Transculturação e Transculturação Narrativa
Transculturação e Transculturação Narrativa
Transculturação e Transculturação Narrativa
RELEITURAS.
Lívia Reis
UFF
no livro Contrapunteo cubano del azucar y del tabaco, encontrou grande fecundidade nos
diferentes campos da investigação das ciências humanas e sociais, sobretudo, através da projeção
com relação ao fenômeno literário, feita por Angel Rama em seus estudos sobre a transculturação
Dentro do campo dos estudos culturais latino americanos o conceito persistiu no discurso
áreas, períodos disciplinas e projetos ideológicos diversos” (MORAÑA, 1997, p.137) . No marco
deste trabalho, vamos levantar algumas vozes críticas da atualidade que continuam mantendo um
inquietação que caracterizam os anos 60, a contribuição de Rama se concretizou no artigo Los
desenvolve um aparato teórico que dá sustentação à sua reflexão sobre a narrativa do continente
no século XX. O ponto de partida de Rama, tanto no artigo, quanto no livro, é a descrição e
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Vanguardis mo ou vanguarda, no mundo hispânico, correspondem aos movimentos estéticos, das décadas de 20/30 ,
conhecidos no Brasil como modernismo . Por sua vez o termo modernismo, em espanhol, se refere ao movimento
estético, que floresceu no mundo hispano-americano entre o fim do século XIX e início do XX, sobretudo na poesia
e tem como principal expoente o poeta nicaragüense Rubén Darío.
modernização em sociedades periféricas. Para Rama a introdução de novas formas literárias pelos
vanguardistas durante a segunda metade dos anos 30, nos conglomerados urbanos da América
maioria das áreas do continente e dentro do qual haviam se expressado tanto áreas de médio e
escasso desenvolvimento educativo, como as mais avançadas” (RAMA, 2001, p.209). Diante do
impacto e da pressão modernizadora são três as respostas dos regionalistas: aceitação absoluta
das novas formas literárias; a rigidez cultural, que rejeita toda novidade estética e o que Rama
define como “plasticidade cultural” de uma produção literária que integra as novas estruturas
formais sem recusar as próprias tradições. Esta proposta é o que ele vai chamar de literatura de
transculturação.
Ortiz. Isto é, a transculturação não consiste em adquirir uma cultura, o que ele entende como
neoculturação. A noção de processo descrita por Ortiz agrada a Rama, sobretudo porque traduz
um perspectivismo latino - americano “inclusive no que pode ter de interpretação incorreta por
considerar a parte passiva ou inferior do contato de culturas, a destinada às maiores perdas, sem
estabelecem um diálogo com Rama e sua leitura teórica da América Latina, pois um simples
passar de olhos em parte da crítica pós-colonial e pós- moderna oferece uma grande quantidade de
conceitos e estudos que mantém uma permanente tensão com os estudos elaborados por Rama.
menos paralela pela crítica literária e pelos estudos culturais. O próprio Cornejo Polar, melhor
cada vez mais, em uma capa mais sofisticada à categoria de mestiçagem, falazmente entendida
como harmônica, no sentido de “ajiaco” cultural, definido por Fernando Ortiz.(CORNEJO, 1997,
p.343)
entre eles em um artigo de Raul Bueno: Sobre la heteroge idad literária y cultural de América
Latina (1996). No ensaio o autor defende que as duas categorias são distintas e não se referem à
mesma coisa: enquanto uma se refere a processo a outra, em oposição, é resultado, como explica
em seguida:
americana como a heterogeneidade, e sim, uma parte destacada das dinâmicas da própria
que estão arraigados à base das diferenças sociais, culturais, literárias da sociedade latino-
americana.
Na mesma linha de ressaltar mais as diferenças que as similitudes entre os dois conceitos,
transculturación? (1996) O ponto de partida do crítico alemão é, uma contradição que está na
base da conceituação de Rama. O crítico uruguaio destaca que a definição de Ortiz sobre a
aculturação, a rigor, é incorreta. Mesmo assim vai utilizá- la, pois toma em consideração seu
mudanças nas culturas dominadas. Ainda que na teoria de Rama a cultura regional não assuma
um papel passivo nos processos de transculturação, porque são os próprios autores regionalistas
afeta a cultura dominante. Diante deste quadro Schmidt indaga ”Por que a contradição entre a
lado, e a apresentação exclusiva de processos de transculturação que não significam nada além
Alberto Moreiras. O ensaio O fim do realismo mágico, o significante apaixonado de José Maria
Arguedas é uma reflexão na qual se percebe uma profunda crítica ao conceito de transculturação
para ele, é uma escrita da disjunção, que se opõe radicalmente à noção defendida por Irlemar
Chiampi que vê o realismo mágico como a escrita da não disjunção ou da mediação. Para o
literário, a partir de Rama, Moreiras levanta uma série de elementos com os quais constrói um
fato natural ou primário, mas é ela própria uma representação comprometida, isto é, não se refere
conflitos de grupos, que existem em outras esferas da cultura na qual circula “(GREENBLAT
Como não há transparência na transculturação e por ser orientada, ela está sempre fora de
controle e fora de sua função como instrumento técnico para a integração das influências externas
no processo de preservação e renovação cultural, que é o sentido dado por Rama. “Como aparato
crítico genealógico de certa expressão cultural e histórica, terá extrema dificuldade de se proteger
da história que procura criticar ou derrotar a favor da história que procura preservar em uma
forma mediada, pois ambas as histórias, e não apenas a segunda, são simultaneamente parte de
sua própria constituição: a transculturação não pode sair de si mesma a fim de estabelecer
ressalta que, embora Rama parta do conceito antropoló gico, sua reflexão parece originar-se no
reino da ideologia.
denomina transculturação “bem sucedida”, isto é, aquela em que a cultura dominada é capaz de
inscrever-se na cultura dominante. Para Moreiras essa posição de Rama sugere um forte
por Rama e conclui com um estudo sobre a obra de José Maria Arguedas, o escritor peruano,
exemplo modelar dos processos de transculturação narrativa, nos estudos de Ángel Rama. Para
sentido de que abre uma fissura entre linguagem e significação... Como ato literário, a
utopia fundadora latino-americana chega ao fim. Arguedas perde para nós todos os traços
A crítica à teoria de Rama também encontra ecos na área dos estudos subalternos norte
Para Beverley a noção de transculturação proposta por Ortiz e, posteriormente, relida por
Rama são problemáticas, porque em ambas o processo é visto como uma etapa necessária pela
quais passam os povos colonizados da América Latina, diante do impacto da modernização. Para
raça (respectivamente nas formas liberal e social democrata)” (BEVERLEY, 1999, p. 47) Na sua
argumentação, o impasse fundamental deste, que vem a se uma das mais importantes paradigmas
cultura hegemônica, via transculturação. A partir desta perspectiva, “Rama não foi capaz de
No que se refere ainda a crítica norte americana, a obra que mais freqüenta as
Império. Relatos de viagem e transculturação, de Mary Luise Pratt de 1992, com edição
brasileira de 1999.
reinventou o imaginário popular europeu. A obra procura demonstrar a dinâmica dos processos
partir dos conceitos de Ortiz e Rama, a autora constrói seu próprio conceito de “zonas de contato”
que serve para entender como os grupos marginais e subordinados “selecionam e inventam a
partir de materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante, ou como os modos
metropolitanos são recebidos pela periferia e ainda outra questão mais herética: no que se refere à
representação, como falar de transculturação das colônias para as metrópoles?” ( PRATT, 1999,
p.31)
Talvez o mais abrangente estudo recente que retrabalha as questões levantadas por Ortiz
e Rama, seja a reflexão desenvolvida por Walter Mignolo no livro Local histories/ Global design,
na América Latina e no Caribe, tendo como ponto de partida o que ele denomina “diferença
colonial” na formação e transformação do sistema colonial/moderno. Por diferença colo nial ele
entende o espaço de onde o poder colonial se emana, o lugar onde se reconstitui o conhecimento
onde os desenhos globais têm que ser adaptados, adotados, rejeitados, integrados
p.ix).
A obra de Mignolo promove um amplo diálogo entre críticos que discutem questões
pertinentes ao debate pós-colonial e pós-moderno e sua relação com o pensamento que surge das
abordagem orientalista. Fundamental em sua linha de raciocínio, Mignolo recoloca o século XVI
Atlântico, que se tornou o imaginário do mundo colonial/moderno. Para ele, muitos historiadores
e críticos da cultura foram cegos com relação à diferença colonial e quanto à subordinação do
conhecimento. Pensar “a partir de” foi a expressão que provocou o juízo crítico e que terminou
por promover a expressão que funciona como espinha dorsal na obra que é “border thinking”,
pensamento periférico ou das margens, definição que procura dar conta do reconhecimento da
diferença colonial de uma perspectiva da subalternidade, que demanda uma maneira de pensar a
se a noção de “semiose colonial”, que foi elaborada para evitar o uso do conceito de
a correção que Ortiz faz do uso do termo aculturação por Malianowski, estava tentando
evitar um dos sentidos atribuídos a palavra transculturação (talvez o mais comum), quando
na primeira definição de Ortiz, mantém uma sombra de mestiçagem. Semiose colonial por
sua vez, enfatiza os conflitos engendrados pelo colonialismo no nível de interações sócio-
semióticas e, com isso quero dizer na esfera dos signos.(MIGNOLO, 2000, p.14.)
Ainda em diálogo com Ortiz , Mignolo prossegue sua análise ao apontar que em algum
momento a definição do próprio autor cubano se aproxima do que ele entende por semiose
colonial. É o caso do estudo que Ortiz faz no segundo capítulo do Contrapunteo, ao analisar o
Europa renascentista. Neste caso, Ortiz está trabalhando com signos, objetivo de Mignolo ao
olhar a transculturação como espaço de signos e não como mestiçagem de povos. Para ele, mais
do que contradizer o conceito de Ortiz, que ele acredita ser de grande valia, o que falta na
transculturação de Ortiz é a análise do colonialismo e sua ausência, deve-se ao fato que, para o
Por outro lado, Mignolo aponta para uma série de ganhos na epistemologia das margens,
transculturação contribuiu enormemente para mover o discurso sobre raças para o discurso sobre
entre transculturação e colonialismo ele não formulou seu conceito a partir do imaginário do
científico de seu campo de estudo, foi capaz de relacionar-se visceralmente com Cuba e com o
Caribe, por encima das normas disciplinarias de sua formação acadêmica francesa. Neste sentido,
construção do pensamento das margens, apesar das margens que Ortiz apagou existirem
no objeto de estudo e não no sujeito do conhecimento... Talvez, Ortiz não tenha pensado,
o poder que permite afastar-se das considerações de ordem racial, a possibilidade de mover-se na
margens, como Darci Ribeiro, é essencial ter em mente que seu conceito está atravessado pelo
conceito de diferença colonial, mesmo que ele não tenha teorizado sobre isso.”(MIGNOLO,
2000, p.170)
não ocorre com relação à transculturação narrativa de Rama. Para Mignolo, a transculturação
narrativa foi uma importante contribuição no sentido de alargar o conceito de Ortiz para o campo
literário e cultural no terceiro mundo, e sua relação com a história universal, além de ser útil para
sintetizar algumas de suas idéias e organizar alguns conceitos que são similares com a própria
e mais recentemente, a nova consciência mestiça de Gloria Anzaldúa. No entanto, Mignolo parte
de um outro texto de Rama de 1965 para discutir a tradição do pensamento que vê a América
pela mentalidade crioula, que acredita quae nem as culturas indígenas ou africanas têm
aparentemente contraditória, proferida por um dos grandes críticos da cultura latino americana,
de filiação notadamente marxista. Essa discussão, porém, não cabe nos parâmetros deste ensaio
que pretende ficar no limites das leituras e resemantizações que os termos transculturação e
Londres, 1999.
1996.
1996.
LE RIVEREND, Julio. Ortiz y sus contrapunteos. In: Contrapunteo cubano del azúcar y del
LIENHARD, Martin. LA voz y su huella. La Habana: Ediciones Casa de las Américas, 1990.
MORAÑA, Mabel (org.) Ángel Rama y los estudios literarios latinoamericanos. Pittsburg:
latina. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte:
OTERO, Lisandro. Fernando Ortiz, pai da antropologia cubana. In: O Correio da Unesco. Rio de
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco. Havana: Editorial de Ciencias
Sociales, 1983.
PRATT, Mary Luise. Os olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Trad. Jézio
RAMA, Ángel. Transculturación narrativa em América Latina. México: Siglo XXI Editores,
1982.
RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban e outros ensaios. Trad. MariaHelena Matte Hiriart e