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RESENHA

HUSSERL, Edmund. A ideia da Fenomenologia. Trad. Artur Morão. Lisboa:


Edições 70, 2008. 133 p.

Mauro Sérgio de Carvalho TOMAZ

A ideia da fenomenologia reúne cinco lições pronunciadas em Göttingen, de


26 de abril a 2 de maio de 1907. No livro, Edmund Husserl mostra como
conhecimento e objetividade cognitiva se correlacionam, tendo como pano de fundo
a relação entre vivência psicológica e realidade. Para examinar a questão, partirá da
relação entre conhecimento e objeto, ou melhor, de como a consciência atribui
sentido ao objeto. Para tratar a questão, Husserl utilizará o método fenomenológico
e as reduções que o constituem. O método, proposto como crítica do conhecimento,
fornece, segundo o pensador, as bases metodológicas para a Filosofia e ciências
naturais. Nas lições que compõem a obra vemos Husserl examinar o que é a
verdade e como ela é examinada no método fenomenológico. O filósofo apresenta
esse método como procedimento crítico para estudo das essências, contornando as
objeções de Kant sobre o acesso à essências. Nessas lições já encontramos um
filósofo amadurecido e capaz de diálogo consistente com Kant. Ele diferencia a
fenomenologia empírica da transcendental, tema que já tratara no clássico
Investigações Lógicas (1900-1901), o livro mais importante da fase inicial de sua
meditação conhecido como período Halle.
Na primeira das lições, Husserl pretende demonstrar a especificidade da
Filosofia frente às Ciências. A singularidade da Filosofia se manifesta de três
maneiras: a) na dimensão de pertencimento da Filosofia como ciência, b) no método
cognoscitivo da qual se vale e c) dos pressupostos fundamentais que usa em sua
investigação. O que são mesmo, para o autor, as ciências naturais que ele
contrapõe à Filosofia? São aquelas que, através do que ele denomina “atitude

Mestrando em Educação (Processos Socioeducativos e Práticas Escolares) pela Universidade
Federal de São João del-Rei (UFSJ).

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espiritual natural” (HUSSERL, 2008, p. 37, grifo do autor), voltam-se às coisas de


maneira intuitiva. Essa óbvia percepção das coisas permite ao homem julgá-las e ao
fazê-lo, intuir aquilo que não é imediatamente percebido: o geral ou universal, que se
transformará em lei aplicável às coisas. A ciência natural, por ter nas coisas
(fenômenos físicos) seu objeto de estudo, trata do conhecimento como outra coisa
qualquer. Especificamente, como conjunto de processos cerebrais. Em outras
palavras, como os demais objetos particulares da ciência natural, do conhecimento
emanaria aquilo que dele se procura saber. É justamente aí que surgem os
problemas. Husserl se pergunta: como o conhecimento “pode ir além de si e atingir
fidedignamente os objetos?” (p. 40). Esse tipo de reflexão que transcende, por assim
dizer, a atitude espiritual natural é filosófica e por suas características corrói as
estruturas da ciência, pois lança sobre ela dúvida fundamental. A reflexão filosófica
mostra que a ciência natural não tem a palavra definitiva sobre seu objeto. Embora
seja problema que surge na prática científica a ciência não consegue resolvê-lo.
Cabe então à Filosofia e, mais propriamente, à metafísica, procurar a solução. É a
metafísica que tem como tarefa propor um método de investigação que revele o
caráter rigoroso da Filosofia. Husserl o fará transformando a fenomenologia do
conhecimento em objetividade cognoscitiva. Isso significa que a Filosofia procura um
fundamento da fenomenologia em geral para, como crítica do saber natural, fornecer
as bases metodológicas para as ciências naturais.
Apresenta-se então a seguinte questão: “como se pode estabelecer a crítica
do conhecimento?” (p. 51, grifo do autor). Essa questão, que abre a segunda lição,
surge quando a reflexão se volta para a correlação conhecimento-objetividade.
Husserl faz uma leitura da cogitatio (consciência) cartesiana, dizendo que a crítica
do conhecimento deve partir de algo que a si mesmo se dá: a percepção, que,
enquanto permanece, é absoluta, indubitável e definitiva. Em outras palavras, é
necessário existir uma imanência que parta da própria crítica do conhecimento e
que, através da “claridade essencial” (p. 55) alcance a essência do conhecimento,
clareando qualquer obscuridade. Isso só é concebível com um conhecimento geral,
que, baseado na imanência, deixa de ser enigmático e se contrapõe à perplexidade
cética.
Ora, o problema do conhecimento é sua pretensão transcendente, isto é, o
propósito de atingir objetos que estão fora da consciência onde se dá o

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A IDEIA DA FENOMENOLOGIA

conhecimento. Husserl, mantendo-se na perspectiva de Kant, dirá que é “patente


tolice” (Idem, p. 62) fundamentar uma teoria do conhecimento em qualquer tipo de
pressuposição transcendente, como fazem as ciências naturais. Como alternativa,
propõe o “princípio gnoseológico” (p. 63, grifo do autor), uma redução que independa
da transcendência. É ela que, ao ser considerada, se transforma no erro
fundamental da teoria do conhecimento do qual outros erros derivam. Logo, a crítica
do conhecimento não pode partir de nenhum elemento transcendente, mas surgir da
consciência: eis a conclusão que abre a terceira lição.
São também formas de transcendência, explica Husserl, o Eu e sua vivência,
o que faz necessário, para retirar toda transcendência destes conceitos-chave e
transformá-los em dados absolutos, proceder ao que denomina “redução
fenomenológica” (grifo do autor). Essa redução consiste em exibir a essência
imanente da vivência psíquica, transformando-a em fenômeno puro ou dado
absoluto. A ciência desses fenômenos puros é, pois, a fenomenologia. Ciência
específica, “com tarefas inteiramente diversas e com um método completamente
distinto” (p. 85) das outras. Essa ciência tem por tarefa examinar e distinguir
sentidos no puro ver, quer dizer, de maneira intuitiva, sem deduzi-los ou calculá-los,
mas “vendo-os” patentes na redução fenomenológica. Esse é um método
estritamente filosófico e, portanto, um método de crítica da razão em geral.
Essa conclusão faz aparecer um novo problema: como é possível obter juízos
cientificamente válidos? Ora, com a redução, Husserl retirou da crítica do
conhecimento toda pressuposição transcendente, mas falar em “juízos
cientificamente válidos” significa falar de juízos transcendentalmente válidos, o que
leva a um círculo vicioso. Para rompê-lo, é preciso, como fez Descartes, partir da
percepção clara e distinta – o que em linguagem fenomenológica significa
começar pelo fenômeno puro, pelo dado absoluto - e a aceitação de tudo o que por
ele é dado. Faz sentido, diz Husserl, ver algo e se perguntar se existe um
transcendente latente e de como se pode compreendê-lo. Mas não faz sentido ter
percepção do fenômeno e questioná-lo sem procurar entender o que não está
imediatamente dado. Para o filósofo, é obviamente compreensível o que é dado,
mas o intentado só pode ser alcançado pela reflexão. O que Husserl quer dizer é
que para uma verdadeira crítica do conhecimento é necessário a existência de
outros dados absolutos além dos obtidos pelas reduções, portanto, é o

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conhecimento do “absoluto dar-se em si” ( p. 76, grifo do autor) que permite o


conhecimento de universais. E é isso que pretende a fenomenologia. Ela, diz
Husserl, quer ser ciência e método, analisar e investigar essências que surgem para
nós de maneira puramente intuitiva. Ela quer elucidar possibilidades de
conhecimento a partir do seu fundamento essencial, por isso investiga essências a
priori.
Para resolver o problema da essência do conhecimento, Husserl diz, na
quarta lição, que é preciso investigar o universal que se dá na “autopresentação
absoluta” (p. 83) e que, por meio da redução fenomenológica, a essência do
conhecimento se apresenta ao puro ver e pode ser encontrada como universalidade.
Para se chegar a certeza é preciso colocar todos os objetos exteriores entre
parêntesis e tratar do mundo reduzido (presente) na consciência. Entretanto, o
sentido do conhecimento não pode ser intuído facilmente como acontece com uma
cor, por exemplo. Ele pode ter vários sentidos diferentes e reconhecidos, mesmo
após a redução fenomenológica. É justamente nesse reconhecer das essências
que se pode estabelecer os princípios que regularão o conhecimento científico
empírico. Buscar princípios é buscar essências e buscar essências é proceder a
redução fenomenológica analisando fenômenos singulares. Como se vê, Husserl
não tratará do ser mesmo, nem de sua representação como na metafísica
tradicional, mas do ser no fenômeno.
Essa busca das essências realizada na redução fenomenológica se apresenta
ao “puro olhar” ou evidência: a consciência que efetivamente vê, o adequado e
inquestionável dar-se em si mesmo. Assim, chega-se à evidência da consciência
(cogitatio), da transcendência e do universal, que tem o mesmo sentido de
objetividade. Portanto, a redução fenomenológica não se restringe à esfera do
imanente, mas sim à “esfera do dar-se em si puro” (Idem, p. 88, grifo do autor), do
autodado que retêm em si o intentado. Disso conclui Husserl que o absoluto dar-se
em si mesmo não se restringe ao imanente, nem inclui somente universalidades ou
objetividades, mas transita entre os dois campos.
Já se pode, com isso, ter o fenômeno puro (como por exemplo, o de uma cor
percebida) e através da redução fenomenológica chegar à sua essência pela
abstração. Contudo, a reflexão de Husserl na quinta lição demonstra que pouco
importa se a cor - ou qualquer outro objeto - está de fato diante da consciência ou

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A IDEIA DA FENOMENOLOGIA

se é uma fantasia. A existência e o modo de existência de um objeto não influenciam


na tarefa de atingir sua essência, ou seja, o juízo das essências independe da
diferença entre percepção e fantasia.
O grande problema que surge, diz Husserl como última reflexão do livro, é
saber o que está dado numa evidência e o que não está, como é no caso das
fantasias. O quadrado redondo pensado é, efetivamente, a vivência de um
fenômeno, mas não o é o objeto deste pensamento, nem mesmo na fantasia.
Importa “realçar os diferentes modos do genuíno dar-se” (Idem, p. 103, itálico no
original) e os modos de constituição das inúmeras objetividades e suas relações
para o conhecimento, já que somente neles se pode investigar a essência da
objetividade em geral, só nele se pode ver com evidência. “Este intuir evidente é,
sim, o conhecimento no sentido mais pleno (...)” (Idem, p. 104, itálico no original). É
no evidenciar-se que o objeto se constitui no conhecimento. Conhecimento onde as
importantes conexões entre atos de pensamento formam a unidade do
entendimento, constituindo não só, como lembra Husserl, a objetividade da ciência
natural, mas também “a objetividade da realidade espaço-temporal efetiva” (Idem, p.
105).
A leitura de A ideia da fenomenologia permite, ainda que de forma concisa,
entender o método fenomenológico, apresentando os pontos centrais da meditação
de Husserl: método para fazer da Filosofia uma ciência rigorosa, que se baseia na
essência dos fenômenos presentes na consciência, procedimento descritivo de
modo a validar também as ciências naturais e que permite a certeza como disciplina
a priori, estando na raiz da Filosofia e da Ciência. A obra estabelece a especificidade
da Filosofia como ciência, explica a necessidade de um método rigoroso que possa
aplicar-se também às ciências naturais para legitimá-la. O livro traz ainda uma crítica
do conhecimento e responde à questão de como é possível a correlação
conhecimento-objeto e como o conhecimento pode dar sentido a esse objeto. Dessa
maneira, a fenomenologia adquire status de ciência das essências e o método
fenomenológico apresenta-se como rigoroso método científico.
No momento em que escreveu as conferências desta obra, Husserl está
iniciando a fase em que trata a fenomenologia transcendental como uma nova forma
de transcendentalismo. Este período se estende até as Meditações Cartesianas
(1929). O cerne do seu pensamento no período é o sujeito e o modo como as coisas

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aparecem na consciência. Embora nessa fase, bem como na obra fundamental que
então escreveu Ideias diretrizes (1913), Husserl não considere o significado da
história na formação do sujeito, ele se abre gradualmente à noção de processo. Isto
permitirá que se ocupe da História e da crise de cultura que privilegiou o
irracionalismo. Esses dois assuntos ganharão importância nos últimos anos de
reflexão de 1934 a 1937, quando Husserl escreveu A crise da humanidade
européia e a filosofia e culpou os intelectuais europeus de se afastarem do legado
da razão.

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