham ajudado a organizar a festa, o fiambre que fizera com o
lombo de Hermès.
O senhor Kuma levou-me na sua carrinha até à casa das pessoas que viviam
longe e, os que viviam na vizinhança, visitei-os a todos num único dia com o
meu Caracol.
civil, era o meu pai, mas tanto ele como a minha mãe me tinham pedido que
continuasse a tratá-lo da mesma forma que antes. Era um apartamento novo que
ele tinha comprado perto do hospital no qual trabalhava, para começar a vida a
dois com a minha mãe. Não sei se foi a pensar nos cuidados a ter com ela, mas
não havia obstáculos em nenhuma das divisões e, para a minha mãe ter
corrimãos.
Shouchi ficara com os cabelos todos brancos e envelhecera vinte vezes mais
rapidamente do que uma pessoa normal. Não admirava. Tinha sentido todas as
Até esta altura, eu não fazia ideia de que a minha avó, tal como a concubina,
minha mãe ainda era pequena, ela enamorara-se desse homem casado e pai de
instituições. E fora por isso que, não querendo que eu passasse pelo mesmo,
Eis a razão para a minha avó me mimar tanto, transferindo para mim o amor
que não conseguira dar à sua própria filha. Se tivesse sabido disso antes, talvez
Nessa noite, cansada depois de visitar tantas pessoas, tomei banho bem mais
Ainda não tinha decidido quando abriria de novo A Cantina dos Caracóis.
Só conseguia pensar que, agora que a minha mãe deixara este mundo, não me
restava nenhuma razão para ficar na aldeia. Desde a sua morte, o meu coração
estava adormecido.
O seu pio diário apaziguava-me como nos tempos em que era criança e
ajudava-me a adormecer.
Uh, uh, uh, uh... Como sempre, o seu ritmo era perfeitamente regular.
calou-se.
O que se teria passado? Será que algo tinha acontecido no sótão? E se foi uma
Senti um arrepio pela espinha acima e julguei que o meu coração iria parar.
O velho mocho era a divindade protetora desta casa e a minha mãe sempre me
Assim, eu nunca tinha ido ao sótão. Mas agora tratava-se de uma situação de
Enfiei o robe florido, que a minha mãe tanto estimava, por cima do pijama e
O que ali estava não era um mocho verdadeiro, mas sim um despertador com
o mesmo formato.
surpreendida por ser tão leve. Para mim, que sempre imaginara um velho
mocho vivo, cuja imagem estava firmemente enraizada no meu espírito, esta
Ao olhar bem para a sua base, vi uma carta. Recompus-me. Sem dúvida que
era uma carta da minha mãe. Em caracteres que eu conhecia bem, o envelope
Para não danificar o seu interior, abri-o cuidadosamente com uma tesoura,
Querida Rinko,
Se estás a ler esta carta, é porque já deves ter descoberto tudo, não é? Desculpa. Não
pensa bem: achas mesmo que um mocho podia piar com aquela precisão, exatamente à
meia-noite, doze vezes, e ainda por cima todas as noites? És realmente uma pateta!
Mesmo assim, nunca pensei que ainda acreditasses nisso! Mas enfim, como fui eu que
Para ser sincera, quando eras mais nova, tinha pena de te deixar em casa sozinha e,
por isso, ocorreu-me esta ideia. Fui trocando sempre as pilhas; porém, por mais poder que
tenha, não me será possível fazer o mesmo depois de morrer. Por isso, decidi pôr tudo em
pratos limpos.
Mas diz-me: desde quando é que as coisas começaram a correr mal connosco?
Eu gosto tanto de ti! Mas porque será que não fui capaz de te transmitir esses
sentimentos? Talvez porque no fundo do meu coração sentisse que não eras a filha da
Por outro lado, nunca me arrependi de te ter tido. Se não tivesses vindo a este mundo, eu
nunca teria conseguido levar a minha vida em frente e voltado a reencontrar-me com o
Shouchi.
Tu és uma rapariga muito mais bonita e adorável do que pensas. Tem mais confiança
em ti. O que importa se foste deixada pelo teu namorado? Sendo minha filha, é natural
Penso que a Hermès também está feliz. Se ela estiver à minha espera às portas do Céu,
serei capaz de suportar não ver mais o meu marido e a minha filha.
Deste o teu melhor, não foi? Deve ter dado imenso trabalho!
Como se trata de uma piegas como tu, certamente não estarás com a A Cantina dos
Não podes pensar que não precisas de trabalhar porque a tua mãe faleceu e agora a
casa é tua! Ainda me deves parte do dinheiro que te emprestei para a abertura. Faz
É um dom que eu nunca tive. Por isso, faz bom uso dele, sem desperdiçares tempo.
Sou eu que te digo, eu que me dei com tanta gente durante várias décadas. Por isso,
acredita em mim. Nunca acreditaste nas minhas previsões para o futuro, mas olha que eu
até acertei.
Uma rapariga obstinada como tu deve sair mais, apaixonar-se e abrir os seus
horizontes.
Talvez seja esta a última mensagem que eu consiga dar à minha única filha.
Nunca conseguimos entender-nos muito bem e não fui capaz de cuidar de ti como uma
verdadeira mãe, mas, em troca, ficarei a proteger-te lá de cima. Podes ficar descansada,
Já agora, o «Amor» do bar Amor não é o que tu pensas. É um rio na Rússia, o Amur.
estávamos no liceu. Olhando para trás, éramos uns estudantes com gostos muito peculiares,
paisagem. E foi por isso que pedi ao meu marido para um dia deitar as minhas cinzas
No fim de contas, o meu desejo de ir numa lua de mel não se concretizou, mas, como
consegui dar uma volta ao mundo com a comida que me fizeste, fiquei satisfeita.
Ah, e antes que me esqueça: dentro do frigorífico, está o teu cordão umbilical.
Todas as coisas que nos são preciosas devem ser guardadas no frigorífico. Assim,
quando precisarmos delas, basta pô-las no micro-ondas. Em geral, ainda estão em bom
estado.
Um cordão umbilical não serve para nada, mas enfim...
Tu achavas que eu não era a tua mãe verdadeira, não era? Pois, hoje em dia, consegues
Esta é a primeira e última carta com pés e cabeça que te escrevo. Desculpa por ser uma
mãe desmazelada.
O «rin» de Rinko não é o carácter para adultério. Que mãe poria esse nome ao seu
próprio filho? Foi apenas uma forma de esconder o meu embaraço. Na verdade, dei-te esse
nome porque desejava fortemente que não tivesses uma vida vergonhosa como a minha.
Queria que a vivesses diligentemente, a todo o custo, protegendo a tua moral. E estou feliz
Por isso, não tenhas vergonha do teu nome e, a partir de agora, continua a viver com
orgulho.
Se algum dia nos voltarmos a ver, algures, não me ignores. Vivi uma vida desleixada,
Ruriko
Apertando a carta na minha mão cerrada, desci as escadas a correr, fui a correr
banana já negra, uma fatia de bolo meio comida. Até havia lápis de cera
pequena.
coberta de gelo, exibia um grande sorriso. Pela primeira vez na minha vida,
imagem da «mãe que deveria odiar». Quando dera por mim, já me tinha
revoltada contra ela. E finalmente percebi porque é que, no meu álbum de
a sorrir, como se algumas partes do álbum tivessem sido comidas pelo caruncho.
Uma grande lágrima deslizou pela minha bochecha de criança, caindo no chão
ruidosamente.
permanecia como uma pequena espinha presa no fundo da minha garganta que
não descia.
Não queria ver mais sangue e não queria comer. Escolhia, sempre que
O meu corpo emagrecera de uma forma estranha e a minha pele ficara áspera.
A maior parte das refeições consistia em comida já feita e até havia dias em
Graças a isso, fiquei muito boa a preparar esse género de comida. Não seria
prazo de validade.
E, se calhar, a minha mãe também não queria sentir nem pensar em nada e
que preparava sabia a mim mesma. Tal como um polvo que enche a barriga com
consciência daquilo que comia. Uma verdadeira refeição deve ser preparada para
nós por outra pessoa com todo o amor, alimentando a alma e o corpo.
Aproximei-me e, por mais pena que tivesse, ele já não estava a respirar.
E então, trazida pela brisa quente, ouvi a voz da minha mãe junto ao meu
ouvido:
Foi mesmo isto que julguei ouvir. Sem a menor das dúvidas, era a voz da
Confusa, olhei à minha volta. Se fosse possível, podia ser só por uma vez, teria
Porém, esse breve instante não se repetiu, e a sua voz, como fumo,
E, subitamente, esse pombo começou a parecer a minha mãe aos meus olhos.
O senhor Kuma tinha-me explicado que os pombos daqui não comiam coisas
suspeitas como os da cidade; são pombos selvagens que só comem insetos e cujo
levantei-me.
Não podia deixar que a morte da minha mãe tivesse sido em vão.
pela primeira vez desde há vários meses, pus água a aquecer numa caçarola.
tudo com sal e pimenta. Após deixar repousar por algum tempo, refoguei-o
numa frigideira com alho e, quando ficou dourado, só faltava assá-lo lentamente
no forno.
parecia ter sido barrada com marmelada. Uma longa sombra era projetada pela
qualidade feito com uvas secas, que planeava servir um dia aos clientes, e enchi
brilhava como um rubi exposto à luz. Fechei os olhos e inspirei. O seu aroma
Dispus na mesa um garfo e uma faca de prata, que eram mais pesados do que
imaginava.
até há pouco estava vivo e voava pelo céu. O suco vermelho da carne derramou-
se. Cortei um pedaço ainda a deitar fumo e levei-o à boca. O suco de carne com
então engoli.
Bebi mais um gole de vinho tinto e, após me acalmar, comi mais uma garfada
— Hum...
Foi como se o fio que estava enleado dentro do meu estômago se soltasse pela
minha boca. Como se, nesse instante, um raio de sol tivesse penetrado num
— Está bom!
A minha voz fez vibrar a minha garganta, roçou delicadamente pela minha
língua e, num sopro leve, voou do meu corpo até ao mundo delicado onde a
Era a minha própria voz, que ressoava pela primeira vez desde há muito
tempo.
Comi o assado de pombo até ao fim, sem deixar uma migalha. Enquanto
comia, senti subitamente que a minha mãe partilhava esta refeição comigo.
Usando os dedos, roí a carne à volta dos ossos com a minha mão. Também bebi
em viver.
1
Mistura de especiarias indiana. (NT)
2
Bebida indiana. (NT)
3
Período de reinado do imperador Meiji do Japão (1868-1912). (NT)
5
Pauzinhos compridos usados para empratar a comida. (NT)
6
Cascalho boleado indispensável para cozinhar jarizuke de beringela. (NT)
7
Prato japonês feito com o mesmo método do nukazuke, mas a partir de cascalho. (NT)
8
Especialidade da culinária japonesa feita com ume (ameixa originária da China). (NT)
9
Conserva tradicional japonesa produzida com vegetais colocados numa mistura de farelo.
(NT)
10
Mistura de farelo usada no nukazuke. (NT)
11
Grupos musicais tradicionais japoneses que atuavam nas ruas. (NT)
12
Bolinho de arroz japonês. (NT)
13
Técnica de secagem das umê. (NT)
15
Tiras de rabanete branco secas. (NT)
16
Ingrediente da culinária japonesa. (NT)
17
Anchovas. (NT)
18
Espécie de peixe de águas tropicais e temperadas, ausente no Mediterrâneo Oriental e no
19
Pequena mesa baixa com um aquecedor elétrico no centro. (NT)
20
Técnica de culinária japonesa que consiste em refogar e ferver. (NT)
21
Planta originária da Eurásia. (NT)
22
Género de sushi que consiste na mistura de ingredientes picados no arroz de sushi. (NT)
23
Creme de ovos da cozinha tradicional japonesa. (NT)
24 Doce tradicional japonês recheado normalmente com pasta de feijão doce. (NT)
25
Bar tradicional japonês que também serve aperitivos para acompanhar as bebidas. (NT)
26
Folha fabricada a partir de algas marinhas, também usada no sushi. (NT)
27
Período do imperador Taisho do Japão (1912-1926). (NT)
28
Período do xogunato de Tokugawa (1603-1868). (NT)
29
Flocos de carne de bonito seco em lascas. (NT)
30
Caldo tradicional japonês, normalmente feito com kombu (algas marinhas) e katsuobushi.
(NT)
31
Kuma 熊, em japonês, significa «urso» e não é um nome habitual. (NT)
32
Desenho animado japonês. (NT)
33
Ringo, em japonês, significa «maçã». (NT)
34 Rinko: nome cujos caracteres significam adultério e criança. Ou seja, filha bastarda. (NT)
35
Bebida alcoólica tradicional japonesa. (NT)
36
Trepadeira nativa de regiões asiáticas, nomeadamente do Japão. (NT)
37
Divindades budistas do Japão. As suas estátuas estão espalhadas por todo o país. (NT)
38
Período caracterizado pela tendência de preferir termas mais isoladas no meio das
39
Prato de ramen originário da região de Fukuoka. (NT)
41 O som «her» em japonês lê-se «L» e «mès» lê-se mesu メス, que, em japonês, significa
43 Brincadeira infantil na qual duas crianças amarram as pernas com um pedaço de pano ou
50
Um dos produtores de porcelana mais antigos da Europa. (NT)
51
Compartimento usado para a cerimónia do chá japonesa. (NT)
52
Prato típico japonês feito com udon (macarrão grosso). (NT)
53
Máquinas de jogo nos salões de jogos japoneses semelhantes a casinos. (NT)
55
Lombo de porco frito com caril e arroz. (NT)
56
Tipo de cogumelo. (NT)
57
Caldo tradicional japonês de frutos do mar. (NT)
58
Cogumelo asiático. (NT)
59
Alimento feito a partir de ovas de tainha. (NT)
60
Citrino asiático. (NT)
61
Farinha para panados e fritos feita de pão. (NT)
62
Produtor de vidro japonês. (NT)
63
Bolo alemão. (NT)
64 Doce tradicional indiano, feito com iogurte coado. (NT)
65
Bolinho de arroz glutinoso normalmente consumido no Ano Novo e em ocasiões especiais.
(NT)
66
Refeição japonesa típica consumida no Ano Novo. (NT)
67
Refeição japonesa típica consumida no Ano Novo. (NT)
68
Bebida alcoólica tradicional japonesa consumida no Ano Novo. (NT)
69
Estufado tradicional japonês. (NT)
70
Omelete japonesa. (NT)
71
Planta nativa do sudeste da Ásia. (NT)
72
Prato tradicional da Coreia do Sul com vegetais condimentados e fermentados. (NT)
73
Espécie de peixe-balão. (NT)
75
Técnica culinária japonesa que consiste na fritura de alimentos, mais habitualmente
frango. (NT)
76
Sopa japonesa à base de arroz. (NT)
77
Estilo tradicional de comédia japonesa semelhante ao stand-up. (NT)
78
Prato italiano. (NT)
79
Sobremesa japonesa feita de feijão azuki. (NT)
80
Condimento japonês de chili, yuzu e sal marinho. (NT)
81
Prato típico chinês. (NT)
82
Pãezinhos recheados tradicionais russos, assados ou fritos. (NT)