A Historiografia Da Musica Popular Brasi
A Historiografia Da Musica Popular Brasi
A Historiografia Da Musica Popular Brasi
Marcos Napolitano
Dout or em Hist ória pela Universidade de São Paulo (USP). Prof essor do Depart amen-
t o de Hist ória da USP. Aut or, ent re out ros livros, de “ Segui ndo a canção” : engaj ament o
polít ico e indúst ria cult ural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2001.
napoli@usp. br
A historiografia da música popular brasileira (1970-1990):
síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica*
Marcos Napolitano
RESUMO ABSTRACT
Este artigo se propõe a sintetizar as ten- This article aims to sum up and analyze
dências e autores que marcaram a re- the research trends and authors in the field
flexão sobre a música popular no Bra- of popular music studies in Brazil, since
sil desde o final da década de 1970. the late 1970’s. I’d try to drawn a parallel
Procuramos demonstrar a gênese da between the appearance of song as subject
canção como tema de estudos acadê- of academic studies and the social and
micos, paralelamente ao reconheci- cultural recognition of popular music, in
mento sociocultural da música popu- the late 1960’s. Besides, I’d try to sum up
lar em fins dos anos 1960. Também res- the subject matters and historical pers-
saltamos os temas e perspectivas his- pectives, dominants from 1970 to 1990.
tóricas mais destacadas ao longo dos Finally, I take aim some tendencies and
vinte anos de produção analisados. Fi- heuristic challenges which mark the field
nalmente, apontamos algumas tendên- of popular music studies, in Brazil, cur-
cias e desafios heurísticos que envol- rently.
vem o estado atual dos estudos sobre
música popular no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: música popular bra- KEYWORDS : Brazilian popular music;
sileira; historiografia; cultura brasi- history; Brazilian studies: culture.
leira.
m ú si c a
Almirante, além de ser compositor ligado ao grupo de Vila Isabel,
desenvolveu uma carreira brilhante no rádio. Desde o final dos anos 40,
ele passou a se dedicar a uma espécie de historiografia de ofício em torno
de Noel Rosa. Uma palestra sobre o compositor de Vila Isabel acabou se
&
transformando num programa de rádio e, depois, num livro que procu-
h i st ó r i a
rava consagrar a genialidade de Noel, sem contar um panteão de músi-
cos, compositores e intérpretes que, para Almirante, caracterizavam uma
“época de ouro” da música brasileira.
A trajetória de Lúcio Rangel também revela o esforço em valorizar
um determinado passado musical (os anos 20 e 30) e construir um proje-
to musicológico para a música urbana brasileira, à base de um pensa-
mento folclorista, que acabou culminando na criação da Revista de Músi-
ca Popular, periódico que durou dois anos (1954-1956) e aglutinou um
certo criticismo musical que buscava se contrapor aos novos tempos do
rádio, marcado pela popularidade de fórmulas e gêneros tidos como fá-
ceis, como o bolero, as marchinhas de carnaval e os ritmos caribenhos
(rumbas e cha-cha-cha). A Revista de Música Popular foi a primeira tenta-
tiva de sistematizar os procedimentos de pesquisa e discussões sobre os
fundamentos da música brasileira, como fenômeno cultural das classes
populares e, no limite, característico da própria nação brasileira.
Curiosamente, as perspectivas nacionalista e folclorista (esta, um
pouco menos acentuada) serão retomadas à esquerda, pela juventude
engajada no movimento estudantil na década de 60. Naquele momento,
o elemento detonador do debate era o impacto da Bossa Nova (BN), como
gênero (ou estilo) que, ao mesmo tempo em que ameaçava uma identi-
dade musical tradicional, marcada pelo “samba quadrado”, caia no agra-
do dos setores mais jovens e intelectualizados. Como se pode perceber
nas páginas da revista Movimento, orgão oficial da UNE, a BN deveria ser
“politizada”, mas mantida como conquista estética para o mundo da 3
PAIANO, Enor. O ‘berimbau’
música popular.4 e o ‘som universal’: indústria
A Bossa Nova foi a linha divisória de um debate entre aqueles que a fonográfica e lutas culturais nos
anos 60. Dissertação (Mestrado
viam como um “entreguismo” musical e cultural (Lúcio Rangel, José em Ciências da Comunicação)
Ramos Tinhorão) e reafirmavam um “neofolclorismo” que preservasse a – ECA-USP, São Paulo, 1994.
música dos “negros e pobres”, e um outro tipo de nacionalismo, geral- 4
Ver BARROS, Nelson Lins
mente defendido pelos mais jovens, que propunham a fusão de elemen- e. Música popular e suas bos-
sas. Movimento, n. 6, Rio de Ja-
tos da tradição com elementos da modernidade (Nelson Lins e Barros, neiro, UNE, out. 1962.
Sérgio Ricardo e Carlos Lyra, entre outros). No âmbito do mercado mu- 5
Datam do final dessa década
sical, esta segunda vertente parece ter triunfado, constituindo as bases sui curtos mas importantes ensai-
generis de uma canção nacionalista e engajada no Brasil·. os, como o conhecido “MMPB:
uma análise ideológica”. In:
Os anos 1960 assinalaram a consolidação de um moderno pensa- GALVÃO, Walnice. MMPB:
mento musical, no interior da música popular, que terá reflexos no deba- Saco de gatos: ensaios críticos.
São Paulo: Duas Cidades, 1976.
te que mais nos interessa, aquele que se desencadeará a partir dos anos
6
Ver debate com vários músi-
705. Foi naquela década que Caetano Veloso formulou a tese sobre a “li-
cos e intelectuais, coordenado
nha evolutiva”, que será recuperada de 1968 em diante como um verda- por Airton Lima Barbosa, Que
deiro manifesto crítico e estético para se repensar a relação tradição/ caminho seguir na música po-
pular brasileira. Revista Civi-
modernidade na música urbana brasileira6. Também nos anos 60 o pensa- lização Brasileira, n. 7, maio
mento crítico desta “modernidade” musical se consolidará, revalorizando 1966.
m ú si c a
escrito em 196013, e fecha com uma entrevista de Gil e Caetano. Além de
Augusto de Campos, que assina vários artigos, Gilberto Mendes e Júlio
Medaglia, músicos ligados ao grupo Música Nova (1963), também con-
tribuíram para o movimento. A maioria dos artigos foi escrita entre 1966
&
e 1968 e publicada na imprensa diária (como O Estado de S. Paulo e Cor-
h i st ó r i a
reio da Manhã). A tônica geral do volume é a afirmação do “grupo baiano”,
núcleo do Tropicalismo, como o momento da “evolução” da MPB, em
choque com a TFM (“Tradicional Família Musical”), apelido pejorativo
dado aos adeptos da música nacionalista, que, para os autores do livro,
representavam o conservadorismo estético e a xenofobia cultural. Essa
obra foi, talvez, o principal responsável pela mitificação da idéia de “linha
evolutiva” como eixo do pensamento crítico e seletivo sobre a “boa” MPB.
No artigo “Boa palavra sobre música popular”, Campos cita a famosa fala
de Caetano proferida durante o debate promovido pela Revista Civiliza-
ção Brasileira em 1966. Ela é o fio condutor de Balanço da Bossa e outras
bossas.
No texto de Gilberto Mendes·, escrito logo após o término do III
Festival de Música Popular Brasileira, de 1967, o pensamento “evolutivo”
é reiterado. Este é o aspecto central da sua crítica ao “passo atrás” da MPB
“nacionalista”, que parecia colocado definitivamente em xeque: “Para
fazer frente ao mau gosto do iê-iê-iê brasileiro vitorioso, urgia liquidar
com o bom gosto de todas as conquistas renovadoras da BN e retornar ao
sambão gritado e quadrado. E com os festivais, os produtores abriram os
olhos: como haviam perdido dinheiro até então, o que rendia mesmo era
a velha batucada!”14
Gilberto Mendes ressaltou outras músicas apresentadas no festival
da TV Record (e não apenas as de Caetano e Gil), como “Ponteio” e “Roda
viva”. Para o compositor, elas representavam um salto qualitativo desde
“Arrastão”, “A banda” e “Disparada”: “Morreu a BN? Um passo atrás,
desde ‘Arrastão’ (...), agora dois gigantescos passos à frente, e a MPB reto-
ma dialeticamente a linha evolutiva da BN, o que Caetano já preconizara
no ano passado.”15
Augusto de Campos também reforçava a idéia de “linha evolutiva”,
centralizando o poder de ruptura nas obras de Caetano e Gil. Citando
13
BRITO, Brasil Rocha. Bossa
um artigo de 1966, de sua própria autoria16, cuja argumentação anuncia- Nova. In: CAMPOS, Augusto de
va as transformações na música popular em direção à incorporação da (org.), op. cit. (escrito em 1960).
informação moderna e de elementos “universais”, Campos afirmou: 14
MENDES, Gilberto. De como
a MPB perdeu a direção e conti-
nuou na vanguarda. In: CAM-
Era difícil encontrar, àquela altura, quem concordasse com essas idéias. Era o momento POS, Augusto de (org.), op. cit.,p.
pós-protesto de “A banda” e da “Disparada”. Saudades do interior. Saudades do sertão. 134 (escrito em 1968).
Crise de nostalgia dos bons tempos d’antanho. Pode ter servido para tonificar, momenta- 15
Idem, p. 137.
neamente, a abalada popularidade da nossa música popular. Mas eu já adivinhava que 16
CAMPOS, Augusto. Boa pa-
a solução não poderia ser a volta para trás. “A banda” e “Disparada” passariam e lavra sobre a música popular.
In: op. cit. (escrito em 1966).
deixariam tudo no seu lugar.” 17
17
CAMPOS, Augusto. O pas-
so à frente de Caetano Veloso
Em outro artigo, Augusto de Campos comparando “Alegria, ale- e Gilberto Gil In: op. cit., p.143
gria” a “Desafinado”, dizia entusiasticamente: (escrito em 1967).
m ú si c a
fase de diálogo quase orgânico, já que a base social de ambos passava a
ser a mesma (os estratos médios, letrados e intelectualizados). O autor
explicava assim o crescimento do interesse do mundo acadêmico pelas
“letras” de MPB, sendo o ponto de apoio para uma nova ensaística sobre o
&
tema.20
h i st ó r i a
Embora em muitos casos sejam um tanto arbitrárias, as aproxima-
ções propostas por Sant’Anna tinham a virtude de quebrar as últimas
resistências em relação ao reconhecimento da capacidade poética dos gran-
des compositores brasileiros, e, sem dúvida, abriram caminho, sobretu-
do na área de letras, para o surgimento de trabalhos de pesquisa acadê-
mica em torno da música popular brasileira. A obra conheceu duas edi-
ções de sucesso (1978 e 1980), perdendo força com o tempo, na propor-
ção em que os estudos propriamente literários sobre a música popular
foram sendo deslocados para outros aspectos.21
Um outro livro que causou algum impacto no debate dos anos 1970
foi Música popular: de olho na fresta. Lançado em 1977, o livro de Gilberto
Vasconcellos teve o mérito de sintetizar a importância política que a mú-
sica popular assumiu ao longo dos anos 70, sendo um foco de resistência
cultural significativo e reconhecido. Segundo o autor, “no período que
vai de 64 até o presente [1976], a MPB talvez seja, dentre as manifesta-
ções artísticas, o domínio no qual as contradições sociais da sociedade
brasileira tenham penetrado de maneira mais violenta”22. Para ele, teria
sido nos anos 60 que a “matéria política” se incorporou nas canções bra-
sileiras (no movimento da canção de protesto), mas, para Vasconcellos, o
sentido político da MPB “moderna” foi ampliado depois do Tropicalismo,
assimilando a paródia e a alegoria como figuras centrais da “resistência” à
opressão. Assim, o autor foi na contramão da esquerda mais ortodoxa
que via no Tropicalismo de Caetano e Gil o refluxo das preocupações
políticas que caracterizavam a MPB nacionalista dos festivais: “A tropicália
joga-nos na cara os efeitos da nossa dependência econômica e social e ao
mesmo tempo mostra (via metalinguagem) as limitações do protesto
populista.”23
Para Vasconcelos, o Tropicalismo enfrentou a “dolorosa derrota”
de 1964, abrindo novos espaços para a ação de uma consciência crítica
renovada. Silviano Santiago, no prefácio do livro de Vasconcelos, identi-
fica na alegoria tropicalista a explicitação crítica das “matrizes culturais”
do Brasil, procedimento que, ao invés de reafirmá-las à esquerda,
desconstruiu-as. Para tanto, explorou as contradições inerentes à cultura
política nacional-popular brasileira, que orientava as artes engajadas até 20
Cf. SANT’ANNA, Affonso
1968. O resgate do sentido político do Tropicalismo, nesse livro, encontra Romano de, op. cit., p. 180.
paralelo na tentativa de analisar a “linguagem da fresta”, típica do “dis- 21
Nesse sentido, salientamos o
curso malandro”. Para Vasconcellos, este procedimento, inscrito na can- espaço acadêmico pioneiro da
ção brasileira tradicional (anos 1920 e 1930), tinha sido recuperado e PUC-Rio, principalmente gra-
ças ao incentivo e orientação de
potencializado pelos compositores modernos, na resistência cultural à Silviano Santiago.
ditadura militar. Novamente, notamos a perspectiva que se tornou cor- 22
VASCONCELLOS, Gilber-
rente, a ênfase nos dois momentos históricos fundantes da moderna can- to, op. cit., p. 39.
ção brasileira: os anos 30 e os anos 60. 23
Idem, ibidem, p. 51.
m ú si c a
prensa, bem como na imprensa alternativa (Pasquim, Movimento, Opi-
nião e outros jornais), a música ganhava cada vez mais espaço, em artigos
mais ágeis (como em críticas de discos e entrevistas) ou mais aprofundados
(análises de conjunto de obras, movimentos ou temas sociológicos ou
&
históricos ligados à MPB). Essa produção, enorme e dispersa, chegou a
h i st ó r i a
ser catalogada, em fins dos anos 1970, constituindo-se hoje num impor-
tante corpo documental ainda pouco pesquisado.
Um outro aspecto a se destacar na década de 1970 é o início da fase
propriamente historiográfica da obra de maior volume sobre música po-
pular, produzida pelo jornalista/historiador José Ramos Tinhorão. Ele tor-
nou-se conhecido pelas polêmicas que travou na imprensa e pela publi-
cação de verdadeiros libelos contra a “desnacionalização” da música po-
pular brasileira, durante os anos 60, tendo como alvos os músicos e adep-
tos da Bossa Nova e da “moderna” MPB. Seus dois livros dos anos 60,
Música popular: um tema em debate” (1966)28 e O samba agora vai: a
farsa da música popular no exterior29 (1969), anunciavam o leitmotiv que
seria desenvolvido na fase mais “historiográfica” da sua obra: a trajetória
da música popular no Brasil era o maior exemplo de “expropriação cul-
tural” das classes populares (rurais e urbanas) pelas elites, representadas
pela classe média “branca e americanizada”. O processo teria começado
já nos anos 30, mas com a Bossa Nova e com o primeiro ciclo dos festivais
da canção teria se tornado irreversível, articulando-se a um poderoso es-
quema de produção comercial de canções voltadas para a classe média
consumidora.
Na década de 1970, cada vez mais visto como uma voz isolada e
anacrônica por uma boa parte da crítica e dos músicos que dominavam a
cena musical brasileira, Tinhorão dedicou-se à pesquisa documental e à
produção de trabalhos com traços historiográficos e acadêmicos mais
demarcados. Geralmente, as obras historiográficas de Tinhorão, apesar
28
TINHORÃO, José Ramos.
de muito ancoradas em fontes primárias, são de cunho panorâmico e Música popular: um tema em de-
pecam por uma linearidade que tem sido criticada por parte do pensa- bate. São Paulo: Editora 34,
mento acadêmico, cada vez mais especializado e aberto às 1999.
m ú si c a
valores éticos e sociais, pulsações telúricas e corporais, que acabam sendo
potencializados e incorporados pelos ouvintes inseridos nessa “rede de
recados”, que se apropriavam das canções (letras e músicas) para além
dos limites definidos pela indústria cultural.
&
Dessa maneira, a reflexão sobre a música popular chegava aos anos
h i st ó r i a
1980 tendo uma base ensaística e historiográfica ainda difusa e irregular,
mas desempenhara um papel decisivo para quebrar as últimas resistên-
cias da opinião pública e dos setores mais intelectualizados sobre a ur-
gência e a necessidade de se examinar as complexas questões que
formatavam a vida musical brasileira. A partir de então, o pensamento
sobre a música popular tornou-se mais especializado, e outros temas e
personagens emergirão como temas de artigos, livros e teses.37
Do ponto de vista da disponibilização de fontes, merecem desta-
que, na década de 70 , dois trabalhos de transcrição e compilação de
entrevistas. Um deles, o volume As vozes desassombradas do Museu, publi-
cado pelo Museu da Imagem e do Som (MIS/RJ) em 1970, que permitiu
o acesso a conjuntos de fontes orais, sobretudo ligadas às primeiras eras
da canção urbana brasileira. Numa outra ponta, está a coletânea de entre-
vistas, organizadas por temas, compiladas por Zuza Homem de Mello38,
que procurava reunir o novo panteão da MPB, pós-Bossa Nova. O livro é
complementado por uma cronologia bastante útil, delimitada entre 1956
e 1968.
m ú si c a
do incorporado pela política cultural do Estado Novo à medida que este
oferecia uma variável cultural para as práticas clientelistas e populistas
que passaram a ser institucionalizadas.
Wisnik e Moura, todavia, reafirmavam, ainda que moderadamen-
&
te, o caráter de marginalidade e resistência da música popular de matriz
h i st ó r i a
negra na Primeira República. Essa perspectiva será questionada por
Hermano Vianna, que retoma um olhar freyriano para pensar uma
mestiçagem musical mais harmônica e sem tantas “resistências”. É inte-
ressante comparar tais trabalhos com outro conhecido ensaio de Jairo
Severiano54, lançado na mesma época, ou ainda com o ensaio de Gilberto
Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr.55. Notamos a preocupação em discutir
o lugar social e político do samba como centro de uma nova dinâmica
cultural que traduz a emergência das massas urbanas e as estratégias das
elites e do Estado getulista em dialogar e cooptar, a um só tempo, o novo
gênero. Esse tema veio a se tornar muito recorrente nos trabalhos acadê-
micos de mestrado e doutorado. Mais para o final da década, o composi-
tor e pesquisador Nei Lopes56 retomou a questão, propondo uma geo- 54
SEVERIANO, Jairo. Getúlio
Vargas e a música popular. Rio de
história do samba e fazendo um inventário das tradições musicais do
Janeiro: Editora da FGV, 1983.
negro. O inovador, no caso, além da implosão do samba como gênero 55
VASCONCELLOS, Gilberto e
(sendo entendido mais como síntese de vários gêneros, ritmos e danças) SUZUKI JR., Matinas. A malan-
foi a maior atenção dada às formas musicais semi-rurais, como o caxambu dragem e a formação da música
popular brasileira. In: FAUSTO,
e o jongo. Boris (dir.). História geral da civi-
Um trabalho importante sobre o mundo do samba, de viés socioló- lização brasileira, v. 11 (Brasil re-
gico bastante acentuado, é o de Ana Maria Rodrigues57, publicado em publicano: economia e cultura).
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
1984. Ele foi fruto de uma dissertação de mestrado defendida na USP a Brasil, 1995.
partir de pesquisa realizada entre 1975 e 1977 em quatro escolas de sam- 56
LOPES, Nei. O negro do Rio
ba do Rio de Janeiro. Ao estudar as relações culturais e raciais que se de Janeiro e sua tradição musical:
organizam em torno do carnaval, a autora salienta a perda de referência partido-alto, calango, chula e
outras cantorias. Rio de Janei-
lúdica e identitária à medida que o carnaval popular foi sendo inserindo ro: Pallas, 1992 (este texto foi
no universo da cultura de massa branca e de classe média. O aspecto inscrito, em 1988, no Concurso
Silvio Romero, promovido pelo
propriamente musical fica em segundo plano, mas o livro nos fornece Instituto Nacional do Folclore e
elementos indispensáveis para entender as relações sociais, empresariais pela Funarte).
e culturais estabelecidas ao redor do carnaval. O ponto fraco é o 57
RODRIGUES, Ana Maria.
esquematismo e o determinismo da explicação, sem falar das categorias Samba negro, espoliação branca.
São Paulo: Hucitec, 1984.
de “expropriação” e “resistência” subjacentes ao trabalho, que são de in-
58
teresse muito datado. BORGES, Beatriz. Samba-can-
ção: fratura e paixão. Rio de Ja-
Também no início dos anos 1980 esboçou-se um certo boom de neiro: Codecri, 1982.
pesquisas na área de Letras sobre música popular brasileira. Além da MPB 59
MATOS, Cláudia. Acertei no
stricto sensu, o samba passou a ser objeto de análise poético-musical. Des- milhar: samba e malandragem
no tempo de Getúlio. Rio de Ja-
tacamos dois trabalhos pioneiros, de Beatriz Borges58 e Claudia Matos59,
neiro: Paz e Terra, 1982.
feitos junto à PUC-Rio. São desse momento ainda as obras igualmente 60
MENESES, Adélia Bezerra de.
pioneiras de Adélia Meneses60, uma análise literária sobre Chico Buarque, Desenho mágico: poesia e políti-
e de Antonio Pedro, sobre o samba durante o Estado Novo.61 ca em Chico Buarque. São Pau-
lo: Hucitec, 1982.
Em todos esses trabalhos a ênfase no exame das “letras”, isoladas
61
de outros parâmetros estéticos e culturais da canção, constituiu um pri- PEDRO, Antonio. O samba da
legitimidade. Dissertação (Mes-
meiro olhar metodológico mais sistemático sobre o sentido histórico e tra-do em História) – FFLCH-
cultural das canções. Com o tempo, tal abordagem passou a ser criticada USP, São Paulo, 1980.
m ú si c a
gia, Antropologia), Letras (apesar da abordagem estritamente literária da
canção ter sido criticada nos últimos anos) e Comunicação (área que pode
dar um valioso impulso ao estudo dos meios de divulgação e nos proces-
sos comunicacionais operados pela música popular). O isolamento dos
&
programas de pós-graduação e a recorrência de temas no debate acadê-
h i st ó r i a
mico, quase sempre em torno de fontes e autores já conhecidos, vêm
dificultando essa articulação. Por outro lado, trabalhos relevantes, de áre-
as vitais para o estudo da música popular (como Música e Linguística)
têm apresentado abordagens teóricas autocentradas, que pouco dialo-
gam com outras disciplinas.
Nesse contexto, acreditamos que a grande contribuição dos histori-
adores seja a de fazer avançar os estudos de maneira interdisciplinar, além
de renovar o índice de temas ligados à história da música popular, incor-
porando novos eventos, novas fontes e novos problemas. Existe uma gama
enorme de fontes, períodos e temas pouco explorados, tais como estudos
específicos da crítica musical e da indústria fonográfica; relações entre
canção e TV; o cenário musical dos anos 1950 e 1970; os tipos de recepção
social da música popular brasileira. O desafio daqui por diante, sobretu-
do para a área da História, será realizar um cruzamento crítico de fontes,
abordagens, métodos e resultados de análise sobre a canção brasileira.
Seria interessante também avaliar o trabalho dos “brasilianistas” dos es-
tudos musicais66, que ainda são poucos, mas surgem em número cada
vez maior, concentrando sua atenção especialmente na música brasileira
produzida a partir dos anos 60.
Quanto às fontes primárias, uma breve observação final: os estudos
de música popular no Brasil devem realizar um trabalho urgente de am-
pliação do corpus documental que vem sustentando as pesquisas. Algu-
mas recorrências documentais revelam uma certa dificuldade em ampli- Capa do livro de Roberto Moura.
Tia Ciata e a pequena África no Rio de
ar as bases heurísticas dos estudos relativos à música brasileira. A maioria
Janeiro. 1983.
dos trabalhos ainda é dependente, em grande parte, de memórias e de-
poimentos dos protagonistas (músicos, intérpretes, compositores, pro-
dutores, jornalistas e críticos). No caso da produção acadêmica, acima de
tudo da área de Letras e Linguística, os autores se restringem a um corpus
muito delimitado de canções, geralmente aquelas consagradas pelo can-
cioneiro popular. Faltam ainda estudos monográficos que realizem um
levantamento exaustivo da obra fonográfica dos compositores e estilos.
Geralmente, o levantamento da obra de compositores e intérpretes tem
sido feito por colecionadores e jornalistas, sendo que boa parte está dis-
ponível na internet.
66
Portanto, os futuros trabalhos de história da música brasileira de- Vale mencionar a contribui-
ção de Gerard Behague (ex-pro-
vem enfrentar alguns desafios básicos no âmbito do levantamento docu- fessor da Universidade do
mental: a) incorporar, extensivamente, novas fontes escritas (críticas Texas), Charles Perrone (Uni-
versidade da Flórida), Cristo-
jornalísticas, acervos institucionais de gravadoras, manifestos estéticos, pher Dunn (Universidade Tu-
métodos de ensino de instrumentos, songbooks, revistas e almanaques mu- lane – New Orleans), Brian
sicais); b) incorporar mais sistematicamente os conjuntos de dados seriais McCann (Universidade de
Georgetown) e David Treece
disponíveis (vendagem de discos, faturamento das gravadoras, audiência (Universidade de Londres –
de rádios e TVs etc.); e c) estender, para além das “obras-primas”, o levan- King’s College).
℘
Artigo recebido em maio de 2006. Aprovado em agosto de 2006.