Medicalização Da Subjetividade e Fetichismo Psicofármaco
Medicalização Da Subjetividade e Fetichismo Psicofármaco
Medicalização Da Subjetividade e Fetichismo Psicofármaco
Medicalização da subjetividade
e fetichismo psicofármaco:
uma análise dos fundamentos
Medicalization of subjectivity and psychotropic drugs
fetishism: an analysis of the fundamentals
Correspondência
Jarbas Oliveira
Rua Manoel Severino Barbosa, Bom Sucesso. Arapiraca, AL, Brasil.
CEP 57072-970
DOI 10.1590/S0104-12902024220833pt Saúde Soc. São Paulo, v.33, n.1, e220833pt, 2024 1
Abstract Introdução
This study deals with the foundations of the O uso de medicamentos psicotrópicos, 1 ou
psychiatric drug epidemic, aiming to analyze the psicofármacos, vem aumentando de forma
medicalization of subjectivity and the fetishism vertiginosa desde sua introdução ao mercado,
of psychotropic drugs in their fundamental em meados da década de 1950. Nos últimos anos,
bases. It is a theorical reflection in the light of observa-se um crescimento ainda mais expressivo
discourse analysis inaugurated by Michel Pêcheux, no consumo desses produtos. No Brasil, de acordo
from which it presents a gesture of interpretation, com a Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização
allowing the identification of the psychiatric drug e Promoção do Uso Racional de Medicamentos
epidemic as an expression of the medicalization no Brasil (PNAUM) de 2016, que analisou os
of life. Based on the critique of the foundations 20 subgrupos farmacológicos mais utilizados
of the capitalist form of consumption and pelos usuários da atenção primária à saúde,
prescription of psychotropic drugs, this analysis os antidepressivos, antiepiléticos e ansiolíticos
demonstrated how the social metabolism model figuraram entre os medicamentos mais consumidos,
of capital imposes a fetishized therapy on the sendo superados apenas pelos anti-inflamatórios não
subjects. We hope to contribute to the practices esteroidais (Aines), pelos anti-hipertensivos e pelos
of those who fight for the legacy of the anti-asylum antidiabéticos (Álvares et al., 2017).
movement and thus add to the efforts of the Em decorrência das implicações sociais da
subjects involved in the production of effectively pandemia da covid-19, essa tendência de uso
humanized and critical practices. medicamentoso se intensificou ainda mais,
Keywords: Subjectivity; Psychotropic Drugs de forma que, segundo o levantamento feito pela
Fetishism; Mental Health; Capitalism. consultoria IQVIA,2 a pedido do Conselho Federal
de Farmácia (CFF), verificou-se que no primeiro
semestre de 2020, em comparação com o mesmo
período de 2019, houve um crescimento de quase
14% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores
de humor. O número de unidades vendidas saltou de
56,3 milhões, em 2019, para 64,1 milhões, em 2020
(Venda…, 2020).
O perfil mundial de consumo em escala crescente
de psicofármacos tem preocupado uma série de
pesquisadores e entidades nos últimos anos, a ponto
de tal padrão configurar, segundo Whitaker (2017),
uma epidemia das drogas psiquiátricas. Este artigo
parte da tese que epidêmica, na realidade, é a forma
de a sociedade capitalista lidar com o uso de
medicamentos psicotrópicos.
Partilha-se da noção proposta por Szasz (1980),
ao considerar que a doença/transtorno mental
é uma forma de mito, de ideologia. Tal noção
não nega a existência de diferentes formas de
1 A gama de fármacos que, de diferentes maneiras, afetam o humor e o comportamento (Rang; Dale, 2010).
2 A referida sigla decorre da formulação derivada da associação das empresas Quintiles e IMS Health e do termo “via”, do latim, que
significa “por meio de”. A fusão ocorreu em 2006 e trata-se de uma empresa voltada para a informação e serviços de investigação clínicas
e soluções tecnológicas.
3 Numa perspectiva discursiva, a posição do porta-voz consiste naquela que se situa “ao mesmo tempo como ator visível e testemunha
ocular do acontecimento […]” (Pêcheux, 1990, p. 17). Configura-se, antes de tudo, como sujeito que fala “em nome de…”, por um efeito
visual “[…] que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe
ao olhar do poder que ele afronta, falando em nome daqueles que ele representa e sob seu olhar” (Pêcheux, 1990, p. 17).
4 Neste artigo, o termo “médico” remete a uma posição-sujeito no discurso, historicamente produzida.
5 O caso norte-americano foi escolhido para exposição por configurar a gênese da articulação entre psiquiatria e indústria farmacêutica.
O desenvolvimento histórico da psiquiatria brasileira, por exemplo, apresenta uma estrutura um pouco distinta da que ocorreu nos
Estados Unidos da América. Para isso, vale lembrar, de acordo com Amarante (2007), a considerável contribuição das ideias de Kraepelin,
e depois, Freud, na organização psiquiátrica. Contudo, apesar de diferenças importantes na sua história, a forma atual da medicalização
capitaneada pela psiquiatria brasileira hegemônica é centrada no tratamento medicamentoso, não diferindo fundamentalmente da
maioria dos países, apesar da reforma psiquiátrica recentemente iniciada nesse país.
9 Esse tem sido propriamente o movimento da psiquiatria hegemônica: atribuir determinado sintoma a uma (des)ordem moral e tentar
apreendê-lo e explicá-lo biologicamente.
10 Atualmente, a teoria das aminas biogênicas perdeu força como modelo acadêmico explicativo principal, o que não significa que não seja
o modelo dominante na prática clínica ou que se tenha abandonado a explicação biológica como causa dos ditos transtornos mentais.
11 Conhecida também sob o título sugestivo de neurociência.
Recebido: 21/7/2023
Aprovado: 19/12/2023