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Aquisição da língua escrita pelo surdo: um processo a ser

questionado
(Written language acquisition by the deaf: a process to be examined)

Lucinéa da Silva Santana¹


¹ Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

nea.santana@yahoo.com.br

Abstract: This paper aims to discuss one of the many complex issues involving the education
of the deaf: the acquisition of written language. Therefore, we bring some relevant aspects about
deaf people’s education over the years and its consequences for their educational process. We
will also discuss mother tongue acquisition (CASTRO, 2007), considering that a sign language
has such function for the deaf. Subsequently we will deal with written language acquisition.
As theoretical support we bring the considerations formulated by the interactionist perspective
in language acquisition initiated by Cláudia de Lemos (1997, 1999, 2002), to whom language
acquisition is a subjectivation process, thus standing away from conceptions that view language
acquisition as natural or effectuated upon overcoming the steps necessary to finally reach profi-
cient speaker level in one’s mother tongue.
Keywords: language acquisition; deafness; interactionism.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir uma das muitas questões complexas que
envolvem a educação dos surdos: a aquisição da língua escrita. Para tanto, trazemos alguns
aspectos relevantes sobre a educação dos surdos ao longo dos anos e suas consequências no
processo educacional. Faremos, também, uma discussão sobre a aquisição da língua materna
(CASTRO, 2007), considerando que a língua de sinais ocupa esse lugar para os surdos, para,
posteriormente, adentrar na aquisição da língua escrita. Como suporte teórico, buscamos as
considerações formuladas no interior da perspectiva interacionista em aquisição da linguagem
iniciadas por Cláudia de Lemos (1997, 1999, 2002), para a qual a aquisição da linguagem é um
processo de subjetivação; por isso, essa perspectiva afasta-se de concepções que veem a aqui-
sição da linguagem como natural ou efetivada por superação de etapas por meio das quais se
atinge, ao final, a condição de falante proficiente da sua língua materna.
Palavras-chave: aquisição de linguagem; surdez; interacionismo.

Introdução
As dificuldades de leitura e escrita ainda são alardeadas como principal problema
das pessoas com surdez. Muitas questões povoam a situação linguística dos surdos,1 a
iniciar, por serem brasileiros e, portanto, por se considerar que deveriam ter o portu-
guês como língua materna. Embora, um número ínfimo tenha domínio da língua falada,
a maioria dos surdos é usuário da língua de sinais; e, ao chegar à escola, começa seu pro-
cesso de alfabetização em uma língua oral. Isso se dá pelo fato de a língua de sinais ser
considerada uma língua ágrafa e não ter um sistema de escrita ainda em uso e, sobretudo,
pela hegemonia da língua portuguesa.
Destacamos, neste trabalho, a complexidade desse tema. Dessa forma, contex-
tualizamos aspectos relevantes sobre a educação dos surdos ao longo da história, des-
1
Neste trabalho, nos referimos aos surdos como um grupo linguístico e cultural usuário da língua de
sinais.

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crevendo as concepções do Oralismo, da Comunicação Total e do Bilinguismo e como
essas tendências influenciam a educação nos dias atuais. Fazemos uma discussão sobre
a aquisição da linguagem pelo surdo, discorrendo sobre a aquisição da língua materna.
Discutimos que o conceito de língua materna é algo complexo de ser definido; no
entanto, consideramos que a língua de sinais é a língua materna dos surdos, não por uma
questão cronológica de aquisição, mas por tratar de “uma experiência – entendida como
um vivido – atravessada por línguas, etnias ou culturas diversas” (CASTRO, 2007, p. 12).
No universo da surdez, a aquisição da língua materna pela criança não acontece
nas mesmas condições da criança ouvinte. Sabe-se, pois, que toda criança deve estar em
um ambiente linguístico para que se possa vir a ser um sujeito falante. Por mais diver-
gentes que sejam as teorias de aquisição de linguagem, todas professam desse mesmo
estatuto. No entanto, não basta a criança estar imersa num ambiente linguístico, visto
que este tem de ser acessível, de acordo as condições biológicas dela. Dificilmente uma
criança com surdez profunda conseguirá adquirir uma língua falada como língua materna,
apoiando-se exclusivamente no canal oral-auditivo.
Finalizando este trabalho, analisamos a produção textual de um informante com
surdez bilateral profunda, usuário da língua brasileira de sinais, filho de pais ouvintes,
discente do curso de Pedagogia de uma universidade pública, destacando as singularida-
des da escrita desse sujeito, o qual será chamado de MJ.

Entendendo a surdez: questões históricas e prática pedagógica


A visão em relação ao sujeito surdo vem se modificando no decorrer da história.
Diferentes abordagens debatem sobre a aquisição de linguagem pelo surdo, e o que se
presenciou é que, ao longo da história, não houve um consenso sobre o papel da oralida-
de, da língua de sinais e da escrita nesse processo histórico.
Apesar de este trabalho não ter o objetivo de desenvolver um estudo aprofunda-
do das questões históricas, faz-se necessário uma breve apresentação, para que se possa
compreender os rumos das práticas educacionais vigentes no momento.
A falta de audição sempre foi associada à incapacidade e nem sempre os surdos
foram respeitados em suas diferenças, havia uma crença hegemônica de que, como não
poderiam falar, não desenvolveriam linguagem, não tinham pensamento e, portanto, se-
riam inábeis para a aprendizagem formal. Todos os esforços eram na tentativa de levar o
surdo a falar, transformando-o em um ouvinte que não escuta.
Em prol desse “estatuto”, entrou em vigor o Oralismo, que, por sinal, sempre
existiu, mas sem uma imposição legal. A proposta de educar o surdo com base na oraliza-
ção teve aprovação unânime pelos participantes ouvintes no Congresso Internacional de
Educadores Surdos, realizado em Milão, no ano de 1880. Essa concepção de ensino proi-
bia oficialmente qualquer forma de comunicação por meio do uso da língua de sinais, aos
surdos, reservando-lhes o direito de receber treinamento oral e a aprimorar essa aprendi-
zagem. Segundo Goldfeld (2002), o Oralismo possibilitaria a integração da criança surda
na comunidade de ouvintes e a desenvolver uma personalidade como a de um ouvinte. A
preocupação maior era reabilitar o ouvido defeituoso, eliminar a surdez.

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No contexto educacional, presenciavam-se exercícios de vocabulário, de estrutu-
ras gramaticais e relações semânticas no nível de recepção e expressão da língua, exer-
cícios previamente elaborados pelo educador intensificando a estruturação da palavra e
da frase. Nada do que era feito ultrapassava técnicas de manipulação de comportamentos
verbais promovidas pelo educador. Além disso, para qualquer tentativa de uso de sinais
ou gestos, havia severas punições.
Após muitos anos de domínio no mundo, o Oralismo declinou. Os estudos de
William Stokoe, na década de 1960, comprovaram que a língua de sinais americana é uma
língua com todas as características das línguas orais. Muitas pesquisas começaram a ser
desenvolvidas em todo mundo e as línguas de sinais ganharam estatuto de língua.
Com a argumentação da autonomia da língua de sinais, por apresentar uma estru-
tura linguística própria nos níveis fonológico, morfossintático e semântico com a utiliza-
ção de um canal de expressão viso-espacial, resultou a força para uma nova concepção
de educação. Surgiu, então, a Comunicação Total, uma abordagem mista de comunica-
ção oral e manual, na qual, segundo Goldfeld (2002), eram permitidos os mais diversos
meios de comunicação: sinais da língua de sinais, leitura orofacial, mímica, pantomima,
alfabeto digital, expressão corporal e facial, treinamento auditivo, desenho, fala, leitura e
escrita, aparelhos auditivos binaurais para amplificação sonora.
A Comunicação Total, apesar de alargar as possibilidades comunicativas dos sur-
dos, não os isentou da imagem de deficientes, fato que transformou sua diferença em
incapacidade. Outra crítica a essa concepção de ensino referia-se à utilização da língua de
sinais. Fala, alfabeto digital e sinais eram utilizados simultaneamente, o que Cruz (1992),
Ferreira-Brito (2010 [1995]) e Góes (1994, 1996) chamam de Português Sinalizado em
se tratando de Brasil. O objetivo era nada mais, nada menos do que a obediência à sintaxe
do Português, no intuito de facilitar a aquisição dessa língua majoritária. O que de fato
não ocorreu, pois o bimodalismo (também assim era chamada a Comunicação Total) não
propiciava o domínio da língua oral, promovia apenas o aumento do léxico do Português.
Para estes autores, apesar dessa visão, a Comunicação Total não somente trouxe
maiores possibilidades de comunicação entre crianças surdas e ouvintes como também a
língua de sinais, anteriormente proibida, ganhou espaço e expansão.
No contexto atual da educação brasileira, presencia-se uma política de inclusão
fortalecida por pesquisas linguísticas no que se refere à língua de sinais (FERREIRA-
BRITO, 2010 [1995]; QUADROS; KARNOPP, 2004), e pela militância de grupos sociais
e pelo reconhecimento da língua brasileira de sinais como meio natural de comunicação
das pessoas surdas. A proposta, então, está baseada no pressuposto básico de que,

[...] o surdo deve ser bilíngue, ou seja, deve adquirir como língua materna, à língua de
sinais, que é considerada a língua propícia aos surdos pela sua modalidade linguística
espaço-visual e, como segunda língua, a língua oficial de seu país. (GOLDFELD, 2002,
p. 42)

A visão que se tem do surdo nessa abordagem é bastante diferente das abordagens
anteriores, pois não concebe o surdo como um deficiente, mas como um ser diferente que
pode aceitar e assumir sua surdez.

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O Bilinguismo vem ocupando um grande espaço no cenário científico mundial,
apesar de não haver consenso entre os pesquisadores em relação às teorias psicológicas e
linguísticas. No entanto, para alguns estudiosos a criança surda deverá adquirir a língua
de sinais como língua materna e a língua oral de seu país como uma segunda língua. A
questão intrigante é realmente a maneira como essa língua oral deverá ser adquirida pelos
surdos. Para Sanches (1993), a língua oral deverá ser adquirida apenas na modalidade es-
crita, já que a língua falada envolve recursos orais e auditivos, dificultados por sua perda
auditiva.
Há uma proposta que enfatiza a aquisição simultânea das duas línguas; outra,
defendendo que o surdo adquira primeiramente a língua de sinais no convívio com ou-
tros surdos mais velhos, para, assim, dominar essa língua e, posteriormente, aprenda a
segunda língua, o Português, fazendo referência ao Brasil. Não há, ainda, unanimidade
tampouco um modelo bilíngue que consiga efetivar a aquisição da língua oral pelo surdo.
A esse respeito, Fernandes (2006a, p. 3) esclarece que

[...] a educação bilíngue para os surdos é, de longe, um projeto utópico na grande maioria
das escolas. Isso se deve ao fato de que a educação bilíngue não só impõe a necessidade
de um novo olhar sobre os surdos, mas, sobretudo, porque envolve a transformação da
situação monolíngue da escola, fundada na língua portuguesa.

Presenciamos, de fato, no cenário educacional, propostas de uma educação bilín-


gue respaldada na oralidade. A diferença é que os professores não dão ênfase à fala dos
surdos, continuam utilizando metodologias pautadas na oralização em suas aulas e sequer
reafirmam a diferença linguística dos surdos.
Segundo Fernandes (2006a), “permanece o fantasma de Milão”, só que agora com
novo aspecto, já que a fala não é o centro do processo, mas o Português oral e escrito. E,
assim, configura-se um cenário educacional com professores que não sabem o que e como
ensinar o discente surdo. Logo, as dificuldades em adquirir o Português continuam.
Esse é um pequeno esboço da educação proporcionada aos surdos. O interesse
em manifestá-la é alertar para o fato de que os problemas vivenciados pelos surdos no
passado ainda continuam em evidência, ainda que de forma camuflada.

Aquisição da língua materna


Até pouco tempo, muitos surdos se tornavam adultos sem nenhuma língua. A
explicação deve-se ao fato de não adquirirem uma língua de modalidade linguística oral,
pelas condições biológicas,2 nem uma língua de sinais pela falta de domínio dos pais.
Com a propagação da língua de sinais devido ao surgimento de associações de surdos, o
evangelismo em instituições religiosas e o trabalho em escolas foi minimizada essa reali-
dade e os surdos passaram a adquirir essa língua mais cedo.
Apesar das condições de aquisição tardia da língua de sinais, esta permanece sen-
do a língua materna para o sujeito surdo, pois a língua materna está fora de uma sequência
cronológica ou classificatória de línguas.

2
Neste trabalho, defendemos a concepção socioantropológica da surdez e não a concepção clínica.

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A língua materna guarda um traço de incomensurabilidade que a impede de ser incluída
em uma lista de línguas. ... é uma experiência inaugural, impossível de ser esquecida;
mesmo quando a julgamos perdida, mesmo se não a reconhecemos na superfície da fala.
(CASTRO, 2011, p. 65)

Tal proposição justifica o fato de que, ao alguns surdos adquirirem a língua de


sinais em idade posterior à infância – pela falta de interação no seio familiar –, quando
inseridos numa comunidade de surdos usuários da libras, a captura pela língua gestual-
-visual é um processo quase que imediato. A língua materna, então, e essa Castro (2011)
tenta explicar, foge a uma sequência cronológica, porque “é a língua que se sabe” e que
torna um sujeito falante; no caso do surdo, um sujeito “sinalizante”.
Existem pessoas que possuem mais de uma língua materna, porque na infância fo-
ram submetidas a um contexto linguístico diversificado. Muitas vezes, famílias precisam
emigrar para países de nacionalidades diferentes e possuem filhos na infância, em idade
de aquisição. Além da língua falada na própria família, as crianças poderão aprender a
língua falada do país ao frequentarem a escola ou terem contato com outras pessoas na
vizinhança, em creches, por exemplo. Outra situação é quando uma criança tem pais de
nacionalidades diferentes, e estes interagem com ela em ambas as línguas. Na mesma
situação, os surdos também podem ter mais de uma língua materna, já que as línguas de
sinais não são universais e cada país possui sua própria língua.
Como já fora mencionado, muitos surdos não são usuários de libras por serem
filhos de pais ouvintes e estes não dominarem a língua de sinais, como também há aque-
les que habitam em zonas rurais e até mesmo em zonas urbanas que, no entanto, ficam
distantes de comunidades surdas. Como resultado, desenvolvem sistemas gestuais pró-
prios de comunicação, restritos a algumas situações de convivência cotidiana e familiar.
Na maioria das vezes, a comunicação se dá via gestos de apontação, não havendo uma
representação simbólica, ficando no plano do concreto.
Nesse processo de comunicação, falta-lhes uma língua. Para Saussure (2012
[1916], p. 70), trata-se da “parte social da linguagem externa ao indivíduo, que por si só
não pode nem criá-la, ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabele-
cido entre os membros da comunidade [...]”.
Segundo Ferreira-Brito (1993), a língua de sinais é classificada como uma língua
materna das comunidades surdas, porque, pelo canal visual-espacial, os surdos conse-
guem facilmente comunicar-se e receber a herança cultural das comunidades surdas.
Segundo a enciclopédia Wikipédia, a expressão língua materna provém do costume
em que as mães eram as únicas a educar os seus filhos na primeira infância, fazendo com
que a língua da mãe seja a primeira a ser assimilada pela criança, condicionando seu apa-
relho fonador àquele sistema linguístico.
A discussão que gira em torno do conceito de língua materna não é tão simples
como parece. Os autores não são unânimes em suas opiniões e, até mesmo, nos termos
empregados. Castro (2007) afirma que algumas teorias abrem a possibilidade para clas-
sificar as línguas adquiridas ao longo da vida numa sequência L1, L2... Ln e o que as di-
ferencia é a simples ordem de aquisição, assumindo ou não a hipótese do período crítico.
Para Castro (2007), a diferença no conceito não está em uma cronologia, numa
ordem de aquisição como sendo a primeira língua adquirida a L1, a segunda a L2, mas

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no saber e conhecer uma língua. A língua que se sabe é a língua materna, as demais lín-
guas que se conhecem a partir dessa são outras línguas, as quais foram referidas neste
trabalho como segunda língua. Para a pesquisadora, a língua materna pode ser, também,
uma língua que nunca foi falada por um sujeito, mas que foi escutada na infância no meio
familiar. A língua materna nunca será esquecida; portanto, se houver uma situação de
necessidade de uso, ela poderá vir a ser falada e/ou compreendida.
Conforme a exposição do tema, percebemos que nem sempre a língua dos pais
determina a língua dos filhos. E a discussão sobre a língua materna é uma questão ainda
não formulada na sua complexidade.

Aquisição da linguagem e o interacionismo


O interacionismo principiado por De Lemos (1997, 1999, 2002) concebe a aquisi-
ção da linguagem não por etapas ou desenvolvimento de estruturas cognitivas ou matura-
cionais do cérebro da criança, mas, como um processo que acontece mediante a mudança
de posição da criança pelo efeito da língua. Trata-se de uma posição subjetiva, pois é o
sujeito e sua relação com a língua que importam.
A criança, ao nascer, é frágil e indefesa; mas, não incapaz de manifestar suas ne-
cessidades e insatisfações como dor e desconforto. É através do choro que, inicialmente,
procura revelar suas necessidades e seus desejos. Desprovida ainda de uma língua, a todo
instante é interpretada pela mãe, pelo pai e por outros familiares, ao produzir emissões
vocais, gestos, direção do olhar. São os seus interlocutores os responsáveis por atribuir
significado às manifestações da criança, a qual é tomada por um universo rico de signifi-
cações, sendo traduzida a todo instante. Assim,

O bebê é visto como um potencial parceiro comunicativo do adulto, que empreende uma
“sintonia fina” com as manifestações potencialmente comunicativas e significativas da
criança, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (gesto, voz, balbucios, palavras ou
frases). (SCARPA, 2012, p. 253-254)

Essas ideias nos remetem ao interacionismo brasileiro, ao conferir ao outro o pa-


pel de destaque na aquisição da linguagem. Os gestos, os balbucios da criança são signi-
ficados pelo pai, pela mãe conferindo-lhes status de linguagem. De Lemos (1997) postula
que a criança só chega à língua através do outro, ou seja, através da interação com o outro
(adulto). A propósito, não se trata de uma construção unilateral, em que se vê a criança
separada do seu interlocutor, mas de um processo que, simultaneamente, envolve as duas
partes. Assim, notamos que

Os adultos respondem às ações de bebês muito pequenos como se fossem intencional-


mente direcionadas a eles e esta prática de tratar o bebê como um autor corresponde a
tratar o bebê como um destinatário, pois os dois papéis combinados instituem o bebê
como um parceiro conversacional. (OCHS; SCHIEFFELIN, 1997, p. 75)

Nessa perspectiva, e com base nos estudos realizados por Pettito, Bellugi e Klima
(1979), Quadros3 (1997) analisam as primeiras manifestações de linguagem das crianças
e, dessa forma, presenciou, nos bebês, o balbucio como primeira manifestação de lingua-
3
Autores que trabalham na perspectiva inatista da aquisição de linguagem.

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gem que pode ser tanto oral quanto manual. Segundo essa autora, tanto os bebês ouvintes
quanto os surdos manifestam os mesmos tipos de balbucios até determinado período, a
partir dos cinco, seis meses as vocalizações vão sendo interrompidas nos bebês surdos,
bem como as produções manuais vão sendo interrompidas nos bebês ouvintes, favoreci-
das pela interação das línguas maternas de cada um (QUADROS, 1997).
Com base no interacionismo, a criança é capturada por um funcionamento lin-
guístico-discursivo que lhe é anterior, ou seja, a língua já existe no meio social antes de
a criança nascer, e assim ser capturada por ela. Para manter relações com essa língua, é
necessária a interação da criança com a fala do adulto (instância de funcionamento da
língua), mudando de posição em uma estrutura na qual comparecem o outro, a língua e
o sujeito.
Essa concepção é também viável à aquisição da linguagem pela criança surda
usuária da língua de sinais. Essa língua compõe um funcionamento linguístico e uma
ordem própria, enquadra-se no quadro das línguas naturais (STOKOE, 1960; KLIMA;
BELLUGI, 1979; LIDDELL, 1980, 1984; STROBEL; FERNANDES, 1998; QUADROS;
KARNOPP, 2004; QUADROS, 2006; FERREIRA-BRITO, 2010 [1995]), pois surgiu da
necessidade de comunicação e interação dos surdos, possui uma gramática própria, como
também todos os critérios linguísticos das línguas naturais/ou orais. O que falta nesse
processo de aquisição é o outro (adulto: pai, mãe) fazer/ser parte desse funcionamento
linguístico. Em outras palavras, falar, ou seja, sinalizar a mesma língua que a criança
pode adquirir. Neste caso, uma língua de sinais que a maioria das famílias dos surdos
desconhece.
Neste contexto, a língua de sinais, por sua modalidade gestual-visual, é a língua
propícia para o surdo estabelecer relações sociais, manifestar-se culturalmente e construir
sua própria identidade. Uma língua oral-auditiva, como a Língua Portuguesa, só será viá-
vel ao surdo pela escrita. Ressalta-se, entretanto, que se está fazendo referência ao surdo
pré-linguístico4 com surdez profunda bilateral, já que a surdez existe na heterogeneidade.
São diversos os tipos de surdos: filhos de pais ouvintes, filhos de pais surdos, oralizados5
e usuários da língua de sinais.
Quando fazemos referência ao impedimento biológico para ouvir, não estamos,
em momento algum, atribuindo à surdez as causas do fracasso escolar, nem estamos de-
fendendo uma visão clínica6 da surdez. A concepção aqui defendida é a socioantropológi-
ca, porque concebe a pessoa com capacidades e potencialidades.
Até o presente momento, apontamos algumas especificidades linguísticas do sur-
do no que se refere à aquisição da linguagem e evidenciamos a importância do papel do
outro, seja ele pai, mãe, ou demais pessoas que convivem com o surdo. Para o interacio-
nismo estruturalista, postulado por De Lemos (2002), o outro (adulto) tem uma função
primordial na aquisição da linguagem. A autora, em sua teorização, estabelece três posi-
ções pelas quais a criança circula, considerando a aquisição da linguagem como processo

4
Surdo pré-linguístico é aquele que adquiriu a surdez no período pré-natal ou na primeira fase de sua
vida, antes da aquisição de uma língua oral.
5
A expressão refere-se aos surdos com treinamento para a fala oral.
6
Essa concepção concebe a surdez como uma patologia, havendo a necessidade de reabilitar o ouvido
defeituoso.

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de mudança de posição da criança em uma estrutura cujos polos são o outro, a língua e o
próprio sujeito (DE LEMOS, 2002).
Na primeira posição, a criança (falante) é dependente da fala do outro ou alienada
a essa fala. E, embora esteja nessa condição, há uma não coincidência, uma separação
entre as falas, revelando algo a mais que uma mera dependência, trata-se da escuta da fala
da mãe na fala da criança (DE LEMOS, 2002).
Na segunda posição, a criança aceita as intervenções da mãe, recorre a ela quando
quer saber algo e domina, em parte, a progressão do diálogo. O erro é a característica
fundamental dessa posição. Segundo de Lemos (1997), é a partir desse fenômeno que a
criança elaborou sua proposta a respeito das três posições, visto que, entre outros fatores,
o erro possibilita maior visibilidade dos dados. Baseada em Jakobson e Lacan, a autora
concebe o “erro” como indício de ressignificação pela criança dos fragmentos incorpora-
dos à fala do outro – processos metafóricos e metonímicos (DE LEMOS, 2002). Assim, a
criança deixa de ser interpretada para ser intérprete.
Na terceira posição, a criança encontra-se na condição de falante/ouvinte da lín-
gua. Divide-se entre aquele que fala e aquele que escuta a própria fala. Os “erros” desa-
parecem, visto que a criança é capaz de corrigir a sua fala, fazer reformulações, correções
e autocorreções através de substituições, o que significa que ela remete aos processos
metafóricos e metonímicos que implicam reconhecimento da diferença entre a unidade a
ser substituída e aquela que vem substituir (DE LEMOS, 2002).

Trata-se, portanto, de uma mudança estrutural, sem, contudo haver superação de [...]
“nenhuma das três posições, mas uma relação que se manifesta, na primeira posição, pela
dominância da fala do outro, na segunda posição, pela dominância do funcionamento da
língua e, na terceira posição, pela dominância da relação do sujeito com sua própria fala”.
(DE LEMOS, 1999, p. 26)

A aquisição da linguagem pela criança surda é recheada de particularidades. O


que se presencia na maioria dos casos, é que crianças surdas são filhas de pais ouvintes e
vêm tentando interagir com o adulto (mãe, pai) através de uma língua falada e não uma
língua de sinais. O ambiente linguístico é, então, desfavorável à aquisição de uma língua
de sinais, já que não existe o processo de interação dentro de uma mesma língua.
Sabemos, pois, que uma criança em condições naturais de aquisição da linguagem
não pode ser capturada por um funcionamento linguístico que não lhe é peculiar, ou seja,
um funcionamento linguístico de base oral-auditivo produzido pela fala e percebido pela
audição. A criança, nesse caso, ao contrário do que afirma De Lemos (1999), em condi-
ções favoráveis de aquisição, não se move na mesma estrutura de língua do adulto, apesar
de a língua oral possuir materialidades diversas (gestos, expressões corporais). Já que es-
sas materialidades não são suficientes para a aquisição de uma língua (sistema simbólico)
de natureza fonológica pela criança surda, o funcionamento linguístico precisa ser o da
própria língua de sinais, gestual-visual.
Compreendemos, contudo, que há um fator além da surdez para que uma pes-
soa possa adquirir uma língua. Trata-se da cinestesia (empatia) que rege os mecanismos
de produção da fala. Isso pode explicar o que aconteceu no século XVIII, quando mui-
tos surdos foram ensinados e aprenderam a falar com grande desempenho. Como, não

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há, na literatura, muita clareza sobre os métodos utilizados, certamente foi necessário
ensinamento com técnicas de reprodução das articulações dos sons e mecanismos
aerodinâmicos, além do fator mencionado.
Porém, se a aquisição for com base na modalidade escrita, o surdo será capturado
por esse funcionamento linguístico, não pela crença de um conhecimento a ser ensinado
pelos métodos tradicionais de alfabetização que apostam na relação direta entre oralidade
e escrita. De Lemos (1998) trata a aquisição da escrita através das práticas discursivas
escolares e não escolares, em que o outro tem o papel de intérprete, assim como na aqui-
sição da língua oral.

O papel do outro [...] seria o de intérprete. Lendo para a criança, interrogando a criança
sobre o sentido do que “escreveu”, escrevendo para a criança ler, o alfabetizando, como
outro que se oferece ao mesmo tempo como semelhante e como diferente, insere-se no
movimento linguístico-discursivo da escrita. (DE LEMOS, 1998, p. 29)

Como a autora defende a aquisição da linguagem escrita através das práticas dis-
cursivas, presenciamos, também, a importância do outro nesse processo, assim como na
aquisição da língua escrita.
Mediante essas considerações, na etapa seguinte, analisaremos a escrita de um
sujeito surdo discorrendo sobre as particularidades existentes.

Procedimento metodológico
O corpus7 deste trabalho é composto por produção textual em libras e em Língua
Portuguesa de um aluno surdo do curso de Pedagogia de uma universidade pública no
interior da Bahia, e foi realizado em dois momentos distintos.
Trata-se de um informante com surdez profunda bilateral, usuário da libras, do
sexo masculino, que estuda com a presença de intérprete na sala de aula, é filho de pais
ouvintes, aprendeu libras na escola com professores ouvintes e colegas surdos por volta
dos dez anos de idade. Atualmente, tem 26 anos de idade.
Com o propósito de mantermos a integridade ética da pesquisa, será atribuída a
abreviação MJ ao nos referirmos ao sujeito da pesquisa.
Na primeira etapa, MJ contou uma história em libras: “Os três porquinhos”. A
escolha dessa narrativa deu-se mediante o conhecimento que o informante já tinha da
referida história. A narrativa foi filmada e gravada em videocassete.
Na segunda etapa, MJ escreveu a história que foi narrada em libras na etapa ante-
rior e fez uma produção escrita livre em Português dessa história.
Por motivo de a libras não ter um sistema de escrita ainda em uso, os dados da
libras não serão apresentados, apenas servirão de suporte para analisarmos o nível de
aquisição e a produção da língua de sinais do sujeito informante e compararmos, em de-
terminados momentos, se há marcas da libras na escrita do informante.

7
A pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia – UESB, e consentimento do informante através do Termo de Consentimento Livre Esclarecido
– TCLE.

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Discussão e análise dos dados
A escrita do surdo, se comparada à escrita de um ouvinte, revela traços bastante
diferentes. Apesar de o informante já estar no nível superior de escolaridade, sua es-
crita possui características que a distinguem da escrita de falantes nativos da Língua
Portuguesa. Devido a isso, pode causar estranheza aos que leem seu texto. Nesse sentido,

[...] para quem não concebe a natureza da escrita dos surdos, o grau de aceitabilidade seria
menor, porém o que pode parecer incoerente, a princípio, depende do interlocutor e de
sua habilidade para interpretar e investir em uma estrutura de constituição de um relato
coerente. (GUARINELLO, 2007, p. 106)

O fato de o texto não estar escrito conforme as normas convencionais da língua


não impede que seja estabelecida uma comunicação e, até mesmo, que se demonstre que
o informante compreende a função social da escrita e os fatores linguísticos presentes na
escrita do Português.
A seguir, o texto de MJ, o qual tomamos como base para nossa análise.

Figura 1. Arquivo da autora.

Para garantir a clareza da análise realizada, organizamos o quadro a seguir:

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Exemplos no texto
Elementos presentes Elementos ausentes
Título O porcinho três
Estruturação de parágrafos
Um único parágrafo para todo o texto
de uma narrativa
[...] lobo sorrir quer comer, fome madeira
assoprar. Cair [...]
Pontuação (raras vezes)
[...] vou quer comer, fome porcinho
[...] vem andar fila.
Emprego do artigo (aparece
vamos um casa porcinho
uma única vez)
Acentuação já, três
(Vamos com comer)
Preposição Preposição
(vem andar [ ] fila)
Porcinho (porquinho)
Tembrem (também)
Ravia (raiva)
Inadequação do vocabulário
Enter (entrar)
Ducer (descer)
Gratis (gritar)
(três casa)
Concordância
(outro 2 não conseguir)
Verbos (a maioria na forma Fazer, ver, comer, correr, esconder, sorrir,
infinitiva) assoprar, cair, conseguir, fugir, andar.

Na produção de MJ, presenciamos um texto organizado sem a estruturação de pa-


rágrafos, comuns à estrutura de um texto narrativo. Todo o texto foi escrito em um único
parágrafo.
MJ apresenta pontuação esporadicamente, conforme exemplificado anteriormente
no quadro. Não fez uso de nenhum artigo definido, utilizou apenas uma vez o artigo in-
definido “vamos um casa porcinho”; porém, sem concordância com o termo relacionado
“um casa”. Na realidade, se a interpretação da frase for “vamos para a casa do porqui-
nho”, seria necessário o artigo “a” e não o artigo “um”.
O informante acentuou vocábulos corretamente “já” e “três”, apesar de os surdos
demonstrarem dificuldade em acentuar graficamente palavras. Sabemos que, além das re-
gras gramaticais de acentuação, utilizamos como “critério para acentuar os monossílabos
tônicos ou átonos, a intensidade com que os pronunciamos na frase” (PASCHOALIN;
SPADOTO, 2008, p. 459). No entanto, isso não influencia o conhecimento de MJ. Há
evidências de que o sujeito tem consciência das regras de acentuação gráfica dos mo-
nossílabos tônicos, já que, em seu texto, aparecem outros monossílabos tônicos – “ir”,
“ver”, “vou”, “tem” “mal” – que não foram acentuados conforme propõem as regras de
acentuação.
Nesse aspecto, Fernandes (2006a) traz outra explicação para o desempenho de
MJ. Para a autora, o surdo utiliza a memória visual como critério para aprender a escrita
de uma língua oral.

Desde os primeiros contatos com a escrita, as palavras serão processadas mentalmente


como um todo, sendo reconhecidas em sua forma ortográfica (denominada rota lexical),

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serão “fotografadas” e memorizadas no dicionário mental se a elas corresponder alguma
significação. [...] É esse o mecanismo cognitivo que permitirá que os surdos passem da
palavra ao significado, sem conhecer seus sons. (FERNANDES, 2006a, p. 9)

Observamos, também, que o emprego do artigo e da preposição quase não existiu.


Com relação à categoria preposicional, quando MJ fez uso, não selecionou devidamente
os termos relacionados “vamos com comer”, o que evidencia que ele ainda não adquiriu
essa categoria gramatical. Além disso, há evidências da influência da libras na escrita
do informante, já que, na narrativa contada em libras, não fez uso de nenhum sinal que
fizesse referência à categoria preposição. Segundo Fernandes (2003) e Faria-Nascimento
e Nascimento (2010), não há na libras as categorias gramaticais artigo e preposição.
Quanto ao quesito concordância, a inadequação em “três casa” e em “outro 2 não
conseguir” pode estar relacionada ao fato de, na libras, a concordância nominal acontecer
com base em componentes espaciais; e a concordância verbal pode ser justificada em
razão de, na libras, a flexão de tempo, modo e pessoa ocorrerem por mecanismos discur-
sivos contextuais e também espaciais. O que vem justificar o uso dos verbos na forma
infinitiva por MJ: “fazer, ver, comer, esconder, sorrir, assoprar, [...] andar”.
Essa análise da escrita de MJ permite refletir sobre a escrita do surdo. O propósito
aqui não é reforçar erros, inadequações e desvios da norma padrão do Português; mas,
sobretudo, revelar como os surdos vêm escrevendo. Os erros são vistos como “etapas de
apropriação”, podendo, inclusive, a “produção escrita da criança ser um indício do quanto
ela conseguiu se apropriar do sistema ortográfico” (ZORZI, 1998, p. 20). Podemos fazer
essa relação não apenas com um texto de uma criança, mas do surdo também.
Para De Lemos (1998), o texto escrito pode entrar na relação com o texto oral,
adquirindo significação e vindo a ser interpretado com base nele. Por sua vez, o texto oral
pode, também, instaurar relações de significação tendo como referência o texto escrito e
isso não se relaciona com o processo relação gráfico-fonêmico, mesmo porque propostas
metodológicas que privilegiam a relação letra-som como pré-requisito não contemplam
os surdos porque dependem das experiências auditivas.
O que está apontado na escrita de MJ revela indícios de marcas de oralidade,
conforme discorre Lemos, só que, em se tratando do surdo, a sua língua oral corresponde
à sua língua de sinais; entretanto esta, conforme mencionado neste trabalho, ainda não
possui um sistema de escrita em uso. Em consequência disso, a pessoa surda tem seu pro-
cesso de alfabetização na escrita da língua oficial de seu país. Assim sendo, nada impede
que o texto escrito do surdo entre em relação com o texto oral, o qual nada mais é que a
língua de sinais.
O que queremos demonstrar com essas considerações é que há uma forma pecu-
liar de escrita, um modo subjetivo de escrever. De Lemos (1992) esclarece que, no diá-
logo da criança com a mãe, podem surgir fragmentos (partes de um texto e de uma cena
recorrente) trazidos pela criança. O mesmo pode acontecer na escrita, pois fragmentos
de outros textos visualizados anteriormente e/ou produzidos em língua de sinais podem
surgir na escrita do surdo. Tais fragmentos são considerados pela autora como processos
metafóricos e metonímicos oriundos do cruzamento entre as cadeias manifestas com as
cadeias latentes e de seu deslocamento de outros textos (DE LEMOS, 1992).

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O texto escrito por MJ revela efeitos de linguagem em sua interação com a mate-
rialidade da linguagem. Não se trata de interação entre indivíduos, mas de interação na e
pela linguagem, o que não descarta a importância do outro, não como um ser individual,
mas como efeito de funcionamento linguístico, podendo interpretar a criança em todas
suas nuances – fala, gesto, movimentos, olhar – e, ainda, interrogar sobre o sentido do
que escreveu – lendo, escrevendo, dando significado a este texto –, através das práticas
discursivas, como propõe De Lemos (1998).
Acreditamos, pois, que a escrita do surdo chama a atenção para a importância da
interpretação que se precisa fazer dela. Afirmar que essa escrita está distante das normas
convencionais da língua parece ser um caminho fácil. Melhor seria buscar interpretá-la,
atribuindo e produzindo sentidos, e, desta forma, mobilizando, o processo de aquisição
que, até o presente momento, é considerado algo bastante complexo.

Considerações finais
Apresentamos, neste trabalho, algumas questões que envolvem a aquisição da lin-
guagem pelo surdo. Discutimos sobre as concepções de ensino voltadas para a educação
dessas pessoas, a língua materna e a complexidade que gira em torno do seu conceito, e
a concepção de aquisição de linguagem pautadas pelo interacionismo, iniciado por De
Lemos. E finalizando, analisamos aspectos particulares da escrita de MJ, sujeito surdo,
usuário da libras.
Obviamente, discutir sobre aquisição de linguagem e, em específico, na surdez
não se trata de algo tão simples quanto a síntese demonstrada neste trabalho. Fizemos
uma reflexão sobre a língua materna por considerar que é por meio de uma língua que
se chega ao conhecimento e, também, porque as inúmeras dificuldades que as crianças
surdas têm enfrentado giram em torno das questões de linguagem.
A análise realizada neste estudo nos revelou que a escrita de MJ apresenta ca-
racterísticas bastante diferentes da escrita de um ouvinte, apesar de convergir em alguns
aspectos com a escrita de ouvintes no início do processo de alfabetização. Evidentemente,
não se trata de uma narrativa contada dentro das normas convencionais do Português; no
entanto, não deixa de expressar que MJ está na linguagem, ou melhor, está sendo captu-
rado pela linguagem escrita.

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