História Cultural
História Cultural
História Cultural
PERSPECTIVAS E DESAFIOS
Introdução
Para compreender o que é “contar” uma história cultural,
primeiro há que se entender o mundo real, a nós apresentado, como
um conjunto de signos, símbolos, marcas, construídos pela experiência
humana e compartilhados pelos indivíduos, numa dada época e
numa dada sociedade. A cultura é entendida como o conjunto desses
significados, “como uma forma de expressão e tradução da realidade
que se faz de forma simbólica” (PESAVENTO, 2005, p. 15).
A dificuldade encontrada pelos estudiosos para definir a História
Cultural desloca a atenção para os traços que a caracterizam, os objetos
de estudos sobre os quais recaem seu olhar e os métodos de análise desses
objetos. No entanto, para Burke (2005, p. 10), há um terreno comum aos
historiadores culturais que “pode ser descrito como a preocupação com
o símbolo e as representações”. Para Chatier (1988), a História Cultural
liga-se à subjetividade das representações, identificando o modo como
uma realidade é construída, pensada, dada a ler. Pesavento (2005)
enfatiza o campo de trabalho da História Cultural no qual se resgatam
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os sentidos conferidos ao mundo, sentidos esses manifestados pelas
palavras, discursos, imagens, coisas e práticas.
Considerando as concepções desses autores, encontramos um
fio condutor que nos leva não a uma definição, mas a compreender o
saber-fazer da História Cultural: suas preocupações se encontram no
âmbito das representações, das formas simbólicas construídas por
uma sociedade, as quais expressam como essa sociedade vê o mundo
e a realidade, numa dada época. Parte-se do pressuposto de que toda
realidade não é um dado, mas sim uma construção social conjetural,
fruto de estratégias e práticas que legitimam e justificam as escolhas e
condutas dos indivíduos (CHARTIER, 1988). O historiador cultural
tem seu foco no passado, nas formas de ver e estar no mundo que
modelaram sociedades e indivíduos numa determinada época, e no
estudo dos processos pelos quais uma dada realidade foi construída.
Muito mais do que preocupar-se com os processos e mecanismos
de produção de ideias e conhecimento de uma sociedade, Chartier
(1988) enfatiza as maneiras pelas quais o sujeito se apropria de uma
determinada forma de agir e pensar sobre o mundo. O autor mostra essa
preocupação por meio de sua teoria da leitura, na qual Chartier (1988)
se proprõe identificar como os leitores apreendem e se apropriam de um
texto, bem como a maneira como o texto afeta o leitor e o conduz a uma
nova maneira de compreender a si próprio e ao mundo que o cerca.
Essa nova forma de fazer história tem suas raízes na primeira
metade do século XIX, segundo Pesavento (2005, p. 19), onde já se
delineavam esforços como de Guizot, Chateaubriand e Simiand em
se pensar uma nova história, e identificar “um agente sem rosto – o
povo, as massas – como personagens da história e como protagonista
dos acontecimentos, além de ser detentor daquilo que seria o gérmen
da nação”, conforme as proposta de inovação de Jules Michelet. A
aproximação da história com a antropologia cultural, que lidava com a
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dimensão simbólica para analisar as formas de organização social, com
a sociologia, psicologia e linguística, influenciaram um novo modo de
fazer e pensar a história, direcionado para a relação estabelecida entre o
homem e o mundo.
Mas é a partir da Escola de Annales, na primeira metade do
século XX, liderada em sua origem por Lucien Febvre e Marc Bloch, que
se inicia uma abertura para os estudos sobre as mentalidades, a partir
de uma nova proposta de fazer história em contraposição à história
tradicional, vigente na época. Na busca de reagir contra a história
historicizante, Lucien Febvre e Marc Bloch romperam com toda uma
tradição de história intelectual, a qual se centrava em relatar as grandes
ideias voluntaristas como processos de motivação para a transformação
social, e esforçaram-se em reencontrar a originalidade de cada sistema
de pensamento, em sua complexidade e mudança.
A concepção de “utensilagem mental”, termo utilizado por
Lucien Febvre, que se refere a existência de estruturas ou categorias
de pensamento que organizam a maneira de pensar o mundo a partir
dos instrumentos materiais ou conceituais produzidos e legitimados
pela existência humana, deixa de lado uma história intelectual que
desvincula as ideias e os pensamentos das condições que permitiram
sua produção e reorienta o olhar do historiador para as representações
coletivas e, posteriormente, às categorias individuais de pensamento,
a partir do desenvolvimento da história das ideias, preocupando-se
também com os mecanismos e processos pelos quais uma visão de
mundo é construída e legitimada.
A História Cultural é fruto dessas concepções que delinearam
seu campo de investigação, abrindo espaços para novas e diferentes
questões acerca do passado, para a utilização de objetos e procedimentos
diferenciados, procurando identificar a cultura de uma época por meio
das representações e práticas que dão significado ao mundo.
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A realidade construída e vivida: as representações
Ao lermos as concepções e considerações de Peter Burke, Roger
Chatier e Sandra Pesavento, observamos que o conceito de História
Cultural se faz em torno dos significados construídos pelo homem,
pois é a partir da leitura dos mesmos que o historiador cultural pode
apreender o modo de viver e pensar de uma sociedade, de um grupo ou
mesmo de um indivíduo, como Carlo Ginzburg mostrou em O Queijo e
os Vermes, ao contar a história de Menocchio.
A palavra significado remete-nos ao signo que, linguisticamente,
é formado de significante e significado, os quais são ligados de maneira
arbitrária e conjetural a partir de uma convenção social partilhada por
todos os membros que compõem essa sociedade. Como menciona
Foucault (2000), o signo deve encontrar seu espaço no interior do
conhecimento e só existe a partir do momento em que seja conhecida
por todos do grupo a possibilidade de relação de substituição entre
dois elementos já conhecidos. Servir-se de signos é tentar descobrir
seu caráter arbitrário, o qual autoriza sua existência numa determinada
época e numa dada sociedade; é tentar analisar as leis que regem sua
composição e existência.
A História Cultural serve-se de signos, símbolos, marcas e
representações para compreender uma dada época e sociedade. A
representação nada mais é do que um signo, e seu conceito tem
acompanhado as concepções acerca da História Cultural e delineado
seu campo de investigação. Roger Chartier (1988) afirma que os
esquemas intelectuais criam as representações que conferem um sentido
ao mundo e que possibilitam decifrarmos como, historicamente, os
homens expressaram a si próprios e o mundo, pois as representações
são matrizes de condutas e constituintes de práticas de uma sociedade.
Essa nova maneira de trabalhar com a cultura e a história traz
aos historiadores culturais também maneiras diferentes de se olhar para
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as fontes e os documentos, que agoram passam a ser vistos também
como representações do passado, materiais passíveis de perguntas.
Dessa forma, o historiador da cultura, segundo Pesavento (2005), visa
construir as representações do passado por meio de documentos e fontes
que representam esse passado. A História Cultural é uma narrativa
de representações do passado, pois formula versões, compreensíves e
plausíveis sobre as experiências vividas pelos homens em outro tempo.
(PESAVENTO, 2005).
Peter Burke (1992), ao comentar em seu texto sobre o problema
das fontes históricas, vivenciado pelos novos historiadores, salienta a
necessidade do historiador ler as entrelinhas dos documentos, e ter a
consciência de que todo documento, imagem ou objeto são produções
humanas; portanto, representações da realidade. Desse modo, as fontes
não falam por si somente, elas exigem a análise cuidadosa do historiador,
com a finalidade de apreender tanto as falas quanto os silenciamentos
presentes nelas, conforme as palavras de Pesavento (2005, p.41):
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permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na
base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo”.
No entanto, as raízes do paradigma indiciário são bem mais antigas,
originam-se de um saber venatório, o saber relativo à caça, no qual o
caçador reconstrói as formas e movimentos de suas presas invisíveis por
intermédio das pegadas deixadas pela floresta, dos ramos quebrados, do
esterco, do tufo de pelos e dos odores. A partir desses indícios, sinais,
o caçador lê as pistas deixadas pelos animais e encontra sua presa. As
pegadas, os tufos de pelos, os odores tornam-se significantes passíveis
de um significado relevante ao caçador : são signos a serem decifrados,
pois trazem com eles um conhecimento sobre a caça.
Para Ginzburg (1989), as disciplinas que têm por objeto casos,
situações e documentos individuais, como a medicina, a filologia
e a história, são consideradas disciplinas indiciárias. Conforme já
mencionamos, apoiados nas concepções de Pesavento (2005), a
História Cultural constrói uma representação sobre o representado.
O conhecimento histórico por ela produzido é considerado um
conhecimento indireto, indiciário e conjetural; por esta razão o paradigma
indiciário proposto por Ginzburg (1989) pode ser considerado um
método que muito contribui para o perfil da investigação na qual o
historiador cultural mergulha.
Movido pela suspeita, pelas perguntas que levanta sobre o passado,
o historiador reúne dados, organiza-os, compara-os, classifica-os a partir
das pistas, dos indícios que esses dados lhe apresentam. São pormenores,
particularidades, silêncios, falas, contextos que formam um conjunto
de significados expostos à sensibilidade e intuição do historiador, pois
“se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios –
que permitem decifrá-la” (GINZBURG, 1989, p. 177). O passado não
se mostra por inteiro nas fontes de pesquisa, apenas reflete nuances de
como o mundo se apresentava e era representado por uma época. Cabe
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ao historiador decifrar essas nuances, na tentativa de compreender aquilo
que já foi vivido e experimentado pela existência humana.
A intuição delineia um rigor flexível ao paradigma indiciário,
muito desejável, segundo Ginzburg (1989), para formas de saber mais
ligadas à experiência cotidiana, como é o caso da história. Por meio da
sua intuição, o historiador constrói uma quebra-cabeça com os traços
e registros do passado que são capazes de produzir um sentido. E deve
ir mais além, deve construir esse quebra-cabeça a partir do contexto no
qual o seu objeto de pesquisa se insere (PESAVENTO, 2005).
Assim, cuidado e atenção dados às fontes, a utilização de um
método estratégico e flexível, mas que lhe dará mais chances de se
aproximar da realidade construída pelo homem em seu tempo, a
intuição e o rigor científico darão autoridade da fala ao historiador
cultural, para validar a representação que construiu do passado, a partir
de sua pesquisa, como algo plausível de ter acontecido, pois como diz
Pesavento (2005, p. 119):
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e normas induzidas por essas práticas. O método proposto por
Ginzburg (1989), o paradigma indiciário, poderá auxiliar o historiador
nessa tarefa, incentivando-o a utilizar-se da intuição para, a partir das
peculiaridades, dos dados particulares e negligenciáveis sobre a “vida
dos objetos escolares”, chegar a uma possível construção da realidade
escolar de uma determinada época e sociedade.
Referências
BURKE, P. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In:
BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
Editora daUnesp, 1992, p.7-37.
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Petrópolis: Editora Vozes, 1972, p.9-41.
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