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O Pequeno Restaurante Da Felici - Ito Ogawa

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FICHA TÉCNICA

Título original: 食堂かたつむり(Shokudō katatsumuri)


Autor: Ito Ogawa

Copyright © Ito Ogawa / POPLAR Publishing Co., Ltd., 2008, 2010

Edição original publicada no Japão em 2008 por POPLAR Publishing Co., Ltd.

Edição revista publicada no Japão em 2010 por POPLAR Publishing Co., Ltd.

Edição portuguesa publicada por acordo com POPLAR Publishing Co., Ltd., e le Bureau des Copyrights Français, Tokyo

Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2023

Tradução do japonês: Maria Edite Ferreira Manso

Revisão: Miguel Martins Rodrigues/Editorial Presença

Imagem da capa: Shutterstock

Capa: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

1.ª edição em papel, Lisboa, julho, 2023

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

EDITORIAL PRESENÇA

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730-132 Barcarena

info@presenca.pt

www.presenca.pt
No regresso a casa do meu part-time no restaurante turco, deparei com o interior

da minha casa vazia. Tal qual a carapaça oca de um animal. Desde a televisão à

máquina de lavar roupa e até às luzes do teto, cortinas e tapete da entrada, tudo

desaparecera.

Por momentos, pensei que me tinha enganado na porta. Contudo, por mais

que verificasse, era realmente o ninho de amor em que vivia com o meu

namorado indiano. A prova irrefutável era a mancha esquecida no teto em

formato de coração.

O interior estava igual ao dia em que a casa nos fora apresentada pelo agente

imobiliário. De diferente, apenas continha os vestígios de um leve cheiro a

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especiarias garam masala e a chave dupla do meu namorado, que brilhava no

meio da sala abandonada. Dormíamos, ao lado um do outro e de mãos dadas,

neste quarto que tínhamos conseguido alugar com muito esforço. A pele dele

emanava sempre um aroma a especiarias. Na janela, estavam colados alguns

postais do rio Ganges. Apesar de não conseguir ler nada em hindi, às vezes, só

passar o dedo por cima dos caracteres das cartas vindas da Índia enchia-me de

um sentimento caloroso, como se entrelaçasse as mãos com a sua família.

Um dia, chegará o momento em que iremos os dois à Índia.

Como serão os casamentos indianos...?

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Estes sonhos encantavam-me como um lassi de manga. Aquele quarto estava

repleto de tesouros valiosos, juntamente com três anos de memórias que

vivemos juntos.

Todas as noites, preparava-lhe o jantar enquanto o esperava.

O lava-louça é pequeno e feito de azulejos, e havia janelas em três paredes da

casa. Nos dias em que o meu turno acabava cedo, a felicidade de cozinhar ao

entardecer, envolvida pelo sol poente, era algo incomparável. Não era uma casa

excecional, mas, de qualquer forma, estava equipada com um forno a gás e a

cozinha tinha uma janela, o que era vantajoso, pois assim, quando grelhava

peixe seco sozinha, o cheiro dissipava-se.

Também tinha muitos instrumentos de cozinha com os quais me tinha

familiarizado.
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O almofariz e o pilão da época Meiji que herdara orgulhosamente da minha

avó falecida; o ohitsu


4 de cipreste, que usava para conservar o arroz acabado de

cozinhar; o tacho de esmalte Le Creuset que tinha finalmente conseguido

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comprar com o meu primeiro salário; os moritsukehashi de ponta fina que

encontrei numa loja especializada em pauzinhos, em Quioto; a faca de aparar

que me foi oferecida no meu vigésimo aniversário pelo gerente de um

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restaurante biológico; o avental de linho confortável; o tarajari indispensável

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para cozinhar jazuke de beringela; até a frigideira de ferro que fui comprar de

propósito à remota região de Morioka; as louças, a torradeira, o papel vegetal...

tudo tinha desaparecido, mas tudo mesmo.

Ainda que a mobília fosse pouca, a cozinha, pelo menos, era rica em utensílios

próprios. Eram agora os meus parceiros de cozinha. Todos os meses, com o

dinheiro que recebia do meu trabalho, comprava utensílios de qualidade,

embora fossem um pouco caros. E logo agora, que já estavam primorosamente

feitos à minha mão.

Para me certificar, vasculhei o interior das gavetas da cozinha, uma por uma.

Contudo, agora apenas restavam vestígios das coisas que outrora lá se

encontravam e, por mais que procurasse, a minha mão apenas ia de encontro ao

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ar. Até mesmo o meu querido frasco de umeboshi , que tinha cuidadosamente

preparado com a minha avó há alguns anos, escolhendo as ameixas uma por

uma. Os próprios croquetes de grão-de-bico e cuscuz, que aguardava

ansiosamente por comer com o meu namorado vegetariano, tinham

desaparecido.

Foi nesse momento que me apercebi de algo. Corri até à entrada e,

repentinamente, saí de casa em meias.

O primeiro e único prato fermentado japonês que ele conseguia comer era o

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meu nukazuke . Ele comia apenas isso, sem exceção, todos os dias. Se não for

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feito com o nukadoko que a minha avó me deixou, o sabor não é o mesmo. Por

isso, guardava o frasco ao lado da porta de entrada, num local pequeno com a

temperatura e humidade ideais, junto ao contador do gás. Mesmo durante o

pico do verão, era fresco e, no inverno, a temperatura era um pouco mais


elevada do que a do frigorífico, o que era perfeito.

O nukado era a lembrança especial que tinha da minha avó.

Por favor, por tudo o que é sagrado, que pelo menos o nukado não tenha sido levado.

Ao mesmo tempo que rezava e abria a porta, o frasco, habituado à escuridão,

estava tranquilamente à minha espera. Abri a tampa e verifiquei o seu interior.

Estava, de facto, igual a quando o tive na palma da mão esta manhã. À

superfície do farelo, espreitavam folhas verde-claras de nabo. O nabo

conservado, que tinha descascado com a ajuda de dez cortes feitos junto à raiz,

deixando apenas algumas folhas de sobra, era doce e suculento.

Graças a Deus que está são e salvo. Inconscientemente, agarrei com ambas as

mãos o frasco gélido e, levando-o ao peito, abracei-o. Este nukado é tudo o que me

resta.

Volto a tapá-lo com a tampa e levo-o só com uma mão para dentro, apesar de

ser pesado. Apanho as chaves com os dedos dos pés e, com a outra mão, pego

num cesto e deixo a casa deste prédio, agora vazia.

A porta fechou-se com um baque tão violento, que era como se tivesse sido

fechada eternamente.

Em seguida, uso as escadas e não o elevador, e, enquanto tenho o cuidado de

não entornar o nukado, passo a passo, devagarinho, desço até ao exterior. A lua

disforme erguia-se no céu nascente.

Ao virar-me para trás, o prédio velho com trinta anos impunha-se

monumentalmente no meio da escuridão da noite como um monstro.

Ofereci apenas umas madalenas artesanais ao senhorio, que nos tinha deixado

alugar esta casa sem fiador; o nosso ninho de amor. Agora, já não havia volta a

dar.

Abandonei o prédio, passei pela casa do senhorio e devolvi as chaves. Como

era fim do mês, já tinha pagado a próxima renda há uns dias. Se não me engano,

antes de mudar de casa, uma pessoa tem de avisar o senhorio com um mês de

antecedência, pelo que suponho que não haja problema. De qualquer das

formas, não restava quase mobília nenhuma, como se me tivesse mesmo

mudado.
Lá fora, está completamente escuro. Uma vez que não tenho relógio nem

telemóvel, não imagino que horas possam ser.

Percorri desalentada a distância entre algumas estações de comboio em

direção ao terminal principal. Gastei quase todo o dinheiro que me restava na

compra do bilhete para o autocarro noturno com rumo à minha terra natal, na

qual não punha os pés desde a primavera dos meus quinze anos, altura em que

lhe virei costas.

O autocarro partiu imediatamente, levando-me a mim, juntamente com o

nukado e o cesto.

As luzes da cidade corriam ante os meus olhos para lá da janela.

Adeus, despedi-me interiormente.

Fechei os olhos e revi mentalmente toda a minha vida, como um remoinho de

folhas secas a dançar no outono.

Desde que saí de casa com quinze anos, não tinha voltado uma única vez.

A casa da minha mãe ficava no meio das montanhas, numa aldeia pacata,

rodeada pela natureza. Eu adorava esse lugar do fundo do coração. Mesmo

assim, na noite do dia da cerimónia de graduação do ensino médio, saí de casa

sozinha, apanhando um autocarro, tal qual como agora.

Desde essa altura, só comuniquei com a minha mãe através de postais de

«Feliz Ano Novo». Alguns anos após ter saído de casa, numa fotografia a cores,

enviada com um desses postais, via-se uma porca trajada com um vestido

chique, aconchegada às saias da minha mãe, que usava uma vestimenta parecida

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com as dos membros de uma Chindon’ya .

Eu, que outrora partira para a grande cidade, regressava então à casa da minha

avó.

Abri a porta deslizante e envelhecida, que rangia:

— Voltei! — disse ao entrar.

A minha avó veio receber-me com um sorriso gentil, saindo da cozinha e indo

até à entrada. Quando digo avó, refiro-me à materna. Ela vivia numa vivenda

humilde e antiga, longe da cidade, na qual desfrutava da sua vida e da beleza

das mudanças sazonais. Era uma pessoa que tinha um jeito especial para as
palavras, assim como para as pessoas, e, não obstante, um forte carácter; as

roupas tradicionais assentavam-lhe na perfeição. E eu adorava-a.

Quando dei por mim, tinham passado dez anos.

Ao limpar as gotas de chuva do vidro da janela, no meio da escuridão, o meu

reflexo evidenciava-se. O autocarro afastou-se da zona de arranha-céus e entrou

na autoestrada.

O cabelo, que não tinha cortado uma única vez desde que começara a

namorar, à exceção da franja, apanhara-o em duas tranças que agora me

chegavam ao meio das costas. Isto porque o meu namorado dizia que gostava de

ver o cabelo comprido nas raparigas.

Enquanto via os meus próprios olhos vagamente refletidos no meio da

escuridão, num ímpeto, abri a boca o mais que pude. Como uma baleia-jubarte

engole de uma só vez um peixe graúdo, eu engolia aquela paisagem

monocromática.

E, nesse momento, senti que cruzava olhares com o meu eu do passado.

Encostei o nariz à janela e fui transportada, por segundos, para o interior do

autocarro que a criança que sonhava com as luzes da grande cidade tinha

apanhado, há dez anos, no sentido oposto àquele em que agora ia.

Desorientada, virei-me para trás e segui o autocarro com o olhar. No entanto,

a distância do segundo autocarro a alta velocidade, afastando-se cada vez mais

do «passado» e do «futuro», aumentava. O vidro da janela ficou novamente

repleto de gotas.

Desde quando é que decidi tornar-me uma chefe profissional de cozinha? Para mim,

cozinhar era como um arco-íris passageiro, pairando no meio da neblina fina.

Assim, parti para a cidade, lutei contra as adversidades e, no momento em

que me tornei por fim capaz de socializar normalmente, fazer a minha vida

normalmente, falar e rir normalmente, a minha avó deu o seu último suspiro,

em silêncio absoluto.

Ao regressar a casa à noite, já tarde, depois de acabar o meu trabalho no

restaurante turco, junto à mesa de chá pequena e redonda decorada com vários

naperones, estava a minha avó falecida, como se estivesse a dormir


profundamente.

Encostei os ouvidos ao seu peito magro, mas não havia sinais de qualquer

som, e, levando a palma da mão à sua boca e ao nariz, não senti qualquer sopro.

Nem me passou pela cabeça que ela voltaria à vida. Sem contactar ninguém,

decidi calmamente passar pelo menos uma noite junto a ela, só nós as duas.

Aos poucos, o seu corpo ia ficando gelado. Passei a noite toda a comer dónutes

a seu lado. Penso que nunca esquecerei o sabor acolhedor da massa com

sementes de papoila e cobertura de canela e açúcar mascavado. Cada vez que

dava uma dentada e enchia a boca de dónutes levemente fritos em óleo de

sésamo, os dias ensolarados que tinha passado com a minha avó vinham-me à

cabeça como espuma fofa.

As suas mãos brancas com as veias salientes a mexer o frasco do nukado; as suas

costas pequenas e curvadas afincadamente para o almofariz; o perfil do seu rosto

delicado enquanto ela colocava um pouco de comida na palma da mão, levando-

a à boca, provando.

Todas essas memórias nunca me deixaram, indo e vindo, de vez em quando, à

cabeça.

E foi durante esses dias em que estava em baixo que conheci o meu namorado

indiano.

Ele trabalhava no restaurante indiano ao lado do restaurante turco no qual eu

era empregada em part-time. Durante a semana, servia às mesas e, aos fins de

semana, trabalhava como músico de apoio a um espetáculo de dança do ventre.

Começámos a cruzar-nos, a reparar um no outro quando íamos despejar o lixo

nas traseiras dos restaurantes e a trocar algumas palavras durante as pausas de

trabalho, antes de regressar a casa.

Era uma pessoa gentil, de estatura alta e com uns belos olhos, um pouco mais

novo do que eu, e conseguia falar um pouco de japonês. Só de ver o seu sorriso e

ouvir o seu japonês titubeante, eu conseguia abstrair-me da verdade dura e do

sentimento de perda por a minha avó já não estar neste mundo comigo.

Quando me lembro daquele tempo, imagens da Índia e da Turquia cruzam-se

na minha cabeça de modo extraordinário. Por alguma razão, quando via o meu
namorado de pele escura e típicas feições indianas a comer caril de feijão ou

vegetais, por detrás dele estendia-se uma paisagem turca de um cristalino mar

azul ou uma mesquita feita de mosaicos.

Certamente que é o sítio onde nos conhecemos que está a criar este cenário.

No fim de contas, este part-time acabou por ser aquele em que me mantive

mais tempo, durante aproximadamente cinco anos. Na verdade, trabalhei

praticamente todos os dias a tempo inteiro. No fim do turno, juntava-me a

Kokku e aos outros na cozinha e púnhamos mãos à obra. Naquela altura, os

encontros e despedidas vinham inesperadamente como um tsunâmi. Tinha as

mãos cheias, ocupada a sobreviver mais um dia, tanto física como mentalmente.

Todavia, se olhar para trás, esses dias foram como um milagre e eu não os

trocaria por nada.

Recordando-me de tudo isso, suspirei profundamente. Também tinha de

contactar o restaurante turco.

O vidro da janela, que deveria estar embaciado, refletia o interior do autocarro

como um espelho de água. Os meros dez passageiros, com os bancos inclinados

para trás, dormiam. Eu revia vagamente o meu rosto no meio da escuridão, de

um azul límpido.

Dentro de momentos, iria amanhecer.

Para animar o espírito, abri um pouco a janela e o céu começou a aclarar-se. O

vento trazia um cheiro leve a maresia.

Ao esticar o pescoço, vi ao longe um moinho de vento branco a trabalhar. Na

extensa pradaria, erguiam-se vários, girando a alta velocidade.

O frio entranhou-se-me nos ossos subitamente e senti um arrepio por um

instante. Apenas tinha vestida uma saia até ao joelho, colãs e uma camisa, pelo

que os meus pés congelaram.

Dentro de momentos, o autocarro chegaria à última paragem.

O cheiro a chuva vinha de longe.

Saí numa rotunda deserta.

A paisagem não tinha mudado; era como se tivesse saído de casa ontem. Só os
tons estavam desvanecidos, como se uma pintura a lápis de cor tivesse sido

apagada com uma borracha.

Restava-me cerca de uma hora até à partida do próximo miniautocarro. Então,

entrei numa loja de conveniência que havia perto e, com o dinheiro que me

sobrava, comprei um pequeno bloco e uma caneta de feltro. A loja cheirava a

nova e o chão encerado brilhava.

Escrevi em cada página palavras que iriam ser-me úteis no dia a dia, numa

letra fácil de compreender.

Olá. Bom dia.

Está bom tempo, não está?

Como está?

Este, por favor.

Muito obrigada.

Prazer em conhecê-lo/a.

Tenha um bom dia, adeus.

Por favor.

Desculpe.

Faça favor.

Quanto custa?

Tinha-me apercebido de algo.

Quando tentei comprar os bilhetes de autocarro noturno na bilheteira... ah,

não... quando fui devolver as chaves ao senhorio... na verdade, desde o momento

em que abri a porta de casa que fiquei sem palavras! Isso deve-se ao estado de

histeria que vem com o choque psicológico.

No entanto, isso não queria dizer que tivesse ficado completamente muda.

Apenas a minha voz se tinha desligado inteiramente do meu sistema. Era como

se tivessem baixado o volume da rádio para o mínimo. A música estava a tocar,

mas não era percetível, não se conseguia ouvir no exterior.

Perdi a minha voz.

Fiquei um pouco espantada, mas não estava triste. Não era doloroso nem
angustiante. Pelo contrário, apenas me sentia mais leve. Além disso, não tinha

disposição para falar com ninguém.

Decidi ouvir simplesmente a voz do meu coração. Estou confiante de que é a

coisa certa a fazer.

Não obstante, estou ciente de que, após vinte e cinco anos vividos, é

necessário comunicar com os outros para sobreviver.

Na última página do bloco, escrevi:

Devido a certas circunstâncias, fiquei sem voz.

Em seguida, entrei para o modesto autocarro.

Diferente do autocarro rodoviário que vai pela noite adentro, o miniautocarro

que apanhei prossegue a uma velocidade muito lenta. Assim que a manhã

abriu, a minha barriga começou a dar horas. Lembrei-me, por instantes, do

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onigiri que tinha sobrado do almoço da véspera e tirei-o do cesto, que

continha apenas uma carteira com uns trocos, um lenço de bolso e lenços de

papel.

Para reduzir as despesas, todas as manhãs fazia onigiris e levava-os para o

trabalho. Até no restaurante turco, a refeição tinha um custo para os

funcionários.

Vivia o mais humildemente possível com o propósito de juntar dinheiro, para

um dia abrir um restaurante com o meu namorado. Só de pensar que esse

projeto poderia ter sido em vão, era como se a mente ficasse inundada de tinta

branca.

O dinheiro para abrir o restaurante não estava num banco, mas sim guardado

num armário em casa. Dividia-o em rolinhos de cem mil ienes e, quando

chegava a um milhão, selava-os num envelope com fita gomada. Escondi-o

dentro do armário, entre dois colchões que normalmente não usávamos. Esse

envelope de um milhão de ienes que juntei aos poucos, vivendo que nem uma

miserável, não era apenas um. Assim que me lembrei disso, a minha cabeça

ficou novamente cheia de tinta branca.

Ao retirar o papel de alumínio do onigiri já meio esmagado, vi que metade


dele estava desembrulhado. Peguei nele, coloquei-o na boca e provei-o. Tinha

um sabor distante. Era, de facto, o último umeboshi que tinha feito com a minha

avó.

Para não ficar com bolor, vigiávamo-lo por turnos à noite. Na altura do

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doyouboshi , durante três dias, espalhávamos as ameixas no alpendre e

virávamo-las de hora à hora, achatando-as um pouco com o dedo para ficarem

macias. Mesmo sem usar shissô


14, se fosse a minha avó a fazer, as ameixas iam

ficando aos poucos com uma cor rosada.

Fiquei estática durante um momento com o último umeboshi na boca. Sentia a

acidez por todo o meu corpo. Esta ameixa, para mim, tinha o mesmo valor que

uma joia secreta. Os dias que passei com a minha avó enchiam-me o coração.

Quase chorei, mas consegui reter o nó na garganta.

Foi ela quem me puxou para o mundo da cozinha.

No início, ficava só a observá-la, mas com o passar do tempo acabei por me

juntar a ela e aprendi a cozinhar. A minha avó não explicava muito por palavras,

porém, quando púnhamos a mão na massa, deixava-me provar todos os

ingredientes, saborear tudo divina e aprimoradamente. Forcei o meu paladar a

memorizar aos poucos as consistências, as texturas e a quantidade de sal.

Quando vivia com a minha mãe, no que toca a comida, esta era pré-feita e

aquecida no micro-ondas ou eram conservas. Contudo, estava completamente

enganada. A comida da minha avó era sempre caseira, desde o miso até ao molho

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de soja e às kiriboshi daikon . Quando soube, pela primeira vez, que numa

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colher de sopa de miso estavam niboshi , katsuo , soja, malte, entre outros

ingredientes cheios de vida, fiquei surpreendida.

Sempre que avistava ao longe a silhueta da minha avó na cozinha, envolvida

numa luz angelical, enchia-me uma sensação de paz. Só de ficar a seu lado a

ajudá-la na cozinha, sentia-me como se fizesse parte de algo sagrado.

Não percebia patavina quando a minha avó dizia «a olho» ou «a gosto», mas

aos poucos acabei por entender o seu significado. Essas expressões indicavam a

quantidade perfeita através de palavras redundantes.

Quando dei por mim, o umeboshi tinha-se derretido na minha boca e,


eventualmente, debaixo da minha língua restava somente uma pequena

semente e as memórias que tinha da minha avó.

Na cidade, ainda restavam os últimos dias de verão, mas aqui já tinha

chegado o verdadeiro outono. Ao comer o onigiri, fiquei cada vez com mais frio.

Estava no último banco de trás do miniautocarro e o meu corpo tremia. Tinha

vontade de beber algo quente, mas já estava no autocarro e, de qualquer forma,

não me restava dinheiro.

Coloquei o frasco do nukado no meu colo como um bebé. Desse modo,

aquecia-me nem que fosse só um pouquinho.

Encostei a testa à janela e observei o exterior.

Lentamente, reconstruí o mapa da minha terra natal, do qual me tinha vindo

a esquecer pouco a pouco, como quem revela uma fotografia analógica.

Sobreponho mentalmente as novas casas, lojas e restaurantes ao antigo mapa.

Devagar, o miniautocarro sai do centro da cidade e atravessa a montanha

densa. Como era de esperar, estou inquieta e o meu coração está aos pulos.

Sempre que fazemos uma curva, é possível ver ao longe a «Montanha dos

Seios». São duas elevações densas e dispostas ao lado uma da outra. Ambas têm

a mesma altura e no topo está uma rocha. À distância, assemelham-se aos seios

de uma mulher a dormir de barriga para cima. Foi assim que, desde

antigamente, todos os habitantes da aldeia se habituaram a chamar-lhe.

E assim, entre os dois montes, no vale que se encontra no meio dos seios, foi

construído um dos locais mais emblemáticos para fazer bungee-jumping no Japão.

Descobri isto nas notícias faz alguns anos, por mera coincidência. Em ambos os

lados da estrada estreita e montanhosa, agora finalmente com largura suficiente

para um carro passar, destacava-se um placard com letras em rosa-choque:

«Bem-vindo à aldeia de bungee-jumping.» E outro noutro sítio. Isto só podia ser

obra dos neoconservadores.

Quando saí do autocarro, agradeci rapidamente, mostrando a página do meu

bloco: «Muito obrigada.» Despedi-me do condutor. As palavras «Bem-vindo à

aldeia de bungee-jumping» saltavam à vista.

Gotas de chuva caíam do céu nublado. Agarrando o nukado com a mão direita
e pegando com firmeza no cesto com a esquerda, comecei a caminhar em

direção à casa da minha mãe.

A meio do caminho, fiquei com vontade de ir à casa de banho; então, resolvi o

assunto nuns arbustos. Nesta aldeia, com uma população inferior a cinco mil

habitantes, numa estrada montanhosa como esta, seria muito difícil cruzar-me

com alguém. Enquanto fazia o serviço, uma rã algures deu-me a conhecer a sua

cara e olhou para mim fixamente. Ao esticar o dedo, ela subiu para a palma da

minha mão com as patinhas geladas.

Despedi-me dela e prossegui. Enquanto percorria o bosque de cedros, um

esquilo com a cauda felpuda passou a correr à minha frente.

A «Montanha dos Seios» aproximava-se lentamente. O meu corpo estremecia

de entusiasmo.

Por momentos, fiquei petrificada em frente à casa da minha mãe, segurando o

nukado e o cesto. Os habitantes da vila chamam-lhe «Palácio da Ruriko» pelas

costas, sem que ela saiba. Ruriko é o nome da minha mãe e na extensa

propriedade, além do edifício principal, há um bar que ela gere, chamado

Amor, uma casa de arrumações, plantações e outros espaços. É aqui que se

encontram as memórias, amontoadas umas nas outras, dos dias que passei com a

minha mãe, como um mil-folhas.

Em frente ao portão, estava uma palmeira nova, timidamente inclinada para

um dos lados. Não sei se é por causa de o ambiente ser o desadequado, mas as

folhas de baixo já estavam decadentes, com uma cor acastanhada. A terra

requalificada no meio desta floresta era, na verdade, propriedade do seu

conhecido namorado neoconservador.

Era realmente uma mansão pobre e mal acabada, com uma cor baça, como se

lhe tivessem despejado cinzas por cima, tendo havido cuidado somente nos

locais que saltavam à vista. Até agora, se pudesse destruir tudo aos pedacinhos

com um trator ou alguma outra coisa, assim o faria.

O neoconservador era o diretor-executivo das Construções Negishi Tsuneo e

desde a escola primária que o chamam neoconservador. Eu sou a filha bastarda

da minha mãe. Desde que nasci, não sei quem é o meu pai, mas espero que
sejam todos menos ele.

Passei diante do bar em silêncio absoluto, de forma que a minha mãe não

desse por mim, e, em seguida, segui em direção ao campo que havia nas

traseiras.

Tinha feito uma aposta comigo mesma.

Se conseguisse encontrar as poupanças escondidas da minha mãe, fugiria com

esse dinheiro e iria uma vez mais para uma terra desconhecida, algures. Como

ela não confiava nos bancos, enterrava o dinheiro dentro de uma garrafa de

champanhe na horta. Certa noite, testemunhei tal acontecimento. Mas se já não

fosse possível encontrá-lo...

Entrei na horta. O céu escurecia cada vez mais e caíam grandes gotas que

pareciam granizo. Tinham começado os habituais aguaceiros.

A minha mãe, que não nutria interesse nenhum pela agricultura, tinha agora

vegetais plantados. Talvez outro dos seus namorados trabalhasse no campo. À

frente dos meus olhos, cresciam batatas-doces com folhas grandes. Além disso,

também havia alho-francês, rabanetes, cenouras e outros vegetais. Fiquei logo

com vontade de cozinhar, mas não era a altura para tal.

Comecei a escavar junto à base de um espantalho que parecia ter sido

estrategicamente posicionado ali.

A maior parte das pessoas pensaria que num sítio daqueles, que salta à vista,

ninguém enterraria bens valiosos. E quem se aproveitava disso era a

personalidade audaz da minha mãe.

No entanto, indo contra as minhas expectativas, o que surgiu do solo foi um

baú do tesouro que eu tinha enterrado quando era criança.

Inicialmente, não reparei por causa da lama; no entanto, enquanto limpava,

percebi que conhecia aquela lata vazia de biscoitos. Acanhada, abri a tampa do

baú.

O interior estava todo enferrujado.

Reencontrei-me com vários objetos repletos de memórias do passado.

Andava sempre com uma pistola de água. Enchia-a com sumo de laranja e

disparava para a boca, de braços estendidos, dava banho às carapaças das


tartarugas que comprava nos festivais e ainda regava as flores. Jogava

frequentemente com o ioiô nos tempos mortos. Adorava brincar com ele,

empoleirada no tronco da minha figueira predileta, perto de casa. A pedra na

qual tinha escrito em letras brancas «mãe», usava-a nas alturas em que ela

ralhava comigo e eu ficava amuada. Atirava-a contra o chão pavimentado. Era

uma ferramenta essencial para me animar o espírito. Na parte de trás, com lápis

de cera, desenhei uns olhos, um nariz e uma boca parecidos com os da minha

mãe.

Além destes pertences, havia um peluche em forma de panda, um bonito

papel de embrulho dourado do meu primeiro chocolate de uma marca

estrangeira, uma borracha com um agradável cheiro doce, as asas de uma

borboleta que encontrei à beira da estrada, uma muda de pele de uma cobra,

conchas de amêijoas e bivalves de água doce que tinha comido; uma panóplia de

coisas que agora me eram insignificantes.

Agarrei nelas e permaneci no meio da plantação. Quando fechei os olhos, fui

levada de volta àquele tempo. O tempo em que fazia tudo sozinha: comer o

lanche, o jantar, ver televisão, fazer os trabalhos de casa, tomar banho, dormir...

tudo.

A minha mãe estava sempre ocupada a encantar os clientes do bar Amor com

o seu charme.

Fiquei com vontade de brincar com o ioiô de novo. Quando esticava o cordel,

ouviu-se um estrondo vindo da entrada do edifício principal e uma mancha

esbranquiçada e redonda veio na minha direção a alta velocidade. Era uma porca

de verdade, que eu apenas tinha visto nos postais de Ano Novo. Tal qual um

touro, avançou, correndo direito a mim.

No momento em que pensei «Ups!», a porca já se tinha aproximado e estava

diante dos meus olhos. A minha mãe vivera sempre com ela desde a minha

saída de casa. Era muito maior do que aparentava nas fotos e impunha um

considerável respeito vista de perto.

Automaticamente, comecei a correr. Ela era bem mais rápida do que eu

esperava. Tropecei inúmeras vezes nos vegetais da horta, quase caindo, fugindo
desesperadamente.

A meio do caminho, perdi um dos sapatos, mas ignorei-o e continuei a correr.

De cada vez que a ponta do focinho da porca tocava no meu rabo, eu ficava

borrada de medo com a hipótese de ser comida. Os porcos são animais

omnívoros, portanto, quem sabe se não comem humanos. Sem forças, agora com

as roupas já encharcadas em lama, fiquei logo a arfar, sem fôlego.

No entanto, o pior estava para vir. A minha mãe, que ouviu o estrilho da

minha voz, começou a gritar em voz alta «Ladrão, ladrão!» na minha direção.

Como trabalhava até altas horas, devia tê-la acordado. Calçava umas botas

pretas de cano alto por baixo de uma lingerie de renda, e, com uma foice na mão,

vem direito a mim, sem se aperceber de quem eu era.

Agora com mais dez anos e sem qualquer maquilhagem na cara, tinha a

aparência de um homem de meia-idade com a cara esculpida pela cirurgia

plástica, apenas com algumas partes mais côncavas e vestindo roupas de mulher.

Sem conseguir projetar a minha voz, resisti silenciosamente. O cheiro da terra

misturado com o seu perfume deixava-me maldisposta.

Quando eu estava caída no chão, ela levantou a sua foice e fez pontaria para o

meu abdómen. E foi nesse mesmo instante que me reconheceu.

Quando dei por mim, chovia a potes e o vento soprava forte como uma

tempestade. Tanto eu como a minha mãe estávamos encharcadas. Os seus seios

redondos viam-se à transparência do tecido fino do négligé. Ainda tinha um belo

peito, como a «Montanha dos Seios».

Esquecendo-me completamente da existência do meu bloco de notas, fiquei

de rabo sentado no chão, observando de boca aberta a minha mãe. Com um

grande encolher de ombros, ela suspirou, e formou-se um fumo branco que se

elevou no ar, como um monstro quando expira fogo.

Por um segundo, os nossos olhos cruzaram-se. Porém, a minha mãe voltou

para casa sem dizer uma única palavra. Quando chegou à entrada, virou-se para

mim e mexeu ligeiramente no queixo. A porca, com a sua cauda que mais se

parecia com um broto de feto a dar a dar, seguia atrás dela em pequenos

passinhos.
As minhas roupas estavam cobertas de lama.

Além de não ter encontrado as poupanças cobiçadas, ainda a tinha encontrado

a ela. Era o pior dos cenários. Agora, era demasiado tarde para recomeçar a

minha vida num sítio diferente. Aliás, nem sequer tinha dinheiro suficiente

para apanhar o miniautocarro de volta ao terminal principal. E, se pensar

nalgum lugar aonde possa ir de agora em diante, só me resta mesmo este.

Levantei-me e decidi-me. Antes de mais, procurei o sapato que perdi e,

segurando o frasco do nukado numa mão e o cesto na outra, fui para casa da

minha mãe relutantemente. O sabor a lama espalhou-se devagar pela minha

boca.

Voltei a entrar em casa, após dez anos.

A porca vivia numa extraordinária pocilga que fora acrescentada ao edifício

principal.

Na porta da pocilga, estava pregada uma placa a dizer: «Hermès.»

Após tomar banho, falei com a minha mãe, escrevendo no verso de um folheto

de publicidade do jornal, enquanto bebia café instantâneo morno e amargo.

Tinha trocado as roupas por um pijama que ela me emprestou. O cheiro intenso

do seu perfume estava impregnado no tecido.

Por alguma razão, sem falar, ela escreveu na parte de trás do folheto com uma

caneta de cor diferente. Tinha-me esquecido por completo de que a sua letra era

surpreendentemente bonita. Por causa dos nervos e do atrofiamento, como era

de prever, faltou-me a força nas mãos para escrever e a minha letra miudinha e

desajeitada mais se parecia com uma minhoca moribunda.

19
Sentámo-nos viradas de frente uma para a outra, enfiadas no kotatsu e

costurámos palavras à vez. Entre nós, erguiam-se dez anos do tamanho de uma

montanha da qual não via o topo.

A escrita continuou por mais de uma hora ao som da chuva, fustigadora como

um chicote.

De qualquer das formas, não tinha um tostão. Tentei, no mínimo, pedir-lhe

um empréstimo, que foi claramente negado, como era de esperar. Mas, ao que
parecia, uma mãe não é capaz de deixar que a sua filha se torne numa sem-

abrigo. E, com relutância, consentiu que eu voltasse para casa. A condição era

eu ficar responsável por Hermès. Isto, claro, sem incluir as despesas da comida,

utilidades e renda que teria de pagar. Para tal, precisava de trabalhar, ou seja,

procurar emprego nesta terra remota e deserta. De certeza que até a empresa de

bungee-jumping devia estar cheia de pessoal.

Enquanto pensava, desnorteada, ocorreu-me a ideia de usar a casa de

arrumações para abrir um pequeno restaurante. Quando falo em casa de

arrumações, refiro-me a um espaço do edifício do neoconservador que era

exibido como uma casa-modelo e que, por isso mesmo, estava em boas

condições e o seu interior era amplo. Na verdade, era demasiado bom para ser

usado como armazém.

Além disso, no que tocava a trabalho, não sabia fazer mais nada senão

cozinhar. Mas tinha confiança na comida que faço, isso é certo.

Se o meu sonho de abrir um restaurante se concretizasse nesta aldeia sossegada

no meio das montanhas, certamente que de agora em diante seria capaz de viver

com os pés assentes na terra — esse pressentimento emergiu das profundezas do

meu âmago.

Perdi tudo o que era meu, desde a mobília aos utensílios de cozinha. No

entanto, ainda me sobrava este corpo.

20 21 22
O kimpirá de umeboshi, o cozido de bardana com vinagre, o barasushi

23
abundante em vegetais, o chawanmushi leve cozinhado lentamente em dashi, o

pudim feito apenas com clara de ovo, o manju


24, as inúmeras receitas que herdei

com orgulho da minha avó, estavam na ponta da minha língua.

25
Toda a experiência acumulada que tinha, a trabalhar em coffeeshops, izakayas ,

barbecues, restaurantes biológicos, cafés populares, no restaurante turco, estava

gravada no sangue, carne e unhas deste corpo como anéis das árvores.

Mesmo que rasgassem todas as minhas roupas e eu ficasse totalmente nua,

seria capaz de cozinhar à mesma. Tomando a maior decisão da minha vida, pedi

à minha mãe:
— Por favor, peço-te. Vou dar o meu melhor, mas podes, por favor, emprestar-

me o armazém?

E passei-lhe com respeito a folha. Logo depois, baixei-me para o chão com a

palma das mãos no tatami e curvei-me num sentimento profundo de

sinceridade.

Sem desistires a meio, tens de levar isto até ao fim.

Estas palavras, turvas, saltaram-me aos olhos quando ergui a cabeça.

A minha mãe esperou que eu acabasse de as ler e voltou para o quarto,

bocejando, para retomar o sono interrompido. E, assim, ficou decidido que iria

tornar-me uma cozinheira nesta pacata aldeia nas montanhas.

O dinheiro para a abertura acabou por ser emprestado pela minha mãe, que o

tinha conseguido com altos juros aos consumidores.

Há muitos anos que eu sonhava abrir um restaurante.

Tudo o que perdi, incluindo o meu namorado, constituía uma ferida

imensurável, mas também era a oportunidade de dar um grande passo em frente

na minha vida. Há apenas um dia, nunca imaginaria uma reviravolta destas.

Depois de muitos anos, voltei ao meu quarto. Quando pensava que tudo fora

deitado fora, tudo se mantinha igual. Ao abrir a gaveta da roupa, a de ginástica

destacou-se no meio das outras. Mudei para essa. O fato de treino grená com

duas riscas em cada lado ficava-me um pouco apertado. Não obstante, mesmo

passados dez anos, ainda era capaz de cobrir o meu corpo.

Prontamente, levei o nukado para um local fresco com boa ventilação na

cozinha. Como sempre, estava um pandemónio. O lava-louça estava sujo e a

esponja da louça tinha lixo agarrado. A reciclagem também não se encontrava

bem feita. A mesa estava uma bagunçada, com todas as embalagens de copos de

ramen instantâneo possíveis de existir à face da Terra.

A cozinha que a minha avó tratava com tanto carinho era diferente.

Os meus olhos fixaram-se no interior da prateleira da cozinha e na embalagem

26
de nori ; as algas tinham perdido o seu brilho. Passados meses e anos, estavam

agora acabadas. Fiz de conta que não vi e voltei a pô-las no devido sítio.

Apesar disso, mais importante do que essa atrocidade eram os meus


sentimentos de gratidão por o nukado estar intacto, sentimentos que me

aqueceram o peito como água agradavelmente tépida. Para ser sincera, estava

demasiado nervosa e não tinha paciência para me preocupar com o nukado,

lembrança da minha avó. Mesmo se estivesse a falar a sério, não seria um

exagero.

Ela tinha sobrevivido a terramotos e à guerra.

De cada vez que espreitava para o nukado, assim se gabava dele. A minha avó,

27
nascida no período Taisho , dizia que o tinha herdado com honra e estima da

sua mãe. Tendo isso em conta, este nukado provavelmente teria passado de

28
geração em geração desde o período Meiji ou até desde o Edo . Mesmo que eu

pensasse em reproduzi-lo, ou mesmo se quisesse comprá-lo, não seria possível

hoje em dia. Bastava adicionar legumes à mistura para eles se tornarem um

deleite: era um frasco mágico.

29
Desde que o recebera, misturava sempre cuidadosamente o katsuobushi e o

30
niboshi do dashi usado na sopa de miso, assim como casca de laranja.

Ocasionalmente, adicionava-lhe cerveja ou pão, de forma a ativar os

lactobacilos. Estes variam entre pessoas, mas os que saem das palmas das

mulheres, especialmente após darem à luz, são os melhores — ensinou-me um

dia a minha avó, se não me engano, num tom orgulhoso.

Ao abrir a tampa do nukado, senti o cheiro dela.

Esperei que a chuva parasse e fui dar uma volta pelas redondezas, como

antigamente.

A minha cabeça já estava cheia de ideias sobre a abertura do restaurante. Não

era a altura certa para dormir e a minha mente estava em efervescência, sem

uma pinga de sono. Além disso, havia uma árvore à qual tinha de ir, antes de

tudo.

Desbravando o caminho que continuava até à montanha, corri

desenfreadamente até àquele sítio nostálgico. Aí, numa pequena colina, havia

uma figueira ilustre e especial. Durante estes dez anos, nunca pensei em visitar

a minha mãe, mas desta figueira tinha tantas saudades que até a procurava nos
meus sonhos.

Na verdade, quem me tinha apaziguado o coração não tinha sido nem a minha

mãe nem os meus colegas, mas sim a natureza desta montanha.

Com vinte e cinco anos, em comparação com esses tempos, estava mais

pesada, mas mesmo assim consegui subir ao topo da figueira como antes.

Passados dez anos, o seu tronco estava mais robusto. Os seus ramos, mais fortes.

Senti que ela também estava feliz por me ver de novo.

Ao aproximar o meu ouvido do seu tronco, senti-o ligeiramente quente. Os

ramos, vergados pela fruta que brotava, era como se tivessem sido enfeitados

com decorações deslumbrantes cor de jade. Estiquei a mão e passei os meus

dedos pelos figos. Estavam ainda verdes, como as costas de uma criança de

cócoras abraçando ambas as pernas.

Uma camada de nuvens meio transparentes, que se assemelhavam à casca fina

de uma cebola, estava agarrada ao céu. As árvores e as flores, banhadas pela

chuva, brilhavam vivamente.

Sem ser a nova plataforma de bungee-jumping, o resto da paisagem que se via a

partir dali não tinha mudado.

Tirei uma tesoura do bolso. Agarrei na franja com a mão esquerda e, com a

tesoura na direita, cortei de uma vez a parte de cima. Ao som refrescante da

tesoura, a minha franja abandonou o meu corpo.

Mas não foi apenas a minha franja. Com a mão esquerda, agarrei em pedaços

dos lados e da parte de trás e cortei-os. Queria que ficasse mais leve, nem que

fosse só um miligrama. O cabelo cortado, agora solto da palma da minha mão,

foi levado pelo vento e espalhou-se no chão.

Uma cozinheira não precisa de ter o cabelo comprido. Enquanto o penteava

com as mãos, cortei o resto. O cabelo que outrora se prolongava até ao meio das

minhas costas tinha-se tornado curto num instante. Senti a minha cabeça ficar

mais leve aos poucos.

Com o cabelo consideravelmente mais curto, abanei as minhas pernas ao

mesmo tempo que observava a «Montanha dos Seios», que se erguia à distância.

— Olá!
Repentinamente, ouviu-se uma voz masculina vinda de baixo.

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Espreitei por entre as grandes folhas da figueira e ali estava o senhor Kuma ,

desorientado e fardado com a sua vestimenta bege do trabalho. A cara era

assustadora, com feições salientes como uma rocha, mas o interior era gentil. O

32
rumor dizia que o seu verdadeiro nome era Kumakichi , mas os outros

tinham-lhe posto o diminutivo Kuma.

O senhor Kuma era o funcionário temporário da minha escola primária e era

como um ídolo para as crianças. No inverno, construía acessos para os

estudantes se deslocarem à escola nas estradas nevosas, fazia as preparações para

os eventos desportivos e substituía os vidros das janelas partidas.

33
— Olha...! Não me digam que é a menina Ringo !

Nesse mesmo instante, senti o interior do meu corpo a azedar.

Eu odiava o nome que a minha mãe me dera. Por ser filha bastarda, pusera-me

o nome de Rinko
4
3
; todavia, como todos os habitantes desta aldeia tinham

algum sotaque, Rinko soava-lhes a «Ringo», o que atenuava a situação.

O senhor Kuma aproximou-se por debaixo da árvore e cravou os olhos em

mim.

— Tornaste-te uma bela mulherzinha, não foi?...

Atrapalhada, tirei do cesto o meu bloco, folheio-o até à última página e

mostrei-lha: «Devido a certas circunstâncias, fiquei sem voz.»

O senhor Kuma tirou do bolso do peito os seus óculos e tentou ler, voltando a

olhar para mim duas vezes. Ou a letra era demasiado pequena, ou ele não

percebia o significado do que estava escrito, não sei. Depois, lembrando-se

subitamente, disse:

— Arganaz.

Desci da figueira e sentei-me à chinês ao seu lado, em cima do solo húmido.

O sol de outono vertia a sua luz quente sobre as nossas caras como um regador.

Era como se a chuvada de instantes antes tivesse sido mentira.

Arganaz.
Porque seria que estava a chorar tanto naquele dia? Quando estava a chorar

sozinha no corredor da escola, o senhor Kuma ia a passar e falou comigo. Depois

levou-me às cavalitas até à sala de arrumações, onde era proibido entrar. Como

eu não tinha pai, naquele momento as costas dele pareceram-me imensamente

grandes e calorosas.

Nesse pequeno lugar sombrio e com um cheiro característico, havia uma série

de materiais amontoados. Um vapor branco saía de uma chaleira que tinha sido

colocada em cima do aquecedor a gás.

— Menina Ringo, sabia disto?

Por estar tensa e nervosa, o senhor Kuma tirou de um armário de parede uma

panela de duas pegas e, devagar, trouxe-a para junto de mim. Cuidadosamente,

abriu a tampa e mostrou-ma. No interior, estava uma pequena criatura

castanha.

— É um arganaz — disse-me.

— Um arganaz? — perguntei-lhe, hesitante e numa voz nasalada, olhando

para cima.

O senhor Kuma franziu a cara num sorriso. Em seguida, pegou no arganaz,

que dormia, com uma das suas mãos e colocou-o na palma da minha. Sem se

mexer, o arganaz dormia que nem uma pedra. Quando dei por mim, parara de

chorar.

Estava esquecida disto por completo, mas lembrei-me subitamente. Era como

se sentisse o arganaz de novo na palma da minha mão. O senhor Kuma era

alguém conhecido que eu estimava desde essa altura.

Abri a página que dizia «Como está?» e mostrei-lha de novo. Ele acenou a

cabeça em silêncio umas quantas vezes e começou a contar-me tudo o que

acontecera nesta aldeia durante o tempo em que eu estivera ausente.

Aparentemente, tinha arranjado uma noiva. Com os seus olhos redondos a

brilhar, contava-me coisas sobre ela — que era argentina, formosa e

encantadora.

O senhor Kuma chamava-lhe «Siñorita». Penso que originalmente seria

«Senõrita», mas não consigo entender se é devido ao sotaque ou se é um


equívoco que vem de trás. Por mais que tente, só me soa a «Siñorita».

Pelos vistos, a Siñorita era bem mais nova do que o senhor Kuma.

Tinham-se casado e começado a viver juntos na casa dos pais dele, juntamente

com a sua mãe, sendo a seguir presenteados com uma filha. Uma menina

adorável com uns grandes olhos, que ele me mostrou numa fotografia.

No entanto, o casamento de sonho não durou muito. No começo, a relação

entre nora e sogra amargou e, certo dia, a Siñorita, que era uma mulher da

cidade, pegou na filha e saiu da aldeia.

O senhor Kuma, tal como os seus antepassados, era um homem cujo coração

pertencia às montanhas. E achava que não conseguiria viver longe da sua terra

natal.

Além disso, não era capaz de abandonar a sua velhota. Por fim, desistiu de ir

atrás da Siñorita e assentou nesta pacata aldeia. Agora, fazia a sua vida solitária

a três, com a sua mãe já idosa e uma «atraente cabra velha».

O senhor Kuma levantou-se repentinamente, tirou do bolso do peito da sua

farda algumas castanhas e ofereceu-mas. O seu exterior brilhava e, enquanto eu

brincava com elas na palma da mão, chocando-as uma contra a outra, ouvia-se

um som seco como castanholas.

Tirei rapidamente do cesto o meu bloco, folheei as páginas e mostrei-lhe.

«Muito obrigada.»

Com um sorriso na cara, como se o seu gesto não tivesse tido importância, ele

prosseguiu pelo caminho montanhoso, balançando as grandes costas.

Dizem que a sua perna esquerda, ligeiramente coxa, era a medalha e a prova

de uma luta que tivera com um urso-negro-asiático em tempos. Era um dos

seus episódios heroicos.

35
— Se deixares as castanhas embebidas em shochu , ajudam a sarar cortes —

exclamou ele, olhando para trás.

A sua cara redonda mantinha o mesmo sorriso franzido da altura em que me

mostrara o arganaz.

Levantei-me e fui para junto de um riacho que havia ao lado da figueira.

Como tinha cortado recentemente o cabelo sem usar um espelho, pelo sim, pelo
não, queria conferir como estava. Ajoelhei-me sobre as ervas daninhas e

espreitei com receio para a superfície da água. Ali estava eu, com o cabelo

notavelmente mais curto.

A minha aparência tinha mudado bastante, mas a minha cara era a mesma.

Passei os dedos pelo cabelo que até hoje fora suave, comprido e embaraçado;

agora, as minhas mãos deslizavam sobre ele e tocavam logo o vazio.

Nem estava assim tão mau. Sentia-me leve como merengue feito a partir da

clara de ovo.

Fiz uma concha com as mãos e bebi água do riacho, que tinha um sabor suave

e fresco. Molhei novamente a mão, compus o cabelo e levantei-me. A luz vinda

por entre as folhas da figueira penetrava no riacho e bailava no fundo.

Em seguida, decidi passear pela vila ao sabor do vento. Ao avançar um pouco

para lá do caminho pelo qual tinha vindo depois de sair do autocarro, ouviu-se

um grito razoavelmente alto: «Ah!» No início, espantei-me e achei que tinha

acontecido algum acidente, mas, quando pensei melhor, era apenas um berro

ecoando do fundo do vale na zona do bungee-jumping.

36
Nada mudara — os louva-a-deus, as akebia quinatas , as pimpinelas; a

sujidade das paredes exteriores e a ferrugem da pensão e pousada, sem refeições

incluídas, aumentara, mas, ao pé das janelas, diversas toalhas estavam

penduradas, pelo que era possível perceber que continuavam ao serviço; o O-

37
jizo-sama à beira da estrada tinha um belo pano por cima e o interior do seu

frasco de saqué estava decorado com pétalas de crisântemo de uma cor viva; as

oferendas também brilhavam lustrosamente; os banhos públicos ao longo do

rio, a cabana envelhecida; a máquina de venda automática.

Qualquer um destes elementos era nostálgico e mexia com o meu coração;

contudo, era um cenário que me dava vontade de o esmagar com a palma da

mão.

Atravessei a estrada e uma galeria de lojas. Todas elas com os seus telhados

enferrujados com chapas soltas e o céu azul a espreitar lá para dentro. Este lugar

fora em tempos uma próspera estância termal. Há pouco mais de dez anos, com
38
o boom das termas isoladas , ficou repentinamente muito conhecido e repleto

de visitantes vindos de todo o país. No entanto, originalmente, era um sítio de

difícil acesso, sem capacidade para alojar grandes quantidades de pessoas e, não

sendo capaz de responder a esta forte procura, acabou por falir.

Apesar de ainda ser hora de almoço, metade das lojas estava fechada. Lembrei-

me subitamente da boneca de celuloide que a minha avó guardava com tanto

carinho. Se a deitássemos de lado, dizia algo baixinho, fechando as pálpebras,

mas nunca fechava os olhos por completo. As cortinas das lojas lembravam-me

esses olhos, com a parte de baixo entreaberta. Certamente, estavam fechadas ao

comércio, mas o seu interior ainda devia estar habitado. Eu ia caminhando

enquanto examinava o seu exterior atentamente.

Quando passei pela famosa confeitaria de doces estrangeiros da vila, um cheiro

doce emanava pelo sistema de ventilação. Na montra, ligeiramente embaciada

do vapor de água, continuavam dispostos um bolo de morango e um savarim. A

minha mãe, quando estava bêbeda, tentava enfiar-me à força na boca, enquanto

eu dormia, o pudim desta mesma loja. Uma mulher que me era desconhecida

estava lá dentro. Talvez os tempos tivessem mudado.

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Ao lado da loja, havia um restaurante de tonkotsu fechado. Um pedaço de

papel preto rasgado estava colado nas suas cortinas, como se alguém tivesse

falecido, e nas suas margens encontrava-se escrito à pressa a esferográfica:

«Encerrados temporariamente.» A data era do ano anterior.

A livraria e o oculista também tinham ido à falência. No lugar da livraria,

havia agora uma loja de aluguer de DVD, mas quase sem filmes; no vidro da

frente estavam colados apenas vários cartazes de mulheres em roupa interior. A

única coisa que tinha mudado era a máquina de vendas solitária que dizia:

«Planos divertidos para famílias.»

Na diagonal oposta à estrada, o único supermercado da aldeia, no qual se

podia encontrar desde bens essenciais a tudo, continuava tranquilamente aberto.

Era como se a cidade continuasse a dormir, parada no tempo, no fundo do mar.

As luzes do Super Yorozuya


40 piscavam como os equipamentos de suporte à

vida, mas não aparentava ter falta de comida.


Nos arrozais, as espigas arqueadas e douradas do arroz brilhavam. E, como se

tratava de uma povoação, havia vegetais frescos para todos e até para partilhar

com os animais. Sem necessidade de comprar um purificador de água ou água

mineral de propósito, bastava ir à nascente mais próxima para beber água fresca

e boa, disponível vinte e quatro horas.

Nas vastas fazendas, havia vacas, cabras e ovelhas. Leite fresco era coisa que

não faltava. Se quiséssemos aventurar-nos, também podíamos fazer queijo, se

fôssemos corajosos. Havia uma pocilga e um aviário, pelo que a carne de porco e

aves era fresca, assim como os ovos que se arranjavam com facilidade. Não

importa o que dissessem, a partir de agora era época de caça. Se pedisse com

jeitinho ao caçador, ele devia dispensar-me algumas das presas que capturou.

Além disso, esta aldeia situa-se no meio das montanhas, e o mar também fica

perto, logo, se for de carro, conseguirei facilmente marisco.

Na parte de trás da montanha, numa encosta íngreme, estendia-se uma vinha

com vinho local de qualidade, e, claro, também havia boa água e arroz. Por

conseguinte, saqué que chegava e sobrava. Se não me engano, havia igualmente

um pomar e uma plantação de ervas aromáticas. Esta aldeia passa despercebida,

mas penso que os agricultores continuam a produzir aplicadamente, aos

pouquinhos, alimentos de qualidade. Encomendarei apenas azeite de boa

qualidade ou outros ingredientes especiais a partir da Internet. Felizmente, ao

que parecia, a minha mãe sabia usar a Internet como os outros. Assim, devia

emprestar-me o computador sem custos.

Se olhasse ao meu redor, encontrava o mar, as montanhas, o rio e o campo.

Todos eles, um tesouro para a minha cozinha. Comparando com a cidade, fui

abençoada por estas condições, que são um sonho.

O interior da minha cabeça estava cheio de ideias — motivos em mármore

para o novo restaurante.

Quando olhei para cima, no canto de um vale, lá estava o sol a afundar-se

lentamente.

Tinha uma cor laranja carregada, como a gema de um ovo acabado de pôr. O

sol citadino, que se punha por entre os prédios, também era bonito, mas este
pôr do sol era diferente, como se fosse obra da força de toda a natureza. Diante

de um fim de tarde tão sublime como este, os seres humanos deixariam de

tentar dominar a natureza à força. Uma comprida sombra estendia-se, saindo do

meu pequeno corpo. Vinda do fundo da floresta, a presença da noite

aproximava-se.

Para não ser engolida pela escuridão, regresso a casa à pressa, a correr pelo

caminho calcetado.

A estas horas, a minha mãe já devia ter saído de casa e estar no bar.

Anoiteceu por completo.

Fazendo as contas, eu estava acordada há mais de um dia, exausta e com sono.

No entanto, despertei de repente com o piar de uma coruja.

Estivera a dormir sem ter fechado as cortinas e, na moldura quadrada formada

por uma pequena janela, via-se uma estrela a brilhar timidamente. Era uma luz

que parecia que se apagaria apenas com um espirro.

A princípio, nunca pensei que pudesse ser o «velho mocho», pois já se tinham

passado dez anos desde que eu saíra de casa. Não era possível que ele estivesse

vivo. De certeza que já tinha morrido.

Em alvoroço, olhei para o relógio. Fiquei em pele de galinha com a precisão.

Mais vivo do que nunca, ele fazia soar o seu pio, certeiramente, à meia-noite.

Era um milagre. Contei atentamente: sem dúvida, doze vezes.

O velho mocho vivia na parte de trás do sótão da casa. Sem descansar um dia,

todas as noites, precisamente à meia-noite, piava: u-u-u. Além disso, o seu

ritmo era como um metrónomo. Soava sempre nos mesmos intervalos. Só

podiam ser poderes sobrenaturais. Ainda guardo no meu coração o tempo em

que ele me impressionava cada vez mais: Realmente, os animais são

extraordinários...

A minha mãe acreditava afincadamente que o velho mocho era o guardião

desta casa; então, eu também não duvidava. Até aos dias de hoje, ninguém

jamais o viu, e essa razão fazia dele uma presença ainda mais divina. Quem diria

que continuava vivo!

Saí de casa sem rumo há dez anos. Agora, voltava, novamente sem rumo, com
o coração partido, e o velho mocho continuava o seu trabalho todos os dias,

durante todo este tempo.

Não estou a exagerar quando digo que é uma das criaturas que mais respeito.

E estar a ser protegida por ele dava-me muita coragem. Muitas vezes, quando

ainda era criança, nas noites em que me sentia sozinha, só de pensar que o velho

mocho estava no sótão fazia-me sentir segura, e conseguia dormir.

Fiquei envolvida num sentimento de tranquilidade. Desta vez, fechei mesmo

os olhos. E assim, calmamente, fechavam-se as cortinas deste longo dia, do

início de um fim que deverá ser relembrado e celebrado.

Desde então, os dias iam sendo preenchidos e passavam à mesma velocidade

que a batida das asas de um falcão da «Montanha dos Seios». O tempo em que

trabalhava em part-time noutros restaurantes foi desafiante, mas, neste quarto de

século que já vivi, estava agora mais ocupada que nunca.

Não quer dizer que nunca me lembrasse do meu namorado, mas nem tempo

tinha para isso. O meu dia começava comigo a cuidar de Hermès. Nas notas que

a minha mãe me deu, estavam escritos detalhadamente pontos a ter em atenção

e questões sobre a sua alimentação. O que era irónico era ela ter escrito na parte

sobre a ração: «Dar quantidade moderada, senão fica gorda como uma porca.»

Para a minha mãe, Hermès era mais do que apenas uma mera porca de estimação.

Eu tinha a certeza de que o seu nome vinha do gosto que ela tinha por marcas.

Mas, na verdade, era a junção de «L», que aludia à raça Landrace, e «mès», que

significava mulher
41.

De acordo com o livro que a minha mãe tinha sobre porcos, Landrace era uma

raça de porco dinamarquesa e uma versão de bacon aprimorada, consumida ao

pequeno-almoço pelos ingleses. Era um porco branco com a cabeça pequena e o

tronco longo e elegante. Se compararmos com o Large White ou com o Middle

White
42, destacava-se por ter o focinho comprido e as orelhas descaídas.

Podia dever-se ao seu nome, mas a verdade é que Hermès tinha realmente as

feições elegantes.

Dizem que os porcos são asseados, e era verdade. Esta até tinha direito a uma
casa de banho e a um sítio para comer distintos.

Conforme as notas da minha mãe, Hermès viera ao encontro dela quatro

semanas depois de ter nascido. Normalmente, as porcas têm catorze mamilos e,

assim que nascem, os leitões escolhem o seu medindo forças. O mais forte fica

com o mamilo que tem mais leite e os outros acabam por enfraquecer cada vez

mais com o défice de nutrientes.

Os leitões que perderam a disputa contra os irmãos e não conseguiram obter

leite materno ou alimentar-se devidamente depois do desmame chamam-se

abortos. Hermès era a encarnação disso. Ao nascer, só pesava um quilo e, quando

foi para o pé da minha mãe, apenas três. Ao que parecia, era bem mais pequena

do que um porco normal. E, precisamente antes de ir parar ao matadouro, a

minha mãe acolheu-a.

Não há certezas de se se devia ao facto de ter tido falta de nutrientes quando

era uma cria, mas, quatro meses após ter nascido, mesmo até depois de ter

atingido a puberdade, Hermès não teve o cio. Sem acasalar e sem se reproduzir,

continuou a viver neste castelo com a minha mãe.

A horta por trás da casa era propriedade de Hermès. O cheiro peculiar que lá

havia derivava das suas fezes e, assim, graças à compostagem, produzíamos

vegetais viçosos. A minha mãe não ligava nenhuma à comida dos humanos, mas

no que tocava a Hermès era picuinhas e fazia questão de a alimentar com ração

biológica. Os vegetais que produzíamos na horta não tinham obviamente

pesticidas nem fertilizantes químicos, e o resto da alimentação de Hermès

consistia em milho não alterado geneticamente. Até o pão era artesanal, feito

com fermento natural que a minha mãe encomendava numa loja conhecida em

Tóquio, sendo servido como sobremesa ao pequeno-almoço.

Talvez porque o que comia era de qualidade, certo é que o pelo de Hermès era

suave, a cauda estava sempre arrebitada na ponta e ela tinha um sorriso

constante no focinho.

Todavia, como eu não tinha capacidades económicas para comprar tal pão de

luxo, não me restava outra hipótese senão fazê-lo. Como era a época das maçãs,

pedi ao senhor Kuma para partilhar comigo algumas delas, biológicas,


agridoces, que tinha no seu jardim, para as usar na fermentação do pão.

Chegava a amassá-lo antes de dormir. Depois, bem cedo, ao amanhecer,

moldava a massa e cozia o pão no forno. No fim de contas, era algo trabalhoso,

mas tratava-se da atividade que eu mais gostava de fazer, e, a partir do

momento em que a integrei no ritmo do meu dia a dia, nem era uma chatice.

Não entendia se Hermès notava diferença no sabor, na forma ou nos

ingredientes medíocres que usei, mas virou costas ao meu pão. Mesmo que se

trate de um porco, fico desanimada se deixarem comida que fiz atenciosamente.

Por conseguinte, fui aprimorando as minhas habilidades, de forma que ela me

faça o favor de o comer.

Pensei que tinha sido uma boa ideia ter misturado bolotas na massa. Nas

notas que a minha mãe me deixara, havia uma indicação a dizer que os frutos

secos eram a comida favorita de Hermès; então, decidi dar-lhe uma hipótese. E

foi assim que ela passou a comer o meu pão.

Desde então que adiciono sempre à massa sem fermento frutos secos que vou

encontrando na floresta e faço o seu pão predileto. Aos pouquinhos, fui-me

apegando a esta porca.

Hermès, ultrapassando talvez os cem quilos, redondinha e gorda, com as suas

bochechas cheias, mastigava alarvemente o pão que lhe tinha feito. A pouco e

pouco, isso provocava-me um sentimento peculiar, como se estivesse a olhar

para uma irmã verdadeira. Por alguma razão, tenho um sentimento de repulsa

para com a minha mãe, que estimava tanto Hermès; em contrapartida, da porca

não sentia nenhum tipo de ciúmes.

Depois, enquanto ela comia desenfreadamente a ração, calcei as minhas botas

de cano alto e limpei-lhe a pocilga.

Como os porcos adultos são encalorados, abri a parte da frente da pocilga para

o ar circular. Durante o inverno, coloquei uma placa de acrílico como proteção

contra o frio, mas era preciso mudá-la uma vez por dia e arejar o local. No chão

de cimento, espalhei serradura, assim como casca de arroz, e, todas as manhãs,

juntamente com as fezes, limpava-as, colocando-as dentro de um balde que

carregava até à compostagem.


Terminada a tarefa, preparei o meu pequeno-almoço e pus mãos à obra na

abertura do meu novo restaurante. A única coisa que tinha estabelecido desde o

início era que seria um restaurante. Não seria um café, nem um bar nem um

izakaya, mas sim um restaurante.

Costurar toalhas de mesa com panos de sobra, sair para a vila e comprar

materiais que tinha visualizado na minha mente, pedir emprestado o

computador da minha mãe e encomendar utensílios de cozinha na Internet:

tinha os dias preenchidos.

Evidentemente que, durante esse período, também não conseguia falar com

ninguém. Comunicava somente o necessário através das minhas notas escritas e

gestos. Era uma azáfama, mas foram dias empolgantes.

Quem me tratou com amabilidade e me ajudou com os preparativos foi o

senhor Kuma. Como vivia aqui desde há muitos anos, conhecia quase toda a

gente, além de ser extraordinariamente conhecedor da natureza. Era meu

conselheiro desta terra desconhecida. Se tivesse algum problema, bastava pedir-

lhe, que se resolvia logo.

O interior do restaurante foi praticamente acabado apenas por nós os dois,

como numa corrida de três pernas


43. Pedia-lhe para fazer os trabalhos pesados,

como pregar, serrar e carregar madeira, enquanto outros, como pintar, encerar,

aplicar os azulejos, estavam a meu cargo. Para nós, havia sempre algo que

podíamos melhorar, e, mesmo que trabalhássemos até ao pôr do sol, as tarefas

nunca acabavam.

As árvores que preenchiam o cenário das montanhas mudavam de aparência

dia após dia. À hora do almoço, ficavam cada vez mais pequenas, quase

conseguia pegar-lhes.

Eu queria tornar o restaurante um sítio familiar, que desse a sensação estranha

de já lá terem entrado, quando, na verdade, era a primeira vez. Um sítio em que

as pessoas pudessem sentir-se em casa e encontrar-se a elas próprias, como uma

caverna secreta. No mínimo, queria que os interiores fossem acolhedores e

encantadores.
Mais ou menos após um mês de trabalho, tínhamos conseguido criar um

ambiente próximo ao que eu imaginara.

O chão era de cortiça, no qual apliquei uma camada de terracota e estendi um

bonito tapete kilim


44, com uma cor quente, para proteger do frio no inverno. A

mesa, encomendei-a ao senhor Kuma, que ma fez resistente e envelhecida, igual

às que o seu pai carpinteiro fazia com castanheiro, quando ainda era vivo. Tinha

um ar característico, difícil de discernir entre oriental ou ocidental,

desvanecendo-se harmoniosamente numa cor âmbar.

As cadeiras, tinha-as encontrado numa loja de antiguidades na vila.

Pertenciam a uma sala de concertos, feitas de madeira e tecidas com corda, com

o assento pequeno. Pintei-lhes a madeira de azul-turquesa, o que lhes deu outra

vida.

As paredes interiores, por cima do reboco, foram pintadas com tinta natural

cor-de-ovo-alaranjada. Pedi ao senhor Kuma para negociar com um artista

estrangeiro que residia na aldeia, para que ele pintasse a deusa Kannon
45 com

umas asas de anjo, num toque leve de inspiração Cocteau, na parede do fundo.

Dava a impressão de que a pintura pertencia à parede desde sempre, assentando

perfeitamente na atmosfera do espaço.

O senhor Kuma conseguiu também uma salamandra de uma escola da cidade

vizinha, que tinha fechado. Do que eu mais gostava, era o lustre de velas de

vidro soprado, fabricado no período Taisho, que estava esquecido na casa de

arrumações, junto à casa dele.

Bastava-me uma mesa, mas também queria ter um sofá-cama. Se algum

cliente ficasse com sono após a refeição ou se tivesse vindo de carro e bebido

álcool, poderia dormir e descansar. Além disso, deixava-me mais descansada

saber que tinha um sítio onde dormir, caso discutisse com a minha mãe e fosse

posta fora de casa.

Construí o sofá-cama juntando umas quantas caixas de vinho em madeira.

Recebi-as de uma loja grande e nova de eletrónica da cidade vizinha, e o senhor

Kuma carregou-as no seu camião Kei


46. Por cima, estendi um pequeno colchão

clássico com um padrão de flores. E com o mesmo pano costurei o forro das
almofadas que lhe coloquei em cima. O cobertor foi fabricado na Austrália e

tinha um padrão tartã.

Uma das paredes da casa de banho era feita de azulejos de cores diferentes

que, juntos, formavam um padrão de passarinhos. Emanava um ar tribal e não

tinha saído nada mal para quem tinha improvisado. Por mais que a comida

fosse boa, se a casa de banho não tivesse um bom aspeto, não valia de nada.

Mesmo poupando noutras coisas, decidi investir na casa de banho e escolhi uma

sanita e um bidé de última geração. Abri uma pequena janela na parede, o que

tornou o espaço apaziguador.

Em relação ao exterior com acesso à estrada que ia dar à vila, usei um

pedregulho pequeno do leito do rio seco e escrevi «Welcome». De ambos os

lados, plantei rebentos de framboesas, mirtilos e amoras: os meus prediletos.

Pedi ao estucador da aldeia para demolir o telhado de telhas, pôr cimento e

pintar de rosa-escuro. E dei-lhe um toque final, fixando conchas que tinha

apanhado no areal da praia mais próxima.

A porta principal, que é o que causa mais impacto, consegui comprá-la a um

módico preço num leilão, na Internet. Obviamente, a casa-modelo do

neoconservador tinha uma porta, mas era de alumínio e não condizia com o

resto. A que eu escolhi era castanho-escura, de fabrico francês, e em formato de

«U», e, para o puxador, usei um pedaço de ferro em forma de lagarto, que tinha

encontrado nas montanhas, e preguei-o na porta.

Estava bastante satisfeita com o aspeto do restaurante que tinha construído

em cima do joelho com o senhor Kuma. Agora, bastava ir dando uns retoques

finais, aos poucos, já com o restaurante aberto.

Graças ao senhor Kuma, a cozinha, que era o meu local de trabalho, tinha

ficado ainda melhor do que tinha em mente. Tirei logo o nukado da cozinha

nojenta da minha mãe e coloquei-o na minha, limpa.

O que mais valorizo numa cozinha é o seu asseio e pragmatismo.

Como ia cozinhar com o mínimo de utensílios possível, não havia necessidade

de uma máquina de lavar louça, um micro-ondas ou uma panela elétrica para

cozer arroz. Fiquei apenas com um frigorífico, um lava-louça, e um forno a gás


por um preço barato de um restaurante chinês local que tinha ido à falência.

O lava-louça brilhava como novo e, por alguma razão, era perfeito para a

minha estatura pequena. O exaustor que improvisei com muito trabalho,

servindo-me de um balde de lata, não era perfeito, mas até era bonitinho. Mais

importante do que tudo isso, deitei abaixo a parede a oeste, troquei-a por um

vidro e agora, quando cozinhava, era envolvida por uma luz maravilhosa.

Se abrisse a porta, ficava com acesso imediato ao jardim de ervas aromáticas

que tinha plantado. O senhor Kuma colocou no teto vigas feitas a partir de

madeira desbastada, pelo que eu podia pendurar livremente os cestos que fazia a

partir de videiras da montanha. Com toda a minha experiência, trabalhando em

vários part-times, já me deparara com muitas cozinhas, mas nunca com uma tão

perfeita.

Graças ao empréstimo que a minha mãe me fez, de alguma maneira consegui

obter uma faca de cozinha profissional e, de modo geral, todo o conjunto de

utensílios de cozinha necessários. A louça era pouca, mas eu estava satisfeita

com o resultado final. Fiquei com a que estava no fundo do armário, que a

minha mãe me deu. Não era usada, mas tinha sido escolhida pela minha avó, de

propósito para ela. Dentro do armário, havia copos coloridos do período de

Taisho e da Era Vitoriana, tigelas velhas de cerâmica tingida da região de

Aname
47, 48
mamezara de imari ware
49, pires de imari ware, pratos brancos de

50
sopa da Richard Ginori e, o mais importante de tudo, copos de champanhe de

design antigo da Baccarat, que já não eram fabricados. Na parte de trás de cada

uma das peças de louça, estava escrita uma explicação num autocolante, com a

letra familiar da minha avó.

Surpreendentemente, a minha mãe dera-me tudo isto como presente para a

inauguração do restaurante. Os meus valores são o oposto dos dela, e isso

irritava-me à medida que crescia, mas agora estava-lhe especialmente grata. O

que para ela era lixo e apenas ocupava espaço, para mim, era agora um tesouro.

Pergunto-me se o temperamento da família do lado da minha mãe passará de

avó para neta e assim sucessivamente. Ou seja, a minha mãe opôs-se à sua

própria mãe, que era demasiado pura, e optou por um estilo de vida caótico, e
eu, criada por essa mesma pessoa, não querendo ser igual, também optei por um

caminho mais estável. Era como se estivéssemos a jogar eternamente um jogo

de Reversi; as partes que a mãe tinha pintado de branco, a filha pintava-as

desesperadamente a preto, e essas, a neta esforçava-se por pintar de novo a

branco.

51
Decidi arrumar a louça no armário da Mizuya que estava esquecido na casa

de arrumações. Ao limpar o seu exterior e interior com um pano molhado, ficou

como novo. Decidi colocá-lo debaixo da janela com vista para a «Montanha dos

Seios», que era possível ver a partir da mesa onde os clientes comiam.

Tinha começado a contagem decrescente para a abertura do restaurante.

Foi num dia desses que o senhor Kuma veio ter comigo no seu triciclo para

adultos. Era elétrico, e, sem gastarmos energia física, conseguimos carregar

cargas pesadas. Na verdade, devia haver um nome técnico para este triciclo

especial, só que eu não sabia. Tinha duas rodas atrás e um grande cesto. Até

tinha espelhos retrovisores.

O senhor Kuma, enquanto segurava o volante do seu triciclo, disse com um

sorriso:

— Aqui tens, menina Ringo, um presente. Dei-o à Siñorita antes, mas ela já

não o usa... Não lhe poderás dar uso? Vou passar-lhe um bocadinho de tinta,

está bem? — disse ele, e começou a pintar o triciclo, um pouco enferrujado, de

cima a baixo com a tinta azul-turquesa que eu tinha usado para pintar as

cadeiras.

Tentei impedi-lo, acenando inúmeras vezes num gesto de negação e batendo

nas suas costas. No fim de contas, era o estimado triciclo que a sua amada

Siñorita lhe deixara. Eu não seria capaz de o aceitar. Era apenas uma conhecida.

E foi isso que lhe expliquei. Porém, independentemente dos meus protestos,

num piscar de olhos, o triciclo outrora enferrujado passara a um belo azul-

turquesa. Logo depois, ele perguntou-me gentilmente:

— Por falar nisso... O nome do restaurante pode ser Amor?

E despediu-se de mim, acenando, muito atrapalhado.


Ocupada como estava com os preparativos para a abertura, eu esquecera-me de

decidir o mais importante. Não obstante, o nome «Amor», apenas essa palavra,

de certeza que não podia ser. Se colocasse esse nome, todo aquele mês de

trabalho com o senhor Kuma, durante o qual conseguimos criar este ambiente

para o restaurante, iria por água abaixo.

Quando cheguei a casa a altas horas da noite e me enfiei na cama, não parei de

pensar nisso. À meia-noite em ponto, enquanto ouvia o velho mocho, veio-me à

cabeça «Cantina dos Caracóis». Passados alguns segundos, tive a certeza de que

não haveria hipótese de chamar apenas Caracol ao restaurante e o meu peito

encheu-se de convicção. Era isso mesmo!

Enrolada nas mantas como uma torta, estalei os dedos. Iria seguir em frente,

carregando aquele pequeno espaço às costas como se fosse a minha mochila.

Juntos, partilhamos o mesmo corpo.

Uma vez dentro de uma carapaça, isso passava a ser uma zona de conforto para

mim.

Na manhã seguinte, liguei logo para o telemóvel do senhor Kuma.

Mas a verdade é que eu não tinha voz. Por isso, tínhamos combinado uma

regra: ligar-lhe para o telemóvel e tocar-lhe uma canção como sinal para vir.

A música que o senhor Kuma tinha escolhido era o hit de uma cantora

popular que esteve na berra durante algum tempo... Aparentemente, a Siñorita,

que fugira com a sua filha, costumava cantar-lha no karaoke do bar Amor. Por

isso mesmo, eu andava sempre com a cassete da música que ele gravara e o

leitor de cassetes dentro do meu cesto predileto. Os meios que temos para

comunicar são poucos, mas acabamos sempre por nos entender.

Quando passou a fazer parte do meu dia a dia, percebi que mesmo não

conseguir falar não era assim tão agonizante como os outros imaginavam. Não

era uma pessoa faladora por natureza e, se pensar que vivia sozinha, não era

assim tão mau.

Nesse momento, o senhor Kuma, ao ouvir a voz doce no começo da música,

apressou-se logo e veio ter comigo no seu camião.

Peguei numa pedra e escrevi rapidamente em letras grandes no chão «A


Cantina dos Caracóis» e, como se tivesse escrito na minha cara que algo se tinha

passado, olhei para o senhor Kuma com carinho.

Ultimamente, mesmo sem ter de usar as minhas notas, estávamos os dois em

sintonia.

— Bonito! — exclamou ele.

E, sem demora, escreveu com firmeza «A Cantina dos Caracóis» na parte de

trás do cesto do triciclo para adultos, que tinha pintado de azul-turquesa no dia

anterior. A sua letra era desengonçada, mas estava cheia de amor.

Então, desde aí, decidi chamar ao triciclo «Caracol».

Sem hesitar, levei-o num test drive e parti para dar uma volta pela nossa pacata

aldeia no vale.

Na verdade, como não tinha carta, não sabia para onde havia de me virar. Na

cidade, conseguimos viver sem carro, mas, numa aldeia rural isolada como esta,

não podemos desenvencilhar-nos sem ele. Sentia-me mal por chamar o senhor

Kuma à mínima coisa.

No entanto, com o Caracol, pelo menos até ao centro da vila conseguia ir por

mim própria. Foi difícil nalgumas estradas montanhosas que não estavam

pavimentadas, mas, se o empurrasse, resolvia-se o assunto. Decidi por isso usar

com gratidão e carinho o Caracol que o senhor Kuma tinha oferecido como

presente à Siñorita.

Olhei para o céu azul no qual o outono se pronuncia, enquanto seguia

devagarinho com o Caracol pela estrada montanhosa irregular, mas com a

certeza de ir em frente. Nuvens fofas que se assemelham a alforrecas estendem-

se pelo céu. Do seu corpo gigante sem coração, esqueleto ou ossos, os seus

tentáculos prolongam-se. Tento encher o peito de ar. Um milhafre-preto vindo

da praia sobrevoou, às voltas, a minha cabeça. Num guincho, voou em direção à

«Montanha dos Seios». Sinto a presença de vida oriunda do fundo da floresta

como um ruído.

A meio caminho, encontrei uma videira. Provei uma uva. Era amarga e

agridoce. Não podia ser comida crua, mas tive uma ideia e, antes de serem

comidas pelos ursos, decidi colhê-las. Apressei-me e coloquei o saco de plástico,


agora repleto de uma forte cor vermelho-arroxeada, no cesto do Caracol.

Também encontrei várias bolotas caídas. Apanhei o maior número possível e

também as pus dentro do cesto. Usá-las-ei depois de fervidas e secas, para fazer

o pão de Hermès.

Dentro em breve, A Cantina dos Caracóis verá a luz do dia.

Como sempre, sem falhar uma vez por dia, pisei as fezes de Hermès. Algumas

castanhas caíram-me em cima da cabeça e quase caí, tropeçando nos seixos à

beira da estrada. Independentemente disso, se comparasse com o tempo em que

vivia na cidade, os momentos em que me sentia genuinamente feliz eram

muitos mais. O simples ato de salvar um bicho-de-conta que estava de pernas

para o ar trazia-me felicidade. Encostar às bochechas os ovos da galinha

acabados de pôr e sentir o seu calor; observar as gotas de água mais bonitas do

que diamantes nas folhas molhadas pelo orvalho da manhã; o belo cogumelo

véu-de-noiva que se parecia com uma base de copos bordada a renda, que

acrescentei à minha sopa de miso... Estava tão grata por tudo isto, que até tinha

vontade de dar um beijo na bochecha de Deus.

Já tinha imaginado praticamente todo o restaurante na minha cabeça. Iria ser

um restaurante pouco vulgar, apenas com um grupo de clientes por dia.

No dia anterior à reserva, levaria a cabo uma entrevista, quer dizer,

comunicaria por fax ou e-mail com os clientes, e faria um inquérito detalhado

sobre o que iriam querer comer, a sua estrutura familiar, os seus sonhos,

orçamento, entre outras coisas. E, de acordo com o resultado, elaboraria a

ementa do próprio dia.

Quando ficava tarde, o bar enchia-se de barulho do karaoke ou de vozes; por

isso, se possível, queria abrir o restaurante às seis da tarde. E, tal como o seu

nome, queria que os clientes saboreassem calmamente a minha comida. Sem

relógio, usarei um temporizador de cozinha apenas nas alturas estritamente

necessárias.

Como o cheiro a fumo altera o sabor da comida, será proibido fumar. Quanto

à música, não haverá nenhuma. Preferia que os clientes desfrutassem dos sons

da cozinha ou da presença das aves e outros seres vivos do exterior.


Fechei os olhos e parecia que o restaurante se começara a mexer lentamente.

Quando voltei da minha jornada, o senhor Kuma estava a preparar pedaços de

madeira que trouxera da montanha e que cortara com o machado para acender o

forno a lenha.

Tirei o meu bloco, esperei pelo momento em que as mãos dele estavam livres

e pedi-lhe:

Por favor, diga-me o que deseja comer. Seja o que for.

Não sei porquê, mas fiquei envergonhada, como se tivesse declarado o meu

amor a um rapaz. Não sei se foi por causa dos meus nervos, mas a minha mão

tremia e a minha letra sorria.

No entanto, a verdade é que, no meu coração, eu já tinha decidido fazer isto

há muito tempo.

Era um agradecimento por toda a ajuda que ele me tinha dado. Sinceramente,

oferecer dinheiro ou bens materiais era algo que ainda não estava ao meu

alcance. Mas podia cozinhar. Todo o meu corpo e alma me asseguravam a cem

por cento de que era capaz de o fazer.

Contudo, talvez por não estar à espera de tal pergunta, e com uma expressão

de quem tinha comido algo amargo que esperava ser doce, ele fez um esgar.

— O que eu quero comer... — murmurou, e não disse mais nada.

E, como se não se tivesse passado nada, pôs-se a cortar novamente a lenha.

Passado um pouco, começou a falar baixinho sobre a Siñorita. Ao que parece,

cada vez que pensava em comida, inevitavelmente recordava-se dela e da sua

adorada filha. Passava-se o mesmo comigo. Desde que voltei para a minha terra

natal, os meus momentos de felicidade aumentaram; porém, quando menos

esperava, lembrava-me do meu namorado. Estava longe de sarar as minhas

feridas; na verdade, iam ficando mais profundas com o passar dos dias.

Quando saí para a vila e deparei com a silhueta das costas de um homem que

se assemelhava a ele, pensei que me tinha vindo buscar e corri atrás dele para

lhe ver a cara, apenas para poder confirmar que não era ele. Só de cheirar um

aroma a especiarias, semelhante ao que ele tinha impregnado na pele, vinham-

me lágrimas aos olhos como o cão de Pavlov.


Se pensasse em comida, ainda era pior. Cada vez que ato o meu avental à

cintura, os seus dentes brancos que brilhavam no rosto moreno, o seu olhar

inocente, a linha do seu nariz alto, assombravam-me como um fantasma. Era

como se a Índia e a Turquia chocassem contra o meu peito numa mistura de

argila de duas cores. O sentimento de impotência por ter sido deixada pela

pessoa que amava não era algo que pudesse ser substituído por nada.

Enquanto cortava a madeira, o senhor Kuma contou-me que a primeira

comida que a Siñorita lhe fez foi caril. E murmurou com um olhar vazio, como

se estivesse a contemplar a Argentina ao longe:

— Já que perguntas, estou farto de comer todos os dias a comida que a minha

mãe me faz... Ultimamente, apetece-me comer caril...

Assim que ouvi aquelas palavras, o meu coração sentiu-se vitorioso e decidi

fazer-lhe o melhor caril da sua vida. Para mim, o caril também era uma comida

cheia de memórias. Não sei, mas talvez porque o cozinhara várias vezes para o

meu namorado. Como era indiano, caril era a comida que lhe sabia a casa.

52
Após ter comido kamaage udon ao almoço com o senhor Kuma, que tinha

acabado de arranjar a lenha, fui rapidamente lavar e ferver com cuidado as uvas

que tinha apanhado antes, e coloquei-as num preparado de vinagre balsâmico.

Ficaria pronto dali a doze anos. Fechei os olhos e tentei imaginar com que

sabor iria ficar.

Quem sabe se não falharei a meio? Não importa: dentro de doze anos, quero

estar de pé na cozinha, de coração cheio, como agora. Com esse desejo em

mente, coloquei zelosamente a mistura de vinagre balsâmico num frasco

esterilizado com água a ferver.

Era o dia de abertura.

De peito erguido, saí de casa e dirigi-me para o restaurante aos saltinhos.

Hermès, que se tinha tornado minha compincha, despediu-se de mim com um

guincho.

Até o tempo combinava com o nome, A Cantina dos Caracóis, pois chuviscava

desde manhã cedo nesta pacata aldeia nas montanhas. Tal como um verdadeiro
caracol, ergui o rosto e desfrutei do banho de chuva.

A tabuleta que tinha feito na véspera, em meio dia de trabalho, estava húmida

e a pingar por causa da chuva miudinha semelhante a nevoeiro.

Era uma tabuleta que pedira ao senhor Kuma para cortar do tronco de uma

árvore com uma espessura de mais ou menos dez centímetros, e, com a ajuda de

uma serra, dar-lhe um formato de caracol, na qual escrevi a tinta amarela «A

Cantina dos Caracóis», numa letra desengonçada, igual à de uma criança do

jardim de infância.

Depois de encostar levemente a palma da minha mão à placa, tirei as chaves,

que mais ninguém tem, e abri lentamente a porta do restaurante. A porta em

forma de U, à qual ainda não estou habituada, chiou como se estivesse a dar-me

as boas-vindas.

Como só servia um conjunto de clientes por dia, não fiz grande publicidade ao

restaurante. No entanto, à hora do almoço, o neoconservador enviou uma

grande grinalda de flores como celebração. Talvez tivesse sido a minha mãe a

dizer-lhe. Era uma das grinaldas coloridas que se veem expostas às portas nos

53
dias de inauguração de um pachinko . A boa intenção deixava-me feliz, mas,

atrapalhada, movi-a para as traseiras do bar. Se uma grinalda destas estivesse na

frente da minha porta, o ambiente simples e acolhedor que finalmente criei

ficaria estragado.

Ainda não tinha parado de pensar no tipo de caril que prepararia para o

senhor Kuma. Refletia tanto nisso, que quase perdia o sono. E, por mais que lhe

perguntasse que tipo de caril em específico gostaria de comer, ele apenas

respondia francamente: «Caril.» Por isso, eu não chegava a nenhuma conclusão.

Primeiro, pensei em reproduzir o caril que a Siñorita lhe fizera. No entanto, a

memória dele era vaga e, por mais parecido que ficasse, era muito pouco

provável que ficasse ao mesmo nível daquele que ele comeu nessa altura, com

aqueles sentimentos. De modo que decidi fazer-lhe um caril à minha maneira.

Após refletir bastante, resolvi fazer-lhe um caril de romã. A estação do ano

vinha mesmo a calhar. Se procurasse bem dentro da floresta, ainda haveria

romãzeiras carregadas de fruto.


O caril de romã era uma receita que me fora ensinada por um colega de

trabalho iraniano do restaurante turco. Como leva muitas romãs, fica com uma

cor de rubi, um sabor agridoce e ao comer encrespamos o corpo.

Eu nunca tinha ido ao Irão, mas naquela altura parecia-me ver a região

desértica numa cor sépia. Tinha combinado com o meu namorado que iríamos

inserir obrigatoriamente esta receita na nossa ementa e dá-la a conhecer aos

japoneses. Era, sem dúvida, uma receita histórica.

Na véspera da abertura, fui sozinha às montanhas, subi às árvores nas quais

ainda restavam romãs e apanhei apenas as necessárias. O conceito de usar, na

medida do possível, ingredientes naturais da terra remetia para o tempo em que

A Cantina dos Caracóis não passava ainda de um sonho. Enquanto subia à

árvore, provei um pouco de uma romã. Era mais agridoce do que estava à

espera. Parecia que todas as células do meu corpo iam despertar.

Se as compararmos com as romãs que estão à venda nos supermercados da

cidade, embrulhadas em papéis coloridos e que já perderam o seu verdadeiro

sabor, esta era totalmente diferente. Esta romã esperava, silenciosamente, por

cumprir a sua missão na gastronomia. Ao acender o forno a gás, enchi-me de

um sentimento sagrado. Apertei bem o meu novo avental, enrolei uma toalha à

volta da cabeça e lavei as mãos. A minha cabeça mais se parecia com a de um

monge.

No dia em que voltei para a minha terra natal, tinha cortado o meu cabelo no

topo de uma figueira, mas mesmo assim ainda estava demasiado comprido e

incomodava-me. Assim, mais tarde, fui a um cabeleireiro nos arredores da

aldeia e cortei-o rente com a máquina. Agora, eu própria rapava o cabelo a cada

três dias. Assim, não tinha de me preocupar se cabelos meus caíam na comida.

De qualquer modo, também não estava interessada em mostrar-me atraente.

Achei que talvez fosse melhor rapar as sobrancelhas, para evitar qualquer tipo

de contaminação dos alimentos, mas pensei duas vezes. Mesmo que eu não

tivesse problemas com isso, não queria assustar os clientes com a minha figura.

No balcão polido que brilhava por tudo o que era canto, além das romãs,

estavam cebolas e carne de vaca, que esperavam impacientemente por ser


cozinhadas.

Com a palma da mão acabada de lavar, toquei levemente nos ingredientes.

Depois, como se estivesse comovida com o milagre da vida, peguei-lhes um por

um com as duas mãos, encostei-os à cara e, durante alguns segundos, com os

olhos fechados, trocámos algumas palavras.

Quando dei por mim, apesar de nunca ter sido ensinada por ninguém, isto

tornara-se o meu ritual antes de começar a cozinhar. Aproximava a cara,

encostava o nariz aos alimentos e ouvia as suas «vozes». Cheirava-os como um

cão, analisava-os e perguntava-lhes como queriam que os preparasse. E, assim,

os ingredientes diziam-me espontaneamente qual era a maneira mais apropriada

de serem cozinhados.

Claro que pode ser da minha imaginação, mas a verdade é que realmente

conseguia ouvir as suas vozes.

Logo depois, de joelhos no chão, rezei ao deus da comida.

Por favor, que eu consiga fazer um bom caril sem percalços. Que consiga ser bem-

sucedida e fazer-lhe um bom caril sem o desapontar, magoar ou desperdiçar estes

ingredientes.

No momento em que senti que a minha prece era ouvida, abri os olhos

lentamente e mergulhei no universo da comida.

Quando ia picar as cebolas, alguns segundos após inserir a faca no vegetal,

vieram-me de imediato lágrimas aos olhos. Inconscientemente, cerrei os dentes.

Eu própria não percebia se era a cebola que me ardia nos olhos ou se eram as

memórias do meu namorado que me faziam arder o coração. Mas as lágrimas

gordas que escorriam pelas minhas bochechas eram como tartarugas que subiam

à praia para aí pôr os seus ovos. Mesmo assim, continuei a cortá-las.

Pensando bem, estive quase sempre a chorar enquanto cozinhava o caril de

romã.

As memórias que tinha do meu namorado vertiam em forma de grandes

lágrimas da caixa da minha memória.

Deixei a cidade com a minha cabeça em água e, assim que regressei à minha

terra natal, envolvi-me logo nos preparativos para abrir o restaurante. Estive
sempre a evitar o assunto para não pensar nele. E, agora, veio tudo ao de cima.

As memórias de nós os dois eram como um truque de magia rasca, feita com

aqueles lenços coloridos de nylon que aparecem à frente dos olhos uns atrás dos

outros, tingindo a minha visão de uma cor nostálgica. Por culpa disso, não

conseguia perceber como estava o refogado. Apesar disso, cerca de dez minutos

depois, a cozinha enchia-se de um cheiro agridoce a caril de romãs.

Ao entardecer, o senhor Kuma chegou à hora combinada no seu camião. No

entanto, como estou habituada a vê-lo na sua farda de trabalho, assustei-me e

achei que um delinquente tivesse vindo dar cabo de mim. Podia ser por causa

dos direitos da loja ou por uma pessoa que sentisse algum ressentimento pela

minha mãe. Na cidade, seria um cenário bem possível.

Quando, por precaução, pensei em ir buscar o meu pilão para me defender,

apercebi-me de que era o senhor Kuma, que me disse no seu descontraído tom

habitual:

— Bom trabalho!

Abri a porta do restaurante, mudei os ânimos e fui ao seu encontro. O cliente

de hoje. A partir daquele dia, iria tornar-me uma cozinheira profissional.

O senhor Kuma tinha vestido um fato preto com uma extravagante gravata

vermelha e o seu cabelo cada vez mais ralo estava arranjado num penteado à

militar com laca. Contudo, reconheci os seus pés pelas botas de cano alto,

sempre sujas de lama ou folhas de árvore, mas que agora brilhavam da graxa

como a barriga de um atum aos saltos no cais.

Ele foi-se dirigindo para o seu lugar, ao mesmo tempo que verificava

cuidadosamente se o lustre estava bem instalado e o soalho de terracota não

estava empolado.

Mostrei a nota que tinha guardada no bolso do meu avental, que dizia: «Por

favor, aguarde um pouco.» Num passo apressado, voltei à cozinha e pus mãos à

obra no preparado do caril. O senhor Kuma esperou enquanto fumava um

gordo charuto. A verdade é que era proibido fumar, mas, como ele era um

cliente especial, decidi fechar os olhos desta vez e fingir que não sabia. Dei-lhe

logo um cinzeiro.
Doseando com cuidado a quantidade de sal no caril, agora finalizado, servi-o

generosamente por cima do arroz de manteiga. Saí da cozinha e levei-o de

imediato até à mesa, onde ele esperava.

Como acompanhamento, preparei o nukazuke de rabanete branco. Na verdade,

gostaria de ter usado o allium chinense


4
5
que tinha preparado o verão passado,

mas já não me lembrava de onde tinha ido parar.

Pus uma colher de madeira novinha em folha ao lado do prato, fiz uma vénia

num gesto de agradecimento e voltei silenciosamente para a cozinha. Fechei

com delicadeza as cortinas que separavam a sala da cozinha.

Agora, era só esperar que o senhor Kuma acabasse de comer.

Com exceção do meu namorado, eu não era capaz de olhar para as pessoas

diretamente enquanto comiam a minha comida. Para mim, era algo mais

embaraçoso do que observarem o interior dos meus genitais ou a ponta dos

meus mamilos com uma lupa. Apesar disso, estava a morrer de curiosidade para

ver a reação do senhor Kuma.

— Obrigado pela refeição — disse ele baixinho, começando a comer.

Entreabri as cortinas e, com um pequeno espelho, observei às escondidas o seu

perfil.

Ajustei o ângulo da lupa, de forma que lhe visse o rosto. De cada vez que a

luz se refletia na lupa, era como se uma borboleta branca voasse pela sua cara.

Todavia, sem prestar atenção a isso, ele continuou a comer o caril tacitamente,

sem qualquer expressão facial. Sem dizer se estava bom ou mau; não disse uma

única palavra. Os meus nervos atingiram o pico. Se calhar, tinha estragado o

sabor do caril com as minhas lágrimas...

Nestas situações, insegura de mim própria, tendia a olhar para o lado negativo

das coisas. Estava a ponto de perder a minha confiança de me tornar uma

cozinheira profissional no futuro.

Ah... Afinal havia uma grande diferença entre gostar apenas de comida e ser

um cozinheiro profissional. Quando comecei a pensar assim, fiquei com vontade

de tirar o mais rapidamente possível o caril meio comido da sua mão e deitá-lo
pelo lava-louça abaixo.

Porque é que não pensei com clareza numa comida que fosse mais ao encontro do gosto

dele?...

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Devia ter-lhe servido antes um caril japonês ou um katsukare , ou um

hambúrguer com caril, ou um caril comercial à venda nas lojas, de tempero

roux, ortodoxo, que agradasse às massas.

Não era a altura para me lamentar e estar afogada nas memórias do meu

namorado. Além disso, talvez o nukazuke de rabanete soubesse mal. Talvez se

tivesse desfeito e perdido o seu equilíbrio por causa da mudança de ambiente.

O que devo fazer? Isto era apenas autocomiseração. E, enquanto ia ficando cheia

dessas ideias, à beira de chorar a qualquer momento, o senhor Kuma, num

timing soberbo disse:

— Menina Ringo, é a primeira vez que como um caril como este...

Não sei se ele sabia que eu estava escondida logo atrás das cortinas, mas virou-

se para a entrada da cozinha e disse-me aquilo.

Nesse momento, fiquei imediatamente com os olhos cheios de lágrimas.

Antes, estava a chorar de desânimo, mas desta vez eram lágrimas de felicidade.

— Também gostaria de o ter dado a provar à minha filha e à Siñorita... —

disse ele num tom melancólico.

E, ao olhar com atenção, refletida na minha lupa, estava a sua expressão

iluminada a comer o meu caril de romã.

Ao fim e ao cabo, foi um grande sucesso. Aliviada, para finalizar, comecei a

preparar-lhe um café americano.

Eu tenho um talento especial do qual me posso gabar. Só de olhar para a

expressão facial de alguém, consigo perceber se uma pessoa gosta de chá preto

ou de café; e, se for café, que tipo de café. Talvez isto se deva ao facto de quando

me mudei para a cidade, ter trabalhado durante alguns anos na caixa de uma

grande cadeia de cafés. Tornei-me capaz de perceber intuitivamente o que os

clientes iriam pedir, olhando apenas por momentos para as suas caras. Acerto a

maior parte das vezes com uma probabilidade de noventa por cento.

O senhor Kuma bebeu o café americano até à última gota e, agradecendo-me


inúmeras vezes, colocou à força um cogumelo matsutake no bolso do meu

avental como gorjeta, até eu recusar e dizer: «Não é preciso.» Depois voltou

para casa, calmamente, pela estrada montanhosa ainda iluminada pelo sol

tardio.

Ele tinha ido de manhã à montanha de propósito para me apanhar cogumelos

matsutake formidáveis, ainda por abrir.

Do meu bolso, saía um cheiro nobre. Afinal, era uma ocasião especial. Pensei

que quanto mais cedo, melhor, e decidi fazer nessa mesma noite um arroz de

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matsutake e dobin mushi como celebração. Como a janela da cozinha estava

embaciada de vapor, não tinha reparado que a chuva que caía desde manhã

tinha parado e que lá fora um belo pôr do sol se estendia pelo céu. Era como se

tivessem mergulhado a própria terra num frasco enorme de mel.

Nas minhas mãos, apenas restava o prato vazio do caril de romã.

Um pouco depois das dez e meia da manhã do dia seguinte, aconteceu um

milagre.

Ao que parecia, a Siñorita tinha voltado da cidade para casa do senhor Kuma

com a filha.

Ele veio contar-me a correr, entusiasmado. Estava tão atrapalhado, que tinha

calçado botas diferentes no pé direito e no esquerdo. Mas, pelos vistos, ela

apenas tinha vindo buscar algo importante de que se esquecera. Sem querer

sequer beber um chá, saiu logo. Mesmo assim, ele disse-me com um ar muito

sério:

— Mas, sabes... Se ela não tivesse sentimentos por mim, não voltaria.

O rosto dele estava radiante. Ninguém tem o direito de destruir os sonhos dos

outros, pelo que eu somente ia acenando com a cabeça, ouvindo-o

honestamente.

O senhor Kuma concluiu por si próprio que isso tinha acontecido por causa

do caril que comeu. Achei impossível, que era apenas uma coincidência, mas ele

enfatizou o seu sabor especial e até ter chorado e dado graças a Deus. Depois

apertou a minha mão com força, infinitas vezes, quase até me esmagar os dedos,
e, no mesmo estado de excitação, regressou a casa.

De qualquer modo, era uma grande honra tê-lo deixado mais feliz do que

imaginara.

Passados alguns dias, tal acontecimento espoletou no senhor Kuma a ideia de

trazer a Amante que vivia na casa ao lado da sua; e assim apareceram n’A

Cantina dos Caracóis. Claro que não era uma verdadeira amante.

Ela era uma senhora famosa nesta pequena aldeia montanhosa. Não havia

ninguém que não a conhecesse. Eu conhecia-a desde que era criança. Contudo,

amedrontada, nunca tive coragem de lhe dirigir a palavra. E isso devia-se ao

facto de ela vestir um traje preto de luto, tanto no verão como no inverno.

A nobre concubina era uma pessoa influente no local. No entanto, o seu

homem já tinha falecido há muito tempo. Ao que parecia, morrera na casa dela,

tendo a sua verdadeira mulher vindo buscar o cadáver, deixando a concubina

sozinha. Contava-se que ela rebolara no chão, rindo infindavelmente, durante

três dias e três noites.

Isso era algo que a coscuvilheira da minha mãe comentava no seu bar com os

clientes habituais enquanto bebiam álcool. Por isso, não sei o grau de

veracidade, mas diziam-se coisas como que a sua voz tinha ecoado por toda a

vila, entre outras...

Porque é que se ouvia o seu riso e não o seu choro... era o que eu imaginava

com a pouca experiência que tinha. Quem sabe se chorava como quem ria.

Desde aí, a sua personalidade mudara por completo, tornando-se uma idosa

reservada que apenas vestia roupas de luto, desde o falecimento do seu amado

até hoje.

O senhor Kuma, que morava ao lado, preocupava-se com ela desde há muito.

Originalmente, ela tinha uma personalidade animada e, como desistira de

tentar ter filhos, tratava o senhor Kuma como se fosse um desde que ele era

criança. Por essa razão, ele sentia que a única coisa que conseguia fazer era

retribuir-lhe o sentimento, vindo pedir-me conselhos. Da minha parte, eu tinha

recebido dela o lustre do restaurante e queria agradecer-lhe de alguma forma.


Portanto, nesse dia, a Amante apareceu no restaurante, vestida de preto dos

pés à cabeça.

Como não conseguia andar bem, usava uma bengala, cambaleando de cada vez

que dava um passo. Andava sempre de cabeça baixa, com ar abatido. A

impressão que tenho dela mantém-se desde que sou pequena. Sei que é

grosseiro, mas ela nada mais parece do que um fantasma. Esta idosa recatada ter

sido outrora uma pessoa alegre e animada, como dizia o senhor Kuma, era algo

que eu não conseguia imaginar.

Uns dias atrás, já tinha vindo acompanhada do senhor Kuma ao restaurante.

Tentámos inquirir sobre o que queria comer, todavia, a concubina era como o

meu reflexo, ou seja, não conseguindo falar, mantinha-se num silêncio

contínuo, e não foi capaz de decidir. E, não sendo capaz de me dar ideias, não

tive outra escolha senão decidir a ementa sozinha.

Inicialmente, pensei numa refeição leve para o corpo e coração, com as

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bênçãos que esta terra nos deu. Por exemplo, um kinpira de shiitake , um tofu

de sésamo, uma sopa de tubérculos e um chawanmushi: as receitas que herdei da

minha avó. Mas, pensando melhor, cheguei à conclusão de que não fazia sentido

e abandonei essas ideias.

Após longa consideração, resolvi cozinhar algo que exprimisse as emoções

humanas com pratos extremamente doces ou picantes. Um cardápio com

sabores distintos e estimulantes. Um banquete cheio de sabores que ela nunca

tivesse comido. Pensei em fazer-lhe uma comida que acordasse as suas células

adormecidas e as voltasse a pôr a trabalhar.

A ementa que elaborei para a concubina que estava de luto há décadas foi a

seguinte:

Cocktail de licor de quivi

Nukazuke de maçã

Carpaccio de ostras e peixe cabeça-de-cavalo japonês

Sopa samgyetang com uma galinha da região de Akita, inteira e estufada em

shochu
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Risoto de karasumi com arroz acabado de colher

Cordeiro assado com cogumelos selvagens e alho salteado

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Sorvete de yuzu

Tiramisu de mascarpone com sorvete de baunilha a acompanhar

Café expresso forte

Talvez esta ementa não agradasse aos gostos da velhota. Além de ser copiosa,

tinha muitos lacticínios. Mas, independentemente de ser uma ideia

imprudente, eu queria mostrar-lhe através da minha comida que neste planeta

existem mundos infinitos ainda por descobrir.

Por favor, que as pálpebras fechadas do seu coração voltem a abrir-se novamente. Era

esse o meu desejo.

Suponhamos que acontecia algo como ela deixar a comida toda no prato.

Desafiei-me a mim própria, pensando que comê-la-ia eu. Durante alguns dias,

fiz todos os preparativos. Ao amanhecer, o senhor Kuma levou-me às docas no

seu camião para escolher com os meus próprios olhos as ostras e o peixe cabeça-

de-cavalo que iriam servir de entrada.

A galinha de Akita que preparei mudara agora de aparência e balançava

dentro da panela. Também o tiramisu, feito a partir de leite, natas e queijo

mascarpone da mesma vaca, já estava pronto e repousava no frigorífico.

Dei à Amante, que se demorou a sentar, um cobertor e mostrei-lhe o meu

bloco de notas:

«Vou fazer os preparativos e já volto. Aguarde um pouco, por favor.»

De seguida, servi-lhe como aperitivo um cocktail original de vinho branco e

licor de quivi numa bela flute da Baccarat.

O licor de quivi era um licor com sete anos que o senhor Kuma tinha

produzido, a partir de frutos caídos das árvores da floresta aqui perto, já

mordiscados por mosquitos. O que quer dizer que eram tão saborosos que até os

mosquitos os comiam! De forma a dar-lhe um toque diferente, diluí-o com

vinho branco. O vinho produzido na adega das redondezas tinha um aroma

frutado e fresco e combinava perfeitamente com o licor particularmente forte de


quivi. A mistura de ambos originava uma cor âmbar, como se os dois líquidos

se tivessem dissolvido num pó dourado.

Ao virar-me para trás, reparei que a luz do lustre que a concubina me dera se

refletia na sua flute de champanhe como um caleidoscópio.

Do lado de lá da janela, o senhor Kuma, que a trouxera na sua carrinha, fazia-

me sinais com o olhar e com a mão pequena.

Ao ver-me acenar com a cabeça, voltou para dentro da carrinha e regressou a

casa.

De imediato, pousei à frente da concubina o nukazuke de maçã que tinha

preparado.

As maçãs, cortei-as em metades sem tirar a casca, envolvi-as em sal e

coloquei-as a repousar dentro do nukado durante dois dias. Se as retirasse logo

da mistura do nukazuke, tal como o vinho tinto quando entra em contacto com

o ar, perderiam o sabor; por isso, preparei-as apenas antes de ela chegar. O

salgado do nukazuke elevava o doce da maçã e tornava-se um aperitivo

sofisticado.

Desejei-lhe com respeito, do fundo do coração, uma boa refeição e voltei logo

para a cozinha, curvando-me profundamente como uma bailarina quando se

despede da plateia numa vénia. De seguida, acendi o lume da caçarola com a

sopa de samgyetang e, lenta e cuidadosamente, aqueci-a até o interior da galinha

ficar quente.

Ao abrir a tampa da caçarola, a galinha tinha um aspeto totalmente diferente,

com uma cor âmbar, fervendo dentro da sopa. Lembrei-me de um episódio em

que uma galinha era esmagada. As galinhas fugiam, correndo às voltas, e eram

apanhadas à bruta. Torciam-lhes o pescoço, imobilizavam-lhes as patas,

arrancavam-lhes as penas do pescoço e, com um cutelo, cortavam-lhes a

carótida. A galinha jorrava sangue do pescoço, mas, mesmo assim, continuava

viva, batendo as patas e asas.

A verdade é que quis desviar o olhar inúmeras vezes. Tinha medo até do meu

próprio sangue menstrual ou de ver sangramentos do nariz. Sou uma medrosa

que fica logo tonta sem querer. No entanto, pensei que era algo a que tinha de
assistir e resisti arduamente para não fechar os olhos. Passado um pouco, a

galinha parou de se debater e morreu rapidamente nas mãos do avicultor.

Para confecionar este prato, uma galinha tinha sido sacrificada.

Senti que tinha de dar o máximo, tanto para a galinha que dera a sua vida,

como para a concubina; era a minha missão.

Por isso, envolvi-a pouco a pouco em sal e aprimorei o seu sabor.

Usei sal do Havai: um sal-gema natural com gengibre e outras ervas

misturadas, oriundo de uma zona perto do Diamond Head, na ilha de O’ahu,

que se distinguia pelos seus grãos rugosos e pelo sabor adocicado e sumptuoso.

A razão pela qual decidi usá-lo foi por o senhor Kuma me ter dito que tinha

visto uma fotografia da concubina com o seu homem na casa de férias dele no

Havai. O sal forte de mais era um problema, mas se, em vez disso, fosse insosso,

todos os outros ingredientes ficariam estragados. Afinei a quantidade com

prudência e até ao ponto certo.

Observei discretamente a reação dela a partir da abertura nas cortinas. Ela

estava à espera, mas ainda não tinha provado o cocktail nem a entrada.

Analisando a situação, julguei que seria melhor esperar mais um pouco até

servir a sopa de samgyetang. Fechei novamente as cortinas e aguardei ao fundo da

cozinha.

Quando dei por mim, do lado de fora da janela já era de noite.

Na entrada do caminho por desbravar que ia dar à figueira, o canto misterioso

e estridente de uma ave soava como se quisesse animar-me. Quando abri um

pouco a janela, vi um pássaro com o corpo todo azul-cobalto a levantar voo

garbosamente em direção à lua. Será um guarda-rios?

Ao lado de uma lua crescente com um formato perfeito, apenas o grande

planeta Vénus brilhava. Mais se parecia com a bandeira da Turquia, fazendo-me

recordar os dias em que trabalhava no restaurante turco.

Durante quanto tempo observei eu o céu noturno?

Após alguns momentos, ouvi o tinido da faca e do garfo no prato, e, ao

espreitar pela fresta das cortinas, vi que a concubina levava lentamente uma

garfada de nukazuke de maçã à boca. Aliás, vendo bem, até já tinha bebido um
pouco do cocktail.

De imediato, preparei o prato com o carpaccio de ostras e o peixe cabeça-de-

cavalo. Calcei as luvas de borracha e, com a minha faca especial, abri as ostras.

O seu corpo gordo e inchado saltava à vista. Sem as temperar, coloquei-as num

prato branco, juntamente com o carpaccio. Já tinha envolvido o peixe em algas

durante cerca de meio dia, juntando sal e azeite. Finalizado esse prato, comecei

finalmente a preparar a sopa de samgyetang.

Tirei a galinha já quente para pôr na sopa, coloquei-a numa tábua e cortei-a

grosseiramente em bocados grandes. Da bardana e do arroz glutinoso com que

recheara o seu interior, saía um vapor com o aroma agradável da sopa de

galinha. Só de cheirar, o meu corpo aqueceu.

Verti a sopa de samgyetang a escaldar para um recipiente e, quando a levei para

a mesa, a Amante já tinha bebido quase todo o cocktail e acabado de comer o

nukazuke de maçã e as ostras. Afastei o prato com o resto do carpaccio para o lado

e pousei discretamente o pequeno tacho de sopa à sua frente.

Se o cliente não me indicar nada, mesmo que reste apenas um pouco de

comida no prato, eu faço questão de não o levantar. Acredito que é assim que se

deve fazer.

Em seguida, uma vez mais como uma bailarina, desapareci na cozinha.

O risoto de karasumi com arroz acabado de cozer foi devorado: lentamente,

mas até ao fim.

Entretanto, finalizei o prato principal do dia: o cordeiro assado com

cogumelos selvagens e alho salteado.

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Usei o lombo do cordeiro, envolvendo-o em mostarda e panko e assando-o

com óleo de amêndoas. Juntamente com o pão ralado, misturei alho picado e

rúcula. Como o ponto de fusão de gordura da carne de ovelha é baixo, o sabor

que fica na boca é delicado e, por mais que se coma, passados alguns segundos,

desaparece como se fosse levado por uma leve brisa. Mesmo de barriga cheia,

esta carne ainda ia perfeitamente.

Tinha apanhado os cogumelos para o acompanhar algumas horas antes, num

bosque secreto que o senhor Kuma me indicou. Este lugar onde plantas
selvagens e cogumelos cresciam era um segredo tão precioso, que ele nem

contava à sua família. Obviamente, fiquei contente por ter aberto uma exceção

para mim. Salteei os cogumelos selvagens acabados de colher com bastante alho.

Enquanto assava o lombo na frigideira, olhei para a zona da mesa e o copo do

cocktail estava completamente vazio. Por isso, enquanto a carne cozinhava, abri

uma garrafa de vinho tinto e experimentei servi-lo à concubina. Era um vinho

natural, fabricado na mesma adega que o vinho branco, com uvas locais. Já o

tinha provado: era denso, com um aroma intenso, e combinava perfeitamente

com o lombo de cordeiro.

Talvez ela também bebesse vinho tinto. Esse rasgo de esperança veio-me ao

coração. E então, tal como eu esperava, o vinho tinto desceu gole a gole.

Perguntei-me onde caberia tanta comida no estômago de um corpo tão

magro. Até o meu namorado, que tinha um forte apetite, talvez não tivesse sido

capaz de comer toda aquela refeição, que, sem quaisquer dúvidas, ia sendo

comida, mesmo que aos poucos, pela concubina com a sua pequena boca.

Apenas uns minutos antes de o velho mocho fazer soar a meia-noite, ela tinha

bebido a garrafa de vinho tinto até ao fim e começado a comer o sorvete de yuzu

para limpar o palato.

Durante esse tempo, e enquanto levava o banquete que lhe tinha preparado à

boca, não sei no que pensava a concubina. Mesmo tendo bebido bastante álcool,

a sua cara continuava da mesma cor e ela não parecia estar minimamente

bêbeda. Manteve-se uma senhora idosa reservada até ao final.

Peguei nos ingredientes para o sorvete que acompanhava o tiramisu e saí do

restaurante.

Junto à mão da concubina, estava um copo de grapa. Nesse intervalo, eu tinha

planeado usar o ar fresco exterior para fazer o gelado. Assim que pus um pé lá

fora, estava tanto frio que até os meus ossos gelaram. Um ar frígido envolvia

tudo ao meu redor.

Rapidamente, coloquei a tigela de aço inoxidável com os ingredientes dentro

de água gelada e bati depressa com toda a minha força. No céu,

silenciosamente, brilhavam incontáveis estrelas de diversos tamanhos e


formatos.

Senti-me realizada.

Estava tão feliz, que fiquei com o peito pesado e com dificuldade em respirar,

a ponto de ser capaz de morrer.

Nunca imaginara que um dia iria fazer gelado assim para alguém, por baixo

deste extenso céu. Nem que o meu sonho de muitos anos se concretizasse a esta

velocidade...

O som da batedeira ecoava na escuridão como música. O aroma agradável do

rum que acrescentei a meio fazia-me cócegas no nariz. Da minha boca, saía um

bafo branco que se dissipava aos poucos na noite gelada.

Ao virar-me para trás e espreitar para dentro do restaurante, a silhueta da

concubina, junto às cortinas, inclinando o seu copo de grapa, projetava-se

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claramente como um teatro de sombras chinês. Era um copo Edo Kiriko , do

período Taisho, que fora oferecido pela minha avó à minha mãe. Brilhava como

uma joia na palma da mão enrugada da Amante.

Escolhi a altura certa para servir o tiramisu de mascarporne e o sorvete de

baunilha, e servi-os juntamente com o café expresso forte. Fiz questão de usar

grãos de café de Okinawa. Também servi açúcar mascavado da mesma ilha

remota de Okinawa. Diante do prato, a concubina cruzou as mãos e fechou os

olhos, com a expressão de uma freira que reza com devoção.

Via o seu perfil com o meu espelho, tal como da outra vez com o senhor

Kuma, por entre as cortinas. O seu reflexo oscilava por culpa da minha mão que

tremia.

A concubina, que já tinha vivido mais de setenta anos. Era como se eu

estivesse a ver um filme estrangeiro antigo em preto-e-branco. Sem mostrar um

único sorriso há mais de dez anos, devotava-se unicamente a fazer luto pela

pessoa falecida. Só de imaginar isso, eu ficava maluca. Questionava-me sobre

quão profunda seria a escuridão, o sentimento de desespero de dedicar o coração

a uma pessoa que nunca mais veríamos.

Ao sorver o café expresso com os seus lábios finos, a concubina serviu-se de

uma colherada do gelado de baunilha acabado de fazer e levou-a à boca com a


colher prateada de cor âmbar, já usada.

Refletida no meu espelho, mantinha-se quieta e com os olhos fechados.

Preocupei-me com os seus dentes, se não lhe doeriam por estar demasiado

gelado. Então, ela reabriu os olhos e, com um olhar longínquo, observou o

lustre pendurado no teto. Provavelmente, as suas pequenas lâmpadas teriam

iluminado leve e constantemente a vida amorosa secreta que tivera com o

amante.

Sorveu de novo o café e, desta vez, levou à boca uma colher de tiramisu.

Fechou mais uma vez os olhos, inclinando o rosto na direção do lustre.

No fim de contas, acabou por rapar todos os pratos que eu lhe preparara.

Depois de ter acabado o expresso, virou-se para o meu espelho e sussurrou

numa voz gentil que se assemelhava a um lugar soalheiro de primavera:

— Obrigada pela refeição. Estava extremamente deliciosa. Muito obrigada.

E baixou a cabeça num sentimento profundo de agradecimento.

Foi a primeira vez que ouvi a sua voz. Era feminina e elegante, como se

tivessem polido a superfície irregular e áspera com uma lixa. Fiquei pasmada

com tal voz. Nesse momento, apenas por um mero instante, foi como se um

flash da cor do arco-íris a tivesse tocado e iluminado como no tempo em que

ainda era jovem.

Levantou-se e anunciou que queria deitar-se um pouco. Como se já estivesse à

espera, arranjei o sofá feito de caixas de vinho e convidei-a a estender-se aí.

Certamente, a sopa de samgyetang estava a fazer efeito.

A ponta dos dedos dela, que toquei levemente, estavam quentes. Com a

circulação do sangue facilitada, esperei que ela conseguisse dormir

profundamente.

Dito isto, a concubina passou a noite n’A Cantina dos Caracóis até à manhã

seguinte.

Passados alguns dias, tal como ao senhor Kuma, aconteceu um milagre à

concubina.

Ela, que até então sempre vestira obstinadamente o traje de luto, caminhava

agora na rua com roupas diferentes e, além disso, sem bengala.


Aconteceu quando eu estava a comprar bens essenciais no supermercado

Yorozuya. Senti uma presença radiante atrás de mim e, ao virar-me, vi a silhueta

de uma idosa com um sobretudo vermelho-vivo. Além disso, levava um chapéu

chique com tufos de pelo, como aqueles que os russos usam.

No início, não percebi que se tratava dela. Pensei que fosse uma estrangeira

rica que se tivesse enganado e vindo parar a esta aldeia, e, o que era muitíssimo

raro, estivesse a conhecer um supermercado japonês rural.

No entanto, quando vi bem, era sem dúvida a concubina que tinha ido ao

restaurante há uns dias. Até usava um suave batom cor de pêssego!

Tal ocorrência tornou-se uma grande notícia nesta vila pacata, passando de

boca em boca e espalhando-se num piscar de olhos.

De acordo com o que o senhor Kuma me contou no dia seguinte, na noite em

que ela tinha ido ao restaurante, após a refeição, enquanto dormia na modesta

cama que lhe fiz, a concubina teve um sonho. Ao que parecia, o seu amante

falecido apareceu-lhe num sonho vívido.

Tudo indicava que ela passara os dias até agora rezando noite após noite,

apenas para conseguir vê-lo nos seus sonhos. Mas, até ao momento, o seu desejo

não se concretizara nem uma única vez. Contudo, naquela noite, tinha

finalmente conseguido voltar a reunir-se com o amado.

Na sua aparição, ele revelou-lhe, como se usasse telepatia, que voltariam a

encontrar-se brevemente no Paraíso e que queria que ela até lá aproveitasse o

resto da sua vida aqui.

O senhor Kuma contou-me que a concubina parecia estar muito feliz. E

voltou a insistir com grande veemência que tudo isto se devia ao facto de ela ter

comido a minha comida n’A Cantina dos Caracóis.

E foi assim que o rumor inverosímil de que a comida do meu restaurante

concretizava desejos e trazia finais felizes se foi espalhando, aos poucos, entre as

pessoas da aldeia e nas cidades vizinhas.

— Pode fazer com que os meus sentimentos pelo Satoru se tornem mútuos?

Assim que ouviu os rumores, quem me enviou uma carta através do senhor

Kuma foi a menina Momo. Enquanto as outras crianças me telefonavam ou


enviavam e-mails, a carta dela foi a que me chamou a atenção.

Num belo dia ameno de fim de outono, a menina Momo trouxe Satoru

consigo de bicicleta e apareceram n’A Cantina dos Caracóis. Momo era uma

estudante de liceu que vivia na aldeia e ia à escola na cidade; ainda tinha um

rosto inocente.

Uns dias antes, quando tinha vindo conversar comigo, mostrou-se muito

alegre, falando com vivacidade, e contou-me variadas coisas sobre a sua família

e os amigos da escola. Contudo, à frente de Satoru, era tímida, como um gato

acabado de ser adotado. Talvez fosse dos nervos, mas até quando os conduzi à

mesa não trocaram nem uma palavra entre si. E eu sorria ao ver a figura

adorável dos dois.

Deixei-os envergonhados junto à mesa, voltei para a cozinha e comecei a

preparar a sopa. Ao olhar de relance para a luz que vinha da janela, vejo que se

estendia vagarosamente por cima da mesa e até o pó que pairava no ar cintilava.

Era como se estivesse a olhar para uma bela pintura.

Para concretizar o romance de Momo, vali-me da minha pouca experiência

amorosa e, durante vários dias, pensei arduamente no que deveria cozinhar. No

começo, achei que seria bom fazer algo doce. Então, experimentei confecionar, à

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laia de teste, uma tarte de maçã, um baumkuchen e um crepe. Todavia,

enquanto os comia, só de imaginar que o meu namorado estava à minha frente,

o meu coração começava aos pulos e não conseguia comer mais.

Realmente, nessa altura, o sentimento agridoce de solidão e inércia, próprio

da paixão, e o amor que tinha por ele faziam com que perdesse o apetite. Além

disso, cheguei à conclusão de que comer com faca e garfo, pela primeira vez, à

frente da pessoa de quem gostamos era algo a evitar.

Por isso, decidi fazer uma sopa que caísse bem no estômago, por mais nervosa,

tensa e enjoada que Momo estivesse. Sem pensar demasiado nos ingredientes

que usaria, decidi inspirar-me após ter estado com eles os dois.

Usei os legumes que tinha na cozinha, uns atrás dos outros, piquei-os e fritei-

os em manteiga, começando pelos que demoram mais tempo a cozinhar. Escolhi

a abóbora, porque achei bonito o cachecol de uma cor de mostarda-viva que


Satoru usava à volta do pescoço. As cenouras, porque queria representar a cor do

pôr do sol que se espraiava do lado de lá da janela. E as maçãs vermelhas, que

acrescentei no final, associei-as às bochechas adoráveis de Momo.

Dentro da panela, várias imagens se sobrepunham e, com o tempo, tornavam-

se uma só. Era como se tivesse deixado o prato encarregado a um pintor e ele

tivesse escolhido intuitivamente as tintas. Improvisei, cozinhando apenas a

partir do meu instinto.

Cozinhei os legumes em lume brando juntamente com o caldo da sopa de

louro e, no final, triturei com a varinha mágica, ficando a sopa espessa com uma

cor suave. Pensando que o amor não precisa de adornos desnecessários, temperei

apenas com sal. Não há que aperfeiçoar o sabor com leite ou natas, nem usar

temperos especiais ou especiarias como ingredientes secretos.

Coloquei a sopa acabada de fazer num tacho vermelho em forma de coração e

levei-a rapidamente para a mesa. Enquanto a sopa ainda fervia, já tinha

terminado de pôr a mesa e, assim, eles comê-la-iam enquanto não arrefecesse.

No instante em que abri a tampa, elevou-se um vapor quente. Era como se

uma fada tivesse sido enviada para concretizar o amor. Enquanto servia a sopa

com cuidado para as tigelas de madeira, percebi que ambos olhavam fixamente

para as minhas mãos. Pousei as tigelas nos pequenos individuais de feltro,

juntamente com uma colher de madeira. Dentro do tacho, ainda sobrava muita

sopa para que pudessem repetir.

— Estejam à vontade. Boa refeição.

Fiz uma vénia denotando um profundo respeito e voltei para a cozinha a

sorrir. Entretanto, como já tinha escurecido, levei umas velas feitas de cera de

abelha; Satoru tinha saído do seu lugar e estava agora sentado ao lado de Momo.

Com o coração aos saltos, abri a tampa do tacho e a sopa tinha desaparecido por

completo.

— Estava muito bom. Obrigada pela refeição — disse-me Momo num

sussurro.

Era como se na sua voz estivesse impregnado o desejo forte de não querer

alterar a atmosfera daquele momento, nem um bocadinho que fosse. E


encostaram-se um ao outro, como um casal de pombinhos que partilha o calor

dos seus corpos.

«Não têm frio?», rabisquei eu à pressa no meu bloco, que entreguei a Momo,

para estragar o mínimo possível o ambiente.

E foi nesse momento que reparei que eles estavam a dar as mãos por baixo da

mesa. Mesmo que pequena, no meu peito acendia-se uma luz como a da chama

de uma vela de cera de abelha por ter contribuído para a felicidade dos dois.

Sem levantar as tigelas, as colheres e o tacho rapados, voltei para a cozinha e

fiz o máximo de barulho possível, abrindo a torneira e lavando a louça suja que

tinha usado, para os dois poderem namorar à vontade. No meu coração,

instalou-se o desejo de cantarolar e dançar ao mesmo tempo, de tão feliz que

estava pelo sonho de Momo se ter concretizado.

Quando acabasse de limpar, serviria macarons do tamanho de uma dentada,

por conta da casa, como celebração do seu amor, dispostos num pequeno prato.

Pensei em fazê-los todos cor-de-rosa, com um recheio mais escuro de

framboesa.

Ao imaginar que, de agora em diante, os dois iam experienciar cada vez mais

a inocência agridoce do amor, não consegui evitar sorrir. Dirigi-me para a mesa

como se saltasse, mas imobilizei-me junto à entrada da cozinha.

Ao abrir as cortinas silenciosamente, Momo e Satoru partilhavam o sabor da

sopa num beijo. Virados um para o outro, com os olhos bem cerrados, não se

mexiam, quais estátuas. Fiquei com vontade de continuar a vê-los assim, mas

voltei a fechar as cortinas.

Saí pela porta das traseiras em pezinhos de lã e, por algum tempo, dediquei-

me a arrancar ervas daninhas. Era como se as inúmeras estrelas do céu que se

estendia por cima de mim abençoassem o começo do amor entre Momo e

Satoru.

Deixei-lhes o restaurante à disposição pelo tempo que quisessem. Ao mesmo

tempo que me preocupava com o entardecer e o regresso deles a casa, queria

deixá-los partilhar aquele doce momento, por mais um segundo que fosse.

Quando a lua quase cheia surgiu entre a «Montanha dos Seios», os dois
levantaram-se finalmente e voltaram para casa de mãos dadas.

Mais tarde, a sopa com legumes sazonais passou a fazer parte da ementa

principal. Alguém lhe deu o nome de sopa «Je t’aime» num blogue e, desde aí,

passou a ser amplamente conhecida.

Desta forma, confecionava sempre este prato para os clientes. Devido à

combinação dos legumes e à diferença na sua quantidade, nascia todas as vezes

um novo sabor que até a mim me surpreendia.

Por essa razão, a forma como olhava para os vegetais mudou

significativamente. Até então, achava que era eu quem estava a cozinhar, mas,

na verdade, estava simplesmente a juntar ingredientes. Por fim, apercebera-me

disso. Antes de mais, quem produzia os legumes eram os agricultores e, mesmo

que eles os cultivassem, não conseguiam criar as suas sementes.

Penso que aprendi algo muito precioso através da sopa «Je t’aime».

Não sei se foi o efeito da sopa ou não, mas a verdade é que desde aí surgiram

inúmeros casais adoráveis que saíam d’A Cantina dos Caracóis para o mundo.

E foi por esse motivo que um dia me pediram para preparar uma refeição para

um casamento arranjado.

Uma tia casamenteira, cliente conhecida do bar Amor, tinha ouvido os

rumores sobre a sopa e fez um pedido insistente através da minha mãe.

Ambos os candidatos tinham já trinta e muitos anos, e a tia queria que o

arranjo fosse um sucesso, acima de tudo.

Apesar disso, eu era contra juntar os dois à força. Somente seria capaz de

colaborar se ambos tivessem sentimentos recíprocos, mas não fossem capazes de

tomar a iniciativa e criar essa oportunidade.

De acordo com a casamenteira, tanto um como o outro já tinham ido a vários

encontros; porém, os seus critérios eram tão elevados, que não se contentavam

facilmente. O homem era o filho herdeiro de um agricultor. Durante a semana,

trabalhava na câmara municipal da cidade vizinha e, aos fins de semana, ajudava

no campo. No entanto, os pais já estavam velhos e era tempo de ele herdar os

terrenos. Conforme dizia a casamenteira, tinha «dificuldades por causa da sua

timidez». Por outro lado, a mulher era professora de japonês no liceu e era uma
«beldade esguia».

Ele era o mais baixo dos dois, apenas com um metro e sessenta e oito

centímetros, enquanto ela tinha um metro e setenta e cinco. Todavia, isso não

aparentava ser um grande problema e, ao que parece, quando viram fotos um do

outro, a sua impressão não foi má de todo.

Não obstante, o único entrave era terem gostos culinários completamente

diferentes.

Enquanto o herdeiro gostava de comida ocidental pesada, com base na carne e

no peixe, a professora tinha uma alimentação mais vegetariana. Por mais que eu

puxasse pela cabeça, era impossível servir-lhes a mesma refeição. Mesmo que se

dessem bem um com o outro e acabassem por se casar, eu preocupava-me com

uma possível separação futura por causa da divergência nos seus gostos.

— Não importa o que faças, mas peço-te, menina Ringo... — implorou-me a

casamenteira no fim da entrevista numa voz meiga, dando-me uma palmada nas

costas e voltando para casa.

No dia combinado, os dois convivas encontraram-se na casa da tia e, como

planeado, chegaram ao restaurante pouco depois do meio-dia. Com um vestido

cor-de-rosa, como se fosse ela a protagonista do encontro, a casamenteira vinha

muito animada. Por sua vez, os dois interessados entraram devagar atrás dela

com um ar extremamente comprometido.

No fim, sem rodeios, concluiu:

— Agora, cabe aos dois jovens. Está na hora de os mais velhos se retirarem.

E, piscando-me o olho, saiu.

Depois de ligar o motor do seu Porsche vermelho, arrancou a toda a velocidade.

E, embora tivéssemos acabado de nos conhecer, suspirámos os três

simultaneamente de alívio. Recompondo-me, comecei a preparar a refeição.

Não se ouvia praticamente nenhum barulho vindo da sala.

Tendo em consideração as suas preferências, no fim de contas, só me restara

uma solução: fazer um prato francês apenas com vegetais. É comum pensar-se

que não é possível fazer um prato francês sem carne ou peixe, mas, se os

legumes tiverem força suficiente, é possível criar um cardápio no qual são a base
do prato. E há um segredo para isso.

Lembrei-me do tempo em que fizera a minha aprendizagem num restaurante

francês: o tempero deveria ser subtil, mas o aspeto teria de ser arrojado e belo. E

entregando-me ao meu coração, com ousadia e elegância, passo após passo,

finalizava o prato.

Para a entrada, fiz uma salada de morangos. Pus rúcula, agriões e morangos

frescos, marinados com um vinagre balsâmico apurado.

O primeiro prato principal eram cenouras fritas. Sem as descascar, cortei-as ao

alto em grandes metades, envolvi-as em panko e fritei-as bem em óleo vegetal.

Ao servir juntamente com uma salada de legumes como acompanhamento,

pareciam belos camarões fritos.

O segundo prato principal era um bife de rabanete branco. Escaldei-o, salteei-

o com cogumelos shiitake secos e temperei com sal, molho de soja e azeite.

Inicialmente, os dois disseram-me, cabisbaixos: «Basta água, obrigada.»

Contudo, mais tarde, não sei se a meio ficaram com vontade de beber álcool,

mas pediram-me um copo de vinho tinto e outro de branco. Como sempre, a

conversa era pouca; todavia, ao olhar para a expressão de ambos, tornou-se claro

que não estava um ambiente tenso.

Podia não ser comida francesa à letra, mas, em seguida, fiz um risoto. Juntei

espinafres em puré, engrossei-o com cevada e nozes esmigalhadas, e também

acrescentei tomate seco e salsa.

Por fim, usei toda a variedade de legumes que tinha na cozinha, triturando-

os.

Cebola, alho-francês, batatas, espinafres, abóbora, cenoura, batata-doce,

paprica, bardana, raiz de lótus, rabanete branco, couve-chinesa, couve-flor...

Também adicionei uma mão-cheia de agriões e salsa japonesa que tinha

apanhado junto ao riacho, assim como a casca dos rabanetes usados no bife e a

rama das cenouras.

Só de provar uma colher de sopa, quase ia desmaiando. Nem foi preciso

adicionar sal, o sabor já estava no ponto só com o sabor dos legumes.

Enquanto a sobremesa de crème brûlée de inhames cozia no forno, aproveitei


para me dirigir até à mesa com o coração a bater descompassadamente e

mostrei-lhes o meu bloco, que estava no bolso do avental, no qual tinha escrito:

«Ficaram satisfeitos?»

— Foi a primeira vez que comi um prato vegetariano tão bom!

Quem falou primeiro foi a professora. E, em seguida, o herdeiro acrescentou:

— Estava ótimo. São legumes encomendados de algum lugar especial?

O meu coração deu um pulo de alegria quando ouvi a pergunta que tanto

esperava. Apressadamente, tentei escrever no meu bloco, mas estava tão

entusiasmada que os meus dedos não alcançavam as palavras que vinham do

meu coração. De tal forma que, impaciente, expliquei através de gestos que

todos os vegetais tinham vindo das plantações dele.

— O quê?!

O herdeiro estava estupefacto. E o olhar da professora pousado nele também

mudara por completo.

Na verdade, eu tinha pedido ao senhor Kuma, uns dias antes, para me levar

até à quinta do herdeiro, onde a sua família dividiu os vegetais comigo. No

entanto, combinámos que ficaria em segredo até ao próprio dia. Pelos vistos, de

acordo com a tia casamenteira, ele não se sentia muito orgulhoso de ser o filho

herdeiro de um agricultor.

Quem sabe se com aquela refeição ele conseguisse ultrapassar esse complexo.

Eu ficaria muito mais feliz com isso do que com o desfecho do próprio

arranjinho.

Nesse momento, o temporizador da cozinha tocou e saí à pressa. Polvilhei o

crème brûlée com açúcar mascavado e torrei-o com o maçarico da cozinha, ficando

o interior húmido e apenas com a doçura do inhame japonês, e o exterior

crocante. Claro que o inhame japonês também vinha da quinta dele.

Para não arrefecer, desenformei-o rapidamente à frente deles, levando-lhes

também um bule de chá com um ligeiro aroma a rosas. Por fim, diante da

sobremesa, os dois começaram finalmente a falar.

Um pouco mais tarde, saíram do restaurante, acompanhados pela tia

casamenteira que entretanto já trocara de vestido. Antes de partir, o herdeiro


quis dar-me um aperto de mão. A sua mão áspera apertou a minha com força.

Lá fora, já escurecia. O céu estava cor-de-rosa como um flamingo. As feições

dos meus dois convivas, completamente diferentes de quando tinham chegado,

marcavam o meu coração com um belo borrão que ficará para sempre.

Mesmo assim, tudo isto não queria dizer que o meu restaurante tivesse sido

recebido calorosamente por todos os moradores da vila.

Certo dia, os rumores começaram a espalhar-se e, subitamente, vários

funcionários da administração de segurança e saúde vieram inspecionar A

Cantina dos Caracóis. Pelos vistos, alguém tinha relatado ao Ministério de

Saúde Pública que ali se misturava salamandra fumada na comida. De acordo

com o funcionário mais velho, havia uma lenda que dizia que, se queimássemos

e depois pilássemos uma salamandra-macha e uma fêmea, as cinzas podiam ser

usadas como «poção do amor», espargindo-as por cima de alguém às escondidas

ou misturando-as com álcool.

Seguramente, era a primeira vez na minha vida que eu ouvia tal coisa sobre

salamandras. Gostava de as ver vivas a nadar, agitando as suas patinhas à beira

de água, mas nunca pensei em grelhá-las e fazê-las em pó. Os funcionários

também pareceram compreender isso e, pelo sim, pelo não, apenas

inspecionaram as gavetas da minha cozinha, embora sem resultado.

E então, como era hora do almoço, comemos todos juntos um waiwaidon e eles

foram-se embora.

O waiwaidon era uma especialidade que a minha avó tinha inventado para

momentos em que não havia tempo. Ela servia-a nas alturas em que aparecia o

fiscal de saúde ou quando os trabalhadores dos telefones vinham arranjar os

cabos.

A história das salamandras queimadas passou por uma anedota, mas uns dias

depois aconteceu um caso mais grave.

Um homem, que, através de um conhecido do senhor Kuma, o usou para

obter o meu e-mail, contactou-me. Em teoria, é sempre melhor encontrarmo-

nos pessoalmente para conversar no dia anterior à reserva, mas, como ele estava
muito ocupado, acabámos apenas por trocar alguns e-mails.

Naqueles que me enviou, ele nem respondia a metade das coisas que eu queria

saber. Ao que parece, era um indivíduo que não gostava muito de falar sobre si

mesmo.

Quem sabe se tinha ouvido os rumores acerca do restaurante e ficara com

vontade de experimentar a minha comida, pelo menos uma vez. Não era

estranho aparecerem clientes assim.

Ele só estava livre no intervalo entre as três e as quatro da tarde. Por isso,

decidi à pressa agendar excecionalmente duas reservas para esse dia e cozinhar

para ele antes dos clientes da noite. O seu orçamento ia até aos mil ienes e

queria comer uma sanduíche: foi o único desejo que consegui obter dele.

Uma vez que só se teriam passado duas a três horas depois do almoço, supus

que não quisesse uma sanduíche pesada. Seriam horas do lanche e, como tal,

decidi fazer-lhe uma sanduíche de fruta.

Estava na altura do ano das peras europeias. Sem demora, peguei no Caracol e

saí em direção a um pomar que ficava nos arredores da vila. Escolhi os frutos

que pareciam estar em melhor estado e levei-os para o restaurante. Após

passarem quatro a cinco dias na cozinha, começaram a libertar um aroma leve e

doce.

No próprio dia, levantei-me de madrugada, quando ainda se sentia o cheiro

da escuridão da noite anterior, e avancei com os preparativos. Até Hermès ainda

dormia, roncando alto.

Para a sanduíche, usei pão de forma inglês no qual juntei passas misturadas na

massa. Pu-las de molho na noite anterior para amolecerem bem. Trabalhei a

massa do pão inúmeras vezes em cima da bancada da cozinha, batendo-a até

ficar bastante elástica e fina. A farinha artesanal, sem pesticidas, fora-me dada

por um agricultor das redondezas. Podia ser da minha imaginação, mas o pão

com farinha nacional tinha uma sensação diferente ao ser amassado. Finalizada

esta fase, deixei a massa fermentar lentamente.

Para o creme, misturei em quantidades iguais as natas habituais e o creme de

iogurte, já sem o respetivo soro de leite. Fiz o creme de iogurte a partir da


mesma receita de shrikhand
6 4, uma sobremesa indiana que o meu namorado

costumava fazer-me ao lanche.

À noite, envolvi o iogurte numa gaze e pendurei-a por cima do lava-louça. Na

manhã seguinte, o iogurte tinha reduzido e apenas restava o seu creme

concentrado. Se usasse apenas as natas, a sanduíche ficaria forte e, se usasse

apenas o creme de iogurte, seria demasiado insípido. No entanto, ao misturar os

dois, obtém-se um sabor e uma textura rica e fresca, preservando o abundante

suco da fruta. Assim, mesmo que barrasse a mistura no pão, não haveria perigo

de este ficar embebido em líquido.

O pão com passas ficou cozido por volta do meio-dia. Agora, era só

confecionar a sanduíche quando o cliente chegasse; por isso, aproveitei para

fazer os preparativos para o jantar.

Tratava-se de uma festa para nove pessoas, ou seja, muita gente para um

restaurante como A Cantina dos Caracóis. Ao que tudo indicava, o objetivo era

juntar certas pessoas deste grupo e formar casais. Decidi fazer uma bouillabaisse

num grande tacho de barro para que todos pudessem comer descontraidamente.

O senhor Kuma veio pouco depois do meio-dia na sua carrinha e entregou-me o

marisco que eu iria usar.

Quando dei por mim, já passava das duas e meia da tarde. Acelerei e comecei

a preparar a sanduíche de fruta. Para não passar ao pão o cheiro a peixe cru,

lavei desalmadamente as mãos e os braços com detergente apropriado. Depois

de limpar toda a sujidade das tripas do peixe para dentro de um saco de

plástico, pu-lo dentro do balde próprio para fazer a ração de Hermès. Por via das

dúvidas, lavei outra vez as mãos, misturando pasta de dentes e bicarbonato de

sódio, concentrei-me e cortei o pão ao meio com uma faca para tal. Por causa do

dentífrico, as minhas mãos estavam transidas de frio, quase doíam.

De forma a prevenir que o pão não ficasse empapado e para obter o sabor

pretendido, barrei levemente o exterior com chocolate de leite que tinha

aquecido em banho-maria. Em vez do chocolate preto, o chocolate de leite

combina melhor com o creme e a fruta. Ao dar uma dentada no meio do pão

fofo, os sucos inundaram a minha boca e, enquanto mastigava, o sabor leve do


chocolate espalhou-se por ela.

Juntei as natas ao creme de iogurte e adocei com mel, que pedi emprestado ao

meu vizinho, um homem de negócios que começara a praticar apicultura como

passatempo.

Por último, mesmo antes da hora de chegada do cliente, descasquei as peras,

cortei-as em pedaços finos, prensei-as dentro do pão barrado com creme e fiz a

sanduíche. Cortei-a em pedaços fáceis de comer e, ao empratá-la, o branco puro

do pão, a cor de leite do creme e o jade esbranquiçado das peras surpreendiam

com a magnífica gradação de cores, enquanto as passas formavam um padrão em

camadas que lhe dava um toque gracioso.

Assim que o homem chegou, baixei a cabeça num gesto profundo como sinal

de boas-vindas e comecei logo a servi-lo.

Ele era mais velho do que eu tinha suposto a partir da nossa troca de e-mails, e

a proporção do seu cabelo era de sete cabelos brancos para três de cor normal.

Era de estatura pequena, mas tinha um corpo bem constituído; vestia um colete

de lã, que parecia ser de boa qualidade, por cima de uma camisa às riscas

brancas e azuis.

Tinha, descontraidamente, um cachecol grená à volta do pescoço.

Era uma pessoa mais agradável do que eu imaginara.

É sempre muito difícil cozinhar para um desconhecido e, por isso, estava um

pouco nervosa.

Soube instantaneamente o tipo de chá que lhe iria servir ao ver a sua cara e

aparência. Fervi água e fiz uma infusão de chá preto, preparando tudo

rapidamente para que ele pudesse começar a comer o mais rápido possível.

Escolhi um chá lapsang souchong, picante e com um travo característico. Sendo o

sabor da sanduíche muito passageiro, seria o chá ideal, nem que fosse para lhe

dar mais contraste. Mesmo que ele achasse o creme da sanduíche pesado, podia

refrescar o palato e a garganta. Ao arranjar a mesa com a sanduíche de fruta e o

chá, fiz a minha saudação de bailarina habitual, fechei as cortinas e aguardei à

entrada da cozinha.

O grau de cozedura do pão, a textura das passas, a doçura do creme, a


maturação das peras, tudo estava perfeito para mim. Talvez fosse a melhor

sanduíche de fruta que tinha feito até agora. E fiquei à espera, cheia de

expectativa. Contudo, isso não passou apenas de uma ilusão momentânea.

— Que raio é isto?

De repente, ouviu-se o estrondo de um murro na mesa. O prato e a chávena

de chá pousados na mesa tilintaram.

Atrapalhada, vim a correr da cozinha e aproximei-me do homem. Qual seria o

problema? Não estava a perceber nada. No começo, até pensei que fosse uma

piada, que ele tentava assustar-me de propósito. Mas estava bem enganada.

— Olha lá! — Com um ar descontente, o homem olhava fixamente para um

fio de cabelo. Ainda por cima, um pelo púbico. — Um pelo dentro da

sanduíche... que restaurante mais medíocre.

Desta vez, deu um pontapé por debaixo da mesa. Com um estrépito

medonho, a tampa do açucareiro caiu ao chão. O pelo encaracolado, coberto de

creme, estava prensado entre as duas metades da sanduíche que o homem tinha

separado.

Ora, o meu cabelo estava praticamente todo rapado e, para estar ainda mais

segura, atava um pano à volta da cabeça. Prestava sempre atenção e era

meticulosa em relação à contaminação alimentar. Além disso, não estávamos em

nenhum bar de striptease e, sempre que estou na cozinha, uso sempre roupa

interior e calças. E até vejo bem. Ainda por cima, tinha verificado tudo

instantes antes. Era impossível uma coisa daquelas ter ido ali parar.

Ele levantou-se logo e saiu do restaurante. À saída, mostrou-me uma

fotografia que tirara com a sua câmara digital. Uma foto ampliada do pelo

encaracolado dentro da sanduíche de fruta.

Sem conseguir conter-me, a minha raiva veio ao de cima. Eu até podia

suportar qualquer tipo de humilhações, mas não me conseguia perdoar por não

fazer justiça à sanduíche de fruta, que não tinha culpa desta situação. O pelo

imundo jazia sobre o pão de passas, absolutamente obsceno.

Há já algum tempo que tenho aproveitado os restos do restaurante para a

ração de Hermès, mas esta sanduíche de fruta não era capaz de lha dar.
E deitei-a no lixo, a sanduíche que tinha feito com todo o amor. Senti uma

angústia semelhante à dor de uma mãe que tivesse afogado o seu próprio filho

no mar, depois de vivenciar um parto difícil.

E, juntamente com a sanduíche, uma lágrima minha, uma só, caiu dentro do

caixote do lixo.

Adicionei leite e uma boa dose de açúcar ao chá, agora já morno, e bebi-o de

uma só vez, em pé. O chá não tinha culpa de nada.

Na minha língua, um ligeiro formigueiro permaneceu por bastante tempo.

Um aroma a fumo, como se a própria água tivesse estado ao fumeiro, espalhava-

se pelo meu nariz.

Consegui acalmar-me um pouco depois de esvaziar o bule de chá. Respirei

fundo uma vez e, lentamente, os meus nervos foram aplacados.

Neste mundo, existem vários tipos de pessoas. Mas, mesmo tendo consciência

disso, eu ainda não era capaz de o aceitar por completo.

No dia seguinte, descobri que esse homem geria uma antiga padaria de

família, nas redondezas da aldeia. A informação que o senhor Kuma conseguiu

obter foi que, aparentemente, ele andava com falta de clientes e o negócio não ia

de feição.

Nestes tempos, com o poder da Internet, e mesmo que fosse mentira, se ele

quisesse seriamente arruinar o restaurante, a verdade é que tinha uma fotografia

como prova. Porém, passada uma semana, e depois um mês, nenhum rumor que

pusesse em causa A Cantina dos Caracóis se espalhara.

Quem ficou ainda mais chocado com o que se passara foi o senhor Kuma.

Arrependia-se de me ter apresentado o homem assim sem mais nem menos, sem

sequer o conhecer, e não parava de se desculpar.

— Menina Ringo, desculpe tê-la feito passar por isto...

Desde esse incidente, tanto eu como o senhor Kuma começámos a prestar

mais atenção aos clientes, no que tocava às reservas e à contaminação alimentar.

Mesmo que não tivesse sido culpa minha, passei a ser ainda mais minuciosa.

Como tudo estava a correr às mil maravilhas, quem sabe se Deus não enviara

um anjinho travesso para não ficar presunçosa.


Em finais de novembro, uma menina com um corte de cabelo à tigela entrou

a correr pelo restaurante adentro. A área à volta do topo da «Montanha dos

Seios» já estava levemente branca, como se lhe tivessem posto um sutiã branco

de renda.

Isto passou-se bem à tardinha, quando o céu começava a ficar encoberto,

estava eu a preparar os hambúrgueres para os clientes da noite, uma família de

seis pessoas.

A menina, aflita, parecia estar prestes a chorar, tal como as nuvens no céu.

— Por favor, ajude-me! — gritou ela num tom suplicante, assim que me viu.

Com as mãos cheias de carne picada e sem conseguir abrir o meu bloco, olhei

para ela interrogativamente. Nunca tinha ouvido nenhuma história sobre

abusos sexuais nesta zona, mas, imaginando coisas desagradáveis, pensei que, se

fosse esse o caso, seria muito aborrecido.

Porém, as minhas especulações rapidamente deixaram de fazer sentido quando

a menina pousou a sua mochila escolar no chão e, com a delicadeza de quem

maneja algo perigoso, tirou uma caixa do saco de papel que segurava.

Na sua usada mochila vermelha, estava pendurado um amuleto de proteção

todo esfarrapado, no qual se podia ver o nome dela escrito pela mão de uma

mulher adulta: Kozue.

Kozue pegou com cuidado na caixa por baixo, levou-a até à mesa e pousou-a

delicadamente. Então, abriu a tampa devagarinho e mostrou-me o seu interior.

Era um coelho.

— Ele está muito fraco... Por favor, ajude-me! — suplicou ela novamente,

fitando-me.

Para começar, e verificando que a rapariga precisava mais de ajuda do que o

coelho, lavei as mãos rapidamente e decidi preparar-lhe uma bebida.

Como ainda não tinha acendido o forno a lenha, e apesar de estarmos no

interior, o restaurante estava gelado como um frigorífico, ao ponto de o bafo

dela se escapar em pequenas nuvens brancas. Por isso, para lhe aquecer o corpo,

e também o coração, pensei em fazer-lhe um chocolate quente.

Na cozinha, cortei o chocolate em lascas, que pus a derreter em lume brando


num tacho de esmalte, diluindo-as em leite. Kozue abraçava com força a caixa

com o coelho em cima dos seus pequenos joelhos que tremiam.

Usei o tempo em que aquecia o chocolate para pegar no bloco de notas que

estava ao meu lado; abrindo uma nova página, escrevi em letras grandes e

infantis: «O que se passou?» Como tinha a mão direita ocupada, não tinha

hipótese senão escrever com a esquerda. De tal forma, que ficou uma letra de

criança. Para o chocolate quente não pegar no fundo do tacho e queimar, mexia-

o sem parar com o batedor na mão direita.

Controlei a temperatura e, no fim, acrescentei generosamente mel e umas

gotas de um conhaque de alta qualidade como ingrediente secreto. Em seguida,

bati as natas fofas em castelo por cinco minutos e decorei o topo com uma folha

de menta fresca. A menta era boa para acalmar os nervos, pelo que seria perfeita

para uma altura destas.

Peguei no chocolate quente acabado de fazer, assim como no meu bloco de

notas, e dirigi-me para a mesa na qual estava Kozue. Continuava a tremer,

nervosa.

Sem demora, abri e mostrei-lhe o meu bloco. Depois reparti o chocolate

quente em duas canecas e coloquei uma delas à sua frente.

Fiz um gesto para ela começar a beber, e Kozue, com a caixa do coelho no

colo, esticou a mão de modo acanhado para a caneca. Nas suas pequenas unhas,

tinha desenhos de coelhinhos pintados com marcadores de feltro. Através do

vapor que subia da taça, uma expressão fugaz de alívio passou-lhe pelo rosto,

como se a sua ansiedade tivesse passado por um breve momento.

Então, bebeu um gole do chocolate e, de uma só vez, começou a contar-me o

que tinha acontecido ao coelho.

Encontrara-o à beira da estrada enquanto regressava a casa, há cerca de uma

semana.

Nessa altura, ele estava numa caixa maior, de cartão, com feno e ração. Lá

dentro, também se encontrava uma carta que o dono verdadeiro tinha escrito.

Kozue tirou-a do bolso, abriu-a e mostrou-ma: «Devido a certas circunstâncias,

não posso continuar a cuidar deste coelho.» Era tudo o que constava na folha
branca.

Kozue levou o coelho para casa, mas a sua mãe não gostava de animais e não

permitiu que ela ficasse com ele. Zangada, mandou-a devolvê-lo ao sítio onde o

tinha encontrado. Porém, Kozue, com pena dele, não fora capaz de o abandonar,

fosse de que maneira fosse. Então, escondeu-o no armário do seu quarto e,

durante o dia, levava-o para a escola, cuidando dele. Contudo, aos poucos, o

coelho começara a deixar de comer a ração e há já dois dias que não comia

absolutamente nada.

Quando acabou de me contar o que tinha acontecido até este dia, Kozue

agarrou com ambas as mãos a caneca que arrefecera um pouco e bebeu o resto

do chocolate quente todo de uma enfiada.

Preocupada com o coelho, certamente não andava a dormir bem.

Talvez por causa do conhaque no chocolate quente, a expressão dela tornou-se

mais suave.

Tirei dos joelhos de Kozue a caixa com o coelho anoréxico e, aproximando a

cara, observei-o. Um suave aroma a pradaria chegou-me às narinas.

Como um lava-louça bem polido, ele tinha uma penugem prateado-

acinzentada.

A parte interior das orelhas era rosa-salmão.

Os olhos eram negros e brilhantes, qual gelado de café.

Qualquer um destes sinais mostrava silenciosamente como ele tinha sido bem

tratado até ao momento. Pelo menos, era o que me parecia.

Tanto para mim como para Kozue, o único consolo nesta situação difícil era

supor que o coelho não tinha sofrido maus-tratos ou violência pelo seu dono

antes de ter sido abandonado.

Agarrei na caneta, desta vez com a mão direita, e escrevi no meu bloco,

mostrando-o à menina: «Achas que podes deixar o coelhinho comigo, apenas

por um dia?»

Depois de ler a mensagem, ela mordeu os lábios bem vermelhos e aceitou,

acenando convictamente com a cabeça, uma só vez.

Se eu conseguisse fazer um milagre, talvez Kozue se resignasse a confiar nos


adultos de agora em diante.

Mas se o resultado não correspondesse às expectativas...

O mais certo seria ficar a odiar-me para o resto da vida. E tornar-se-ia uma

criança desconfiada em relação a tudo o que os adultos pudessem dizer.

Eu tinha apenas vinte e quatro horas para ser bem-sucedida.

Kozue prometeu-me que voltaria no dia seguinte à mesma hora. Depois pôs a

mochila às costas e, sozinha ao sabor do vento do Norte, foi-se embora.

Porém, um coelho anoréxico...

Ficando sozinha com ele n’A Cantina dos Caracóis, soltei um enorme suspiro.

Por muito invulgar que fosse o meu restaurante, nunca tinha cozinhado para

um coelho anoréxico.

Já era complicado lidar com pessoas que sofriam de anorexia; qualquer

psicólogo já terá sorte se, depois de um longo processo de terapia, conseguir que

o paciente coma alguma coisa. Ora, tratando-se de um animal... Sem

conseguirmos comunicar, obviamente não havia maneira de lhe dar

aconselhamento psicológico e também era impossível convencê-lo a fazer um

desenho que revelasse as profundezas da sua mente. Com a caixa no colo, e o

coelho lá dentro, senti-me completamente perdida.

Para não o assustar, aqueci as pontas dos dedos com o meu bafo e,

cuidadosamente, experimentei acariciar-lhe o dorso.

Senti as vértebras salientes.

Estava realmente magro.

As orelhas estavam flácidas, tal como os finos bigodes de um branco leitoso.

Belisquei a sua cauda redondinha, que mais parecia um novelo de lã, mas ele

manteve-se imóvel. Mesmo se lhe fizesse cócegas, estou certa de que o bicho não

reagiria. Isso era claro como água.

Com todo o cuidado, enfiei as mãos por baixo da sua barriga e ergui-o. O seu

coração, como se estivesse em carne viva nas minhas mãos, batia fortemente.

Era a prova irrefutável de que estava vivo. Todavia, tirando isso, o resto do seu
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corpo pendia como um mochi acabado de fazer, estático como uma pedra.

Olhei de frente para o seu focinho: o seu olhar era vago, sendo impossível

dizer o que estava a ver. Se eu tivesse de exprimir por palavras o que me dizia

aquele olhar, diria que as suas pupilas negras, semelhantes a gelado de café,

estavam viradas para um passado distante. Era como se olhasse, com um mau

pressentimento, para a escuridão profunda do interior de um poço de água

antigo. Um coelho letárgico, imerso na sua solidão e sem esperança...

Se fosse psicóloga de animais, seria esse o meu diagnóstico.

Desistindo de provocar qualquer tipo de reação no coelho, voltei a pô-lo

delicadamente dentro da caixa.

Os clientes da noite eram uma família de seis pessoas.

Quem tinha feito a reserva fora a esposa, que era dona de casa. O marido geria

uma lavandaria na estância termal da aldeia, e o casal queria celebrar o

aniversário do avô, que vivia com eles.

Toda a família desejava um menu infantil, especificara ela.

— É que, sabe... o velhote já não diz coisa com coisa...

A senhora tinha vindo de propósito ao restaurante alguns dias antes para

conversarmos sobre a refeição, e foi isto que me confidenciou, um pouco

envergonhada e abafando a voz, como se aquelas palavras estivessem envoltas

em neblina.

O pão de ló com chá matcha e feijão azuki confecionado na véspera já estava à

espera no frigorífico. As velas eram oitenta e cinco; no entanto, sendo

impossível colocá-las a todas no bolo, preparei oito velas grossas e cinco mais

pequenas.

Agora, só tinha de refogar o arroz de tomate e, na devida altura, pôr os

hambúrgueres a grelhar enquanto esperava que a família chegasse. No fogão a

lenha da sala, que tinha acendido mais cedo, a madeira ardia às mil maravilhas e

aquecia confortavelmente o restaurante.

Usei o pouco tempo livre que me restava para juntar uma porção de cenouras

cristalizadas, que fizera a mais para o menu infantil, num pires para o coelho, e

esmaguei-as com um garfo. Estas cenouras eram tão boas, que eu passara a
encomendá-las regularmente à quinta do famoso agricultor que tinha vindo cá

jantar. Provei uma colherada. Estavam ligeiramente doces e firmes, mesmo

depois de uma cozedura demorada.

Peguei numa caixa de vinho, daquelas que sobraram depois de ter feito o sofá-

cama, entalei no interior uma folha de jornal e pus lá o pires com o puré de

cenouras cristalizadas, juntamente com uma pequena tigela de água. Após ter

colocado tudo num canto da cozinha onde não fizesse muito calor, fui buscar a

caixa do coelho.

Quando peguei nele, continuava mole como um mochi, e, se não tivesse

encostado a mão junto ao seu coração para verificar se batia, não saberia dizer se

estava vivo ou morto. Completamente letárgico, parecia ter renunciado a viver.

Primeiro, transferi-o para a sua nova casa. Pensei que a caixa em que Kozue o

trouxera era demasiado pequena e, além disso, se o pusesse na caixa de vinho a

um canto da cozinha, mesmo estando ocupada, conseguiria estar de olho nele.

Acocorei-me junto à caixa e, como teste, experimentei levar-lhe à boca uma

colher de café com puré de cenoura. Se ele não quisesse algo sólido, presumi que

pelo menos água beberia. Assim, enchi uma colher de chá com água e tentei

também levar-lha à boca. Todavia, como já esperava, ele continuou com o olhar

vago, virado para um passado longínquo, e não mostrou nenhum interesse nem

nos vegetais nem na água. Então, ocorreu-me a ideia de lhe fazer cócegas na

ponta do focinho com a rama seca de uma cenoura, mas também isso não teve

qualquer efeito.

Ao que parecia, aquele coelho era mesmo anoréxico.

Entretanto, chegara a hora de fazer os preparativos finais para o menu infantil

da noite.

Pus de lado as preocupações com o coelho, pelo menos por enquanto, e

dediquei-me ao jantar. Lá porque um coelho anoréxico me tinha vindo parar aos

braços, fazendo com que eu pudesse não ter tempo para preparar a refeição, isso

não era culpa dos clientes. Se tal incidente influenciasse a qualidade da minha

comida, seria um falhanço como cozinheira profissional.

Acendi todos os bicos do fogão para cozinhar ao mesmo tempo os


hambúrgueres, o arroz de tomate, os camarões panados e a abóbora salteada.

Tirei do armário da louça seis grandes pratos brancos e, depois de os limpar ao

de leve com um pano de cozinha, alinhei-os em cima da bancada e fui

empratando-os com uma porção de cada comida. Desde que me tornara

cozinheira, nunca tinha preparado um menu infantil, mas esta ementa

apresentava cores apetitosas, com os vegetais, a carne e o peixe bem

equilibrados, e, tanto pelo aspeto como pelo conteúdo, dava-lhe nota positiva.

Como a senhora me dissera que todos os membros da família comiam pouco,

servi porções pequenas, embora suficientes para que um adulto ficasse satisfeito.

Fiquei na dúvida até ao último momento se deveria dispor uma bandeira por

cima do arroz de tomate, empratado num montinho compacto no centro de

cada prato. Por fim, nos últimos dez minutos, decidi que fazia falta e fiz uma

com papel e palitos. E, usando o lápis de cera amarelo que guardava dentro de

uma das gavetas, desenhei um caracol nela.

Passados poucos instantes, a família chegou num monovolume conduzido pela

senhora.

E, para minha grande surpresa, era uma família em que, literalmente, não

havia crianças.

O filho mais velho do casal, já com feições de adulto, era um estudante do

liceu e vestia uma farda da escola com colarinho à chinesa, e mesmo que a sua

irmã mais nova, com um fato de treino da escola básica local, ainda tivesse uma

carinha de boneca, isso não justificava um menu infantil.

Depois entrou o avô, que a mãe me tinha dito no dia anterior que estava um

pouco senil, a empurrar hesitantemente a cadeira de rodas da sua mulher

inválida. O seu rosto estava desprovido de qualquer emoção, como se ele usasse

uma máscara de ferro.

Foi só mais tarde que reparei, quando todos se sentaram e começaram a

comer, que o velhote não estava apenas um pouco senil: estava completamente

taralhouco. De tal forma, que eu compreendia a razão pela qual a senhora queria

esconder isso. Quem queria o menu infantil não eram as crianças, mas sim o

velhote, que era o convidado de honra.


Sempre inexpressivo, ia enfiando sem parar a comida na boca, às vezes

devagar, outras vezes a uma velocidade surpreendente. E comia com as mãos,

sem usar colher, garfo ou pauzinhos. De vez em quando, com a boca cheia,

balbuciava algumas palavras, como se estivesse a rogar pragas. Contudo, nem eu

nem a sua família, que sempre vivera com ele, compreendíamos uma palavra do

que ele dizia.

A julgar pelo que eu podia ver à distância, o velhote estava convencido de que

a sua esposa inválida era a mãe. E tratava o filho e a nora como nada mais do

que estranhos. Para ele, os netos eram «um companheiro de armas e a

namorada». Mais do que uma vez, começava subitamente a desbobinar

ordinarices que faziam a família corar de vergonha.

Mesmo assim, por poucas maneiras que tivesse, ninguém o repreendia: toda a

família limitava-se a acompanhar o seu ritmo, partilhando a comida.

Num instante, os seis acabaram o menu infantil, que não era particularmente

copioso.

Como a senhora me avisara de que eles não tinham muito tempo, levantei de

imediato os pratos vazios, troquei a toalha de mesa e preparei rapidamente o

bolo de aniversário.

Na sala imersa na obscuridade, com o bolo coberto de velas no meio da mesa,

toda a família cantou em uníssono «Feliz aniversário, avô», enquanto batiam

palmas vezes sem conta.

No início, só a voz de soprano da mãe, que cantava um pouco desafinada,

tremelicava ligeiramente. Porém, aos poucos, os tremidos alastraram para a

filha, o filho, e depois para o marido e, por fim, qual doença infecciosa, até para

a avó. No fim, foi uma grande choraminguice.

No fim da cantoria, e depois das exclamações de «Parabéns, avô!», não foi o

som das palmas que se repercutiu, mas sim uma série de soluços, que mais se

assemelhavam a gritos. Posso estar a ser grosseira, mas o ambiente era pesado,

como se o velhote já tivesse falecido.

Ele, com a sua expressão apática, ia apagando as velas uma a uma, num sopro

sumido, e, apenas por um momento, o interior do restaurante ficou envolvido


numa serena escuridão.

Todos comeram o bolo de aniversário silenciosamente.

Mas o que tinha acontecido a esta família?

Era verdade, o velhote estava gagá. Isso era certo. Mas porque é que todos os

membros desta família afetuosa que tinha celebrado o seu aniversário,

oferecendo-lhe a sua comida preferida, um menu infantil, estavam agora a

verter lágrima após lágrima? Sem dúvida, ele perdera a memória e esquecera o

nome de todos. Ainda assim, estavam num pranto junto dele.

Foi só quando eles se levantaram e a mãe veio até à entrada da cozinha para

pagar a conta que tudo se esclareceu.

— Vamos levá-lo esta noite para um lar... — explicou-me ela com um sorriso

forçado. — Como sempre vivemos os seis juntos é difícil... — E, depois de me

agradecer, acrescentou: — Mas hoje foi uma grande ajuda. Não sei porquê, mas

quando ele come um menu infantil, a seguir dorme profundamente. Decidimos

há muito tempo levá-lo para o lar enquanto dormia.

E, depois destas corajosas palavras, ela soltou um suspiro longo e profundo.

De certeza que ele tinha sido um bom avô.

Seguramente, não queria que mais ninguém empurrasse a cadeira de rodas da

sua esposa inválida, recusando a ajuda dos outros membros da família até ao

fim.

Enquanto recebia o troco, a senhora ainda me disse:

— Mas isso também não significa que nunca mais o vamos ver, não é? — E

acrescentou, numa voz pausada: — Voltaremos cá. Por favor, faça a refeição

preferida dele, está bem? O seu menu infantil de hoje estava muito melhor do

que o que eu costumo fazer.

E voltou em passos rápidos para junto da família, que esperava dentro do

monovolume. Na carroçaria, estavam escritos em letras grandes o nome da

lavandaria e o respetivo número de telefone.

Acompanhei-os até à rua e esperei até se irem embora.

Por um momento, o rosto do velhote sentado no lugar de trás junto à janela

ficou iluminado pelo luar.


Era noite de lua cheia. Com a boca aberta, ele olhava fixamente para nenhures.

Eu não era capaz senão de pensar que ele tinha conhecimento sobre o seu

destino.

E depois o seu rosto desapareceu, juntamente com o carro que arrancava, na

noite fria deste fim de outono. Mas a expressão do velhote impressionou-me,

porque me fez lembrar o olhar do coelhinho anoréxico.

Após a partida dos clientes, voltei para a cozinha e agachei-me junto do

coelho para o observar. Continuava absolutamente letárgico, nem acordado nem

a dormir, com as patas inertes, deitado no fundo da caixa.

Bem, se eu não fizer nada, tu vais morrer, disse-lhe no meu íntimo. Não era

possível, no entanto, fazer com que um coelho reservado entendesse isso.

Por via das dúvidas, tinha marcado a caneta de feltro o nível da água no

exterior da tigela, mas não parecia que estivesse a diminuir, e, quanto ao puré

de cenouras cristalizadas, nada tinha mudado desde que o pusera no pires.

Independentemente do seu estado lastimoso, não era capaz de abandonar uma

réstia de esperança que fosse.

Tinha acontecido um pouco antes, quando tirara do frigorífico o bolo de

aniversário destinado aos meus convivas: impercetivelmente, o coelho levantara

a cabeça, olhando de relance para o bolo.

Infelizmente, não fazia sentido servir um bolo se não estivesse inteiro e, por

isso, não pudera dar-lhe um pedaço. Contudo, o seu comportamento dera-me

uma pista sobre o seu passado misterioso.

Quase conseguia imaginar, como se fosse um conto, o passado que o coelhinho

carregava consigo.

Após ter acabado de limpar tudo a preceito, decidi fazer-lhe uns biscoitos.

O seu pelo lustroso, ter sido colocado propositadamente dentro de uma caixa,

a carta que lá estava dentro... tudo indicava que ele fora bem tratado. Ou seja,

não tinha sido abandonado por alguém que já não gostasse dele. A carta, escrita

num computador, podia parecer um pouco fria, mas talvez fosse tão-só a

expressão de sentimentos complexos que tinham encontrado uma saída numa

frase que dizia o essencial.


Sem dúvida, este coelho devia ter um bom pedigree.

Eu não sabia muito sobre coelhos, mas o seu encanto saltava à vista; além

disso, não era da mesma raça daqueles que costumam ser criados nas escolas, o

que queria dizer que o seu dono devia ser abastado. Tinha sido criado com

muito amor e carinho, como se fosse mais um membro da família.

Estes foram os meus primeiros pensamentos, mas as minhas suposições

levaram-me a um segundo raciocínio, isto é, por mais que ele tivesse sido bem

tratado, talvez tivesse acontecido algo difícil de ultrapassar apenas com o amor

da sua família. Como por exemplo, o falecimento da dona velhota que cuidava

dele ou até ter mudado de casa para uma na qual os animais não eram

permitidos... Exatamente como o avô da família que tinha vindo comer um

menu infantil.

Eles queriam viver com o avô e ele queria viver com a família. Todavia,

quando essa coabitação se tornara impossível, a família teve de tomar uma

decisão extremamente difícil. Talvez o avô já tivesse adivinhado essa escolha,

como quem fareja um odor.

Da mesma forma, talvez o coelho também tivesse pressentido a situação

complicada em que o seu dono se encontrava. Nem o avô nem o coelho falavam,

mas as suas expressões eram as mesmas.

Mesmo que compreendamos a situação e os sentimentos de outrem, o

sofrimento que vem da solidão não muda.

O que será que ele sentira dentro da caixa em que foi abandonado?

Tentei imaginar, mas faltou-me a coragem. Uma escuridão absoluta. O som

de passos a aproximarem-se. Vozes ao longe. Uma luz fraca. Uma tristeza e uma

solidão impossíveis de exprimir por palavras.

Sozinho, querendo reaver o dono e ser aconchegado nos seus braços o mais

rápido possível, com certeza que teria chorado naquela penumbra. Mesmo que

não conseguisse chorar de verdade, deveria ter soluçado, soltando gemidos. E

depois, cansado de tanto chorar, sem outra hipótese, talvez tivesse desistido de

viver. E era possível que essa desilusão permanecesse até agora e ele tivesse

igualmente desistido de comer.


Enquanto amassava com as duas mãos os ingredientes para os biscoitos —

óleo vegetal, açúcar, nozes, farinha de trigo integral e água —, ia pensando no

passado do coelho. Claro que não passavam de suposições da minha parte.

Naquele momento, veio-me à cabeça, de repente, que, na família rica de onde

ele vinha, devia comer doces com frequência. Tinha sido essa a minha sensação

diante do frigorífico. E tinha sido por isso que, momentos antes, ele reagira

ligeiramente ao cheiro adocicado do pão de ló.

Assim sendo, se lhe desse biscoitos, talvez ele comesse.

Estendi uma camada fina de massa numa placa de ir ao forno e, por cima,

polvilhei-a com pétalas de lavanda secas. A lavanda tem um efeito calmante nos

momentos em que nos sentimos deprimidos. Cortei a massa em pedaços

pequeninos com uma espátula, de forma a caber na boca do coelho. Depois, só

faltava cozê-la no forno pré-aquecido a duzentos graus.

Será que o avô já chegara ao lar? A minha esperança era de que ele estivesse a

dormir o mais profundamente possível, para não ter de passar por uma

despedida dolorosa com a família.

Hoje, vou passar a noite no restaurante.

Preparei a cama adicional feita de caixas de vinho usadas, aquela em que a

concubina vira o seu amado falecido em sonhos, mas, desta vez, para mim.

Os biscoitos já estavam cozidos e ainda nem sequer tinham arrefecido.

A massa de pão que darei a Hermès amanhã de manhã também já está

amassada.

Hoje, foi um dia que começou e acabou com animais.

Aliás, para ser mais precisa, ainda não acabara. Só darei o dia por terminado

quando o coelho anoréxico abrir a boca e aceitar comida.

Por mais que quisesse esquecer o olhar suplicante e pleno de confiança com

que Kozue olhara para mim, ele continuava gravado no meu espírito com a

força da primeira estrela da noite pregada no céu.

De modo algum iria quebrar a minha promessa.

Concentrada na palavra «responsabilidade», agarrei firmemente o coelho

contra o peito e enfiei-me na cama. O inverno aproximava-se a passos largos e,


com o fogão de lenha apagado, o restaurante esfriara por completo.

Não estava a ser ingénua ao ponto de pensar que ele fosse confiar logo em

mim. Porém, se tivesse sido mimado e acarinhado, não só pelo seu dono, mas

por toda a família, imaginei que lhe fizesse falta calor humano. Se estivesse no

lugar dele, também eu gostaria que alguém me abraçasse em silêncio.

Deitei-me de lado na cama, virada de frente para ele. Pus uns quantos

biscoitos na palma da minha mão e, com a outra, continuei a fazer-lhe festas.

Pouco a pouco, o perfume calmante a lavanda e o aroma doce dos biscoitos

espalharam-se debaixo das mantas. Apaguei a luz e apenas os olhinhos negros

como gelado de café do coelho luziam no escuro. E então, com a mão pousada

nele, fechei tranquilamente os olhos.

Nessa noite, tornei-me a guardiã da respiração do coelho.

Acordei inúmeras vezes em sobressalto, encostando ao de leve a mão ao

focinho do animal completamente imóvel, para confirmar se estava a respirar.

De cada vez, preocupada, contava o número de biscoitos que estavam na palma

da minha mão. Era uma pena, mas nem uma migalha desaparecera.

Continuei a dormir um sono leve.

Já não sabia se estava a dormir ou acordada. Era como se estivesse sempre a

pensar.

Sentia-me sufocada pela apreensão: será que o coelho iria morrer naquela

noite?

A certa altura, dei por mim a gemer no meio do sono agitado, absolutamente

desorientada.

Só nos tínhamos conhecido no dia anterior, mas tornara-me amiga

incondicional de Kozue e do coelho anoréxico. Não queria que os meus amigos

sofressem. Não queria perdê-los.

Por fim, o céu começou a clarear e ouviu-se o chilrear dos passarinhos.

Assim que abri os olhos, acordada por uma sensação estranha na palma da

mão, o restaurante estava imerso num turbilhão de luz ofuscante e pura. Por um

breve instante, um véu negro ocultou o meu campo de visão.

Por alguma razão, dormira mais do que o habitual.


Lá fora, o mundo transbordava de vida.

E, então, surpresa!

Era o famoso coelho anoréxico que, com a sua engraçada língua cor-de-rosa,

lambia sem parar a palma da minha mão. Como um caule cortado de uma

planta que volta à vida quando é posta em água, as suas orelhas estavam bem

espevitadas e os bigodes, ao contrário da véspera, não paravam quietos.

Mas o mais impressionante era que nem um biscoito restava na minha mão!

Por um momento, achei que os deixara cair enquanto dormia, mas não era o

caso. Não havia dúvidas: o coelho tinha-os comido.

Aconcheguei-o nos meus braços com todo o meu amor. Um abraço sentido e

firme, mas gentil, para não o esmagar. Em seguida, pus bastantes biscoitos na

caixa, troquei a água e instalei-o lá dentro.

Mas nas suas orelhas, os vasos capilares vermelhos e azuis viam-se à

transparência com a luz do sol, parecendo um belo bordado.

Ainda bem! Acima de tudo, estava orgulhosa por ter conseguido manter a

promessa que fizera a Kozue.

Depois dediquei-me rapidamente à preparação do pequeno-almoço de Hermès.

Ao longe, como que se estivesse a reclamar a sua refeição, a porca não parava de

guinchar.

À tarde, praticamente à mesma hora do dia anterior, a pequena Kozue, com o

seu corte de cabelo à tigela, veio ter comigo ao restaurante, apreensiva como

uma ameixa verde.

Mostrei-lhe imediatamente o coelhinho, cheio de energia.

Estava de tal maneira espevitado que corria por todo o restaurante e, por isso,

sentindo alguma pena dele, eu fizera-lhe uma coleira com o relógio de pulso

que usava antigamente e prendi-o lá fora com uma guita, no jardim de ervas

aromáticas.

Inesperadamente, ele não se mostrou contrariado por estar preso. Longe disso.

Era apenas mais uma das minhas especulações, mas quem sabe se, pelo

contrário, ele se sentia seguro por estar atado. Mais do que uma trela, talvez ele

sentisse que se tratava de um laço entre nós.


Kozue pegou-lhe ao colo com as suas mãos inexperientes.

Na verdade, ele tinha um ar tão frágil, que ela ainda não lhe pegara uma

única vez. Provavelmente, por ter receio da sua anorexia.

Enquanto Kozue brincava com o coelho, comecei a preparar o lanche.

Uns dias antes, tinha ido à floresta nos arredores apanhar castanhas para as

cristalizar e, com os restos, confecionara pequenos bolos de creme de castanha

com natas. Iria servi-los como sobremesa para os clientes daquela noite, mas,

pelo sim, pelo não, tinha feito a mais. No bule, tinha posto em infusão um chá

Earl Grey, que combinava com os bolos, um pouco pesados.

Já começava a fazer frio, mas dispus uma mesa e cadeiras lá fora e, com

mantas estendidas no colo, lanchámos os três. Kozue pôs o coelhinho em cima

da manta e aninhou-o. Ela, que apenas na véspera estava tão tensa, agora ria,

rejubilante.

Estava cansada fisicamente, mas foram umas vinte e quatro horas

mentalmente gratificantes.

O coelhinho ia mordiscando os bocadinhos de bolo da palma da mão de

Kozue. Eu estava algo preocupada por os bolos levarem manteiga e álcool, mas,

quando terminou de comer o pedaço que lhe foi dado, ele pediu por mais com a

sua pequena língua cor-de-rosa. Realmente, era um coelho perdido por doces. E,

por sua vez, Kozue, com a sua carita tão adorável quanto a do coelho, também

saboreava o bolo de bochechas cheias.

Ainda bem que abri A Cantina dos Caracóis, pensei, ao ver o cume da

«Montanha dos Seios», branco e enevoado.

— A minha mãe deixou-me ficar com o coelho. Vou cuidar dele em casa.

Muito obrigada! — disse ela de forma sagaz, olhando para o céu noturno de

finais de outono, enquanto o agarrava firmemente ao peito.

Junto à entrada do bar, estava um veado a olhar fixamente para nós.

O inverno estava ao virar da esquina.

Numa manhã de dezembro, ao abrir as cortinas, estava tudo branco lá fora.

Do lado de lá da janela, um branco leitoso estendia-se a perder de vista, como

se uma grande quantidade de natas em castelo tivesse sido colocada levemente


por cima. Com certeza, os ombros da concubina, no seu exuberante sobretudo,

estariam salpicados de flocos de neve.

No Natal, cozinhei para um casal homossexual que se refugiara na aldeia. Para

eles, esta viagem era uma lua de mel secreta. Como não queria estragar o

ambiente romântico, pedi ajuda ao senhor Kuma e, nessa noite, decidi servir-

lhes o jantar no bangalô onde eles estavam hospedados, junto ao lago.

Quando acabámos de carregar tudo, no caminho de volta, senti-me como se

fosse o Pai Natal. Não tínhamos bebido nem uma pinga de álcool, mas tanto eu

como o senhor Kuma estávamos muito animados. A mota de neve avançava a

alta velocidade através dos flocos de neve noturnos.

Tudo o que eu fazia era cozinhar, mas isso era suficiente para que cada uma

das minhas células ficassem em êxtase.

Poder cozinhar para alguém deixava-me verdadeiramente feliz, do fundo do

coração.

Obrigada, obrigada!

Queria expressar estes sentimentos a todas as pessoas do mundo em voz alta,

até ela perder a força. Contudo, por mais que agradecesse virada para o céu

noturno nesta noite de inverno, não seria suficiente.

Parámos a mota de neve a meio do caminho e, de braço dado, observámos o

céu daquela noite de Natal.

Por um instante, parou de nevar, revelando infinitas luzes ténues a cintilar

como um mar de tochas. Se ele assim o desejasse, senti-me capaz de beijar o

senhor Kuma.

No dia seguinte, chegou ao restaurante um belo presente de Natal enviado

pelo casal.

No fim do ano, fiz uma limpeza profunda com bicarbonato de sódio a todos

os cantos da cozinha e, quando finalmente veio a véspera de Ano Novo,

consegui fazer um osechi muito simples.

No tempo em que a minha avó era viva, fazíamos todos os anos um

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esplêndido osechi , pelo menos de aspeto, independentemente de o seu sabor ser
bom ou não.

Quando os dispúnhamos nas suas caixas sobrepostas, formavam um quadro

com um padrão geométrico. Todos os anos, o resultado deixava-me

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deslumbrada. Sorvia o toshikoshisoba enquanto assistia ao festival de fim de ano

do canal NHK, e à meia-noite festejávamos o Ano Novo, brindando com saqué

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o-toso . Passávamos os primeiros dias do ano a petiscar o osechi que tínhamos

feito e a beber saqué. Era sempre assim que eu começava o ano com a minha

avó.

Desde que ela faleceu, passei a celebrá-lo à maneira indiana com o meu

namorado naquele modesto apartamento. Na Índia, no Ano Novo, vestem-se,

sem falha, roupas novas. Nesse dia, eu também envergava as roupas punjabi que

as noivas usam antes do casamento. Enfiava uma túnica folgada de seda fina de

alta qualidade, umas calças largas e enrolava uma comprida écharpe à volta do

pescoço. E depois fazia uma tarte frita de caju, coco e amêndoa, chamada

ghughra.

Seguramente, o sabor estava bem longe do original. Mesmo assim, eu ficava

feliz só de passar o Ano Novo com o meu namorado.

Nesse inverno, no dia de Ano Novo, a minha mãe foi para o Havai com os

seus clientes habituais do bar Amor, para jogarem golfe e fazerem compras. A

tia casamenteira também fazia parte do grupo. E, por isso, acabei por passar a

passagem de ano sozinha. Claro que tinha a companhia de Hermès. Pus o osechi

dentro de um tupperware e comemorei humildemente com ela.

Feliz Ano Novo!, pensei, dirigindo-me a Hermès, mas, como é evidente, ela não

respondeu.

Para me distrair, escovei-a diligentemente e, às vezes, deixava-a à solta pela

neve. O tempo que me restava, passava-o a tirar com uma esponja própria as

manchas de chá das chávenas, as quais até já estava habituada a ver.

Assim passava os meus dias enquanto A Cantina dos Caracóis entrava num

período de hibernação.

As estradas estavam cortadas por causa da neve e, por isso, os clientes que
viviam fora da aldeia, mesmo que quisessem, não conseguiam vir, porque o

miniautocarro que, até agora, fazia várias viagens de ida e volta por dia,

limitava-se a apenas uma, saindo da vila de manhã e voltando à noite.

Também devido à neve, a plataforma de bungee-jumping encontrava-se fechada

e quase todos os passageiros do miniautocarro desapareciam. Se viessem de

outra região e quisessem vir ao restaurante, eram obrigados a passar uma noite

na aldeia. Na estância termal, ainda havia alguns alojamentos, mas os meios de

transporte eram mesmo assim escassos. Se fossem a pé pela neve, certamente

demorariam perto de duas horas.

E eu continuava sem voz, como sempre.

Já tinha ouvido dizer que os seres vivos, quando não usam uma das suas

funções, começam a degenerar-se aos poucos.

Uma vez, quando era mais nova, enquanto comia um prato de noodles no

balcão do bar, lembro-me de ouvir um cliente bêbedo a rir-se e a dizer:

— Sabes... os maricas, quando deixam de usar a pilinha, ela começa a mirrar

cada vez mais...

Da mesma forma, eu tinha a impressão de que a minha voz já tinha

completamente mirrado e que, se a agarrasse com uma pinça e a puxasse, ela

abandonaria facilmente o meu corpo para nunca mais voltar.

No entanto, isso já não me importava. Tinha um forte aliado: a cozinha. Tal

como o apetite, o desejo sexual e o sono, cozinhar era um pilar da minha vida. E

a voz é inútil para qualquer uma destas funções.

A relação com a minha mãe continuava em estado de guerra fria, como de

costume.

Eu era capaz de amar quase todas as pessoas e seres vivos. Porém, a única

pessoa que não conseguia amar do fundo do coração era a minha mãe. A minha

raiva por ela era algo tão profundo e pesado como a energia que me fazia amar

tudo o resto. Esse era o meu verdadeiro eu.

Penso que as pessoas não são capazes de nutrir sempre os sentimentos que

desejam. Cada coração contém em si água barrenta mais, ou menos, turva,

dependendo de cada pessoa.


É pura especulação, mas até a princesa de um país qualquer deve ter

momentos em que palavras feias lhe vêm à cabeça e, por outro lado, até num

prisioneiro condenado à morte podemos encontrar uma pedra preciosa que,

apesar de invisível ao microscópio, brilharia intensamente à luz.

Por isso, para preservar limpa esta água barrenta, pensei em manter-me o mais

silenciosa possível.

Quando um peixe se debate, a água acaba por ficar turva; pelo contrário, se eu

mantivesse o meu coração calmo, o lodo iria acabar por assentar no fundo e a

superfície ficaria limpa. Eu queria manter-me limpa como essa água.

A desavença que tenho com a minha mãe era precisamente a lama dentro de

mim, mas, se permanecesse serena, ela não sujaria todo o meu coração. Assim

sendo, tentava evitar a minha mãe o melhor que conseguia. De certo modo, era

como se a ignorasse permanentemente. Acreditava que esta era a única forma de

manter o meu coração puro.

Foi num desses dias meditativos de janeiro que o senhor Kuma apareceu de

repente e disse:

— Ringo, não queres ir agora à minha terra natal, conhecida pelos seus

rabanetes vermelhos?

Nesse dia, surpreendentemente, estava bom tempo desde manhã.

O senhor Kuma, já todo preparado de cima a baixo, com um equipamento de

esqui para se proteger do frio, estava a convidar-me para ir visitar os campos nos

quais eram cultivados os rabanetes que eu tinha servido na noite de Natal ao

casal gay.

Fui apanhada desprevenida por aquele convite em cima da hora, mas, como

não ia ter muitas oportunidades de conhecer as pessoas que cultivavam aqueles

belos rabanetes, e querendo agradecer-lhes por me terem dado aquele valioso

tesouro, decidi ir com ele.

Vesti rapidamente o meu anoraque vermelho e as calças de esqui azul-

marinhas, calcei as minhas habituais botas de cano alto e saí de casa. Fomos na

carrinha dele até onde esta podia ir e, a partir daí, calçámos as nossas raquetes

de neve e caminhámos por muito tempo pelos campos nevados.


O sítio era um terreno numa encosta íngreme, na vertente por trás da

«Montanha dos Seios». Claro que agora se encontrava inteiramente coberto de

neve, mas, ao que parecia, os rabanetes vermelhos estavam preservados por

baixo dela.

— Queria mostrar-te, pelo menos uma vez, a vista daqui, Ringo... — disse o

senhor Kuma, ofegante.

Não sei o que ele levava dentro da mochila, mas parecia ser algo bastante

pesado.

O senhor Kuma ia à minha frente e eu seguia-o. Caminhávamos num silêncio

quase absoluto. A cada passo que dávamos por aquela extensão de neve em pó

era como se esculpíssemos as nossas pegadas, e ouvia-se um som parecido ao

guincho de um coelho-bravo.

Tudo o que a minha vista alcançava era um mundo de neve e gelo. Estava um

tempo muito agradável, com nuvens a vogar devagar pelo céu.

Estávamos a atravessar uma pradaria pouco íngreme quando o senhor Kuma

parou e, virando-se para mim, disse abruptamente:

— Campainhas-brancas!

Olhei na direção que o seu dedo enluvado indicava e, na ponta de um longo

caule, rebentava uma flor branca inclinada para baixo. Mas não se tratava apenas

de uma flor solitária: eram inúmeros ramalhetes de campainhas-brancas

espalhados por todo o lado.

— Eu queria mostrá-las à Siñorita... Há alguns anos, plantei-as, mas não

rebentaram quando ela estava cá, só floresceram quando ela se foi embora... Não

são bonitas?

Fizemos um pequeno intervalo, contemplando as flores. Eram como fadas

surgidas inesperadamente do manto de neve. Até no meio daquele campo

nevado gelado, a vida brotava.

Os pássaros sussurravam os seus cantos de amor na copa das árvores desnudas.

Enquanto o suor me escorria pelas costas, inspirei profundamente.

Em seguida, retomámos o caminho por uma pequena estrada ao longo da

ribeira. Uma rajada de vento com um aroma ligeiramente doce varreu a planície
de neve.

— Chegámos!

Assim que o senhor Kuma anunciou isto, o meu corpo voltou a aquecer

completamente.

Entrámos numa cabana construída a meio da vertente. Lá dentro, estava um

homem, aproximadamente da mesma idade que o senhor Kuma. Era quem

cultivava os rabanetes. Junto a ele, estava a sua mulher, de estatura ligeiramente

pequena, com uma cara de tal forma idêntica à dele, que quase pareciam

gémeos. Aparentemente, o casal salvaguardara as sementes de rabanete de

tempos anteriores, passadas de geração em geração.

De imediato, tirei do cesto o meu bloco de notas e uma caneta e escrevi-lhes:

«Muitíssimo obrigada por me ter fornecido os seus valiosos rabanetes

vermelhos.»

No entanto, o frio entorpecera-me os dedos e não consegui segurar bem na

caneta. Não sei se ele adivinhou isso mesmo, mas o senhor Kuma traduziu

quase tudo o que eu queria transmitir.

O que vinha dentro da sua grande mochila era um piquenique para toda a

gente.

— Como me preparas sempre grandes banquetes... — disse ele, rindo, ao

mesmo tempo que abria os tupperwares que trouxera, uns atrás dos outros,

espalhando-os pela mesa. — Não sei se vão gostar do tempero da minha mãe,

mas experimentem um pouco...

À nossa frente, estavam vários pratos como nishime, karaage, onigiri e vários

pickles, atravancados, uns a seguir aos outros. Como estava com fome, resolvi

começar logo a comer.

A refeição que a mãe dele nos preparara tinha um sabor leve, como a comida

da minha avó, mas os condimentos eram diferentes do seu tempero de

excelência feito com dashi, enquanto o tempero habitual da minha mãe era

instantâneo, industrializado. Tanto o inhame como a bardana e as cenouras de

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nishime estavam macios e bem cozidos, desfazendo-se na boca. Não sei se o
dashi era feito apenas a partir do niboshi, mas tinha anchovas japonesas inteiras.

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A tamagoyaki estava bem tostada na parte inferior, com um intenso sabor a

açúcar e a molho de soja. E os onigiri vinham recheados de ovas de pescada do

Alasca fritas.

Quanto mais mastigava, mais os sabores se espalhavam lentamente pela

minha boca. Jamais teria o requinte de uma refeição num restaurante de luxo,

mas era um grande banquete com fortes raízes desta terra, permitindo-me

voltar ao meu verdadeiro eu.

— Este é o tipo de comida que mais me faz sentir em casa — murmurou com

um ar sonhador a mulher do produtor de rabanetes vermelhos, enchendo a boca

com um grande onigiri.

Eu sentia exatamente o mesmo. E então apercebi-me.

Havia já muito tempo que eu não comia uma refeição feita por alguém.

O arroz estava, definitivamente, demasiado empapado para o meu gosto, mas,

mesmo assim, comi o máximo de onigiris que pude. A minha barriga enchia-se

cada vez mais de satisfação. E isso devia-se ao facto de a mãe do senhor Kuma os

ter feito esmeradamente, a pensar em nós. Era como se estivesse a comer não

apenas grãos de arroz, mas o afeto de uma mãe.

Foi nessa altura que uma recordação me veio à memória. Aquela sensação não

me era estranha.

Fui tomada por uma poderosa sensação de déjà-vu. Então, percorrendo o fio

das minhas recordações, vi-me subitamente diante da minha avó. Ali estava ela,

de costas para mim, na sua cozinha impecável. O piquenique que a mãe do

senhor Kuma nos fizera e os pratos que a minha avó confecionava possuíam a

mesma alma. E, de repente, enquanto mastigava o arroz, quase me desfiz em

lágrimas.

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Após bebermos o chá de dokudami que a esposa do produtor de rabanetes

vermelhos nos servira, saímos os quatro para ir ver a plantação. Ao limparmos a

neve de cima, saltaram à vista imensos rabanetes vermelhos. Ao que parece, se

forem enterrados nela, tornam-se mais doces.

— Andem, provem! — disse o agricultor, dando um rabanete a cada um de


nós.

Quando o trinquei, era de tal forma suculento que o seu suco quase me saltou

para a cara. Tinha um sabor fresco, e o equilíbrio entre o doce e o picante era

perfeito. Como ele teve a gentileza de nos dizer para comermos o que

desejássemos, tanto eu como o senhor Kuma não nos fizemos rogados. E, apesar

de terem sido cultivados no mesmo campo e pela mesma pessoa, vim a

descobrir que cada um deles tinha um sabor distinto.

O céu estava limpo e por entre as árvores cobertas de neve avistava-se o mar.

A linha do horizonte que separava o mar do céu, ambos com cores subtilmente

diferentes, prolongava-se até ao infinito, como se tivesse sido traçada com uma

régua.

No caminho para casa desde as montanhas, descuidei-me. Numa ladeira um

pouco íngreme, escorreguei repentinamente. O solo coberto de neve estava

gelado e caí de rabo no chão.

— Estás bem? — O senhor Kuma, que caminhava à minha frente, veio logo

socorrer-me.

Envergonhada, deitei a língua para fora enquanto ria como uma palerma.

Depois, apoiando-me no ombro dele, tentei levantar-me. Porém, no instante em

que me pus de pé, sem força nas pernas, voltei a cair em cima da neve. Não

tinha fraturado nada, mas, pelos vistos, caíra mal e fizera uma entorse no

tornozelo esquerdo. Contudo, se cerrasse os dentes e avançasse lentamente, com

certeza que conseguiria andar.

Estava prestes a tentar de novo, pondo o meu peso apenas sobre a perna

direita e zelando pela esquerda, quando o senhor Kuma tirou a mochila das

costas.

— Ringo, agarra nisto!

Como já tínhamos comido todo o piquenique, estava leve. Confusa, não

percebi o que ele pretendia. Então, ele pôs as costas a jeito e disse:

— Vá, não estejas com cerimónias, põe-te às minhas cavalitas. Ainda sou

capaz de te levar.

Perplexa, agarrei-me às costas dele.


— Upa! — disse ele, como que tomando coragem e erguendo-se devagar.

Subitamente, o meu campo de visão mudou e a minha paisagem habitual foi

substituída por um cenário bem mais alto. Respirando fundo, o senhor Kuma

começou a andar.

Tal como tinha feito naquele dia, quando eu estava a chorar sozinha num

corredor da escola. Carregara-me nas suas costas grandes e quentes, levando-me

até à arrecadação das limpezas, na qual normalmente não se podia entrar. E

depois mostrara-me o arganaz que dormia profundamente dentro de um tacho.

Desde essa altura, eu cresci, apareceu-me o período, mudei-me para a cidade,

comecei a namorar, tive um desgosto de amor e tornei-me a cozinheira e dona

d’A Cantina dos Caracóis. Já tinha passado por muito, mas eis que agora me

encontrava novamente às costas do senhor Kuma. Ele estava sempre a cuidar de

mim e a ajudar-me quando precisava, e eu sempre a causar-lhe problemas...

Estava tão habituada a isso, que me esqueci de que quem tinha um problema na

perna era ele. E ainda assim...

Senhor Kuma, porque é que é tão bom para mim?, perguntei-lhe em silêncio.

E, nesse preciso momento, ele disse:

— Sabes que a patroa ouviu muitas das minhas queixas...

A patroa era a minha mãe.

— Desde que a Siñorita se foi embora, fiquei desolado... Bebia muito,

descarreguei na tua mãe, fiz muitas coisas más... Mas ela ouviu-me sempre com

um sorriso. Eu disse-lhe muitas grosserias, mas ela perdoou-me tudo...

E, então, o senhor Kuma disse uma coisa que eu não sabia.

— E depois, um dia, ela telefonou-me e disse: «A minha filha voltou e eu

gostaria que o senhor a ajudasse. Por esta altura, deve estar a subir a alguma

figueira. Pode ir ver, se faz favor?» E então eu fui logo de seguida, e não é que

aconteceu exatamente como ela tinha dito? Por mais que eu agradeça à tua mãe,

nunca será suficiente...

Balançando às costas do senhor Kuma, foi como se me tivessem

inesperadamente enfiado uma ameixa seca na boca. Não fazia a mínima ideia.

Estava perfeitamente convencida de que, naquele dia, apenas nos tínhamos


encontrado por mera coincidência. E agora já não era o tornozelo que me doía

com um contínuo formigueiro, mas antes o meu coração.

Chegámos penosamente à carrinha e, enquanto regressávamos pela estrada do

Norte, o senhor Kuma propôs de repente:

— Ringo, se fores às termas, pode ser que a tua perna fique boa mais

depressa. Eu fico de olho se alguém vier, que achas? Vamos? Eu não espreito,

prometo! — disse com um ar muito sério.

Os banhos públicos nas redondezas da aldeia ainda eram mistos. De facto, as

águas das termas desta aldeia têm a reputação de ser eficazes para hematomas e

entorses. Além disso, eu estava com frio.

Tirei o meu bloco do cesto e escrevi uma palavra:

«Obrigada.»

E depois, com os dedos ainda bastante entorpecidos, acrescentei em caracteres

muito pouco marcados:

«Mas o senhor Kuma deve estar com frio. Que tal se entrasse também?»

Assim que acabou de decifrar o que eu escrevera, ele virou à direita, em

direção aos banhos públicos. A tarde já ia avançada. Com um pouco de sorte,

talvez não déssemos de caras com os velhotes da aldeia que vinham tagarelar

para os banhos.

Quando dei por mim, o sol pusera-se por trás das montanhas e apenas a neve

brilhava em tons brancos e azuis.

Estávamos em meados de fevereiro e a minha mãe convidou-me para uma

festa.

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Ao voltar para casa, depois de ter posto a marinar o kimchi para Hermès no

restaurante, vi um bilhete preso na porta da pocilga, escrito com a elegante

letra da minha mãe.

A festa teria lugar no bar Amor e, pelos vistos, tratava-se do banquete anual

de peixe-balão.

O neoconservador era o organizador. Os convidados, sete ou oito pessoas, a


contar com ele e a minha mãe, seriam sobretudo os clientes habituais do bar.

Muitos deles tinham ido com ela na sua viagem ao Havai no fim do ano. O

neoconservador era diretor de uma empresa de construção, mas aparentemente

também tinha uma licença para preparar peixe-balão.

Na verdade, não consegui decidir se haveria de ir à festa até ao próprio dia.

Não havia nenhuma reserva no restaurante e eu tinha vontade de passar uma

noite tranquila, a ler ou a tricotar. Além disso, não queria ver a cena que seria a

minha mãe a namoriscar com o seu amante.

Mesmo assim, decidi ir. E a razão era eu também querer comer peixe-balão.

Claro que já tinha experimentado uma ou duas vezes. Contudo, as fatias eram

finas como papel e, por muito que mastigasse, não conseguia definir muito bem

o seu sabor.

Aparentemente, até os chefs mundialmente famosos estavam a prestar atenção

ao peixe-balão japonês, e a minha curiosidade profissional como cozinheira

despertara para tentar descobrir o que o tornava atrativo, mesmo que

tardiamente.

— Olha lá, dizem que ficaste encantada pelo Ali Babá.

Pouco depois das cinco da tarde, alertada por uma grande algazarra no

exterior, fui ver do que se tratava: o neoconservador, soltando gritos roufenhos,

tentava atar um renitente cavalo branco a uma palmeira. Sem dúvida que tinha

intenções de se embebedar naquela noite. Quando sabia que ia beber, nunca

vinha no seu adorado Mercedes-Benz, mas montado num cavalo, e logo branco.

A minha mãe divertia-se a espalhar esse facto e eu, que já quase me esquecera

dele, irritei-me ao relembrá-lo.

Voltei ao bar e, para me acalmar, pus-me a picar miudinho o alho-francês de

Hakata enquanto o neoconservador, que chegara logo a seguir, tirava um a um

os ingredientes que tinha preparado em casa e os colocava em cima do balcão. O

73
takifugu que encomendara de Ota especialmente para a ocasião era grande e, à

primeira vista, aparentava ter uma boa consistência.

Com espalhafato, o neoconservador tirou do seu saco uma faca de cozinha


apropriada para o peixe-balão e começou a fazer os preparativos para o sashimi.

Eu verti o ponzu
4
7
caseiro que ele trouxera para cada uma das pequenas taças.

Por fim, os convidados reuniram-se todos à volta do peixe e deu-se início ao

banquete.

Eram todos grandes apreciadores que tinham esperado ansiosamente por este

dia. Cada um tinha trazido bebidas alcoólicas — saqué, sochu, cerveja, vinho...

Abrindo uma de cada vez, continuavam a beber.

Quanto ao neoconservador, trouxera champanhe, ainda para mais um Cristal

Rosé. Por mais que tentasse disfarçar, a minha mãe adorava esse champanhe. Eu

também já vira uma garrafa certa vez, na montra de uma loja de produtos de

luxo importados. Claro que nunca o tinha provado, mas sabia que era muito

caro. O champanhe foi posto a arrefecer na neve, lá fora.

O sashimi de peixe-balão, cortado em fatias um pouco mais espessas do que

num restaurante especializado, tinha a beleza efémera de flocos de neve. As

partes do peixe-balão com espinhas foram levemente grelhadas nas brasas,

realçando o sabor concentrado, e estavam uma delícia. O karaage estava bem

cozinhado por dentro e tinha uma textura agradavelmente consistente.

Todos os convidados devoraram a comida sem dizer uma palavra, como se se

tivessem esquecido de falar. Eu também, com todo o meu corpo, a saboreei

como se fizesse parte de um sonho. Seria isto a que chamavam bênção? De facto,

sentia-me como se tivesse sido convidada para um banquete exuberante num

belo sonho.

E, finalmente, chegou a hora da «roleta envenenada», que todos esperavam

impacientemente.

Apesar do nome, não tinha mesmo veneno; apenas lhe chamávamos assim a

brincar. Agora iríamos comer os restos do peixe-balão que deixámos com

fígado. Verdade seja dita, esta forma de comer peixe-balão era proibida fora da

cidade de Oita. No entanto, estes convidados faziam-no às escondidas todos os

anos. Até agora, ninguém morrera.

Aparentemente, o ritual evoluiu da seguinte maneira: nos primeiros

banquetes de peixe-balão, a roleta envenenada era servida com o primeiro prato


de sashimi. Porém, se alguém comesse um pedaço envenenado e morresse,

morreria com o arrependimento de não ter saboreado o resto da refeição: o

75 76
peixe-balão grelhado, o karaage e a zosui . Por isso, todos concordaram em

preparar dois pratos para o sashimi: o primeiro servido no começo da refeição e o

segundo no fim, mas desta vez com o fígado. Assim, mesmo que alguém

morresse, não haveria remorsos. Uma ideia que só podia vir de verdadeiros

glutões...

— Champanhe! — gritou a minha mãe, completamente bêbeda, ao que se

seguiu um aplauso dos outros convidados.

O neoconservador levantou-se e foi lá fora buscar a famosa garrafa de Cristal

Rosé, arrefecido pela neve, mas, vá-se lá saber porquê, vinha enrolado num

jornal desportivo, como se ele o escondesse. Na primeira página do velho jornal

estava um famoso jogador de basebol a sorrir, com uma mão no ar.

O neoconservador enfiou-se atrás do balcão e começou a preparar um segundo

brinde com a minha mãe. Em cima da mesa, já estavam feitos os preparativos

para a roleta envenenada de peixe-balão. Toda a gente já estava bastante bêbeda.

Pelo canto do olho, eu ia vigiando a minha mãe e o neoconservador atrás do

balcão. Desde há alguns minutos que o seu comportamento me parecia

estranho, e com razão: a um canto, e de maneira que ninguém visse, eles

estavam a separar o champanhe que iriam beber do dos outros. Nos seus

próprios copos, vertiam o Cristal Rosé e, nos outros, um Pommery Rosé. Estava

a ser testemunha de mais uma cena desagradável. Desiludida, senti-me

maldisposta.

Entretanto, com um ar inocente, a minha mãe distribuiu os copos de

champanhe por todos.

Se olhássemos atentamente, percebia-se que o tom rosado era ligeiramente

diferente, mas, aos olhos de toda a gente já bêbeda, ninguém deu por isso. Na

verdade, nenhum dos convidados imaginava sequer que alguém pudesse fazer

uma coisa dessas.

Enquanto distribuía o champanhe amavelmente por todos, a minha mãe

chegou ao pé de mim. Contrariada, aceitei o copo. E então, ao olhar para a cor


dele, surpreendi-me. Assim que viu a minha expressão, ela dirigiu-se a mim

rapidamente, sussurrando:

— Não te rales, bebe.

Tentei devolver-lhe o copo, mas ela já se sentara no seu lugar. Nessa altura, o

neoconservador, organizador do banquete, fez um brinde de despedida na

brincadeira:

— Nada melhor do que comer peixe-balão para partir em beleza... Obrigado

por tudo, meus amigos!

E, depois de brindar, pôs uma copiosa porção de fígado em cima de uma fatia

de sashimi e enfiou-a na boca. Ao mesmo tempo que eu pensava que até não

fazia mal se morresse envenenado, ele gritou:

— Safei-me!

Que pena!, pensei, soltando um grande suspiro. Em seguida, para afastar esse

pensamento, levei aos lábios o copo de champanhe.

Tal não queria dizer que não me sentisse mal pelos outros, mas tratava-se de

uma ocasião sem precedentes. Honestamente, a curiosidade de o provar era mais

forte e decidi bebê-lo sem restringimentos. Sentindo-me culpada, e pela

primeira vez na minha vida, dei um gole do requintado champanhe Cristal

Rosé.

A cada gole, era como se um campo de flores desabrochasse dentro de mim.

Eu ainda não era capaz de imaginar com clareza como seria o Paraíso, mas, se às

suas portas me servissem nem que fosse apenas um gole deste champanhe,

certamente não quereria sair de lá.

O banquete prolongou-se, infindavelmente. Mais caldo de peixe-balão, mais

zosui com o caldo que sobrara e, voltando ao princípio, mais álcool.

Bebia-se, cantava-se... uma pândega formidável. Alguns dedicavam-se ao

karaoke, outros dormiam no chão. Com uma voz arrastada, um debatia o estado

do mundo enquanto outro via a previsão meteorológica na televisão. Cada um

saboreava o fim do banquete à sua maneira.

Sozinha atrás do balcão do bar, limpei tudo. Era incapaz de deixar os pratos

sujos.
A minha mãe, que tinha bebido mais de metade da garrafa de Cristal Rosé

sozinha, estava prostrada sobre o ombro do neoconservador. Refastelados um ao

lado do outro, pareciam um sorvete meio derretido de dois sabores.

Para não os ver aos apalpões, concentrei-me na louça suja. Desde pequena, fui

testemunha diária deste género de espetáculo, mas, tivesse eu que idade fosse,

não era capaz de me habituar.

Foi então que ouvi as palavras melosas que o neoconservador soprou ao ouvido

da minha mãe:

— Então, Ruriko... Diz que sim, nem que seja só uma vez. Dei-te a comer

um peixe-balão delicioso, não dei? E o Cristal Rosé também era bom, não era?

E ia apalpando o rabo da minha mãe.

— Nãooo... — respondeu ela numa voz sedutora.

— Qual é o problema? Isso não se estraga com o uso... Não será por o fazeres

uma vez na vida que serás castigada... Hás de arrepender-te se morreres sem

teres conhecido o meu corpo!

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A princípio, pensei que estivessem a fingir que contracenavam num manzai .

Quero dizer, o neoconservador era chamado abertamente amante da minha mãe

desde que eu era criança. Com todo o dinheiro que lhe dera, era o indivíduo que

tinha subido à condição incontestável de seu amante. Era muito difícil acreditar

que eles nunca tivessem passado à prática.

Pasmada, quase me esquecera da louça suja quando o neoconservador me

interpelou bruscamente, fixando o olhar em mim:

— Olha lá!

Como fiz tenção de o ignorar, ele levantou ainda mais a voz.

— És a filha dela. Portanto, diz-lhe que me faça a vontade e vá para a cama

comigo, nem que seja uma única vez!

Irritada, enfrentei-o, fitando-o firmemente nos olhos. Ele deu um estalo com a

língua de forma grosseira e concluiu, insultuosamente:

— Realmente... não há nada a fazer. Teimosas que nem mulas! Tal mãe, tal

filha. Era só abrir as pernas... É por seres assim casmurra que a tua filha tem

mau carácter e já nem fala!


Entretanto, um dos clientes habituais do bar, que até esse momento se

esganiçava a cantar «Amagigoe», juntou-se à conversa e gritou para o

microfone com uma voz que ecoava:

— A patroa pode parecer que não, mas é pura... Isso não é algo bom? A

Ruriko diz que quer manter a virgindade, o que, atualmente, faz dela uma

espécie em vias de extinção. Quando vemos as raparigas da geração mais nova a

fazerem isso logo na primeira vez que estão com um tipo que nem conheciam

cinco minutos antes...

E, no seu fato de empregado de escritório, talvez orgulhoso do que dissera,

ficou ali plantado de microfone na mão, mesmo depois de a música ter acabado.

Mas de que raio estavam eles a falar?

A minha mente estava em branco.

A minha mãe é virgem...? Então, isso quer dizer que eu não sou filha dela?

Desde há tempos que eu desconfiava disso.

De facto, tínhamos muito poucas coisas em comum. Ou seja, tal como

esperava, Ruriko podia não ser a minha mãe verdadeira. Algures neste planeta,

eu tinha uma mãe benevolente e gentil à minha procura até agora... Uma réstia

de esperança inflamou o meu peito.

No entanto, esse sonho ingénuo durou pouco.

Subitamente, a minha mãe levantou a cabeça, com a cara tão rosada como o

Cristal Rosé, e, olhando diretamente para mim, atirou-me:

— Tu foste concebida sem pecado!

Estava completamente bêbeda. Tinha o hábito de mentir quando se

embebedava, não era uma novidade. Fora assim que conseguira enganar muitos

homens.

Eu continuava imóvel atrás do balcão, esquecendo-me até de fechar a torneira,

quando o cliente habitual que entrara na conversa há momentos voltou a

intrometer-se. E, mais uma vez, a sua voz ribombou:

— Ora essa, Ringo, não me digas que não sabias?

Estava de olhos arregalados. Mas quem estava estupefacta era eu, e fiquei com

vontade de dar um pontapé no balcão com toda a força.


Porém, a minha mãe, mesmo estando bêbeda, mas com um ar muito sério,

voltou a falar.

O neoconservador já dormia, ressonando como Hermès.

— Tu és um bebé-pistola de água...

Um bebé-pistola de água...

Não conseguia pensar; era como se tivesse gesso na minha cabeça. Então, o

cliente habitual murmurou, atrapalhado:

— E, no entanto, é uma história célebre por aqui...

Depois pousou o microfone, veio sentar-se à minha frente e explicou-me tudo

pormenorizadamente.

Tudo o que ele contou era novidade para mim e eu nem sabia se deveria

duvidar das suas palavras. Resumindo, passara-se o seguinte:

Quando andava no liceu, a minha mãe tinha um namorado que era um ano

mais velho do que ela. Amavam-se e queriam casar-se. De comum acordo,

decidiram manter uma relação platónica até a minha mãe terminar o liceu, e

assim fizeram. O noivo era um aluno brilhante e prosseguiu os estudos numa

faculdade de medicina em Kansai. Por conseguinte, durante algum tempo, o

relacionamento resumiu-se à troca de cartas. Como queria ir ter com ele, a

minha mãe estudou com afinco. E, notavelmente, entrou para uma universidade

em Quioto. Contudo, quando foi ao apartamento para o qual enviara as cartas,

ele já se tinha mudado. E, desde aí, nunca mais se tinham visto.

Neste ponto da narrativa, pensei que talvez fosse por isso que eu chamava a

minha mãe à maneira de Kansai. Mas a história ainda não tinha acabado.

Desde essa altura, a minha mãe tornara-se desesperada. Por isso, para tentar

esquecer o noivo, pensou em engravidar. Ia desistir dele por completo para

começar a viver a sua própria vida. Mas, como nunca tinha imaginado oferecer a

sua virgindade a outro, decidiu que não importava quem fosse. Todavia, quando

chegou a hora da verdade, sem conseguir esquecer os sentimentos que tinha por

ele, pensou na possibilidade de engravidar continuando virgem, e foi então que

teve a ideia de usar uma pistola de água.

— Antigamente, ainda não havia bancos de esperma e essas coisas... —


interrompeu ela, e o cliente que relatava os factos com um ar muito sério

respondeu:

— Pois não. Até mesmo agora os bancos de esperma não são bem aceites no

Japão.

A minha mãe confirmou, ela própria, gesticulando, que escolheu o parceiro ao

acaso, num encontro noturno. Encheu a pistola de água com o esperma dele,

inseriu-a dentro de si e pronto, estava feito! O cliente explicou o processo

fazendo gestos.

— Como ele tinha uma aliança no dedo anular da mão esquerda, quase de

certeza que era casado. Por isso, eu disse para comigo que aquela criança era

fruto de adultério e foi por isso que te chamei Rinko. Nada mau, hem?

Completamente embriagada, a minha mãe procurou a confirmação do cliente

que estava vidrado na previsão meteorológica da televisão.

— A Ruriko tem um coração devoto. Até agora, ainda tem sentimentos pelo

seu primeiro amor — respondeu ele, sem tirar os olhos do ecrã.

Apesar de ser inverno, uma tempestade parecida com um tufão aproximava-

se. A minha mãe levantou-se da cadeira bruscamente e declarou, erguendo um

braço como a Estátua da Liberdade em Nova Iorque:

— Pois é, hei de ficar virgem o resto da minha vida.

Depois, deixou-se cair em cima do balcão e adormeceu imediatamente,

ressonando.

Dentro da minha cabeça, incontáveis boomerangs voavam em todas as direções.

Se tudo aquilo fosse verdade, era um grande acontecimento. Nunca tinha

ouvido que era possível engravidar com uma pistola de água cheia de esperma,

mas se isso era mesmo verdade eu era certamente a primeira bebé no mundo

concebida dessa forma.

Com o rosto contra o balcão, a minha mãe não parava de balbuciar enquanto

dormia.

Um silêncio profundo envolveu subitamente o bar.

Já tinha passado bem da hora de o velho mocho anunciar a meia-noite.

Alguns pagavam a conta enquanto outros dormiam como uma pedra, deitados
no chão. Para não os acordar, eu continuei a limpar.

Sempre fui muito ingénua, acreditando logo no que me diziam. Por isso,

tinha as minhas dúvidas e perguntava-me se eles não estariam feitos uns com os

outros, tentando enganar-me.

Por outro lado, pensava que talvez não fosse o caso.

Honestamente, sabia, algures no meu coração, que as pessoas que ali estavam

eram sérias e sensíveis.

Nessa noite, descobri uma outra Ruriko que se movia num mundo que me era

desconhecido. E essa Ruriko, em contraste com a mãe que eu conhecia, exalava

um perfume um pouco mais doce.

No entanto, a quietude do bar não durou por muito mais tempo.

Enquanto repetia na minha cabeça a história de amor da minha mãe, que

acabara de ouvir, repentinamente, o neoconservador levantou-se e disse:

— Tenho de ir mijar.

E, abrindo a porta, saiu.

Mas o bar tem uma casa de banho. Que necessidade tens de ir lá fora? Além disso,

esvaziar a bexiga em propriedade alheia!...

Ainda me sentia contrariada quando ele voltou, com as costas curvadas por

causa do frio e a puxar energicamente pelo fecho das calças, que tinha ficado

preso. Depois virou-se para mim e disse-me secamente:

— Tu deitaste fora a grinalda de flores que comprei de propósito para a

celebração da abertura do teu restaurante, não foi?

Bolas! No dia de abertura do restaurante, o neoconservador oferecera-me uma

grande grinalda de flores, mas, como parecia mais apropriada para um pachinko

sem graça, eu guardara-a nas traseiras do bar, onde ainda continuava. Era de tal

maneira grande, que não tive coragem de a deitar fora e, entretanto, esquecera-

me completamente dela.

— Desprezaste a minha cortesia — concluiu ele, como se cuspisse as palavras.

E prosseguiu: — Olha, prepara-me lá alguma coisa que estou com fome.

Como se lhe fosse preparar alguma coisa!

Sou uma pessoa íntegra e só cozinho para pessoas de quem gosto.


Ao fazer ouvidos de mouca, ele começou a fumar de propósito para cima da

minha cara e, de uma forma ordinária, acrescentou num tom ainda mais

desagradável:

— Ah... Não cozinhas para gajos de quem não gostas, não é? Mas quem achas

que és? E ainda dizes que és a chef d’A Caracoleta? Só podes estar a brincar

comigo. Se escolhes os teus clientes, não és uma profissional. O teu jogo de faz

de conta presunçoso é um espetáculo de merda. Vá... não fiques aí parada... já te

disse que tenho fome. Faz-me alguma coisa.

Quando acabou de falar, tinha nos cantos da boca duas bolhas de espuma,

parecidas a ovos de louva-a-deus.

O meu restaurante não se chama A Caracoleta. Chama-se A Cantina dos Caracóis.

Era isto que eu queria responder-lhe. Além disso, eu já passei por muitas

dificuldades. Mas não me lembro de alguma vez me terem chamado espetáculo

de merda. E, no que toca ao amor que sinto pela comida, estou confiante de que

não perco contra nenhum cozinheiro famoso. Ele tinha-me insultado

grosseiramente e, se tivesse uma faca de cozinha na mão, tê-lo-ia retalhado.

Além de que esses insultos não me afetavam só a mim, mas também aos deuses

da cozinha que me protegiam.

Em vez de vociferar, abri com brusquidão o frigorífico do bar. Infelizmente,

havia apenas um resto de sopa de miso com dashi pré-cozinhada. Ou seja, não

restavam ingredientes que pudesse usar.

Sendo inverno, eu também só guardava na cozinha do restaurante o

estritamente necessário. Mas não ia recuar perante o neoconservador e,

enchendo-me de sangue-frio, dirigi-me apressadamente até ao restaurante. Não

estava com esperanças de encontrar alguma coisa no frigorífico, mas, para não

perder a face, não tinha outra hipótese.

Abri a porta do restaurante e inspecionei todos os armários ao meu alcance.

Mas, tal como previa, não havia nem um ingrediente que pudesse usar. Até o

fiel jarro de nukado estava vazio. E ainda era demasiado cedo para comer o

kimchi de couve-chinesa que tinha posto a marinar alguns dias antes. Até o

supermercado Yorozuya estava fechado àquelas horas da noite. E,


evidentemente, na aldeia não havia lojas de conveniência abertas vinte e quatro

horas por dia.

Estava tramada. Foi então que, decidida a pedir desculpas ao neoconservador,

abri a gaveta na qual guardava as canetas e, de súbito, apercebi-me de que havia

no fundo qualquer coisa acastanhada, enfiada ali às três pancadas.

Enquanto me questionava o que seria, peguei naquilo e percebi que era

katsuobushi, um pedaço de bonito razoavelmente ressequido de que eu andava à

procura há já algum tempo. Estava guardado na gaveta de cima, mas devia ter

caído na de baixo. E, nesse instante, uma ideia atravessou-me o espírito,

crepitante como um raio.

Na panela de arroz do bar, ainda devia haver arroz branco que não fora usado

antes para o zosui. Ora, com aquele katsuobushi, eu podia fazer um dashi de

excelência. Ia preparar um simples ochazuke com o dashi e o arroz. Pus-me a

cortar o katsuobushi em bocados mais pequenos e, por um golpe de sorte,

enquanto procurava, também encontrei algas kombu numa gaveta.

Peguei com as duas mãos numa saladeira com o katsuobushi e as algas e voltei

em passo de corrida para o bar, onde enchi uma caçarola com água. O

neoconservador, com a cara corada pelo álcool, ia observando todos os meus

movimentos.

E, com uma voz áspera, disse, como se cuspisse para um escarrador:

— Ouve lá, menina... eu já fui a quase todos os melhores restaurantes do

mundo... Estás a falar com um homem que já foi até à Tanzânia só para comer

um guisado de hipopótamo... Por isso, prepara-te. Se estiver mau, digo logo. E

não vale a pena chorar, porque será apenas a verdade.

Sinceramente, eu estava com tanto medo que as minhas pernas tremiam.

Porém, fingi que o que ele me disse tinha entrado por um ouvido e saído por

outro e concentrei-me na preparação do dashi. Já tinha ouvido a história do

hipopótamo tantas vezes desde pequena, que já estava farta de a ouvir. Cada vez

que me via, vangloriava-se de a carne ter estado soberba e suculenta.

De qualquer das formas, o importante era tornar-me indiferente. Cozinhar

para ele era um trabalho tormentoso, mas esforçava-me ao máximo para não me
lembrar disso, visto que o sentimento de aversão seguramente se iria refletir nos

sabores. Resumindo, esvaziei tanto o meu coração como a minha cabeça, porque

ao irritar-me ou ao ficar triste, esses sentimentos iriam influenciar o gosto da

comida ou o empratamento. Quando se cozinha, devemos sempre imaginar

coisas agradáveis, ficando de pé, calma e alegremente. Palavras que a minha avó

dizia frequentemente. Respirei fundo mais uma vez e acalmei-me.

Calculei o timing certo e tirei as algas da caçarola. Após suster a respiração por

um momento, adicionei bastante katsuobushi acabado de lascar. Quando o aroma

do bonito veio ao de cima, desliguei o lume e coei o líquido no escorredor. Até

ali, tudo saíra bem, como era habitual. Apenas faltava aprimorar o sabor com

sal.

Foi então que reparei que não era capaz de saborear nada. Talvez fosse porque

tivesse comido muito e, além disso, bebido muito álcool. Normalmente, sabia

logo se a comida tinha sal suficiente, mas naquele momento vi-me incapaz de

determinar se estava no ponto certo. Por mais que colocasse sal, tinha a

impressão de não ser suficiente, mas, ao mesmo tempo, parecia que já estava

bastante condimentado. Era como se vagueasse às apalpadelas por uma

montanha envolta em nevoeiro.

Bem à minha frente, o neoconservador esperava enquanto batia

impacientemente com o pé. Se continuar assim confusa, vai acabar por me

subestimar. Confiei novamente no meu palato e acrescentei somente mais uma

pitada de sal para finalizar. Depois servi o arroz na tigela que aquecera

antecipadamente e terminei espalhando por cima o dashi acabado de fazer.

Como tinha sobrado um pouco de alho-francês em cima da tábua, acrescentei-o

também.

Pousei a tigela diante do neoconservador, juntamente com um par de

pauzinhos de madeira. Como se tivesse escrito em grandes letras na minha cara

«faça bom proveito», fitei os seus olhos. Devia estar bêbeda, porque me sentia

mais desinibida do que o costume.

Se fosse n’A Cantina dos Caracóis, poderia fingir que me recolhia na cozinha,

espreitando a sua reação com o meu espelho. Contudo, no bar Amor, as coisas
não seriam à minha maneira. Sem ter para aonde fugir, não tinha hipótese senão

ficar plantada atrás do balcão.

A menos de um metro, ele mergulhou os seus pauzinhos no ochazuke. Nervosa

e sem alternativa, fechei os olhos e esperei pelo veredito. Só tinha a certeza de

que o prato cheirava bem.

O som dele a devorar o ochazuke ecoava por todo o bar. Era como se toda a

ansiedade da minha vida estivesse concentrada naquele momento. Por fim, os

barulhos de mastigação terminaram e o neoconservador colocou com estrépito

os pauzinhos na tigela.

O meu peito vibrava agitadamente.

Ao abrir os olhos devagar, avistei a tigela completamente vazia, como se a

tivessem lavado com água quente.

— Estava bom. Obrigado.

Apreensiva, olhei para a sua cara; não sei porquê, mas ele tinha os olhos

vermelhos e cheios de lágrimas.

Por mais barbaridades ou comentários inoportunos que dissesse, ele não era

pessoa de elogiar só por elogiar.

Uma série de emoções confusas subiram-me à garganta. Desorientada,

precipitei-me para a casa de banho. Não era capaz de chorar à sua frente.

Limpei os olhos com a ponta do meu avental, acalmei-me e, ao sair da casa de

banho, ele já se tinha ido embora. Por debaixo da tigela, deixara dez mil ienes

da conta e mais uma nota de dez mil ienes. E era evidente que não fora por

lapso, porque as duas notas estavam dispostas em leque.

Lá fora, no caminho cheio de neve vagamente tingido de azul pelo luar,

estendia-se o rasto dos pequenos cascos do cavalo, à mesma distância uns dos

outros. A minha mãe, que fora deixada sozinha no bar, tossia intensamente.

Pousei-lhe o seu casaco de pelo sobre os ombros.

O cheiro do seu perfume pairava levemente no ar.

Esse cheiro que eu sempre odiara parecia-me agora um pouco menos

desagradável. Num sono profundo, o perfil dela parecia mais magro do que o

habitual. Podia ser imaginação minha, mas ela estava com má cor.
Tinha sido um dia muito preenchido.

— Obrigada — murmurou ela numa voz sonolenta, como se falasse enquanto

dormia, no preciso momento em que eu saía do bar.

Não sabia a quem tinham sido dirigidas essas palavras, mas a sua voz era

como um véu fino e macio que tivesse sido pousado gentilmente sobre os meus

ombros.

O segundo agradecimento da noite.

Definitivamente, parecia que o inverno tinha regressado. Lá fora, a neve caía

sem parar. O vento soprava violentamente, qual bruxa enfurecida de ciúmes. A

minha cara ardia, como se me tivessem impregnado pimenta em pó na pele.

A minha respiração era levada para longe ao sabor do vento, como se

perseguisse o neoconservador a toda a velocidade.

Se o gelo continuasse a derreter pouco a pouco, com a vinda da primavera

veríamos belas flores. Ao desabrochar, espalhariam um doce aroma pela

atmosfera e todos sorririam.

Era assim que eu via a minha relação com a minha mãe e o neoconservador.

Contudo, a realidade é como uma lâmina fria de uma guilhotina pressionada

contra o meu pescoço. Impiedosamente, corta os fios da minha esperança.

Não estava num dos meus melhores dias.

Logo no primeiro trabalho do dia, queimei o pão de Hermès e, depois, a meio

do caminho para o restaurante, pisei acidentalmente um casal de borboletas que

hibernava no meio da neve. Tanto num caso como no outro, não fizera de

propósito, mas a manhã tinha começado com um rosário de suspiros pesados.

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E à tarde, enquanto fazia os preparativos para a acqua pazza de rodovalho,

encomendada pelos clientes da noite, não fui capaz de limpar decentemente o

peixe. Normalmente, ao enfiar os dedos nas brânquias e puxar, as entranhas

costumavam sair de uma vez como uma pregadeira, mas naquele dia ficou tudo

desfeito. Para piorar, deixei cair a valiosa garrafa de azeite virgem que tinha

mandado vir de propósito de Itália e partia-a. Ainda por cima, ao apanhar os

cacos, cortei a ponta de um dedo. Resumindo, era como se as divindades da


cozinha, a minha derradeira proteção, me tivessem abandonado.

E o melhor exemplo disso foi a confissão que a minha mãe me fez.

Pouco depois das onze da noite, voltei do restaurante para casa e, quando

tomava banho, a porta da casa de banho abriu-se de repente e a minha mãe

entrou por ali adentro, completamente nua. Fiquei petrificada. Quando vinha a

noite, ela ia trabalhar para o bar e raramente ficava em casa. Mesmo quando eu

era pequena, não me lembrava de alguma vez ter tomado banho com ela.

Atrapalhada, qual adolescente apanhada pelo pai enquanto toma banho,

dobrei os joelhos e escondi o peito com as mãos.

Sem reparar na minha reação, ela disse:

— Tenho de falar contigo. Arranjas lugar para mim?

Em seguida, encheu a bacia de água quente, deitou-a por cima de si e entrou à

força na banheira. A água transbordou logo.

Atarantada, tentei levantar-me para sair da banheira, mas ela agarrou-me

firmemente pelo ombro, num gesto que dizia para eu ficar.

— Sabes, a verdade é que...

Estava sóbria, mas começara a falar num tom muito animado, como quando

bebia.

— Voltei a ver o Shou, dos meus tempos de liceu. Encontrámo-nos por acaso.

Depois, pôs as mãos em concha dentro de água e molhou a cara.

O Shou? Do liceu?

Por mais que estivesse sempre pronta a usar o meu bloco, não o trouxera para

a casa de banho.

— Não ouviste no banquete? Aquele meu primeiro amor, com o qual prometi

casar... — explicou ela, numa voz sonhadora.

Tanto o tom de voz como a sua maneira de se exprimir eram de certa forma

diferentes do habitual.

Horrorizada, e sem me aperceber, olhei diretamente para o seu rosto. Teria

enlouquecido de vez? No entanto, como uma atriz em cena, ela prosseguiu,

olhando em frente:

— Sabes, ele não mudou nada... Claro que, uma vez que não nos vemos há
mais de trinta anos, já envelhecemos os dois, mas... mas no fundo ele não

mudou nem um bocadinho.

Olhei-a de relance e pude ver que o seu pescoço estava ligeiramente tingido

de vermelho, como um pêssego demasiado maduro.

Apanhada desprevenida, fiquei completamente baralhada. Além disso, já

tinha estado tempo suficiente dentro do banho a refletir sobre várias coisas e a

pele dos meus dedos estava engelhada.

Pensando que ela tivesse acabado, tentei saltar para fora da banheira.

Até porque podia perfeitamente ouvir aquela história fora do banho. Mas foi

nesse instante que a lâmina da guilhotina se abateu sobre mim.

Quando dei por mim, estava na cozinha, de cócoras à frente do frigorífico,

apenas com uma toalha enrolada no corpo.

Não conseguia parar de analisar e ponderar a revelação que a minha mãe

acabara de me fazer. Mesmo assim, não entendia nada. Ela tinha um cancro e só

lhe restavam alguns meses de vida, e o oncologista que a atendera tinha sido o

seu primeiro amor, Shou. E ela descrevia isso como: «Um daqueles acasos da

sorte!» A felicidade de ter reencontrado o seu primeiro amor preenchia-a muito

mais do que a preocupação com a possibilidade de morrer brevemente. Para

mim, não fazia qualquer sentido.

Era uma história de amor ainda mais fantástica do que os melodramas

televisivos que passavam depois do almoço. Eu não era capaz de acreditar que

uma coisa dessas ainda fosse possível no século xxi.

Para mim, a minha mãe era forte, determinada e com mau temperamento, o

meu adversário nas discussões. Nunca a vira chorar, nem uma única vez, e

pensava que era imortal. Era como um saco de areia que nunca rebentava por

mais pancada que eu lhe desse. Que essa forte personalidade, que fazia recuar

até as bestas, fosse vencida pela doença, e ainda para mais uma doença vulgar

com apenas duas sílabas, era uma piada de mau gosto. Eu estava convencida de

que, entre todas as pessoas, a minha mãe era irredutível.

Abri lentamente a porta do frigorífico. A luz amarelada incidiu nos meus

olhos, ardendo como um colírio.


Pensei que já tinha visto aquela marmelada meio acabada antes nalgum lado

e, na verdade, era ainda do tempo em que eu tinha deixado esta casa, há dez

anos. Reparando bem, a geleia tinha bolor que mais se parecia com neve. Ao

abrir a tampa do pacote de margarina, tal como esperava, estava repleta de um

bolor parecido com musgo esverdeado. No meio dos frascos de ketchup e

maionese, meio usados, estava o cadáver de uma barata abandonada. Tudo isso

eram vestígios da vida da minha mãe.

Então, será que a sua morte significaria que todos os sinais dela, incluindo

tudo aquilo, iriam desaparecer rapidamente deste mundo? Não era possível.

Gritando no meu íntimo, fechei a porta do frigorífico com toda a força que

tinha.

Ouvia o cantarolar da minha mãe, vindo da casa de banho.

Sem pregar olho toda a noite, vesti um blusão de penas por cima do pijama e

saí para a rua. No céu noturno gelado, via-se uma miríade de estrelas.

Sem ninguém com quem pudesse conversar, fui para ao pé de Hermès. A noite

estava sufocante, agarrando-se à minha pele viscosamente como um pepino-do-

mar. Era como se estivesse a ser engolida aos poucos, desde a ponta dos pés, pelo

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líquido de yokan gelatinoso.

Com dificuldade em respirar, corri apressadamente para junto de Hermès.

Ainda não era capaz de acreditar em nada do que a minha mãe dissera. Queria

que ela me dissesse que era tudo uma brincadeira de mau gosto.

«És mesmo tontinha!»

Esta curta frase, que ouvira tantas vezes ao ponto de ficar a odiá-la, era o que

esperava que ela dissesse mais uma vez.

Hermès estava com os olhos entreabertos. Pelos vistos, também não conseguia

dormir. Será que também sabia?

Ao aproximar-me, chegou-se a mim como um bom cão de guarda. Com os

olhinhos redondos, fixou-me, inclinando a cabeça. Ao luar, a sua silhueta era

bem mais adorável do que à luz do sol. Emocionada, agarrei-me às suas grandes

costas.
Mesmo fazendo um esforço, não se podia dizer que cheirasse bem, mas o seu

corpo era quente, e o meu nariz já se habituara àquele cheiro, como o perfume

inebriante de uma pradaria.

Ela encostou o focinho ao meu ouvido e respirou intensamente. Sem conseguir

resistir mais às cócegas, quase não consegui conter o riso.

Sei bem que somos impotentes face a certas realidades da vida. São escassas as

coisas que dependem da nossa própria vontade e, na maior parte dos casos, os

acontecimentos arrastam-nos como a corrente de um grande rio, entrelaçam-se

com a nossa vontade dentro da imensa palma da mão de uma instância superior.

A vida tem muito mais coisas más do que boas, sobretudo, a minha, mas,

mesmo assim, vivi sempre à procura de pequenas felicidades. Então, porque é

que...?

Quanto mais pensava, mais frustrada ficava. Encostei a cara ao dorso áspero de

Hermès e não consegui evitar morder com força os meus lábios ao ponto de

sangrarem.

Na manhã seguinte, pela primeira vez desde que eu voltara à minha terra

natal, Hermès teve diarreia. A sua cauda, normalmente espevitada como um

saca-rolhas, estava agora pendurada, mole como um cordel. Atrapalhada, abri as

minhas notas sobre os cuidados a ter com ela, nas quais estava escrito, na letra

elegante da minha mãe: «Em caso de diarreia, acrescentar duas ou três colheres

de sopa de pó de carvão a uma quantidade igual de ração.»

Sem demoras, pus mãos à obra. Acho que também a porca devia ter sentido

que alguma coisa se passava.

Desde então, noite após noite, na minha cama ou junto a Hermès, passei as

noites em branco. Estava estafada, mas, assim que os pensamentos começavam

às voltas na minha cabeça, perdia a vontade de dormir. Mais cedo ou mais tarde,

ficaria completamente apática.

Não tinha vontade de fazer nada.

Pensava constantemente que iria manter-me ao lado da minha mãe enquanto

ela fosse enfraquecendo, passando tanto tempo quanto possível com ela. Fazia

esse juramento a mim própria várias vezes por dia.


Porém, o restaurante continuava aberto como de costume.

Pressentia que, se parasse, nunca seria capaz de me recompor. Além disso, ver

a cara feliz de alguém era o maior consolo que podia ter.

Mas também havia coisas boas. Com a primavera, o telemóvel do senhor

Kuma recebia todos os dias pedidos de informação e reservas.

Como, por exemplo, Momo, a rapariga que no ano anterior tinha

economizado o dinheiro que ganhava em trabalhos avulso para vir ao

restaurante declarar o seu amor ao rapaz de quem gostava, regressou com ele,

dizendo-me: «Como estava muito bom...»; o agricultor e a professora, o

primeiro casal de recém-casados d’A Cantina dos Caracóis, vieram mostrar-me

as fotografias do seu casamento; a Amante trouxe o seu mais recente namorado,

um jovem; e Kozue, juntamente com a mãe e o coelhinho anoréxico, vieram

jantar, enquanto o pai dela estava numa viagem de negócios.

No início, na época em que o rumor fantasista segundo o qual «a comida d’A

Cantina dos Caracóis concretiza desejos e satisfaz os nossos amores», os clientes

vinham por curiosidade. Contudo, com o passar do tempo, depois de provarem

os meus cozinhados, diziam que regressariam porque realmente gostavam dos

sabores da minha cozinha, passando a frequentar A Cantina dos Caracóis como

um restaurante normal. E isso era uma honra para a felicidade de uma

cozinheira.

Além disso, as estações não esperavam nem um segundo.

Se não apanhássemos agora os rebentos de ruibarbo do Japão, seria preciso

esperar um ano para os comer, e os espargos selvagens que começavam a nascer

sabiam melhor crus, acabados de apanhar. Ruibarbo, salsa, arália, cavalinha,

artemísia, dente-de-leão, angélica do Japão, caules de feto... O solo que rodeava

estas montanhas na primavera estava cheio de bênçãos da natureza.

Entretanto, o estado de saúde da minha mãe não se agravara drasticamente e

ela continuava a mesma, atrás do balcão do bar com a sua roupa espalhafatosa e

carregada de maquilhagem. Sem contar o que se passava a ninguém, nunca dava

a entender o seu sofrimento. Era muito mais profissional do que eu.

Passados alguns dias desde o seu desabafo, ela apareceu no restaurante com o
seu primeiro namorado, atual noivo. Chamava-se Shouchi.

Era um médico profissional de elite, alto e elegante, com uma atitude

citadina, mas ao mesmo tempo dava ares de monge. Bastava olhar para ele, tal

como com o neoconservador, mas da maneira oposta, para se perceber que não

era o meu pai. Era bastante atraente, ao ponto de endoidecer a minha mãe até

agora. Talvez essa sensibilidade à beleza física fosse um ponto em comum entre

nós.

Servi-lhes um chá vietnamita de flores de lótus. Enquanto vertia gentilmente

a água quente, rezei para que dali desabrochasse uma flor tão bela como a de

lótus, que emerge da lama. As duas chávenas, que coloquei uma ao lado da

outra, emanavam um vapor discretamente doce.

Ao que parecia, Shouchi vivera muitos anos no estrangeiro. Como tem uma

grande diferença de idade da minha mãe, pensei que talvez ela estivesse a ser

enganada por ele. Suspeitei de que ele fosse um vigarista com o objetivo de

roubar a herança de uma mulher solitária, de meia-idade e com pouco tempo

para viver.

No entanto, era um homem sério, declarando-me com paixão o seu amor pela

minha mãe e contando-me sobre o início do romance entre os dois. No fundo,

era uma pessoa honesta. E, tal como a minha mãe, ainda era solteiro.

Desde que se separara da minha mãe, Shouchi tinha namorado com umas

quantas senhoras. Porém, nunca se resolvera a casar-se, porque, dizia ele, não

fora capaz de a esquecer. Pelo menos, como confessara que tinha tido outras

namoradas, não era obviamente virgem. Supunha que na idade deles isso já não

teria importância.

Quando acabou de falar, Shouchi endireitou-se, fitou-me e disse numa voz

segura de si:

— Por favor, deixe-me casar com a menina Ruri... quero dizer... com a

senhora Ruriko. Prometo que a farei feliz!

Depois, não sei o que lhe deu, mas ajoelhou-se repentinamente, baixando a

cabeça até ao chão.

Eu disse-lhe que parasse com aquilo e consegui fazer com que ele erguesse a
cabeça. Parecia prestes a chorar. E a minha mãe, claramente, também tinha

lágrimas nos olhos.

Que maçada!

Já andava suficientemente ocupada a processar a minha mãe estar doente e não

era capaz de pensar em mais nada. Além disso, na situação em que ela se

encontrava, não via nenhuma razão para me opor ao seu casamento.

Apressadamente, tirei o meu bloco de uma gaveta e, em letras grandes,

escrevi o mais legível possível:

Tem a minha bênção.

Nesse instante, estranhamente, também me vieram lágrimas aos olhos.

Seria assim que o pai de uma noiva se sente ao dar a mão da sua filha?

E fizemos os três um grande esforço por conter as lágrimas.

Depois, passou-se tudo muito depressa; a minha mãe, a futura noiva, avançou

imediatamente com os preparativos.

Em cima da mesa da sala de estar, estavam sempre abertos e empilhados, uns

em cima dos outros, catálogos de vestidos de casamento e produtos de luxo para

oferecer. Manifestamente, a minha mãe estava feliz.

Shouchi, muitas vezes preso ao seu exaustivo trabalho no hospital, vinha vê-la

sempre que podia.

Trazia-lhe analgésicos de medicina chinesa para lhe aliviar as dores, fazia-lhe

massagens, ouvia as suas queixas e, quando eu estava ocupada, limpava a

cozinha e punha o arroz a cozer. Às vezes, sentava-se no bar e bebia licor de

batata-doce com água quente, enquanto presenteava os clientes habituais com

pequenas sardinhas grelhadas.

Nesses dias, quando eu acabava o trabalho mais cedo no restaurante, também

ajudava no bar como assistente de balcão. Abertamente, a minha mãe

apresentou a todos Shouchi como seu noivo e toda a gente os felicitava

calorosamente, com palavras toscas de camponeses. Até ao casamento, não

queriam viver juntos e nunca dormiram um com o outro. Ambos perto dos

cinquenta anos, continuavam a insistir na sua relação platónica. Se calhar, a


minha mãe ainda era mesmo virgem. Com o passar do tempo, comecei a

acreditar realmente nisso.

E então, certo dia, por causa de uma reserva que tinha sido cancelada no dia

anterior, o restaurante estava fechado. Sem querer, dormi até mais tarde e, ao

acabar de cozer o pão de Hermès, como tinha tempo, fui tomar banho

tranquilamente. Quando dei por mim, a minha mãe estava do lado de lá da

porta envidraçada da banheira.

Ultimamente, tinha emagrecido bastante. A sua silhueta desvanecida era fina

como um galho de árvore desprovido de folhas no inverno. Parecia que o seu

corpo se partiria só de lhe tocar, e eu ficava preocupada quando o vento soprava

mais forte.

Como Shouchi era especializado em cuidados paliativos, ela recusou-se a fazer

operações, quimioterapia e radioterapia, e só tomava remédios naturais. Por

mais forte que a minha mãe fosse, a doença ia-lhe corroendo o corpo pouco a

pouco.

Então, ela disse numa voz enfraquecida:

— Desculpa, queria falar contigo...

Ao que parecia, até lhe custava estar de pé, pelo que se acocorou junto à porta

envidraçada.

— A verdade é que queria pedir-te para tratares do copo-d’água do meu

casamento.

Seria no princípio de maio, na capela do hospital em que Shouchi trabalhava.

Depois, estava previsto convidarem vários amigos e conhecidos e fazer uma boa

refeição numa quinta das redondezas.

Ou seja, estava à espera de que eu fizesse comida para toda a gente, era isso?

Pensando bem, nunca tinha cozinhado para a minha mãe. E, como sentia que

queria fazer por ela tudo o que estivesse ao meu alcance, concordei de boa

vontade. Em seguida, ela continuou:

— Pensei em comer a Hermès para a ocasião. Ela será mais feliz assim. Quando

eu desaparecer, há de sofrer. Portanto, podes ficar descansada, que é a última vez

que te peço qualquer coisa...


E, de facto, foi a única prova de amor filial que lhe pude oferecer.

Num dos primeiros dias de primavera, com a ajuda do senhor Kuma, coloquei

uma coleira de cão e uma corda ao pescoço de Hermès e tirei-a da pocilga.

Estava muito bom tempo, o sol parecia sorrir no céu azul, os passarinhos

batiam as asas em direção às nuvens brancas, e, no entanto, eu tinha de fazer

algo terrivelmente triste.

Dos telhados das casas, as últimas estalactites do inverno, pendendo

molemente como peitos descaídos de uma velha, deixavam cair as suas gotas,

orquestrando um novo ritmo.

Desde há uns dias que eu não conseguia dormir.

Cada vez que ouvia o som dos passos de Hermès, que sentia o seu cheiro, que

amassava o pão de que ela tanto gostava, a cara bem redonda e quase sorridente

daquela que se tornara quase minha irmã impunha-se no meu espírito.

Sem dúvida, a minha mãe sentia o mesmo.

Quando disse que a queria comer, ela ainda dizia piadas como «Eu é que lhe

faço a folha», ou «Tenho a certeza de que o sangue deve cheirar a rosas, uma vez

que ela é uma parte de mim». Porém, à medida que o momento de passar à

ação se aproximava, a minha mãe foi perdendo o entusiasmo e também o

apetite.

Tens a certeza?

Por várias vezes, escrevi esta pergunta no meu bloco, para me assegurar.

Todavia, ela apenas se limitava a responder com uma voz enfraquecida de

velhinha: «Faz-me esse favor, peço-te.»

No fim, sem chamar o fotógrafo profissional para tirar uma foto dos dois após

todos adormecerem, como planeara inicialmente na véspera, a minha mãe foi

visitar Hermès sozinha. Aproximando-se dela, deu-lhe um beijo na bochecha e,

colocando firmemente os seus braços à volta do dorso imponente, abraçou-a,

deu-lhe o seu pão de nozes preferido e, enquanto ela comia extasiada, regressou
a casa.

Eu observei-a a fazer tudo isso desde a pequena janela do meu quarto. Depois,

desde esta manhã, não voltou a levantar-se da cama. Esse acabou por ser o

último momento que passou com a sua porca.

Pelo caminho estreito da montanha, onde as plantas começavam a despertar os

seus botões, Hermès, que seguia meio desnorteada e devagarinho, tinha os olhos

murchos e enfiados nas órbitas. Dir-se-ia que sorria, ou então que se debatia

com uma enorme vontade de chorar, fingindo que sorria.

Eu já não sabia se o que estava prestes a fazer era a coisa certa ou errada.

Quando quase alcançava alguma resposta, ela facilmente se escapulia por entre

os meus dedos.

Quão bom seria que este caminho montanhoso e estreito continuasse

infinitamente como umas escadas em caracol!

Quão bom seria se tudo acabasse assim, a passear descontraidamente com

Hermès debaixo deste agradável céu de primavera. Chegaríamos a casa e eu

gritaria «Somos nós!», e a minha mãe viria receber-nos com um sorriso, sem

qualquer vestígio de doença no corpo.

Porém, chegámos ao nosso destino final num piscar de olhos.

Tratava-se de uma quinta abandonada pertencente a um criador de gado, que

era um antigo colega de escola do senhor Kuma, o seu melhor amigo e parceiro

da pândega. Agora, a família dele dedicava-se sobretudo à criação de vacas

leiteiras, vendendo leite e iogurte. Mas antes a atividade era bastante mais

diversificada, nomeadamente com a criação de porcos. Hoje em dia, tirando

algumas exceções, era proibido abater animais fora do matadouro. Todavia,

como este homem ajudava o seu avô a matar os porcos desde criança, tinha uma

larga experiência nisso e, algumas vezes por ano, a pedido dos vizinhos,

encarregava-se de abater um porco à socapa, sem o encaminhar para o

matadouro.

Hermès sabia. Quero dizer, intuía. O seu próprio destino, mas também a

doença da minha mãe, as desavenças entre nós as duas e todos os sentimentos

contraditórios, impossíveis de enunciar, que agitavam o meu coração.


Agachei-me e olhei diretamente para os olhos dela. A sua cara não se parecia

tanto com a de uma velha; era mais o semblante sábio e pensativo de um velho.

As suas pestanas brancas brilhavam à luz do sol que ia alto no céu. As suas

longas sobrancelhas lembravam as de um eremita.

Nervosa, estiquei os meus dedos hirtos e acariciei-lhe a bochecha. Ela ficou

com uma expressão ainda mais doce, abrindo a boca como quem sorria e, por

fim, fechou os olhos silenciosamente.

Obrigada. O nosso tempo foi curto, mas fiquei feliz por poder passá-lo contigo —

transmiti-lhe numa voz clara, levantando-me novamente e afastando-me do

local.

Será que ela recebeu a minha mensagem de despedida?

Ao caminhar em direção ao senhor Kuma e aos outros que estavam à minha

espera, fui apanhada por dois homens.

— Menina Ringo, já posso? Posso mesmo? Olhe que este vai mesmo ser o seu

fim... — disse-me cuidadosamente o senhor Kuma.

Contudo, sem lhe responder, não... na verdade, não fui capaz de lhe dizer

nada. Apenas baixei tanto a cabeça que quase tocava no chão. Junto às minhas

pernas rastejavam insetos e, ao olhar para cima, o sol ardia como uma bola de

fogo.

Rezei uma última vez.

Por favor, que Hermès sofra o menos possível.

Que ela termine a sua vida de porco sem sofrimento.

Não podia fazer mais nada senão rezar.

— Um, dois...! — Hermès foi virada ao contrário, e ataram-lhe as patas com

uma corda. Em seguida, passando-lhe um tronco pelo meio das patas,

transportaram-na aos ombros. Como era de esperar, Hermès, que se mantinha

calma até há pouco, começou a chorar num pranto como se os seus sentidos

tivessem despertado.

O seu choro soava desesperado como se pedisse ajuda à sua mãe, como um

recém-nascido.

Fechei os olhos, mas, sem tapar os ouvidos, enfrentei a situação de corpo e


alma. À frente dos meus olhos, ela era levada pelos dois homens.

O corpo de Hermès, todo ele levemente lavado com água, foi pendurado no

tronco de uma robusta árvore da propriedade. No entanto, ainda estava viva

com o seu corpo pendurado. O choro violento que continuara até agora, parara,

talvez de cansaço. Apenas a sua respiração intensa chegava aos meus ouvidos.

Abri os olhos e caminhei lentamente até ela. A cada respiração o seu corpo

enchia-se como um balão. Debaixo dela estava um balde. Estava tudo pronto.

Desta vez, a responsável pela sua destruição era eu. E, por isso, tinha a

obrigação de cortar a artéria carótida.

O amigo do senhor Kuma dá-me uma faca que trouxe do celeiro. Como se me

dissesse «Corta aqui!», indicou-me o sítio da artéria com o seu dedo.

De uma só vez, perfurei-a com a faca. O sangue, como fogo de artifício,

espalhou-se pelos ares, criando um padrão rendado na dura bochecha do senhor

Kuma.

Hermès não sofreu.

Ou antes, claro que sofreu, mas não o mostrou.

Tanto o senhor Kuma como o seu amigo não paravam de dizer:

— Que belo porco!

Nos seus olhos, semelhantes a passas, julguei ver lágrimas. Era insuportável.

Hermès parou de se debater e morreu.

Passado um pouco, o sangue que lhe irrigava o corpo encheu o balde por

completo. Era constantemente mexido com uma vara, criando bolhas na

superfície, para evitar que coalhasse, pois era necessário para fazer enchidos.

Eu não queria desperdiçar nem uma gota do seu sangue.

Estou convencida de que todos os alimentos são seres vivos, quer se trate da

casca de bardana, de rebentos de soja ou de sementes de melancia, e tenho

sempre muito cuidado para não desperdiçar nada. No caso de Hermès, esse

sentimento era mais forte do que nunca. Em Okinawa, diz-se que se come tudo

do porco, exceto os seus grunhidos. Quanto a mim, decidi cozinhar tudo exceto

os olhos e as unhas.

Quando o sangue acabou de escorrer, desamarrámos Hermès da árvore e


mergulhámo-la num tanque de plástico com água quente, a mais ou menos

cinquenta graus, antes de rasparmos os pelos com colheres e pedras afiadas.

Depois queimámos a pele com um maçarico, deixando-a estaladiça. Então,

terminados estes preparativos, chegou o momento de cortar a carne.

O senhor Kuma, juntamente com o amigo, esticou as patas traseiras de

Hermès, imobilizando-as com um tronco, e voltaram a pendurá-la no mesmo

ramo de árvore. Atualmente, existem instrumentos especializados e mais

modernos para este tipo de trabalho, mas o corte pode muito bem ser feito com

os utensílios que tínhamos à mão. Isto consistia em cortar a traqueia com uma

grande lâmina que se assemelhava a um serrote, separando a cabeça do tronco, e

depois abrir o ventre ao meio, de cima a baixo, para o esventrar.

Originalmente, seria eu que devia fazer este trabalho, enquanto responsável.

Todavia, como era uma tarefa pesada, o amigo do senhor Kuma ajudou-me,

segurando na faca em conjunto comigo. Para não danificar as vísceras, íamos

cortando Hermès atenta e cuidadosamente.

Assim que fizemos o primeiro corte, os órgãos saltaram cá para fora. No

entanto, estando ainda agarrados ao interior do ventre, não caíram no chão.

Então, calcei umas luvas cirúrgicas e, enfiando as mãos no interior, removi as

vísceras. O ventre de Hermès, viscoso e macio, ainda estava quente.

No chão, estava o tanque que tínhamos usado para tirar os pelos. Os órgãos de

cores vivas caíram ruidosamente, uns atrás dos outros, sobre o plástico azul.

Ainda palpitantes, brilhavam à luz do sol. Como se fossem os filhos que Hermès

teria tido, iam caindo um a um.

O coração era bastante pequeno em comparação com o seu corpo imponente.

Quando o pus na balança, pesava apenas trezentos gramas. O fígado era macio.

Os rins, minúsculos como feijões. O estômago, duro. O intestino delgado

media aproximadamente dois metros. E depois o intestino grosso.

O amigo do senhor Kuma ensinou-me o nome de cada órgão enquanto

apontava para eles.

No fim, apareceu o útero que Hermès nunca tivera ocasião de usar. As porcas

possuem um útero bicorne, com o formato de botões de uma planta a emergir


do solo. Chamamos-lhe kobukuro. Desta vez, foi o senhor Kuma que me ensinou

o termo, escrevendo-o em grandes caracteres no chão com um pau.

Agora, Hermès ia ser cortada em duas metades no sentido longitudinal e a

carcaça seria desmanchada com uma espécie de uma motosserra, um trabalho

que exigia força e que eu decidi deixar para os dois homens.

Pousei os intestinos virados do avesso na bancada e estava prestes a começar a

lavá-los quando me trouxeram a cabeça de Hermès.

Ainda tinha os olhos ligeiramente abertos. As orelhas estavam flácidas, o

focinho ainda húmido. Era a cara de Hermès, que, instantes antes, ainda se

mexia. Não sei se sofrera quando tinha sido morta, mas o contorno dos olhos

estava molhado.

Desculpa. Mas, como já não há volta a dar, vou fazer o melhor prato de carne de porco

do mundo.

Era a única maneira à minha disposição para me assegurar de que a alma de

Hermès descansava em paz.

Decidida, enfiei a mão dentro da sua boca e cortei a língua. Depois também

me trouxeram as suas curtas quatro patas.

Depois de lavar bem a bexiga, enchia-a de ar como um balão e pendurei-a no

tronco de uma árvore. Usá-la-ia depois, para fazer os enchidos.

Os homens continuavam a desmanchar a carcaça. Costeletas, entrecosto,

lombo, presunto, pá, tudo era cortado e posto em sacos, colocados depois à

sombra das árvores. Uma vez que a pele gelatinosa serviria para os enchidos,

trouxeram-ma inteira, já separada da carcaça.

Normalmente, os enchidos são preparados com carne picada, à qual se

acrescenta sal, especiarias e ovos, enchendo então os intestinos, mas essa

operação podia ser feita depois de eu regressar ao restaurante. No entanto, o

chouriço de sangue fica com melhor sabor quando é preparado com a fressura

fresca e, por isso, comecei por aí.

Piquei o coração e os rins aos bocadinhos, salpiquei-os com sal e misturei-os

ao sangue que vertera para o balde. Tinha decidido usar o «sal da lua cheia».

Trata-se de um sal natural recolhido em noites de lua cheia nas costas perto
daqui, produzido segundo as técnicas antigas, e ao qual se atribui uma energia

vital especial. E eu queria presentear o corpo da minha mãe com este sal.

Depois juntei a pele cortada aos pedacinhos, misturei a banha com um pouco

da pá que os homens tinham cortado e enchi o estômago lavado. Agora, só

faltava fumá-lo, deixá-lo descansar, e o chouriço de sangue ficaria pronto.

Em seguida, despedindo-me uma última vez da cara de Hermès, coloquei a

cabeça no centro da bancada e cortei-lhe as duas orelhas. Planeava usá-las para

uma salada de orelha de porco. Depois fendi a cabeça em duas partes iguais.

Rangendo, a lâmina da faca de cozinha cortou o focinho. O cérebro, bem mais

pequeno do que eu pensava, estava envolvido numa leve luz, como uma pérola.

Uma das metades seria para fazer um estufado quando eu voltasse para o

restaurante, enquanto a outra, bem picadinha, serviria para rechear a bexiga e

confecionar um salsichão.

Pus os meus sentimentos de lado e desfiz a cabeça de Hermès.

Inseri a faca com o máximo de suavidade, tratando a carne delicadamente e

com amor, mesmo os bocados mais pequenos.

Claro que Hermès já não era Hermès. Já não guinchava, comia ou pedia mimos.

Mas eu acreditava que ela não morrera.

Enquanto picava a carne, o meu peito encheu-se dessa certeza.

Sim, mesmo nos pedacinhos com apenas um milímetro quadrado, a alma pura

de Hermès ainda vivia.

Quando me apercebi disso, senti repentinamente que estava a ser protegida

pela sua aura calorosa, que flutuava agradavelmente ao sabor de um mar calmo

e familiar na primavera.

Continuei a trabalhar no espaço do amigo do senhor Kuma até a noite cair.

Visto dali, o céu do entardecer tinha uma bela cor de pêssego esbatida. Sim.

Como a de Hermès.

Quando cheguei ao restaurante, exausta e arrastando-me com dificuldade, a

carne de Hermès, transportada pelo senhor Kuma num carrinho de mão, já

estava dentro do frigorífico, embalada em sacos de plásticos.

No total, seriam cerca de cem quilos. Durante o dia, nas pausas para fumar
um cigarro, o senhor Kuma e o seu amigo tinham trocado os seus experientes

pontos de vista: que, para uma porca velha, a carne era bastante fresca e que

talvez isso se devesse a ela nunca ter parido. Para mim, a carne de Hermès tinha

um bonito tom rosa-claro, nem demasiado gorda nem demasiado magra, num

equilíbrio perfeito. Certamente que a minha mãe lhe dava ração de boa

qualidade. Talvez fosse só impressão minha, mas a carne de Hermès cheirava-me

a floresta, uma espécie de miscelânea de nozes, erva e solo.

Respirando fundo, pus água a ferver para fazer um chá.

Como tinha estado um dia inteiro a trabalhar de pé, as minhas pernas estavam

inchadíssimas. Estranhamente, os meus ombros também estavam doridos.

Bebericando o meu chá verde, pensei vagamente que, a partir do dia seguinte,

já não teria de cozer o pão para Hermès. No frigorífico, ainda havia o fermento

que eu costumava usar.

Não estava propriamente triste, mas sentia-me algo melancólica. Então,

enquanto folheava livros de receitas, alinhados numa prateleira num canto da

cozinha, comecei a pensar no copo-d’água da minha mãe. Ainda tinha muito

que fazer. Não era altura para me deixar levar por sentimentalismos.

A minha ideia era oferecer à minha mãe uma volta ao mundo gastronómica.

A verdade é que, inicialmente, ela e Shouchi planearam fazer uma viagem na

lua de mel; todavia, ultimamente, a sua fraqueza começava a ser cada vez mais

visível e severa, e não me parecia que isso fosse possível. Aliás, Shouchi achava

que ela não teria sequer forças para ir ao aeroporto, quanto mais estar em

condições para voar. Assim, eu esperava que, ao provar a comida de várias

regiões, ela sentisse que estava a viajar. O porco é um animal criado em

qualquer parte do mundo e existem múltiplas formas de o preparar. Quando

tinha trabalhado em vários restaurantes na cidade como aprendiz, ficara bem

ciente disso. Para mim, era um desafio magistral que excitava a minha alma de

cozinheira. Todavia, como sempre, tinha dificuldades em elaborar a ementa.

A partir dessa altura, raramente regressara a casa e dormia n’A Cantina dos

Carcacóis, consagrando praticamente todas as noites aos preparativos. Nesse

período, fechei o restaurante. Depois de cortar a carne em tamanhos fáceis de


cozinhar, embrulhei-os em película aderente e congelei-os. Com a parte das

costeletas, preparei salgados e rolo de carne; o peito serviu para fazer toucinho e

as coxas para o fiambre. Com a carne da cabeça, dos jarretes e das aparas,

misturei tudo e fiz carne picada, que usaria depois para confecionar salame,

almôndegas e salsichas. Para as salsichas, consegui que o proprietário da quinta

onde a cerimónia teria lugar me arranjasse tripas de ovelha.

Era a primeira vez que eu ia fazer fiambre. Era uma das comidas favoritas da

minha mãe, que tinha pedido, como seu último desejo, que eu o distribuísse

por todos os que a tinham ajudado na vida. Será que é isto o que chamam de

recompensa? Para fazer o fiambre, condimentei um pedaço de lombo com uma

mistura de sal, açúcar e ervas aromáticas, e deixei-o a secar pouco a pouco.

Por mais tempo que tivesse, nunca era suficiente.

Fazer comida com um porco inteiro era uma tarefa árdua, tanto para a mente

como para o corpo. Havia muitas coisas que eu não sabia. Nessas ocasiões,

enviava um fax à mulher do açougueiro do talho que funcionava no

supermercado Yorozuya, que o senhor Kuma me apresentara. Por mais básica

que fosse a pergunta, ela ajudava-me amavelmente.

Como o entrecosto e a pá eram tenros e gordos, podiam ser assados ou

estufados. A carne espessa que envolvia o fígado e a extremidade do dorso, que é

muito saborosa, podia ser cortada fina e cozida. O lombo, a parte situada entre

as costeletas e a perna, macio e com pouca gordura, era apropriado para

qualquer tipo de comida. Como a perna não era gorda, assá-la-ia sem tirar os

ossos. A carne que ia da parte de baixo do peito até à barriga alternava com

camadas de gordura, também chamada de toucinho magro, e era muito

saborosa. Por fim, a carne das patas, que é mais rija, podia ser confecionada

num guisado cozinhado em lume brando.

Tudo isto me foi explicado pela mulher do açougueiro através de ilustrações

das partes do porco. Graças às instruções que me deu, por um lado, pude

decidir aos poucos os pratos que iria confecionar e, por outro, reunir os outros

ingredientes necessários, que tanto o senhor Kuma como os seus amigos me

ajudaram a encontrar.
E foi assim que chegámos à véspera do copo-d’água.

Voltei a casa pela primeira desde há muito tempo e, como começaria o dia

cedo, pensei em fazer uma pequena sesta, deitando-me na cama. Não havia

dúvida de que, em comparação com o sofá feito com caixas de vinho, a cama

verdadeira do meu quarto prometia um sono bastante mais reparador.

Devia estar mesmo muito cansada, porque nem ouvi o piar do velho mocho.

Porém, por volta da uma da manhã, a porta do meu quarto abriu-se

silenciosamente e a minha mãe, que emagrecera a olhos vistos, entrou, quando

eu ainda estava meio a dormir.

Avançou na direção da minha cama, agachou-se ao meu lado e ficou a olhar

para mim.

Dei conta disso por causa do cheiro do seu perfume. Todavia, fingi que estava

a dormir. O ódio que sentira por ela extinguira-se por completo. Podiam

auscultar-me de cima a baixo, sacudir-me de pernas para o ar, que não o

encontrariam. Mesmo assim, o meu corpo continuava a reagir da mesma forma

que antes.

— Ringo...

Pela primeira vez em muito tempo, ela pronunciou o meu nome. Quase

respondi «O que foi?», mas não conseguia falar.

— Peço-te... fala comigo antes que parta... — murmurou numa voz rouca,

tocando-me com os dedos na bochecha.

Estavam gelados e pareciam feitos de borracha quando acariciaram

desajeitadamente a minha pele. Mesmo assim, não fui capaz de abrir os olhos e

continuei a fingir.

A verdade é que queria agradecer-lhe.

Obrigada por me dares à luz.

Mas realmente não conseguia falar.

Sentia-me triste, contrariada e arrependida. E então, em vez desse «obrigada»

que não fora capaz de lhe dizer, pensei em abraçá-la e pedir desculpa por tudo,

mas nesse momento ela levantou-se e saiu do quarto sem fazer barulho.

Podia ser apenas uma vez, mas queria ser abraçada com força por ela. Porém,
não tive coragem.

Isto passou-se na véspera do seu casamento.

Sob uma chuva de pétalas de flor de cerejeira, o casamento da minha mãe com

Shouchi foi festejado com grande pompa, numa quinta da aldeia com as folhas a

despontar.

De longe, via-a fazer a sua entrada, sorridente, montada no cavalo branco do

neoconservador. O vestido de casamento, que ela passara horas a desenhar antes

de o mandar fazer a uma costureira, era requintado, adorável e elegante.

Pela primeira vez com uma maquilhagem leve, o seu rosto era branco como a

neve. Atrás dela, Shouchi segurava-a discretamente. Claro que quem puxava o

cavalo branco pelas rédeas era o neoconservador, mas, surpreendentemente, o

trio formado pela minha mãe, pelo neoconservador e por Shouchi parecia

natural e fazia transparecer uma estranha harmonia.

Por todo o lado, trevos brancos em flor brilhavam como pérolas semeadas no

prado da quinta.

Mas a noiva era a mais radiosa.

A partir dali, a minha mãe seria feliz.

Meditando nisso, dediquei-me aos preparativos finais.

Uma brisa carregada de eflúvios da primavera envolveu-me agradavelmente.

Para mim, cozinhar era equivalente a rezar.

Era uma prece pelo amor eterno entre a minha mãe e Shouchi; uma prece por

Hermès, que sacrificara o seu corpo por nós e também uma prece pelas

divindades da cozinha que me tinham abençoado com esta felicidade que é

cozinhar.

Nunca me sentira tão feliz como naquele momento.

Comovida, contemplei os inúmeros pratos alinhados em cima de toalhas de

mesa feitas com lençóis cosidos uns aos outros.

Quando os discursos da noiva e do noivo acabaram, todos se dirigiram para as

mesas. As inúmeras garrafas de champanhe tinham sido o presente de

casamento do neoconservador e, dentro de cada copo, flutuavam pétalas

cristalizadas de cerejeira. A mãe de Kozue, a menina que me trouxera o seu


coelho anoréxico, que se tornara uma boa amiga, partilhara de boa vontade

comigo as flores de cerejeira que preparara no ano passado. Era um substituto

do chá de flor de cerejeira que é costume beber em ocasiões de festa.

Depois de toda a gente brindar, cada pessoa começou a servir-se como se

estivesse num buffet, escolhendo a seu gosto entre os vários cozinhados que eu

tinha feito. Hermès mudara de forma e dava os primeiros passos numa nova

etapa da sua vida. Agora, entraria no corpo dos humanos e, a partir do interior,

confortaria as pessoas que a comessem. A sua existência continuaria, estimada.

Até as cerejeiras, plantadas ao longo da quinta, pareciam chorar de alegria,

largando as suas pétalas, que esvoaçavam ao sabor do vento e tombavam nas

mesas. Eu mordia os lábios para não desatar a rir ou a chorar.

Ainda tinha muito trabalho a fazer. A cozinheira responsável pelo copo-d’água

não podia pôr-se a choramingar.

Os numerosos pratos estavam dispostos em fila.

A caçarola feita com a cabeça de Hermès vinha acompanhada de pickles feitos

com vegetais locais.

As orelhas, cozidas em vinagre com as cascas de legumes e depois cortadas em

fatias finas, apresentavam-se como uma salada mimigâ à francesa, temperada

com azeite e vinagre de vinho.

Metade da língua tinha sido macerada e picada numa marinada à base de

molho de soja, com cinco especiarias e outros condimentos, enquanto a outra

metade fora refogada com couve e temperada com sal e pimenta.

O coração servira para o chouriço de sangue.

Já o fígado e as cartilagens tinham sido fumados com aparas de madeira de

cerejeira.

O estômago estava temperado simplesmente com sal e grelhado nas brasas,

regado com sumo de limão nacional sem pesticidas.

O útero, cozido com as outras miudezas numa canja de galinha ao estilo de

Hinai, era acompanhado com mostarda komatsuna e almôndegas de lula,

guarnecidas de talharim de arroz com uma gema de ovo por cima, um prato

típico de Myanmar chamado kyey oh.


Os pés tinham sido cozinhados lentamente em lume brando até ficarem com

uma textura gelatinosa, à maneira de Okinawa.

O chispe, igualmente cozido durante várias horas, vinha servido com vegetais

inteiros, numa espécie de pot-au-feu à francesa.

A pá, cortada em pedaços pequenos, tinha sido temperada e envolta em fécula

de batata, e depois refogada em azeite à maneira italiana com uma redução de

vinagre balsâmico.

A aba, que tinha salgado, fora fervida com agrião para fazer uma sopa de miso.

O rolo de carne preparado previamente vinha servido fatiado ou, em alternativa,

guarnecido com alho-francês. O resto da aba fora salteado com o kimchi posto a

marinar no inverno.

O lombo tinha sido usado quase por completo para o fiambre, mas, seguindo

as indicações da mulher do açougueiro, cozera o resto, cortando-o em fatias frias

para depois envolver panquecas de arroz com caranguejo, rebentos de soja e

cebolinho chinês, num rolo à vietnamita. Para o molho, encomendara molho de

peixe autêntico do Vietname.

O fiambre, além de o usar em sanduíches, também serviu para guarnecer a

salada de batata. O pedaço congelado tinha sido assado sem remover os ossos e

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servido com yuzukosho . O resto, cortado aos bocadinhos, dava corpo a um

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mabôdôfu bem picante ao estilo de Sichuan. Os últimos pedaços tinham

servido para rechear pimentos-verdes, juntamente com arroz, fazendo um dolma

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turco. Por fim, as sobras recheavam uns pirozhki russos.

Com uma parte do peito, tinha preparado toucinho, que misturei em massa

de pão com queijo. Graças ao fermento natural, de alguma maneira o último

presente de Hermès, dava um pão rústico com uma boa textura.

Parte do entrecosto vinha ao estilo americano, refogado com cebola e tomate e

estufado em lume brando com cola. As partes com ossos tinham sido envoltas

em farinha e fritas em óleo bem quente, à maneira chinesa.

O escasso e precioso filet mignon, depois de temperado com sal e pimenta-

preta, refogara-o com cachalotes e alho e, juntamente com maçã, estufara-o

numa panela de pressão durante alguns minutos. Por último, aperfeiçoara o


tempero com vinho branco, servindo-o com natas azedas.

E, para a sobremesa, havia um bolo de casamento caseiro.

O seu aspeto não era o melhor, mas consegui, de alguma forma, fazer o bolo

certo para a ocasião. Vinha decorado com dentes-de-leão, violetas e rosas.

Qualquer destas flores, sendo naturais, também eram comestíveis. Até a minha

mãe, que já não tinha apetite, as comeu.

O chá fora encomendado pelo senhor Kuma, propositadamente para nós, a um

parente seu em Kyushu que enviara flores de acácia. Colocadas à superfície da

água, resultaram num chá de acácia com um aroma fresco, perfeito para a

cerimónia.

À laia de agradecimento, tinha preparado para os convidados um bolo de

massa de inhame recheado com feijão azuki, no topo do qual pincelei um ponto

vermelho com corante, realçando a brancura do conjunto. Os dois bolos,

acomodados numa caixa, evocavam a minha mãe e Shouchi, frente a frente,

sorridentes.

Por favor, que este sorriso permaneça nem que seja só por mais um dia.

Tinha sido com esse desejo em mente que eu decorara cuidadosamente os

bolos.

Obviamente que não conseguira levar a cabo todo este trabalho sozinha. Se

não fosse graças à ajuda e esforço de todos os habitantes da vila, certamente que

o copo-d’água não teria sido possível. Eu não tinha noção, mas tanto a minha

mãe como o bar Amor tinham raízes profundas nesta pequena aldeia no meio

das montanhas.

Quem olhasse para ela, percebia imediatamente que estava doente. Todas as

pessoas que desejavam oferecer-lhe esta derradeira felicidade se tinham

voluntariado e participado amavelmente na preparação da festa.

Toda a gente estava encantada.

E também a minha mãe, tal como Shouchi, que não saía do seu lado nem por

um segundo, tinha o sorriso mais belo que eu já lhe tinha visto.

Na verdade, ela reunira toda a sua energia só para estar presente, mas não foi

capaz de comer quase nada. Apesar de tudo, contemplava com um olhar


compenetrado a metamorfose de Hermès.

Hermès não desaparecera, longe disso. Apenas mudara de forma.

Apercebi-me disso à tarde, ao olhar para os raios de sol primaveril que

cintilavam sobre as mesas cheias de pratos, quase todos vazios.

Porém, se me pusesse a reviver aquele dia, ficaria prostrada.

Por isso, esforcei-me por pensar nisso só um pouco de cada vez.

As recordações que mais prezo, guardo-as a sete chaves bem fundo no meu

coração, para que ninguém mas roube; para não perderem a sua cor à luz do sol

e ficarem expostas ao vento e à chuva.

E depois, abruptamente, a minha mãe morreu.

Ela reencontrara o seu primeiro amor, que nunca tinha esquecido, casara-se e,

mesmo que por apenas algumas semanas, vivera com ele. Talvez tivesse perdido

completamente a vontade de viver. Talvez a sua alma tivesse achado que já era

suficiente.

Até ao último instante, foi uma esposa magnífica e feliz.

Sem saber o que poderia oferecer-lhe para a acompanhar até ao Paraíso,

coloquei o meu bloco no seu caixão. A maior parte das folhas continham os

fragmentos das conversas que tivera com os clientes do restaurante, mas

também havia os vestígios das nossas trocas de palavras, raras e valiosas. Já que

não era capaz de falar, pelo menos queria que as minhas palavras a

acompanhassem.

Em casa, agora só estávamos eu e o velho mocho.

Todos os serões, sem falhar, lembrava-me daquela noite. A véspera do copo-

d’água.

E recriminava-me. O meu arrependimento talvez fosse maior, mais profundo e

mais pesado do que a tristeza que sentia pela morte da minha mãe.

Porque tinha sido incapaz de lhe falar, mesmo depois de ela me suplicar

daquele jeito?

Fraca, cobarde, hipócrita!

A voz da minha consciência insultava-me, atormentava-me constantemente.

Sabia que não valia a pena lamentar-me sobre o passado, mas mesmo assim
não conseguia impedir-me de pensar nele. Nunca mais verei a minha mãe.

Mesmo que, no futuro, recuperasse a minha voz, ela não me poderia ouvir.

Todas as noites, por mais que tentasse, não era capaz de adormecer até o velho

mocho anunciar a meia-noite.

Desde que a minha mãe falecera, o restaurante permanecia fechado.

Naquele dia, fui distribuir a todos os seus amigos e conhecidos, e também aos

voluntários que tinham ajudado a organizar a festa, o fiambre que fizera com o

lombo de Hermès.

Era o último desejo da minha mãe.

O senhor Kuma levou-me na sua carrinha até à casa das pessoas que viviam

longe e, os que viviam na vizinhança, visitei-os a todos num único dia com o

meu Caracol.

A primavera deixara para trás o meu coração e seguia em frente. As cerejeiras

em flor da quinta também já se tinham tornado completamente lustrosas,

frescas e verdes. Todavia, no meu coração magoado, era como se as árvores da

floresta fossem brócolos mergulhados e cozidos em água a escaldar.

Fui ao apartamento de Shouchi pela primeira vez. De acordo com o registo

civil, era o meu pai, mas tanto ele como a minha mãe me tinham pedido que

continuasse a tratá-lo da mesma forma que antes. Era um apartamento novo que

ele tinha comprado perto do hospital no qual trabalhava, para começar a vida a

dois com a minha mãe. Não sei se foi a pensar nos cuidados a ter com ela, mas

não havia obstáculos em nenhuma das divisões e, para a minha mãe ter

facilidade em andar, tanto a entrada como a casa de banho e a cozinha tinham

corrimãos.

Shouchi ficara com os cabelos todos brancos e envelhecera vinte vezes mais

rapidamente do que uma pessoa normal. Não admirava. Tinha sentido todas as

emoções possíveis em apenas alguns meses.

Baixei a minha cabeça profundamente e entreguei-lhe o fiambre que fizera

com todo o meu coração.


Como ele insistiu, bebi um pouco do chá que me oferecera, e a conversa foi

parar à minha avó.

Até esta altura, eu não fazia ideia de que a minha avó, tal como a concubina,

tinha sido amante de um certo político que entretanto já falecera. Quando a

minha mãe ainda era pequena, ela enamorara-se desse homem casado e pai de

família e, abandonando a filha, fugira com ele. Consequentemente, Ruriko mal

conhecia a sua própria mãe e passara a infância em casa de familiares e em

instituições. E fora por isso que, não querendo que eu passasse pelo mesmo,

tinha aberto um bar perto de casa.

Eis a razão para a minha avó me mimar tanto, transferindo para mim o amor

que não conseguira dar à sua própria filha. Se tivesse sabido disso antes, talvez

eu me tivesse dado melhor com a minha mãe.

Nessa noite, cansada depois de visitar tantas pessoas, tomei banho bem mais

cedo do que o costume e deitei-me.

Ainda não tinha decidido quando abriria de novo A Cantina dos Caracóis.

Quem sabe se não o fecharia permanentemente.

Só conseguia pensar que, agora que a minha mãe deixara este mundo, não me

restava nenhuma razão para ficar na aldeia. Desde a sua morte, o meu coração

estava adormecido.

Absorvida nos meus pensamentos, e enquanto adormecia, o velho mocho

começou a piar, como costume.

Agora, ele era de certa forma a minha única família.

O seu pio diário apaziguava-me como nos tempos em que era criança e

ajudava-me a adormecer.

Uh, uh, uh, uh... Como sempre, o seu ritmo era perfeitamente regular.

No entanto, enquanto contava o número de pios, à nona vez, de repente, ele

calou-se.

E, por mais que eu esperasse quietinha, não piou a décima vez.

O que se teria passado? Será que algo tinha acontecido no sótão? E se foi uma

cobra que se esgueirou e depois se enrolou à volta do pescoço do velho mocho...

Olhei fixamente para o teto.


Não tinha memória de isso ter acontecido uma única vez.

De repente, fiquei preocupada. Estava sozinha no mundo. Aperceber-me disso

fez-me sentir um nó na garganta.

Senti um arrepio pela espinha acima e julguei que o meu coração iria parar.

O velho mocho era a divindade protetora desta casa e a minha mãe sempre me

proibira de tentar vê-lo.

Assim, eu nunca tinha ido ao sótão. Mas agora tratava-se de uma situação de

emergência. Caso ele estivesse em apuros, era meu dever ajudá-lo.

Enfiei o robe florido, que a minha mãe tanto estimava, por cima do pijama e

tirei uma lanterna do kit de sobrevivência que guardava junto à cabeceira.

Segurando-a, entrei no armário de parede e, com todo o cuidado, abri o alçapão

que levava ao sótão.

Aí, fiquei siderada.

O que ali estava não era um mocho verdadeiro, mas sim um despertador com

o mesmo formato.

Receosa, estendi a mão. Tinha a textura fria do plástico e, ao pegar-lhe, fiquei

surpreendida por ser tão leve. Para mim, que sempre imaginara um velho

mocho vivo, cuja imagem estava firmemente enraizada no meu espírito, esta

descoberta era como se fosse um sonho, irreal.

Ao olhar bem para a sua base, vi uma carta. Recompus-me. Sem dúvida que

era uma carta da minha mãe. Em caracteres que eu conhecia bem, o envelope

tinha escrito «Para a Rinko».

Saí do armário com o envelope na mão e liguei rapidamente a luz do quarto.

Para não danificar o seu interior, abri-o cuidadosamente com uma tesoura,

tirei a carta e comecei a ler:

Querida Rinko,

Se estás a ler esta carta, é porque já deves ter descoberto tudo, não é? Desculpa. Não

tinha intenções de te enganar, mas o velho mocho, na verdade, é um despertador. Mas

pensa bem: achas mesmo que um mocho podia piar com aquela precisão, exatamente à

meia-noite, doze vezes, e ainda por cima todas as noites? És realmente uma pateta!
Mesmo assim, nunca pensei que ainda acreditasses nisso! Mas enfim, como fui eu que

inventei o velho mocho, até fico contente...

Para ser sincera, quando eras mais nova, tinha pena de te deixar em casa sozinha e,

por isso, ocorreu-me esta ideia. Fui trocando sempre as pilhas; porém, por mais poder que

tenha, não me será possível fazer o mesmo depois de morrer. Por isso, decidi pôr tudo em

pratos limpos.

Mas diz-me: desde quando é que as coisas começaram a correr mal connosco?

Um fio, uma vez enrolado, é difícil de desemaranhar.

Eu gosto tanto de ti! Mas porque será que não fui capaz de te transmitir esses

sentimentos? Talvez porque no fundo do meu coração sentisse que não eras a filha da

pessoa que mais amava. Desculpa. Desculpa-me mesmo.

Por outro lado, nunca me arrependi de te ter tido. Se não tivesses vindo a este mundo, eu

nunca teria conseguido levar a minha vida em frente e voltado a reencontrar-me com o

Shouchi.

Tu és uma rapariga muito mais bonita e adorável do que pensas. Tem mais confiança

em ti. O que importa se foste deixada pelo teu namorado? Sendo minha filha, é natural

que faças sucesso com os rapazes.

E a comida que fizeste estava realmente deliciosa.

Muito obrigada. Estou a falar a sério.

Penso que a Hermès também está feliz. Se ela estiver à minha espera às portas do Céu,

serei capaz de suportar não ver mais o meu marido e a minha filha.

Deste o teu melhor, não foi? Deve ter dado imenso trabalho!

Como se trata de uma piegas como tu, certamente não estarás com a A Cantina dos

Caracóis fechada, não?

Não podes pensar que não precisas de trabalhar porque a tua mãe faleceu e agora a

casa é tua! Ainda me deves parte do dinheiro que te emprestei para a abertura. Faz

favor de mo devolver até ao último tostão! Guarda-o dentro de uma garrafa de

champanhe vazia, de preferência Cristal Rosé, e enterra-a na horta. Quando eu

reencarnar, certamente irei buscá-lo.

Volta a abrir o restaurante imediatamente! És uma pessoa dotada.

Tu és capaz de fazer as pessoas felizes.


Continua.

É um dom que eu nunca tive. Por isso, faz bom uso dele, sem desperdiçares tempo.

Não ganhas nada em te desvalorizares, Rinko. És bonita, inteligente e uma cozinheira

excelente, alguém que os outros devem estimar.

Sou eu que te digo, eu que me dei com tanta gente durante várias décadas. Por isso,

acredita em mim. Nunca acreditaste nas minhas previsões para o futuro, mas olha que eu

até acertei.

Enche o peito de ar e avança de cabeça erguida.

Mantém os pés no chão e respira fundo.

Uma rapariga obstinada como tu deve sair mais, apaixonar-se e abrir os seus

horizontes.

O mundo é maior do tu pensas e, quando queremos, podemos ir a qualquer lado. Seja a

comer carne de hipopótamo na Tanzânia ou noutra parte do mundo, é só um saltinho!

Talvez seja esta a última mensagem que eu consiga dar à minha única filha.

Nunca conseguimos entender-nos muito bem e não fui capaz de cuidar de ti como uma

verdadeira mãe, mas, em troca, ficarei a proteger-te lá de cima. Podes ficar descansada,

vou estar sempre a teu lado. Ninguém morre de um desgosto de amor.

Já agora, o «Amor» do bar Amor não é o que tu pensas. É um rio na Rússia, o Amur.

Eu e o Shouchi tínhamos prometido ir ao rio Amur na nossa lua de mel, quando

estávamos no liceu. Olhando para trás, éramos uns estudantes com gostos muito peculiares,

mas, na altura, prometemos seriamente um ao outro. Não me lembro se vimos nalgum

postal ou noutro sítio qualquer, mas ficámos completamente deslumbrados com a

paisagem. E foi por isso que pedi ao meu marido para um dia deitar as minhas cinzas

nesse rio. Estás de acordo?

No fim de contas, o meu desejo de ir numa lua de mel não se concretizou, mas, como

consegui dar uma volta ao mundo com a comida que me fizeste, fiquei satisfeita.

Muito obrigada, mesmo. Estou feliz por seres a minha filha.

Ah, e antes que me esqueça: dentro do frigorífico, está o teu cordão umbilical.

Todas as coisas que nos são preciosas devem ser guardadas no frigorífico. Assim,

quando precisarmos delas, basta pô-las no micro-ondas. Em geral, ainda estão em bom

estado.
Um cordão umbilical não serve para nada, mas enfim...

É apenas a prova irrefutável de que és minha filha.

Tu achavas que eu não era a tua mãe verdadeira, não era? Pois, hoje em dia, consegues

confirmar isso num instante com um teste de ADN.

Quando voltarmos a encontrar-nos aqui, eu conto-te como é que tu nasceste.

Não se pode deixar as coisas a meio.

Esta é a primeira e última carta com pés e cabeça que te escrevo. Desculpa por ser uma

mãe desmazelada.

Mas há mais uma coisa que tenho de te contar, sem falta.

O «rin» de Rinko não é o carácter para adultério. Que mãe poria esse nome ao seu

próprio filho? Foi apenas uma forma de esconder o meu embaraço. Na verdade, dei-te esse

nome porque desejava fortemente que não tivesses uma vida vergonhosa como a minha.

Queria que a vivesses diligentemente, a todo o custo, protegendo a tua moral. E estou feliz

por te teres tornado uma rapariga assim.

Por isso, não tenhas vergonha do teu nome e, a partir de agora, continua a viver com

orgulho.

Se algum dia nos voltarmos a ver, algures, não me ignores. Vivi uma vida desleixada,

mas fui feliz no final.

Ruriko

Apertando a carta na minha mão cerrada, desci as escadas a correr, fui a correr

até à cozinha completamente às escuras e abri a porta do frigorífico com toda a

minha força, sustendo a respiração: um caril, feito sabe-se lá quando, uma

banana já negra, uma fatia de bolo meio comida. Até havia lápis de cera

misturados com a comida.

No meio de tudo isso, encontrei algumas fotografias de quando eu era

pequena.

E, surpreendentemente, a minha cara de criança, de cores já desvanecidas e

coberta de gelo, exibia um grande sorriso. Pela primeira vez na minha vida,

apercebi-me de que um dia sorrira assim para a minha mãe.

Depois, desde que me lembro, acomodada no interior do meu coração estava a

imagem da «mãe que deveria odiar». Quando dera por mim, já me tinha
revoltada contra ela. E finalmente percebi porque é que, no meu álbum de

fotografias, não havia nem uma fotografia na qual eu estivesse verdadeiramente

a sorrir, como se algumas partes do álbum tivessem sido comidas pelo caruncho.

Uma grande lágrima deslizou pela minha bochecha de criança, caindo no chão

ruidosamente.

Depois de tirar tudo do frigorífico, bem lá no fundo, apareceu uma caixinha.

Sustive a respiração e abri a tampa, silenciosamente. Esticado, estava um

cordão, queimado pelo sol, como carvão usado.

Mãe... Chamei-a numa voz muda.

Será que ela me ouvia?

Mãe, serás sempre a minha mãe.

Não há volta a dar.

No entanto, as coisas vão permanecer aqui para sempre. E assim, se procurar

arduamente, de certeza que existirão muitas coisas adormecidas neste mundo

que estarão ao meu alcance.

Ajoelhei-me no chão gélido da cozinha, segurando carinhosamente na palma

da mão o cordão umbilical que nos unia.

Em princípio, podia parecer que tudo se resolvera, mas o meu arrependimento

permanecia como uma pequena espinha presa no fundo da minha garganta que

não descia.

O começo do verão já se aproximava, mas o restaurante continuava fechado e

apenas o tempo passava vagamente por mim, imperturbável.

Além disso, já não cozinhava.

Não queria ver mais sangue e não queria comer. Escolhia, sempre que

possível, coisas sem vida para comer.

O meu corpo emagrecera de uma forma estranha e a minha pele ficara áspera.

Mas não me importava.

A maior parte das refeições consistia em comida já feita e até havia dias em

que comia noodles instantâneos de manhã, à tarde e à noite.

Graças a isso, fiquei muito boa a preparar esse género de comida. Não seria

exagero se me chamassem de «especialista de comida instantânea». Na despensa


da minha mãe, ainda restava uma montanha de noodles instantâneos já fora do

prazo de validade.

Este tipo de comida nunca transmitia sentimentos ou afeição, logo, era

perfeita para mim, que me tinha tornado alérgica a ela.

E, se calhar, a minha mãe também não queria sentir nem pensar em nada e

alimentava-se da mesma forma. Nas raras ocasiões em que cozinhava, tudo o

que preparava sabia a mim mesma. Tal como um polvo que enche a barriga com

os próprios tentáculos ou um gato que lambe os genitais, eu não tinha

consciência daquilo que comia. Uma verdadeira refeição deve ser preparada para

nós por outra pessoa com todo o amor, alimentando a alma e o corpo.

Desta maneira, vivendo desinteressadamente, aconteceu algo numa tarde

ensolarada. De repente, ouvi alguém a bater no vidro da janela. Sobressaltada,

virei-me para trás e vi os vestígios de algo que embatera contra o vidro.

Intrigada, saí e deparei com um pombo estendido em cima de um arbusto.

Estava a sangrar do pescoço.

Aproximei-me e, por mais pena que tivesse, ele já não estava a respirar.

Pensando em enterrá-lo junto à figueira, agachei-me e peguei cuidadosamente

no seu cadáver com ambas as mãos. Agora, quando encontrava insetos,

pequenos animais ou flores mortas, exprimia assim as minhas condolências. Os

olhos e as unhas de Hermès também descansavam aos pés da figueira.

E então, trazida pela brisa quente, ouvi a voz da minha mãe junto ao meu

ouvido:

Ninguém deve morrer em vão.

Foi mesmo isto que julguei ouvir. Sem a menor das dúvidas, era a voz da

minha mãe, quando ela ainda estava bem de saúde.

Confusa, olhei à minha volta. Se fosse possível, podia ser só por uma vez, teria

gostado de ser abraçada por ela.

Porém, esse breve instante não se repetiu, e a sua voz, como fumo,

desapareceu ao longe na floresta.

Na minha mão, restava apenas o cadáver do pombo.

E, subitamente, esse pombo começou a parecer a minha mãe aos meus olhos.
O senhor Kuma tinha-me explicado que os pombos daqui não comiam coisas

suspeitas como os da cidade; são pombos selvagens que só comem insetos e cujo

sabor é muito bom. Ao lembrar-me disso, encostei o corpo do pombo ao peito e

levantei-me.

Ainda estava quente.

Não podia deixar que a morte da minha mãe tivesse sido em vão.

Apressadamente, peguei nas chaves do restaurante, dirigi-me para a cozinha e,

pela primeira vez desde há vários meses, pus água a aquecer numa caçarola.

Quando ferveu, mergulhei nela o pombo e depenei-o gentilmente.

Abri-lhe a barriga e recheei-a com os miúdos e ervas aromáticas, temperando

tudo com sal e pimenta. Após deixar repousar por algum tempo, refoguei-o

numa frigideira com alho e, quando ficou dourado, só faltava assá-lo lentamente

no forno.

Cozinhei automaticamente, sem me aperceber da passagem do tempo.

Quando voltei a mim, olhei pela janela e apercebi-me de que já tinha

entardecido. Iluminada pelo pôr do sol, durante um instante, toda a paisagem

parecia ter sido barrada com marmelada. Uma longa sombra era projetada pela

palmeira junto à entrada de casa, iluminada pelo sol poente.

O forno espalhava um aroma doce.

Mais dez minutos e o pombo estaria pronto.

Estendi uma toalha de mesa de linho, sem vincos, em cima da mesa do

restaurante. Em seguida, abri a garrafa de Amarone, um vinho tinto de alta

qualidade feito com uvas secas, que planeava servir um dia aos clientes, e enchi

um copo grande, apropriado para vinho tinto. O vermelho-vivo como sangue

brilhava como um rubi exposto à luz. Fechei os olhos e inspirei. O seu aroma

era sumptuoso, frutado.

Estava plenamente convencida de que a minha mãe se apoderara do corpo do

pombo para me transmitir uma mensagem.

Dispus na mesa um garfo e uma faca de prata, que eram mais pesados do que

imaginava.

Aguardei que o pombo selvagem acabasse de assar e juntei um pouco de


vinho ao molho, reduzindo-o.

Por fim, empratei-o sem demoras e levei-o para a mesa.

A minha mãe proporcionara-me de novo o prazer de cozinhar.

Depois de agradecer silenciosamente, espetei a ponta do garfo no pombo, que

até há pouco estava vivo e voava pelo céu. O suco vermelho da carne derramou-

se. Cortei um pedaço ainda a deitar fumo e levei-o à boca. O suco de carne com

um gosto prodigioso a natureza espalhou-se lentamente pela minha boca. E

então engoli.

Sobressaltei-me, mas pensei que fosse da minha imaginação.

Bebi mais um gole de vinho tinto e, após me acalmar, comi mais uma garfada

de pombo assado. E, como se tivessem pressionado as teclas de um órgão velho a

cair aos bocados, a minha voz obedeceu.

— Hum...

Ah! Finalmente, a minha voz voltara ao meu corpo!

Foi como se o fio que estava enleado dentro do meu estômago se soltasse pela

minha boca. Como se, nesse instante, um raio de sol tivesse penetrado num

barracão que estivera fechado dezenas de anos.

— Está bom!

A minha voz fez vibrar a minha garganta, roçou delicadamente pela minha

língua e, num sopro leve, voou do meu corpo até ao mundo delicado onde a

minha mãe se encontrava.

— Obrigada — disse-lhe, em voz alta.

Era a minha própria voz, que ressoava pela primeira vez desde há muito

tempo.

Comi o assado de pombo até ao fim, sem deixar uma migalha. Enquanto

comia, senti subitamente que a minha mãe partilhava esta refeição comigo.

Usando os dedos, roí a carne à volta dos ossos com a minha mão. Também bebi

o vinho tinto até ao fim. O pequeno coração do pombo volatilizou-se na minha

respiração. O seu corpo e o de Hermès fundiram-se no meu. Voltara a ter gosto

em viver.

Não podia abandonar a cozinha. Estava certa disso.


Assim, decidi voltar a cozinhar a valer.

Cozinhar para dar prazer às pessoas que me rodeiam.

Cozinhar para lhes dar alegria.

Decidi continuar a tornar as pessoas felizes, mesmo que seja só um pouco.

Aqui, nesta cozinha única no mundo, A Cantina dos Caracóis.

1
Mistura de especiarias indiana. (NT)

2
Bebida indiana. (NT)

3
Período de reinado do imperador Meiji do Japão (1868-1912). (NT)

4 Termo de madeira para manter o arroz quente. (NT)

5
Pauzinhos compridos usados para empratar a comida. (NT)

6
Cascalho boleado indispensável para cozinhar jarizuke de beringela. (NT)
7
Prato japonês feito com o mesmo método do nukazuke, mas a partir de cascalho. (NT)

8
Especialidade da culinária japonesa feita com ume (ameixa originária da China). (NT)

9
Conserva tradicional japonesa produzida com vegetais colocados numa mistura de farelo.

(NT)

10
Mistura de farelo usada no nukazuke. (NT)

11
Grupos musicais tradicionais japoneses que atuavam nas ruas. (NT)

12
Bolinho de arroz japonês. (NT)

13
Técnica de secagem das umê. (NT)

14 Erva asiática usada na culinária. (NT)

15
Tiras de rabanete branco secas. (NT)
16
Ingrediente da culinária japonesa. (NT)

17
Anchovas. (NT)

18
Espécie de peixe de águas tropicais e temperadas, ausente no Mediterrâneo Oriental e no

Mar Negro. (NT)

19
Pequena mesa baixa com um aquecedor elétrico no centro. (NT)

20
Técnica de culinária japonesa que consiste em refogar e ferver. (NT)

21
Planta originária da Eurásia. (NT)

22
Género de sushi que consiste na mistura de ingredientes picados no arroz de sushi. (NT)

23
Creme de ovos da cozinha tradicional japonesa. (NT)

24 Doce tradicional japonês recheado normalmente com pasta de feijão doce. (NT)

25
Bar tradicional japonês que também serve aperitivos para acompanhar as bebidas. (NT)
26
Folha fabricada a partir de algas marinhas, também usada no sushi. (NT)

27
Período do imperador Taisho do Japão (1912-1926). (NT)

28
Período do xogunato de Tokugawa (1603-1868). (NT)

29
Flocos de carne de bonito seco em lascas. (NT)
30
Caldo tradicional japonês, normalmente feito com kombu (algas marinhas) e katsuobushi.

(NT)

31
Kuma 熊, em japonês, significa «urso» e não é um nome habitual. (NT)
32
Desenho animado japonês. (NT)

33
Ringo, em japonês, significa «maçã». (NT)

34 Rinko: nome cujos caracteres significam adultério e criança. Ou seja, filha bastarda. (NT)
35
Bebida alcoólica tradicional japonesa. (NT)

36
Trepadeira nativa de regiões asiáticas, nomeadamente do Japão. (NT)

37
Divindades budistas do Japão. As suas estátuas estão espalhadas por todo o país. (NT)

38
Período caracterizado pela tendência de preferir termas mais isoladas no meio das

montanhas, em vez de grandes estâncias termais. (NT)

39
Prato de ramen originário da região de Fukuoka. (NT)

40 Supermercado japonês. (NT)

41 O som «her» em japonês lê-se «L» e «mès» lê-se mesu メス, que, em japonês, significa

«sexo feminino». Ou seja, porco-fêmeo. (NT)

42 Raças britânicas de porco doméstico. (NT)

43 Brincadeira infantil na qual duas crianças amarram as pernas com um pedaço de pano ou

corda e correm até à meta. (NT)

44 Tapetes originários do Médio Oriente. (NT)

45 Deusa budista da compaixão e misericórdia. (NT)

46 Pequeno camião japonês de caixa aberta. (NT)

47 Região situada no atual Vietname. (NT)

48 Tipo de prato japonês. (NT)

49 Tipo de porcelana japonesa. (NT)

50
Um dos produtores de porcelana mais antigos da Europa. (NT)

51
Compartimento usado para a cerimónia do chá japonesa. (NT)

52
Prato típico japonês feito com udon (macarrão grosso). (NT)
53
Máquinas de jogo nos salões de jogos japoneses semelhantes a casinos. (NT)

54 Espécie de alho nativa da China. (NT)

55
Lombo de porco frito com caril e arroz. (NT)

56
Tipo de cogumelo. (NT)

57
Caldo tradicional japonês de frutos do mar. (NT)

58
Cogumelo asiático. (NT)

59
Alimento feito a partir de ovas de tainha. (NT)

60
Citrino asiático. (NT)

61
Farinha para panados e fritos feita de pão. (NT)

62
Produtor de vidro japonês. (NT)

63
Bolo alemão. (NT)
64 Doce tradicional indiano, feito com iogurte coado. (NT)

65
Bolinho de arroz glutinoso normalmente consumido no Ano Novo e em ocasiões especiais.

(NT)

66
Refeição japonesa típica consumida no Ano Novo. (NT)

67
Refeição japonesa típica consumida no Ano Novo. (NT)

68
Bebida alcoólica tradicional japonesa consumida no Ano Novo. (NT)
69
Estufado tradicional japonês. (NT)

70
Omelete japonesa. (NT)

71
Planta nativa do sudeste da Ásia. (NT)

72
Prato tradicional da Coreia do Sul com vegetais condimentados e fermentados. (NT)

73
Espécie de peixe-balão. (NT)

74 Molho à base de limão usado na culinária japonesa. (NT)

75
Técnica culinária japonesa que consiste na fritura de alimentos, mais habitualmente

frango. (NT)

76
Sopa japonesa à base de arroz. (NT)

77
Estilo tradicional de comédia japonesa semelhante ao stand-up. (NT)

78
Prato italiano. (NT)
79
Sobremesa japonesa feita de feijão azuki. (NT)

80
Condimento japonês de chili, yuzu e sal marinho. (NT)

81
Prato típico chinês. (NT)

82
Pãezinhos recheados tradicionais russos, assados ou fritos. (NT)

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