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Resenha de “Vivir la fe”, de Pablo

Semán

SEMÁN, Pablo. Vivir la fe: Entre el catolicismo y el


pentecostalismo, la religiosidad de los sectores
populares en la Argentina. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2021.

Carlijaniele dos Santos Silva


Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-2589-1893
carlijaniele@hotmail.com

Vivir la fe, fruto da pesquisa de doutorado de Pablo Semán entre os


moradores do Bairro Aurora, na Grande Buenos Aires, se trata de uma
análise que busca entender como seus interlocutores compreendem e
experimentam a sua fé de forma prática, isto é, como ela é vivida. A
premissa do autor é o sagrado como uma força explicativa da realidade.

Revista de Ciências Sociais — Fortaleza, v. 54, n. 2, jul./out. 2023, p. 359-366.


DOI: 10.36517/rcs.54.2.r02 ISSN: 2318-4620
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Pablo Semán é pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones


Científicas y Técnicas (Conicet) da Argentina e professor do Instituto de
Altos Estudios Sociales de la Universidad Nacional de San Martín
(UNSAM), é sociólogo e antropólogo especializado nas discussões que
envolve os temas de religiões e culturas populares. Assim, destacamos a
consonância de sua trajetória com o objetivo central da obra aqui
discutida, que trata de analisar a religiosidade de setores populares no
Bairro Aurora, na cidade de Buenos Aires, durante a segunda metade da
década de 1990. O recorte da pesquisa se justifica quando Semán destaca
que as classes populares passaram por fortes mudanças naqueles anos,
desse modo, era de seu interesse investigar o papel da religião naquele
dinâmico movimento.
Para compreender a construção do processo estudado e sua relação
com os fenômenos de ordem religiosa o autor elabora uma série de
comparações entre os católicos e pentecostais, no entanto, ainda
considera outros marcadores que se fazem importantes na construção da
análise, a exemplo do conflito de gerações, das posições sociais e
econômicas. Mais do que diferenças entres os grupos, Semán se depara
com semelhanças praticadas a partir da “fé vivida” que não se
corresponderiam apenas com textos e dogmas escritos pelas instituições
religiosas.
Semán define como “fé vivida” a interpretação do fiel, inclusive,
como recurso que implica ideias, emoções e sensações que se constroem
e se atualizam em experiências práticas do cotidiano. Para isso, se
preocupa em analisar e expor a “experiência dos sujeitos”, que leva em
conta a trajetória pessoal e a relação com as instituições religiosas.
Assim, busca entender como as práticas promovidas pela religião
ganham sentido na vida social, como essas práticas dialogam com o
habitual, com as alegrias e sofrimentos dos sujeitos.
Na introdução, intitulada La fragmentación del cosmos, o autor situa
as escolhas conceituais e suas abordagens para o desenvolvimento da
pesquisa. Inicialmente, define pressupostos que orientam sua tese. Parte
do pressuposto que é necessário acompanhar a experiência dos
pentecostais e católicos a fim de perceber a complexidade e

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heterogeneidade dessas experiências. Para orientar a composição desse


universo de crença ele situa o fato dessas experiências se situarem numa
“perspectiva cosmológica”, discutida mais a frente, por sua importância
conceitual no trabalho. Ainda defende que sua postura é crítica em
relação aos sentidos que têm sido atribuídos a expressão “religiosidade
dos setores populares”, vista apenas como pesos passados, idealizados e
unívocos. Pois, para o autor o popular não é algo eterno e imutável, mas
sim, resultado de um processo que está em constante conflito e
construção, por este motivo, lhe interessa a religião tal qual é vivida e
suas formas de atualização.
Ainda nesta parte inicial destaca a importância de dialogar com a
Antropologia da Religião escrita no Brasil e a Antropologia Brasileira
que, segundo Semán, insistiu produtivamente na necessidade de dar
conta dos sujeitos populares ao considerar suas condições, mas sem
esquecer suas potências.
Em Pluralismo y transversalidad religiosa en Barrio Aurora,
primeiro capítulo da obra, o autor descreve as características, a
composição social, a história e as peculiaridades das instituições
religiosas no Bairro Aurora, onde realizou a investigação, interessado
em demonstrar as condições institucionais e as estruturas do campo
religioso nas quais atuam seus interlocutores. No entanto, importa
compreender como a população, entre 15 e 20 mil habitantes, se instalou
no bairro e nota que a maior parte desses moradores são migrantes dos
interiores de países limítrofes, que chegaram em etapas sucessivas, de
forma que existem famílias com três gerações e outros que se instalaram
em tempos recentes. Como se trata de moradores que pertencem à classe
trabalhadora, Semán destaca os “vai e vens” socioeconômicos que
afetaram a constituição dessa comunidade ao destacar a decadência do
regime de acumulação interna de mercado e a hiperinflação de 1989,
geradoras de altos índices de desemprego, empobrecimento e
diminuindo as expectativas dos moradores, principalmente dos mais
jovens. O capítulo ainda faz uma aproximação com a vida religiosa no
Bairro Aurora ao descrever a distribuição de igrejas e templos, assim
como dos crentes que se organizam, em grande maioria, entre

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pentecostais e católicos. Esse capítulo fornece informações de maneira


sistemática, de forma que os capítulos seguintes se voltam quase que
exclusivamente para os sujeitos.
No capítulo dois, Pentecostales y católicos en un mundo de
curanderos, Semán nota que a vida religiosa no Bairro Aurora se
organiza de acordo com a expectativa de uma sacralidade composta por
valores múltiplos, provém de Deus, mas também dos santos, de objetos
encantados, de pessoas com dons e de forças naturais. Esse argumento
ajuda a sustentar a ideia defendida pelo autor de que no seu espaço de
estudos a experiência de católicos e pentecostais supõe uma cosmologia
encantada sem se deixar domesticar pelo cristianismo moderno. Ainda
lança críticas sobre o tratamento da visão cosmológica como experiência
que passa a ser diluída em conceitos como “religiosidade popular”, que
implica em tratá-la como “não institucionalizada” e “informal”. Para
observar como a visão cosmológica atua entre os fiéis das capelas e
templos, Semán defende, nessa parte do texto, a necessidade de atender
em primeiro plano às descrições do sagrado a partir dos “crentes”. A
partir da descrição dessas experiências surgem algumas “incoerências”,
se tomarmos a teoria lógica como ponto de vista. Pois, a efeito de
exemplo, as representações do sagrado passam a ser dispersas e plurais,
quando deveriam ser condensadas na figura de Deus, Jesus e do Espírito
Santo. “A multiplicação dos dons” entre pessoas comuns garante outra
relação com o sagrado, mesmo para crentes que estão sob a doutrina das
Igrejas monoteístas. Semán nota que os dons não estão exclusivamente
nas mãos de Deus, mas também, em alguns pastores que constituem
figuras análogas as de homens especiais, como os santos entre os
católicos.
Com a finalidade de trazer respostas mais satisfatórias a algumas das
incoerências apontadas no segundo capítulo, o capítulo três,
Psicologización y religión, se preocupa em contextualizar como se
desenvolvem formas de mal-estar a partir dos setores populares em
diálogo com a experiência religiosa. Dessa forma, o autor se preocupa
em mostrar que existem formas de psicologização que interagem com a
individualização e se associa com a experiência religiosa. Ademais, o

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autor se preocupa em entender como o indivíduo se relaciona com o


divino, pois até a aparente incompatibilidade entre psicoterapia e
religião pode se conciliar a partir da experiência e vivência dos fiéis:
para alguns não existe contradição entre psicologia e religião. Nesse
capítulo também surgem questões que entrelaçam os dois campos, como
as questões morais, relações sexuais, separação, entre outras. O autor
nota que essas relações a partir dos sujeitos psicologizados e religiosos
do Bairro Aurora propiciam leituras do sagrado, mas também novos
modos de se viver.
No quarto capítulo, Peronismo y religión, Semán destaca a
importância de reconhecer que existem vias de articulação entre a
religião e o comportamento político, no entanto, não existe
correspondência absoluta e permanente entre pertença religiosa e
orientação política. O autor inicia esse capítulo ao narrar uma cena
protagonizada por uma de suas interlocutoras e que traça um paralelo de
aproximação entre Jesus Cristo e o General Perón. Destaca o fato de
acontecer em um contexto inesperado, uma igreja pentecostal, onde
podia perceber os afeitos da sedimentação do peronismo na sociedade
argentina. Para os seus “anfitriões”, participação política e peronismo
soam como termos coextensivos, no entanto, imbricados em tramas
diferentes com a experiência religiosa. Semán aponta que, de um lado,
o peronismo se tornou uma linguagem e um meio para o
pentecostalismo. Já para os católicos, do outro lado, constituiu um
horizonte de ação para alguns atores, que fizeram da religião a mediação
de um projeto e uma linguagem política. Nesse capítulo, ainda são
consideradas as trajetórias de atores políticos-religiosos, ao mostrar o
tipo de relações que se estabelece entre política e religião.
Jesús es reloco, el mundo es careta, frase que intitula o quinto
capítulo, condensa e se vincula à trajetória especial de um jovem, um
dos interlocutores da pesquisa. Na verdade, trata-se de um jogo de
inversões e superações cristãs ao selecionar de forma crítica os
elementos da cultura juvenil e reinscrevê-la em uma lógica evangélica.
Pois, a cultura juvenil entendida como rebeldia pode ser relida e
subvertida, na forma que o autor trata como a subversão da subversão,

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com a inversão da dissidência. No entanto, Semán nota que o jovem que


pronunciou a frase em destaque se insere em uma conotação
contraditória, pois se inicialmente identificava como “atitude rebelde” a
falta de sujeição a Deus, depois, afirma que Cristo é “a verdadeira
libertação”, a forma mais bem sucedida de rebeldia. Ao identificar a
cultura juvenil e seus símbolos como algo comum e difundido em larga
a escala entendia o ato de rebeldia naqueles que não seguiam essa
“norma”. Para essa discussão, o conceito de geração ganha importância,
recebe caráter especial ao ser tratado como ferramenta de comparações
nas concepções operacionalizadas pelos diferentes grupos (geracionais
e de crenças) trabalhados pelo autor, principalmente nesse capítulo.
Na parte conclusiva da obra, Cuando miramos con telescopio (luego
de haber usado el microscopio), o conceito de geração mais uma vez
ganha destaque para a construção de um panorama mais amplo a partir
de sua discussão. Assim, a partir do exemplo familiar ao longo de
gerações, retoma questões que foram trabalhadas ao longo do livro para
arrematar algumas questões conceituais. É importante destacar que a
investigação da religiosidade popular apresentada pelo autor se trata
daquela que é praticada e vivida pelos crentes, em relação e contextos
de prática que a definem, incluídas as grandes tradições. Pois, por
religião popular o autor entende a diversidade de oferta religiosa e a
diversidade de suas apropriações.
A discussão desenvolvida pelo autor tem significativa relevância
para promover a reflexão sobre a religião no contexto da prática, a
religião vivida. Por meio de uma pesquisa etnográfica, Semán analisa a
“fé vivida” a partir do percurso experienciado por pessoas religiosas
considerando a complexidade e heterogeneidade de apreensões em torno
das representações do sagrado. Recomendo a leitura desta obra a
antropólogos, sociólogos e pesquisadores que atuam no campo da
religião.

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Referências
SEMÁN, Pablo. Vivir la fe: Entre el catolicismo y el pentecostalismo, la
religiosidad de los sectores populares en la Argentina. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2021.

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Resumo:
Resenha do livro SEMÁN, Pablo. Vivir la fe: Entre el catolicismo
y el pentecostalismo, la religiosidad de los sectores populares en
la Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2021.

Palavras-chave:
religião, setores populares, representação do sagrado.

Abstract:
Bookreview of SEMÁN, Pablo. Vivir la fe: Entre el catolicismo y
el pentecostalismo, la religiosidad de los sectores populares en la
Argentina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2021.

Keywords:
religion, popular classes, representation of the sacred.

Recebido para publicação em 09/05/2022


Aceito em 24/05/2023

ACESSO ABERTO
Copyright: Esta obra está licenciada com uma Licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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