Seminário de Filologia e Língua Portuguesa - 4
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Seminário de Filologia e Língua Portuguesa - 4
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA
I SEMINÁRIO DE FILOLOGIA E
LÍNGUA PORTUGUESA
(Orgs.)
PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
3
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
FILOLOGIA E LÍNGUA PORTUGUESA
I SEMINÁRIO DE FILOLOGIA E
LÍNGUA PORTUGUESA
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
Editor responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Diagramação
Marcos Eriverton Vieira
Revisão
organizadoras / Simone Zaccarias
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................ 7
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
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APRESENTAÇÃO
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APRESENTAÇÃO
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Cambraia, com o Livro de Isaac (cód. alc. 461, olim CCLXX) em seu doutoramento;
João Antônio de Santana Neto, com Castelo Perigoso (cód. alc. 199, olim CCLXXVI
e 214, olim CCLXXV), em seu doutoramento, ou do século XVI: Fernando Ozório
Rodrigues, com As histórias de Trancoso (incunábulo de 1575 e 1595) ou com estu-
do de variação gráfica em manuscrito: Sílvio de Almeida Toledo Neto, com O
Livro de José de Arimatéia (Cód. ANTT 643), em sua dissertação de mestrado.
Heitor Megale
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1. EDITAR É PRECISO
editado com o objetivo de regularizar formas– desde grafemas até itens lexicais –
para facilitar a leitura às pessoas que não estejam habituadas a lidar com esse tipo
de texto, regularização esta que apaga e altera os traços lingüísticos presentes no
texto original.
À primeira vista, poder-se-ia pensar que a melhor solução para os estu-
diosos da história da língua portuguesa seria a consulta direta ao manuscrito, o
que eliminaria as intervenções dos editores e resguardaria a fidelidade em rela-
ção ao original. Aparentemente, esta seria a melhor solução, mas, na verdade,
não o é.
Em primeiro lugar, muito raramente um lingüista tem acesso direto a um
manuscrito, seja porque as instituições que o possuem não lhe permitem o aces-
so ao texto (o que é perfeitamente compreensível, já que indubitavelmente o
manuseio freqüente de um códice sempre leva a um desgaste do mesmo), seja
porque os textos com que deseja trabalhar se encontram em lugares diferentes e
distantes geograficamente (como tornar viável uma pesquisa que pressuponha a
consulta de um manuscrito na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, outro na
Arquivo Nacional da Torre do Tombo e outro no Museu Britânico?).
Em segundo lugar, mesmo que tivesse acesso ao manuscrito ou a um fac-
símile seu, a sua leitura pressuporia conhecimentos de natureza codicológica que
apenas um estudioso que tiver se debruçado detidamente sobre um dado texto
seria capaz de fornecer. Como cada manuscrito possui características próprias, a
sua compreensão exigiria que o lingüista fizesse um trabalho à parte com cada
manuscrito para, somente depois, passar à análise da linguagem do texto. Quanto
aos fac-símiles, fotografias ou cópias xerográficas, convém salientar que nem mes-
mo esses recursos são capazes de reproduzir com absoluta fidelidade as caracterís-
ticas de um original.
É por essas razões que se defende aqui que editar é preciso. A viabilização
dos estudos diacrônicos depende, sem dúvida, da realização de edições rigorosas e
fidedignas, que ofereçam o máximo possível de informações sobre o texto, repro-
duzindo, na medida do possível, todas as características do original e efetuando
apenas aquelas intervenções que se fizerem necessárias para a inteligibilidade do
texto (como, por exemplo, o desdobramento de abreviaturas). Através da realiza-
ção desse tipo de edição, estar-se-ia transpondo o problema da localização do texto
(pois, editado em livro, poderia ser remetido para qualquer lugar), o problema da
conservação do manuscrito (uma consulta feita por um estudioso de crítica textu-
al seria suficiente para a elaboração rigorosa de sua edição, o que permitiria a
vários estudiosos das mais variadas áreas terem acesso ao texto) e o problema do
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1
Consultar também as justificativas de Duarte (1986, p. 18-22) para a dupla edição (paradiplomática e
interpretativa) dos documentos em português da Chancelaria de D. Afonso III.
2
Azevedo Filho (1987, p. 29-35) também defende serem estes os quatro tipos de edição.
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
tipo de edição, em uma versão um pouco mais conservadora3 do que como defini-
da por Spina (1994), tem como vantagem respeitar ao máximo as características
do original, fazendo-se, no entanto, pequenas intervenções (sempre assinaladas!)
com o objetivo de viabilizar a leitura ao seu público. Embora voltada para um
público em especial, isto não significa que estudiosos de outras áreas não possam
também utilizá-la: este tipo de edição serve também, por exemplo, a pesquisadores
de literatura ou historiadores, que, com um pequeno esforço inicial para se habitu-
arem ao sistema de transcrição adotado, certamente não encontrarão maiores di-
ficuldades na leitura do texto.
NORMAS JUSTIFICATIVAS
Norma geral ® Manter o máximo possível Possibilita uma análise do texto nos níveis
de características do original grafemático, fonético-fonológico, morfoló-
gico, sintático, semântico e lexical.
3
Conferir, por exemplo, a edição semidiplomática d’A Vida do Cativo Monge Confesso preparada por Cambraia &
Lobo (1995).
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
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Os sinais utilizados para assinalar inserções e supressões variam muito de edição para edição. Uma proposta
unificadora que dê conta das especificidades de cada manuscrito ainda está por ser elaborada.
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A B
Por um lado, a seqüência < or<aç>oes > em A parece ser um caso de erro
(omitiram-se duas letras no interior dessa palavra), por se tratar de ocorrência
única no manuscrito e, além disso, por a forma em questão não ser relacionável
aos processos fonológicos de que se tem notícia na história do português (haveria,
no entanto, a hipótese de se tratar de forma abreviada, mas seria necessário admi-
tir que o traço reto seria, ao mesmo tempo, sinal de abreviatura da seqüência < aç
> e sinal de nasalidade da(s) vogal(is) da sílaba final). O mesmo, por outro lado,
não pode ser dito da seqüência < \enho<r> > em B, pois a queda do / r / em final
de palavra é um processo atestado na língua portuguesa (conferir, por exemplo, a
forma popular “sinhô”) e essa seqüência poderia estar revelando que esse processo
já estava em curso no português quatrocentista.
Um segundo problema consiste na diferenciação de maiúscula e minús-
cula. E⌠m alguns casos, faz-se essa distinção sem qualquer problema, dada a dife-
rença existente no traçado de uma e de outra. Entretanto, casos há em que só a
proporção de uma letra em relação às outras na palavra parece ser um meio para
diferenciá-las. Examinem-se os dados abaixo:
A B
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A B
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CAMBRAIA, César Nardelli. Subsídios para uma proposta de normas de edição...
O último problema que será abordado aqui (o que não quer dizer que os
problemas sejam apenas estes...) diz respeito à distância entre as palavras. Como
foi dito acima, é relevante manter o sistema de separação vocabular original dos
manuscritos porque ele pode fornecer informações sobretudo de natureza fonético-
fonológica (o sistema de separação parece basear-se no vocábulo fonológico e não,
como o atual, no vocábulo formal). Porém, também pelo fato de a escrita ser manu-
al, a distância não é sempre a mesma, o que suscita dúvidas sobre duas seqüências
estarem ou não juntas. Consultem-se os dados que se seguem:
A B C
que deus (fl. 89 recto que he ? (fl. 89 recto quea (fl. 89 recto
linha 1) linha 16) linha 5)
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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BIBLIOGRAFIA
ABSTRACT: In this paper, the issue of editing old texts for the purpose of linguistic
studies is discussed. In the first part, the necessity of preparing editions specific
for linguists is defended and the choice of a particular type of edition – the
semidiplomatic edition – as the most adequate for this purpose is justified. In the
second part, a sketch of a proposal of rules for editing old texts for linguists is
presented. This discussion is illustred with examples taken from the semidiplomatic
edition of the fifteenth century work Livro de Isaac (cód. alc. CCLXX/461).
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
mesmo inviabilizaria uma descrição lingüística posterior que tomasse como base
esse trabalho.
Uma edição não é definitiva nem é um fim em si mesma, pelo contrário, é
um ponto de partida para estudos posteriores que o texto permita: literários, histó-
ricos, lingüísticos, semióticos, entre outros.
Tendo em mente a afirmativa anterior, opta-se por uma dupla leitura para o
texto Castelo Perigoso, pois à luz do estudo da mística do Castelo Perigoso, desenvol-
vido anteriormente, pode-se inferir que o texto que ora se edita há de interessar a
teólogos, a místicos, a religiosos, em geral, aos historiadores especializados ou não
em Idade Média, bem como ao leitor comum estudioso desse aspecto da cultura
medieval. A tais interesses sobrepõe-se o do lingüista que busca elementos grafe-
máticos, fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos para documentar a
história da língua ou para fundamentar teorias e confirmar hipóteses. Exige-se
pois do trabalho de edição que, além de preservar a autenticidade dos testemu-
nhos, evite, por todos os meios possíveis, veicular já não apenas erros de transcri-
ção, mas toda e qualquer imprecisão que pudesse permitir interpretações errô-
neas.
A preocupação com a fidelidade ao texto é levada a tal ponto que, não
bastasse a lição crítica rigorosa com o indispensável aparato crítico, apresenta-se
mais uma lição em que a atualização ortográfica deixa mais à vontade o leitor
porventura menos informado acerca do estado de língua à época em que se copia-
ram os testemunhos.
Na primeira leitura, moderadamente conservadora, de modo a não modifi-
car os traços fonológicos do texto, se bem que regularizadora, de acordo com os
critérios a seguir explicitados, procurou-se manter a ortografia do manuscrito base
e as marcas de flutuação da língua, embora com intervenções como a inserção de
pontuação e de acentuação, o desenvolvimento das abreviaturas, a separação de
palavras segundo o modelo atual, entre outras. Tomou-se como base os critérios
adotados por Lança (1994, p. 57-67), uma vez que nesse trabalho a pesquisadora
edita dois tratados pertencentes aos mss. 199 e 214, sob a orientação do Prof. Dr.
Luiz Fagundes Duarte.
Na segunda, com atualização ortográfica, de modo a fornecer aos não acos-
tumados à língua portuguesa medieval uma visão do conteúdo do texto, alguns
poucos critérios também foram estabelecidos, conforme explicitação a seguir,
objetivando esclarecer as intervenções realizadas. Localizada no verso da folha,
visa a possibilitar justaposição de ambas as leituras.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Tomou-se como texto base o ms. 199 (A), uma vez que a cronologia clara-
mente o permite. O ms. 214 (B), posterior, é apenas utilizado para a elaboração do
aparato crítico.
NORMAS DE TRANSCRIÇÃO
1. LEITURA CRÍTICA
1.1 VOCALISMO
1.1.1 Os grafemas alógrafos <i> e <j>, bem como o grafema <y>, ocorrem
indistintamente no ms. 199 ora com valor vocálico (vida / vjda / vyda) ora
com valor semi-vocálico (leixa, maior / frujto, mujtos, muj / fruyto, mayor).
Optou-se por uma regularização dos mesmos no sentido da forma mais
moderna atestada no texto, ou seja, pela transcrição de todos eles por
<i>.
1.1.2 As vogais geminadas ou duplas são mantidas em todos os casos: etimoló-
gicas ou não (neste último caso, porque geralmente se trata de marcas de
abertura ou de acento da vogal), orais ou nasais.
1.1.3 As vogais nasais são todas conservadas, sendo marcadas por til, <m> ou
<n>.
1.1.3.1 Em posição não final as vogais nasais são marcadas com <m> ou <n>.
Uniformiza-se o uso de <m> ou de <n> antes de consoante labial ou de
todas as outras consoantes, respectivamente, mesmo que no manuscrito
ambas ocorram indiferenciadamente.
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
1.1.3.2 Em hu)u) / hu)a, algu)u) / algu)a e nehu)u) / nehu)a as vogais são marcadas por
til; a substituição do til por <m> em hu)a conduziria à confusão com uma
consoante que na época ainda não teria sido desenvolvida.
be)( : bem
comu)u) :comu)u
podenlha : podem-lha
nõ / nom : nom
bõõ : bo)o
1.1.3.4 As vogais nasais seguidas de <s>, em posição final, são transcritas com
til.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1.2 CONSONANTISMO
1.2.1 Os grafemas alógrafos <u> e <i> com valor consonântico são transcri-
tos respectivamente como <v> e <j>, uma vez que ocorrem no manus-
crito com estes valores.
dauid : David
uida : vida
igreia : igreja
deseio / desejo : desejo
seia / seja : seja
soll, ssombra
fallssos
peccadores
horaçom, amehúde
1.3 ABREVIATURAS
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
A ligação de palavras sujeita-se ao modelo atual, sempre que tal não afete
o seu valor semântico; o mesmo critério é adotado para a separação, quer através
da sua deslocação, quer através da introdução de apóstrofo e de hífen.
cõtente : contente
oenxempro : o enxempro
susoditas : suso-ditas
dauomdamça : d’avondança
façe : face
penitençia : penitência
comparacom / comparaçom : comparaçom
çugidade
1.6 MAIÚSCULAS
ds : Deus
dauid : David
agostinho : Agostinho
auangelho : Avangelho
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1.7 ACRÉSCIMOS
<homem>
avondantem<en>t<e>
g<r>aças, out<r>as
ora : <h>ora
auer : <h>aver
{lhe}
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
[1r]
1.9.4 Na “Tábua dos Capítulos”, como os fólios não são numerados no manuscri-
to, empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso) com a numeração em algarismos romanos.
[IVr]
1.10 CITAÇÕES
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
he (C: é)
a (ha, a); o (ho, o)
1.11.8 Todos os casos não previstos nesses critérios, ou que levantem alguma
dúvida, são anotados, um a um, no aparato crítico.
2.1 VOCALISMO
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
2.1.2 As vogais nasais, quer em posição medial quer em posição final, são repre-
sentadas de acordo com a ortografia moderna.
mudo : mundo
bees : bens
coraçom : coração
2.2 CONSONANTISMO
çugidade : sujidade
sage : saje
pollo : pelo
2.3 ABREVIATURAS
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
2.6 MAIÚSCULAS
2.7 ACRÉSCIMOS
<nos>
corruta : corrupta
{lhe}
donjon
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
ca : porque
dês i : então
Salomom : Salomão
David : Davi
Sam Lucas : São Lucas
discorreo : discorreu
[1r]
2.9.4 Na “Tábua dos Capítulos”, como os fólios não são numerados no manuscri-
to, empregam-se os colchetes retos para indicação da mudança de fólio e de
face (recto e verso) com a numeração em algarismos romanos.
[IVr]
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
2.10 CITAÇÕES
2.11 NOTAS
JOÃO, c. 23, v. 20
JOÃO, Apocalypsis, c. 1, v. 5
PAULO, Epistula ad romanos, c. 4, v. 25
Liber Isaiae, c. 53, v. 2-3
2.11.3 As notas referentes aos Padres da Igreja, provérbios, filósofos e outros são
indicações de fontes retiradas da edição de Brisson (1974) e figuram sem
destaque. Conservam-se as abreviaturas.
PL Patrologiae Latinae
PG Patrologia Graecae
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SANTANA NETO, João Antonio de. Critérios propostos para dupla leitura...
La Somme, f. 117v
Le Tresor, f. 4r
BIBLIOGRAFIA
LANÇA, M. M. (1994) Para uma edição de dois tratados cartusianos do ‘Castelo Perigoso’: ‘Das
Penas do Inferno’ e ‘Das Alegrias do Paraíso’. Dissertação de Mestrado. Lisboa, Universida-
de Nova de Lisboa.
MAGNE, A. (1942) ‘Castelo perigoso’. Revista Filológica, 4, Rio de Janeiro, p. 183-202.
_______. (1942) ‘Castelo perigoso’. Revista Filológica, 5, Rio de Janeiro, p. 81-7.
_______. (1945) ‘Castelo perigoso’. Verbum: boletim de filologia, 2, Rio de Janeiro, p. 116-
123, 233-8, 345-53, 458-69.
_______. (1946) ‘Castelo perigoso’. Verbum: boletim de filologia, 3, Rio de Janeiro, p. 79-89,
191-201, 298-307.
ROBERT, F. [14..] ‘Castelo Perigoso’. In: CÓDICE ALC. 199. Lisboa, Biblioteca Nacional.
_______.[14..?] ‘Castelo Perigoso’. In: CÓDICE ALC. 214. Lisboa, Biblioteca Nacional.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
ABSTRACT: The present work presents the proposed criterions for double
reading of medieval work Castelo Perigoso. The first is a critical reading and
some critical apparatus in footnote, the second is an updated orthografical reading
and footnote information about the sources and meanings of a few words.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
AS HISTÓRIAS DE TRANCOSO:
UM PROJETO DE TEXTO CRÍTICO
“Prólogo” dirigido à Rainha de Portugal,1 texto com que abre os seus Contos. Nesse
relato refere-se Trancoso ao fato de que residia em Lisboa, no ano de 1569, quan-
do se abateu sobre a cidade uma epidemia de peste que dizimou boa parte da
população. Neste acidente ele perdeu a esposa, dois filhos e um neto, além de ter
socorrido muitos doentes e ter ajudado a sepultar muitas vítimas fatais. Confessa
ainda o autor que, para não cair em depressão por causa do abatimento que tomou
conta de sua pessoa, resolveu escrever contos de aventuras e histórias de proveito
e exemplo, para desenfadamento ou recreação dos que lessem ou ouvissem suas
histórias.
Assim, pela idade dos filhos e neto falecidos, pode-se inferir que tenha
nascido entre 1515 e 1520. Seu falecimento deve ter-se dado antes de 1585, pois a
edição dos Contos feita nessa data traz os privilégios concedidos não mais a Gon-
çalo Fernandes Trancoso, mas a seu filho Afonso Fernandes Trancoso.
Além desses fatos sabe-se que há uma outra obra editada pelo autor,
intitulada Regra geral para aprender a tirar pela mão as festas mudáveis no ano.
Trata-se de um texto de orientação para os que têm interesse em saber as datas
do calendário litúrgico da Igreja Católica, a partir de um método que consiste
em usar os cinco dedos das mãos.2 Outras referências sobre a vida do escritor
citadas por seus biógrafos são em geral baseadas em hipóteses, sem fundamenta-
ção documental.
Não obstante a escassez de dados biográficos do autor, é importante ressal-
tar que Trancoso viveu numa época áurea da Literatura Portuguesa, tendo sido
contemporâneo de Luís de Camões, Bernardim Ribeiro, João de Barros e vários
outros expoentes. É preciso destacar ainda que o século XVI foi um importante
momento da história da língua portuguesa, momento de transição entre a feição
arcaica e a moderna do idioma.
3 – A impressão mais antiga que se conhece dos Contos e histórias de provei-
to e exemplo data de 1575. Nessa edição foram publicados 31 contos, divididos pelo
1
A Rainha de Portugal, a quem se dirige Trancoso, era D. Catarina d’Áustria, esposa de D. João III e avó e
tutora de D. Sebastião. D. Catarina foi regente do Reino de Portugal entre 1557 – data do falecimento de D.
João III – e 1562, quando passa a regência ao cardeal D. Henrique e recolhe-se a um convento.
2
Por iniciativa de Luciano Pereira da Silva, a Imprensa da Universidade de Coimbra publicou em 1925 um
edição deste texto de Trancoso, sob o título A regra geral das festas mudáveis. Discutindo a autoria e a data de
primeira impressão da Regra Geral, Luciano Pereira da Silva informa que o texto teria sido composto por
Trancoso em data anterior a 1565, mas que sua publicação só se deu em 1570. Informa ainda que desta
primeira edição existem dois exemplares, um no acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa e outro no da Biblio-
teca Pública e Distrital de Évora.
42
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
autor em duas partes: a Primeira Parte contendo 20 contos e a Segunda Parte com
os restante 11 contos. Estes mesmos contos teriam sido reproduzidos em duas
outras edições, datadas, respectivamente, de 1585 e 1589. Dessas duas edições
há referências entre os estudiosos dos textos antigos portugueses, mas não há
informação sobre a existência de exemplares. O conjunto total dos contos que
hoje se conhecem – o total de 41 contos – só aparece publicado em 1595. Nessa
edição aparecem, portanto, os 10 contos relativos à Terceira Parte. Pelos dados
de que pudemos dispor até agora em nossa pesquisa, trata-se da quarta edição
dos Contos, edição póstuma, e nela já encontramos problemas de texto que se
refletirão em todas as edições sucessivas da obra, até o século XVIII, quando o
autor passa a conhecer o ostracismo e a sua obra deixa de despertar interesse.
Da edição de 1595 existe um exemplar no acervo da Biblioteca Pública e Distrital
de Évora.
Na colação que efetuamos entre as edições de 1575 e de 1595, além das
inúmeras lacunas e alterações no texto, pudemos notar a eliminação de dois con-
tos da Primeira Parte e um conto da Segunda. Percebemos ainda que um dos con-
tos da Primeira Parte, que foi eliminado, está em conjunção narrativa com o elimi-
nado da Segunda Parte. Neste há referência a conto da Terceira Parte que consti-
tuiria com os outros dois uma trilogia narrativa. Mas a trilogia não se concretizou,
pois entre os contos da Terceira Parte nenhum dá seqüência à trilogia. Fica, por-
tanto, a conclusão de que a obra completa se constituiria pelo menos de 42 contos.
Sabe-se, porém, que a recuperação de textos suprimidos é quase impossível, tendo
em vista um hábito comum entre os impressores das obras antigas de destruir os
manuscritos dos autores.
A razão da supressão dos contos ainda não temos bem apurada, mas pelo
conteúdo do parecer do Frei Bertolomeu Ferreira, inquisidor responsável pela li-
beração da obra para publicação, na edição de 1595, é de se supor que a ação da
censura eclesiástica produziu esses cortes profundos na obra de Trancoso, muti-
lando-a em sua inteireza de origem.3
Outro fato interessante sobre as primeiras edições dos Contos de Trancoso
é o relacionado à edição de 1575. Até bem pouco tempo a crítica literária de
Portugal sabia da existência desta edição, mas não se conhecia nenhum exemplar.
3
É o seguinte o texto do parecer do Frei Bertolomeu Ferreira, impresso na segunda folha da edição de 1595: “Por
mandado de S.A. vi a Primeira, Segunda, & Terceira, parte dos contos do Trancozo, & emmendado como vai,
(grifo nosso) não tem cousa, contra a fé, & bõs costumes, & contem bõs auisos, & proueitosos nem tem cousa,
porque se não deua de imprimir.”
43
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.
4
Para uma leitura a respeito deste assunto, consulte-se Manuel Ferro, Aspectos da recepção do Decameron nos
contos e histórias de Trancoso, estratto di “Estudos italianos em Portugal”, números 51/52/53, 1988/89/90.
44
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
45
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.
5
CASTRO, Ivo de e RAMOS, Maria Ana. (1986) Estratégia e táctica de transcrição. In Actes du Colloque Critique
Textualle Portugaise. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre Culturel Portugais, p. 99-122.
6
A filóloga Maria Leonor Buescu, da Universidade de Lisboa, em palestra proferida no mesmo Colóquio acima
referido, afirma o seguinte: “O impressor é, portanto, aquele que detém a técnica e, com ela, o poder de ditar
a lei ortográfica. E a ortografia submete-se, de algum modo, a uma tecnocracia dominadora e imparável. À
anarquia ortográfica do escrivão, sujeito à sua imaginação e até a projectos e iniciativas individuais por vezes
caprichosas e discordantes ou mesmo dependentes da fantasia ornamental e simbólica do espírito medieval,
sucede a supremacia da vaga tipográfica avassaladora e tão capaz de recusar propostas como de impor costu-
mes. Sempre, porém, no sentido duma regularização.” (Problemas de transcrição dos textos gramaticais do
século XVI, in Actes du Colloque Critique Textuelle Portugaise. Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre
Culturel Portugais, 1986, p. 199-200).
46
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
7
Um pequeno exemplo para comprovar a nossa afirmação pode ser encontrado logo nas primeiras linhas do
Conto I, da Primeira Parte. Nas edições de 1575 e 1595 o texto é: “Que diz q( todos aquelles que rogão aos
Sanctos que roguem por elles, tem necessidade de fazer de sua parte por conformarse com o que querem que os
Sanctos lhe alcancem”. A versão dada pelo Prof. Palma-Ferreira é: “Que diz que todos aqueles que roguem
(grifo nosso) aos Santos, que roguem por eles. Têm necessidade de fazer de sua parte por conformar-se com o
que querem que os Santos lhe[s] alcancem”.
47
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.
8
Temos dois fac-símiles da edição de 1575. Um deles é cópia obtida junto à Biblioteca da Universidade Católica
de Washington. O outro é um exemplar da edição realizada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1982. Da
edição de 1595 temos um fac-símile, produto de uma cópia de microfilme obtido junto à Biblioteca Pública e
Distrital de Évora.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Que he hu(a carta do Autor a hu(a senhora, com que acaba a primeira
parte destas historias & contos de proueito & exemplo. E logo começa a
segunda, em que estam outras historias notaueis, graciosas, & de muito gos-
to, como se vera nellas.
49
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.
Senhora
Graças a Deos.
50
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
51
RODRIGUES, Fernando Ozorio. As histórias de Trancoso: um projeto de texto crítico.
9
Neste preceito de letra O, inserimos o artigo definido antecedendo o nome da letra, artigo que não aparece no
texto-base, a nosso ver, por falha de impressão, pois ocorre antecedendo todas as outras letras. Obviamente,
mantivemos a grafia onesta, sem h, para não descaracterizar o ABC de moralidades.
10
Em xpã, lê-se cristã. Foi curiosa a maneira como o autor adjetivou o termo de origem grega, usado na tradição
da Igreja para designar o Cristo: XPTO.
52
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
BIBLIOGRAFIA
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53
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Quem quer que venha a ler texto executado no período arcaico da Língua
Portuguesa (i.e. do séc. XIII a meados do séc. XVI) depara-se com um emaranhado
caótico de grafias onde, muita vez, a mesma palavra aparece freqüentemente no
mesmo texto sob formas diferentes (Huber, 1986, p. 43). Aliás, esta primeira im-
pressão fica mais forte na medida em que parece haver um consenso entre os
estudiosos, de que a escrita da Língua Portuguesa foi caótica desde o seu surgimen-
to até meados do século XX.1
Apesar de ser este o quadro que se delineia de forma geral, são os próprios
compêndios de Gramática Histórica da Língua Portuguesa que, em uma análise
mais detida de casos específicos, fornecem critérios para a distinção entre os casos
de variação gráfica. Sob este enfoque, são diversas as causas apontadas para tentar
explicar a variação gráfica do português arcaico. De modo geral, os fundamentos
determinantes da variação podem ser divididos pelo menos em duas categorias
56
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
2
V. Rosa Virgínia Mattos e Silva, A representação gráfica n’A mais antiga versão portuguesa dos Diálogos, in
Estruturas trecentistas (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985), p. 65-101; e Ramón Lorenzo, A
lingua da Crónica troiana e as diferenças entre copistas, in Crónica troiana (A Corunha, Fundación Pedro
Barrié de la Maza, conde de Fenoza, 1985), p. 81-167.
57
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...
A cópia quinhentista foi organizada por Manuel Álvares, que redigiu apro-
ximadamente uma décima parte do texto, tendo participado da redação mais nove
punhos diferentes, que trabalharam simultaneamente, com variado grau de in-
tervenção. Quanto ao problema da datação do códice quinhentista, este é resol-
vido com muita exatidão por Ivo Castro (1976/1979, p. 173-83), fundado em
informações de cunho codicológico, paleográfico e histórico, uma vez que a úni-
ca data constante da cópia inscreve-se no cólofon, reprodução cuidadosa do
manuscrito de Riba d’Âncora, que declara ter este sido feito a mando de Joam
Sanchez, mestre-escola de Astorga, no início do século XIV. O texto deste exem-
plar perdido descende da tradução peninsular de um manuscrito francês da Es-
toire del Saint Graal,3 primeira parte de um dos grandes ciclos de romances fran-
ceses em prosa referentes à Matéria da Bretanha:4 a Post-Vulgata.5 O LJA relata o
transporte do Graal desde Jerusalém até Inglaterra por José de Arimatéia e seu
filho Josefes.
Antes de estar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o ms. 643 perten-
ceu à Cartuxa de Évora, proveniente da biblioteca do arcebispo D. Teotônio de
Bragança (Castro, 1993, p. 409). Considerou-se o LJA como perdido até 1902,
quando foi descoberto por Cornu e descrito por Otto Klob,6 embora anteriormen-
te tenha sido consultado por Varnhagen, mencionado por Reinhardstoettner,
3
Segundo Bogdanow (1966, p. 156-8), a Estoire del Saint Graal da Post-Vulgata não difere substancialmente da
Estoire, que compõe a primeira parte do ciclo da Vulgata. Desta, existem 59 manuscritos divididos em um grupo
de redação mais curta e outro de redação mais longa. O LJA alterna ou combina as duas redações. O único
manuscrito francês existente que faz o mesmo é Rennes, Bibl. Mun., 2427, que é considerado o texto mais
próximo daquele que Joam Vivas teria traduzido (Castro, 1993, p. 411).
4
Matéria de Bretanha, é, segundo Norris Lacy (1991, p. 315), a denominação tradicional dada à matéria literária
derivada da grande e da pequena Bretanha, e de presumida ascendência céltica. A denominação é utilizada
primeiramente nos versos de Les Saisnses, do poeta francês Jean Bodel: “Ne sont que trois materes a nul home
entendant: / De France et de Bretagne et de Rome la Grant; / Et de ces trois materes n’i a nule semblant / Li
conte de Bretaigne sont si vain et plaisant / Cil de Rome sont sage et de sens aprendant / Cil de France sont
voir chascun jour apparant.” (v. 6 a 11, ap. Régnier-Bohler 1989, p. II, n. 1). Divide-se a matéria literária digna
de ser cantada em Matéria da França (canções de gesta), de Roma (romances da antigüidade clássica) e da
Bretanha (lais bretões e romances). O assunto principal, mas não exclusivo, da Matéria da Bretanha é Artur.
5
Segundo Bogdanow (1991, p. 364), o ciclo da Post-Vulgata é uma reelaboração da Vulgata, ciclo de romances
arturianos em prosa composto entre 1230 e 1240 por autor anônimo, mas atribuído a Robert de Boron. Desse
ciclo restam somente fragmentos dispersos em francês e traduções. Compunha-se de uma Estoire del Saint
Graal, à qual seguiam um Merlin e uma Suite du Merlin, traduzida para o português, castelhano e inglês. Fechavam
o ciclo a Queste del Saint Graal e a Mort Artu, de que resta a tradução quase integral em português e parcial em
castelhano.
6
Ver Beiträge zur Kenntnis der spanischen und portugiesischen Gral-Litteratur, Z. r. Ph., 26 (1902), p. 168-91.
O códice também é descrito por Pere Bohigas Balaguer em Los textos españoles y gallego-portugueses de la Demanda
del Santo Grial, Madrid, 1925, p. 29-33.
58
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
7
Pere Bohigas Balaguer, Los textos españoles y gallego-portugueses de la Demanda del Santo Grial, Madri, 1925, p.
105-7 (f. 1r-2r), p. 113-7 (f. 8v-9r), p. 107-9 (f. 262r-263v), p. 109-10 (f. 304r-305r); Kimberley S. Roberts, An
Anthology of Old Portuguese, Lisboa, s/d: p. 47-9 (f. 57v-58v); José Joaquim Nunes, Uma Amostra do Livro de
Josep Ab Arimatia, Revista Lusitana, XI (1908), p. 229-37 (f. 100v-110r); José Joaquim Nunes, Crestomatia
Arcaica, 7. ed., Lisboa, 1970, p. 74-9 (f. 105r-110r).
59
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...
tem trinta e um casos de grafismo, dez casos de neutralização, doze casos de distin-
ção com base etimológica e sete casos de distinção com base fonética.
O processo de análise dos resultados fica mais claro quando tomamos como
exemplo os três casos de variação gráfica consonantal mais freqüentes no LJA
segundo o fonema que representam: lateral dental-alveolar /l/, fricativa-ápico-
alveolar surda /§/ e fricativa labial surda /f/.
Um exemplo de caso de grafismo é o das grafias da consoante lateral den-
tal-alveolar em posição inicial absoluta (e.g. ledo ~ lledo). Observa-se que o uso da
grafia <l> nesta posição justifica-se tanto do ponto de vista da realização fônica
como do ponto de vista etimológico, o que pode causar a sua alta freqüência. Com
a predominância justificada de <l>, a grafia <ll> poderia ser considerada um
mero grafismo decorrente apenas do capricho dos copistas. Há, porém, autores
que atribuem provável valor fonológico distinto ao dígrafo <ll> em posição inici-
al absoluta, afirmando que pode talvez indicar pronúncia de um som mais longo
“do que o l moderno inicial”, o que teria possivelmente evitado a queda do l-
inicial quando o vocábulo em que ocorria ligava-se ao anterior, terminado em
vogal, em estreita união sintática (Williams, 1973, § 30, 2, b); outros afirmam que
o uso do dígrafo caracteriza a “energia” do l- inicial (Vasconcelos, 1928, p. 21).
Parece que a primeira hipótese não se sustenta diante do fato de que as consoantes
duplas do latim simplificam-se na passagem para o português, além de, em latim,
não ocorrerem em início de vocábulo, o que não justifica uma base etimológica ou
fonológica para este uso, como já foi referido. A hipótese da intensidade sonora
poderia justificar o uso de <ll> em posição Inicial Absoluta, mas não fica clara
esta opção, visto que o uso de <ll> inicial ocorre em proporção bem menor do
que <l> na mesma posição, o que parece indicar ser ele um grafismo.8
Para a maior parte dos estudiosos, o uso da grafia <ll> nas posições de
travamento silábico e em posição final absoluta deve ter função distintiva do pon-
to de vista fonológico: considerando a realização fonética de /l/ é velar [É] em
ambas essas posições, a função do grafema <ll> parece ser a de enfatizar a distin-
ção a par de outras posições no vocábulo em que a realização fonética de /l/ é
dental [l].9 No corpus, a grafia <ll>, principalmente em posição final absoluta,
ocorre com freqüência elevada o bastante, em relação a <l> na mesma posição,
8
Além disso, Duarte Nunes de Leão (1983, p. 141) recomenda “que nunca dobremos a primeira letra de algu)a
dicção, porque a nenhu)a vogal nem consoante podem proceder duas letras semelhantes. Porque a primeira
não teria que ferir nem letra, a que se ajuntar, o que não pode ser.”
9
Com a hipótese da função distintiva fonética do <ll> em posição de Travamento Silábico e Final Absoluta
concordam Cuesta (1971, p. 369), Coutinho (1974, p. 74), Huber (1986, § 245, 2, a), Vasconcelos (1928, p.
60
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
para indicar que o seu uso não parece ser ocasional. Em posição de travamento
silábico, como o emprego do dígrafo apresenta freqüência baixa em relação a <l>,
impõe-se maior reserva em aceitar que indique [É], apesar de que pode ser usado
distintamente por alguns copistas ou então ser um grafismo.
Com freqüência acentuadamente baixa, representa-se a consoante fricativa
predorsodental surda /s/10 pelo grafema <s> em posição inicial absoluta (e.g. çima
~ cima ~ sima) e medial (e.g. viçosa ~ visosa). Há confusão com a grafia represen-
tante da consoante ápico-alveolar surda/§)/? Pode-se cogitar se a confusão gráfica
indicaria a neutralização entre fonemas apicais e predorsais, que, na época de re-
dação do códice, já não teriam valor distintivo para alguns copistas. Parece que a
confusão já ocorria em 1543 e inícios de 1544, quando foi redigido o códice, dado
que se registra, por volta de 1550, o início da confusão em textos escritos e em
1574, Pero de Magalhães de Gândavo considera como um dos vícios mais freqüen-
tes do português a confusão de pronúncia entre c, s, z (Teyssier, 1990, p. 50). Logo,
o uso da grafia <s> poderia representar intervenção de um traço da confusão de
pronúncia existente no século XVI.
A grafia <ff> em posição Medial pode ser pseudo-etimológica (e.g. confor-
tar ~ conffortar < lat. confo(rta#re) ou etimológica (e.g. offerecer ~ offerecia < *
offeresce(re, incoativo de offerre). Enquanto a maior parte das variantes ocorre em
vocábulos cujo étimo apresenta consoante intervocálica simples, representada,
em latim, por <f> ou <ph>, apenas um caso (oferecer) decorre de consoante
intervocálica longa, representada em latim por <ff>. Daí se conclui que naqueles
casos, o uso de duplo f pode ser mero grafismo ou pode decorrer da analogia com
casos em que há base etimológica. Não só quando há fundamentação etimológica
21), Williams (1973, § 30, 2, c). Por outro lado, Leif Sletsjøe (1954-55), a partir de exame de 530 documentos
incluídos na coleção Portugaliae Monumenta Historica (Diplomata et Chartae) questiona se a grafia <ll>, tanto
em posição Travamento Silábico como Final Absoluta, caracteriza notação do l velarizado antes do século XIV
e conclui que os resultados obtidos são pouco favoráveis a essa hipótese. E o gramático Duarte Nunes de Leão
(1983, p. 141) afirma que “não dobraremos a letra final de algu)a palavra, porque a última não teria vogal, a
que fosse atada. Assim que erram os que escrevem...quall, mill, e outras assim.”
10
Segundo Teyssier (1990, p. 49), o galego-português medieval possuía quatro fonemas sibilantes: /ts/ (ex: cen),
/s/ (ex: sen), /dz/ (ex: cozer) e /z/ (ex: coser). Por volta de 1500, as duas africadas /ts/ e /dz/ perderam o seu
elemento oclusivo inicial, mas a oposição entre os dois pares de fonemas continuava a manter-se, porque o seu
ponto de articulação não era o mesmo. As duas predorsodentais eram pronunciadas com a ponta da língua
virada para baixo, e a parte anterior do seu dorso próxima dos dentes de cima e as duas ápico-alveolares eram
pronunciadas com a ponta da língua próxima dos alvéolos. Por volta de 1550, no entanto, confusões começam
a aparecer nos textos entre cada uma das predorsodentais e a ápico-alveolar que lhe corresponde: encontra-se
ç em vez de -ss-, -ss- em vez de ç, z em vez de -s- e -s- em vez de -z- e, em fins do século XVI o português
comum reduziu a dois os quatro fonemas, e essa redução fez-se em favor das predorsodentais.
61
TOLEDO NETO, Sílvio de Almeida. Aspectos da variação gráfica no português arcaico...
para o uso de dígrafo, mas também quando é usado por analogia pode-se pensar
em hipercorreção, na medida em que o grafema <ff>, apesar de não se distingüir
fonologicamente de <f>, pretende reproduzir a grafia latina, verdadeira ou não,
do vocábulo.11
Com base nos exemplos apresentados, podemos dizer que a análise e classi-
ficação de casos específicos de variação gráfica demonstra que é possível sistema-
tizar os tipos de variação existentes com os instrumentos teóricos fornecidos pela
Gramática Histórica, o que não responde a todas as dúvidas suscitadas, mas orde-
na um pouco mais o quadro do sistema de escrita do português arcaico. Por meio
de minucioso processo de ordenação, pode-se observar mais claramente, nos casos
de variação gráfica estudados, as preferências por formas-padrão em vez das for-
mas-variantes, o que indica, já nesta época, uma forte tendência à uniformização
gráfica, mais do que à confusão, como se pode pensar em princípio.
BIBLIOGRAFIA
11
No caso do vocábulo oferecer, o uso do grafema <ff> seria justificado segundo o ponto de vista etimológico
defendido por Duarte Nunes de Leão (1983, p. 120), pois esse vocábulo inclui-se entre os que dobram as letras
porque originam-se de vocábulo latino composto da preposição ob.
62
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
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63
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
GRAMÁTICA E FUNCIONALISMO:
A DISJUNÇÃO ENTRE ORAÇÕES
APRESENTAÇÃO1
Este trabalho se limita ao exame do juntivo ou, simples e duplo, que man-
tém alta freqüência no córpus, já que não ocorre nenhum caso de outros conecto-
res duplos como ora...ora, quer...quer, seja...seja e às vezes...às vezes. A esse propósi-
to, é interessante assinalar a ocorrência de um único caso, contido em (3), em que
se usa um conector duplo misto, ou seja, ao invés de uma conjunção repetida,
conforme prevêem as convenções normativas, utilizaram-se dois conectores dis-
tintos para efetuar a correlação.
(3) um conhecimento que aprofunda mais aqueles outros DOIS ... seja como conheci-
mento num é? sociológico... ou conhecimento.. normativo... lógico-normativo...
(EF, RE, 337, l. 269)
66
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
eles: de Porto Alegre: EF-278, DID-045, D2-291; do Rio de Janeiro: EF-379, DID-
328, D2-355; de São Paulo: EF-405, DID-234, D2-360; de Recife: EF-337, DID-
131, D2-005; de Salvador: EF-049, DID-231, D2-098.
Para facilitar o tratamento de grandes quantidades de dados empíricos,
empregam-se alguns programas do Pacote Varbrul (Sankoff, 1975), mais especi-
ficamente, o Makecell, para o levantamento de freqüências simples e o Crosstab
para o exame de dados que exigem o cruzamento de dois fatores relevantes para
a análise.
Este texto se organiza em três partes. Na primeira são abordados os dois
tipos semânticos de disjunção, a inclusiva e a exclusiva e as condições possí-
veis para sua manifestação nos enunciados do córpus. Examina-se, na segunda
parte, a coordenação de orações. A seção 3 foi reservada para as considerações
finais.
67
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
zia uma certa ênfase ou algum outro tipo de alteração estilística no significado
disjuntivo, sendo a especificação de seu valor exclusivo ou inclusivo um traço
unicamente contextual.
Em todas as descrições da coordenação disjuntiva subjaz a convicção ge-
neralizada de que o sistema português supõe uma redução de uma distinção se-
mântica existente em latim, ao desaparecer um dos dois significantes diferencia-
dos, com a conseqüente ampliação semântica da partícula que se manteve com o
fim de expressar com uma só forma o significado do que antes era expresso por
duas. O que parece apresentar-se como uma redução do sistema funcional latino
em sua evolução para o português é, na verdade, uma sobrevivência do sistema,
com mudança parcial dos recursos significantes.
Se em latim a disjunção exclusiva e a inclusiva tinham como traço expres-
sivo duas partículas distintas, sendo o recurso da repetição delas antes de cada
membro coordenado uma mera variante estilística, o português, com uma única
partícula disjuntiva (variantes à parte), utiliza esse recurso não como uma varian-
te enfática (ou de algum outro matiz), mas com um valor distintivo equivalente ao
que opunham as duas partículas latinas. Os significados ‘disjuntivos’ exclusivo e
inclusivo estão perfeitamente delimitados em português em seqüências como (4) e
(2), que aqui se repete.
(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(2) não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o
importante é que o processo se realize (EF, POA, 278, l. 211)
68
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(5)a. ? a senhora acha que ou há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo
tipo?
(6) para um leigo... pode parecer eu falando assim na sociologia jurídica é que
estuda...não é? essa realidade em adequação: com a lei ou a lei em adequação com
a realidade (EF, RE, 337, l. 165)
(7) O Brasil não enviou a contrapartida ou a obra não andou. Por isso o Banco Mun-
dial suspendeu as liberações2.
(8) se a:: fruta... eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF, SP, 405, l. 120).
(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
2
Não houve esse tipo de ocorrência no córpus analisado.
69
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
(9) são pessoas ... distribuídas... nas mais diferentes... assessorias... ou nos mais dife-
rentes órgãos... (DID, RE, 131, l. 160)
(2) não tem importância que a gente chama de análise ou chama de interpretação o
importante é que o processo se realize (EF, POA. 278, l. 211)
(10) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do
horário ou que seja extra (DID, SSA, 231, l. 226)
(11) qual seria o motivo pelo qual ... eles::...começaram... a pintar ou a esculpir... estas
formas ... (EF, SP, 405, l. 152)
70
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(12) que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar ou dessa
maneira ou ir prum cinema ou prum teatro, (D2, RJ, 355, l. 87)
(13) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)
(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(14) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e::
é o pai ou a mãe aquele que não estiver presente (D2, SP, 360, l. 265)
(12)a.que eu cheguei em casa, vi televisão e depois vim pra cá pra, pra conversar dessa
maneira, ir prum cinema, prum teatro
(13)a.prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão, dormindo, lendo jornal
(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(8) se a:: fruta eh se eles iam conseguir a fruta ou não... (EF, SP, 405, l. 120)
(15) depende se essa definição é uma simples re, devolução, repetição daquilo que o
professor disse ou se essa definição tem um caráter de elaboração própria, então, aí,
nós estaremos em nível bem mais complexo (EF, POA, 278, l. 59)
71
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
O levantamento mostrou ainda que 83,3% das ocorrências (20 casos) apre-
sentam sujeitos idênticos nas duas orações coordenadas, e apenas 4 casos (16,6%)
exibem sujeitos diferentes, como (16).
(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
(17) a senhora acha que houve alguma evolução ou:: ou que tenha regredido o cinema
atualmente? (DID, SP, 234, l. 359)
(18) criar uma pessoa... ou criar uma imagem... é mais ou menos a mesma coisa (EF, SP,
405, l. 190)
(5) a senhora acha que há diferença entre um e outro ou todos são do mesmo tipo?
(DID, SP, 234, l. 228)
(19) é através exatamente... desse fator... de união: e de integração... que os indivíduos
se AJUSTAM... ou que os indivíduos... pro eh: procuram levar ... a cabo... levar
adiante... suas melhores... ou suas: mais justas... reinvidicações (DID, RE, 131, l.
68)
72
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(20) Todo fim de semestre, José envia um capítulo pronto de sua tese ou no dia seguinte
seu orientador liga reclamando.
73
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
(13) prefiro ficar assi/a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)
(21) para então... ele dizer... se há malignidade ou não nesse nódulo (EF, SSA, 49, l.
90)
(21)a.?para então... ele dizer...se não há malignidade nesse nódulo ou há.
(22) toda aquela assistência médica hospitalar... que os sindicatos vem habitualmen-
te cumprindo ou que vem/ os sindicatos se propõem a fazer... (DID, RE, 131, l.
250)
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(23) mas é preciso que eu aplique, que eu utilize os sinais de trânsito na hora certa ou
que eu tenha a habilidade de passar mais rápido pelo guardinha (EF, POA, 278, l.
197)
(15) a categoria do conhecimento (inserção nossa) depende se essa definição é uma definição
simples, re, devolução, repetição daquilo que o professor disse ou se essa definição tem
um caráter de elaboração própria (EF, POA, 278, l. 59)
(10) não negamos nunca atender a um doente ou outro que chegue mesmo fora do
horário ou que seja extra (DID, SSA, 231, l. 226)
(13) prefiro ficar assi/ a a aqui assistindo televisão ou dormindo ou lendo jornal (DID,
SP, 234, l. 98)
(16) na medida... em que acabava a caça do lugar OU (que) em virtude da da época do
ano no inverno por exemplo... os animais iam hibernar outros... imigravam para
lugares mais quentes eles precisavam acompanhar... o a migração da caça se não
eles iam ficar sem comer... (EF, SP, 405, l. 71)
(14) ou aquele que foi... diz que foi ele que fez... tomou a/ (que) fez aquilo ou então e:: é o pai
ou a mãe aquele que não estiver presente (D2, SP, 360, l. 265)
(24) elas são:... complementa:res ou não: Eduardo? (EF, RE, 337, l. 79)
75
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
(26) há muita... discussão aí entre posições opostas de que se o Japão seria uma econo-
mia ou um país desenvolvido (EF, RJ, 379, l. 223),
3
Investigando a relação entre a CCC e a Condição da Estrutura Coordenada (Coordinate Structure Constraint)
de Ross (1967), Schachter (1977) mostra que a condição que propõe pode dar conta de todos os casos de
conjunção agramatical que a regra de Ross pretende explicar, embora o reverso não seja verdadeiro: certos
fatos residuais que permaneceram sem explicação adequada na proposta de Ross, assim como exceções a sua
regra, encontram abrigo natural na CCC.
76
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(4) é um controle muito natural ou você não tem filhos ou vai ser é castrado (EF, RJ,
379, l. 205)
cuja interpretação de ‘ou se evita filhos por algum meio anticonceptivo’ ‘ou se é
castrado’, descreve verdadeiramente o futuro estado de coisas.
A relação entre estados de coisa é o único emprego de ou tratado sistema-
ticamente pelos estudiosos e gramáticos, que ignoram as outras funções, como a
de juntor de inferências (uso epistêmico) e de atos de fala (uso ilocucionário).
Cabe ressaltar que, no córpus analisado, só se registraram casos de coordenação
no domínio do conteúdo.
Observe-se agora a sentença contida em (27).
(27) O orientador de João vai ligar amanhã reclamando, ou (então) ele já enviou um
capítulo pronto de sua tese.
77
PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
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PEZATTI, Erotilde Goreti. Gramática e funcionalismo: a disjunção entre orações
BIBLIOGRAFIA
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81
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
seus usuários), além das outras – consideradas, elas sim, básicas, porque produto-
ras do significado – é, apenas, discurso de lingüista.
O circuito não é tão simples, a ponto de nem ser simples circuito. O falante
sente a força da situação de comunicação antes mesmo de planejar seu enunciado,
e isso complica tudo. Cada diferente interlocutor que ele tenha, por exemplo, é
direcionador fundamental do próprio plano de seu enunciado.
Vale para ele, como bem se deduz do modelo de interação verbal proposto
por Dik (1989), a própria expectativa que ele supõe que seu ouvinte tenha sobre o
que ele vai dizer, assim como a avaliação que ele tenha do potencial que seu ouvin-
te reúne para interpretar o que ele possa dizer. Isso do seu lado, como enuncia-
dor. Porque ele sabe, ainda, que a interpretação que seu enunciado poderá gerar
será também condicionada pela avaliação que seu interlocutor, ao receber o enun-
ciado, faça da intenção, bem como do potencial informativo do emissor que o
produziu.
Há um complexo de fatores enredado no esquema que apresentei, aqui,
bastante simplificado. Já está, por exemplo, em Peirce (1987), a indicação compli-
cadora da noção de signo, segundo a qual o signo, do lado do receptor, é uma
unidade perceptiva na qual o sentido é dominante, é figura, enquanto a forma é
recessiva, é fundo; e, do lado do emissor, pelo contrário, é uma unidade que tem
como figura a forma, e como fundo o sentido. Isso gera tensões que configuram o
signo, que é dialógico – isto é, que tem duas contrapartes, o emissor e o receptor –
dentro do esquema perceptivo complexo, diferente do velho circuito, que abriga,
na percepção, uma parte forte (a figura) e uma parte débil, que serve apenas de
contraste (o fundo). No caldo da mistura se chega a leis perceptivas, que são resul-
tantes da combinação:
a) de forma e sentido;
b) quanto ao emissor e ao receptor;
c) enquanto figura ou enquanto fundo.
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NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Também para evitar distorções nas interpretações, fez-se uma delimitação equili-
brada do corpus por inquéritos1. Cada um dos membros da equipe trabalhou com
um tipo de articulação: eu investiguei as construções lato sensu causais (causais,
“explicativas”, condicionais e concessivas), Maria Luíza Braga investigou também
construções adverbiais – as construções temporais – e Erotilde Pezatti estudou as
construções alternativas.
No percurso feito para se chegar a uma avaliação geral das diferentes
construções, partiu-se do exame da natureza das predicações. Esse exame tem
ponto de partida na análise dos predicados escolhidos, com base em Dik (1989).
O predicado – que designa propriedades ou relações – se aplica a um certo nú-
mero de termos – que se referem a entidades – produzindo uma predicação, que
designa um estado de coisas, ou seja, uma codificação lingüística (e possivel-
mente cognitiva) que o falante faz da situação. Um exemplo é uma predicação
com o predicado remeter e os termos o Senado, a questão e o Judiciário, configu-
rando-se um estado de coisas em que entram em relação esse predicado escolhi-
do e as três entidades, que desempenham, cada uma, um papel semântico (agen-
te, objeto, recebedor, respectivamente). Um estado de coisas é concebido como
algo que pode ocorrer em algum mundo (real ou mental), e, assim, está sujeito a
determinadas operações, isto é, pode: ser localizado no espaço e no tempo; ter
uma certa duração; ser visto, ouvido, ou, de algum modo, percebido. Consti-
tuintes como o Senado, a questão e o Judiciário, que são exigidos pela semântica
do predicado, são argumentos, enquanto outros possíveis constituintes como no
Brasil, ou neste mês, que apenas trazem informação suplementar, são denomina-
dos satélites. Às proposições são aplicados, ainda, operadores ilocucionários, como,
por exemplo, DECLARATIVO ou INTERROGATIVO. A proposição revestida
de força ilocucionária constitui a cláusula (a frase), que corresponde a um ato de
fala, e que pode ser descrita em termos de uma estrutura subjacente. O sistema
de regras de expressão da língua determina a forma, bem como a ordem dos
termos e o padrão entonacional dos constituintes, isto é, determina a realização
superficial dessa estrutura.
1
O corpus examinado é o corpus mínimo do Projeto NURC (Norma Urbana Culta), constituído de quinze
inquéritos, cinco de cada tipo: D2 (Diálogos entre dois interlocutores), DID (Diálogos entre documentador
e informante) e EF (Elocuções formais). O confronto com corpus escrito se vale do banco de dados disponí-
vel no Departamento de Lingüística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Campus de Araraquara,
para os projetos “Dicionário de usos do português contemporâneo do Brasil”, coordenado por Francisco da
Silva Borba, e “Gramática de usos do português contemporâneo do Brasil”, coordenado por Maria Helena
de Moura Neves.
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NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
IS
IS
S
IS
S”
IS
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IVA
RA
NA
USA
RA
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PO
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ICIO
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CAT
CA
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TEM
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NC
ND
PLI
CO
CO
CO
“EX
CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS N A N A N A N A N A N A N A
ESTADO 34% 44% 55% 58% 36% 54% 42% 53% 39% 23% 46% 41% 15% 9%
ATIVIDADE 37% 38% 29% 13% 38% 22% 26% 23% 39% 50% 18% 11% 36% 43%
DINAMISMO 11% 6% 4% 11% 13% 6% 9% 10% 8% 9% 18% 9% 14% 17%
POSIÇÃO 3% 3% 7% 7% 3% 6% 10% 7% 4% 1% 10% 6% 5% 1%
REALIZAÇÃO 6% 3% 3% 0% 3% 6% 7% 1% 10% 17% 4% 1% 18% 20%
MUDANÇA 3% 4% 2% 2% 1% 6% 1% 5% 0% 0% 2% 2% 12% 10%
∅ 6% 2% 0% 9% 6% 0% 5% 1% 0% 0% 2% 30% 0% 0%
N ORAÇÃO NÚCLEO
A ORAÇÃO ADVERBIAL
S
IS
S”
IS
IS
IVA
IVA
NA
USA
RA
RA
IVA
ESS
ESS
ICIO
PO
PO
CAT
CA
TEM
TEM
NC
NC
ND
PLI
CO
CO
CO
“EX
CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS N A N A N A N A N A N A N A
[ +CONTROLE] 46% 44% 39% 20% 44% 34% 43% 31% 53% 68% 32% 18% 59% 64%
[ -CONTROLE] 48% 54% 61% 71% 50% 66% 52% 68% 47% 32% 66% 52% 41% 36%
[ +TÉLICO] 9% 7% 5% 2% 4% 12% 8% 6% 10% 17% 6% 3% 18% 20%
[ -TÉLICO] 85% 91% 95% 89% 90% 88% 87% 93% 90% 83% 92% 67% 82% 80%
[ +DINÂMICO] 37% 47% 38% 26% 55% 40% 43% 39% 57% 76% 42% 23% 80% 90%
[ -DINÂMICO] 57% 51% 62% 65% 39% 60% 52% 60% 43% 24% 56% 47% 20% 10%
∅ 6% 2% 0% 9% 6% 0% 5% 1% 0% 0% 2% 30% 0% 0%
89
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.
Quanto à distinção entre linguagem escrita e linguagem oral, que foi exa-
minada apenas para as concessivas e as temporais, o que se verificou foi que não
há diferenças significativas quanto aos três traços (dinamismo, controle e telicida-
de), mas que, nas temporais, a ocorrência dos traços telicidade e dinamismo é mais
acentuada na modalidade escrita, o que, na verdade, se pode atribuir à natureza
dos dois tipos de corpus em exame, já que o material oral é basicamente conversa-
cional.
Outro cotejo que mereceu atenção foi entre as causais do tipo tradicional-
mente chamado “subordinado” (relação entre proposições, nos termos de Dik,
1989) e as do tipo tradicionalmente denominado “coordenado”, as chamadas “co-
ordenadas explicativas” (relação entre atos de fala). Verificou-se que há mais
predicações télicas, na oração satélite, nas construções em que a relação causal se
dá entre proposições (12%) do que nas construções em que a relação causal se dá
entre atos de fala (6%). Pelo contrário, há mais predicações télicas, na oração
nuclear, nas construções em que a relação causal se dá entre atos de fala (8%) do
que nas construções em que a relação causal se dá entre proposições (4%).
Outra comparação interessante pôde ser estabelecida levando-se em conta
os dados obtidos na língua oral, para as construções coordenadas alternativas (com
a conjunção ou), os quais estão apresentados nos Gráficos 1 e 2.
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
50%
45%
40%
35%
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12345123456
123456 12345123456
123456
123456 12345123456
123456
123456 12345123456
123456
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5% 123456
12345 12345
12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
123456
12345 12345123456
0%123456
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123456 12345123456
123456 0%
0% 123456
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NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.
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12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345 123456
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12345 123456
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12345 123456
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12345
12345 123456
123456
12345 123456
12345
12345 123456
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12345 123456
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12345 123456
12345 123456
12345 123456
12345
12345 123456
123456
12345 123456
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12345 123456
123456
12345 123456
12345 123456
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12345 123456
123456
12345 123456 12345
12345 123456 12345
12345 123456 12345
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12345 12345 123456
123456 12345
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12345 12345 123456 12345
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12345 123456 12345
12345
12345 123456
12345 12345 123456 12345
12345
12345 12345
12345
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0%
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[- CONTROLE] [+ DINÂMICO]
12345
12345
12345 [+ TÉLICO] [- DINÂMICO]
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
a) entre uma construção do tipo “se ... (então) ...” e uma construção do tipo
“ou ... ou não...”, como em
• eu acho que se sair antes das seis horas da manhã sai melhor. (D2, SSA, 98, l.
126)
° = eu acho que ou sai antes das seis horas da manhã ou sai pior (=não sai
melhor)
b) entre uma construção do tipo “se ... não ...” e uma construção do tipo
“ou ... ou ...”, como em
• eu acho que se sair antes das seis horas da manhã não sai pior
° = eu acho que ou sai antes das seis horas da manhã ou sai pior
S
IS
S”
IS
IS
IVA
IVA
NA
N-A
USA
RA
RA
IVA
ESS
ESS
ICIO
PO
PO
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CA
TEM
TEM
NC
NC
ND
PLI
CO
CO
CO
“EX
CONSTRUÇÕES
ADVERBIAIS
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CONSTRU˙ ES ADVERBIAIS
60%
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40%
30%
20%
10%
0% 0%
0%
C O N D IC IO N A IS C O N C E SSIV A S C A U S A IS O R A L " EX P LIC A T IV A S" T E M P O R A IS C O N C E SSIV A S T E M P O R A IS
OR A L (N U R C ) OR A L (N U R C ) (N U R C ) OR A L (N U R C ) OR A L (N U R C ) ES C R IT O ES C R IT O
( V ˜ R IO S) ( V ` R IO S)
C OM BIN A ˙ E S D E P R E D IC A ˙ ES
94
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
predicações télicas (12%) do que a oral (5%), o que, na verdade, tem explicação
na natureza interativa do corpus oral.
Algumas indicações devem, ainda, ser dadas, quanto às diferenças ligadas à
subtipologização das diversas construções examinadas. Assim, pode-se apontar
que:
• Além do mais, fui criado na beira da praia e, mesmo quando fui viver na
capital, durante muitos anos, jamais abandonei o hábito de me vestir de acordo
com o clima. (VEJ)
mas não podem ser télicas as temporais com nuança condicional (eventual), como
em
95
NEVES, Maria Helena de Moura. Articulação de orações: a questão dos estados de coisas.
sivo se refere à maior vocação das predicações de estado para exprimir relações
lógico-semânticas, a ponto de não ocorrer no corpus nenhum caso de duas predi-
cações de estado na combinação entre satélite temporal e predicação nuclear.
Por outro lado, a investigação põe em evidência o complexo jogo que cons-
titui a organização dos enunciados, a qual aciona esquemas que o falante organiza
em camadas, desde a seleção de predicado até o revestimento ilocucionário da
frase. Desse modo, dentro das regras organizacionais que estão à disposição no
sistema, o enunciador, dirigido pelas necessidades da comunicação, que envolvem
distribuição de informação com organização das relevâncias, organiza suas cons-
truções mediante escolhas que sejam comunicativamente adequadas. Nessas sele-
ções, controla o fluxo de informação, dosando e alocando, por exemplo, diferentes
tipos de estados de coisas no enunciado.
BIBLIOGRAFIA
96
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1. AS ORAÇÕES DE TEMPO
98
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
“subordinate nexus is the type in which one junct is embedded in the other,
and, consequently, the juncts function as composite unit. Subordinate nexi
are wide spread in languages.... Subordinate nexus at the peripheral layer is
very common in many languages. The best-known examples are adverbial clau-
ses (itálico meu) in which a clause is subordinated and function as an adver-
bial modifier of the main clause.” (1984, p. 249)
O argumento utilizado por Foley e van Valin para justificar a caracterização das
adverbiais como subordinadas é rejeitado por Matthiessen e Thompson (1988). De-
fendem os últimos que as chamadas subordinadas adverbiais, diferentemente das
encaixadas, que funcionam como um constituinte da oração matriz, não se compor-
tam como um advérbio ou adjunto de sua oração ‘principal’. Estas orações não pode-
riam ser substituídas por um SPREP que preserve o mesmo sentido:
99
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.
“When one clause combines with just one other clause, it may seem to
function as an adverbial, although it does not. But when one clause combi-
nes with a combination of clauses, it is quite clear that there is no single
clause it could be an embedded constituent part of.” (1988, p. 280)
(1)
Inf: Quando era no meu tempo, a gente andava de bicicleta
(DID, POA, 045, p. 12)
No meu tempo, a gente andava de bicicleta
(2)
Inf: ...quando chegou o balê russo aqui em São Paulo eles pediram que a alunas da
Prefeitura que éramos nós... aquele grupo todo fosse fazer cena num dos nú-
meros que eles apresentam era Pássaro de Fogo me parece... (DID, SP, 281, p.
110)
1
Os dados examinados neste artigo foram extraídos das amostras de fala que constituem o acervo do Projeto
NURC. Foram investigados os seguintes inquéritos:
Rio de Janeiro São Paulo Porto Alegre Recife Salvador
DID 328 234 045 131 251
D2 355 360 291 005 098
EF 379 405 278 337 049
100
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(3)
Inf: ...foi buscar umas galinha e trouxe tudo dentro de um saco. Encheu dois saco
de galinha. Quando ele chegou em casa e começou a tirar aquelas galinha, era só
galinha morta que saía (DID, POA, 045, p. 17-8)
(4)
Inf: ...é notar ... que quando eu pergunto o que estuda a sociologia do direito eu pode-
ria perguntar também o que estuda a sociologia jurídica e eu estaria fazendo a
mesma pergunta... (EF, REC, 337, p. 05)
101
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.
(5)
Loc. É tão melhor...basta olhar a estrada que você vê, não é? (RINDO) A Ba...
A Castelo Branco, por exemplo, chama a atenção quando você chega...
(D2, SSA, 098, p. 10)
(6)
DOC: ... e tal eu gostaria de saber que tipo de filme a senhora mais aprecia...
tá? e:: o que mais chama atenção da senhora para ir ao cinema quando
a senhora vai que a senhora disse que vai poucas vezes ao cinema.
INF: é.
DOC: né? Então eu gostaria de saber quando a senhora vai ao cinema... o que
mais precisa conter o cinema para levar a senhora até ele?
(DID, SP, 281, p. 111)
102
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
(7)
Inf: .. está claro até aí?... então, (es)tá entendido até aqui. Bom, agora, extrapolação.
Vejam que quando nós estamos falando em compreensão, é a primeira ginástica
mental que o indivíduo faz com a informação. (EF, POA, 278, p. 10)
103
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.
Inf:... pão é uma coisa que eu não tenho por hábito comer... eu não sei se é porque
eu... eu fico com remorsos até de comer o pão... sabe?... Quando eu como.
(DID, RJ, 328, p. 144)
Inf: ...pelo menos nos últimos anos tem havido um acordo entre a classe patronal
e a classe trabalhadora a fim de que se evite o chamado dissídio coletivo...
quando não há um acordo entre patrões e empregados. (DID, REC, 131, p. 02)
“Minha hipótese é que, assim como ocorre com o operador a í, o uso se-
qüencial de então é proveniente do uso anafórico deste elemento, pois su-
bentende-se que então (= neste momento) alude ao momento em que se
conclui o evento anterior. Ocorre aí uma gramaticalização por pressão de
informatividade nos moldes do que está desenvolvido em Traugott & Kö-
nig, em que se pode inferir, de determinados contextos em que ocorre então
anafórico um valor seqüencial de base temporal.” (1994, p. 138).
O exame dos enunciados temporais mostra que então pode ocorrer quer na
oração de tempo posposta, imediatamente após o conectivo subordinativo quan-
104
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
do, como mostra o trecho (8), quer na oração núcleo posposta, iniciando-a, como
ilustram as orações em (9).
(8)
Loc: eles me deram de volta uma série de duplicatas pra que eu assinasse e, eu e o
fiador... e isso então foi entregue de volta e eu esperei uns dois ou três dias
até que fosse aprovado quando então eles me abriram uma conta bancária e
nessa conta. (D2, RJ, 355, p. 100)
(9)
Inf: Naquele tempo do...quando eu estava estudando, acho que uns vinte anos atrás
no Belas Artes, então tinha (concerto) todos meses ou toda semana, vinha
muito pianista estrangeiro. (DID, POA, 045, p. 22)
Inf: a gente aproveita e dá uma voltinha, né?...ou também quando tem uns amigos de
São Paulo que vêm pra ca, então a gente aproveita e se reúne aquele dia, né?
(DID, POA, 045, p. 08)
Loc 1: quando sai.. aquela folia assim de correr atras dela então ela... se cala um
pouco. (D2, SP, 360, p. 142)
Os exemplos acima exibem alguns dos usos do então no discurso oral con-
temporâneo. (8) exemplifica um uso adverbial, parafraseável por na ocasião. Esta
acepção dilui-se nos trechos de (9), tornando-se problemático identificar a leitura
predominante, se temporal, se seqüencial.
Sob a perspectiva da gramaticalização tais exemplos são bastante ricos. Por
um lado, eles testemunham a coexistência das diferentes fases do processo da gra-
maticalização num momento da língua, o que levou Castilho (1997) a afirmar que
“registros desta modalidade (sincronia) guardam uma sorte de ‘memória históri-
ca’”. Por outro lado, além de confirmarem a hipótese de Martelotta, mostram que
o processo de gramaticalização começa por se instanciar em contextos restritos,
no caso o enunciado de tempo, e potencialmente ambíguos, isto é, capazes de
abrigarem leituras polissêmicas de um mesmo item.
Quanto à ordem, o que importa salientar é que a oração em que ocorre o
item então, seja ela a oração de tempo ou a núcleo, vem sempre à direita e não
pode ser deslocada à esquerda. O que impede a mudança da ordem é uma restri-
ção de caráter mais geral, qual seja, o funcionamento anafórico, seqüencial de um
105
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.
item. Com efeito, só se pode identificar uma anáfora ou uma seqüenciação após a
menção do referente que se recupera ou ao qual se segue outro. Este mesmo fator
é que dá conta de exemplos como os seguintes:
(10)
Inf: Pronto o camarão, exatamente quando aquele queijo fica todo derretido, envol-
ve o camarão. (D2, POA, 291, p. 10-1)
(11)
Loc: 2: mas eu não vejo televisão, já lhe disse; eu só vejo a televisão quando tem
futebol. (D2, REC, 05, p. 09)
Inf: Quando ele chegou em casa e começou a tirar aquelas galinha, era só galinha
morta que saí.a (DID, POA, 045, p. 17-8))
3. CONCLUSÃO
106
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
BIBLIOGRAFIA
107
BRAGA, Maria Luiza. As orações de tempo sob uma perspectiva funcionalista.
108
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
METODOLOGIA DE PESQUISA
EM PORTUGUÊS FALADO
A língua falada tem, como uma de suas características mais evidentes, o fato
de ser planejada localmente, no momento de sua execução. Isso confere a ela um
caráter fragmentário, que pode ser verificado tanto no plano de construção da frase
ou enunciado como no da seqüência de assuntos. Para verificar falta de continuida-
de no plano da construção do enunciado, verifique-se o exemplo a seguir:
(Ex. 01) (...) o [meu irmão] mais novo... fez o curso de Agronomia em Piracicaba... foi
trabalhar na fazenda... acabo::u se desentendendo com meus pais... então
hoje ele é agrônomo do Estado... trabalhando no:: Instituto de:: Pesca... no
Posto de Piscicultura de Americana (...)
(EF, SP, 208, l. 149-54)
(Ex. 02) (...) em mil novecentos e trinta e nove em janeiro eu::... fui operado de apên-
dice... estava na Casa de Saúde Santa Inês quando houve um:: parto de uma
japonesa menor de idade... mãe solteira... ((pigarreou)) sendo mãe solteira...
a ... própria mãe da parturiente ou seja a avó da criança... tentou estrangular
arecém-nascida (...)
(EF, SP, 208, l. 158-63)
(Ex. 03) L2 eu:: eu lhe perguntaria aídentro desse problema... você não possui uma...
um controle — digamos assim — em cima de você você deve produzir tanto
num dia... ou... ou existe isso ou digamos um dia de chuva esta um dia horrível
para trabalhar um dia que você está indisposto você poderia pegar voltar para
sua casa entrar num cinema distrair um pouco, entende?... que (que você)
você poderia fazerisso?
L1 não... pode perfeitamente eu acho que::essa::essa::...essaresponsabilidade...
elanoséatribuída...inclusive::dentro da profissão de vendas o que:: interessa
é::...faturar... entende?... para eles pouco importa:: às vezes a::
(D2, SP, 062, l. 251-62)
110
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
111
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.
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GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.
114
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
115
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.
politana de São Paulo, caberá selecionar um ou mais bairros que apresentem con-
centração de habitantes originários do Nordeste e, também, escolher informantes
que vivam nessas comunidades e sejam oriundos daquela região. Após a delimita-
ção da área, caberá efetuar estudos acerca de sua história e de suas características
físicas e humanas, como forma de compreender melhor os traços de sua população.
Caberá, também, definir o material a ser coletado (entrevistas, conversações casu-
ais, etc.), de acordo com a finalidade da pesquisa e as características dos informan-
tes. Uma pesquisa acerca do léxico, com certeza, requererá a realização de uma
entrevista com perguntas dirigidas para a obtenção de informações específicas. Ainda
nessa fase inicial (preparação da pesquisa) caberá capacitar a equipe de documen-
tadores ou inquiridores, discutindo com eles os procedimentos para a execução dos
inquéritos (datas, horários, formas de conduzir os inquéritos), e orientando-os a
respeito da utilização dos equipamentos de gravação.
Na segunda fase serão postas em execução as diretrizes e metas fixadas no
parágrafo anterior, para a obtenção do material gravado. Para que as gravações
tenham maior autenticidade, deverão ser realizadas junto à própria comunidade,
evitando-se, assim, locais “artificiais”, como os estúdios de gravação.
A terceira fase será dedicada à transcrição e análise do material recolhido.
A transcrição é necessária como forma de facilitar a análise desses materiais, mas
não exclui a audição das fitas, necessárias para compreenderem-se as característi-
cas da língua falada. Recomenda-se a indicação de alguns fenômenos característi-
cos da fala (pausas, truncamentos, alongamentos, elevação da voz, entoação). Essa
modalidade de transcrição é básica, mas permite as indicações complementares
necessárias a cada estudo, como a duração das pausas e a delimitação dos segmen-
tos fônicos.
Na fase de análise, são levados em conta os fatores já definidos na caracteri-
zação dos informantes da pesquisa (sexo, idade, procedência, grau de instrução,
profissão), bem como são determinados os fenômenos variáveis e as variantes por
eles apresentadas (por exemplo, tratamento de segunda pessoa: tu, você, o senhor;
concordância verbo-sujeito: ausência ou presença de marcas). A esse respeito, cabe
acrescentar o seguinte: é preciso selecionar fenômenos variáveis que sejam produ-
tivos no córpus e apresentem diferentes possibilidades de realização. De nada adi-
antará estudar a regra de concordância verbal na fala culta, pois os casos em que
não se realiza a concordância são irrelevantes; da mesma forma, não é produtivo o
estudo da oposição em textos falados ir + infinitivo x formas flexionadas (na
indicação do futuro), pois as segundas formas (farei, amarei) têm seu emprego
restrito a textos escritos.
116
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
117
GALEMBECK, Paulo de Tarso. Metodologia de pesquisa em português falado.
COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS
Este trabalho enfatiza, inicialmente, que o estudo da língua falada deve se-
guir o método empírico-indutivo, partindo do exame das ocorrências para as inter-
pretações qualitativas. Essa postura metodológica, aliás, decorre da própria nature-
za da língua falada, que é caracterizada pela extrema variabilidade e fluidez. Essa
variabilidade impede, aliás, a adoção de categorias e modelos formais previamente
definidos e traz consigo a necessidade de uma teoria que flua dos casos e correspon-
da diretamente a eles.
As características da língua falada também conduzem à ampliação do con-
ceito de competência, vista não só como a capacidade de gerar e compreender
frases bem formadas, mas como a capacidade de utilizar a língua para interagir com
outros seres humanos. De acordo com essa postura, é preciso considerar não só os
dados de um sistema fechado e constante, mas como esses elementos são utilizados
em uma situação real de interação. Essa postura coincide com os postulados do
funcionalismo, teoria que fornece o embasamento metodológico para os estudos de
língua falada.
Foram expostos, também, os procedimentos para a execução de pesquisas
em língua falada e, bem assim, tratou-se do campo – bastante amplo e variado –
que se oferece ao estudiosos dessa modalidade da língua.
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118
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
119
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Gladis MASSINI-CAGLIARI*
1. INTRODUÇÃO
“Não se pode dizer que o português arcaico não foi estudado. Pelo contrá-
rio. Dos estágios passados da história da língua portuguesa, é, certamente,
o mais estudado. O que, no entanto, deve ser marcado é que a bibliografia
numerosa que se construiu sobre este período se desenvolveu, sobretudo,
dos fins do século XIX para os meados do século XX. Na sua quase totali-
dade ela representa uma tradição de estudos filológico-lingüísticos própria
1
Cito apenas estes, porque os conheço mais de perto. Perdoem-me os que deixam de ser aqui citados, por um
imperdoável desconhecimento meu.
122
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
2
O tipo de linha de pesquisa em Fonologia Histórica que aqui se propõe pode ser encontrada na tese de Douto-
rado, de minha autoria, intitulada “Cantigas de amigo: do ritmo poético ao lingüístico. Um estudo do percurso
histórico da acentuação em português” , cujo objetivo principal é traçar o percurso da acentuação portuguesa,
através da análise de três pontos cruciais no contínuo temporal da língua: latim, Português Arcaico e Portu-
guês Brasileiro (atual). As análises são efetuadas dentro de uma perspectiva fonológica não-linear, adotando
principalmente os modelos métrico de Hayes (1991) e lexical de Mohanan (1986).
123
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
“latim” passa a ser identificado como “português”. Ao lado disso, este é um perío-
do em relação ao qual já pode ser encontrada documentação poética escrita em
português, essencial para a observação de fenômenos prosódicos – o que não se
pode tão facilmente encontrar em relação ao latim vulgar utilizado no espaço físi-
co onde, hoje, é Portugal.
Quando se tem como objetivo a investigação de elementos de um período
de uma língua quando ainda não havia tecnologia suficiente para o arquivamento
e transmissão de dados orais, a possibilidade de escolha entre material poético e
não-poético para constituição do corpus não se coloca. Como os textos remanes-
centes em português arcaico são todos registrados em um sistema de escrita de
base alfabética, sem qualquer tipo de notação especial para os fenômenos prosódicos,
fica praticamente impossível de serem extraídas informações a respeito do acento
e do ritmo do português deste período, a partir de textos escritos em prosa.
Já em relação a textos poéticos, ocorre o contrário, principalmente se estes
forem metrificados, isto é, se levarem em conta o número de sílabas e/ou a locali-
zação dos acentos em cada verso. Além de trazerem todas as informações necessá-
rias sobre os elementos segmentais (tanto quanto os textos em prosa), a partir da
observação de como o poeta conta as sílabas (poéticas) e localiza os acentos em
cada verso, podem ser inferidos os padrões acentuais e rítmicos da língua na qual
os poemas foram compostos. Da localização dos acentos poéticos, pode-se con-
cluir a localização do acento nas palavras, ou seja, os padrões de acento lexical da
língua, e, da concatenação desses acentos dentro dos limites de cada verso, os
padrões rítmicos da língua em questão. Além do mais, como diz Allen (1973, p.
103):
124
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
“... o princípio rítmico dominante já no século XIII, sempre que havia mis-
tura de versos graves e agudos, era o de fazer o verso agudo o padrão da
medida. Contudo deverá notar-se, porque é um fenómeno característico
da antiga métrica portuguesa, que não são raros os casos em que, entre nós,
se alinhavam octossílabos e decassílabos agudos com setessílabos e novessí-
labos graves. É aquilo que impropriamente se chama a lei de Mussafia.”
(Lapa, 1981, p. 222)
125
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
126
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
já traz inúmeros subsídios para a busca dos parâmetros do acento lexical do portu-
guês, naquela época. Como foi mostrado em Massini-Cagliari (1995), a considera-
ção desse fenômeno desde há muito apontado sobre o ritmo poético das cantigas
medievais portuguesas é a chave para a análise do acento no Português Arcaico.
Segundo Massini-Cagliari (1995), no CBN, existem três tipos de cantigas
de amigo, quanto à estrutura prosódica da última palavra dos versos: a) cantigas
cujos versos terminam sempre por oxítonas; b) cantigas cujos versos terminam
apenas por paroxítonas; c) cantigas cujos versos terminam em oxítonas e
paroxítonas. Quando o interesse principal é buscar pistas que apontem para fa-
tos elucidadores do ritmo da língua que construiu os poemas, por trás da estru-
turação rítmico-poética das cantigas, a análise pode ser centrada em um aspec-
to: o comportamento das sílabas átonas de final de verso, uma vez que este é um
contexto favorável à obtenção de pistas a respeito do acento em Português Ar-
caico. É fato já conhecido que pelo menos uma das sílabas do verso tem que ser
acentuada, nas cantigas medievais. Quando apenas uma recebe o acento poéti-
co, é sempre a última sílaba (poética); quando há mais de uma sílaba proemi-
nente, a última certamente o é.3 Desta forma, somente a análise das cantigas do
tipo c permitirá a observação do comportamento das átonas finais – anulado,
nos outros dois tipos, pela uniformidade prosódica das palavras finais de verso.
Sendo assim, todas as cantigas aqui consideradas tiveram os seus versos dividi-
dos em sílabas poéticas, contando-se da esquerda para a direita e desprezando a
pós-tônica final de verso, quando esta está presente. Elisões de vogais só foram
consideradas quando apontadas pelo próprio trovador (aqui representadas pelo
uso do apóstrofo – ’).4
Dentre as cantigas do tipo c, isto é, aquelas cujos versos terminam ora por
oxítonas e ora por paroxítonas, podem ser observados dois comportamentos diver-
sos das sílabas átonas de final de verso: em algumas cantigas, elas devem ser con-
tadas, como parte integrante dos versos, para que estes sejam isossilábicos (isto é,
para que possuam todos o mesmo número de sílabas poéticas); em outras cantigas,
elas devem ser desprezadas na contagem das sílabas poéticas.
Nas cantigas abaixo, pode-se observar que as sílabas átonas finais devem
ser desconsideradas na contagem das sílabas poéticas, para que os versos sejam
3
A este respeito, ver Massini-Cagliari (1995, p. 204-5).
4
A respeito de como deve ser efetuada a contagem das sílabas poéticas nas cantigas medievais portuguesas,
vejam-se Michaëlis de Vasconcelos (1912-13, p. 395-9), Nunes (1973, v. I:, p. 418), Lapa (1981, p. 230-1),
Cunha (1961, p. 91-2) e Massini-Cagliari (1995, p. 49-53).
127
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
CBN 676
D. Joan D’Avoin
5
Na apresentação das cantigas analisadas neste trabalho, será utilizada a seguinte convenção: entre parênteses,
à direita do verso, aparece o número de sílabas poéticas do mesmo. Nos versos marcados com *, as sílabas
poéticas estão sendo contadas somente até a última sílaba tônica, desconsiderando a última sílaba átona final,
para ressaltar a diferença entre a estrutura rítmica dos versos, apesar de terem o mesmo número de sílabas. A
transcrição ortográfica adotada é a de Nunes (1973).
128
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
CBN 678
D. João Soares Coelho
Nas cantigas abaixo, porém, acontece o contrário: para que os versos sejam
isossilábicos, é preciso que todas as sílabas sejam consideradas, inclusive as átonas
de final de verso.
CBN 666
D. Joan d’Avoin
129
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
CBN 1261
Lourenço, jogral
∼
Ua moça namorada (7)*
Dizia un cantar d’amor (8)
e diss’ela:
~ «Nostro Senhor, (8)
Oj’eu foss’aventurada (7)*
que oiss’o meu amigo (7)*
com’eu este cantar digo». (7)*
130
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
131
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
no outro caso – a própria atonicidade deste espaço. O iambo, por sua vez, não
daria conta de descrever os casos em que as sílabas átonas de final de verso
fazem parte da sua estrutura rítmica, por não possuir nenhum “lugar” para estas
sílabas. Assim, a diferença no modo de trovar dos dois grupos consiste em dife-
rentes escolhas para o nível prosódico de segmentação, para delimitar o verso. O
primeiro grupo (majoritário) elege o nível prosódico (cf. Nespor & Vogel, 1986)
mais baixo, o do pé (Σ), e é por isto que as sílabas átonas de final de verso podem
fazer parte da estrutura rítmica do verso (todos os elementos do pé devem ser
contados) – exemplo em (1a). O outro grupo, por outro lado, escolheu um nível
acima: as sílabas poéticas só podem ser contadas até a última tônica, ou seja, até
a última sílaba que tiver uma projeção (x) no nível superior ao dos pés (o da
palavra fonológica – ω) – exemplo em (1b).6
6
No exemplo abaixo, x representa uma sílaba proeminente no nível prosódico focalizado, enquanto que o ponto
representa uma sílaba não-proeminente.
132
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
para outro ou de uma cantiga para outra de um mesmo trovador – o que não
ocorre.
Deste modo, o fato de as proeminências das palavras ocuparem a mesma
posição, em qualquer cantiga em que apareçam e em qualquer posição em que
apareçam nas cantigas, prova que os troqueus moraicos são sempre construídos da
direita para a esquerda, uma vez que apenas a natureza das duas últimas sílabas da
palavra é que determina a posição do acento principal: se a última sílaba for pesa-
da, atrai o acento; se for leve, o acento recai sobre a penúltima – o que faz do ritmo
do PA um sistema sensível à quantidade das sílabas.7 Esta “janela de duas sílabas”
no final das palavras, sobre a qual o acento incide, em PA, prova que a Regra Final
é aplicada à direita, uma vez que recebe a proeminência principal da palavra o
último (x) no nível do pé.
Através da utilização de um modelo fonológico de princípios e parâmetros,
é possível realizar um mergulho no ritmo do PA, ressaltando aspectos importantes
da sua estruturação, por meio da análise da estrutura poética das cantigas de ami-
go. A adoção de uma teoria como esta, além de tornar possível este tipo de apro-
fundamento no passado das línguas, ainda possibilita que diferentes períodos pas-
sados de uma língua sejam comparados, sem que haja a necessidade de constitui-
ção de corpora de natureza semelhante. Por exemplo, ao final deste rápido mergu-
lho em um dos aspectos da prosódia do português em uma de suas fases pretéritas,
pode-se constatar que não houve grandes mudanças na regra de atribuição do
acento, do latim8 ao PA: o sistema continua sensível à quantidade das sílabas (em-
bora as distinções entre vogais tenham desaparecido) e continua a existir uma
“janela de duas sílabas” sobre a qual incide a acentuação principal (embora tenha
havido um deslocamento na posição desta “janela”: englobava a penúltima e a
antepenúltima sílabas da palavra, em latim, e a última e a penúltima, em PA).9
Portanto, por permitir que dados de diferentes épocas recebam o mesmo
tratamento teórico, o modelo de princípios e parâmetros consiste no principal
instrumental existente atualmente para observar as mudanças históricas em rela-
ção à prosódia. Desta maneira, quando estiverem disponíveis estudos da prosódia
do português em suas várias fases, será possível obter um panorama bastante com-
7
A este respeito, ver Massini-Cagliari (1995, p. 206).
8
Para uma abordagem fonológica do acento em latim, dentro das perspectivas métrica e prosódicas atuais, ver
Hayes (1985, 1991), Halle & Vergnaud (1987), Nespor & Vogel (1986) e Massini-Cagliari (1995).
9
Esta mudança deve-se à perda da extrametricidade da sílaba final das palavras, do latim ao PA. Sobre este
assunto, ver Massini-Cagliari (1995, p. 237-47).
133
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
3. CONCLUSÃO
Talvez sem faltar com a verdade possa ser dito que a Lingüística Histórica,
atualmente, no Brasil, encontra-se em um ponto em que é preciso ter a coragem
de olhar para trás e considerar o vasto conhecimento produzido pela Filologia
Portuguesa e, ao mesmo tempo, ter a lucidez de continuar sendo Lingüística. Como
diz Vieira (1987), mas em relação a um outro assunto que não este, é preciso
enxergar na “face do outro” refletida a “nossa própria face modificada”. No entan-
to, é também preciso que esta continue a ser a nossa face e não a do outro.
E tudo isto pode efetivamente ser posto em prática. Novos projetos na área,
como, por exemplo, os projetos desenvolvidos aqui na USP pelos Profs. Drs. Ataliba
Castilho e Heitor Megale (já citados) e o Projeto Integrado “Fonologia do Portu-
guês Arcaico”, coordenado por mim na UNESP de Araraquara, podem concreti-
zar esse sonho não tão distante. Iniciativas como essas podem trazer contribuições
no sentido de formar novos pesquisadores na área: alunos de Pós-Graduação (Mes-
trado e Doutorado) e de Graduação (Iniciação Científica). Além disso, projetos
dessa natureza contribuem também para um entrosamento entre pesquisadores e
grupos de estudo de diferentes universidades. São as diversas faces que, olhando-
se umas às outras, encontram, nos outros e em si mesmos, a igualdade do espelho
e a alteridade do outro.
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137
MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Lingüística histórica & fonologia não linear.
138
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1. ESCLARECENDO O TEMA
1
Considerando não haver, no espaço de uma mesa-redonda, mais tempo e do que para a simples ilustração de tese
tão ambiciosa, deixo para outra oportunidade uma exploração mais detida que vise a uma comprovação. Portanto,
a expressão ilustrar não é mera força de expressão.
2
Uso aqui o termo “escrevente” para designar o autor na escrita, pois o autor na fala é o falante.
140
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Aspecto comum a estas três noções de gramática é que todas elas têm a ver
com regras, ou melhor dito, regularidades, porém, mesmo assim, a noção de regra
não é unívoca. Sem maiores delongas, vamos admitir que regra seja uma espécie de
norma ou indicação de caminho, que pode ser seguida. Quanto ao verbo modal
pode na expressão “pode ser seguida”, vamos tomá-lo em duas acepções:
141
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
Não é destas questões que estarei tratando aqui. O interesse será identificar,
na escrita, marcas ou indícios que evidenciam atos de interatividade que sugerem
uma relação direta e intencional do autor com o suposto leitor, uma relação clara
entre um eu e um tu. Esta relação se manifesta como um tipo de envolvimento
interpessoal e pode apresentar-se de diferentes formas, com intensidade variada
nos diversos gêneros textuais. Quanto a isto vale ressaltar que o escrevente sempre
desenha um leitor para seu texto, mesmo que seja um leitor genérico. Os diversos
gêneros textuais distinguem-se em boa medida pelo tipo de receptor desenhado.
Neste sentido, é hoje consensual a idéia de que o destinatário é um aspecto central
na construção de qualquer tipologia textual.
Portanto, vamos supor aqui algo próximo à noção (ii) de gramática, admi-
tindo que uma das características do material lingüístico que cumpre a função de
indício de interatividade é o fato de não apresentar o mesmo grau de informatividade
que os outros materiais do texto, tanto na fala como na escrita. Ou seja, a interati-
142
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
1 Niterói, 11/08/1991
2 Amiga A. P.
3 Oi!
143
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
29 Um beijão!
30 Do amigo
31 P. P.
32 15:16h
144
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Este texto quase não apresenta relações diretas de interatividade, marcadas com
um discurso interpessoal do tipo visto na carta, mas se olharmos com calma, veremos
uma série de sugestões de relação com o leitor e, sobretudo um trabalho de explicitação
e explicação para o leitor convidando-o a partilhar algo que supostamente não lhe era
conhecido. Vejamos algumas marcas deste tipo de movimento:
145
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
linhas 11-12: “A causa da quebradeira num país que responde pela segunda maior
reserva petrolífera da América Latina encontra resposta...
linhas 20-23: “Os recursos começaram a sair do país. Em junho de 94, congelou-se,
então o câmbio. Isso impediu a alta da inflação, mas levou à queda das reservas, assim
como derrubou o Produto Interno Bruto, com conseqüências negativas para o sistema
produtivo.”
Trata-se da referência ao leitor com marcas por vezes nítidas, tais como as
que apareceram na carta acima citada. Estes marcadores interacionais ou discursi-
146
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
vos diretos que estabelecem relações imediatas com o leitor são comuns a alguns
poucos gêneros textuais. Não aparecem no noticiário jornalístico (a menos que
pretenda uma ruptura com o gênero e um efeito de sentido especial, tal como ocor-
re com o Jornal Notícias Populares que busca o sensacionalismo).
Também são comuns, neste caso, as perguntas diretas (no geral de caráter
retórico), mas às vezes nitidamente funcionais sugerindo a seleção de tópico. Isto é
comum em Teses e Dissertações Acadêmicas, bem como em artigos científicos. Por
exemplo:
147
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
3
Trecho extraído da Tese de doutorado, “O Modo Heterogêneo de Constituição da Escrita” , de Manoel Luiz Gonçal-
ves Corrêa, IEL, UNICAMP, Campinas, março de 1997, p. 345-7.
148
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Não parece necessário fazer longos comentários a este exemplo, pois aqui
estão claras as marcas de interatividade, inclusive na relação com o leitor crítico
que pode ter outras opiniões que as do autor da tese.
149
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
Muitas vezes, o escrevente tem em mente um leitor com o qual ele dialoga
supondo nele conhecimentos específicos. Este é o caso de muitos artigos científicos
em que os escreventes agem na suposição de um leitor especializado. As marcas de
suposição de um tal partilhamento são, por exemplo, os verbos na 2ª pessoa do plural
ou então os verbos epistêmicos do tipo, “sabemos”, “compreendemos”, “achamos”, “jul-
gamos” etc. e, mais freqüentemente, os advérbios característicos de uma modalização
epistêmica que sugere partilhamento de pressupostos ou conhecimentos:
150
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Marilene Felinto
151
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
152
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
interlocutor suposto. Nem toda a citação (discurso direto) pode ser tida como um
caso de interatividade, mas toda a citação é um caso de heterogeneidade, polifonia,
alteridade, intertextualidade ou interdiscursividade. Mais do que um caso de “he-
terogeneidade mostrada” como aponta Authier-Revuz, trata-se de um “dialogismo
mostrado”, nos termos de D. Maingueneau.
Veja-se o caso das linhas 9-10 do exemplo (4). Ali, o embaixador do Brasil
na Venezuela é citado, mas com o mesmo status que o resto do parágrafo sob o
ponto de vista funcional, o que se dá com o verbo “recorda”, funcionalmente
constativo (na terminologia de Austin).
O movimento específico a que aqui me refiro é aquele que aparece em abun-
dância em textos acadêmicos. Ali é comum se apresentar a opinião de alguém e
então endossá-la ou criticá-la com alguns argumentos que retomam o citado. O
interlocutor não está ali apenas como uma informação a mais, mas como um par-
ceiro do debate em andamento. São formas que sugerem a emergência de um outro
(não o autor) como enunciador no texto.
A designação aqui dada a este tipo de indício não é muito clara, mas o
fenômeno é simples. Trata-se do uso de dêiticos textuais, notas de pé de página etc.,
como indícios claros de interatividade.
Quanto às notas de pé de página, temos fórmulas que se dirigem explicita-
mente a um leitor, tais como:
Vejamos agora o caso dos dêiticos textuais (DT). Esses dêiticos fazem refe-
rência a algo dentro do texto, seja uma porção do texto ou um conteúdo. Sua
referenciação não é pontualizada, ao contráro, por exemplo, das anáforas. Um as-
pecto importante dos DT é o fato de mostrarem como concebemos o texto enquan-
to um objeto no qual e sobre o qual agimos. O texto é visto como um espaço em
que as coisas estão distribuídas e situadas (essas coisas são as proposições, os con-
teúdos etc.) de maneira que o texto é ao mesmo tempo real e virtual. Por outro
lado, o texto é também um tempo, seja ele o tempo da ação do produtor (“depois eu
153
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
falarei sobre isso” ) ou do leitor (“como você viu no início de sua leitura” ) ou do conteú-
do (aqui não cabe outra posição). O escrevente, ao usar esses indícios, está sugerindo
ao seu leitor uma orientação cognitiva (um enfoque) preferencial.
Vejamos algumas das realizações desses indícios que podem revelar interati-
vidade.
Nas cartas:
1. fico por aqui (E001)
2. Por aí você vê porque eu demoro tanto (E002)
3. Para que possamos comprovar tal fato… (E005)
Nas atas:
1. outro assunto abordado foi a… (E007)
2. Para tanto foi nomeado… (E007)
Texto jurídico:
1. … que no final assina, fez esta petição (E008)
2. pelos motivos práticos e jurídicos abaixo aduzidos (E037)
3. pelo instrumento de mandato anexo (E058)
4. As funções acima discriminadas (E058)
Artigo científico:
1. Essa posição é controvertida (E019)
2. O que foi dito até aqui é suficiente para… (E019)
3. Penso, aqui, nos… (E019)
4. Foi tendo em vista tudo o que se acaba de afirmar que escolhemos (E040)
5. Considerando o que aí fica dito (E040)
6. Como já foi sugerido antes, de passagem, (E040)
7. ao responder a questão colocada acima (E054)
8. este último dado indica que…/E054)
9. essas especulações são, como viram, muito limitadas (E054)
4. OBSERVAÇÕES FINAIS
154
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
155
MARCUSHI, Luiz Antônio. Marcas de interatividade no processo de textualização na escrita.
BIBLIOGRAFIA
ABSTRACT: This article discusses the widespread misconception that the inte-
ractive markers inscribed in textuality are a typical feature of orality and not to be
found in writing. One explanation for this erroneous idea is the tendency to analyze
interactive markers only in speech and not in writing. By considering the principles
of dialogism and interlocution as pertaining to language and not as a mode of
language use, it is suggested that speech, as well as writing, present interactive
markers. What differentiates these interactive markers in speech and writing are
the strategies for their realizations and the linguistic elements utilized. It is also
shown that the degree of formality or informality of a text is of little relevance for
clearly differentiating the presence of these markers. Based on a varied sample of
written texts, this article shows that interactive markers cannot be taken as a
criterion for distinguishing between speech and writing.
156
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Sírio POSSENTI*
RESUMO: Este texto defende a idéia de que o discurso não deveria ser
entendido como mais um nível lingüístico, mas antes como um efeito que
se produz através da exploração sistemática de certos mecanismos da lín-
gua. Tal efeito resulta de uma posição do locutor e materializa uma certa
ideologia.
Se fosse aceito esse ponto de vista, talvez se pudesse dizer que não existe
nenhuma relação entre gramática e discursividade, que se trata, exatamente, de
dois domínios distintos. Talvez, complementares. (Além disso, cada pesquisador
de uma dessas áreas poderia dizer, nos corredores, que, quando lhe aparece um
aluno não muito talentoso, ele o remete a pesquisadores do outro domínio...).
Uma das ressalvas a esta conclusão poderia vir dos estudiosos da gramática do
texto e/ou da conversação, se defendessem que, na expressão “gramática do texto/
conversação”, a palavra “gramática” significa mesmo ‘gramática’, e a palavra “texto/
conversação” significa (ou seja, é um outro nome de) ‘discurso’. Talvez Benveniste
considerasse que se trata de um abuso de termos, tanto quanto atribuir uma lin-
guagem às abelhas. Talvez, alguns analistas do discurso considerassem que se trata
de uma forma de ilusão sobre a imanência.
A concepção de Jakobson apresentada acima é correlata de outra concep-
ção corrente segundo a qual as línguas se organizam em camadas (sintaxe, semân-
tica, pragmática/discurso), não apenas com a finalidade de explicar algumas ca-
racterísticas da construção das seqüências, mas também sua interpretação. Uma
das suposições é a de que, na interpretação, as camadas mais internas, além de
terem prioridade, têm a óbvia garantia proporcionada pelas regras da gramática.
Ou seja: haveria interpretações impostas pela gramática (ou, pelo menos, inter-
pretações limitadas pela gramática). O procedimento seria: quando a sintaxe é
suficiente para garantir a interpretação, fica-se na sintaxe. Apenas se a sintaxe
falha é que se passa para a camada semântica. E o procedimento se repete: se a
semântica não dá conta de uma interpretação, então, e só então, passa-se para a
camada pragmático-discursiva.
158
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
159
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.
fique claro que, embora sempre haja um suporte lingüístico para um discurso, nem
sempre o mesmo recurso da língua está a serviço do mesmo discurso.
Meu objetivo, é, assim, tentar mostrar que a noção de discurso nem
se opõe à de gramática, nem é desta um mero complemento. O discurso é
entendido, aqui, como algo – um efeito de sentido, uma posição, uma ideolo-
gia – que se materializa através da língua, embora não em uma relação biunívoca
com recursos de expressão da língua. É pela “exploração” de características da
língua que a discursividade se materializa (para usar os termos de Kress (1985,
p. 29), “o discurso emerge no e através do texto”). Ou seja, o discurso se
constitui pelo trabalho com e sobre os recursos de expressão, que produzem
determinados efeitos de sentido em correlação com condições de produção
específicas. Freqüentemente, se não sempre, esta investidura dos recursos de
expressão não é clara para o locutor ou para o ouvinte/leitor – ou seja, os
interlocutores podem não ter acesso consciente às manobras que executam e
aos efeitos que assim (se) produzem.
Seja, para começar, o seguinte exemplo analisado por Kress (1985).
Trata-se de uma emissão jornalística por TV (grifo as passagens mais relevan-
tes para a análise):
160
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Não retomarei aqui a análise completa de Kress, mas apenas alguns aspec-
tos, exatamente os que são relevantes para a questão da relação (ou não) entre
gramática e discursividade. Diz Kress que um texto revela sua organização ideoló-
gica (isto é, um discurso) na seleção e organização de sua estrutura sintática. A
questão básica, para ele, é o modo pelo qual os eventos são retratados causalmen-
te. Tais eventos podem aparecer em formas transativas (com agente, ação e alvo
expressos na superfície textual) ou em formas não-transativas (ficando não-ex-
presso pelo menos o agente). Neste caso, os eventos aparecem como se não hou-
vesse uma ação, como se se causassem a si mesmos, ou como se decorressem de
uma ação não-especificada. O modo de apresentar os eventos não é uma questão
de verdade ou de realidade, mas um modo de o locutor integrar a ação em seu
sistema ideológico.
No texto em análise, de maneira geral, cláusulas transativas completas ocor-
rem quando os agentes são os manifestantes; as transativas com outros agentes
ocorrem com agente apagado. Numericamente, as cláusulas não- transativas do-
minam o texto. É claro, assim, que a seleção do traço de transatividade é sistemá-
tica, embora, vale repetir, provavelmente não seja consciente. As estruturas dis-
cursivo-ideológicas se realizam no texto de uma certa forma, e a presença ou au-
sência de um traço não é uma questão de acaso, mas a expressão de um sistema
ideológico e um discurso específico de autoridade.
Além da sistematicidade das construções sintáticas referidas, o mesmo
discurso se realiza pela seleção de um léxico recheado de metáforas militares, de
batalha: há um inimigo, e há um amigo protetor. A polícia guarda o campo que
os manifestantes querem invadir. O efeito é que os ouvintes são levados a ver a
narração como se simplesmente “narrasse os fatos como ocorreram” – o que as
imagens (obviamente, selecionadas) confirmam. O efeito é que os antifascistas e
antiracistas são apresentados como violentos e agressivos, e os policiais que os
reprimem, como guardiães da ordem. Qual a relação entre gramática e discursi-
vidade? No caso, um certo discurso, uma determinada ideologia se materializa/
veicula pela seleção sistemática de uma ou de outra estrutura sintática, confor-
me o fato de que se trata. Ou seja: o discurso que se veicula neste texto se
161
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.
162
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
quais leva ao outro, e o outro ao um, e assim sucessivamente. Mas, para o círculo
vicioso em questão, o falante só identifica um dos dois participantes, devendo a
existência de outro ser inferida a partir da própria expressão “círculo vicioso”. O
que importa destacar aqui é que, como esse círculo vicioso é o da violência, “vio-
lência” faz coesão com “grupos terroristas”. Assim, a coesão feita por “asi” e por
“violência” acaba explicitando apenas os mesmos agentes anteriormente mencio-
nados.
“Y por más de una década fueron violadas en mi país los derechos funda-
mentales del hombre.”
163
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.
tura sintática, que será interpretada como restritiva ou como explicativa a depen-
der do processo discursivo que ela estiver materializando.
Vejamos alguns detalhes desta proposta que concerne, diga-se, a um pro-
blema que poderia ser reconhecido como tipicamente sintático. A primeira idéia
mobilizada por Henry é a de que a língua – a langue – é apenas relativamente
autônoma. Por um lado, isto significa dizer que não há uma língua para cada dis-
curso - caso em que ela não teria autonomia alguma – e, por outro, isso significa
que a língua pode estar sujeita a um funcionamento determinado de alguma forma
também de seu exterior – isto é, não necessariamente o funcionamento de uma
estrutura lingüística obedece apenas a fatores que são exclusivamente da ordem
da langue. As fronteiras entre o que releva da língua e o que releva das formações
discursivas não pode ser assinalado a priori. Ou seja, cada discurso concreto é
duplamente determinado – pela ordem própria da langue e pelas formações
discursivas.
Conhece-se a relevância da noção de paráfrase para a AD, especialmente
na formulação de Pêcheux e Fuchs (1975). A relação parafrástica entre várias
superfícies discursivas é considerada por eles como nada menos que a própria matriz
do sentido. Um caso particular de relação entre superfícies discursivas é aquele em
que uma seqüência relaciona-se com ela mesma. É o que ocorre nos casos de reto-
mada e de reformulação. Ora, duas formulações materialmente diferentes podem
estar relacionadas por uma relação de paráfrase discursiva mesmo que não apare-
çam no mesmo contexto. Chame-se a colocação de uma seqüência em relação
com ela própria de relação intra-seqüência. É, por exemplo, o caso da relação
entre um pronome e um nome (um pronome não pode preceder um elemento que
lhe dá sua referência). Fora dessa relação específica, uma seqüência pode relacio-
nar-se consigo mesmo da mesma forma que se relaciona com qualquer outra se-
qüência. Temos, no caso, uma relação inter-seqüência, isto é, uma relação entre
duas seqüências distintas.
Quando se diz que a produção do sentido repousa sobre a possibilidade de
relacionar uma seqüência a uma formação discursiva, isso não significa que, na
leitura de um texto, seja necessário confrontá-lo materialmente com outro texto
(daí a relevância da noção de memória discursiva). A noção de paráfrase pode
operar sem que ela se realize materialmente, isto é, mesmo que não seja sob a
forma de uma relação material de diferentes seqüências efetivas. Tal relação pode
inclusive operar fora da consciência daquele que escreve, escuta ou lê. Isso se deve
ao fato de que a materialidade das formações discursivas não se reduz à materialidade
das seqüências discursivas.
164
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
É então possível, diz Henry, que uma formulação possa ser posta global-
mente em relação com outra (ser saturada) como se essa relação fosse uma relação
intra-seqüência, quando, devido à autonomia relativa da língua, uma relação in-
ter-seqüência deve necessariamente aparecer. É o que produz o efeito subjetivo de
anterioridade, de implicitamente admitido, chamado em AD de pré-construído.
Esse efeito é característico do funcionamento restritivo da relativa. Em resumo, só
se pode falar de um funcionamento restritivo ou explicativo de uma relativa, e não
de uma relativa como sendo restritiva ou explicativa.
Seguindo Henry, pode-se resumidamente dizer que o pronome relativo re-
presenta a relação entre o antecedente e a relativa como uma relação intra-
seqüencial, mesmo que esta relação não esteja explicitada em outros lugares no
interior da seqüência. Assim, o que separa o funcionamento restritivo do funcio-
namento explicativo é que a outra modalidade de pôr em relação duas seqüências,
a relação inter-seqüências, é apagada pela relação intra-seqüência. Ao contrário,
no funcionamento explicativo, a relação inter-seqüências não é apagada.
Em resumo: o funcionamento explicativo apresenta uma relação inter-se-
qüência como se se tratasse de uma relação intra-seqüência. Assim, continua Henry,
o funcionamento explicativo só é possível em dois casos:
a) a relação entre o antecedente e a explicativa faz parte da ordem das
evidências gerais (remete a propriedades da natureza, por exemplo – “o cachorro,
que é um animal, é carnívoro”);
b) a relação entre o antecedente e a relativa é efetivamente explicitada no
contexto anterior da seqüência.
Assim como, nos casos analisados por Kress e por Lavandera, o discurso
(ou: uma posição) explicava certas características da sintaxe, o mesmo ocorre
no exemplo analisado por Henry. É porque se trata de certo discurso que o su-
porte lingüístico é o que é. Se mudarmos de posição – se nos colocarmos como
leitores –, poderemos dizer que o efeito de sentido (o discurso) se produz em
decorrência de certos fatos de sintaxe, relacionados com determinadas condi-
ções de produção.
Gostaria de dizer, para encerrar, que, certamente, Henry trataria hoje desta
questão em termos de interdiscurso. Ou seja, no caso da explicativa, trata-se da
introdução de outro discurso no discurso do locutor, o que não ocorre na restritiva.
Vale anotar que, certamente, este não é o único exemplo de fenômenos desse
tipo.
165
POSSENTI, Sírio. O discurso não é uma camada.
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ABSTRACT: This paper argues that discourse should not be taken as another
linguistic level, but otherwise as an effect that is produced through systematic
exploration of certain language resources. Such effect results from the speaker’s
position and, in fact, expresses an ideology.
166
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
Enilde FAULSTICH*
1
Digo “reassume” porque o conceito de termo, tal como entendido hoje, já era utilizado desde séculos anteri-
ores, como afirma Verdelho (1995, p. 218): “... no período renascentista, surgem outras obras do tipo lexico-
gráfico, motivadas pelos saberes científicos ou pela organanização e sistematização do conhecimento das coi-
sas, das pessoas, dos lugares e não expressamente orientadas pela informação lingüística.”
168
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
169
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
2
No original de Boulanger, à página 25 aparece: “vient atténuer les effets prescriptifs exagérés de certaines
propositions normatives”. [No texto, a tradução para o português é nossa]
3
Para Auger (1993, p. 53): “un nouveau courant appelé socioterminologie, en réaction avec les Écoles
hypernormalisatrices déconnectées des situations linguistiques propres à chaque pays, qui tire ses origines du
croisement de la sociologie du langage et de l’aménagement des langues”. [No texto, a tradução livre para o
português é nossa]
4
Na Norma ISO 1087, 1990 (E/F), o termo harmonização está definido como “harmonisation des notions:
Réduction des différences entre deux ou plusieurs notions”, com a seguinte nota: “L’harmonisation totale des
notions peut amener la fusion de plusieurs notions” e como “harmonisation des termes: Désignation, dans
plusieurs langues, d’une même notion par des termes qui reflètent les mêmes caractères ou par des termes dont
la forme est similaire”.
170
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
5
Op. cit., cap. VI.
171
FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
172
I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
como na seqüência com prefixo grego andr(o): androgen (catalão), andrógino (es-
panhol), androgène (francês), andrògino (italiano), andrógeno (português), an-
drogen (romeno) e como na seqüência com formantes latinos: agricultura (cata-
lão), agricultura (espanhol), agriculture (francês), agricoltura (italiano), agricul-
tura (português), agricultura (romeno).
Quando uma língua toma de empréstimo de outra língua – primordialmen-
te do inglês – um termo, a harmonização entre os sistemas se faz de maneira con-
fusa se a língua que recebe o novo termo não tiver uma política lingüística
normalizadora para acomodação de neologismos estrangeiros. Um bom exemplo,
entre muitos outros, é o termo técnico disc-jóquei, assim registrado no Novo Dici-
onário Aurélio da Língua Portuguesa (1986); esta forma, que tem a segunda ex-
pressão do composto harmonizada com o sistema do português, mantém a primei-
ra como na língua de origem.
3. VARIAÇÃO EM TERMINOLOGIA
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TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação. Uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2° graus. São
Paulo, Cortez, 1996. [Ao citar Ataliba T. de CASTILHO (1988), Travaglia refere-se ao artigo “Variação lingüística,
norma culta e ensino da língua materna”. In Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 1° e 2°
graus – Coletânea de textos. Vol. I, São Paulo, SEE-SP/Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas.
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FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
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FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
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Padronização de cortes de carne bovina. Brasília, MA/SNAD/SIPA, 1990.
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5. A TERMINOLOGIA NO DISCURSO
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Vamos ver como esta bactéria sobrevive na natureza e como ela pode ser
útil para a modificação ou engenharia genética de plantas de interesse para a soci-
edade. Em condições naturais, a agrobactéria causa tumores em plantas dicotile-
dôneas (plantas que mostram, após a germinação, duas pequenas folhinhas, por
exemplo feijão e cenoura. Plantas como o milho ou o trigo, que mostram, após a
germinação, somente uma folhinha, são chamadas de monicotiledôneas). Estes
tumores são conhecidos desde a primeira metade do século XIX e, na época, foram
chamados de “papos”. Hoje, estes tumores são conhecidos como “galhas de coroa”,
e inicialmente foram considerados um modelo interessante para investigar os fato-
res que causam tumores e como estes podem se desenvolver. Durante estas investi-
gações, estabeleceu-se que a entidade molecular responsável pela formação dos
tumores em plantas é um plasmídeo. Lembrem-se: plasmídeos são elementos circu-
lares do material genético de bactérias. O que a agrobactéria faz é um espetacular
ato de “colonização genética”. [... ] Durante a infecção, um pedaço do plasmídeo é
infiltrado no próprio genoma da planta hospedeira. Genes responsáveis pela for-
mação de tumores, presentes no DNA do plasmídeo, começam a funcionar. As
células da planta hospedeira passam então a se dividir descontroladamente e a
sintetizar substâncias que são essenciais para a sobrevivência da própria agrobacté-
ria que causou o tumor.
Alguns representantes da comunidade científica se perguntaram se esta
capacidade de agrobactéria, de inserir parte de seu material genético em plantas,
não poderia ser utilizada para introduzir outros tipos de genes. Eles, então, substi-
tuíram aqueles genes responsáveis pela formação dos tumores (afinal: quem quer
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I Seminário de Filologia e Língua Portuguesa, 1999
comer um tumor?) por outros de interesse econômico, por exemplo, os que têm
alto valor nutricional. Quando a bactéria é modificada é colocada na presença de
células vegetais, ela introduz o transgene nas mesmas. Em seguida, sob condições
especiais de laboratório, estas células se dividem formando uma nova planta, con-
tendo e expressando o transgene de interesse. A estratégia funciona: nossa planta-
modelo produz sementes com um valor nutricional elevado. [...] Veja bem, neste
caso, os cientistas não inventaram nada de novo; apenas um mecanismo já existen-
te na natureza foi modificado e utilizado em benefício da sociedade.
O processo de coesão lexical nos dois textos se realiza por meio de relações
semânticas em que os referentes são registrados por termos da linguagem de espe-
cialidade, registrados em dois discursos diferentes.
O termo em relevo nos dois textos é Agrobacterium tumefaciens que, embora
registrado com a nomenclatura latina, equivale a bactéria tumefaciente. Todo o con-
texto esclarece de que bactéria se trata.
Enquanto no texto 1, o primeiro parágrafo informa o conceito e a função
da bactéria, no texto 2, de início, está explicitada a função da bactéria, que é a de
causar “tumores em plantas dicotiledôneas”. Supondo que o leitor não saiba que
plantas são essas ou que não se lembre do conceito, os autores elucidam nos pa-
rênteses, por meio de uma definição reduzida e exemplos, o que são plantas
dicotiledônias, relacionando-as ao co-hipônimo plantas monicotiledôneas. O mesmo
vai ocorrer no texto 1, quando se apresentam, nos parênteses, equivalências como:
informação genética = DNA; citoquinina = hormônio de crescimento de plantas; Ti
= indutor de Tumor; bactérias não virulentas = incapazes de produzir tumores em
plantas suscetíveis; DNA Transferido = T-DNA etc.
No texto 2, informa-se que “este tipo tumor” [termo genérico ou
hiperonímia] é conhecido hoje como “galha da coroa” e que, lá pelo século XIX,
era chamado de “papo”. Trata-se de variantes diacrônicas em que Y [galha da
coroa] assumiu a posição de X [papo]. No texto 1, encontra-se a informação de
que “a doença da galha da coroa é uma infecção ...”. Assim, no processo de repe-
tição lexical, os termos podem estruturar-se conceitualmente da seguinte forma:
doença [significado genérico], infecção [significado específico em relação à doen-
ça], galha da coroa [significado específico em relação à infecção]. Ainda no texto
2, ocorre o termo “opinas” cujo conceito genérico abriga os específicos de “octopina”
e “nopalina”.
Os textos, ricos em termos, ficam como sugestão para estudos da termino-
logia científica.
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FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
6. CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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FAULSTICH, Enilde. A função social da terminologia.
Ficha Técnica
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